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Carmen Soares Maria do Céu Fialho María Consuelo Alvarez Morán Rosa María Iglesias Montiel Coordenação COIMBRA 2011 orma & Transgressão II N Obra protegida por direitos de autor

& Transgressão II - digitalis.uc.pt · Carmen Soares Maria do Céu Fialho María Consuelo Alvarez Morán Rosa María Iglesias Montiel Coordenação • C O I M B R A 2 0 1 1 orma

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Page 1: & Transgressão II - digitalis.uc.pt · Carmen Soares Maria do Céu Fialho María Consuelo Alvarez Morán Rosa María Iglesias Montiel Coordenação • C O I M B R A 2 0 1 1 orma

Carmen SoaresMaria do Ceacuteu Fialho

Mariacutea Consuelo Alvarez MoraacutenRosa Mariacutea Iglesias Montiel

Coordenaccedilatildeo

bull C O I M B R A 2 0 1 1

ormaamp Transgressatildeo

II

NNorm

a amp Transgressatildeo bull II

Seacuterie

Documentos

bull

Imprensa da Universidade de CoimbraCoimbra University Press

2011

9789892

601052

A riqueza e policromia da reflexatildeo em torno dos modos diversos como cada comu-

nidade vive a sua proacutepria experiecircncia de identidade na actividade regulamentadora

e no gesto de quebra das suas regras bem como numa posterior etapa na inte-

graccedilatildeo de transgressotildees executadas (sentidas como um novo campo da sua proacutepria

identidade expandida) impulsionaram a publicaccedilatildeo de Norma amp Transgressatildeo II

Esta dinacircmica de forte cariz transversal conduz agrave questatildeo das ldquofronteiras do eurdquo

individual (local) e da comunidade (global) o que significa ser estranho e natildeo o

ser ateacute que ponto a conexatildeo tensa entre o normativo e o transgressivo constitui

um processo determinante no comportamento colectivo e individual pelo qual o

ser humano aprende avanccedila se compreende a si mesmo e compreende os outros

Possam as indagaccedilotildees aqui presentes servir o puacuteblico a que antes de mais se des-

tinam os alunos dos seminaacuterios de 2ordm e 3ordm ciclo de Estudos Claacutessicos mas tambeacutem

um puacuteblico mais vasto que ultrapasse o exclusivamente acadeacutemico dado o seu

cariz pluridisciplinar e transepocal

verificar medidas da capalombada

Obra protegida por direitos de autor

1

D O C U M E N T O S

Obra protegida por direitos de autor

2

Coordenaccedilatildeo editorial

Imprensa da Univers idade de CoimbraEmail imprensaucciucpt

URL httpwwwucptimprensa_ucVendas Online httpwwwlivrariadaimprensacom

ConCepccedilatildeo gr aacutefiCa

Antoacutenio Barros

infogr afia

Carlos Costa

Imprensa da Universidade de Coimbra

ex eCuccedilatildeo gr aacutefiCa

Europress

iSBn

978-989-26-0105-2

depoacuteSito legal

Obra publicada cOm O apOiO de

Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos

Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

Programa Operaciona l Ciecircncia e Inovaccedilatildeo 2010

copy OutubrO 2011 imprensa da universidade de cOimbra

Obra protegida por direitos de autor

3

bull C O I M B R A 2 0 1 1

Carmen Soares Maria do Ceacuteu Fialho

Mariacutea Consuelo Alvarez MoraacutenRosa Mariacutea Iglesias Montiel

Coordenaccedilatildeo

ormaamp Transgressatildeo

II

N

Obra protegida por direitos de autor

5

Iacutendice

Prefaacutecio 9

cap i- Histoacuteria da antiguidade claacutessica

1 1 polIacutetica

Mark Beck

Constitutions Contingency and the Individual Solon Lycurgus and the Early Development of Greek Political Biography 15

Josep Monserrat Molas

A transgressatildeo da norma como forma de manter a ordem uma nota sobre o sentido de O poliacutetico de Platatildeo 39

1 2 arte

Luiacutesa de Nazareacute Ferreira

A representaccedilatildeo de crianccedilas na arte grega 59

1 3 alimentaccedilatildeo

Carmen Soares

Transgressotildees gastronoacutemicas Sobre o consumo de carne em Plutarco 99

Obra protegida por direitos de autor

6

cap ii- os claacutessicos e a sua recepccedilatildeo contributos

para a (des)construccedilatildeo de identidades culturais

2 1 literatura latina

Maria Consuelo Aacutelvarez Moraacuten e Rosa Mariacutea Iglesias Montiel

La tragedia de las mujeres troyanas en Las Metamorfosis de Ovidio 115

2 2 recepccedilatildeo de claacutessicos da literatura

Maria do Ceacuteu Fialho

Reinvenccedilatildeo de mundo e correspondecircncia de siacutembolos em Sob o Olhar de Medeia de F Hasse Pais Brandatildeo 155

Maria Antoacutenio Houmlrster e Maria de Faacutetima Silva

Espaccedilo para Medeia Notas acerca da Medeia de Maacuterio Claacuteudio 175

Susana Marques Pereira

Adaptaccedilatildeo dramaacutetica e transgressatildeo 194

Ana Paula Arnaut

Trecircs homens e um livro Boa Noite Senhor Soares de Maacuterio Claacuteudio 201

Teresa Carvalho

Norma e transgressatildeo os lusiacuteadas de Manuel da Silva Ramos e Alface 215

2 3 arquitectura

Isabel Donas-Botto

Um passado mais-que-perfeito o impacto do claacutessico na arquitectura britacircnica 229

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7

cap iii- religiatildeo da greacutecia aos nossos dias

Adriana Nogueira

Quando a transgressatildeo eacute norma - a religiatildeo grega em progresso 252

Joseacute Ramos

Norma e transgressatildeo agrave luz do paradigma biacuteblico 265

Carlota Miranda Urbano

Ortodoxia e heterodoxia no iniacutecio da modernidade Poesia hagiograacutefica neolatina ao serviccedilo da apologeacutetica jesuiacutetica 289

cap iV- FilosoFia

Maria Luiacutesa Portocarrero

Norma transgressatildeo e traduccedilatildeo na filosofia praacutetica de P Ricoeur 307

cap V- geograFia

Norberto Santos

Desvios e regras nos territoacuterios do quotidiano 323

Obra protegida por direitos de autor

9

preFaacutecio

Na sequecircncia do primeiro Coloacutequio Internacional sobre este tema

decorrido em 2006 o Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos e o

Instituto de Estudos Claacutessicos da Universidade de Coimbra com a colaboraccedilatildeo

da Universidade de Muacutercia organizaram um Coloacutequio Internacional dedicado

a ldquoNorma e transgressatildeordquo (II) no contexto do Projecto de Investigaccedilatildeo

Quadrienal ldquoPolisCosmopolisrdquo Decorreu nos dias 29 e 30 de Setembro de

2008 Teve como objectivo criar um espaccedilo de reflexatildeo dos modos diversos

como cada comunidade vive a sua proacutepria experiecircncia de identidade na

actividade regulamentadora e no gesto de quebra das suas regras bem

como numa posterior etapa na integraccedilatildeo de transgressotildees executadas

como um novo campo da sua proacutepria identidade expandida Esta dinacircmica

conduz agrave questatildeo das ldquofronteiras do eurdquo individual (local) e da comunidade

(global) que significa ser estranho e natildeo o ser ateacute que ponto a conexatildeo

tensa entre o normativo e o transgressivo constitui um processo determinante

no comportamento colectivo e individual pelo qual o ser humano aprende

avanccedila se compreende a si mesmo e compreende os outros

Tratou-se de um encontro de forte cariz transversal contando com

contributos das seguintes aacutereas de investigaccedilatildeo literaturas claacutessicas (grega

e latina) e modernas (anglo-americanas e germaniacutesticas) literatura biacuteblica

filosofia geografia e histoacuteria

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11

capIacutetulo i

Histoacuteria da antiguidade claacutessica

Obra protegida por direitos de autor

69

vasos da Eacutepoca Arcaica Felizmente o corpus de vasos aacuteticos que nos chegou

eacute bastante extenso pelo que num trabalho de anaacutelise iconograacutefica o mais

simples e correcto eacute adoptar a metodologia dos especialistas que distinguem

as decoraccedilotildees inspiradas em episoacutedios mitoloacutegicos da representaccedilatildeo de

cenas da vida quotidiana

No primeiro grupo inscrevem-se episoacutedios da infacircncia de divindades

heroacuteis e heroiacutenas destacando-se o nascimento de Afrodite Apolo e Aacutertemis

Ascleacutepio Atena Dioacutenisos Erictoacutenio Helena Hermes e Zeus bem como

Aquiles entregue aos cuidados do centauro Quiacuteron e a proeza do bebeacute

Heacuteracles que ainda no berccedilo estrangulou duas serpentes Incluem-se

tambeacutem neste grupo as decoraccedilotildees inspiradas nos mitos de infanticiacutedio ou

exposiccedilatildeo como a vinganccedila de Medeia e de Procne o assassiacutenio de Astiacuteanax

depois da queda de Troacuteia Perseu lanccedilado ao mar dentro de uma arca e

Orestes ameaccedilado por Teacutelefo No que respeita agraves cenas da vida quotidiana

em traccedilos gerais podemos dizer que os artistas aacuteticos retratam todas as

experiecircncias que preenchem o dia-a-dia de uma crianccedila designadamente

as relaccedilotildees familiares e sociais a educaccedilatildeo e as brincadeiras

Do repertoacuterio de figuras negras sobre temas mitoloacutegicos merece destaque

o nascimento de Atena que foi dos temas mais ceacutelebres na arte da Eacutepoca

Arcaica em especial na ceracircmica aacutetica embora tenha continuado a ser

tratado durante o seacuteculo V aC surgindo em evidecircncia no centro do frontatildeo

oriental do Paacutertenon (Paus 1 24 5)

Conta Hesiacuteodo que a deusa fora concebida da uniatildeo de Zeus com Meacutetis

mas quando esta estava prestes a dar agrave luz o deus supremo engoliu-a uma

vez que Geia e Urano o tinham avisado de que dela nasceriam uma filha

saacutebia e corajosa como o pai e um filho de coraccedilatildeo orgulhoso que

ambicionaria o poder de Zeus (Teogonia 886-900 924-926) Segundo um

escoacutelio de Apoloacutenio de Rodes o poeta Estesiacutecoro de Hiacutemera (seacutec VII-VI

aC) foi ldquoo primeiro a afirmar que Atena saltara armada da cabeccedila de Zeusrdquo

O fragmento de um comentaacuterio transmitido por um papiro do seacuteculo II da

nossa era descoberto em Oxirrinco cita uma parte dos versos em que

Estesiacutecoro referia esse episoacutedio ldquo a resplandecer com as armasPalas

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lanccedilou-se para a terra vastardquo22 Assim eacute possiacutevel como se pensa que o

liacuterico da Siciacutelia tenha sido o responsaacutevel pela criaccedilatildeo literaacuteria deste tema

que teraacute igualmente grande fortuna na pintura de vasos23 Nem o escoacutelio

nem o fragmento que se preservou permitem esclarecer se no poema de

Estesiacutecoro a filha de Zeus nascia crianccedila ou adulta embora a segunda

hipoacutetese seja mais plausiacutevel visto que os dois textos sublinham o ardor

belicoso da deusa De acordo com a Oliacutempica VII de Piacutendaro (vv 35-38)

composta em 464 aC para Diaacutegoras de Rodes Hefestos fendeu a cabeccedila

de Zeus com um machado e ao erguer-se da fronte paterna Atena soltou

um grito de guerra fortiacutessimo do que se depreende embora o passo natildeo

seja expliacutecito que estava pronta a combater

Satildeo basicamente estes os dados miacuteticos que os artistas aacuteticos ilustram

Numa das representaccedilotildees mais antigas de um vaso atribuiacutedo ao Pintor C

conservado no Museu do Louvre do segundo quartel do seacuteculo VI aC

Zeus sentado no trono com o ceptro na matildeo direita e o raio na esquerda

ocupa o centro da cena e eacute assistido por seis divindades entre as quais se

encontram Hefestos (com o machado) Poseacuteidon (com o tridente) e as deusas

Ilitias que amparavam as parturientes Atena de elmo posto sai da cabeccedila

do pai preparada para combater com o escudo encostado ao peito e o

braccedilo direito erguido na posiccedilatildeo de arremessar a lanccedila (cf Hino Homeacuterico

a Atena 28 8-9) Apesar da estatura reduzida da receacutem-nascida nenhum

traccedilo sugere que o artista pretendia representar uma crianccedila24

Eacute este aspecto guerreiro e ofensivo da deusa a sair da cabeccedila de Zeus ndash

este habitualmente sentado no trono rodeado de vaacuterias divindades que o

22 Fr 56 Page = fr 233 PMG Vide D L Page (1962) Poetae Melici Graeci Oxford Clarendon Press D A Campbell (1991) Greek Lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and Others Cambridge Mass Harvard University Press 162-163

23 Na arte a representaccedilatildeo mais antiga segura do nascimento de Atena eacute documentada pelos relevos martelados em bronze descobertos em Oliacutempia (fragmentos de escudos) dos finais do seacuteculo VII ou da primeira metade do seacutec VI aC e preservados no seu Museu (B 1975d) cf T Carpenter 1991 71 e nordm 98

24 Exaleiptron (vaso para guardar perfumes e unguentos) triacutepode aacutetico de figuras negras atribuiacutedo ao Pintor C c 570-560 aC (Paris Museu do Louvre CA 616 ) Vide httpcommonswikimediaorgwikiFileExaleiptron_birth_Athena_Louvre_CA616jpg (acedido em 30112010)

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assistem ou sauacutedam a receacutem-nascida ndash que vamos encontrar nas decoraccedilotildees

de vasos de figuras negras atribuiacutedos ao Grupo E (c 560-540 aC) assim

chamado por ter sido o ateliecirc onde se formou o grande pintor Exeacutequias

Num conjunto relevante de acircnforas preservadas em diferentes museus este

esquema iconograacutefico manteacutem-se com ligeiras variaccedilotildees comprovando a

popularidade do tema na Eacutepoca Arcaica uma pequena Atena vestida com

um peplos e armada sai da cabeccedila de Zeus que sentado num trono elaborado

e com o raio na matildeo eacute assistido de cada lado por vaacuterias divindades Aleacutem

das Ilitias (uma ou duas) que erguem o braccedilo em sinal de auxiacutelio os deuses

normalmente trecircs satildeo identificados pelos adereccedilos proacuteprios e alternam em

cada vaso (Dioacutenisos Hermes Poseacuteidon Apolo Ares Hefestos) Sob o trono

de Zeus surge a figura reduzida de um homem ou de uma divindade alada25

Outros tratamentos do nascimento de Atena na pintura de vasos aacuteticos

retratam a deusa armada sobre os joelhos de Zeus (a partir de 550 aC) ou

junto do pai mas com aspecto de adulta figuraccedilatildeo que parece ter sido

adoptada por Fiacutedias no frontatildeo oriental do Paacutertenon26 A rejeiccedilatildeo da imagem

de Atena como crianccedila natildeo eacute caso uacutenico e relaciona-se com a complexa e

interessante questatildeo que diz respeito ao tratamento literaacuterio e iconograacutefico

do nascimento de deusas e heroiacutenas De facto regra geral (Aacutertemis parece

ser a excepccedilatildeo) estas vecircm ao mundo com formas adultas ao contraacuterio dos

25 Eg Berlim Staatliche Museen Antikensammlung 1699 vide R Vollkommer 2000 376 (fig 2) Boston Museum of Fine Arts 00330 vide S Blundell and M Williamson 1998 61 (fig 45) Munique Antikensammlungen 1382 New Haven Yale University Art Gallery 198322 vide J Neils amp J Oakley 2003 116 206-207 (cat 5) Paris Museu do Louvre F 32 vide httpcommonswikimediaorgwikiFileAmphora_birth_Athena_Louvre_F32jpg (acedido em 30112010) Viena Kunsthistorisches Museum IV 3596 Acircnforas da mesma oficina com variaccedilotildees deste esquema iconograacutefico eg Atena sem elmo e com o escudo eacute retratada sobre os joelhos de Zeus (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum L 250) sete divindades (Ilitia Heacuteracles Ares Apolo Poseacuteidon Hera e Hefestos) assistem ao nascimento sob o trono surgem duas figuras masculinas nuas (Londres The British Museum B 147) Zeus sentado num elaborado trono e uma minuacutescula Atena armada (elmo escudo e lanccedila) satildeo representados frontalmente acompanhados por Hermes Ares Ilitia e outra deusa (Richmond Virginia Museum of Fine Arts 6023) vide T Carpenter 1991 nordm 100 e httpwwwvmfastatevausCollectionsAncient_ArtBlack-figured_Amphora_60_23aspx (acedido em 30112010)

26 Sobre a iconografia do nascimento de Atena vide J Boardman 1974 37 216-217 e 1991b 102 H Cassimatis (1984) in LIMC II1 sv Athena pp 985-990 1021-1023 T Carpenter 1991 71-72 L Beaumont 1995 349-351 e 1998 76-77 R Vollkommer 2000 375-377

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deuses e heroacuteis como Apolo Dioacutenisos Heacuteracles Hermes e Aquiles que

natildeo soacute nascem bebeacutes como vivem episoacutedios ceacutelebres na infacircncia anunciando

as qualidades ou defeitos que os distinguem na idade adulta No entanto

quando os artistas gregos optavam por retratar as deusas e heroiacutenas apenas

como adultas ndash o caso de Afrodite que emerge das aacuteguas no esplendor da

sua beleza eacute paradigmaacutetico ndash natildeo estavam de facto a seguir uma convenccedilatildeo

pictoacuterica Como observou Lesley Beaumont este eacute possivelmente um caso

em que as expressotildees artiacutesticas reflectem a mentalidade vigente na Atenas

arcaica e claacutessica que atribuiacutea agrave crianccedila e agrave mulher um lugar inferior na

hierarquia social e as considerava menos capazes ser deusa eacute partilhar de

algum modo da fragilidade do elemento feminino mas ser deusa e crianccedila

eacute elevar essa fragilidade a uma escala inaceitaacutevel pelo que o mito na sua

expressatildeo literaacuteria e artiacutestica parece ter evitado a dificuldade que seria

conciliar a ideia de ldquodivinordquo com as concepccedilotildees predominantes de crianccedila

e mulher (1995 349-361 1998 80-93 especialmente)

O corpus de vasos aacuteticos de figuras negras que representam crianccedilas

humanas natildeo eacute significativo mas as cenas retratadas satildeo diversas e constituem

um contributo valioso para o estudo da infacircncia ateniense

Uma placa votiva de meados do seacutec VI aC mostra-nos o interior de um

lar onde uma mulher sentada num banco e apoiada numa mesa se entrega

a tarefas domeacutesticas possivelmente agrave tecelagem ou confecccedilatildeo de vestuaacuterio

A decoraccedilatildeo vistosa da sua indumentaacuteria eacute um elemento que sobressai e

contrasta com a figura nua que atraacutes de si vemos sentada no chatildeo entre

os moacuteveis O penteado e atitude indicam tratar-se de uma menina mas as

formas sobretudo as matildeos e pernas muito compridas natildeo satildeo proporcionais

nem harmoniosas27

Um leacutecito do mesmo periacuteodo evoca uma situaccedilatildeo provavelmente frequente

no quotidiano infantil mas tatildeo pouco representada no corpus de vasos

aacuteticos que sugeriu o nome do artista Tal como na peccedila anterior a figura

27 Placa votiva aacutetica de figuras negras c 560 aC (Atenas Museu da Acroacutepole 2525) Vide M Golden 1990 35 (fig 6) L Beaumont 2003 63 (ldquoa rare early representation of a female infantrdquo) H Foley 2003 118-119 (fig 7)

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central ndash um menino que tenta escapar aos accediloites de um homem e corre

para os braccedilos de uma mulher ndash apenas eacute identificada como crianccedila por

estar nua e ter metade do tamanho das restantes figuras A cena no seu

conjunto faz imediatamente pensar num menino ainda pequeno que foge

da sandaacutelia do pai e busca o afecto da matildee um tema adequado a um vaso

comum e muito usado em casa como recipiente para azeite28

Os autores destas imagens natildeo foram capazes de traccedilar a fisionomia

caracteriacutestica da crianccedila mas isso natildeo significa que os artistas aacuteticos desta

eacutepoca eram menos haacutebeis ou prestavam pouca atenccedilatildeo aos elementos mais

novos da poacutelis A placa votiva que comentaacutemos proveniente da acroacutepole

de Atenas natildeo eacute decerto um trabalho profissional e o vaso embora

interessante eacute atribuiacutedo a um pintor que J Boardman (1974 33) considera

um ldquoimitador sem talentordquo No entanto numa cena de despedida de guerreiros

que decora uma acircnfora atribuiacuteda ao referido Grupo E cujas obras satildeo muito

mais elaboradas a personagem de rosto masculino e formas musculadas

que se destaca do centro da composiccedilatildeo como no vaso anterior apenas eacute

identificada como um menino ou jovem por estar nu e ter metade do

tamanho das outras figuras29 Este exemplo pode sugerir que para os pintores

aacuteticos deste periacuteodo eram mais importantes as convenccedilotildees pictoacutericas ndash como

a nudez a altura e o tamanho dos mais pequenos ndash do que o realismo da

representaccedilatildeo

Uma placa (pinax) de terracota funeraacuteria com inscriccedilotildees do comeccedilo do

seacuteculo V aC pode corroborar esta hipoacutetese30 Numa composiccedilatildeo elaborada

que retrata o ritual de exposiccedilatildeo do corpo (prothesis) no qual participam

vaacuterios homens e mulheres estas mais proacuteximas do defunto distinguem-se

28 Leacutecito aacutetico de figuras negras pelo Pintor da Sandaacutelia (vaso epoacutenimo) c 550 aC (Bolonha Museo Civico Archeologico PU 204) Vide J Boardman 1974 nordm 43 M Golden 2003 26 (fig 5)

29 Acircnfora aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Grupo E c 560-540 aC (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum 247) Vide L Beaumont 2003 61 (fig 1)

30 Placa funeraacuteria aacutetica de terracota atribuiacuteda ao Pintor de Safo c 500-490 aC (Paris Museu do Louvre MNB 905) Vide J Boardman 1974 nordm 265 L Beaumont 2003 61-62 H Shapiro 2003 105 J Oakley 2003 164-165 (fig 3) httpenwikipediaorgwikiFilePinax_prothesis_Louvre_MNB905jpg (acedido em 30112010)

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trecircs figuras mais pequenas A mais baixa encontra-se no lado esquerdo

entre o grupo dos homens e o das mulheres e as roupas sugerem que se

trata de um menino talvez ainda pequeno pois apoia-se nas pernas do

leito fuacutenebre As outras duas de alturas distintas apenas diferem das

mulheres no tamanho (a inscriccedilatildeo identifica a menina mais baixa como irmatilde

do defunto) Assim esta peccedila aleacutem de documentar a participaccedilatildeo de crianccedilas

e jovens nas cerimoacutenias familiares e religiosas designadamente nos rituais

fuacutenebres um costume antigo jaacute atestado no estilo Geomeacutetrico indica que

o tamanho e a altura podiam ser os uacutenicos elementos convencionais a

distinguir uma crianccedila de uma pessoa mais velha

As imagens que comentaacutemos revelam-nos a intimidade dos lares atenienses

e os seus momentos mais dolorosos mas o repertoacuterio de figuras negras

tambeacutem contemplava os contactos com o exterior e situaccedilotildees mais alegres

Uma conhecida pelike atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides (c 500 aC) retrata

um menino a tirar medidas na loja do sapateiro na companhia do pai ou

do pedagogo31 A presenccedila deste elemento bem como o facto de a figura

mais pequena se encontrar em cima da mesa do artesatildeo e se apoiar na

cabeccedila deste sugerem que pode ser crianccedila embora as linhas do corpo natildeo

decircem essa impressatildeo Natildeo eacute claro de facto se o artista pretendia representar

um menino em idade escolar ou um rapaz mais velho

Finalmente merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de uma acircnfora

preservada em Estugarda que retrata trecircs jovens na companhia de um

homem provavelmente o pedagogo Enquanto uma delas anda de baloiccedilo

ndash uma actividade luacutedica que se relaciona provavelmente com um ritual

tambeacutem evocado na ceracircmica de figuras vermelhas32 ndash as outras cuidam de

duas crianccedilas mais pequenas Como nos vasos comentados anteriormente

31 Pelike aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides c 500 aC (Oxford Ashmolean Museum 563) Vide J Boardman 1974 nordm 229 M Golden 1990 29 (fig 2) M Vickers (1999) Ancient Greek Pottery Oxford Ashmoleum Museum 35 (nordm 23) J Neils amp J Oakley 2003 100 242 (cat 43)

32 O ritual da Aiora (ldquobaloiccedilordquo) era praticado por jovens em memoacuteria da jovem Eriacutegone que se suicidara apoacutes o assassiacutenio de seu pai Cf H Shapiro 2003 103-104 (fig 189) J Neils 2003 147 149 (fig 8) J Neils amp J Oakley 2003 288 (cat 102)

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75

estas satildeo facilmente identificadas pelo tamanho reduzido mas as suas formas

grosseiras contrastam com o desenho mais elegante com que o artista

representou as donzelas33

O cataacutelogo aacutetico de figuras vermelhas eacute muito mais rico e difiacutecil de

seleccionar tanto no domiacutenio dos temas mitoloacutegicos quanto no das cenas

inspiradas na vida quotidiana nas quais nos vamos deter e eacute evidente

tambeacutem que a qualidade das peccedilas e a forma de retratar as crianccedilas varia

consideravelmente

As cenas de escola constituem uma das principais novidades desta teacutecnica

e uma das obras mais belas eacute sem duacutevida a ceacutelebre taccedila assinada por Duacuteris

no princiacutepio do seacuteculo V aC e preservada em Berlim34 Decorada no exterior

com as liccedilotildees dos mestres de muacutesica (kitharistes) e de letras (grammatistes)

sob o olhar vigilante do pedagogo estas imagens satildeo certamente um

testemunho da importacircncia crescente da literacia no dealbar da Eacutepoca

Claacutessica No seacuteculo V aC em Atenas normalmente a partir dos sete anos

os meninos iniciavam a instruccedilatildeo baacutesica no exterior enquanto as meninas

continuavam em casa e aprendiam a gerir o lar junto da matildee e das escravas

Apesar da qualidade extraordinaacuteria da taccedila de Duacuteris a idade dos alunos

retratados nestas cenas natildeo eacute facilmente perceptiacutevel pois o principal traccedilo

que os distingue dos adultos eacute a estatura menor

Um dos grandes contributos das figuras vermelhas para o estudo da

infacircncia ateniense eacute o interesse que dedica aos afectos familiares e agraves

diferentes fases da vida de uma crianccedila tema que adquire cada vez mais

importacircncia ao longo do seacuteculo V aC Assim as cenas de gineceu tornam-se

muito mais correntes e se natildeo raras vezes mostram os preparativos do

casamento ou os cuidados com o corpo dos elementos femininos as crianccedilas

passam a estar cada vez mais presentes e constituem mesmo o tema principal

33 Estugarda Wuumlrttembergisches Landesmuseum 651 Vide M Golden 1990 34 (fig 5)34 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas assinada por Duacuteris c 490-480 aC (Berlim Staatliche

Museen Antikensammlung F 2285) Vide J Boardman 1975 nordm 289 J Neils amp J Oakley 2003 66 244-246 (cat 44) httpwwwmlahanasdeGreeksLXBerlinF2285html (acedido em 30112010)

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76

da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a

brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas

Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos

do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da

crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito

atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de

uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos

uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um

olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila

lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode

ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar

da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir

de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam

a descobrir o que as rodeia35

Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a

imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a

um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica

de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada

de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o

rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de

perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um

soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da

crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o

cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo

nem a atitude satildeo inteiramente naturais

35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)

36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)

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77

Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou

perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37

Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no

chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma

mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais

velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo

esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo

aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a

matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude

que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o

do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo

mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo

destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego

do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados

ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora

aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa

Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38

Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados

a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos

mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica

aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)

que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que

recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um

fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em

37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)

38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)

39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006

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78

1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena

harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para

a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza

de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude

desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo

da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua

frente satildeo claramente as de um bebeacute

Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero

crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a

cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos

de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava

a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa

alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia

e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde

a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos

exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de

c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no

centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada

numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma

escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa

sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica

por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria

muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade

sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina

Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420

40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)

41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)

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137

el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides

eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto

pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es

precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13

467-469

acceptior illi

quisquis is est quem caede mea placare paratis

liber erit sanguisque

ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os

disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo

versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima

tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha

mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est

(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava

se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo

donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una

princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son

palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las

Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus

ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la

tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten

de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en

una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo

devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de

Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada

por ella vv 469-473

siquos tamen ultima nostri

verba movent oris Priami vos filia regis

non captiva rogat genetrici corpus inemptum

reddite neve auro redimat ius triste sepulcri

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138

sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro

ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega

la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo

sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro

con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea

tambieacuten lo pagaba con orordquo

No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de

forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes

padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar

el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples

presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En

este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que

Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su

madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba

del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una

madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que

constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere

la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta

todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina

tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y

que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y

tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y

extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480

Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat

non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos

praebita coniecto rupit praecordia ferro

illa super terram defecto poplite labens

pertulit intrepidos ad fata novissima vultus

tunc quoque cura fuit partes velare tegendas

cum caderet casti que decus servare pudoris

10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos

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139

ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea

incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el

hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra

al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso

rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que

debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo

reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-

570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima

verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al

caer

ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών

ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta

con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque

moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura

ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo

La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste

en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten

de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los

aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin

vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan

en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a

la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de

Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe

proleacuteptica de los vv 483-485

teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx

regia dicta parens Asiae florentis imago

nunc etiam praedae mala sors

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140

ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada

regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo

incluso de un botiacutenrdquo

que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos

pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias

se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre

todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro

El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento

contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural

propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente

influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6

441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-

745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los

detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten

a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la

guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana

con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam

cecidisti) de Met 13 497-498

at te quia femina rebar

a ferro tutam cecidisti et femina ferro

ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer

has muerto por el hierrordquo

Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos

a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar

auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso

innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije

lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras

dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante

la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea

contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo

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141

insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado

de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748

οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου

ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de

los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo

Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio

confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no

responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en

Seacuteneca Contr 9 5 17

Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri

solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius

nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana

Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut

ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse

sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]

tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]

Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus

magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere

ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer

semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los

oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido

bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias

de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena

para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia

ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento

con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo

Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo

Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber

decir como saber dejar de decirrdquo

11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa

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142

pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel

forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado

esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado

orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo

perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met

13 505-520

iacet Ilion ingens

eventuque gravi finita est publica clades

sed finita tamen soli mihi Pergama restant

in cursuque meus dolor est modo maxima rerum

tot generis natisque potens nuribusque viroque

nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum

Penelopes munus quae me data pensa trahentem

matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est

clara parens haec est dicet Priameia coniunx

postque tot amissos tu nunc quae sola levabas

maternos luctus hostilia busta piasti

inferias hosti peperi quo ferrea resto

quidve moror quo me servas annosa senectus

quo di crudeles nisi uti nova funera cernam

vivacem differtis anum quis posse putaret

felicem Priamum post diruta Pergama dici

ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la

desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece

Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante

de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy

arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos

presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a

miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre

madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos

se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has

aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres

para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero

iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser

para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten

creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten

de Peacutergamordquo

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143

quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los

momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr

104-106 dice la abatida soberana

αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις

ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se

le han ido patria hijos y esposordquo

y continuacutea en 140-142

δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς

ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber

sido destruido mi poder lastimeramenterdquo

Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199

φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς

ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja

resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie

fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta

cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo

Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476

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144

ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν

ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores

no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo

y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y

descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el

sacrificio de Poliacutexena

οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα

ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa

de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por

la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de

polvo su desgraciada cabezardquo

Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba

como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513

ldquohaec Hectoris illa est

clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo

ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo

presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva

esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para

siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497

τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν

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145

κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν

ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer

esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez

me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la

que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un

camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir

este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para

los ricosrdquo

Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias

de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir

felix morte sua est nec te mea nata peremptam

adspicit et vitam pariter regnum que reliquit

ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute

a la vez la vida y el reinordquo

auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas

1312-1316

Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν

ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no

ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos

con impiacuteo deguumlellordquo

con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante

consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11

158-161

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146

tuque o sanctissima coniunx

felix morte tua neque in hunc seruata dolorem

contra ego uiuendo uici mea fata superstes

restarem ut genitor

ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada

para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para

sobrevir siendo su padrerdquo

La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye

el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda

no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten

de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen

a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha

recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que

se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna

llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute

portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se

repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate

Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610

σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός

ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del

mar traacuteela aquiacuterdquo

pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al

mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que

como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido

en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de

dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal

vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase

maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y

ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere

de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544

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205

Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio

Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12

surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo

Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida

do moccedilo do escritoacuterio

Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal

dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho

estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto

como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No

corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida

dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante

para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos

quentes

Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou

da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para

uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi

uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui

hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que

cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando

era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira

alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de

hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo

automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo

porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do

escritoacuterio foi-se embora

12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente

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206

Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino

sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute

copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da

escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em

mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a

trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu

Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13

Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco

do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio

para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo

Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos

acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao

moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa

claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as

indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a

Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-

Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa

a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria

cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade

narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente

delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando

Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar

de longo em tudo nos interessa

Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em

que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele

o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor

mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o

13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo

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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias

alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara

nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se

considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me

com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele

laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do

seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o

senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz

de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa

cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute

quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas

pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum

de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem

seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este

ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou

largarraquo (91-92)16

E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para

comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute

que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao

preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua

dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite

pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo

garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17

Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor

Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas

hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a

16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)

17 Apud P D de Almeida 2008 156

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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a

consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista

Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa

agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo

deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio

foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e

Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de

praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim

das traseirasrdquo (pp 21-22)

A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas

atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que

seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo

se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio

cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais

opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas

viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como

ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo

regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)

Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato

mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985

preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo

entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de

preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de

fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor

de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19

Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se

uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)

neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado

e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como

18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15

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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

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211

pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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212

Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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213

Bibliografia

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Claacuteudio Maacuterio (2005) Os sonetos italianos de Tiago Veiga Porto Asa

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Claacuteudio Maacuterio (2008) Boa noite senhor Soares Lisboa Dom Quixote

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Lino Pedro Sena (2005) ldquoVersos de um muito ningueacutemrdquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in PuacuteblicoMil Folhas 10 de Dezembro 22-23

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Zenith Richard (ed) (2003) Livro do Desassossego 4ordf ed Lisboa Assiacuterio e Alvim

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334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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335

agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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336

da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

Obra protegida por direitos de autor

339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

Obra protegida por direitos de autor

341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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Page 2: & Transgressão II - digitalis.uc.pt · Carmen Soares Maria do Céu Fialho María Consuelo Alvarez Morán Rosa María Iglesias Montiel Coordenação • C O I M B R A 2 0 1 1 orma

1

D O C U M E N T O S

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2

Coordenaccedilatildeo editorial

Imprensa da Univers idade de CoimbraEmail imprensaucciucpt

URL httpwwwucptimprensa_ucVendas Online httpwwwlivrariadaimprensacom

ConCepccedilatildeo gr aacutefiCa

Antoacutenio Barros

infogr afia

Carlos Costa

Imprensa da Universidade de Coimbra

ex eCuccedilatildeo gr aacutefiCa

Europress

iSBn

978-989-26-0105-2

depoacuteSito legal

Obra publicada cOm O apOiO de

Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos

Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

Programa Operaciona l Ciecircncia e Inovaccedilatildeo 2010

copy OutubrO 2011 imprensa da universidade de cOimbra

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3

bull C O I M B R A 2 0 1 1

Carmen Soares Maria do Ceacuteu Fialho

Mariacutea Consuelo Alvarez MoraacutenRosa Mariacutea Iglesias Montiel

Coordenaccedilatildeo

ormaamp Transgressatildeo

II

N

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5

Iacutendice

Prefaacutecio 9

cap i- Histoacuteria da antiguidade claacutessica

1 1 polIacutetica

Mark Beck

Constitutions Contingency and the Individual Solon Lycurgus and the Early Development of Greek Political Biography 15

Josep Monserrat Molas

A transgressatildeo da norma como forma de manter a ordem uma nota sobre o sentido de O poliacutetico de Platatildeo 39

1 2 arte

Luiacutesa de Nazareacute Ferreira

A representaccedilatildeo de crianccedilas na arte grega 59

1 3 alimentaccedilatildeo

Carmen Soares

Transgressotildees gastronoacutemicas Sobre o consumo de carne em Plutarco 99

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6

cap ii- os claacutessicos e a sua recepccedilatildeo contributos

para a (des)construccedilatildeo de identidades culturais

2 1 literatura latina

Maria Consuelo Aacutelvarez Moraacuten e Rosa Mariacutea Iglesias Montiel

La tragedia de las mujeres troyanas en Las Metamorfosis de Ovidio 115

2 2 recepccedilatildeo de claacutessicos da literatura

Maria do Ceacuteu Fialho

Reinvenccedilatildeo de mundo e correspondecircncia de siacutembolos em Sob o Olhar de Medeia de F Hasse Pais Brandatildeo 155

Maria Antoacutenio Houmlrster e Maria de Faacutetima Silva

Espaccedilo para Medeia Notas acerca da Medeia de Maacuterio Claacuteudio 175

Susana Marques Pereira

Adaptaccedilatildeo dramaacutetica e transgressatildeo 194

Ana Paula Arnaut

Trecircs homens e um livro Boa Noite Senhor Soares de Maacuterio Claacuteudio 201

Teresa Carvalho

Norma e transgressatildeo os lusiacuteadas de Manuel da Silva Ramos e Alface 215

2 3 arquitectura

Isabel Donas-Botto

Um passado mais-que-perfeito o impacto do claacutessico na arquitectura britacircnica 229

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7

cap iii- religiatildeo da greacutecia aos nossos dias

Adriana Nogueira

Quando a transgressatildeo eacute norma - a religiatildeo grega em progresso 252

Joseacute Ramos

Norma e transgressatildeo agrave luz do paradigma biacuteblico 265

Carlota Miranda Urbano

Ortodoxia e heterodoxia no iniacutecio da modernidade Poesia hagiograacutefica neolatina ao serviccedilo da apologeacutetica jesuiacutetica 289

cap iV- FilosoFia

Maria Luiacutesa Portocarrero

Norma transgressatildeo e traduccedilatildeo na filosofia praacutetica de P Ricoeur 307

cap V- geograFia

Norberto Santos

Desvios e regras nos territoacuterios do quotidiano 323

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9

preFaacutecio

Na sequecircncia do primeiro Coloacutequio Internacional sobre este tema

decorrido em 2006 o Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos e o

Instituto de Estudos Claacutessicos da Universidade de Coimbra com a colaboraccedilatildeo

da Universidade de Muacutercia organizaram um Coloacutequio Internacional dedicado

a ldquoNorma e transgressatildeordquo (II) no contexto do Projecto de Investigaccedilatildeo

Quadrienal ldquoPolisCosmopolisrdquo Decorreu nos dias 29 e 30 de Setembro de

2008 Teve como objectivo criar um espaccedilo de reflexatildeo dos modos diversos

como cada comunidade vive a sua proacutepria experiecircncia de identidade na

actividade regulamentadora e no gesto de quebra das suas regras bem

como numa posterior etapa na integraccedilatildeo de transgressotildees executadas

como um novo campo da sua proacutepria identidade expandida Esta dinacircmica

conduz agrave questatildeo das ldquofronteiras do eurdquo individual (local) e da comunidade

(global) que significa ser estranho e natildeo o ser ateacute que ponto a conexatildeo

tensa entre o normativo e o transgressivo constitui um processo determinante

no comportamento colectivo e individual pelo qual o ser humano aprende

avanccedila se compreende a si mesmo e compreende os outros

Tratou-se de um encontro de forte cariz transversal contando com

contributos das seguintes aacutereas de investigaccedilatildeo literaturas claacutessicas (grega

e latina) e modernas (anglo-americanas e germaniacutesticas) literatura biacuteblica

filosofia geografia e histoacuteria

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11

capIacutetulo i

Histoacuteria da antiguidade claacutessica

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69

vasos da Eacutepoca Arcaica Felizmente o corpus de vasos aacuteticos que nos chegou

eacute bastante extenso pelo que num trabalho de anaacutelise iconograacutefica o mais

simples e correcto eacute adoptar a metodologia dos especialistas que distinguem

as decoraccedilotildees inspiradas em episoacutedios mitoloacutegicos da representaccedilatildeo de

cenas da vida quotidiana

No primeiro grupo inscrevem-se episoacutedios da infacircncia de divindades

heroacuteis e heroiacutenas destacando-se o nascimento de Afrodite Apolo e Aacutertemis

Ascleacutepio Atena Dioacutenisos Erictoacutenio Helena Hermes e Zeus bem como

Aquiles entregue aos cuidados do centauro Quiacuteron e a proeza do bebeacute

Heacuteracles que ainda no berccedilo estrangulou duas serpentes Incluem-se

tambeacutem neste grupo as decoraccedilotildees inspiradas nos mitos de infanticiacutedio ou

exposiccedilatildeo como a vinganccedila de Medeia e de Procne o assassiacutenio de Astiacuteanax

depois da queda de Troacuteia Perseu lanccedilado ao mar dentro de uma arca e

Orestes ameaccedilado por Teacutelefo No que respeita agraves cenas da vida quotidiana

em traccedilos gerais podemos dizer que os artistas aacuteticos retratam todas as

experiecircncias que preenchem o dia-a-dia de uma crianccedila designadamente

as relaccedilotildees familiares e sociais a educaccedilatildeo e as brincadeiras

Do repertoacuterio de figuras negras sobre temas mitoloacutegicos merece destaque

o nascimento de Atena que foi dos temas mais ceacutelebres na arte da Eacutepoca

Arcaica em especial na ceracircmica aacutetica embora tenha continuado a ser

tratado durante o seacuteculo V aC surgindo em evidecircncia no centro do frontatildeo

oriental do Paacutertenon (Paus 1 24 5)

Conta Hesiacuteodo que a deusa fora concebida da uniatildeo de Zeus com Meacutetis

mas quando esta estava prestes a dar agrave luz o deus supremo engoliu-a uma

vez que Geia e Urano o tinham avisado de que dela nasceriam uma filha

saacutebia e corajosa como o pai e um filho de coraccedilatildeo orgulhoso que

ambicionaria o poder de Zeus (Teogonia 886-900 924-926) Segundo um

escoacutelio de Apoloacutenio de Rodes o poeta Estesiacutecoro de Hiacutemera (seacutec VII-VI

aC) foi ldquoo primeiro a afirmar que Atena saltara armada da cabeccedila de Zeusrdquo

O fragmento de um comentaacuterio transmitido por um papiro do seacuteculo II da

nossa era descoberto em Oxirrinco cita uma parte dos versos em que

Estesiacutecoro referia esse episoacutedio ldquo a resplandecer com as armasPalas

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70

lanccedilou-se para a terra vastardquo22 Assim eacute possiacutevel como se pensa que o

liacuterico da Siciacutelia tenha sido o responsaacutevel pela criaccedilatildeo literaacuteria deste tema

que teraacute igualmente grande fortuna na pintura de vasos23 Nem o escoacutelio

nem o fragmento que se preservou permitem esclarecer se no poema de

Estesiacutecoro a filha de Zeus nascia crianccedila ou adulta embora a segunda

hipoacutetese seja mais plausiacutevel visto que os dois textos sublinham o ardor

belicoso da deusa De acordo com a Oliacutempica VII de Piacutendaro (vv 35-38)

composta em 464 aC para Diaacutegoras de Rodes Hefestos fendeu a cabeccedila

de Zeus com um machado e ao erguer-se da fronte paterna Atena soltou

um grito de guerra fortiacutessimo do que se depreende embora o passo natildeo

seja expliacutecito que estava pronta a combater

Satildeo basicamente estes os dados miacuteticos que os artistas aacuteticos ilustram

Numa das representaccedilotildees mais antigas de um vaso atribuiacutedo ao Pintor C

conservado no Museu do Louvre do segundo quartel do seacuteculo VI aC

Zeus sentado no trono com o ceptro na matildeo direita e o raio na esquerda

ocupa o centro da cena e eacute assistido por seis divindades entre as quais se

encontram Hefestos (com o machado) Poseacuteidon (com o tridente) e as deusas

Ilitias que amparavam as parturientes Atena de elmo posto sai da cabeccedila

do pai preparada para combater com o escudo encostado ao peito e o

braccedilo direito erguido na posiccedilatildeo de arremessar a lanccedila (cf Hino Homeacuterico

a Atena 28 8-9) Apesar da estatura reduzida da receacutem-nascida nenhum

traccedilo sugere que o artista pretendia representar uma crianccedila24

Eacute este aspecto guerreiro e ofensivo da deusa a sair da cabeccedila de Zeus ndash

este habitualmente sentado no trono rodeado de vaacuterias divindades que o

22 Fr 56 Page = fr 233 PMG Vide D L Page (1962) Poetae Melici Graeci Oxford Clarendon Press D A Campbell (1991) Greek Lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and Others Cambridge Mass Harvard University Press 162-163

23 Na arte a representaccedilatildeo mais antiga segura do nascimento de Atena eacute documentada pelos relevos martelados em bronze descobertos em Oliacutempia (fragmentos de escudos) dos finais do seacuteculo VII ou da primeira metade do seacutec VI aC e preservados no seu Museu (B 1975d) cf T Carpenter 1991 71 e nordm 98

24 Exaleiptron (vaso para guardar perfumes e unguentos) triacutepode aacutetico de figuras negras atribuiacutedo ao Pintor C c 570-560 aC (Paris Museu do Louvre CA 616 ) Vide httpcommonswikimediaorgwikiFileExaleiptron_birth_Athena_Louvre_CA616jpg (acedido em 30112010)

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71

assistem ou sauacutedam a receacutem-nascida ndash que vamos encontrar nas decoraccedilotildees

de vasos de figuras negras atribuiacutedos ao Grupo E (c 560-540 aC) assim

chamado por ter sido o ateliecirc onde se formou o grande pintor Exeacutequias

Num conjunto relevante de acircnforas preservadas em diferentes museus este

esquema iconograacutefico manteacutem-se com ligeiras variaccedilotildees comprovando a

popularidade do tema na Eacutepoca Arcaica uma pequena Atena vestida com

um peplos e armada sai da cabeccedila de Zeus que sentado num trono elaborado

e com o raio na matildeo eacute assistido de cada lado por vaacuterias divindades Aleacutem

das Ilitias (uma ou duas) que erguem o braccedilo em sinal de auxiacutelio os deuses

normalmente trecircs satildeo identificados pelos adereccedilos proacuteprios e alternam em

cada vaso (Dioacutenisos Hermes Poseacuteidon Apolo Ares Hefestos) Sob o trono

de Zeus surge a figura reduzida de um homem ou de uma divindade alada25

Outros tratamentos do nascimento de Atena na pintura de vasos aacuteticos

retratam a deusa armada sobre os joelhos de Zeus (a partir de 550 aC) ou

junto do pai mas com aspecto de adulta figuraccedilatildeo que parece ter sido

adoptada por Fiacutedias no frontatildeo oriental do Paacutertenon26 A rejeiccedilatildeo da imagem

de Atena como crianccedila natildeo eacute caso uacutenico e relaciona-se com a complexa e

interessante questatildeo que diz respeito ao tratamento literaacuterio e iconograacutefico

do nascimento de deusas e heroiacutenas De facto regra geral (Aacutertemis parece

ser a excepccedilatildeo) estas vecircm ao mundo com formas adultas ao contraacuterio dos

25 Eg Berlim Staatliche Museen Antikensammlung 1699 vide R Vollkommer 2000 376 (fig 2) Boston Museum of Fine Arts 00330 vide S Blundell and M Williamson 1998 61 (fig 45) Munique Antikensammlungen 1382 New Haven Yale University Art Gallery 198322 vide J Neils amp J Oakley 2003 116 206-207 (cat 5) Paris Museu do Louvre F 32 vide httpcommonswikimediaorgwikiFileAmphora_birth_Athena_Louvre_F32jpg (acedido em 30112010) Viena Kunsthistorisches Museum IV 3596 Acircnforas da mesma oficina com variaccedilotildees deste esquema iconograacutefico eg Atena sem elmo e com o escudo eacute retratada sobre os joelhos de Zeus (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum L 250) sete divindades (Ilitia Heacuteracles Ares Apolo Poseacuteidon Hera e Hefestos) assistem ao nascimento sob o trono surgem duas figuras masculinas nuas (Londres The British Museum B 147) Zeus sentado num elaborado trono e uma minuacutescula Atena armada (elmo escudo e lanccedila) satildeo representados frontalmente acompanhados por Hermes Ares Ilitia e outra deusa (Richmond Virginia Museum of Fine Arts 6023) vide T Carpenter 1991 nordm 100 e httpwwwvmfastatevausCollectionsAncient_ArtBlack-figured_Amphora_60_23aspx (acedido em 30112010)

26 Sobre a iconografia do nascimento de Atena vide J Boardman 1974 37 216-217 e 1991b 102 H Cassimatis (1984) in LIMC II1 sv Athena pp 985-990 1021-1023 T Carpenter 1991 71-72 L Beaumont 1995 349-351 e 1998 76-77 R Vollkommer 2000 375-377

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72

deuses e heroacuteis como Apolo Dioacutenisos Heacuteracles Hermes e Aquiles que

natildeo soacute nascem bebeacutes como vivem episoacutedios ceacutelebres na infacircncia anunciando

as qualidades ou defeitos que os distinguem na idade adulta No entanto

quando os artistas gregos optavam por retratar as deusas e heroiacutenas apenas

como adultas ndash o caso de Afrodite que emerge das aacuteguas no esplendor da

sua beleza eacute paradigmaacutetico ndash natildeo estavam de facto a seguir uma convenccedilatildeo

pictoacuterica Como observou Lesley Beaumont este eacute possivelmente um caso

em que as expressotildees artiacutesticas reflectem a mentalidade vigente na Atenas

arcaica e claacutessica que atribuiacutea agrave crianccedila e agrave mulher um lugar inferior na

hierarquia social e as considerava menos capazes ser deusa eacute partilhar de

algum modo da fragilidade do elemento feminino mas ser deusa e crianccedila

eacute elevar essa fragilidade a uma escala inaceitaacutevel pelo que o mito na sua

expressatildeo literaacuteria e artiacutestica parece ter evitado a dificuldade que seria

conciliar a ideia de ldquodivinordquo com as concepccedilotildees predominantes de crianccedila

e mulher (1995 349-361 1998 80-93 especialmente)

O corpus de vasos aacuteticos de figuras negras que representam crianccedilas

humanas natildeo eacute significativo mas as cenas retratadas satildeo diversas e constituem

um contributo valioso para o estudo da infacircncia ateniense

Uma placa votiva de meados do seacutec VI aC mostra-nos o interior de um

lar onde uma mulher sentada num banco e apoiada numa mesa se entrega

a tarefas domeacutesticas possivelmente agrave tecelagem ou confecccedilatildeo de vestuaacuterio

A decoraccedilatildeo vistosa da sua indumentaacuteria eacute um elemento que sobressai e

contrasta com a figura nua que atraacutes de si vemos sentada no chatildeo entre

os moacuteveis O penteado e atitude indicam tratar-se de uma menina mas as

formas sobretudo as matildeos e pernas muito compridas natildeo satildeo proporcionais

nem harmoniosas27

Um leacutecito do mesmo periacuteodo evoca uma situaccedilatildeo provavelmente frequente

no quotidiano infantil mas tatildeo pouco representada no corpus de vasos

aacuteticos que sugeriu o nome do artista Tal como na peccedila anterior a figura

27 Placa votiva aacutetica de figuras negras c 560 aC (Atenas Museu da Acroacutepole 2525) Vide M Golden 1990 35 (fig 6) L Beaumont 2003 63 (ldquoa rare early representation of a female infantrdquo) H Foley 2003 118-119 (fig 7)

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73

central ndash um menino que tenta escapar aos accediloites de um homem e corre

para os braccedilos de uma mulher ndash apenas eacute identificada como crianccedila por

estar nua e ter metade do tamanho das restantes figuras A cena no seu

conjunto faz imediatamente pensar num menino ainda pequeno que foge

da sandaacutelia do pai e busca o afecto da matildee um tema adequado a um vaso

comum e muito usado em casa como recipiente para azeite28

Os autores destas imagens natildeo foram capazes de traccedilar a fisionomia

caracteriacutestica da crianccedila mas isso natildeo significa que os artistas aacuteticos desta

eacutepoca eram menos haacutebeis ou prestavam pouca atenccedilatildeo aos elementos mais

novos da poacutelis A placa votiva que comentaacutemos proveniente da acroacutepole

de Atenas natildeo eacute decerto um trabalho profissional e o vaso embora

interessante eacute atribuiacutedo a um pintor que J Boardman (1974 33) considera

um ldquoimitador sem talentordquo No entanto numa cena de despedida de guerreiros

que decora uma acircnfora atribuiacuteda ao referido Grupo E cujas obras satildeo muito

mais elaboradas a personagem de rosto masculino e formas musculadas

que se destaca do centro da composiccedilatildeo como no vaso anterior apenas eacute

identificada como um menino ou jovem por estar nu e ter metade do

tamanho das outras figuras29 Este exemplo pode sugerir que para os pintores

aacuteticos deste periacuteodo eram mais importantes as convenccedilotildees pictoacutericas ndash como

a nudez a altura e o tamanho dos mais pequenos ndash do que o realismo da

representaccedilatildeo

Uma placa (pinax) de terracota funeraacuteria com inscriccedilotildees do comeccedilo do

seacuteculo V aC pode corroborar esta hipoacutetese30 Numa composiccedilatildeo elaborada

que retrata o ritual de exposiccedilatildeo do corpo (prothesis) no qual participam

vaacuterios homens e mulheres estas mais proacuteximas do defunto distinguem-se

28 Leacutecito aacutetico de figuras negras pelo Pintor da Sandaacutelia (vaso epoacutenimo) c 550 aC (Bolonha Museo Civico Archeologico PU 204) Vide J Boardman 1974 nordm 43 M Golden 2003 26 (fig 5)

29 Acircnfora aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Grupo E c 560-540 aC (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum 247) Vide L Beaumont 2003 61 (fig 1)

30 Placa funeraacuteria aacutetica de terracota atribuiacuteda ao Pintor de Safo c 500-490 aC (Paris Museu do Louvre MNB 905) Vide J Boardman 1974 nordm 265 L Beaumont 2003 61-62 H Shapiro 2003 105 J Oakley 2003 164-165 (fig 3) httpenwikipediaorgwikiFilePinax_prothesis_Louvre_MNB905jpg (acedido em 30112010)

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74

trecircs figuras mais pequenas A mais baixa encontra-se no lado esquerdo

entre o grupo dos homens e o das mulheres e as roupas sugerem que se

trata de um menino talvez ainda pequeno pois apoia-se nas pernas do

leito fuacutenebre As outras duas de alturas distintas apenas diferem das

mulheres no tamanho (a inscriccedilatildeo identifica a menina mais baixa como irmatilde

do defunto) Assim esta peccedila aleacutem de documentar a participaccedilatildeo de crianccedilas

e jovens nas cerimoacutenias familiares e religiosas designadamente nos rituais

fuacutenebres um costume antigo jaacute atestado no estilo Geomeacutetrico indica que

o tamanho e a altura podiam ser os uacutenicos elementos convencionais a

distinguir uma crianccedila de uma pessoa mais velha

As imagens que comentaacutemos revelam-nos a intimidade dos lares atenienses

e os seus momentos mais dolorosos mas o repertoacuterio de figuras negras

tambeacutem contemplava os contactos com o exterior e situaccedilotildees mais alegres

Uma conhecida pelike atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides (c 500 aC) retrata

um menino a tirar medidas na loja do sapateiro na companhia do pai ou

do pedagogo31 A presenccedila deste elemento bem como o facto de a figura

mais pequena se encontrar em cima da mesa do artesatildeo e se apoiar na

cabeccedila deste sugerem que pode ser crianccedila embora as linhas do corpo natildeo

decircem essa impressatildeo Natildeo eacute claro de facto se o artista pretendia representar

um menino em idade escolar ou um rapaz mais velho

Finalmente merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de uma acircnfora

preservada em Estugarda que retrata trecircs jovens na companhia de um

homem provavelmente o pedagogo Enquanto uma delas anda de baloiccedilo

ndash uma actividade luacutedica que se relaciona provavelmente com um ritual

tambeacutem evocado na ceracircmica de figuras vermelhas32 ndash as outras cuidam de

duas crianccedilas mais pequenas Como nos vasos comentados anteriormente

31 Pelike aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides c 500 aC (Oxford Ashmolean Museum 563) Vide J Boardman 1974 nordm 229 M Golden 1990 29 (fig 2) M Vickers (1999) Ancient Greek Pottery Oxford Ashmoleum Museum 35 (nordm 23) J Neils amp J Oakley 2003 100 242 (cat 43)

32 O ritual da Aiora (ldquobaloiccedilordquo) era praticado por jovens em memoacuteria da jovem Eriacutegone que se suicidara apoacutes o assassiacutenio de seu pai Cf H Shapiro 2003 103-104 (fig 189) J Neils 2003 147 149 (fig 8) J Neils amp J Oakley 2003 288 (cat 102)

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75

estas satildeo facilmente identificadas pelo tamanho reduzido mas as suas formas

grosseiras contrastam com o desenho mais elegante com que o artista

representou as donzelas33

O cataacutelogo aacutetico de figuras vermelhas eacute muito mais rico e difiacutecil de

seleccionar tanto no domiacutenio dos temas mitoloacutegicos quanto no das cenas

inspiradas na vida quotidiana nas quais nos vamos deter e eacute evidente

tambeacutem que a qualidade das peccedilas e a forma de retratar as crianccedilas varia

consideravelmente

As cenas de escola constituem uma das principais novidades desta teacutecnica

e uma das obras mais belas eacute sem duacutevida a ceacutelebre taccedila assinada por Duacuteris

no princiacutepio do seacuteculo V aC e preservada em Berlim34 Decorada no exterior

com as liccedilotildees dos mestres de muacutesica (kitharistes) e de letras (grammatistes)

sob o olhar vigilante do pedagogo estas imagens satildeo certamente um

testemunho da importacircncia crescente da literacia no dealbar da Eacutepoca

Claacutessica No seacuteculo V aC em Atenas normalmente a partir dos sete anos

os meninos iniciavam a instruccedilatildeo baacutesica no exterior enquanto as meninas

continuavam em casa e aprendiam a gerir o lar junto da matildee e das escravas

Apesar da qualidade extraordinaacuteria da taccedila de Duacuteris a idade dos alunos

retratados nestas cenas natildeo eacute facilmente perceptiacutevel pois o principal traccedilo

que os distingue dos adultos eacute a estatura menor

Um dos grandes contributos das figuras vermelhas para o estudo da

infacircncia ateniense eacute o interesse que dedica aos afectos familiares e agraves

diferentes fases da vida de uma crianccedila tema que adquire cada vez mais

importacircncia ao longo do seacuteculo V aC Assim as cenas de gineceu tornam-se

muito mais correntes e se natildeo raras vezes mostram os preparativos do

casamento ou os cuidados com o corpo dos elementos femininos as crianccedilas

passam a estar cada vez mais presentes e constituem mesmo o tema principal

33 Estugarda Wuumlrttembergisches Landesmuseum 651 Vide M Golden 1990 34 (fig 5)34 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas assinada por Duacuteris c 490-480 aC (Berlim Staatliche

Museen Antikensammlung F 2285) Vide J Boardman 1975 nordm 289 J Neils amp J Oakley 2003 66 244-246 (cat 44) httpwwwmlahanasdeGreeksLXBerlinF2285html (acedido em 30112010)

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76

da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a

brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas

Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos

do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da

crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito

atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de

uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos

uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um

olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila

lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode

ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar

da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir

de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam

a descobrir o que as rodeia35

Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a

imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a

um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica

de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada

de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o

rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de

perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um

soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da

crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o

cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo

nem a atitude satildeo inteiramente naturais

35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)

36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)

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77

Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou

perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37

Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no

chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma

mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais

velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo

esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo

aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a

matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude

que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o

do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo

mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo

destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego

do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados

ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora

aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa

Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38

Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados

a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos

mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica

aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)

que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que

recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um

fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em

37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)

38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)

39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006

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78

1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena

harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para

a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza

de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude

desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo

da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua

frente satildeo claramente as de um bebeacute

Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero

crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a

cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos

de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava

a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa

alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia

e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde

a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos

exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de

c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no

centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada

numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma

escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa

sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica

por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria

muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade

sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina

Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420

40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)

41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)

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137

el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides

eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto

pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es

precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13

467-469

acceptior illi

quisquis is est quem caede mea placare paratis

liber erit sanguisque

ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os

disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo

versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima

tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha

mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est

(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava

se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo

donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una

princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son

palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las

Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus

ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la

tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten

de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en

una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo

devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de

Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada

por ella vv 469-473

siquos tamen ultima nostri

verba movent oris Priami vos filia regis

non captiva rogat genetrici corpus inemptum

reddite neve auro redimat ius triste sepulcri

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138

sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro

ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega

la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo

sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro

con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea

tambieacuten lo pagaba con orordquo

No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de

forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes

padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar

el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples

presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En

este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que

Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su

madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba

del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una

madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que

constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere

la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta

todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina

tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y

que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y

tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y

extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480

Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat

non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos

praebita coniecto rupit praecordia ferro

illa super terram defecto poplite labens

pertulit intrepidos ad fata novissima vultus

tunc quoque cura fuit partes velare tegendas

cum caderet casti que decus servare pudoris

10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos

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139

ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea

incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el

hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra

al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso

rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que

debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo

reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-

570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima

verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al

caer

ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών

ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta

con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque

moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura

ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo

La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste

en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten

de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los

aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin

vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan

en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a

la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de

Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe

proleacuteptica de los vv 483-485

teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx

regia dicta parens Asiae florentis imago

nunc etiam praedae mala sors

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140

ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada

regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo

incluso de un botiacutenrdquo

que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos

pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias

se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre

todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro

El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento

contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural

propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente

influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6

441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-

745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los

detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten

a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la

guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana

con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam

cecidisti) de Met 13 497-498

at te quia femina rebar

a ferro tutam cecidisti et femina ferro

ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer

has muerto por el hierrordquo

Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos

a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar

auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso

innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije

lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras

dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante

la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea

contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo

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141

insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado

de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748

οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου

ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de

los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo

Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio

confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no

responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en

Seacuteneca Contr 9 5 17

Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri

solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius

nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana

Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut

ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse

sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]

tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]

Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus

magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere

ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer

semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los

oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido

bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias

de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena

para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia

ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento

con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo

Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo

Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber

decir como saber dejar de decirrdquo

11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa

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142

pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel

forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado

esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado

orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo

perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met

13 505-520

iacet Ilion ingens

eventuque gravi finita est publica clades

sed finita tamen soli mihi Pergama restant

in cursuque meus dolor est modo maxima rerum

tot generis natisque potens nuribusque viroque

nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum

Penelopes munus quae me data pensa trahentem

matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est

clara parens haec est dicet Priameia coniunx

postque tot amissos tu nunc quae sola levabas

maternos luctus hostilia busta piasti

inferias hosti peperi quo ferrea resto

quidve moror quo me servas annosa senectus

quo di crudeles nisi uti nova funera cernam

vivacem differtis anum quis posse putaret

felicem Priamum post diruta Pergama dici

ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la

desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece

Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante

de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy

arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos

presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a

miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre

madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos

se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has

aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres

para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero

iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser

para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten

creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten

de Peacutergamordquo

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143

quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los

momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr

104-106 dice la abatida soberana

αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις

ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se

le han ido patria hijos y esposordquo

y continuacutea en 140-142

δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς

ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber

sido destruido mi poder lastimeramenterdquo

Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199

φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς

ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja

resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie

fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta

cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo

Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476

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144

ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν

ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores

no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo

y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y

descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el

sacrificio de Poliacutexena

οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα

ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa

de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por

la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de

polvo su desgraciada cabezardquo

Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba

como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513

ldquohaec Hectoris illa est

clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo

ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo

presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva

esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para

siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497

τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν

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145

κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν

ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer

esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez

me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la

que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un

camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir

este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para

los ricosrdquo

Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias

de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir

felix morte sua est nec te mea nata peremptam

adspicit et vitam pariter regnum que reliquit

ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute

a la vez la vida y el reinordquo

auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas

1312-1316

Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν

ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no

ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos

con impiacuteo deguumlellordquo

con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante

consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11

158-161

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146

tuque o sanctissima coniunx

felix morte tua neque in hunc seruata dolorem

contra ego uiuendo uici mea fata superstes

restarem ut genitor

ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada

para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para

sobrevir siendo su padrerdquo

La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye

el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda

no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten

de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen

a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha

recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que

se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna

llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute

portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se

repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate

Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610

σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός

ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del

mar traacuteela aquiacuterdquo

pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al

mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que

como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido

en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de

dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal

vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase

maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y

ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere

de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544

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205

Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio

Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12

surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo

Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida

do moccedilo do escritoacuterio

Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal

dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho

estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto

como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No

corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida

dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante

para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos

quentes

Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou

da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para

uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi

uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui

hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que

cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando

era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira

alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de

hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo

automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo

porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do

escritoacuterio foi-se embora

12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente

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206

Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino

sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute

copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da

escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em

mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a

trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu

Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13

Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco

do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio

para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo

Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos

acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao

moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa

claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as

indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a

Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-

Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa

a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria

cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade

narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente

delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando

Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar

de longo em tudo nos interessa

Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em

que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele

o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor

mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o

13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo

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207

homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias

alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara

nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se

considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me

com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele

laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do

seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o

senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz

de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa

cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute

quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas

pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum

de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem

seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este

ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou

largarraquo (91-92)16

E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para

comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute

que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao

preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua

dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite

pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo

garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17

Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor

Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas

hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a

16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)

17 Apud P D de Almeida 2008 156

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208

mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a

consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista

Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa

agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo

deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio

foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e

Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de

praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim

das traseirasrdquo (pp 21-22)

A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas

atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que

seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo

se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio

cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais

opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas

viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como

ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo

regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)

Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato

mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985

preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo

entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de

preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de

fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor

de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19

Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se

uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)

neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado

e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como

18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15

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209

em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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210

prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

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211

pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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212

Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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213

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Zenith Richard (ed) (2003) Livro do Desassossego 4ordf ed Lisboa Assiacuterio e Alvim

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334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

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as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

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em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

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o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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Page 3: & Transgressão II - digitalis.uc.pt · Carmen Soares Maria do Céu Fialho María Consuelo Alvarez Morán Rosa María Iglesias Montiel Coordenação • C O I M B R A 2 0 1 1 orma

2

Coordenaccedilatildeo editorial

Imprensa da Univers idade de CoimbraEmail imprensaucciucpt

URL httpwwwucptimprensa_ucVendas Online httpwwwlivrariadaimprensacom

ConCepccedilatildeo gr aacutefiCa

Antoacutenio Barros

infogr afia

Carlos Costa

Imprensa da Universidade de Coimbra

ex eCuccedilatildeo gr aacutefiCa

Europress

iSBn

978-989-26-0105-2

depoacuteSito legal

Obra publicada cOm O apOiO de

Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos

Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

Programa Operaciona l Ciecircncia e Inovaccedilatildeo 2010

copy OutubrO 2011 imprensa da universidade de cOimbra

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3

bull C O I M B R A 2 0 1 1

Carmen Soares Maria do Ceacuteu Fialho

Mariacutea Consuelo Alvarez MoraacutenRosa Mariacutea Iglesias Montiel

Coordenaccedilatildeo

ormaamp Transgressatildeo

II

N

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5

Iacutendice

Prefaacutecio 9

cap i- Histoacuteria da antiguidade claacutessica

1 1 polIacutetica

Mark Beck

Constitutions Contingency and the Individual Solon Lycurgus and the Early Development of Greek Political Biography 15

Josep Monserrat Molas

A transgressatildeo da norma como forma de manter a ordem uma nota sobre o sentido de O poliacutetico de Platatildeo 39

1 2 arte

Luiacutesa de Nazareacute Ferreira

A representaccedilatildeo de crianccedilas na arte grega 59

1 3 alimentaccedilatildeo

Carmen Soares

Transgressotildees gastronoacutemicas Sobre o consumo de carne em Plutarco 99

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6

cap ii- os claacutessicos e a sua recepccedilatildeo contributos

para a (des)construccedilatildeo de identidades culturais

2 1 literatura latina

Maria Consuelo Aacutelvarez Moraacuten e Rosa Mariacutea Iglesias Montiel

La tragedia de las mujeres troyanas en Las Metamorfosis de Ovidio 115

2 2 recepccedilatildeo de claacutessicos da literatura

Maria do Ceacuteu Fialho

Reinvenccedilatildeo de mundo e correspondecircncia de siacutembolos em Sob o Olhar de Medeia de F Hasse Pais Brandatildeo 155

Maria Antoacutenio Houmlrster e Maria de Faacutetima Silva

Espaccedilo para Medeia Notas acerca da Medeia de Maacuterio Claacuteudio 175

Susana Marques Pereira

Adaptaccedilatildeo dramaacutetica e transgressatildeo 194

Ana Paula Arnaut

Trecircs homens e um livro Boa Noite Senhor Soares de Maacuterio Claacuteudio 201

Teresa Carvalho

Norma e transgressatildeo os lusiacuteadas de Manuel da Silva Ramos e Alface 215

2 3 arquitectura

Isabel Donas-Botto

Um passado mais-que-perfeito o impacto do claacutessico na arquitectura britacircnica 229

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7

cap iii- religiatildeo da greacutecia aos nossos dias

Adriana Nogueira

Quando a transgressatildeo eacute norma - a religiatildeo grega em progresso 252

Joseacute Ramos

Norma e transgressatildeo agrave luz do paradigma biacuteblico 265

Carlota Miranda Urbano

Ortodoxia e heterodoxia no iniacutecio da modernidade Poesia hagiograacutefica neolatina ao serviccedilo da apologeacutetica jesuiacutetica 289

cap iV- FilosoFia

Maria Luiacutesa Portocarrero

Norma transgressatildeo e traduccedilatildeo na filosofia praacutetica de P Ricoeur 307

cap V- geograFia

Norberto Santos

Desvios e regras nos territoacuterios do quotidiano 323

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9

preFaacutecio

Na sequecircncia do primeiro Coloacutequio Internacional sobre este tema

decorrido em 2006 o Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos e o

Instituto de Estudos Claacutessicos da Universidade de Coimbra com a colaboraccedilatildeo

da Universidade de Muacutercia organizaram um Coloacutequio Internacional dedicado

a ldquoNorma e transgressatildeordquo (II) no contexto do Projecto de Investigaccedilatildeo

Quadrienal ldquoPolisCosmopolisrdquo Decorreu nos dias 29 e 30 de Setembro de

2008 Teve como objectivo criar um espaccedilo de reflexatildeo dos modos diversos

como cada comunidade vive a sua proacutepria experiecircncia de identidade na

actividade regulamentadora e no gesto de quebra das suas regras bem

como numa posterior etapa na integraccedilatildeo de transgressotildees executadas

como um novo campo da sua proacutepria identidade expandida Esta dinacircmica

conduz agrave questatildeo das ldquofronteiras do eurdquo individual (local) e da comunidade

(global) que significa ser estranho e natildeo o ser ateacute que ponto a conexatildeo

tensa entre o normativo e o transgressivo constitui um processo determinante

no comportamento colectivo e individual pelo qual o ser humano aprende

avanccedila se compreende a si mesmo e compreende os outros

Tratou-se de um encontro de forte cariz transversal contando com

contributos das seguintes aacutereas de investigaccedilatildeo literaturas claacutessicas (grega

e latina) e modernas (anglo-americanas e germaniacutesticas) literatura biacuteblica

filosofia geografia e histoacuteria

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11

capIacutetulo i

Histoacuteria da antiguidade claacutessica

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69

vasos da Eacutepoca Arcaica Felizmente o corpus de vasos aacuteticos que nos chegou

eacute bastante extenso pelo que num trabalho de anaacutelise iconograacutefica o mais

simples e correcto eacute adoptar a metodologia dos especialistas que distinguem

as decoraccedilotildees inspiradas em episoacutedios mitoloacutegicos da representaccedilatildeo de

cenas da vida quotidiana

No primeiro grupo inscrevem-se episoacutedios da infacircncia de divindades

heroacuteis e heroiacutenas destacando-se o nascimento de Afrodite Apolo e Aacutertemis

Ascleacutepio Atena Dioacutenisos Erictoacutenio Helena Hermes e Zeus bem como

Aquiles entregue aos cuidados do centauro Quiacuteron e a proeza do bebeacute

Heacuteracles que ainda no berccedilo estrangulou duas serpentes Incluem-se

tambeacutem neste grupo as decoraccedilotildees inspiradas nos mitos de infanticiacutedio ou

exposiccedilatildeo como a vinganccedila de Medeia e de Procne o assassiacutenio de Astiacuteanax

depois da queda de Troacuteia Perseu lanccedilado ao mar dentro de uma arca e

Orestes ameaccedilado por Teacutelefo No que respeita agraves cenas da vida quotidiana

em traccedilos gerais podemos dizer que os artistas aacuteticos retratam todas as

experiecircncias que preenchem o dia-a-dia de uma crianccedila designadamente

as relaccedilotildees familiares e sociais a educaccedilatildeo e as brincadeiras

Do repertoacuterio de figuras negras sobre temas mitoloacutegicos merece destaque

o nascimento de Atena que foi dos temas mais ceacutelebres na arte da Eacutepoca

Arcaica em especial na ceracircmica aacutetica embora tenha continuado a ser

tratado durante o seacuteculo V aC surgindo em evidecircncia no centro do frontatildeo

oriental do Paacutertenon (Paus 1 24 5)

Conta Hesiacuteodo que a deusa fora concebida da uniatildeo de Zeus com Meacutetis

mas quando esta estava prestes a dar agrave luz o deus supremo engoliu-a uma

vez que Geia e Urano o tinham avisado de que dela nasceriam uma filha

saacutebia e corajosa como o pai e um filho de coraccedilatildeo orgulhoso que

ambicionaria o poder de Zeus (Teogonia 886-900 924-926) Segundo um

escoacutelio de Apoloacutenio de Rodes o poeta Estesiacutecoro de Hiacutemera (seacutec VII-VI

aC) foi ldquoo primeiro a afirmar que Atena saltara armada da cabeccedila de Zeusrdquo

O fragmento de um comentaacuterio transmitido por um papiro do seacuteculo II da

nossa era descoberto em Oxirrinco cita uma parte dos versos em que

Estesiacutecoro referia esse episoacutedio ldquo a resplandecer com as armasPalas

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70

lanccedilou-se para a terra vastardquo22 Assim eacute possiacutevel como se pensa que o

liacuterico da Siciacutelia tenha sido o responsaacutevel pela criaccedilatildeo literaacuteria deste tema

que teraacute igualmente grande fortuna na pintura de vasos23 Nem o escoacutelio

nem o fragmento que se preservou permitem esclarecer se no poema de

Estesiacutecoro a filha de Zeus nascia crianccedila ou adulta embora a segunda

hipoacutetese seja mais plausiacutevel visto que os dois textos sublinham o ardor

belicoso da deusa De acordo com a Oliacutempica VII de Piacutendaro (vv 35-38)

composta em 464 aC para Diaacutegoras de Rodes Hefestos fendeu a cabeccedila

de Zeus com um machado e ao erguer-se da fronte paterna Atena soltou

um grito de guerra fortiacutessimo do que se depreende embora o passo natildeo

seja expliacutecito que estava pronta a combater

Satildeo basicamente estes os dados miacuteticos que os artistas aacuteticos ilustram

Numa das representaccedilotildees mais antigas de um vaso atribuiacutedo ao Pintor C

conservado no Museu do Louvre do segundo quartel do seacuteculo VI aC

Zeus sentado no trono com o ceptro na matildeo direita e o raio na esquerda

ocupa o centro da cena e eacute assistido por seis divindades entre as quais se

encontram Hefestos (com o machado) Poseacuteidon (com o tridente) e as deusas

Ilitias que amparavam as parturientes Atena de elmo posto sai da cabeccedila

do pai preparada para combater com o escudo encostado ao peito e o

braccedilo direito erguido na posiccedilatildeo de arremessar a lanccedila (cf Hino Homeacuterico

a Atena 28 8-9) Apesar da estatura reduzida da receacutem-nascida nenhum

traccedilo sugere que o artista pretendia representar uma crianccedila24

Eacute este aspecto guerreiro e ofensivo da deusa a sair da cabeccedila de Zeus ndash

este habitualmente sentado no trono rodeado de vaacuterias divindades que o

22 Fr 56 Page = fr 233 PMG Vide D L Page (1962) Poetae Melici Graeci Oxford Clarendon Press D A Campbell (1991) Greek Lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and Others Cambridge Mass Harvard University Press 162-163

23 Na arte a representaccedilatildeo mais antiga segura do nascimento de Atena eacute documentada pelos relevos martelados em bronze descobertos em Oliacutempia (fragmentos de escudos) dos finais do seacuteculo VII ou da primeira metade do seacutec VI aC e preservados no seu Museu (B 1975d) cf T Carpenter 1991 71 e nordm 98

24 Exaleiptron (vaso para guardar perfumes e unguentos) triacutepode aacutetico de figuras negras atribuiacutedo ao Pintor C c 570-560 aC (Paris Museu do Louvre CA 616 ) Vide httpcommonswikimediaorgwikiFileExaleiptron_birth_Athena_Louvre_CA616jpg (acedido em 30112010)

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71

assistem ou sauacutedam a receacutem-nascida ndash que vamos encontrar nas decoraccedilotildees

de vasos de figuras negras atribuiacutedos ao Grupo E (c 560-540 aC) assim

chamado por ter sido o ateliecirc onde se formou o grande pintor Exeacutequias

Num conjunto relevante de acircnforas preservadas em diferentes museus este

esquema iconograacutefico manteacutem-se com ligeiras variaccedilotildees comprovando a

popularidade do tema na Eacutepoca Arcaica uma pequena Atena vestida com

um peplos e armada sai da cabeccedila de Zeus que sentado num trono elaborado

e com o raio na matildeo eacute assistido de cada lado por vaacuterias divindades Aleacutem

das Ilitias (uma ou duas) que erguem o braccedilo em sinal de auxiacutelio os deuses

normalmente trecircs satildeo identificados pelos adereccedilos proacuteprios e alternam em

cada vaso (Dioacutenisos Hermes Poseacuteidon Apolo Ares Hefestos) Sob o trono

de Zeus surge a figura reduzida de um homem ou de uma divindade alada25

Outros tratamentos do nascimento de Atena na pintura de vasos aacuteticos

retratam a deusa armada sobre os joelhos de Zeus (a partir de 550 aC) ou

junto do pai mas com aspecto de adulta figuraccedilatildeo que parece ter sido

adoptada por Fiacutedias no frontatildeo oriental do Paacutertenon26 A rejeiccedilatildeo da imagem

de Atena como crianccedila natildeo eacute caso uacutenico e relaciona-se com a complexa e

interessante questatildeo que diz respeito ao tratamento literaacuterio e iconograacutefico

do nascimento de deusas e heroiacutenas De facto regra geral (Aacutertemis parece

ser a excepccedilatildeo) estas vecircm ao mundo com formas adultas ao contraacuterio dos

25 Eg Berlim Staatliche Museen Antikensammlung 1699 vide R Vollkommer 2000 376 (fig 2) Boston Museum of Fine Arts 00330 vide S Blundell and M Williamson 1998 61 (fig 45) Munique Antikensammlungen 1382 New Haven Yale University Art Gallery 198322 vide J Neils amp J Oakley 2003 116 206-207 (cat 5) Paris Museu do Louvre F 32 vide httpcommonswikimediaorgwikiFileAmphora_birth_Athena_Louvre_F32jpg (acedido em 30112010) Viena Kunsthistorisches Museum IV 3596 Acircnforas da mesma oficina com variaccedilotildees deste esquema iconograacutefico eg Atena sem elmo e com o escudo eacute retratada sobre os joelhos de Zeus (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum L 250) sete divindades (Ilitia Heacuteracles Ares Apolo Poseacuteidon Hera e Hefestos) assistem ao nascimento sob o trono surgem duas figuras masculinas nuas (Londres The British Museum B 147) Zeus sentado num elaborado trono e uma minuacutescula Atena armada (elmo escudo e lanccedila) satildeo representados frontalmente acompanhados por Hermes Ares Ilitia e outra deusa (Richmond Virginia Museum of Fine Arts 6023) vide T Carpenter 1991 nordm 100 e httpwwwvmfastatevausCollectionsAncient_ArtBlack-figured_Amphora_60_23aspx (acedido em 30112010)

26 Sobre a iconografia do nascimento de Atena vide J Boardman 1974 37 216-217 e 1991b 102 H Cassimatis (1984) in LIMC II1 sv Athena pp 985-990 1021-1023 T Carpenter 1991 71-72 L Beaumont 1995 349-351 e 1998 76-77 R Vollkommer 2000 375-377

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deuses e heroacuteis como Apolo Dioacutenisos Heacuteracles Hermes e Aquiles que

natildeo soacute nascem bebeacutes como vivem episoacutedios ceacutelebres na infacircncia anunciando

as qualidades ou defeitos que os distinguem na idade adulta No entanto

quando os artistas gregos optavam por retratar as deusas e heroiacutenas apenas

como adultas ndash o caso de Afrodite que emerge das aacuteguas no esplendor da

sua beleza eacute paradigmaacutetico ndash natildeo estavam de facto a seguir uma convenccedilatildeo

pictoacuterica Como observou Lesley Beaumont este eacute possivelmente um caso

em que as expressotildees artiacutesticas reflectem a mentalidade vigente na Atenas

arcaica e claacutessica que atribuiacutea agrave crianccedila e agrave mulher um lugar inferior na

hierarquia social e as considerava menos capazes ser deusa eacute partilhar de

algum modo da fragilidade do elemento feminino mas ser deusa e crianccedila

eacute elevar essa fragilidade a uma escala inaceitaacutevel pelo que o mito na sua

expressatildeo literaacuteria e artiacutestica parece ter evitado a dificuldade que seria

conciliar a ideia de ldquodivinordquo com as concepccedilotildees predominantes de crianccedila

e mulher (1995 349-361 1998 80-93 especialmente)

O corpus de vasos aacuteticos de figuras negras que representam crianccedilas

humanas natildeo eacute significativo mas as cenas retratadas satildeo diversas e constituem

um contributo valioso para o estudo da infacircncia ateniense

Uma placa votiva de meados do seacutec VI aC mostra-nos o interior de um

lar onde uma mulher sentada num banco e apoiada numa mesa se entrega

a tarefas domeacutesticas possivelmente agrave tecelagem ou confecccedilatildeo de vestuaacuterio

A decoraccedilatildeo vistosa da sua indumentaacuteria eacute um elemento que sobressai e

contrasta com a figura nua que atraacutes de si vemos sentada no chatildeo entre

os moacuteveis O penteado e atitude indicam tratar-se de uma menina mas as

formas sobretudo as matildeos e pernas muito compridas natildeo satildeo proporcionais

nem harmoniosas27

Um leacutecito do mesmo periacuteodo evoca uma situaccedilatildeo provavelmente frequente

no quotidiano infantil mas tatildeo pouco representada no corpus de vasos

aacuteticos que sugeriu o nome do artista Tal como na peccedila anterior a figura

27 Placa votiva aacutetica de figuras negras c 560 aC (Atenas Museu da Acroacutepole 2525) Vide M Golden 1990 35 (fig 6) L Beaumont 2003 63 (ldquoa rare early representation of a female infantrdquo) H Foley 2003 118-119 (fig 7)

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central ndash um menino que tenta escapar aos accediloites de um homem e corre

para os braccedilos de uma mulher ndash apenas eacute identificada como crianccedila por

estar nua e ter metade do tamanho das restantes figuras A cena no seu

conjunto faz imediatamente pensar num menino ainda pequeno que foge

da sandaacutelia do pai e busca o afecto da matildee um tema adequado a um vaso

comum e muito usado em casa como recipiente para azeite28

Os autores destas imagens natildeo foram capazes de traccedilar a fisionomia

caracteriacutestica da crianccedila mas isso natildeo significa que os artistas aacuteticos desta

eacutepoca eram menos haacutebeis ou prestavam pouca atenccedilatildeo aos elementos mais

novos da poacutelis A placa votiva que comentaacutemos proveniente da acroacutepole

de Atenas natildeo eacute decerto um trabalho profissional e o vaso embora

interessante eacute atribuiacutedo a um pintor que J Boardman (1974 33) considera

um ldquoimitador sem talentordquo No entanto numa cena de despedida de guerreiros

que decora uma acircnfora atribuiacuteda ao referido Grupo E cujas obras satildeo muito

mais elaboradas a personagem de rosto masculino e formas musculadas

que se destaca do centro da composiccedilatildeo como no vaso anterior apenas eacute

identificada como um menino ou jovem por estar nu e ter metade do

tamanho das outras figuras29 Este exemplo pode sugerir que para os pintores

aacuteticos deste periacuteodo eram mais importantes as convenccedilotildees pictoacutericas ndash como

a nudez a altura e o tamanho dos mais pequenos ndash do que o realismo da

representaccedilatildeo

Uma placa (pinax) de terracota funeraacuteria com inscriccedilotildees do comeccedilo do

seacuteculo V aC pode corroborar esta hipoacutetese30 Numa composiccedilatildeo elaborada

que retrata o ritual de exposiccedilatildeo do corpo (prothesis) no qual participam

vaacuterios homens e mulheres estas mais proacuteximas do defunto distinguem-se

28 Leacutecito aacutetico de figuras negras pelo Pintor da Sandaacutelia (vaso epoacutenimo) c 550 aC (Bolonha Museo Civico Archeologico PU 204) Vide J Boardman 1974 nordm 43 M Golden 2003 26 (fig 5)

29 Acircnfora aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Grupo E c 560-540 aC (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum 247) Vide L Beaumont 2003 61 (fig 1)

30 Placa funeraacuteria aacutetica de terracota atribuiacuteda ao Pintor de Safo c 500-490 aC (Paris Museu do Louvre MNB 905) Vide J Boardman 1974 nordm 265 L Beaumont 2003 61-62 H Shapiro 2003 105 J Oakley 2003 164-165 (fig 3) httpenwikipediaorgwikiFilePinax_prothesis_Louvre_MNB905jpg (acedido em 30112010)

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trecircs figuras mais pequenas A mais baixa encontra-se no lado esquerdo

entre o grupo dos homens e o das mulheres e as roupas sugerem que se

trata de um menino talvez ainda pequeno pois apoia-se nas pernas do

leito fuacutenebre As outras duas de alturas distintas apenas diferem das

mulheres no tamanho (a inscriccedilatildeo identifica a menina mais baixa como irmatilde

do defunto) Assim esta peccedila aleacutem de documentar a participaccedilatildeo de crianccedilas

e jovens nas cerimoacutenias familiares e religiosas designadamente nos rituais

fuacutenebres um costume antigo jaacute atestado no estilo Geomeacutetrico indica que

o tamanho e a altura podiam ser os uacutenicos elementos convencionais a

distinguir uma crianccedila de uma pessoa mais velha

As imagens que comentaacutemos revelam-nos a intimidade dos lares atenienses

e os seus momentos mais dolorosos mas o repertoacuterio de figuras negras

tambeacutem contemplava os contactos com o exterior e situaccedilotildees mais alegres

Uma conhecida pelike atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides (c 500 aC) retrata

um menino a tirar medidas na loja do sapateiro na companhia do pai ou

do pedagogo31 A presenccedila deste elemento bem como o facto de a figura

mais pequena se encontrar em cima da mesa do artesatildeo e se apoiar na

cabeccedila deste sugerem que pode ser crianccedila embora as linhas do corpo natildeo

decircem essa impressatildeo Natildeo eacute claro de facto se o artista pretendia representar

um menino em idade escolar ou um rapaz mais velho

Finalmente merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de uma acircnfora

preservada em Estugarda que retrata trecircs jovens na companhia de um

homem provavelmente o pedagogo Enquanto uma delas anda de baloiccedilo

ndash uma actividade luacutedica que se relaciona provavelmente com um ritual

tambeacutem evocado na ceracircmica de figuras vermelhas32 ndash as outras cuidam de

duas crianccedilas mais pequenas Como nos vasos comentados anteriormente

31 Pelike aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides c 500 aC (Oxford Ashmolean Museum 563) Vide J Boardman 1974 nordm 229 M Golden 1990 29 (fig 2) M Vickers (1999) Ancient Greek Pottery Oxford Ashmoleum Museum 35 (nordm 23) J Neils amp J Oakley 2003 100 242 (cat 43)

32 O ritual da Aiora (ldquobaloiccedilordquo) era praticado por jovens em memoacuteria da jovem Eriacutegone que se suicidara apoacutes o assassiacutenio de seu pai Cf H Shapiro 2003 103-104 (fig 189) J Neils 2003 147 149 (fig 8) J Neils amp J Oakley 2003 288 (cat 102)

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estas satildeo facilmente identificadas pelo tamanho reduzido mas as suas formas

grosseiras contrastam com o desenho mais elegante com que o artista

representou as donzelas33

O cataacutelogo aacutetico de figuras vermelhas eacute muito mais rico e difiacutecil de

seleccionar tanto no domiacutenio dos temas mitoloacutegicos quanto no das cenas

inspiradas na vida quotidiana nas quais nos vamos deter e eacute evidente

tambeacutem que a qualidade das peccedilas e a forma de retratar as crianccedilas varia

consideravelmente

As cenas de escola constituem uma das principais novidades desta teacutecnica

e uma das obras mais belas eacute sem duacutevida a ceacutelebre taccedila assinada por Duacuteris

no princiacutepio do seacuteculo V aC e preservada em Berlim34 Decorada no exterior

com as liccedilotildees dos mestres de muacutesica (kitharistes) e de letras (grammatistes)

sob o olhar vigilante do pedagogo estas imagens satildeo certamente um

testemunho da importacircncia crescente da literacia no dealbar da Eacutepoca

Claacutessica No seacuteculo V aC em Atenas normalmente a partir dos sete anos

os meninos iniciavam a instruccedilatildeo baacutesica no exterior enquanto as meninas

continuavam em casa e aprendiam a gerir o lar junto da matildee e das escravas

Apesar da qualidade extraordinaacuteria da taccedila de Duacuteris a idade dos alunos

retratados nestas cenas natildeo eacute facilmente perceptiacutevel pois o principal traccedilo

que os distingue dos adultos eacute a estatura menor

Um dos grandes contributos das figuras vermelhas para o estudo da

infacircncia ateniense eacute o interesse que dedica aos afectos familiares e agraves

diferentes fases da vida de uma crianccedila tema que adquire cada vez mais

importacircncia ao longo do seacuteculo V aC Assim as cenas de gineceu tornam-se

muito mais correntes e se natildeo raras vezes mostram os preparativos do

casamento ou os cuidados com o corpo dos elementos femininos as crianccedilas

passam a estar cada vez mais presentes e constituem mesmo o tema principal

33 Estugarda Wuumlrttembergisches Landesmuseum 651 Vide M Golden 1990 34 (fig 5)34 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas assinada por Duacuteris c 490-480 aC (Berlim Staatliche

Museen Antikensammlung F 2285) Vide J Boardman 1975 nordm 289 J Neils amp J Oakley 2003 66 244-246 (cat 44) httpwwwmlahanasdeGreeksLXBerlinF2285html (acedido em 30112010)

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76

da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a

brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas

Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos

do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da

crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito

atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de

uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos

uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um

olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila

lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode

ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar

da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir

de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam

a descobrir o que as rodeia35

Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a

imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a

um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica

de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada

de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o

rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de

perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um

soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da

crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o

cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo

nem a atitude satildeo inteiramente naturais

35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)

36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)

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Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou

perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37

Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no

chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma

mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais

velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo

esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo

aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a

matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude

que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o

do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo

mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo

destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego

do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados

ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora

aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa

Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38

Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados

a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos

mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica

aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)

que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que

recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um

fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em

37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)

38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)

39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006

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78

1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena

harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para

a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza

de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude

desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo

da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua

frente satildeo claramente as de um bebeacute

Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero

crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a

cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos

de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava

a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa

alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia

e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde

a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos

exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de

c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no

centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada

numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma

escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa

sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica

por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria

muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade

sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina

Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420

40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)

41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)

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137

el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides

eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto

pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es

precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13

467-469

acceptior illi

quisquis is est quem caede mea placare paratis

liber erit sanguisque

ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os

disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo

versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima

tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha

mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est

(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava

se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo

donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una

princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son

palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las

Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus

ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la

tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten

de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en

una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo

devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de

Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada

por ella vv 469-473

siquos tamen ultima nostri

verba movent oris Priami vos filia regis

non captiva rogat genetrici corpus inemptum

reddite neve auro redimat ius triste sepulcri

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138

sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro

ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega

la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo

sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro

con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea

tambieacuten lo pagaba con orordquo

No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de

forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes

padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar

el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples

presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En

este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que

Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su

madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba

del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una

madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que

constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere

la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta

todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina

tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y

que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y

tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y

extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480

Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat

non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos

praebita coniecto rupit praecordia ferro

illa super terram defecto poplite labens

pertulit intrepidos ad fata novissima vultus

tunc quoque cura fuit partes velare tegendas

cum caderet casti que decus servare pudoris

10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos

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139

ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea

incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el

hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra

al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso

rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que

debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo

reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-

570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima

verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al

caer

ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών

ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta

con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque

moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura

ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo

La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste

en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten

de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los

aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin

vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan

en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a

la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de

Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe

proleacuteptica de los vv 483-485

teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx

regia dicta parens Asiae florentis imago

nunc etiam praedae mala sors

Obra protegida por direitos de autor

140

ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada

regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo

incluso de un botiacutenrdquo

que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos

pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias

se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre

todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro

El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento

contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural

propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente

influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6

441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-

745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los

detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten

a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la

guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana

con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam

cecidisti) de Met 13 497-498

at te quia femina rebar

a ferro tutam cecidisti et femina ferro

ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer

has muerto por el hierrordquo

Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos

a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar

auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso

innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije

lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras

dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante

la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea

contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo

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141

insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado

de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748

οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου

ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de

los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo

Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio

confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no

responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en

Seacuteneca Contr 9 5 17

Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri

solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius

nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana

Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut

ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse

sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]

tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]

Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus

magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere

ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer

semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los

oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido

bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias

de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena

para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia

ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento

con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo

Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo

Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber

decir como saber dejar de decirrdquo

11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa

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142

pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel

forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado

esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado

orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo

perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met

13 505-520

iacet Ilion ingens

eventuque gravi finita est publica clades

sed finita tamen soli mihi Pergama restant

in cursuque meus dolor est modo maxima rerum

tot generis natisque potens nuribusque viroque

nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum

Penelopes munus quae me data pensa trahentem

matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est

clara parens haec est dicet Priameia coniunx

postque tot amissos tu nunc quae sola levabas

maternos luctus hostilia busta piasti

inferias hosti peperi quo ferrea resto

quidve moror quo me servas annosa senectus

quo di crudeles nisi uti nova funera cernam

vivacem differtis anum quis posse putaret

felicem Priamum post diruta Pergama dici

ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la

desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece

Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante

de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy

arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos

presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a

miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre

madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos

se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has

aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres

para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero

iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser

para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten

creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten

de Peacutergamordquo

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143

quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los

momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr

104-106 dice la abatida soberana

αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις

ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se

le han ido patria hijos y esposordquo

y continuacutea en 140-142

δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς

ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber

sido destruido mi poder lastimeramenterdquo

Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199

φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς

ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja

resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie

fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta

cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo

Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476

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144

ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν

ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores

no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo

y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y

descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el

sacrificio de Poliacutexena

οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα

ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa

de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por

la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de

polvo su desgraciada cabezardquo

Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba

como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513

ldquohaec Hectoris illa est

clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo

ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo

presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva

esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para

siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497

τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν

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145

κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν

ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer

esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez

me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la

que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un

camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir

este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para

los ricosrdquo

Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias

de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir

felix morte sua est nec te mea nata peremptam

adspicit et vitam pariter regnum que reliquit

ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute

a la vez la vida y el reinordquo

auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas

1312-1316

Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν

ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no

ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos

con impiacuteo deguumlellordquo

con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante

consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11

158-161

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146

tuque o sanctissima coniunx

felix morte tua neque in hunc seruata dolorem

contra ego uiuendo uici mea fata superstes

restarem ut genitor

ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada

para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para

sobrevir siendo su padrerdquo

La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye

el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda

no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten

de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen

a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha

recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que

se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna

llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute

portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se

repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate

Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610

σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός

ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del

mar traacuteela aquiacuterdquo

pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al

mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que

como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido

en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de

dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal

vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase

maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y

ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere

de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544

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205

Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio

Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12

surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo

Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida

do moccedilo do escritoacuterio

Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal

dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho

estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto

como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No

corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida

dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante

para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos

quentes

Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou

da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para

uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi

uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui

hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que

cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando

era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira

alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de

hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo

automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo

porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do

escritoacuterio foi-se embora

12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente

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206

Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino

sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute

copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da

escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em

mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a

trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu

Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13

Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco

do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio

para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo

Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos

acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao

moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa

claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as

indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a

Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-

Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa

a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria

cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade

narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente

delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando

Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar

de longo em tudo nos interessa

Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em

que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele

o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor

mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o

13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo

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207

homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias

alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara

nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se

considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me

com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele

laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do

seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o

senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz

de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa

cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute

quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas

pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum

de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem

seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este

ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou

largarraquo (91-92)16

E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para

comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute

que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao

preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua

dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite

pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo

garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17

Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor

Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas

hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a

16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)

17 Apud P D de Almeida 2008 156

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208

mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a

consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista

Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa

agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo

deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio

foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e

Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de

praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim

das traseirasrdquo (pp 21-22)

A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas

atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que

seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo

se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio

cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais

opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas

viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como

ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo

regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)

Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato

mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985

preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo

entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de

preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de

fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor

de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19

Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se

uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)

neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado

e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como

18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15

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209

em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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210

prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

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211

pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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212

Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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213

Bibliografia

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334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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335

agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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336

da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

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339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

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341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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Page 4: & Transgressão II - digitalis.uc.pt · Carmen Soares Maria do Céu Fialho María Consuelo Alvarez Morán Rosa María Iglesias Montiel Coordenação • C O I M B R A 2 0 1 1 orma

3

bull C O I M B R A 2 0 1 1

Carmen Soares Maria do Ceacuteu Fialho

Mariacutea Consuelo Alvarez MoraacutenRosa Mariacutea Iglesias Montiel

Coordenaccedilatildeo

ormaamp Transgressatildeo

II

N

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5

Iacutendice

Prefaacutecio 9

cap i- Histoacuteria da antiguidade claacutessica

1 1 polIacutetica

Mark Beck

Constitutions Contingency and the Individual Solon Lycurgus and the Early Development of Greek Political Biography 15

Josep Monserrat Molas

A transgressatildeo da norma como forma de manter a ordem uma nota sobre o sentido de O poliacutetico de Platatildeo 39

1 2 arte

Luiacutesa de Nazareacute Ferreira

A representaccedilatildeo de crianccedilas na arte grega 59

1 3 alimentaccedilatildeo

Carmen Soares

Transgressotildees gastronoacutemicas Sobre o consumo de carne em Plutarco 99

Obra protegida por direitos de autor

6

cap ii- os claacutessicos e a sua recepccedilatildeo contributos

para a (des)construccedilatildeo de identidades culturais

2 1 literatura latina

Maria Consuelo Aacutelvarez Moraacuten e Rosa Mariacutea Iglesias Montiel

La tragedia de las mujeres troyanas en Las Metamorfosis de Ovidio 115

2 2 recepccedilatildeo de claacutessicos da literatura

Maria do Ceacuteu Fialho

Reinvenccedilatildeo de mundo e correspondecircncia de siacutembolos em Sob o Olhar de Medeia de F Hasse Pais Brandatildeo 155

Maria Antoacutenio Houmlrster e Maria de Faacutetima Silva

Espaccedilo para Medeia Notas acerca da Medeia de Maacuterio Claacuteudio 175

Susana Marques Pereira

Adaptaccedilatildeo dramaacutetica e transgressatildeo 194

Ana Paula Arnaut

Trecircs homens e um livro Boa Noite Senhor Soares de Maacuterio Claacuteudio 201

Teresa Carvalho

Norma e transgressatildeo os lusiacuteadas de Manuel da Silva Ramos e Alface 215

2 3 arquitectura

Isabel Donas-Botto

Um passado mais-que-perfeito o impacto do claacutessico na arquitectura britacircnica 229

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7

cap iii- religiatildeo da greacutecia aos nossos dias

Adriana Nogueira

Quando a transgressatildeo eacute norma - a religiatildeo grega em progresso 252

Joseacute Ramos

Norma e transgressatildeo agrave luz do paradigma biacuteblico 265

Carlota Miranda Urbano

Ortodoxia e heterodoxia no iniacutecio da modernidade Poesia hagiograacutefica neolatina ao serviccedilo da apologeacutetica jesuiacutetica 289

cap iV- FilosoFia

Maria Luiacutesa Portocarrero

Norma transgressatildeo e traduccedilatildeo na filosofia praacutetica de P Ricoeur 307

cap V- geograFia

Norberto Santos

Desvios e regras nos territoacuterios do quotidiano 323

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9

preFaacutecio

Na sequecircncia do primeiro Coloacutequio Internacional sobre este tema

decorrido em 2006 o Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos e o

Instituto de Estudos Claacutessicos da Universidade de Coimbra com a colaboraccedilatildeo

da Universidade de Muacutercia organizaram um Coloacutequio Internacional dedicado

a ldquoNorma e transgressatildeordquo (II) no contexto do Projecto de Investigaccedilatildeo

Quadrienal ldquoPolisCosmopolisrdquo Decorreu nos dias 29 e 30 de Setembro de

2008 Teve como objectivo criar um espaccedilo de reflexatildeo dos modos diversos

como cada comunidade vive a sua proacutepria experiecircncia de identidade na

actividade regulamentadora e no gesto de quebra das suas regras bem

como numa posterior etapa na integraccedilatildeo de transgressotildees executadas

como um novo campo da sua proacutepria identidade expandida Esta dinacircmica

conduz agrave questatildeo das ldquofronteiras do eurdquo individual (local) e da comunidade

(global) que significa ser estranho e natildeo o ser ateacute que ponto a conexatildeo

tensa entre o normativo e o transgressivo constitui um processo determinante

no comportamento colectivo e individual pelo qual o ser humano aprende

avanccedila se compreende a si mesmo e compreende os outros

Tratou-se de um encontro de forte cariz transversal contando com

contributos das seguintes aacutereas de investigaccedilatildeo literaturas claacutessicas (grega

e latina) e modernas (anglo-americanas e germaniacutesticas) literatura biacuteblica

filosofia geografia e histoacuteria

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11

capIacutetulo i

Histoacuteria da antiguidade claacutessica

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69

vasos da Eacutepoca Arcaica Felizmente o corpus de vasos aacuteticos que nos chegou

eacute bastante extenso pelo que num trabalho de anaacutelise iconograacutefica o mais

simples e correcto eacute adoptar a metodologia dos especialistas que distinguem

as decoraccedilotildees inspiradas em episoacutedios mitoloacutegicos da representaccedilatildeo de

cenas da vida quotidiana

No primeiro grupo inscrevem-se episoacutedios da infacircncia de divindades

heroacuteis e heroiacutenas destacando-se o nascimento de Afrodite Apolo e Aacutertemis

Ascleacutepio Atena Dioacutenisos Erictoacutenio Helena Hermes e Zeus bem como

Aquiles entregue aos cuidados do centauro Quiacuteron e a proeza do bebeacute

Heacuteracles que ainda no berccedilo estrangulou duas serpentes Incluem-se

tambeacutem neste grupo as decoraccedilotildees inspiradas nos mitos de infanticiacutedio ou

exposiccedilatildeo como a vinganccedila de Medeia e de Procne o assassiacutenio de Astiacuteanax

depois da queda de Troacuteia Perseu lanccedilado ao mar dentro de uma arca e

Orestes ameaccedilado por Teacutelefo No que respeita agraves cenas da vida quotidiana

em traccedilos gerais podemos dizer que os artistas aacuteticos retratam todas as

experiecircncias que preenchem o dia-a-dia de uma crianccedila designadamente

as relaccedilotildees familiares e sociais a educaccedilatildeo e as brincadeiras

Do repertoacuterio de figuras negras sobre temas mitoloacutegicos merece destaque

o nascimento de Atena que foi dos temas mais ceacutelebres na arte da Eacutepoca

Arcaica em especial na ceracircmica aacutetica embora tenha continuado a ser

tratado durante o seacuteculo V aC surgindo em evidecircncia no centro do frontatildeo

oriental do Paacutertenon (Paus 1 24 5)

Conta Hesiacuteodo que a deusa fora concebida da uniatildeo de Zeus com Meacutetis

mas quando esta estava prestes a dar agrave luz o deus supremo engoliu-a uma

vez que Geia e Urano o tinham avisado de que dela nasceriam uma filha

saacutebia e corajosa como o pai e um filho de coraccedilatildeo orgulhoso que

ambicionaria o poder de Zeus (Teogonia 886-900 924-926) Segundo um

escoacutelio de Apoloacutenio de Rodes o poeta Estesiacutecoro de Hiacutemera (seacutec VII-VI

aC) foi ldquoo primeiro a afirmar que Atena saltara armada da cabeccedila de Zeusrdquo

O fragmento de um comentaacuterio transmitido por um papiro do seacuteculo II da

nossa era descoberto em Oxirrinco cita uma parte dos versos em que

Estesiacutecoro referia esse episoacutedio ldquo a resplandecer com as armasPalas

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70

lanccedilou-se para a terra vastardquo22 Assim eacute possiacutevel como se pensa que o

liacuterico da Siciacutelia tenha sido o responsaacutevel pela criaccedilatildeo literaacuteria deste tema

que teraacute igualmente grande fortuna na pintura de vasos23 Nem o escoacutelio

nem o fragmento que se preservou permitem esclarecer se no poema de

Estesiacutecoro a filha de Zeus nascia crianccedila ou adulta embora a segunda

hipoacutetese seja mais plausiacutevel visto que os dois textos sublinham o ardor

belicoso da deusa De acordo com a Oliacutempica VII de Piacutendaro (vv 35-38)

composta em 464 aC para Diaacutegoras de Rodes Hefestos fendeu a cabeccedila

de Zeus com um machado e ao erguer-se da fronte paterna Atena soltou

um grito de guerra fortiacutessimo do que se depreende embora o passo natildeo

seja expliacutecito que estava pronta a combater

Satildeo basicamente estes os dados miacuteticos que os artistas aacuteticos ilustram

Numa das representaccedilotildees mais antigas de um vaso atribuiacutedo ao Pintor C

conservado no Museu do Louvre do segundo quartel do seacuteculo VI aC

Zeus sentado no trono com o ceptro na matildeo direita e o raio na esquerda

ocupa o centro da cena e eacute assistido por seis divindades entre as quais se

encontram Hefestos (com o machado) Poseacuteidon (com o tridente) e as deusas

Ilitias que amparavam as parturientes Atena de elmo posto sai da cabeccedila

do pai preparada para combater com o escudo encostado ao peito e o

braccedilo direito erguido na posiccedilatildeo de arremessar a lanccedila (cf Hino Homeacuterico

a Atena 28 8-9) Apesar da estatura reduzida da receacutem-nascida nenhum

traccedilo sugere que o artista pretendia representar uma crianccedila24

Eacute este aspecto guerreiro e ofensivo da deusa a sair da cabeccedila de Zeus ndash

este habitualmente sentado no trono rodeado de vaacuterias divindades que o

22 Fr 56 Page = fr 233 PMG Vide D L Page (1962) Poetae Melici Graeci Oxford Clarendon Press D A Campbell (1991) Greek Lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and Others Cambridge Mass Harvard University Press 162-163

23 Na arte a representaccedilatildeo mais antiga segura do nascimento de Atena eacute documentada pelos relevos martelados em bronze descobertos em Oliacutempia (fragmentos de escudos) dos finais do seacuteculo VII ou da primeira metade do seacutec VI aC e preservados no seu Museu (B 1975d) cf T Carpenter 1991 71 e nordm 98

24 Exaleiptron (vaso para guardar perfumes e unguentos) triacutepode aacutetico de figuras negras atribuiacutedo ao Pintor C c 570-560 aC (Paris Museu do Louvre CA 616 ) Vide httpcommonswikimediaorgwikiFileExaleiptron_birth_Athena_Louvre_CA616jpg (acedido em 30112010)

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assistem ou sauacutedam a receacutem-nascida ndash que vamos encontrar nas decoraccedilotildees

de vasos de figuras negras atribuiacutedos ao Grupo E (c 560-540 aC) assim

chamado por ter sido o ateliecirc onde se formou o grande pintor Exeacutequias

Num conjunto relevante de acircnforas preservadas em diferentes museus este

esquema iconograacutefico manteacutem-se com ligeiras variaccedilotildees comprovando a

popularidade do tema na Eacutepoca Arcaica uma pequena Atena vestida com

um peplos e armada sai da cabeccedila de Zeus que sentado num trono elaborado

e com o raio na matildeo eacute assistido de cada lado por vaacuterias divindades Aleacutem

das Ilitias (uma ou duas) que erguem o braccedilo em sinal de auxiacutelio os deuses

normalmente trecircs satildeo identificados pelos adereccedilos proacuteprios e alternam em

cada vaso (Dioacutenisos Hermes Poseacuteidon Apolo Ares Hefestos) Sob o trono

de Zeus surge a figura reduzida de um homem ou de uma divindade alada25

Outros tratamentos do nascimento de Atena na pintura de vasos aacuteticos

retratam a deusa armada sobre os joelhos de Zeus (a partir de 550 aC) ou

junto do pai mas com aspecto de adulta figuraccedilatildeo que parece ter sido

adoptada por Fiacutedias no frontatildeo oriental do Paacutertenon26 A rejeiccedilatildeo da imagem

de Atena como crianccedila natildeo eacute caso uacutenico e relaciona-se com a complexa e

interessante questatildeo que diz respeito ao tratamento literaacuterio e iconograacutefico

do nascimento de deusas e heroiacutenas De facto regra geral (Aacutertemis parece

ser a excepccedilatildeo) estas vecircm ao mundo com formas adultas ao contraacuterio dos

25 Eg Berlim Staatliche Museen Antikensammlung 1699 vide R Vollkommer 2000 376 (fig 2) Boston Museum of Fine Arts 00330 vide S Blundell and M Williamson 1998 61 (fig 45) Munique Antikensammlungen 1382 New Haven Yale University Art Gallery 198322 vide J Neils amp J Oakley 2003 116 206-207 (cat 5) Paris Museu do Louvre F 32 vide httpcommonswikimediaorgwikiFileAmphora_birth_Athena_Louvre_F32jpg (acedido em 30112010) Viena Kunsthistorisches Museum IV 3596 Acircnforas da mesma oficina com variaccedilotildees deste esquema iconograacutefico eg Atena sem elmo e com o escudo eacute retratada sobre os joelhos de Zeus (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum L 250) sete divindades (Ilitia Heacuteracles Ares Apolo Poseacuteidon Hera e Hefestos) assistem ao nascimento sob o trono surgem duas figuras masculinas nuas (Londres The British Museum B 147) Zeus sentado num elaborado trono e uma minuacutescula Atena armada (elmo escudo e lanccedila) satildeo representados frontalmente acompanhados por Hermes Ares Ilitia e outra deusa (Richmond Virginia Museum of Fine Arts 6023) vide T Carpenter 1991 nordm 100 e httpwwwvmfastatevausCollectionsAncient_ArtBlack-figured_Amphora_60_23aspx (acedido em 30112010)

26 Sobre a iconografia do nascimento de Atena vide J Boardman 1974 37 216-217 e 1991b 102 H Cassimatis (1984) in LIMC II1 sv Athena pp 985-990 1021-1023 T Carpenter 1991 71-72 L Beaumont 1995 349-351 e 1998 76-77 R Vollkommer 2000 375-377

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deuses e heroacuteis como Apolo Dioacutenisos Heacuteracles Hermes e Aquiles que

natildeo soacute nascem bebeacutes como vivem episoacutedios ceacutelebres na infacircncia anunciando

as qualidades ou defeitos que os distinguem na idade adulta No entanto

quando os artistas gregos optavam por retratar as deusas e heroiacutenas apenas

como adultas ndash o caso de Afrodite que emerge das aacuteguas no esplendor da

sua beleza eacute paradigmaacutetico ndash natildeo estavam de facto a seguir uma convenccedilatildeo

pictoacuterica Como observou Lesley Beaumont este eacute possivelmente um caso

em que as expressotildees artiacutesticas reflectem a mentalidade vigente na Atenas

arcaica e claacutessica que atribuiacutea agrave crianccedila e agrave mulher um lugar inferior na

hierarquia social e as considerava menos capazes ser deusa eacute partilhar de

algum modo da fragilidade do elemento feminino mas ser deusa e crianccedila

eacute elevar essa fragilidade a uma escala inaceitaacutevel pelo que o mito na sua

expressatildeo literaacuteria e artiacutestica parece ter evitado a dificuldade que seria

conciliar a ideia de ldquodivinordquo com as concepccedilotildees predominantes de crianccedila

e mulher (1995 349-361 1998 80-93 especialmente)

O corpus de vasos aacuteticos de figuras negras que representam crianccedilas

humanas natildeo eacute significativo mas as cenas retratadas satildeo diversas e constituem

um contributo valioso para o estudo da infacircncia ateniense

Uma placa votiva de meados do seacutec VI aC mostra-nos o interior de um

lar onde uma mulher sentada num banco e apoiada numa mesa se entrega

a tarefas domeacutesticas possivelmente agrave tecelagem ou confecccedilatildeo de vestuaacuterio

A decoraccedilatildeo vistosa da sua indumentaacuteria eacute um elemento que sobressai e

contrasta com a figura nua que atraacutes de si vemos sentada no chatildeo entre

os moacuteveis O penteado e atitude indicam tratar-se de uma menina mas as

formas sobretudo as matildeos e pernas muito compridas natildeo satildeo proporcionais

nem harmoniosas27

Um leacutecito do mesmo periacuteodo evoca uma situaccedilatildeo provavelmente frequente

no quotidiano infantil mas tatildeo pouco representada no corpus de vasos

aacuteticos que sugeriu o nome do artista Tal como na peccedila anterior a figura

27 Placa votiva aacutetica de figuras negras c 560 aC (Atenas Museu da Acroacutepole 2525) Vide M Golden 1990 35 (fig 6) L Beaumont 2003 63 (ldquoa rare early representation of a female infantrdquo) H Foley 2003 118-119 (fig 7)

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central ndash um menino que tenta escapar aos accediloites de um homem e corre

para os braccedilos de uma mulher ndash apenas eacute identificada como crianccedila por

estar nua e ter metade do tamanho das restantes figuras A cena no seu

conjunto faz imediatamente pensar num menino ainda pequeno que foge

da sandaacutelia do pai e busca o afecto da matildee um tema adequado a um vaso

comum e muito usado em casa como recipiente para azeite28

Os autores destas imagens natildeo foram capazes de traccedilar a fisionomia

caracteriacutestica da crianccedila mas isso natildeo significa que os artistas aacuteticos desta

eacutepoca eram menos haacutebeis ou prestavam pouca atenccedilatildeo aos elementos mais

novos da poacutelis A placa votiva que comentaacutemos proveniente da acroacutepole

de Atenas natildeo eacute decerto um trabalho profissional e o vaso embora

interessante eacute atribuiacutedo a um pintor que J Boardman (1974 33) considera

um ldquoimitador sem talentordquo No entanto numa cena de despedida de guerreiros

que decora uma acircnfora atribuiacuteda ao referido Grupo E cujas obras satildeo muito

mais elaboradas a personagem de rosto masculino e formas musculadas

que se destaca do centro da composiccedilatildeo como no vaso anterior apenas eacute

identificada como um menino ou jovem por estar nu e ter metade do

tamanho das outras figuras29 Este exemplo pode sugerir que para os pintores

aacuteticos deste periacuteodo eram mais importantes as convenccedilotildees pictoacutericas ndash como

a nudez a altura e o tamanho dos mais pequenos ndash do que o realismo da

representaccedilatildeo

Uma placa (pinax) de terracota funeraacuteria com inscriccedilotildees do comeccedilo do

seacuteculo V aC pode corroborar esta hipoacutetese30 Numa composiccedilatildeo elaborada

que retrata o ritual de exposiccedilatildeo do corpo (prothesis) no qual participam

vaacuterios homens e mulheres estas mais proacuteximas do defunto distinguem-se

28 Leacutecito aacutetico de figuras negras pelo Pintor da Sandaacutelia (vaso epoacutenimo) c 550 aC (Bolonha Museo Civico Archeologico PU 204) Vide J Boardman 1974 nordm 43 M Golden 2003 26 (fig 5)

29 Acircnfora aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Grupo E c 560-540 aC (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum 247) Vide L Beaumont 2003 61 (fig 1)

30 Placa funeraacuteria aacutetica de terracota atribuiacuteda ao Pintor de Safo c 500-490 aC (Paris Museu do Louvre MNB 905) Vide J Boardman 1974 nordm 265 L Beaumont 2003 61-62 H Shapiro 2003 105 J Oakley 2003 164-165 (fig 3) httpenwikipediaorgwikiFilePinax_prothesis_Louvre_MNB905jpg (acedido em 30112010)

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trecircs figuras mais pequenas A mais baixa encontra-se no lado esquerdo

entre o grupo dos homens e o das mulheres e as roupas sugerem que se

trata de um menino talvez ainda pequeno pois apoia-se nas pernas do

leito fuacutenebre As outras duas de alturas distintas apenas diferem das

mulheres no tamanho (a inscriccedilatildeo identifica a menina mais baixa como irmatilde

do defunto) Assim esta peccedila aleacutem de documentar a participaccedilatildeo de crianccedilas

e jovens nas cerimoacutenias familiares e religiosas designadamente nos rituais

fuacutenebres um costume antigo jaacute atestado no estilo Geomeacutetrico indica que

o tamanho e a altura podiam ser os uacutenicos elementos convencionais a

distinguir uma crianccedila de uma pessoa mais velha

As imagens que comentaacutemos revelam-nos a intimidade dos lares atenienses

e os seus momentos mais dolorosos mas o repertoacuterio de figuras negras

tambeacutem contemplava os contactos com o exterior e situaccedilotildees mais alegres

Uma conhecida pelike atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides (c 500 aC) retrata

um menino a tirar medidas na loja do sapateiro na companhia do pai ou

do pedagogo31 A presenccedila deste elemento bem como o facto de a figura

mais pequena se encontrar em cima da mesa do artesatildeo e se apoiar na

cabeccedila deste sugerem que pode ser crianccedila embora as linhas do corpo natildeo

decircem essa impressatildeo Natildeo eacute claro de facto se o artista pretendia representar

um menino em idade escolar ou um rapaz mais velho

Finalmente merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de uma acircnfora

preservada em Estugarda que retrata trecircs jovens na companhia de um

homem provavelmente o pedagogo Enquanto uma delas anda de baloiccedilo

ndash uma actividade luacutedica que se relaciona provavelmente com um ritual

tambeacutem evocado na ceracircmica de figuras vermelhas32 ndash as outras cuidam de

duas crianccedilas mais pequenas Como nos vasos comentados anteriormente

31 Pelike aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides c 500 aC (Oxford Ashmolean Museum 563) Vide J Boardman 1974 nordm 229 M Golden 1990 29 (fig 2) M Vickers (1999) Ancient Greek Pottery Oxford Ashmoleum Museum 35 (nordm 23) J Neils amp J Oakley 2003 100 242 (cat 43)

32 O ritual da Aiora (ldquobaloiccedilordquo) era praticado por jovens em memoacuteria da jovem Eriacutegone que se suicidara apoacutes o assassiacutenio de seu pai Cf H Shapiro 2003 103-104 (fig 189) J Neils 2003 147 149 (fig 8) J Neils amp J Oakley 2003 288 (cat 102)

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estas satildeo facilmente identificadas pelo tamanho reduzido mas as suas formas

grosseiras contrastam com o desenho mais elegante com que o artista

representou as donzelas33

O cataacutelogo aacutetico de figuras vermelhas eacute muito mais rico e difiacutecil de

seleccionar tanto no domiacutenio dos temas mitoloacutegicos quanto no das cenas

inspiradas na vida quotidiana nas quais nos vamos deter e eacute evidente

tambeacutem que a qualidade das peccedilas e a forma de retratar as crianccedilas varia

consideravelmente

As cenas de escola constituem uma das principais novidades desta teacutecnica

e uma das obras mais belas eacute sem duacutevida a ceacutelebre taccedila assinada por Duacuteris

no princiacutepio do seacuteculo V aC e preservada em Berlim34 Decorada no exterior

com as liccedilotildees dos mestres de muacutesica (kitharistes) e de letras (grammatistes)

sob o olhar vigilante do pedagogo estas imagens satildeo certamente um

testemunho da importacircncia crescente da literacia no dealbar da Eacutepoca

Claacutessica No seacuteculo V aC em Atenas normalmente a partir dos sete anos

os meninos iniciavam a instruccedilatildeo baacutesica no exterior enquanto as meninas

continuavam em casa e aprendiam a gerir o lar junto da matildee e das escravas

Apesar da qualidade extraordinaacuteria da taccedila de Duacuteris a idade dos alunos

retratados nestas cenas natildeo eacute facilmente perceptiacutevel pois o principal traccedilo

que os distingue dos adultos eacute a estatura menor

Um dos grandes contributos das figuras vermelhas para o estudo da

infacircncia ateniense eacute o interesse que dedica aos afectos familiares e agraves

diferentes fases da vida de uma crianccedila tema que adquire cada vez mais

importacircncia ao longo do seacuteculo V aC Assim as cenas de gineceu tornam-se

muito mais correntes e se natildeo raras vezes mostram os preparativos do

casamento ou os cuidados com o corpo dos elementos femininos as crianccedilas

passam a estar cada vez mais presentes e constituem mesmo o tema principal

33 Estugarda Wuumlrttembergisches Landesmuseum 651 Vide M Golden 1990 34 (fig 5)34 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas assinada por Duacuteris c 490-480 aC (Berlim Staatliche

Museen Antikensammlung F 2285) Vide J Boardman 1975 nordm 289 J Neils amp J Oakley 2003 66 244-246 (cat 44) httpwwwmlahanasdeGreeksLXBerlinF2285html (acedido em 30112010)

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da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a

brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas

Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos

do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da

crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito

atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de

uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos

uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um

olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila

lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode

ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar

da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir

de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam

a descobrir o que as rodeia35

Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a

imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a

um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica

de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada

de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o

rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de

perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um

soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da

crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o

cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo

nem a atitude satildeo inteiramente naturais

35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)

36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)

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Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou

perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37

Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no

chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma

mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais

velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo

esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo

aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a

matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude

que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o

do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo

mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo

destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego

do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados

ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora

aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa

Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38

Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados

a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos

mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica

aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)

que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que

recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um

fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em

37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)

38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)

39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006

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1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena

harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para

a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza

de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude

desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo

da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua

frente satildeo claramente as de um bebeacute

Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero

crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a

cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos

de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava

a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa

alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia

e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde

a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos

exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de

c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no

centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada

numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma

escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa

sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica

por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria

muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade

sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina

Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420

40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)

41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)

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el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides

eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto

pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es

precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13

467-469

acceptior illi

quisquis is est quem caede mea placare paratis

liber erit sanguisque

ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os

disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo

versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima

tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha

mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est

(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava

se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo

donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una

princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son

palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las

Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus

ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la

tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten

de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en

una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo

devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de

Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada

por ella vv 469-473

siquos tamen ultima nostri

verba movent oris Priami vos filia regis

non captiva rogat genetrici corpus inemptum

reddite neve auro redimat ius triste sepulcri

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sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro

ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega

la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo

sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro

con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea

tambieacuten lo pagaba con orordquo

No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de

forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes

padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar

el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples

presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En

este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que

Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su

madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba

del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una

madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que

constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere

la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta

todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina

tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y

que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y

tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y

extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480

Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat

non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos

praebita coniecto rupit praecordia ferro

illa super terram defecto poplite labens

pertulit intrepidos ad fata novissima vultus

tunc quoque cura fuit partes velare tegendas

cum caderet casti que decus servare pudoris

10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos

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ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea

incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el

hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra

al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso

rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que

debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo

reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-

570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima

verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al

caer

ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών

ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta

con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque

moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura

ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo

La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste

en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten

de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los

aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin

vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan

en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a

la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de

Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe

proleacuteptica de los vv 483-485

teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx

regia dicta parens Asiae florentis imago

nunc etiam praedae mala sors

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ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada

regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo

incluso de un botiacutenrdquo

que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos

pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias

se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre

todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro

El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento

contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural

propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente

influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6

441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-

745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los

detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten

a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la

guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana

con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam

cecidisti) de Met 13 497-498

at te quia femina rebar

a ferro tutam cecidisti et femina ferro

ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer

has muerto por el hierrordquo

Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos

a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar

auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso

innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije

lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras

dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante

la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea

contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo

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insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado

de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748

οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου

ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de

los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo

Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio

confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no

responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en

Seacuteneca Contr 9 5 17

Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri

solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius

nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana

Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut

ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse

sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]

tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]

Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus

magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere

ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer

semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los

oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido

bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias

de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena

para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia

ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento

con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo

Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo

Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber

decir como saber dejar de decirrdquo

11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa

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pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel

forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado

esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado

orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo

perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met

13 505-520

iacet Ilion ingens

eventuque gravi finita est publica clades

sed finita tamen soli mihi Pergama restant

in cursuque meus dolor est modo maxima rerum

tot generis natisque potens nuribusque viroque

nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum

Penelopes munus quae me data pensa trahentem

matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est

clara parens haec est dicet Priameia coniunx

postque tot amissos tu nunc quae sola levabas

maternos luctus hostilia busta piasti

inferias hosti peperi quo ferrea resto

quidve moror quo me servas annosa senectus

quo di crudeles nisi uti nova funera cernam

vivacem differtis anum quis posse putaret

felicem Priamum post diruta Pergama dici

ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la

desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece

Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante

de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy

arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos

presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a

miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre

madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos

se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has

aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres

para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero

iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser

para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten

creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten

de Peacutergamordquo

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quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los

momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr

104-106 dice la abatida soberana

αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις

ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se

le han ido patria hijos y esposordquo

y continuacutea en 140-142

δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς

ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber

sido destruido mi poder lastimeramenterdquo

Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199

φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς

ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja

resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie

fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta

cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo

Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476

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ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν

ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores

no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo

y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y

descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el

sacrificio de Poliacutexena

οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα

ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa

de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por

la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de

polvo su desgraciada cabezardquo

Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba

como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513

ldquohaec Hectoris illa est

clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo

ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo

presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva

esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para

siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497

τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν

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κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν

ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer

esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez

me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la

que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un

camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir

este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para

los ricosrdquo

Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias

de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir

felix morte sua est nec te mea nata peremptam

adspicit et vitam pariter regnum que reliquit

ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute

a la vez la vida y el reinordquo

auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas

1312-1316

Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν

ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no

ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos

con impiacuteo deguumlellordquo

con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante

consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11

158-161

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tuque o sanctissima coniunx

felix morte tua neque in hunc seruata dolorem

contra ego uiuendo uici mea fata superstes

restarem ut genitor

ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada

para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para

sobrevir siendo su padrerdquo

La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye

el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda

no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten

de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen

a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha

recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que

se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna

llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute

portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se

repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate

Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610

σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός

ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del

mar traacuteela aquiacuterdquo

pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al

mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que

como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido

en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de

dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal

vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase

maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y

ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere

de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544

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Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio

Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12

surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo

Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida

do moccedilo do escritoacuterio

Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal

dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho

estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto

como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No

corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida

dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante

para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos

quentes

Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou

da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para

uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi

uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui

hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que

cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando

era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira

alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de

hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo

automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo

porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do

escritoacuterio foi-se embora

12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente

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Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino

sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute

copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da

escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em

mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a

trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu

Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13

Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco

do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio

para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo

Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos

acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao

moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa

claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as

indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a

Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-

Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa

a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria

cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade

narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente

delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando

Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar

de longo em tudo nos interessa

Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em

que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele

o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor

mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o

13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo

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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias

alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara

nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se

considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me

com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele

laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do

seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o

senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz

de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa

cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute

quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas

pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum

de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem

seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este

ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou

largarraquo (91-92)16

E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para

comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute

que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao

preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua

dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite

pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo

garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17

Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor

Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas

hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a

16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)

17 Apud P D de Almeida 2008 156

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208

mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a

consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista

Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa

agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo

deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio

foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e

Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de

praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim

das traseirasrdquo (pp 21-22)

A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas

atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que

seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo

se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio

cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais

opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas

viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como

ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo

regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)

Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato

mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985

preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo

entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de

preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de

fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor

de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19

Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se

uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)

neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado

e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como

18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15

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209

em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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210

prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

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211

pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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212

Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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213

Bibliografia

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334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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335

agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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336

da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

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339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

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341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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Page 5: & Transgressão II - digitalis.uc.pt · Carmen Soares Maria do Céu Fialho María Consuelo Alvarez Morán Rosa María Iglesias Montiel Coordenação • C O I M B R A 2 0 1 1 orma

5

Iacutendice

Prefaacutecio 9

cap i- Histoacuteria da antiguidade claacutessica

1 1 polIacutetica

Mark Beck

Constitutions Contingency and the Individual Solon Lycurgus and the Early Development of Greek Political Biography 15

Josep Monserrat Molas

A transgressatildeo da norma como forma de manter a ordem uma nota sobre o sentido de O poliacutetico de Platatildeo 39

1 2 arte

Luiacutesa de Nazareacute Ferreira

A representaccedilatildeo de crianccedilas na arte grega 59

1 3 alimentaccedilatildeo

Carmen Soares

Transgressotildees gastronoacutemicas Sobre o consumo de carne em Plutarco 99

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6

cap ii- os claacutessicos e a sua recepccedilatildeo contributos

para a (des)construccedilatildeo de identidades culturais

2 1 literatura latina

Maria Consuelo Aacutelvarez Moraacuten e Rosa Mariacutea Iglesias Montiel

La tragedia de las mujeres troyanas en Las Metamorfosis de Ovidio 115

2 2 recepccedilatildeo de claacutessicos da literatura

Maria do Ceacuteu Fialho

Reinvenccedilatildeo de mundo e correspondecircncia de siacutembolos em Sob o Olhar de Medeia de F Hasse Pais Brandatildeo 155

Maria Antoacutenio Houmlrster e Maria de Faacutetima Silva

Espaccedilo para Medeia Notas acerca da Medeia de Maacuterio Claacuteudio 175

Susana Marques Pereira

Adaptaccedilatildeo dramaacutetica e transgressatildeo 194

Ana Paula Arnaut

Trecircs homens e um livro Boa Noite Senhor Soares de Maacuterio Claacuteudio 201

Teresa Carvalho

Norma e transgressatildeo os lusiacuteadas de Manuel da Silva Ramos e Alface 215

2 3 arquitectura

Isabel Donas-Botto

Um passado mais-que-perfeito o impacto do claacutessico na arquitectura britacircnica 229

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7

cap iii- religiatildeo da greacutecia aos nossos dias

Adriana Nogueira

Quando a transgressatildeo eacute norma - a religiatildeo grega em progresso 252

Joseacute Ramos

Norma e transgressatildeo agrave luz do paradigma biacuteblico 265

Carlota Miranda Urbano

Ortodoxia e heterodoxia no iniacutecio da modernidade Poesia hagiograacutefica neolatina ao serviccedilo da apologeacutetica jesuiacutetica 289

cap iV- FilosoFia

Maria Luiacutesa Portocarrero

Norma transgressatildeo e traduccedilatildeo na filosofia praacutetica de P Ricoeur 307

cap V- geograFia

Norberto Santos

Desvios e regras nos territoacuterios do quotidiano 323

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9

preFaacutecio

Na sequecircncia do primeiro Coloacutequio Internacional sobre este tema

decorrido em 2006 o Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos e o

Instituto de Estudos Claacutessicos da Universidade de Coimbra com a colaboraccedilatildeo

da Universidade de Muacutercia organizaram um Coloacutequio Internacional dedicado

a ldquoNorma e transgressatildeordquo (II) no contexto do Projecto de Investigaccedilatildeo

Quadrienal ldquoPolisCosmopolisrdquo Decorreu nos dias 29 e 30 de Setembro de

2008 Teve como objectivo criar um espaccedilo de reflexatildeo dos modos diversos

como cada comunidade vive a sua proacutepria experiecircncia de identidade na

actividade regulamentadora e no gesto de quebra das suas regras bem

como numa posterior etapa na integraccedilatildeo de transgressotildees executadas

como um novo campo da sua proacutepria identidade expandida Esta dinacircmica

conduz agrave questatildeo das ldquofronteiras do eurdquo individual (local) e da comunidade

(global) que significa ser estranho e natildeo o ser ateacute que ponto a conexatildeo

tensa entre o normativo e o transgressivo constitui um processo determinante

no comportamento colectivo e individual pelo qual o ser humano aprende

avanccedila se compreende a si mesmo e compreende os outros

Tratou-se de um encontro de forte cariz transversal contando com

contributos das seguintes aacutereas de investigaccedilatildeo literaturas claacutessicas (grega

e latina) e modernas (anglo-americanas e germaniacutesticas) literatura biacuteblica

filosofia geografia e histoacuteria

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11

capIacutetulo i

Histoacuteria da antiguidade claacutessica

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69

vasos da Eacutepoca Arcaica Felizmente o corpus de vasos aacuteticos que nos chegou

eacute bastante extenso pelo que num trabalho de anaacutelise iconograacutefica o mais

simples e correcto eacute adoptar a metodologia dos especialistas que distinguem

as decoraccedilotildees inspiradas em episoacutedios mitoloacutegicos da representaccedilatildeo de

cenas da vida quotidiana

No primeiro grupo inscrevem-se episoacutedios da infacircncia de divindades

heroacuteis e heroiacutenas destacando-se o nascimento de Afrodite Apolo e Aacutertemis

Ascleacutepio Atena Dioacutenisos Erictoacutenio Helena Hermes e Zeus bem como

Aquiles entregue aos cuidados do centauro Quiacuteron e a proeza do bebeacute

Heacuteracles que ainda no berccedilo estrangulou duas serpentes Incluem-se

tambeacutem neste grupo as decoraccedilotildees inspiradas nos mitos de infanticiacutedio ou

exposiccedilatildeo como a vinganccedila de Medeia e de Procne o assassiacutenio de Astiacuteanax

depois da queda de Troacuteia Perseu lanccedilado ao mar dentro de uma arca e

Orestes ameaccedilado por Teacutelefo No que respeita agraves cenas da vida quotidiana

em traccedilos gerais podemos dizer que os artistas aacuteticos retratam todas as

experiecircncias que preenchem o dia-a-dia de uma crianccedila designadamente

as relaccedilotildees familiares e sociais a educaccedilatildeo e as brincadeiras

Do repertoacuterio de figuras negras sobre temas mitoloacutegicos merece destaque

o nascimento de Atena que foi dos temas mais ceacutelebres na arte da Eacutepoca

Arcaica em especial na ceracircmica aacutetica embora tenha continuado a ser

tratado durante o seacuteculo V aC surgindo em evidecircncia no centro do frontatildeo

oriental do Paacutertenon (Paus 1 24 5)

Conta Hesiacuteodo que a deusa fora concebida da uniatildeo de Zeus com Meacutetis

mas quando esta estava prestes a dar agrave luz o deus supremo engoliu-a uma

vez que Geia e Urano o tinham avisado de que dela nasceriam uma filha

saacutebia e corajosa como o pai e um filho de coraccedilatildeo orgulhoso que

ambicionaria o poder de Zeus (Teogonia 886-900 924-926) Segundo um

escoacutelio de Apoloacutenio de Rodes o poeta Estesiacutecoro de Hiacutemera (seacutec VII-VI

aC) foi ldquoo primeiro a afirmar que Atena saltara armada da cabeccedila de Zeusrdquo

O fragmento de um comentaacuterio transmitido por um papiro do seacuteculo II da

nossa era descoberto em Oxirrinco cita uma parte dos versos em que

Estesiacutecoro referia esse episoacutedio ldquo a resplandecer com as armasPalas

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70

lanccedilou-se para a terra vastardquo22 Assim eacute possiacutevel como se pensa que o

liacuterico da Siciacutelia tenha sido o responsaacutevel pela criaccedilatildeo literaacuteria deste tema

que teraacute igualmente grande fortuna na pintura de vasos23 Nem o escoacutelio

nem o fragmento que se preservou permitem esclarecer se no poema de

Estesiacutecoro a filha de Zeus nascia crianccedila ou adulta embora a segunda

hipoacutetese seja mais plausiacutevel visto que os dois textos sublinham o ardor

belicoso da deusa De acordo com a Oliacutempica VII de Piacutendaro (vv 35-38)

composta em 464 aC para Diaacutegoras de Rodes Hefestos fendeu a cabeccedila

de Zeus com um machado e ao erguer-se da fronte paterna Atena soltou

um grito de guerra fortiacutessimo do que se depreende embora o passo natildeo

seja expliacutecito que estava pronta a combater

Satildeo basicamente estes os dados miacuteticos que os artistas aacuteticos ilustram

Numa das representaccedilotildees mais antigas de um vaso atribuiacutedo ao Pintor C

conservado no Museu do Louvre do segundo quartel do seacuteculo VI aC

Zeus sentado no trono com o ceptro na matildeo direita e o raio na esquerda

ocupa o centro da cena e eacute assistido por seis divindades entre as quais se

encontram Hefestos (com o machado) Poseacuteidon (com o tridente) e as deusas

Ilitias que amparavam as parturientes Atena de elmo posto sai da cabeccedila

do pai preparada para combater com o escudo encostado ao peito e o

braccedilo direito erguido na posiccedilatildeo de arremessar a lanccedila (cf Hino Homeacuterico

a Atena 28 8-9) Apesar da estatura reduzida da receacutem-nascida nenhum

traccedilo sugere que o artista pretendia representar uma crianccedila24

Eacute este aspecto guerreiro e ofensivo da deusa a sair da cabeccedila de Zeus ndash

este habitualmente sentado no trono rodeado de vaacuterias divindades que o

22 Fr 56 Page = fr 233 PMG Vide D L Page (1962) Poetae Melici Graeci Oxford Clarendon Press D A Campbell (1991) Greek Lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and Others Cambridge Mass Harvard University Press 162-163

23 Na arte a representaccedilatildeo mais antiga segura do nascimento de Atena eacute documentada pelos relevos martelados em bronze descobertos em Oliacutempia (fragmentos de escudos) dos finais do seacuteculo VII ou da primeira metade do seacutec VI aC e preservados no seu Museu (B 1975d) cf T Carpenter 1991 71 e nordm 98

24 Exaleiptron (vaso para guardar perfumes e unguentos) triacutepode aacutetico de figuras negras atribuiacutedo ao Pintor C c 570-560 aC (Paris Museu do Louvre CA 616 ) Vide httpcommonswikimediaorgwikiFileExaleiptron_birth_Athena_Louvre_CA616jpg (acedido em 30112010)

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assistem ou sauacutedam a receacutem-nascida ndash que vamos encontrar nas decoraccedilotildees

de vasos de figuras negras atribuiacutedos ao Grupo E (c 560-540 aC) assim

chamado por ter sido o ateliecirc onde se formou o grande pintor Exeacutequias

Num conjunto relevante de acircnforas preservadas em diferentes museus este

esquema iconograacutefico manteacutem-se com ligeiras variaccedilotildees comprovando a

popularidade do tema na Eacutepoca Arcaica uma pequena Atena vestida com

um peplos e armada sai da cabeccedila de Zeus que sentado num trono elaborado

e com o raio na matildeo eacute assistido de cada lado por vaacuterias divindades Aleacutem

das Ilitias (uma ou duas) que erguem o braccedilo em sinal de auxiacutelio os deuses

normalmente trecircs satildeo identificados pelos adereccedilos proacuteprios e alternam em

cada vaso (Dioacutenisos Hermes Poseacuteidon Apolo Ares Hefestos) Sob o trono

de Zeus surge a figura reduzida de um homem ou de uma divindade alada25

Outros tratamentos do nascimento de Atena na pintura de vasos aacuteticos

retratam a deusa armada sobre os joelhos de Zeus (a partir de 550 aC) ou

junto do pai mas com aspecto de adulta figuraccedilatildeo que parece ter sido

adoptada por Fiacutedias no frontatildeo oriental do Paacutertenon26 A rejeiccedilatildeo da imagem

de Atena como crianccedila natildeo eacute caso uacutenico e relaciona-se com a complexa e

interessante questatildeo que diz respeito ao tratamento literaacuterio e iconograacutefico

do nascimento de deusas e heroiacutenas De facto regra geral (Aacutertemis parece

ser a excepccedilatildeo) estas vecircm ao mundo com formas adultas ao contraacuterio dos

25 Eg Berlim Staatliche Museen Antikensammlung 1699 vide R Vollkommer 2000 376 (fig 2) Boston Museum of Fine Arts 00330 vide S Blundell and M Williamson 1998 61 (fig 45) Munique Antikensammlungen 1382 New Haven Yale University Art Gallery 198322 vide J Neils amp J Oakley 2003 116 206-207 (cat 5) Paris Museu do Louvre F 32 vide httpcommonswikimediaorgwikiFileAmphora_birth_Athena_Louvre_F32jpg (acedido em 30112010) Viena Kunsthistorisches Museum IV 3596 Acircnforas da mesma oficina com variaccedilotildees deste esquema iconograacutefico eg Atena sem elmo e com o escudo eacute retratada sobre os joelhos de Zeus (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum L 250) sete divindades (Ilitia Heacuteracles Ares Apolo Poseacuteidon Hera e Hefestos) assistem ao nascimento sob o trono surgem duas figuras masculinas nuas (Londres The British Museum B 147) Zeus sentado num elaborado trono e uma minuacutescula Atena armada (elmo escudo e lanccedila) satildeo representados frontalmente acompanhados por Hermes Ares Ilitia e outra deusa (Richmond Virginia Museum of Fine Arts 6023) vide T Carpenter 1991 nordm 100 e httpwwwvmfastatevausCollectionsAncient_ArtBlack-figured_Amphora_60_23aspx (acedido em 30112010)

26 Sobre a iconografia do nascimento de Atena vide J Boardman 1974 37 216-217 e 1991b 102 H Cassimatis (1984) in LIMC II1 sv Athena pp 985-990 1021-1023 T Carpenter 1991 71-72 L Beaumont 1995 349-351 e 1998 76-77 R Vollkommer 2000 375-377

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deuses e heroacuteis como Apolo Dioacutenisos Heacuteracles Hermes e Aquiles que

natildeo soacute nascem bebeacutes como vivem episoacutedios ceacutelebres na infacircncia anunciando

as qualidades ou defeitos que os distinguem na idade adulta No entanto

quando os artistas gregos optavam por retratar as deusas e heroiacutenas apenas

como adultas ndash o caso de Afrodite que emerge das aacuteguas no esplendor da

sua beleza eacute paradigmaacutetico ndash natildeo estavam de facto a seguir uma convenccedilatildeo

pictoacuterica Como observou Lesley Beaumont este eacute possivelmente um caso

em que as expressotildees artiacutesticas reflectem a mentalidade vigente na Atenas

arcaica e claacutessica que atribuiacutea agrave crianccedila e agrave mulher um lugar inferior na

hierarquia social e as considerava menos capazes ser deusa eacute partilhar de

algum modo da fragilidade do elemento feminino mas ser deusa e crianccedila

eacute elevar essa fragilidade a uma escala inaceitaacutevel pelo que o mito na sua

expressatildeo literaacuteria e artiacutestica parece ter evitado a dificuldade que seria

conciliar a ideia de ldquodivinordquo com as concepccedilotildees predominantes de crianccedila

e mulher (1995 349-361 1998 80-93 especialmente)

O corpus de vasos aacuteticos de figuras negras que representam crianccedilas

humanas natildeo eacute significativo mas as cenas retratadas satildeo diversas e constituem

um contributo valioso para o estudo da infacircncia ateniense

Uma placa votiva de meados do seacutec VI aC mostra-nos o interior de um

lar onde uma mulher sentada num banco e apoiada numa mesa se entrega

a tarefas domeacutesticas possivelmente agrave tecelagem ou confecccedilatildeo de vestuaacuterio

A decoraccedilatildeo vistosa da sua indumentaacuteria eacute um elemento que sobressai e

contrasta com a figura nua que atraacutes de si vemos sentada no chatildeo entre

os moacuteveis O penteado e atitude indicam tratar-se de uma menina mas as

formas sobretudo as matildeos e pernas muito compridas natildeo satildeo proporcionais

nem harmoniosas27

Um leacutecito do mesmo periacuteodo evoca uma situaccedilatildeo provavelmente frequente

no quotidiano infantil mas tatildeo pouco representada no corpus de vasos

aacuteticos que sugeriu o nome do artista Tal como na peccedila anterior a figura

27 Placa votiva aacutetica de figuras negras c 560 aC (Atenas Museu da Acroacutepole 2525) Vide M Golden 1990 35 (fig 6) L Beaumont 2003 63 (ldquoa rare early representation of a female infantrdquo) H Foley 2003 118-119 (fig 7)

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central ndash um menino que tenta escapar aos accediloites de um homem e corre

para os braccedilos de uma mulher ndash apenas eacute identificada como crianccedila por

estar nua e ter metade do tamanho das restantes figuras A cena no seu

conjunto faz imediatamente pensar num menino ainda pequeno que foge

da sandaacutelia do pai e busca o afecto da matildee um tema adequado a um vaso

comum e muito usado em casa como recipiente para azeite28

Os autores destas imagens natildeo foram capazes de traccedilar a fisionomia

caracteriacutestica da crianccedila mas isso natildeo significa que os artistas aacuteticos desta

eacutepoca eram menos haacutebeis ou prestavam pouca atenccedilatildeo aos elementos mais

novos da poacutelis A placa votiva que comentaacutemos proveniente da acroacutepole

de Atenas natildeo eacute decerto um trabalho profissional e o vaso embora

interessante eacute atribuiacutedo a um pintor que J Boardman (1974 33) considera

um ldquoimitador sem talentordquo No entanto numa cena de despedida de guerreiros

que decora uma acircnfora atribuiacuteda ao referido Grupo E cujas obras satildeo muito

mais elaboradas a personagem de rosto masculino e formas musculadas

que se destaca do centro da composiccedilatildeo como no vaso anterior apenas eacute

identificada como um menino ou jovem por estar nu e ter metade do

tamanho das outras figuras29 Este exemplo pode sugerir que para os pintores

aacuteticos deste periacuteodo eram mais importantes as convenccedilotildees pictoacutericas ndash como

a nudez a altura e o tamanho dos mais pequenos ndash do que o realismo da

representaccedilatildeo

Uma placa (pinax) de terracota funeraacuteria com inscriccedilotildees do comeccedilo do

seacuteculo V aC pode corroborar esta hipoacutetese30 Numa composiccedilatildeo elaborada

que retrata o ritual de exposiccedilatildeo do corpo (prothesis) no qual participam

vaacuterios homens e mulheres estas mais proacuteximas do defunto distinguem-se

28 Leacutecito aacutetico de figuras negras pelo Pintor da Sandaacutelia (vaso epoacutenimo) c 550 aC (Bolonha Museo Civico Archeologico PU 204) Vide J Boardman 1974 nordm 43 M Golden 2003 26 (fig 5)

29 Acircnfora aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Grupo E c 560-540 aC (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum 247) Vide L Beaumont 2003 61 (fig 1)

30 Placa funeraacuteria aacutetica de terracota atribuiacuteda ao Pintor de Safo c 500-490 aC (Paris Museu do Louvre MNB 905) Vide J Boardman 1974 nordm 265 L Beaumont 2003 61-62 H Shapiro 2003 105 J Oakley 2003 164-165 (fig 3) httpenwikipediaorgwikiFilePinax_prothesis_Louvre_MNB905jpg (acedido em 30112010)

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trecircs figuras mais pequenas A mais baixa encontra-se no lado esquerdo

entre o grupo dos homens e o das mulheres e as roupas sugerem que se

trata de um menino talvez ainda pequeno pois apoia-se nas pernas do

leito fuacutenebre As outras duas de alturas distintas apenas diferem das

mulheres no tamanho (a inscriccedilatildeo identifica a menina mais baixa como irmatilde

do defunto) Assim esta peccedila aleacutem de documentar a participaccedilatildeo de crianccedilas

e jovens nas cerimoacutenias familiares e religiosas designadamente nos rituais

fuacutenebres um costume antigo jaacute atestado no estilo Geomeacutetrico indica que

o tamanho e a altura podiam ser os uacutenicos elementos convencionais a

distinguir uma crianccedila de uma pessoa mais velha

As imagens que comentaacutemos revelam-nos a intimidade dos lares atenienses

e os seus momentos mais dolorosos mas o repertoacuterio de figuras negras

tambeacutem contemplava os contactos com o exterior e situaccedilotildees mais alegres

Uma conhecida pelike atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides (c 500 aC) retrata

um menino a tirar medidas na loja do sapateiro na companhia do pai ou

do pedagogo31 A presenccedila deste elemento bem como o facto de a figura

mais pequena se encontrar em cima da mesa do artesatildeo e se apoiar na

cabeccedila deste sugerem que pode ser crianccedila embora as linhas do corpo natildeo

decircem essa impressatildeo Natildeo eacute claro de facto se o artista pretendia representar

um menino em idade escolar ou um rapaz mais velho

Finalmente merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de uma acircnfora

preservada em Estugarda que retrata trecircs jovens na companhia de um

homem provavelmente o pedagogo Enquanto uma delas anda de baloiccedilo

ndash uma actividade luacutedica que se relaciona provavelmente com um ritual

tambeacutem evocado na ceracircmica de figuras vermelhas32 ndash as outras cuidam de

duas crianccedilas mais pequenas Como nos vasos comentados anteriormente

31 Pelike aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides c 500 aC (Oxford Ashmolean Museum 563) Vide J Boardman 1974 nordm 229 M Golden 1990 29 (fig 2) M Vickers (1999) Ancient Greek Pottery Oxford Ashmoleum Museum 35 (nordm 23) J Neils amp J Oakley 2003 100 242 (cat 43)

32 O ritual da Aiora (ldquobaloiccedilordquo) era praticado por jovens em memoacuteria da jovem Eriacutegone que se suicidara apoacutes o assassiacutenio de seu pai Cf H Shapiro 2003 103-104 (fig 189) J Neils 2003 147 149 (fig 8) J Neils amp J Oakley 2003 288 (cat 102)

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estas satildeo facilmente identificadas pelo tamanho reduzido mas as suas formas

grosseiras contrastam com o desenho mais elegante com que o artista

representou as donzelas33

O cataacutelogo aacutetico de figuras vermelhas eacute muito mais rico e difiacutecil de

seleccionar tanto no domiacutenio dos temas mitoloacutegicos quanto no das cenas

inspiradas na vida quotidiana nas quais nos vamos deter e eacute evidente

tambeacutem que a qualidade das peccedilas e a forma de retratar as crianccedilas varia

consideravelmente

As cenas de escola constituem uma das principais novidades desta teacutecnica

e uma das obras mais belas eacute sem duacutevida a ceacutelebre taccedila assinada por Duacuteris

no princiacutepio do seacuteculo V aC e preservada em Berlim34 Decorada no exterior

com as liccedilotildees dos mestres de muacutesica (kitharistes) e de letras (grammatistes)

sob o olhar vigilante do pedagogo estas imagens satildeo certamente um

testemunho da importacircncia crescente da literacia no dealbar da Eacutepoca

Claacutessica No seacuteculo V aC em Atenas normalmente a partir dos sete anos

os meninos iniciavam a instruccedilatildeo baacutesica no exterior enquanto as meninas

continuavam em casa e aprendiam a gerir o lar junto da matildee e das escravas

Apesar da qualidade extraordinaacuteria da taccedila de Duacuteris a idade dos alunos

retratados nestas cenas natildeo eacute facilmente perceptiacutevel pois o principal traccedilo

que os distingue dos adultos eacute a estatura menor

Um dos grandes contributos das figuras vermelhas para o estudo da

infacircncia ateniense eacute o interesse que dedica aos afectos familiares e agraves

diferentes fases da vida de uma crianccedila tema que adquire cada vez mais

importacircncia ao longo do seacuteculo V aC Assim as cenas de gineceu tornam-se

muito mais correntes e se natildeo raras vezes mostram os preparativos do

casamento ou os cuidados com o corpo dos elementos femininos as crianccedilas

passam a estar cada vez mais presentes e constituem mesmo o tema principal

33 Estugarda Wuumlrttembergisches Landesmuseum 651 Vide M Golden 1990 34 (fig 5)34 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas assinada por Duacuteris c 490-480 aC (Berlim Staatliche

Museen Antikensammlung F 2285) Vide J Boardman 1975 nordm 289 J Neils amp J Oakley 2003 66 244-246 (cat 44) httpwwwmlahanasdeGreeksLXBerlinF2285html (acedido em 30112010)

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da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a

brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas

Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos

do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da

crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito

atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de

uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos

uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um

olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila

lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode

ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar

da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir

de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam

a descobrir o que as rodeia35

Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a

imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a

um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica

de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada

de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o

rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de

perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um

soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da

crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o

cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo

nem a atitude satildeo inteiramente naturais

35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)

36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)

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77

Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou

perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37

Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no

chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma

mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais

velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo

esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo

aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a

matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude

que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o

do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo

mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo

destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego

do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados

ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora

aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa

Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38

Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados

a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos

mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica

aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)

que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que

recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um

fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em

37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)

38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)

39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006

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78

1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena

harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para

a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza

de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude

desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo

da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua

frente satildeo claramente as de um bebeacute

Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero

crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a

cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos

de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava

a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa

alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia

e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde

a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos

exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de

c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no

centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada

numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma

escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa

sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica

por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria

muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade

sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina

Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420

40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)

41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)

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137

el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides

eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto

pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es

precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13

467-469

acceptior illi

quisquis is est quem caede mea placare paratis

liber erit sanguisque

ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os

disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo

versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima

tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha

mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est

(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava

se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo

donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una

princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son

palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las

Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus

ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la

tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten

de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en

una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo

devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de

Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada

por ella vv 469-473

siquos tamen ultima nostri

verba movent oris Priami vos filia regis

non captiva rogat genetrici corpus inemptum

reddite neve auro redimat ius triste sepulcri

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138

sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro

ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega

la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo

sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro

con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea

tambieacuten lo pagaba con orordquo

No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de

forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes

padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar

el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples

presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En

este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que

Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su

madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba

del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una

madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que

constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere

la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta

todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina

tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y

que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y

tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y

extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480

Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat

non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos

praebita coniecto rupit praecordia ferro

illa super terram defecto poplite labens

pertulit intrepidos ad fata novissima vultus

tunc quoque cura fuit partes velare tegendas

cum caderet casti que decus servare pudoris

10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos

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139

ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea

incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el

hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra

al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso

rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que

debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo

reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-

570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima

verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al

caer

ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών

ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta

con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque

moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura

ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo

La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste

en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten

de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los

aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin

vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan

en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a

la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de

Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe

proleacuteptica de los vv 483-485

teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx

regia dicta parens Asiae florentis imago

nunc etiam praedae mala sors

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140

ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada

regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo

incluso de un botiacutenrdquo

que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos

pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias

se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre

todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro

El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento

contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural

propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente

influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6

441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-

745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los

detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten

a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la

guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana

con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam

cecidisti) de Met 13 497-498

at te quia femina rebar

a ferro tutam cecidisti et femina ferro

ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer

has muerto por el hierrordquo

Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos

a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar

auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso

innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije

lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras

dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante

la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea

contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo

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141

insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado

de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748

οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου

ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de

los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo

Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio

confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no

responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en

Seacuteneca Contr 9 5 17

Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri

solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius

nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana

Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut

ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse

sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]

tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]

Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus

magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere

ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer

semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los

oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido

bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias

de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena

para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia

ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento

con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo

Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo

Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber

decir como saber dejar de decirrdquo

11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa

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142

pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel

forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado

esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado

orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo

perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met

13 505-520

iacet Ilion ingens

eventuque gravi finita est publica clades

sed finita tamen soli mihi Pergama restant

in cursuque meus dolor est modo maxima rerum

tot generis natisque potens nuribusque viroque

nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum

Penelopes munus quae me data pensa trahentem

matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est

clara parens haec est dicet Priameia coniunx

postque tot amissos tu nunc quae sola levabas

maternos luctus hostilia busta piasti

inferias hosti peperi quo ferrea resto

quidve moror quo me servas annosa senectus

quo di crudeles nisi uti nova funera cernam

vivacem differtis anum quis posse putaret

felicem Priamum post diruta Pergama dici

ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la

desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece

Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante

de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy

arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos

presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a

miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre

madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos

se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has

aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres

para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero

iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser

para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten

creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten

de Peacutergamordquo

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143

quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los

momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr

104-106 dice la abatida soberana

αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις

ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se

le han ido patria hijos y esposordquo

y continuacutea en 140-142

δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς

ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber

sido destruido mi poder lastimeramenterdquo

Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199

φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς

ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja

resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie

fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta

cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo

Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476

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144

ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν

ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores

no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo

y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y

descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el

sacrificio de Poliacutexena

οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα

ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa

de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por

la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de

polvo su desgraciada cabezardquo

Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba

como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513

ldquohaec Hectoris illa est

clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo

ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo

presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva

esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para

siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497

τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν

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145

κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν

ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer

esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez

me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la

que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un

camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir

este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para

los ricosrdquo

Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias

de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir

felix morte sua est nec te mea nata peremptam

adspicit et vitam pariter regnum que reliquit

ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute

a la vez la vida y el reinordquo

auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas

1312-1316

Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν

ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no

ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos

con impiacuteo deguumlellordquo

con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante

consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11

158-161

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146

tuque o sanctissima coniunx

felix morte tua neque in hunc seruata dolorem

contra ego uiuendo uici mea fata superstes

restarem ut genitor

ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada

para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para

sobrevir siendo su padrerdquo

La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye

el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda

no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten

de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen

a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha

recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que

se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna

llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute

portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se

repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate

Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610

σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός

ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del

mar traacuteela aquiacuterdquo

pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al

mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que

como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido

en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de

dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal

vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase

maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y

ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere

de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544

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205

Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio

Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12

surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo

Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida

do moccedilo do escritoacuterio

Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal

dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho

estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto

como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No

corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida

dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante

para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos

quentes

Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou

da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para

uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi

uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui

hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que

cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando

era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira

alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de

hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo

automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo

porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do

escritoacuterio foi-se embora

12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente

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206

Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino

sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute

copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da

escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em

mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a

trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu

Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13

Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco

do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio

para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo

Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos

acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao

moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa

claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as

indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a

Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-

Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa

a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria

cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade

narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente

delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando

Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar

de longo em tudo nos interessa

Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em

que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele

o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor

mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o

13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo

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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias

alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara

nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se

considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me

com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele

laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do

seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o

senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz

de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa

cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute

quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas

pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum

de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem

seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este

ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou

largarraquo (91-92)16

E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para

comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute

que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao

preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua

dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite

pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo

garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17

Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor

Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas

hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a

16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)

17 Apud P D de Almeida 2008 156

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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a

consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista

Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa

agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo

deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio

foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e

Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de

praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim

das traseirasrdquo (pp 21-22)

A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas

atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que

seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo

se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio

cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais

opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas

viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como

ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo

regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)

Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato

mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985

preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo

entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de

preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de

fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor

de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19

Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se

uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)

neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado

e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como

18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15

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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

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211

pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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212

Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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213

Bibliografia

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Lino Pedro Sena (2005) ldquoVersos de um muito ningueacutemrdquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in PuacuteblicoMil Folhas 10 de Dezembro 22-23

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Zenith Richard (ed) (2003) Livro do Desassossego 4ordf ed Lisboa Assiacuterio e Alvim

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334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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335

agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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336

da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

Obra protegida por direitos de autor

339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

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341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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Page 6: & Transgressão II - digitalis.uc.pt · Carmen Soares Maria do Céu Fialho María Consuelo Alvarez Morán Rosa María Iglesias Montiel Coordenação • C O I M B R A 2 0 1 1 orma

6

cap ii- os claacutessicos e a sua recepccedilatildeo contributos

para a (des)construccedilatildeo de identidades culturais

2 1 literatura latina

Maria Consuelo Aacutelvarez Moraacuten e Rosa Mariacutea Iglesias Montiel

La tragedia de las mujeres troyanas en Las Metamorfosis de Ovidio 115

2 2 recepccedilatildeo de claacutessicos da literatura

Maria do Ceacuteu Fialho

Reinvenccedilatildeo de mundo e correspondecircncia de siacutembolos em Sob o Olhar de Medeia de F Hasse Pais Brandatildeo 155

Maria Antoacutenio Houmlrster e Maria de Faacutetima Silva

Espaccedilo para Medeia Notas acerca da Medeia de Maacuterio Claacuteudio 175

Susana Marques Pereira

Adaptaccedilatildeo dramaacutetica e transgressatildeo 194

Ana Paula Arnaut

Trecircs homens e um livro Boa Noite Senhor Soares de Maacuterio Claacuteudio 201

Teresa Carvalho

Norma e transgressatildeo os lusiacuteadas de Manuel da Silva Ramos e Alface 215

2 3 arquitectura

Isabel Donas-Botto

Um passado mais-que-perfeito o impacto do claacutessico na arquitectura britacircnica 229

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7

cap iii- religiatildeo da greacutecia aos nossos dias

Adriana Nogueira

Quando a transgressatildeo eacute norma - a religiatildeo grega em progresso 252

Joseacute Ramos

Norma e transgressatildeo agrave luz do paradigma biacuteblico 265

Carlota Miranda Urbano

Ortodoxia e heterodoxia no iniacutecio da modernidade Poesia hagiograacutefica neolatina ao serviccedilo da apologeacutetica jesuiacutetica 289

cap iV- FilosoFia

Maria Luiacutesa Portocarrero

Norma transgressatildeo e traduccedilatildeo na filosofia praacutetica de P Ricoeur 307

cap V- geograFia

Norberto Santos

Desvios e regras nos territoacuterios do quotidiano 323

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9

preFaacutecio

Na sequecircncia do primeiro Coloacutequio Internacional sobre este tema

decorrido em 2006 o Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos e o

Instituto de Estudos Claacutessicos da Universidade de Coimbra com a colaboraccedilatildeo

da Universidade de Muacutercia organizaram um Coloacutequio Internacional dedicado

a ldquoNorma e transgressatildeordquo (II) no contexto do Projecto de Investigaccedilatildeo

Quadrienal ldquoPolisCosmopolisrdquo Decorreu nos dias 29 e 30 de Setembro de

2008 Teve como objectivo criar um espaccedilo de reflexatildeo dos modos diversos

como cada comunidade vive a sua proacutepria experiecircncia de identidade na

actividade regulamentadora e no gesto de quebra das suas regras bem

como numa posterior etapa na integraccedilatildeo de transgressotildees executadas

como um novo campo da sua proacutepria identidade expandida Esta dinacircmica

conduz agrave questatildeo das ldquofronteiras do eurdquo individual (local) e da comunidade

(global) que significa ser estranho e natildeo o ser ateacute que ponto a conexatildeo

tensa entre o normativo e o transgressivo constitui um processo determinante

no comportamento colectivo e individual pelo qual o ser humano aprende

avanccedila se compreende a si mesmo e compreende os outros

Tratou-se de um encontro de forte cariz transversal contando com

contributos das seguintes aacutereas de investigaccedilatildeo literaturas claacutessicas (grega

e latina) e modernas (anglo-americanas e germaniacutesticas) literatura biacuteblica

filosofia geografia e histoacuteria

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11

capIacutetulo i

Histoacuteria da antiguidade claacutessica

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69

vasos da Eacutepoca Arcaica Felizmente o corpus de vasos aacuteticos que nos chegou

eacute bastante extenso pelo que num trabalho de anaacutelise iconograacutefica o mais

simples e correcto eacute adoptar a metodologia dos especialistas que distinguem

as decoraccedilotildees inspiradas em episoacutedios mitoloacutegicos da representaccedilatildeo de

cenas da vida quotidiana

No primeiro grupo inscrevem-se episoacutedios da infacircncia de divindades

heroacuteis e heroiacutenas destacando-se o nascimento de Afrodite Apolo e Aacutertemis

Ascleacutepio Atena Dioacutenisos Erictoacutenio Helena Hermes e Zeus bem como

Aquiles entregue aos cuidados do centauro Quiacuteron e a proeza do bebeacute

Heacuteracles que ainda no berccedilo estrangulou duas serpentes Incluem-se

tambeacutem neste grupo as decoraccedilotildees inspiradas nos mitos de infanticiacutedio ou

exposiccedilatildeo como a vinganccedila de Medeia e de Procne o assassiacutenio de Astiacuteanax

depois da queda de Troacuteia Perseu lanccedilado ao mar dentro de uma arca e

Orestes ameaccedilado por Teacutelefo No que respeita agraves cenas da vida quotidiana

em traccedilos gerais podemos dizer que os artistas aacuteticos retratam todas as

experiecircncias que preenchem o dia-a-dia de uma crianccedila designadamente

as relaccedilotildees familiares e sociais a educaccedilatildeo e as brincadeiras

Do repertoacuterio de figuras negras sobre temas mitoloacutegicos merece destaque

o nascimento de Atena que foi dos temas mais ceacutelebres na arte da Eacutepoca

Arcaica em especial na ceracircmica aacutetica embora tenha continuado a ser

tratado durante o seacuteculo V aC surgindo em evidecircncia no centro do frontatildeo

oriental do Paacutertenon (Paus 1 24 5)

Conta Hesiacuteodo que a deusa fora concebida da uniatildeo de Zeus com Meacutetis

mas quando esta estava prestes a dar agrave luz o deus supremo engoliu-a uma

vez que Geia e Urano o tinham avisado de que dela nasceriam uma filha

saacutebia e corajosa como o pai e um filho de coraccedilatildeo orgulhoso que

ambicionaria o poder de Zeus (Teogonia 886-900 924-926) Segundo um

escoacutelio de Apoloacutenio de Rodes o poeta Estesiacutecoro de Hiacutemera (seacutec VII-VI

aC) foi ldquoo primeiro a afirmar que Atena saltara armada da cabeccedila de Zeusrdquo

O fragmento de um comentaacuterio transmitido por um papiro do seacuteculo II da

nossa era descoberto em Oxirrinco cita uma parte dos versos em que

Estesiacutecoro referia esse episoacutedio ldquo a resplandecer com as armasPalas

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70

lanccedilou-se para a terra vastardquo22 Assim eacute possiacutevel como se pensa que o

liacuterico da Siciacutelia tenha sido o responsaacutevel pela criaccedilatildeo literaacuteria deste tema

que teraacute igualmente grande fortuna na pintura de vasos23 Nem o escoacutelio

nem o fragmento que se preservou permitem esclarecer se no poema de

Estesiacutecoro a filha de Zeus nascia crianccedila ou adulta embora a segunda

hipoacutetese seja mais plausiacutevel visto que os dois textos sublinham o ardor

belicoso da deusa De acordo com a Oliacutempica VII de Piacutendaro (vv 35-38)

composta em 464 aC para Diaacutegoras de Rodes Hefestos fendeu a cabeccedila

de Zeus com um machado e ao erguer-se da fronte paterna Atena soltou

um grito de guerra fortiacutessimo do que se depreende embora o passo natildeo

seja expliacutecito que estava pronta a combater

Satildeo basicamente estes os dados miacuteticos que os artistas aacuteticos ilustram

Numa das representaccedilotildees mais antigas de um vaso atribuiacutedo ao Pintor C

conservado no Museu do Louvre do segundo quartel do seacuteculo VI aC

Zeus sentado no trono com o ceptro na matildeo direita e o raio na esquerda

ocupa o centro da cena e eacute assistido por seis divindades entre as quais se

encontram Hefestos (com o machado) Poseacuteidon (com o tridente) e as deusas

Ilitias que amparavam as parturientes Atena de elmo posto sai da cabeccedila

do pai preparada para combater com o escudo encostado ao peito e o

braccedilo direito erguido na posiccedilatildeo de arremessar a lanccedila (cf Hino Homeacuterico

a Atena 28 8-9) Apesar da estatura reduzida da receacutem-nascida nenhum

traccedilo sugere que o artista pretendia representar uma crianccedila24

Eacute este aspecto guerreiro e ofensivo da deusa a sair da cabeccedila de Zeus ndash

este habitualmente sentado no trono rodeado de vaacuterias divindades que o

22 Fr 56 Page = fr 233 PMG Vide D L Page (1962) Poetae Melici Graeci Oxford Clarendon Press D A Campbell (1991) Greek Lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and Others Cambridge Mass Harvard University Press 162-163

23 Na arte a representaccedilatildeo mais antiga segura do nascimento de Atena eacute documentada pelos relevos martelados em bronze descobertos em Oliacutempia (fragmentos de escudos) dos finais do seacuteculo VII ou da primeira metade do seacutec VI aC e preservados no seu Museu (B 1975d) cf T Carpenter 1991 71 e nordm 98

24 Exaleiptron (vaso para guardar perfumes e unguentos) triacutepode aacutetico de figuras negras atribuiacutedo ao Pintor C c 570-560 aC (Paris Museu do Louvre CA 616 ) Vide httpcommonswikimediaorgwikiFileExaleiptron_birth_Athena_Louvre_CA616jpg (acedido em 30112010)

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assistem ou sauacutedam a receacutem-nascida ndash que vamos encontrar nas decoraccedilotildees

de vasos de figuras negras atribuiacutedos ao Grupo E (c 560-540 aC) assim

chamado por ter sido o ateliecirc onde se formou o grande pintor Exeacutequias

Num conjunto relevante de acircnforas preservadas em diferentes museus este

esquema iconograacutefico manteacutem-se com ligeiras variaccedilotildees comprovando a

popularidade do tema na Eacutepoca Arcaica uma pequena Atena vestida com

um peplos e armada sai da cabeccedila de Zeus que sentado num trono elaborado

e com o raio na matildeo eacute assistido de cada lado por vaacuterias divindades Aleacutem

das Ilitias (uma ou duas) que erguem o braccedilo em sinal de auxiacutelio os deuses

normalmente trecircs satildeo identificados pelos adereccedilos proacuteprios e alternam em

cada vaso (Dioacutenisos Hermes Poseacuteidon Apolo Ares Hefestos) Sob o trono

de Zeus surge a figura reduzida de um homem ou de uma divindade alada25

Outros tratamentos do nascimento de Atena na pintura de vasos aacuteticos

retratam a deusa armada sobre os joelhos de Zeus (a partir de 550 aC) ou

junto do pai mas com aspecto de adulta figuraccedilatildeo que parece ter sido

adoptada por Fiacutedias no frontatildeo oriental do Paacutertenon26 A rejeiccedilatildeo da imagem

de Atena como crianccedila natildeo eacute caso uacutenico e relaciona-se com a complexa e

interessante questatildeo que diz respeito ao tratamento literaacuterio e iconograacutefico

do nascimento de deusas e heroiacutenas De facto regra geral (Aacutertemis parece

ser a excepccedilatildeo) estas vecircm ao mundo com formas adultas ao contraacuterio dos

25 Eg Berlim Staatliche Museen Antikensammlung 1699 vide R Vollkommer 2000 376 (fig 2) Boston Museum of Fine Arts 00330 vide S Blundell and M Williamson 1998 61 (fig 45) Munique Antikensammlungen 1382 New Haven Yale University Art Gallery 198322 vide J Neils amp J Oakley 2003 116 206-207 (cat 5) Paris Museu do Louvre F 32 vide httpcommonswikimediaorgwikiFileAmphora_birth_Athena_Louvre_F32jpg (acedido em 30112010) Viena Kunsthistorisches Museum IV 3596 Acircnforas da mesma oficina com variaccedilotildees deste esquema iconograacutefico eg Atena sem elmo e com o escudo eacute retratada sobre os joelhos de Zeus (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum L 250) sete divindades (Ilitia Heacuteracles Ares Apolo Poseacuteidon Hera e Hefestos) assistem ao nascimento sob o trono surgem duas figuras masculinas nuas (Londres The British Museum B 147) Zeus sentado num elaborado trono e uma minuacutescula Atena armada (elmo escudo e lanccedila) satildeo representados frontalmente acompanhados por Hermes Ares Ilitia e outra deusa (Richmond Virginia Museum of Fine Arts 6023) vide T Carpenter 1991 nordm 100 e httpwwwvmfastatevausCollectionsAncient_ArtBlack-figured_Amphora_60_23aspx (acedido em 30112010)

26 Sobre a iconografia do nascimento de Atena vide J Boardman 1974 37 216-217 e 1991b 102 H Cassimatis (1984) in LIMC II1 sv Athena pp 985-990 1021-1023 T Carpenter 1991 71-72 L Beaumont 1995 349-351 e 1998 76-77 R Vollkommer 2000 375-377

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deuses e heroacuteis como Apolo Dioacutenisos Heacuteracles Hermes e Aquiles que

natildeo soacute nascem bebeacutes como vivem episoacutedios ceacutelebres na infacircncia anunciando

as qualidades ou defeitos que os distinguem na idade adulta No entanto

quando os artistas gregos optavam por retratar as deusas e heroiacutenas apenas

como adultas ndash o caso de Afrodite que emerge das aacuteguas no esplendor da

sua beleza eacute paradigmaacutetico ndash natildeo estavam de facto a seguir uma convenccedilatildeo

pictoacuterica Como observou Lesley Beaumont este eacute possivelmente um caso

em que as expressotildees artiacutesticas reflectem a mentalidade vigente na Atenas

arcaica e claacutessica que atribuiacutea agrave crianccedila e agrave mulher um lugar inferior na

hierarquia social e as considerava menos capazes ser deusa eacute partilhar de

algum modo da fragilidade do elemento feminino mas ser deusa e crianccedila

eacute elevar essa fragilidade a uma escala inaceitaacutevel pelo que o mito na sua

expressatildeo literaacuteria e artiacutestica parece ter evitado a dificuldade que seria

conciliar a ideia de ldquodivinordquo com as concepccedilotildees predominantes de crianccedila

e mulher (1995 349-361 1998 80-93 especialmente)

O corpus de vasos aacuteticos de figuras negras que representam crianccedilas

humanas natildeo eacute significativo mas as cenas retratadas satildeo diversas e constituem

um contributo valioso para o estudo da infacircncia ateniense

Uma placa votiva de meados do seacutec VI aC mostra-nos o interior de um

lar onde uma mulher sentada num banco e apoiada numa mesa se entrega

a tarefas domeacutesticas possivelmente agrave tecelagem ou confecccedilatildeo de vestuaacuterio

A decoraccedilatildeo vistosa da sua indumentaacuteria eacute um elemento que sobressai e

contrasta com a figura nua que atraacutes de si vemos sentada no chatildeo entre

os moacuteveis O penteado e atitude indicam tratar-se de uma menina mas as

formas sobretudo as matildeos e pernas muito compridas natildeo satildeo proporcionais

nem harmoniosas27

Um leacutecito do mesmo periacuteodo evoca uma situaccedilatildeo provavelmente frequente

no quotidiano infantil mas tatildeo pouco representada no corpus de vasos

aacuteticos que sugeriu o nome do artista Tal como na peccedila anterior a figura

27 Placa votiva aacutetica de figuras negras c 560 aC (Atenas Museu da Acroacutepole 2525) Vide M Golden 1990 35 (fig 6) L Beaumont 2003 63 (ldquoa rare early representation of a female infantrdquo) H Foley 2003 118-119 (fig 7)

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central ndash um menino que tenta escapar aos accediloites de um homem e corre

para os braccedilos de uma mulher ndash apenas eacute identificada como crianccedila por

estar nua e ter metade do tamanho das restantes figuras A cena no seu

conjunto faz imediatamente pensar num menino ainda pequeno que foge

da sandaacutelia do pai e busca o afecto da matildee um tema adequado a um vaso

comum e muito usado em casa como recipiente para azeite28

Os autores destas imagens natildeo foram capazes de traccedilar a fisionomia

caracteriacutestica da crianccedila mas isso natildeo significa que os artistas aacuteticos desta

eacutepoca eram menos haacutebeis ou prestavam pouca atenccedilatildeo aos elementos mais

novos da poacutelis A placa votiva que comentaacutemos proveniente da acroacutepole

de Atenas natildeo eacute decerto um trabalho profissional e o vaso embora

interessante eacute atribuiacutedo a um pintor que J Boardman (1974 33) considera

um ldquoimitador sem talentordquo No entanto numa cena de despedida de guerreiros

que decora uma acircnfora atribuiacuteda ao referido Grupo E cujas obras satildeo muito

mais elaboradas a personagem de rosto masculino e formas musculadas

que se destaca do centro da composiccedilatildeo como no vaso anterior apenas eacute

identificada como um menino ou jovem por estar nu e ter metade do

tamanho das outras figuras29 Este exemplo pode sugerir que para os pintores

aacuteticos deste periacuteodo eram mais importantes as convenccedilotildees pictoacutericas ndash como

a nudez a altura e o tamanho dos mais pequenos ndash do que o realismo da

representaccedilatildeo

Uma placa (pinax) de terracota funeraacuteria com inscriccedilotildees do comeccedilo do

seacuteculo V aC pode corroborar esta hipoacutetese30 Numa composiccedilatildeo elaborada

que retrata o ritual de exposiccedilatildeo do corpo (prothesis) no qual participam

vaacuterios homens e mulheres estas mais proacuteximas do defunto distinguem-se

28 Leacutecito aacutetico de figuras negras pelo Pintor da Sandaacutelia (vaso epoacutenimo) c 550 aC (Bolonha Museo Civico Archeologico PU 204) Vide J Boardman 1974 nordm 43 M Golden 2003 26 (fig 5)

29 Acircnfora aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Grupo E c 560-540 aC (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum 247) Vide L Beaumont 2003 61 (fig 1)

30 Placa funeraacuteria aacutetica de terracota atribuiacuteda ao Pintor de Safo c 500-490 aC (Paris Museu do Louvre MNB 905) Vide J Boardman 1974 nordm 265 L Beaumont 2003 61-62 H Shapiro 2003 105 J Oakley 2003 164-165 (fig 3) httpenwikipediaorgwikiFilePinax_prothesis_Louvre_MNB905jpg (acedido em 30112010)

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74

trecircs figuras mais pequenas A mais baixa encontra-se no lado esquerdo

entre o grupo dos homens e o das mulheres e as roupas sugerem que se

trata de um menino talvez ainda pequeno pois apoia-se nas pernas do

leito fuacutenebre As outras duas de alturas distintas apenas diferem das

mulheres no tamanho (a inscriccedilatildeo identifica a menina mais baixa como irmatilde

do defunto) Assim esta peccedila aleacutem de documentar a participaccedilatildeo de crianccedilas

e jovens nas cerimoacutenias familiares e religiosas designadamente nos rituais

fuacutenebres um costume antigo jaacute atestado no estilo Geomeacutetrico indica que

o tamanho e a altura podiam ser os uacutenicos elementos convencionais a

distinguir uma crianccedila de uma pessoa mais velha

As imagens que comentaacutemos revelam-nos a intimidade dos lares atenienses

e os seus momentos mais dolorosos mas o repertoacuterio de figuras negras

tambeacutem contemplava os contactos com o exterior e situaccedilotildees mais alegres

Uma conhecida pelike atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides (c 500 aC) retrata

um menino a tirar medidas na loja do sapateiro na companhia do pai ou

do pedagogo31 A presenccedila deste elemento bem como o facto de a figura

mais pequena se encontrar em cima da mesa do artesatildeo e se apoiar na

cabeccedila deste sugerem que pode ser crianccedila embora as linhas do corpo natildeo

decircem essa impressatildeo Natildeo eacute claro de facto se o artista pretendia representar

um menino em idade escolar ou um rapaz mais velho

Finalmente merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de uma acircnfora

preservada em Estugarda que retrata trecircs jovens na companhia de um

homem provavelmente o pedagogo Enquanto uma delas anda de baloiccedilo

ndash uma actividade luacutedica que se relaciona provavelmente com um ritual

tambeacutem evocado na ceracircmica de figuras vermelhas32 ndash as outras cuidam de

duas crianccedilas mais pequenas Como nos vasos comentados anteriormente

31 Pelike aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides c 500 aC (Oxford Ashmolean Museum 563) Vide J Boardman 1974 nordm 229 M Golden 1990 29 (fig 2) M Vickers (1999) Ancient Greek Pottery Oxford Ashmoleum Museum 35 (nordm 23) J Neils amp J Oakley 2003 100 242 (cat 43)

32 O ritual da Aiora (ldquobaloiccedilordquo) era praticado por jovens em memoacuteria da jovem Eriacutegone que se suicidara apoacutes o assassiacutenio de seu pai Cf H Shapiro 2003 103-104 (fig 189) J Neils 2003 147 149 (fig 8) J Neils amp J Oakley 2003 288 (cat 102)

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75

estas satildeo facilmente identificadas pelo tamanho reduzido mas as suas formas

grosseiras contrastam com o desenho mais elegante com que o artista

representou as donzelas33

O cataacutelogo aacutetico de figuras vermelhas eacute muito mais rico e difiacutecil de

seleccionar tanto no domiacutenio dos temas mitoloacutegicos quanto no das cenas

inspiradas na vida quotidiana nas quais nos vamos deter e eacute evidente

tambeacutem que a qualidade das peccedilas e a forma de retratar as crianccedilas varia

consideravelmente

As cenas de escola constituem uma das principais novidades desta teacutecnica

e uma das obras mais belas eacute sem duacutevida a ceacutelebre taccedila assinada por Duacuteris

no princiacutepio do seacuteculo V aC e preservada em Berlim34 Decorada no exterior

com as liccedilotildees dos mestres de muacutesica (kitharistes) e de letras (grammatistes)

sob o olhar vigilante do pedagogo estas imagens satildeo certamente um

testemunho da importacircncia crescente da literacia no dealbar da Eacutepoca

Claacutessica No seacuteculo V aC em Atenas normalmente a partir dos sete anos

os meninos iniciavam a instruccedilatildeo baacutesica no exterior enquanto as meninas

continuavam em casa e aprendiam a gerir o lar junto da matildee e das escravas

Apesar da qualidade extraordinaacuteria da taccedila de Duacuteris a idade dos alunos

retratados nestas cenas natildeo eacute facilmente perceptiacutevel pois o principal traccedilo

que os distingue dos adultos eacute a estatura menor

Um dos grandes contributos das figuras vermelhas para o estudo da

infacircncia ateniense eacute o interesse que dedica aos afectos familiares e agraves

diferentes fases da vida de uma crianccedila tema que adquire cada vez mais

importacircncia ao longo do seacuteculo V aC Assim as cenas de gineceu tornam-se

muito mais correntes e se natildeo raras vezes mostram os preparativos do

casamento ou os cuidados com o corpo dos elementos femininos as crianccedilas

passam a estar cada vez mais presentes e constituem mesmo o tema principal

33 Estugarda Wuumlrttembergisches Landesmuseum 651 Vide M Golden 1990 34 (fig 5)34 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas assinada por Duacuteris c 490-480 aC (Berlim Staatliche

Museen Antikensammlung F 2285) Vide J Boardman 1975 nordm 289 J Neils amp J Oakley 2003 66 244-246 (cat 44) httpwwwmlahanasdeGreeksLXBerlinF2285html (acedido em 30112010)

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76

da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a

brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas

Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos

do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da

crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito

atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de

uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos

uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um

olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila

lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode

ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar

da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir

de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam

a descobrir o que as rodeia35

Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a

imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a

um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica

de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada

de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o

rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de

perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um

soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da

crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o

cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo

nem a atitude satildeo inteiramente naturais

35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)

36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)

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77

Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou

perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37

Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no

chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma

mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais

velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo

esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo

aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a

matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude

que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o

do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo

mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo

destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego

do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados

ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora

aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa

Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38

Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados

a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos

mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica

aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)

que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que

recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um

fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em

37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)

38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)

39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006

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78

1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena

harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para

a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza

de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude

desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo

da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua

frente satildeo claramente as de um bebeacute

Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero

crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a

cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos

de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava

a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa

alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia

e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde

a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos

exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de

c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no

centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada

numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma

escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa

sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica

por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria

muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade

sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina

Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420

40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)

41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)

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137

el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides

eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto

pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es

precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13

467-469

acceptior illi

quisquis is est quem caede mea placare paratis

liber erit sanguisque

ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os

disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo

versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima

tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha

mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est

(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava

se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo

donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una

princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son

palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las

Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus

ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la

tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten

de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en

una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo

devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de

Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada

por ella vv 469-473

siquos tamen ultima nostri

verba movent oris Priami vos filia regis

non captiva rogat genetrici corpus inemptum

reddite neve auro redimat ius triste sepulcri

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138

sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro

ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega

la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo

sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro

con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea

tambieacuten lo pagaba con orordquo

No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de

forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes

padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar

el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples

presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En

este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que

Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su

madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba

del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una

madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que

constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere

la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta

todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina

tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y

que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y

tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y

extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480

Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat

non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos

praebita coniecto rupit praecordia ferro

illa super terram defecto poplite labens

pertulit intrepidos ad fata novissima vultus

tunc quoque cura fuit partes velare tegendas

cum caderet casti que decus servare pudoris

10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos

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139

ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea

incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el

hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra

al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso

rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que

debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo

reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-

570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima

verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al

caer

ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών

ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta

con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque

moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura

ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo

La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste

en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten

de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los

aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin

vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan

en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a

la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de

Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe

proleacuteptica de los vv 483-485

teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx

regia dicta parens Asiae florentis imago

nunc etiam praedae mala sors

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140

ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada

regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo

incluso de un botiacutenrdquo

que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos

pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias

se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre

todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro

El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento

contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural

propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente

influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6

441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-

745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los

detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten

a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la

guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana

con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam

cecidisti) de Met 13 497-498

at te quia femina rebar

a ferro tutam cecidisti et femina ferro

ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer

has muerto por el hierrordquo

Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos

a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar

auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso

innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije

lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras

dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante

la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea

contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo

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141

insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado

de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748

οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου

ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de

los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo

Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio

confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no

responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en

Seacuteneca Contr 9 5 17

Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri

solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius

nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana

Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut

ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse

sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]

tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]

Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus

magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere

ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer

semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los

oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido

bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias

de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena

para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia

ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento

con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo

Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo

Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber

decir como saber dejar de decirrdquo

11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa

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142

pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel

forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado

esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado

orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo

perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met

13 505-520

iacet Ilion ingens

eventuque gravi finita est publica clades

sed finita tamen soli mihi Pergama restant

in cursuque meus dolor est modo maxima rerum

tot generis natisque potens nuribusque viroque

nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum

Penelopes munus quae me data pensa trahentem

matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est

clara parens haec est dicet Priameia coniunx

postque tot amissos tu nunc quae sola levabas

maternos luctus hostilia busta piasti

inferias hosti peperi quo ferrea resto

quidve moror quo me servas annosa senectus

quo di crudeles nisi uti nova funera cernam

vivacem differtis anum quis posse putaret

felicem Priamum post diruta Pergama dici

ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la

desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece

Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante

de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy

arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos

presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a

miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre

madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos

se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has

aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres

para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero

iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser

para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten

creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten

de Peacutergamordquo

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143

quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los

momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr

104-106 dice la abatida soberana

αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις

ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se

le han ido patria hijos y esposordquo

y continuacutea en 140-142

δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς

ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber

sido destruido mi poder lastimeramenterdquo

Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199

φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς

ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja

resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie

fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta

cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo

Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476

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144

ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν

ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores

no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo

y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y

descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el

sacrificio de Poliacutexena

οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα

ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa

de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por

la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de

polvo su desgraciada cabezardquo

Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba

como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513

ldquohaec Hectoris illa est

clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo

ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo

presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva

esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para

siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497

τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν

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145

κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν

ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer

esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez

me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la

que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un

camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir

este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para

los ricosrdquo

Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias

de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir

felix morte sua est nec te mea nata peremptam

adspicit et vitam pariter regnum que reliquit

ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute

a la vez la vida y el reinordquo

auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas

1312-1316

Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν

ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no

ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos

con impiacuteo deguumlellordquo

con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante

consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11

158-161

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146

tuque o sanctissima coniunx

felix morte tua neque in hunc seruata dolorem

contra ego uiuendo uici mea fata superstes

restarem ut genitor

ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada

para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para

sobrevir siendo su padrerdquo

La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye

el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda

no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten

de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen

a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha

recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que

se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna

llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute

portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se

repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate

Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610

σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός

ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del

mar traacuteela aquiacuterdquo

pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al

mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que

como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido

en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de

dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal

vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase

maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y

ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere

de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544

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205

Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio

Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12

surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo

Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida

do moccedilo do escritoacuterio

Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal

dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho

estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto

como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No

corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida

dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante

para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos

quentes

Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou

da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para

uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi

uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui

hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que

cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando

era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira

alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de

hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo

automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo

porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do

escritoacuterio foi-se embora

12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente

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206

Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino

sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute

copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da

escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em

mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a

trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu

Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13

Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco

do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio

para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo

Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos

acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao

moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa

claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as

indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a

Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-

Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa

a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria

cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade

narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente

delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando

Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar

de longo em tudo nos interessa

Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em

que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele

o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor

mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o

13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo

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207

homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias

alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara

nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se

considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me

com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele

laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do

seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o

senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz

de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa

cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute

quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas

pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum

de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem

seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este

ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou

largarraquo (91-92)16

E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para

comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute

que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao

preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua

dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite

pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo

garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17

Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor

Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas

hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a

16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)

17 Apud P D de Almeida 2008 156

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208

mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a

consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista

Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa

agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo

deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio

foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e

Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de

praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim

das traseirasrdquo (pp 21-22)

A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas

atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que

seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo

se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio

cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais

opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas

viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como

ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo

regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)

Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato

mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985

preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo

entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de

preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de

fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor

de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19

Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se

uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)

neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado

e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como

18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15

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209

em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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210

prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

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211

pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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212

Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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213

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Zenith Richard (ed) (2003) Livro do Desassossego 4ordf ed Lisboa Assiacuterio e Alvim

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334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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335

agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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336

da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

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339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

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341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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Page 7: & Transgressão II - digitalis.uc.pt · Carmen Soares Maria do Céu Fialho María Consuelo Alvarez Morán Rosa María Iglesias Montiel Coordenação • C O I M B R A 2 0 1 1 orma

7

cap iii- religiatildeo da greacutecia aos nossos dias

Adriana Nogueira

Quando a transgressatildeo eacute norma - a religiatildeo grega em progresso 252

Joseacute Ramos

Norma e transgressatildeo agrave luz do paradigma biacuteblico 265

Carlota Miranda Urbano

Ortodoxia e heterodoxia no iniacutecio da modernidade Poesia hagiograacutefica neolatina ao serviccedilo da apologeacutetica jesuiacutetica 289

cap iV- FilosoFia

Maria Luiacutesa Portocarrero

Norma transgressatildeo e traduccedilatildeo na filosofia praacutetica de P Ricoeur 307

cap V- geograFia

Norberto Santos

Desvios e regras nos territoacuterios do quotidiano 323

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9

preFaacutecio

Na sequecircncia do primeiro Coloacutequio Internacional sobre este tema

decorrido em 2006 o Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos e o

Instituto de Estudos Claacutessicos da Universidade de Coimbra com a colaboraccedilatildeo

da Universidade de Muacutercia organizaram um Coloacutequio Internacional dedicado

a ldquoNorma e transgressatildeordquo (II) no contexto do Projecto de Investigaccedilatildeo

Quadrienal ldquoPolisCosmopolisrdquo Decorreu nos dias 29 e 30 de Setembro de

2008 Teve como objectivo criar um espaccedilo de reflexatildeo dos modos diversos

como cada comunidade vive a sua proacutepria experiecircncia de identidade na

actividade regulamentadora e no gesto de quebra das suas regras bem

como numa posterior etapa na integraccedilatildeo de transgressotildees executadas

como um novo campo da sua proacutepria identidade expandida Esta dinacircmica

conduz agrave questatildeo das ldquofronteiras do eurdquo individual (local) e da comunidade

(global) que significa ser estranho e natildeo o ser ateacute que ponto a conexatildeo

tensa entre o normativo e o transgressivo constitui um processo determinante

no comportamento colectivo e individual pelo qual o ser humano aprende

avanccedila se compreende a si mesmo e compreende os outros

Tratou-se de um encontro de forte cariz transversal contando com

contributos das seguintes aacutereas de investigaccedilatildeo literaturas claacutessicas (grega

e latina) e modernas (anglo-americanas e germaniacutesticas) literatura biacuteblica

filosofia geografia e histoacuteria

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11

capIacutetulo i

Histoacuteria da antiguidade claacutessica

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69

vasos da Eacutepoca Arcaica Felizmente o corpus de vasos aacuteticos que nos chegou

eacute bastante extenso pelo que num trabalho de anaacutelise iconograacutefica o mais

simples e correcto eacute adoptar a metodologia dos especialistas que distinguem

as decoraccedilotildees inspiradas em episoacutedios mitoloacutegicos da representaccedilatildeo de

cenas da vida quotidiana

No primeiro grupo inscrevem-se episoacutedios da infacircncia de divindades

heroacuteis e heroiacutenas destacando-se o nascimento de Afrodite Apolo e Aacutertemis

Ascleacutepio Atena Dioacutenisos Erictoacutenio Helena Hermes e Zeus bem como

Aquiles entregue aos cuidados do centauro Quiacuteron e a proeza do bebeacute

Heacuteracles que ainda no berccedilo estrangulou duas serpentes Incluem-se

tambeacutem neste grupo as decoraccedilotildees inspiradas nos mitos de infanticiacutedio ou

exposiccedilatildeo como a vinganccedila de Medeia e de Procne o assassiacutenio de Astiacuteanax

depois da queda de Troacuteia Perseu lanccedilado ao mar dentro de uma arca e

Orestes ameaccedilado por Teacutelefo No que respeita agraves cenas da vida quotidiana

em traccedilos gerais podemos dizer que os artistas aacuteticos retratam todas as

experiecircncias que preenchem o dia-a-dia de uma crianccedila designadamente

as relaccedilotildees familiares e sociais a educaccedilatildeo e as brincadeiras

Do repertoacuterio de figuras negras sobre temas mitoloacutegicos merece destaque

o nascimento de Atena que foi dos temas mais ceacutelebres na arte da Eacutepoca

Arcaica em especial na ceracircmica aacutetica embora tenha continuado a ser

tratado durante o seacuteculo V aC surgindo em evidecircncia no centro do frontatildeo

oriental do Paacutertenon (Paus 1 24 5)

Conta Hesiacuteodo que a deusa fora concebida da uniatildeo de Zeus com Meacutetis

mas quando esta estava prestes a dar agrave luz o deus supremo engoliu-a uma

vez que Geia e Urano o tinham avisado de que dela nasceriam uma filha

saacutebia e corajosa como o pai e um filho de coraccedilatildeo orgulhoso que

ambicionaria o poder de Zeus (Teogonia 886-900 924-926) Segundo um

escoacutelio de Apoloacutenio de Rodes o poeta Estesiacutecoro de Hiacutemera (seacutec VII-VI

aC) foi ldquoo primeiro a afirmar que Atena saltara armada da cabeccedila de Zeusrdquo

O fragmento de um comentaacuterio transmitido por um papiro do seacuteculo II da

nossa era descoberto em Oxirrinco cita uma parte dos versos em que

Estesiacutecoro referia esse episoacutedio ldquo a resplandecer com as armasPalas

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lanccedilou-se para a terra vastardquo22 Assim eacute possiacutevel como se pensa que o

liacuterico da Siciacutelia tenha sido o responsaacutevel pela criaccedilatildeo literaacuteria deste tema

que teraacute igualmente grande fortuna na pintura de vasos23 Nem o escoacutelio

nem o fragmento que se preservou permitem esclarecer se no poema de

Estesiacutecoro a filha de Zeus nascia crianccedila ou adulta embora a segunda

hipoacutetese seja mais plausiacutevel visto que os dois textos sublinham o ardor

belicoso da deusa De acordo com a Oliacutempica VII de Piacutendaro (vv 35-38)

composta em 464 aC para Diaacutegoras de Rodes Hefestos fendeu a cabeccedila

de Zeus com um machado e ao erguer-se da fronte paterna Atena soltou

um grito de guerra fortiacutessimo do que se depreende embora o passo natildeo

seja expliacutecito que estava pronta a combater

Satildeo basicamente estes os dados miacuteticos que os artistas aacuteticos ilustram

Numa das representaccedilotildees mais antigas de um vaso atribuiacutedo ao Pintor C

conservado no Museu do Louvre do segundo quartel do seacuteculo VI aC

Zeus sentado no trono com o ceptro na matildeo direita e o raio na esquerda

ocupa o centro da cena e eacute assistido por seis divindades entre as quais se

encontram Hefestos (com o machado) Poseacuteidon (com o tridente) e as deusas

Ilitias que amparavam as parturientes Atena de elmo posto sai da cabeccedila

do pai preparada para combater com o escudo encostado ao peito e o

braccedilo direito erguido na posiccedilatildeo de arremessar a lanccedila (cf Hino Homeacuterico

a Atena 28 8-9) Apesar da estatura reduzida da receacutem-nascida nenhum

traccedilo sugere que o artista pretendia representar uma crianccedila24

Eacute este aspecto guerreiro e ofensivo da deusa a sair da cabeccedila de Zeus ndash

este habitualmente sentado no trono rodeado de vaacuterias divindades que o

22 Fr 56 Page = fr 233 PMG Vide D L Page (1962) Poetae Melici Graeci Oxford Clarendon Press D A Campbell (1991) Greek Lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and Others Cambridge Mass Harvard University Press 162-163

23 Na arte a representaccedilatildeo mais antiga segura do nascimento de Atena eacute documentada pelos relevos martelados em bronze descobertos em Oliacutempia (fragmentos de escudos) dos finais do seacuteculo VII ou da primeira metade do seacutec VI aC e preservados no seu Museu (B 1975d) cf T Carpenter 1991 71 e nordm 98

24 Exaleiptron (vaso para guardar perfumes e unguentos) triacutepode aacutetico de figuras negras atribuiacutedo ao Pintor C c 570-560 aC (Paris Museu do Louvre CA 616 ) Vide httpcommonswikimediaorgwikiFileExaleiptron_birth_Athena_Louvre_CA616jpg (acedido em 30112010)

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assistem ou sauacutedam a receacutem-nascida ndash que vamos encontrar nas decoraccedilotildees

de vasos de figuras negras atribuiacutedos ao Grupo E (c 560-540 aC) assim

chamado por ter sido o ateliecirc onde se formou o grande pintor Exeacutequias

Num conjunto relevante de acircnforas preservadas em diferentes museus este

esquema iconograacutefico manteacutem-se com ligeiras variaccedilotildees comprovando a

popularidade do tema na Eacutepoca Arcaica uma pequena Atena vestida com

um peplos e armada sai da cabeccedila de Zeus que sentado num trono elaborado

e com o raio na matildeo eacute assistido de cada lado por vaacuterias divindades Aleacutem

das Ilitias (uma ou duas) que erguem o braccedilo em sinal de auxiacutelio os deuses

normalmente trecircs satildeo identificados pelos adereccedilos proacuteprios e alternam em

cada vaso (Dioacutenisos Hermes Poseacuteidon Apolo Ares Hefestos) Sob o trono

de Zeus surge a figura reduzida de um homem ou de uma divindade alada25

Outros tratamentos do nascimento de Atena na pintura de vasos aacuteticos

retratam a deusa armada sobre os joelhos de Zeus (a partir de 550 aC) ou

junto do pai mas com aspecto de adulta figuraccedilatildeo que parece ter sido

adoptada por Fiacutedias no frontatildeo oriental do Paacutertenon26 A rejeiccedilatildeo da imagem

de Atena como crianccedila natildeo eacute caso uacutenico e relaciona-se com a complexa e

interessante questatildeo que diz respeito ao tratamento literaacuterio e iconograacutefico

do nascimento de deusas e heroiacutenas De facto regra geral (Aacutertemis parece

ser a excepccedilatildeo) estas vecircm ao mundo com formas adultas ao contraacuterio dos

25 Eg Berlim Staatliche Museen Antikensammlung 1699 vide R Vollkommer 2000 376 (fig 2) Boston Museum of Fine Arts 00330 vide S Blundell and M Williamson 1998 61 (fig 45) Munique Antikensammlungen 1382 New Haven Yale University Art Gallery 198322 vide J Neils amp J Oakley 2003 116 206-207 (cat 5) Paris Museu do Louvre F 32 vide httpcommonswikimediaorgwikiFileAmphora_birth_Athena_Louvre_F32jpg (acedido em 30112010) Viena Kunsthistorisches Museum IV 3596 Acircnforas da mesma oficina com variaccedilotildees deste esquema iconograacutefico eg Atena sem elmo e com o escudo eacute retratada sobre os joelhos de Zeus (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum L 250) sete divindades (Ilitia Heacuteracles Ares Apolo Poseacuteidon Hera e Hefestos) assistem ao nascimento sob o trono surgem duas figuras masculinas nuas (Londres The British Museum B 147) Zeus sentado num elaborado trono e uma minuacutescula Atena armada (elmo escudo e lanccedila) satildeo representados frontalmente acompanhados por Hermes Ares Ilitia e outra deusa (Richmond Virginia Museum of Fine Arts 6023) vide T Carpenter 1991 nordm 100 e httpwwwvmfastatevausCollectionsAncient_ArtBlack-figured_Amphora_60_23aspx (acedido em 30112010)

26 Sobre a iconografia do nascimento de Atena vide J Boardman 1974 37 216-217 e 1991b 102 H Cassimatis (1984) in LIMC II1 sv Athena pp 985-990 1021-1023 T Carpenter 1991 71-72 L Beaumont 1995 349-351 e 1998 76-77 R Vollkommer 2000 375-377

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deuses e heroacuteis como Apolo Dioacutenisos Heacuteracles Hermes e Aquiles que

natildeo soacute nascem bebeacutes como vivem episoacutedios ceacutelebres na infacircncia anunciando

as qualidades ou defeitos que os distinguem na idade adulta No entanto

quando os artistas gregos optavam por retratar as deusas e heroiacutenas apenas

como adultas ndash o caso de Afrodite que emerge das aacuteguas no esplendor da

sua beleza eacute paradigmaacutetico ndash natildeo estavam de facto a seguir uma convenccedilatildeo

pictoacuterica Como observou Lesley Beaumont este eacute possivelmente um caso

em que as expressotildees artiacutesticas reflectem a mentalidade vigente na Atenas

arcaica e claacutessica que atribuiacutea agrave crianccedila e agrave mulher um lugar inferior na

hierarquia social e as considerava menos capazes ser deusa eacute partilhar de

algum modo da fragilidade do elemento feminino mas ser deusa e crianccedila

eacute elevar essa fragilidade a uma escala inaceitaacutevel pelo que o mito na sua

expressatildeo literaacuteria e artiacutestica parece ter evitado a dificuldade que seria

conciliar a ideia de ldquodivinordquo com as concepccedilotildees predominantes de crianccedila

e mulher (1995 349-361 1998 80-93 especialmente)

O corpus de vasos aacuteticos de figuras negras que representam crianccedilas

humanas natildeo eacute significativo mas as cenas retratadas satildeo diversas e constituem

um contributo valioso para o estudo da infacircncia ateniense

Uma placa votiva de meados do seacutec VI aC mostra-nos o interior de um

lar onde uma mulher sentada num banco e apoiada numa mesa se entrega

a tarefas domeacutesticas possivelmente agrave tecelagem ou confecccedilatildeo de vestuaacuterio

A decoraccedilatildeo vistosa da sua indumentaacuteria eacute um elemento que sobressai e

contrasta com a figura nua que atraacutes de si vemos sentada no chatildeo entre

os moacuteveis O penteado e atitude indicam tratar-se de uma menina mas as

formas sobretudo as matildeos e pernas muito compridas natildeo satildeo proporcionais

nem harmoniosas27

Um leacutecito do mesmo periacuteodo evoca uma situaccedilatildeo provavelmente frequente

no quotidiano infantil mas tatildeo pouco representada no corpus de vasos

aacuteticos que sugeriu o nome do artista Tal como na peccedila anterior a figura

27 Placa votiva aacutetica de figuras negras c 560 aC (Atenas Museu da Acroacutepole 2525) Vide M Golden 1990 35 (fig 6) L Beaumont 2003 63 (ldquoa rare early representation of a female infantrdquo) H Foley 2003 118-119 (fig 7)

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73

central ndash um menino que tenta escapar aos accediloites de um homem e corre

para os braccedilos de uma mulher ndash apenas eacute identificada como crianccedila por

estar nua e ter metade do tamanho das restantes figuras A cena no seu

conjunto faz imediatamente pensar num menino ainda pequeno que foge

da sandaacutelia do pai e busca o afecto da matildee um tema adequado a um vaso

comum e muito usado em casa como recipiente para azeite28

Os autores destas imagens natildeo foram capazes de traccedilar a fisionomia

caracteriacutestica da crianccedila mas isso natildeo significa que os artistas aacuteticos desta

eacutepoca eram menos haacutebeis ou prestavam pouca atenccedilatildeo aos elementos mais

novos da poacutelis A placa votiva que comentaacutemos proveniente da acroacutepole

de Atenas natildeo eacute decerto um trabalho profissional e o vaso embora

interessante eacute atribuiacutedo a um pintor que J Boardman (1974 33) considera

um ldquoimitador sem talentordquo No entanto numa cena de despedida de guerreiros

que decora uma acircnfora atribuiacuteda ao referido Grupo E cujas obras satildeo muito

mais elaboradas a personagem de rosto masculino e formas musculadas

que se destaca do centro da composiccedilatildeo como no vaso anterior apenas eacute

identificada como um menino ou jovem por estar nu e ter metade do

tamanho das outras figuras29 Este exemplo pode sugerir que para os pintores

aacuteticos deste periacuteodo eram mais importantes as convenccedilotildees pictoacutericas ndash como

a nudez a altura e o tamanho dos mais pequenos ndash do que o realismo da

representaccedilatildeo

Uma placa (pinax) de terracota funeraacuteria com inscriccedilotildees do comeccedilo do

seacuteculo V aC pode corroborar esta hipoacutetese30 Numa composiccedilatildeo elaborada

que retrata o ritual de exposiccedilatildeo do corpo (prothesis) no qual participam

vaacuterios homens e mulheres estas mais proacuteximas do defunto distinguem-se

28 Leacutecito aacutetico de figuras negras pelo Pintor da Sandaacutelia (vaso epoacutenimo) c 550 aC (Bolonha Museo Civico Archeologico PU 204) Vide J Boardman 1974 nordm 43 M Golden 2003 26 (fig 5)

29 Acircnfora aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Grupo E c 560-540 aC (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum 247) Vide L Beaumont 2003 61 (fig 1)

30 Placa funeraacuteria aacutetica de terracota atribuiacuteda ao Pintor de Safo c 500-490 aC (Paris Museu do Louvre MNB 905) Vide J Boardman 1974 nordm 265 L Beaumont 2003 61-62 H Shapiro 2003 105 J Oakley 2003 164-165 (fig 3) httpenwikipediaorgwikiFilePinax_prothesis_Louvre_MNB905jpg (acedido em 30112010)

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74

trecircs figuras mais pequenas A mais baixa encontra-se no lado esquerdo

entre o grupo dos homens e o das mulheres e as roupas sugerem que se

trata de um menino talvez ainda pequeno pois apoia-se nas pernas do

leito fuacutenebre As outras duas de alturas distintas apenas diferem das

mulheres no tamanho (a inscriccedilatildeo identifica a menina mais baixa como irmatilde

do defunto) Assim esta peccedila aleacutem de documentar a participaccedilatildeo de crianccedilas

e jovens nas cerimoacutenias familiares e religiosas designadamente nos rituais

fuacutenebres um costume antigo jaacute atestado no estilo Geomeacutetrico indica que

o tamanho e a altura podiam ser os uacutenicos elementos convencionais a

distinguir uma crianccedila de uma pessoa mais velha

As imagens que comentaacutemos revelam-nos a intimidade dos lares atenienses

e os seus momentos mais dolorosos mas o repertoacuterio de figuras negras

tambeacutem contemplava os contactos com o exterior e situaccedilotildees mais alegres

Uma conhecida pelike atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides (c 500 aC) retrata

um menino a tirar medidas na loja do sapateiro na companhia do pai ou

do pedagogo31 A presenccedila deste elemento bem como o facto de a figura

mais pequena se encontrar em cima da mesa do artesatildeo e se apoiar na

cabeccedila deste sugerem que pode ser crianccedila embora as linhas do corpo natildeo

decircem essa impressatildeo Natildeo eacute claro de facto se o artista pretendia representar

um menino em idade escolar ou um rapaz mais velho

Finalmente merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de uma acircnfora

preservada em Estugarda que retrata trecircs jovens na companhia de um

homem provavelmente o pedagogo Enquanto uma delas anda de baloiccedilo

ndash uma actividade luacutedica que se relaciona provavelmente com um ritual

tambeacutem evocado na ceracircmica de figuras vermelhas32 ndash as outras cuidam de

duas crianccedilas mais pequenas Como nos vasos comentados anteriormente

31 Pelike aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides c 500 aC (Oxford Ashmolean Museum 563) Vide J Boardman 1974 nordm 229 M Golden 1990 29 (fig 2) M Vickers (1999) Ancient Greek Pottery Oxford Ashmoleum Museum 35 (nordm 23) J Neils amp J Oakley 2003 100 242 (cat 43)

32 O ritual da Aiora (ldquobaloiccedilordquo) era praticado por jovens em memoacuteria da jovem Eriacutegone que se suicidara apoacutes o assassiacutenio de seu pai Cf H Shapiro 2003 103-104 (fig 189) J Neils 2003 147 149 (fig 8) J Neils amp J Oakley 2003 288 (cat 102)

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75

estas satildeo facilmente identificadas pelo tamanho reduzido mas as suas formas

grosseiras contrastam com o desenho mais elegante com que o artista

representou as donzelas33

O cataacutelogo aacutetico de figuras vermelhas eacute muito mais rico e difiacutecil de

seleccionar tanto no domiacutenio dos temas mitoloacutegicos quanto no das cenas

inspiradas na vida quotidiana nas quais nos vamos deter e eacute evidente

tambeacutem que a qualidade das peccedilas e a forma de retratar as crianccedilas varia

consideravelmente

As cenas de escola constituem uma das principais novidades desta teacutecnica

e uma das obras mais belas eacute sem duacutevida a ceacutelebre taccedila assinada por Duacuteris

no princiacutepio do seacuteculo V aC e preservada em Berlim34 Decorada no exterior

com as liccedilotildees dos mestres de muacutesica (kitharistes) e de letras (grammatistes)

sob o olhar vigilante do pedagogo estas imagens satildeo certamente um

testemunho da importacircncia crescente da literacia no dealbar da Eacutepoca

Claacutessica No seacuteculo V aC em Atenas normalmente a partir dos sete anos

os meninos iniciavam a instruccedilatildeo baacutesica no exterior enquanto as meninas

continuavam em casa e aprendiam a gerir o lar junto da matildee e das escravas

Apesar da qualidade extraordinaacuteria da taccedila de Duacuteris a idade dos alunos

retratados nestas cenas natildeo eacute facilmente perceptiacutevel pois o principal traccedilo

que os distingue dos adultos eacute a estatura menor

Um dos grandes contributos das figuras vermelhas para o estudo da

infacircncia ateniense eacute o interesse que dedica aos afectos familiares e agraves

diferentes fases da vida de uma crianccedila tema que adquire cada vez mais

importacircncia ao longo do seacuteculo V aC Assim as cenas de gineceu tornam-se

muito mais correntes e se natildeo raras vezes mostram os preparativos do

casamento ou os cuidados com o corpo dos elementos femininos as crianccedilas

passam a estar cada vez mais presentes e constituem mesmo o tema principal

33 Estugarda Wuumlrttembergisches Landesmuseum 651 Vide M Golden 1990 34 (fig 5)34 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas assinada por Duacuteris c 490-480 aC (Berlim Staatliche

Museen Antikensammlung F 2285) Vide J Boardman 1975 nordm 289 J Neils amp J Oakley 2003 66 244-246 (cat 44) httpwwwmlahanasdeGreeksLXBerlinF2285html (acedido em 30112010)

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76

da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a

brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas

Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos

do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da

crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito

atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de

uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos

uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um

olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila

lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode

ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar

da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir

de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam

a descobrir o que as rodeia35

Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a

imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a

um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica

de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada

de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o

rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de

perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um

soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da

crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o

cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo

nem a atitude satildeo inteiramente naturais

35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)

36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)

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77

Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou

perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37

Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no

chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma

mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais

velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo

esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo

aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a

matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude

que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o

do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo

mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo

destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego

do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados

ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora

aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa

Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38

Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados

a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos

mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica

aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)

que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que

recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um

fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em

37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)

38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)

39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006

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1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena

harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para

a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza

de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude

desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo

da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua

frente satildeo claramente as de um bebeacute

Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero

crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a

cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos

de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava

a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa

alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia

e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde

a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos

exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de

c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no

centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada

numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma

escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa

sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica

por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria

muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade

sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina

Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420

40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)

41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)

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137

el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides

eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto

pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es

precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13

467-469

acceptior illi

quisquis is est quem caede mea placare paratis

liber erit sanguisque

ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os

disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo

versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima

tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha

mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est

(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava

se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo

donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una

princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son

palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las

Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus

ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la

tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten

de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en

una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo

devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de

Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada

por ella vv 469-473

siquos tamen ultima nostri

verba movent oris Priami vos filia regis

non captiva rogat genetrici corpus inemptum

reddite neve auro redimat ius triste sepulcri

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138

sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro

ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega

la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo

sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro

con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea

tambieacuten lo pagaba con orordquo

No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de

forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes

padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar

el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples

presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En

este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que

Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su

madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba

del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una

madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que

constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere

la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta

todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina

tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y

que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y

tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y

extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480

Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat

non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos

praebita coniecto rupit praecordia ferro

illa super terram defecto poplite labens

pertulit intrepidos ad fata novissima vultus

tunc quoque cura fuit partes velare tegendas

cum caderet casti que decus servare pudoris

10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos

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139

ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea

incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el

hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra

al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso

rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que

debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo

reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-

570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima

verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al

caer

ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών

ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta

con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque

moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura

ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo

La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste

en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten

de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los

aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin

vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan

en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a

la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de

Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe

proleacuteptica de los vv 483-485

teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx

regia dicta parens Asiae florentis imago

nunc etiam praedae mala sors

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140

ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada

regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo

incluso de un botiacutenrdquo

que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos

pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias

se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre

todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro

El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento

contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural

propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente

influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6

441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-

745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los

detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten

a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la

guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana

con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam

cecidisti) de Met 13 497-498

at te quia femina rebar

a ferro tutam cecidisti et femina ferro

ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer

has muerto por el hierrordquo

Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos

a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar

auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso

innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije

lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras

dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante

la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea

contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo

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141

insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado

de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748

οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου

ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de

los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo

Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio

confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no

responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en

Seacuteneca Contr 9 5 17

Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri

solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius

nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana

Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut

ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse

sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]

tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]

Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus

magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere

ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer

semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los

oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido

bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias

de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena

para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia

ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento

con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo

Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo

Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber

decir como saber dejar de decirrdquo

11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa

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142

pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel

forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado

esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado

orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo

perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met

13 505-520

iacet Ilion ingens

eventuque gravi finita est publica clades

sed finita tamen soli mihi Pergama restant

in cursuque meus dolor est modo maxima rerum

tot generis natisque potens nuribusque viroque

nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum

Penelopes munus quae me data pensa trahentem

matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est

clara parens haec est dicet Priameia coniunx

postque tot amissos tu nunc quae sola levabas

maternos luctus hostilia busta piasti

inferias hosti peperi quo ferrea resto

quidve moror quo me servas annosa senectus

quo di crudeles nisi uti nova funera cernam

vivacem differtis anum quis posse putaret

felicem Priamum post diruta Pergama dici

ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la

desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece

Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante

de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy

arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos

presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a

miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre

madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos

se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has

aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres

para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero

iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser

para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten

creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten

de Peacutergamordquo

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143

quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los

momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr

104-106 dice la abatida soberana

αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις

ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se

le han ido patria hijos y esposordquo

y continuacutea en 140-142

δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς

ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber

sido destruido mi poder lastimeramenterdquo

Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199

φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς

ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja

resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie

fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta

cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo

Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476

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144

ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν

ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores

no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo

y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y

descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el

sacrificio de Poliacutexena

οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα

ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa

de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por

la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de

polvo su desgraciada cabezardquo

Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba

como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513

ldquohaec Hectoris illa est

clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo

ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo

presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva

esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para

siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497

τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν

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145

κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν

ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer

esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez

me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la

que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un

camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir

este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para

los ricosrdquo

Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias

de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir

felix morte sua est nec te mea nata peremptam

adspicit et vitam pariter regnum que reliquit

ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute

a la vez la vida y el reinordquo

auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas

1312-1316

Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν

ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no

ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos

con impiacuteo deguumlellordquo

con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante

consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11

158-161

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146

tuque o sanctissima coniunx

felix morte tua neque in hunc seruata dolorem

contra ego uiuendo uici mea fata superstes

restarem ut genitor

ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada

para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para

sobrevir siendo su padrerdquo

La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye

el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda

no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten

de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen

a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha

recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que

se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna

llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute

portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se

repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate

Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610

σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός

ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del

mar traacuteela aquiacuterdquo

pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al

mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que

como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido

en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de

dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal

vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase

maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y

ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere

de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544

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205

Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio

Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12

surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo

Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida

do moccedilo do escritoacuterio

Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal

dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho

estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto

como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No

corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida

dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante

para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos

quentes

Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou

da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para

uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi

uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui

hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que

cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando

era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira

alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de

hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo

automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo

porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do

escritoacuterio foi-se embora

12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente

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206

Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino

sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute

copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da

escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em

mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a

trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu

Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13

Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco

do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio

para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo

Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos

acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao

moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa

claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as

indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a

Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-

Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa

a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria

cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade

narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente

delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando

Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar

de longo em tudo nos interessa

Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em

que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele

o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor

mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o

13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo

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207

homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias

alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara

nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se

considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me

com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele

laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do

seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o

senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz

de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa

cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute

quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas

pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum

de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem

seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este

ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou

largarraquo (91-92)16

E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para

comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute

que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao

preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua

dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite

pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo

garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17

Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor

Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas

hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a

16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)

17 Apud P D de Almeida 2008 156

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208

mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a

consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista

Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa

agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo

deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio

foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e

Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de

praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim

das traseirasrdquo (pp 21-22)

A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas

atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que

seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo

se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio

cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais

opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas

viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como

ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo

regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)

Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato

mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985

preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo

entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de

preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de

fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor

de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19

Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se

uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)

neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado

e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como

18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15

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209

em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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210

prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

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211

pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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212

Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

Obra protegida por direitos de autor

213

Bibliografia

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Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

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as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

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340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

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o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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9

preFaacutecio

Na sequecircncia do primeiro Coloacutequio Internacional sobre este tema

decorrido em 2006 o Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos e o

Instituto de Estudos Claacutessicos da Universidade de Coimbra com a colaboraccedilatildeo

da Universidade de Muacutercia organizaram um Coloacutequio Internacional dedicado

a ldquoNorma e transgressatildeordquo (II) no contexto do Projecto de Investigaccedilatildeo

Quadrienal ldquoPolisCosmopolisrdquo Decorreu nos dias 29 e 30 de Setembro de

2008 Teve como objectivo criar um espaccedilo de reflexatildeo dos modos diversos

como cada comunidade vive a sua proacutepria experiecircncia de identidade na

actividade regulamentadora e no gesto de quebra das suas regras bem

como numa posterior etapa na integraccedilatildeo de transgressotildees executadas

como um novo campo da sua proacutepria identidade expandida Esta dinacircmica

conduz agrave questatildeo das ldquofronteiras do eurdquo individual (local) e da comunidade

(global) que significa ser estranho e natildeo o ser ateacute que ponto a conexatildeo

tensa entre o normativo e o transgressivo constitui um processo determinante

no comportamento colectivo e individual pelo qual o ser humano aprende

avanccedila se compreende a si mesmo e compreende os outros

Tratou-se de um encontro de forte cariz transversal contando com

contributos das seguintes aacutereas de investigaccedilatildeo literaturas claacutessicas (grega

e latina) e modernas (anglo-americanas e germaniacutesticas) literatura biacuteblica

filosofia geografia e histoacuteria

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11

capIacutetulo i

Histoacuteria da antiguidade claacutessica

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69

vasos da Eacutepoca Arcaica Felizmente o corpus de vasos aacuteticos que nos chegou

eacute bastante extenso pelo que num trabalho de anaacutelise iconograacutefica o mais

simples e correcto eacute adoptar a metodologia dos especialistas que distinguem

as decoraccedilotildees inspiradas em episoacutedios mitoloacutegicos da representaccedilatildeo de

cenas da vida quotidiana

No primeiro grupo inscrevem-se episoacutedios da infacircncia de divindades

heroacuteis e heroiacutenas destacando-se o nascimento de Afrodite Apolo e Aacutertemis

Ascleacutepio Atena Dioacutenisos Erictoacutenio Helena Hermes e Zeus bem como

Aquiles entregue aos cuidados do centauro Quiacuteron e a proeza do bebeacute

Heacuteracles que ainda no berccedilo estrangulou duas serpentes Incluem-se

tambeacutem neste grupo as decoraccedilotildees inspiradas nos mitos de infanticiacutedio ou

exposiccedilatildeo como a vinganccedila de Medeia e de Procne o assassiacutenio de Astiacuteanax

depois da queda de Troacuteia Perseu lanccedilado ao mar dentro de uma arca e

Orestes ameaccedilado por Teacutelefo No que respeita agraves cenas da vida quotidiana

em traccedilos gerais podemos dizer que os artistas aacuteticos retratam todas as

experiecircncias que preenchem o dia-a-dia de uma crianccedila designadamente

as relaccedilotildees familiares e sociais a educaccedilatildeo e as brincadeiras

Do repertoacuterio de figuras negras sobre temas mitoloacutegicos merece destaque

o nascimento de Atena que foi dos temas mais ceacutelebres na arte da Eacutepoca

Arcaica em especial na ceracircmica aacutetica embora tenha continuado a ser

tratado durante o seacuteculo V aC surgindo em evidecircncia no centro do frontatildeo

oriental do Paacutertenon (Paus 1 24 5)

Conta Hesiacuteodo que a deusa fora concebida da uniatildeo de Zeus com Meacutetis

mas quando esta estava prestes a dar agrave luz o deus supremo engoliu-a uma

vez que Geia e Urano o tinham avisado de que dela nasceriam uma filha

saacutebia e corajosa como o pai e um filho de coraccedilatildeo orgulhoso que

ambicionaria o poder de Zeus (Teogonia 886-900 924-926) Segundo um

escoacutelio de Apoloacutenio de Rodes o poeta Estesiacutecoro de Hiacutemera (seacutec VII-VI

aC) foi ldquoo primeiro a afirmar que Atena saltara armada da cabeccedila de Zeusrdquo

O fragmento de um comentaacuterio transmitido por um papiro do seacuteculo II da

nossa era descoberto em Oxirrinco cita uma parte dos versos em que

Estesiacutecoro referia esse episoacutedio ldquo a resplandecer com as armasPalas

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lanccedilou-se para a terra vastardquo22 Assim eacute possiacutevel como se pensa que o

liacuterico da Siciacutelia tenha sido o responsaacutevel pela criaccedilatildeo literaacuteria deste tema

que teraacute igualmente grande fortuna na pintura de vasos23 Nem o escoacutelio

nem o fragmento que se preservou permitem esclarecer se no poema de

Estesiacutecoro a filha de Zeus nascia crianccedila ou adulta embora a segunda

hipoacutetese seja mais plausiacutevel visto que os dois textos sublinham o ardor

belicoso da deusa De acordo com a Oliacutempica VII de Piacutendaro (vv 35-38)

composta em 464 aC para Diaacutegoras de Rodes Hefestos fendeu a cabeccedila

de Zeus com um machado e ao erguer-se da fronte paterna Atena soltou

um grito de guerra fortiacutessimo do que se depreende embora o passo natildeo

seja expliacutecito que estava pronta a combater

Satildeo basicamente estes os dados miacuteticos que os artistas aacuteticos ilustram

Numa das representaccedilotildees mais antigas de um vaso atribuiacutedo ao Pintor C

conservado no Museu do Louvre do segundo quartel do seacuteculo VI aC

Zeus sentado no trono com o ceptro na matildeo direita e o raio na esquerda

ocupa o centro da cena e eacute assistido por seis divindades entre as quais se

encontram Hefestos (com o machado) Poseacuteidon (com o tridente) e as deusas

Ilitias que amparavam as parturientes Atena de elmo posto sai da cabeccedila

do pai preparada para combater com o escudo encostado ao peito e o

braccedilo direito erguido na posiccedilatildeo de arremessar a lanccedila (cf Hino Homeacuterico

a Atena 28 8-9) Apesar da estatura reduzida da receacutem-nascida nenhum

traccedilo sugere que o artista pretendia representar uma crianccedila24

Eacute este aspecto guerreiro e ofensivo da deusa a sair da cabeccedila de Zeus ndash

este habitualmente sentado no trono rodeado de vaacuterias divindades que o

22 Fr 56 Page = fr 233 PMG Vide D L Page (1962) Poetae Melici Graeci Oxford Clarendon Press D A Campbell (1991) Greek Lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and Others Cambridge Mass Harvard University Press 162-163

23 Na arte a representaccedilatildeo mais antiga segura do nascimento de Atena eacute documentada pelos relevos martelados em bronze descobertos em Oliacutempia (fragmentos de escudos) dos finais do seacuteculo VII ou da primeira metade do seacutec VI aC e preservados no seu Museu (B 1975d) cf T Carpenter 1991 71 e nordm 98

24 Exaleiptron (vaso para guardar perfumes e unguentos) triacutepode aacutetico de figuras negras atribuiacutedo ao Pintor C c 570-560 aC (Paris Museu do Louvre CA 616 ) Vide httpcommonswikimediaorgwikiFileExaleiptron_birth_Athena_Louvre_CA616jpg (acedido em 30112010)

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assistem ou sauacutedam a receacutem-nascida ndash que vamos encontrar nas decoraccedilotildees

de vasos de figuras negras atribuiacutedos ao Grupo E (c 560-540 aC) assim

chamado por ter sido o ateliecirc onde se formou o grande pintor Exeacutequias

Num conjunto relevante de acircnforas preservadas em diferentes museus este

esquema iconograacutefico manteacutem-se com ligeiras variaccedilotildees comprovando a

popularidade do tema na Eacutepoca Arcaica uma pequena Atena vestida com

um peplos e armada sai da cabeccedila de Zeus que sentado num trono elaborado

e com o raio na matildeo eacute assistido de cada lado por vaacuterias divindades Aleacutem

das Ilitias (uma ou duas) que erguem o braccedilo em sinal de auxiacutelio os deuses

normalmente trecircs satildeo identificados pelos adereccedilos proacuteprios e alternam em

cada vaso (Dioacutenisos Hermes Poseacuteidon Apolo Ares Hefestos) Sob o trono

de Zeus surge a figura reduzida de um homem ou de uma divindade alada25

Outros tratamentos do nascimento de Atena na pintura de vasos aacuteticos

retratam a deusa armada sobre os joelhos de Zeus (a partir de 550 aC) ou

junto do pai mas com aspecto de adulta figuraccedilatildeo que parece ter sido

adoptada por Fiacutedias no frontatildeo oriental do Paacutertenon26 A rejeiccedilatildeo da imagem

de Atena como crianccedila natildeo eacute caso uacutenico e relaciona-se com a complexa e

interessante questatildeo que diz respeito ao tratamento literaacuterio e iconograacutefico

do nascimento de deusas e heroiacutenas De facto regra geral (Aacutertemis parece

ser a excepccedilatildeo) estas vecircm ao mundo com formas adultas ao contraacuterio dos

25 Eg Berlim Staatliche Museen Antikensammlung 1699 vide R Vollkommer 2000 376 (fig 2) Boston Museum of Fine Arts 00330 vide S Blundell and M Williamson 1998 61 (fig 45) Munique Antikensammlungen 1382 New Haven Yale University Art Gallery 198322 vide J Neils amp J Oakley 2003 116 206-207 (cat 5) Paris Museu do Louvre F 32 vide httpcommonswikimediaorgwikiFileAmphora_birth_Athena_Louvre_F32jpg (acedido em 30112010) Viena Kunsthistorisches Museum IV 3596 Acircnforas da mesma oficina com variaccedilotildees deste esquema iconograacutefico eg Atena sem elmo e com o escudo eacute retratada sobre os joelhos de Zeus (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum L 250) sete divindades (Ilitia Heacuteracles Ares Apolo Poseacuteidon Hera e Hefestos) assistem ao nascimento sob o trono surgem duas figuras masculinas nuas (Londres The British Museum B 147) Zeus sentado num elaborado trono e uma minuacutescula Atena armada (elmo escudo e lanccedila) satildeo representados frontalmente acompanhados por Hermes Ares Ilitia e outra deusa (Richmond Virginia Museum of Fine Arts 6023) vide T Carpenter 1991 nordm 100 e httpwwwvmfastatevausCollectionsAncient_ArtBlack-figured_Amphora_60_23aspx (acedido em 30112010)

26 Sobre a iconografia do nascimento de Atena vide J Boardman 1974 37 216-217 e 1991b 102 H Cassimatis (1984) in LIMC II1 sv Athena pp 985-990 1021-1023 T Carpenter 1991 71-72 L Beaumont 1995 349-351 e 1998 76-77 R Vollkommer 2000 375-377

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deuses e heroacuteis como Apolo Dioacutenisos Heacuteracles Hermes e Aquiles que

natildeo soacute nascem bebeacutes como vivem episoacutedios ceacutelebres na infacircncia anunciando

as qualidades ou defeitos que os distinguem na idade adulta No entanto

quando os artistas gregos optavam por retratar as deusas e heroiacutenas apenas

como adultas ndash o caso de Afrodite que emerge das aacuteguas no esplendor da

sua beleza eacute paradigmaacutetico ndash natildeo estavam de facto a seguir uma convenccedilatildeo

pictoacuterica Como observou Lesley Beaumont este eacute possivelmente um caso

em que as expressotildees artiacutesticas reflectem a mentalidade vigente na Atenas

arcaica e claacutessica que atribuiacutea agrave crianccedila e agrave mulher um lugar inferior na

hierarquia social e as considerava menos capazes ser deusa eacute partilhar de

algum modo da fragilidade do elemento feminino mas ser deusa e crianccedila

eacute elevar essa fragilidade a uma escala inaceitaacutevel pelo que o mito na sua

expressatildeo literaacuteria e artiacutestica parece ter evitado a dificuldade que seria

conciliar a ideia de ldquodivinordquo com as concepccedilotildees predominantes de crianccedila

e mulher (1995 349-361 1998 80-93 especialmente)

O corpus de vasos aacuteticos de figuras negras que representam crianccedilas

humanas natildeo eacute significativo mas as cenas retratadas satildeo diversas e constituem

um contributo valioso para o estudo da infacircncia ateniense

Uma placa votiva de meados do seacutec VI aC mostra-nos o interior de um

lar onde uma mulher sentada num banco e apoiada numa mesa se entrega

a tarefas domeacutesticas possivelmente agrave tecelagem ou confecccedilatildeo de vestuaacuterio

A decoraccedilatildeo vistosa da sua indumentaacuteria eacute um elemento que sobressai e

contrasta com a figura nua que atraacutes de si vemos sentada no chatildeo entre

os moacuteveis O penteado e atitude indicam tratar-se de uma menina mas as

formas sobretudo as matildeos e pernas muito compridas natildeo satildeo proporcionais

nem harmoniosas27

Um leacutecito do mesmo periacuteodo evoca uma situaccedilatildeo provavelmente frequente

no quotidiano infantil mas tatildeo pouco representada no corpus de vasos

aacuteticos que sugeriu o nome do artista Tal como na peccedila anterior a figura

27 Placa votiva aacutetica de figuras negras c 560 aC (Atenas Museu da Acroacutepole 2525) Vide M Golden 1990 35 (fig 6) L Beaumont 2003 63 (ldquoa rare early representation of a female infantrdquo) H Foley 2003 118-119 (fig 7)

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central ndash um menino que tenta escapar aos accediloites de um homem e corre

para os braccedilos de uma mulher ndash apenas eacute identificada como crianccedila por

estar nua e ter metade do tamanho das restantes figuras A cena no seu

conjunto faz imediatamente pensar num menino ainda pequeno que foge

da sandaacutelia do pai e busca o afecto da matildee um tema adequado a um vaso

comum e muito usado em casa como recipiente para azeite28

Os autores destas imagens natildeo foram capazes de traccedilar a fisionomia

caracteriacutestica da crianccedila mas isso natildeo significa que os artistas aacuteticos desta

eacutepoca eram menos haacutebeis ou prestavam pouca atenccedilatildeo aos elementos mais

novos da poacutelis A placa votiva que comentaacutemos proveniente da acroacutepole

de Atenas natildeo eacute decerto um trabalho profissional e o vaso embora

interessante eacute atribuiacutedo a um pintor que J Boardman (1974 33) considera

um ldquoimitador sem talentordquo No entanto numa cena de despedida de guerreiros

que decora uma acircnfora atribuiacuteda ao referido Grupo E cujas obras satildeo muito

mais elaboradas a personagem de rosto masculino e formas musculadas

que se destaca do centro da composiccedilatildeo como no vaso anterior apenas eacute

identificada como um menino ou jovem por estar nu e ter metade do

tamanho das outras figuras29 Este exemplo pode sugerir que para os pintores

aacuteticos deste periacuteodo eram mais importantes as convenccedilotildees pictoacutericas ndash como

a nudez a altura e o tamanho dos mais pequenos ndash do que o realismo da

representaccedilatildeo

Uma placa (pinax) de terracota funeraacuteria com inscriccedilotildees do comeccedilo do

seacuteculo V aC pode corroborar esta hipoacutetese30 Numa composiccedilatildeo elaborada

que retrata o ritual de exposiccedilatildeo do corpo (prothesis) no qual participam

vaacuterios homens e mulheres estas mais proacuteximas do defunto distinguem-se

28 Leacutecito aacutetico de figuras negras pelo Pintor da Sandaacutelia (vaso epoacutenimo) c 550 aC (Bolonha Museo Civico Archeologico PU 204) Vide J Boardman 1974 nordm 43 M Golden 2003 26 (fig 5)

29 Acircnfora aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Grupo E c 560-540 aC (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum 247) Vide L Beaumont 2003 61 (fig 1)

30 Placa funeraacuteria aacutetica de terracota atribuiacuteda ao Pintor de Safo c 500-490 aC (Paris Museu do Louvre MNB 905) Vide J Boardman 1974 nordm 265 L Beaumont 2003 61-62 H Shapiro 2003 105 J Oakley 2003 164-165 (fig 3) httpenwikipediaorgwikiFilePinax_prothesis_Louvre_MNB905jpg (acedido em 30112010)

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trecircs figuras mais pequenas A mais baixa encontra-se no lado esquerdo

entre o grupo dos homens e o das mulheres e as roupas sugerem que se

trata de um menino talvez ainda pequeno pois apoia-se nas pernas do

leito fuacutenebre As outras duas de alturas distintas apenas diferem das

mulheres no tamanho (a inscriccedilatildeo identifica a menina mais baixa como irmatilde

do defunto) Assim esta peccedila aleacutem de documentar a participaccedilatildeo de crianccedilas

e jovens nas cerimoacutenias familiares e religiosas designadamente nos rituais

fuacutenebres um costume antigo jaacute atestado no estilo Geomeacutetrico indica que

o tamanho e a altura podiam ser os uacutenicos elementos convencionais a

distinguir uma crianccedila de uma pessoa mais velha

As imagens que comentaacutemos revelam-nos a intimidade dos lares atenienses

e os seus momentos mais dolorosos mas o repertoacuterio de figuras negras

tambeacutem contemplava os contactos com o exterior e situaccedilotildees mais alegres

Uma conhecida pelike atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides (c 500 aC) retrata

um menino a tirar medidas na loja do sapateiro na companhia do pai ou

do pedagogo31 A presenccedila deste elemento bem como o facto de a figura

mais pequena se encontrar em cima da mesa do artesatildeo e se apoiar na

cabeccedila deste sugerem que pode ser crianccedila embora as linhas do corpo natildeo

decircem essa impressatildeo Natildeo eacute claro de facto se o artista pretendia representar

um menino em idade escolar ou um rapaz mais velho

Finalmente merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de uma acircnfora

preservada em Estugarda que retrata trecircs jovens na companhia de um

homem provavelmente o pedagogo Enquanto uma delas anda de baloiccedilo

ndash uma actividade luacutedica que se relaciona provavelmente com um ritual

tambeacutem evocado na ceracircmica de figuras vermelhas32 ndash as outras cuidam de

duas crianccedilas mais pequenas Como nos vasos comentados anteriormente

31 Pelike aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides c 500 aC (Oxford Ashmolean Museum 563) Vide J Boardman 1974 nordm 229 M Golden 1990 29 (fig 2) M Vickers (1999) Ancient Greek Pottery Oxford Ashmoleum Museum 35 (nordm 23) J Neils amp J Oakley 2003 100 242 (cat 43)

32 O ritual da Aiora (ldquobaloiccedilordquo) era praticado por jovens em memoacuteria da jovem Eriacutegone que se suicidara apoacutes o assassiacutenio de seu pai Cf H Shapiro 2003 103-104 (fig 189) J Neils 2003 147 149 (fig 8) J Neils amp J Oakley 2003 288 (cat 102)

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estas satildeo facilmente identificadas pelo tamanho reduzido mas as suas formas

grosseiras contrastam com o desenho mais elegante com que o artista

representou as donzelas33

O cataacutelogo aacutetico de figuras vermelhas eacute muito mais rico e difiacutecil de

seleccionar tanto no domiacutenio dos temas mitoloacutegicos quanto no das cenas

inspiradas na vida quotidiana nas quais nos vamos deter e eacute evidente

tambeacutem que a qualidade das peccedilas e a forma de retratar as crianccedilas varia

consideravelmente

As cenas de escola constituem uma das principais novidades desta teacutecnica

e uma das obras mais belas eacute sem duacutevida a ceacutelebre taccedila assinada por Duacuteris

no princiacutepio do seacuteculo V aC e preservada em Berlim34 Decorada no exterior

com as liccedilotildees dos mestres de muacutesica (kitharistes) e de letras (grammatistes)

sob o olhar vigilante do pedagogo estas imagens satildeo certamente um

testemunho da importacircncia crescente da literacia no dealbar da Eacutepoca

Claacutessica No seacuteculo V aC em Atenas normalmente a partir dos sete anos

os meninos iniciavam a instruccedilatildeo baacutesica no exterior enquanto as meninas

continuavam em casa e aprendiam a gerir o lar junto da matildee e das escravas

Apesar da qualidade extraordinaacuteria da taccedila de Duacuteris a idade dos alunos

retratados nestas cenas natildeo eacute facilmente perceptiacutevel pois o principal traccedilo

que os distingue dos adultos eacute a estatura menor

Um dos grandes contributos das figuras vermelhas para o estudo da

infacircncia ateniense eacute o interesse que dedica aos afectos familiares e agraves

diferentes fases da vida de uma crianccedila tema que adquire cada vez mais

importacircncia ao longo do seacuteculo V aC Assim as cenas de gineceu tornam-se

muito mais correntes e se natildeo raras vezes mostram os preparativos do

casamento ou os cuidados com o corpo dos elementos femininos as crianccedilas

passam a estar cada vez mais presentes e constituem mesmo o tema principal

33 Estugarda Wuumlrttembergisches Landesmuseum 651 Vide M Golden 1990 34 (fig 5)34 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas assinada por Duacuteris c 490-480 aC (Berlim Staatliche

Museen Antikensammlung F 2285) Vide J Boardman 1975 nordm 289 J Neils amp J Oakley 2003 66 244-246 (cat 44) httpwwwmlahanasdeGreeksLXBerlinF2285html (acedido em 30112010)

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76

da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a

brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas

Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos

do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da

crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito

atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de

uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos

uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um

olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila

lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode

ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar

da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir

de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam

a descobrir o que as rodeia35

Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a

imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a

um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica

de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada

de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o

rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de

perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um

soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da

crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o

cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo

nem a atitude satildeo inteiramente naturais

35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)

36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)

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77

Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou

perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37

Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no

chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma

mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais

velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo

esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo

aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a

matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude

que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o

do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo

mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo

destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego

do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados

ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora

aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa

Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38

Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados

a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos

mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica

aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)

que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que

recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um

fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em

37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)

38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)

39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006

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78

1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena

harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para

a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza

de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude

desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo

da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua

frente satildeo claramente as de um bebeacute

Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero

crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a

cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos

de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava

a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa

alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia

e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde

a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos

exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de

c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no

centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada

numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma

escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa

sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica

por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria

muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade

sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina

Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420

40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)

41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)

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137

el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides

eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto

pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es

precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13

467-469

acceptior illi

quisquis is est quem caede mea placare paratis

liber erit sanguisque

ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os

disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo

versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima

tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha

mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est

(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava

se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo

donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una

princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son

palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las

Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus

ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la

tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten

de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en

una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo

devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de

Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada

por ella vv 469-473

siquos tamen ultima nostri

verba movent oris Priami vos filia regis

non captiva rogat genetrici corpus inemptum

reddite neve auro redimat ius triste sepulcri

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138

sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro

ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega

la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo

sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro

con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea

tambieacuten lo pagaba con orordquo

No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de

forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes

padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar

el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples

presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En

este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que

Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su

madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba

del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una

madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que

constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere

la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta

todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina

tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y

que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y

tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y

extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480

Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat

non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos

praebita coniecto rupit praecordia ferro

illa super terram defecto poplite labens

pertulit intrepidos ad fata novissima vultus

tunc quoque cura fuit partes velare tegendas

cum caderet casti que decus servare pudoris

10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos

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139

ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea

incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el

hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra

al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso

rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que

debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo

reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-

570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima

verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al

caer

ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών

ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta

con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque

moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura

ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo

La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste

en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten

de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los

aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin

vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan

en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a

la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de

Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe

proleacuteptica de los vv 483-485

teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx

regia dicta parens Asiae florentis imago

nunc etiam praedae mala sors

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140

ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada

regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo

incluso de un botiacutenrdquo

que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos

pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias

se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre

todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro

El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento

contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural

propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente

influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6

441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-

745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los

detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten

a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la

guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana

con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam

cecidisti) de Met 13 497-498

at te quia femina rebar

a ferro tutam cecidisti et femina ferro

ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer

has muerto por el hierrordquo

Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos

a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar

auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso

innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije

lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras

dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante

la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea

contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo

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141

insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado

de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748

οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου

ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de

los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo

Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio

confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no

responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en

Seacuteneca Contr 9 5 17

Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri

solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius

nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana

Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut

ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse

sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]

tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]

Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus

magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere

ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer

semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los

oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido

bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias

de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena

para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia

ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento

con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo

Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo

Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber

decir como saber dejar de decirrdquo

11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa

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142

pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel

forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado

esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado

orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo

perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met

13 505-520

iacet Ilion ingens

eventuque gravi finita est publica clades

sed finita tamen soli mihi Pergama restant

in cursuque meus dolor est modo maxima rerum

tot generis natisque potens nuribusque viroque

nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum

Penelopes munus quae me data pensa trahentem

matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est

clara parens haec est dicet Priameia coniunx

postque tot amissos tu nunc quae sola levabas

maternos luctus hostilia busta piasti

inferias hosti peperi quo ferrea resto

quidve moror quo me servas annosa senectus

quo di crudeles nisi uti nova funera cernam

vivacem differtis anum quis posse putaret

felicem Priamum post diruta Pergama dici

ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la

desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece

Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante

de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy

arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos

presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a

miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre

madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos

se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has

aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres

para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero

iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser

para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten

creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten

de Peacutergamordquo

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143

quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los

momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr

104-106 dice la abatida soberana

αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις

ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se

le han ido patria hijos y esposordquo

y continuacutea en 140-142

δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς

ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber

sido destruido mi poder lastimeramenterdquo

Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199

φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς

ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja

resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie

fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta

cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo

Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476

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144

ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν

ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores

no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo

y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y

descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el

sacrificio de Poliacutexena

οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα

ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa

de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por

la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de

polvo su desgraciada cabezardquo

Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba

como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513

ldquohaec Hectoris illa est

clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo

ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo

presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva

esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para

siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497

τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν

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145

κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν

ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer

esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez

me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la

que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un

camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir

este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para

los ricosrdquo

Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias

de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir

felix morte sua est nec te mea nata peremptam

adspicit et vitam pariter regnum que reliquit

ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute

a la vez la vida y el reinordquo

auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas

1312-1316

Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν

ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no

ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos

con impiacuteo deguumlellordquo

con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante

consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11

158-161

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146

tuque o sanctissima coniunx

felix morte tua neque in hunc seruata dolorem

contra ego uiuendo uici mea fata superstes

restarem ut genitor

ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada

para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para

sobrevir siendo su padrerdquo

La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye

el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda

no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten

de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen

a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha

recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que

se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna

llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute

portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se

repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate

Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610

σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός

ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del

mar traacuteela aquiacuterdquo

pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al

mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que

como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido

en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de

dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal

vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase

maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y

ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere

de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544

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205

Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio

Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12

surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo

Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida

do moccedilo do escritoacuterio

Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal

dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho

estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto

como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No

corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida

dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante

para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos

quentes

Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou

da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para

uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi

uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui

hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que

cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando

era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira

alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de

hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo

automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo

porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do

escritoacuterio foi-se embora

12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente

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206

Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino

sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute

copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da

escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em

mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a

trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu

Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13

Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco

do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio

para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo

Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos

acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao

moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa

claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as

indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a

Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-

Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa

a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria

cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade

narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente

delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando

Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar

de longo em tudo nos interessa

Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em

que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele

o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor

mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o

13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo

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207

homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias

alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara

nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se

considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me

com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele

laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do

seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o

senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz

de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa

cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute

quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas

pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum

de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem

seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este

ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou

largarraquo (91-92)16

E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para

comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute

que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao

preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua

dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite

pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo

garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17

Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor

Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas

hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a

16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)

17 Apud P D de Almeida 2008 156

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208

mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a

consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista

Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa

agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo

deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio

foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e

Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de

praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim

das traseirasrdquo (pp 21-22)

A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas

atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que

seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo

se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio

cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais

opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas

viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como

ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo

regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)

Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato

mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985

preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo

entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de

preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de

fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor

de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19

Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se

uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)

neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado

e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como

18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15

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209

em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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210

prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

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211

pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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212

Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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213

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334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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335

agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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336

da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

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339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

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340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

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341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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11

capIacutetulo i

Histoacuteria da antiguidade claacutessica

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69

vasos da Eacutepoca Arcaica Felizmente o corpus de vasos aacuteticos que nos chegou

eacute bastante extenso pelo que num trabalho de anaacutelise iconograacutefica o mais

simples e correcto eacute adoptar a metodologia dos especialistas que distinguem

as decoraccedilotildees inspiradas em episoacutedios mitoloacutegicos da representaccedilatildeo de

cenas da vida quotidiana

No primeiro grupo inscrevem-se episoacutedios da infacircncia de divindades

heroacuteis e heroiacutenas destacando-se o nascimento de Afrodite Apolo e Aacutertemis

Ascleacutepio Atena Dioacutenisos Erictoacutenio Helena Hermes e Zeus bem como

Aquiles entregue aos cuidados do centauro Quiacuteron e a proeza do bebeacute

Heacuteracles que ainda no berccedilo estrangulou duas serpentes Incluem-se

tambeacutem neste grupo as decoraccedilotildees inspiradas nos mitos de infanticiacutedio ou

exposiccedilatildeo como a vinganccedila de Medeia e de Procne o assassiacutenio de Astiacuteanax

depois da queda de Troacuteia Perseu lanccedilado ao mar dentro de uma arca e

Orestes ameaccedilado por Teacutelefo No que respeita agraves cenas da vida quotidiana

em traccedilos gerais podemos dizer que os artistas aacuteticos retratam todas as

experiecircncias que preenchem o dia-a-dia de uma crianccedila designadamente

as relaccedilotildees familiares e sociais a educaccedilatildeo e as brincadeiras

Do repertoacuterio de figuras negras sobre temas mitoloacutegicos merece destaque

o nascimento de Atena que foi dos temas mais ceacutelebres na arte da Eacutepoca

Arcaica em especial na ceracircmica aacutetica embora tenha continuado a ser

tratado durante o seacuteculo V aC surgindo em evidecircncia no centro do frontatildeo

oriental do Paacutertenon (Paus 1 24 5)

Conta Hesiacuteodo que a deusa fora concebida da uniatildeo de Zeus com Meacutetis

mas quando esta estava prestes a dar agrave luz o deus supremo engoliu-a uma

vez que Geia e Urano o tinham avisado de que dela nasceriam uma filha

saacutebia e corajosa como o pai e um filho de coraccedilatildeo orgulhoso que

ambicionaria o poder de Zeus (Teogonia 886-900 924-926) Segundo um

escoacutelio de Apoloacutenio de Rodes o poeta Estesiacutecoro de Hiacutemera (seacutec VII-VI

aC) foi ldquoo primeiro a afirmar que Atena saltara armada da cabeccedila de Zeusrdquo

O fragmento de um comentaacuterio transmitido por um papiro do seacuteculo II da

nossa era descoberto em Oxirrinco cita uma parte dos versos em que

Estesiacutecoro referia esse episoacutedio ldquo a resplandecer com as armasPalas

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70

lanccedilou-se para a terra vastardquo22 Assim eacute possiacutevel como se pensa que o

liacuterico da Siciacutelia tenha sido o responsaacutevel pela criaccedilatildeo literaacuteria deste tema

que teraacute igualmente grande fortuna na pintura de vasos23 Nem o escoacutelio

nem o fragmento que se preservou permitem esclarecer se no poema de

Estesiacutecoro a filha de Zeus nascia crianccedila ou adulta embora a segunda

hipoacutetese seja mais plausiacutevel visto que os dois textos sublinham o ardor

belicoso da deusa De acordo com a Oliacutempica VII de Piacutendaro (vv 35-38)

composta em 464 aC para Diaacutegoras de Rodes Hefestos fendeu a cabeccedila

de Zeus com um machado e ao erguer-se da fronte paterna Atena soltou

um grito de guerra fortiacutessimo do que se depreende embora o passo natildeo

seja expliacutecito que estava pronta a combater

Satildeo basicamente estes os dados miacuteticos que os artistas aacuteticos ilustram

Numa das representaccedilotildees mais antigas de um vaso atribuiacutedo ao Pintor C

conservado no Museu do Louvre do segundo quartel do seacuteculo VI aC

Zeus sentado no trono com o ceptro na matildeo direita e o raio na esquerda

ocupa o centro da cena e eacute assistido por seis divindades entre as quais se

encontram Hefestos (com o machado) Poseacuteidon (com o tridente) e as deusas

Ilitias que amparavam as parturientes Atena de elmo posto sai da cabeccedila

do pai preparada para combater com o escudo encostado ao peito e o

braccedilo direito erguido na posiccedilatildeo de arremessar a lanccedila (cf Hino Homeacuterico

a Atena 28 8-9) Apesar da estatura reduzida da receacutem-nascida nenhum

traccedilo sugere que o artista pretendia representar uma crianccedila24

Eacute este aspecto guerreiro e ofensivo da deusa a sair da cabeccedila de Zeus ndash

este habitualmente sentado no trono rodeado de vaacuterias divindades que o

22 Fr 56 Page = fr 233 PMG Vide D L Page (1962) Poetae Melici Graeci Oxford Clarendon Press D A Campbell (1991) Greek Lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and Others Cambridge Mass Harvard University Press 162-163

23 Na arte a representaccedilatildeo mais antiga segura do nascimento de Atena eacute documentada pelos relevos martelados em bronze descobertos em Oliacutempia (fragmentos de escudos) dos finais do seacuteculo VII ou da primeira metade do seacutec VI aC e preservados no seu Museu (B 1975d) cf T Carpenter 1991 71 e nordm 98

24 Exaleiptron (vaso para guardar perfumes e unguentos) triacutepode aacutetico de figuras negras atribuiacutedo ao Pintor C c 570-560 aC (Paris Museu do Louvre CA 616 ) Vide httpcommonswikimediaorgwikiFileExaleiptron_birth_Athena_Louvre_CA616jpg (acedido em 30112010)

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assistem ou sauacutedam a receacutem-nascida ndash que vamos encontrar nas decoraccedilotildees

de vasos de figuras negras atribuiacutedos ao Grupo E (c 560-540 aC) assim

chamado por ter sido o ateliecirc onde se formou o grande pintor Exeacutequias

Num conjunto relevante de acircnforas preservadas em diferentes museus este

esquema iconograacutefico manteacutem-se com ligeiras variaccedilotildees comprovando a

popularidade do tema na Eacutepoca Arcaica uma pequena Atena vestida com

um peplos e armada sai da cabeccedila de Zeus que sentado num trono elaborado

e com o raio na matildeo eacute assistido de cada lado por vaacuterias divindades Aleacutem

das Ilitias (uma ou duas) que erguem o braccedilo em sinal de auxiacutelio os deuses

normalmente trecircs satildeo identificados pelos adereccedilos proacuteprios e alternam em

cada vaso (Dioacutenisos Hermes Poseacuteidon Apolo Ares Hefestos) Sob o trono

de Zeus surge a figura reduzida de um homem ou de uma divindade alada25

Outros tratamentos do nascimento de Atena na pintura de vasos aacuteticos

retratam a deusa armada sobre os joelhos de Zeus (a partir de 550 aC) ou

junto do pai mas com aspecto de adulta figuraccedilatildeo que parece ter sido

adoptada por Fiacutedias no frontatildeo oriental do Paacutertenon26 A rejeiccedilatildeo da imagem

de Atena como crianccedila natildeo eacute caso uacutenico e relaciona-se com a complexa e

interessante questatildeo que diz respeito ao tratamento literaacuterio e iconograacutefico

do nascimento de deusas e heroiacutenas De facto regra geral (Aacutertemis parece

ser a excepccedilatildeo) estas vecircm ao mundo com formas adultas ao contraacuterio dos

25 Eg Berlim Staatliche Museen Antikensammlung 1699 vide R Vollkommer 2000 376 (fig 2) Boston Museum of Fine Arts 00330 vide S Blundell and M Williamson 1998 61 (fig 45) Munique Antikensammlungen 1382 New Haven Yale University Art Gallery 198322 vide J Neils amp J Oakley 2003 116 206-207 (cat 5) Paris Museu do Louvre F 32 vide httpcommonswikimediaorgwikiFileAmphora_birth_Athena_Louvre_F32jpg (acedido em 30112010) Viena Kunsthistorisches Museum IV 3596 Acircnforas da mesma oficina com variaccedilotildees deste esquema iconograacutefico eg Atena sem elmo e com o escudo eacute retratada sobre os joelhos de Zeus (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum L 250) sete divindades (Ilitia Heacuteracles Ares Apolo Poseacuteidon Hera e Hefestos) assistem ao nascimento sob o trono surgem duas figuras masculinas nuas (Londres The British Museum B 147) Zeus sentado num elaborado trono e uma minuacutescula Atena armada (elmo escudo e lanccedila) satildeo representados frontalmente acompanhados por Hermes Ares Ilitia e outra deusa (Richmond Virginia Museum of Fine Arts 6023) vide T Carpenter 1991 nordm 100 e httpwwwvmfastatevausCollectionsAncient_ArtBlack-figured_Amphora_60_23aspx (acedido em 30112010)

26 Sobre a iconografia do nascimento de Atena vide J Boardman 1974 37 216-217 e 1991b 102 H Cassimatis (1984) in LIMC II1 sv Athena pp 985-990 1021-1023 T Carpenter 1991 71-72 L Beaumont 1995 349-351 e 1998 76-77 R Vollkommer 2000 375-377

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deuses e heroacuteis como Apolo Dioacutenisos Heacuteracles Hermes e Aquiles que

natildeo soacute nascem bebeacutes como vivem episoacutedios ceacutelebres na infacircncia anunciando

as qualidades ou defeitos que os distinguem na idade adulta No entanto

quando os artistas gregos optavam por retratar as deusas e heroiacutenas apenas

como adultas ndash o caso de Afrodite que emerge das aacuteguas no esplendor da

sua beleza eacute paradigmaacutetico ndash natildeo estavam de facto a seguir uma convenccedilatildeo

pictoacuterica Como observou Lesley Beaumont este eacute possivelmente um caso

em que as expressotildees artiacutesticas reflectem a mentalidade vigente na Atenas

arcaica e claacutessica que atribuiacutea agrave crianccedila e agrave mulher um lugar inferior na

hierarquia social e as considerava menos capazes ser deusa eacute partilhar de

algum modo da fragilidade do elemento feminino mas ser deusa e crianccedila

eacute elevar essa fragilidade a uma escala inaceitaacutevel pelo que o mito na sua

expressatildeo literaacuteria e artiacutestica parece ter evitado a dificuldade que seria

conciliar a ideia de ldquodivinordquo com as concepccedilotildees predominantes de crianccedila

e mulher (1995 349-361 1998 80-93 especialmente)

O corpus de vasos aacuteticos de figuras negras que representam crianccedilas

humanas natildeo eacute significativo mas as cenas retratadas satildeo diversas e constituem

um contributo valioso para o estudo da infacircncia ateniense

Uma placa votiva de meados do seacutec VI aC mostra-nos o interior de um

lar onde uma mulher sentada num banco e apoiada numa mesa se entrega

a tarefas domeacutesticas possivelmente agrave tecelagem ou confecccedilatildeo de vestuaacuterio

A decoraccedilatildeo vistosa da sua indumentaacuteria eacute um elemento que sobressai e

contrasta com a figura nua que atraacutes de si vemos sentada no chatildeo entre

os moacuteveis O penteado e atitude indicam tratar-se de uma menina mas as

formas sobretudo as matildeos e pernas muito compridas natildeo satildeo proporcionais

nem harmoniosas27

Um leacutecito do mesmo periacuteodo evoca uma situaccedilatildeo provavelmente frequente

no quotidiano infantil mas tatildeo pouco representada no corpus de vasos

aacuteticos que sugeriu o nome do artista Tal como na peccedila anterior a figura

27 Placa votiva aacutetica de figuras negras c 560 aC (Atenas Museu da Acroacutepole 2525) Vide M Golden 1990 35 (fig 6) L Beaumont 2003 63 (ldquoa rare early representation of a female infantrdquo) H Foley 2003 118-119 (fig 7)

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central ndash um menino que tenta escapar aos accediloites de um homem e corre

para os braccedilos de uma mulher ndash apenas eacute identificada como crianccedila por

estar nua e ter metade do tamanho das restantes figuras A cena no seu

conjunto faz imediatamente pensar num menino ainda pequeno que foge

da sandaacutelia do pai e busca o afecto da matildee um tema adequado a um vaso

comum e muito usado em casa como recipiente para azeite28

Os autores destas imagens natildeo foram capazes de traccedilar a fisionomia

caracteriacutestica da crianccedila mas isso natildeo significa que os artistas aacuteticos desta

eacutepoca eram menos haacutebeis ou prestavam pouca atenccedilatildeo aos elementos mais

novos da poacutelis A placa votiva que comentaacutemos proveniente da acroacutepole

de Atenas natildeo eacute decerto um trabalho profissional e o vaso embora

interessante eacute atribuiacutedo a um pintor que J Boardman (1974 33) considera

um ldquoimitador sem talentordquo No entanto numa cena de despedida de guerreiros

que decora uma acircnfora atribuiacuteda ao referido Grupo E cujas obras satildeo muito

mais elaboradas a personagem de rosto masculino e formas musculadas

que se destaca do centro da composiccedilatildeo como no vaso anterior apenas eacute

identificada como um menino ou jovem por estar nu e ter metade do

tamanho das outras figuras29 Este exemplo pode sugerir que para os pintores

aacuteticos deste periacuteodo eram mais importantes as convenccedilotildees pictoacutericas ndash como

a nudez a altura e o tamanho dos mais pequenos ndash do que o realismo da

representaccedilatildeo

Uma placa (pinax) de terracota funeraacuteria com inscriccedilotildees do comeccedilo do

seacuteculo V aC pode corroborar esta hipoacutetese30 Numa composiccedilatildeo elaborada

que retrata o ritual de exposiccedilatildeo do corpo (prothesis) no qual participam

vaacuterios homens e mulheres estas mais proacuteximas do defunto distinguem-se

28 Leacutecito aacutetico de figuras negras pelo Pintor da Sandaacutelia (vaso epoacutenimo) c 550 aC (Bolonha Museo Civico Archeologico PU 204) Vide J Boardman 1974 nordm 43 M Golden 2003 26 (fig 5)

29 Acircnfora aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Grupo E c 560-540 aC (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum 247) Vide L Beaumont 2003 61 (fig 1)

30 Placa funeraacuteria aacutetica de terracota atribuiacuteda ao Pintor de Safo c 500-490 aC (Paris Museu do Louvre MNB 905) Vide J Boardman 1974 nordm 265 L Beaumont 2003 61-62 H Shapiro 2003 105 J Oakley 2003 164-165 (fig 3) httpenwikipediaorgwikiFilePinax_prothesis_Louvre_MNB905jpg (acedido em 30112010)

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trecircs figuras mais pequenas A mais baixa encontra-se no lado esquerdo

entre o grupo dos homens e o das mulheres e as roupas sugerem que se

trata de um menino talvez ainda pequeno pois apoia-se nas pernas do

leito fuacutenebre As outras duas de alturas distintas apenas diferem das

mulheres no tamanho (a inscriccedilatildeo identifica a menina mais baixa como irmatilde

do defunto) Assim esta peccedila aleacutem de documentar a participaccedilatildeo de crianccedilas

e jovens nas cerimoacutenias familiares e religiosas designadamente nos rituais

fuacutenebres um costume antigo jaacute atestado no estilo Geomeacutetrico indica que

o tamanho e a altura podiam ser os uacutenicos elementos convencionais a

distinguir uma crianccedila de uma pessoa mais velha

As imagens que comentaacutemos revelam-nos a intimidade dos lares atenienses

e os seus momentos mais dolorosos mas o repertoacuterio de figuras negras

tambeacutem contemplava os contactos com o exterior e situaccedilotildees mais alegres

Uma conhecida pelike atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides (c 500 aC) retrata

um menino a tirar medidas na loja do sapateiro na companhia do pai ou

do pedagogo31 A presenccedila deste elemento bem como o facto de a figura

mais pequena se encontrar em cima da mesa do artesatildeo e se apoiar na

cabeccedila deste sugerem que pode ser crianccedila embora as linhas do corpo natildeo

decircem essa impressatildeo Natildeo eacute claro de facto se o artista pretendia representar

um menino em idade escolar ou um rapaz mais velho

Finalmente merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de uma acircnfora

preservada em Estugarda que retrata trecircs jovens na companhia de um

homem provavelmente o pedagogo Enquanto uma delas anda de baloiccedilo

ndash uma actividade luacutedica que se relaciona provavelmente com um ritual

tambeacutem evocado na ceracircmica de figuras vermelhas32 ndash as outras cuidam de

duas crianccedilas mais pequenas Como nos vasos comentados anteriormente

31 Pelike aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides c 500 aC (Oxford Ashmolean Museum 563) Vide J Boardman 1974 nordm 229 M Golden 1990 29 (fig 2) M Vickers (1999) Ancient Greek Pottery Oxford Ashmoleum Museum 35 (nordm 23) J Neils amp J Oakley 2003 100 242 (cat 43)

32 O ritual da Aiora (ldquobaloiccedilordquo) era praticado por jovens em memoacuteria da jovem Eriacutegone que se suicidara apoacutes o assassiacutenio de seu pai Cf H Shapiro 2003 103-104 (fig 189) J Neils 2003 147 149 (fig 8) J Neils amp J Oakley 2003 288 (cat 102)

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estas satildeo facilmente identificadas pelo tamanho reduzido mas as suas formas

grosseiras contrastam com o desenho mais elegante com que o artista

representou as donzelas33

O cataacutelogo aacutetico de figuras vermelhas eacute muito mais rico e difiacutecil de

seleccionar tanto no domiacutenio dos temas mitoloacutegicos quanto no das cenas

inspiradas na vida quotidiana nas quais nos vamos deter e eacute evidente

tambeacutem que a qualidade das peccedilas e a forma de retratar as crianccedilas varia

consideravelmente

As cenas de escola constituem uma das principais novidades desta teacutecnica

e uma das obras mais belas eacute sem duacutevida a ceacutelebre taccedila assinada por Duacuteris

no princiacutepio do seacuteculo V aC e preservada em Berlim34 Decorada no exterior

com as liccedilotildees dos mestres de muacutesica (kitharistes) e de letras (grammatistes)

sob o olhar vigilante do pedagogo estas imagens satildeo certamente um

testemunho da importacircncia crescente da literacia no dealbar da Eacutepoca

Claacutessica No seacuteculo V aC em Atenas normalmente a partir dos sete anos

os meninos iniciavam a instruccedilatildeo baacutesica no exterior enquanto as meninas

continuavam em casa e aprendiam a gerir o lar junto da matildee e das escravas

Apesar da qualidade extraordinaacuteria da taccedila de Duacuteris a idade dos alunos

retratados nestas cenas natildeo eacute facilmente perceptiacutevel pois o principal traccedilo

que os distingue dos adultos eacute a estatura menor

Um dos grandes contributos das figuras vermelhas para o estudo da

infacircncia ateniense eacute o interesse que dedica aos afectos familiares e agraves

diferentes fases da vida de uma crianccedila tema que adquire cada vez mais

importacircncia ao longo do seacuteculo V aC Assim as cenas de gineceu tornam-se

muito mais correntes e se natildeo raras vezes mostram os preparativos do

casamento ou os cuidados com o corpo dos elementos femininos as crianccedilas

passam a estar cada vez mais presentes e constituem mesmo o tema principal

33 Estugarda Wuumlrttembergisches Landesmuseum 651 Vide M Golden 1990 34 (fig 5)34 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas assinada por Duacuteris c 490-480 aC (Berlim Staatliche

Museen Antikensammlung F 2285) Vide J Boardman 1975 nordm 289 J Neils amp J Oakley 2003 66 244-246 (cat 44) httpwwwmlahanasdeGreeksLXBerlinF2285html (acedido em 30112010)

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da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a

brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas

Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos

do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da

crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito

atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de

uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos

uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um

olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila

lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode

ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar

da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir

de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam

a descobrir o que as rodeia35

Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a

imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a

um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica

de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada

de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o

rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de

perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um

soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da

crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o

cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo

nem a atitude satildeo inteiramente naturais

35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)

36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)

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Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou

perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37

Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no

chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma

mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais

velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo

esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo

aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a

matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude

que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o

do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo

mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo

destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego

do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados

ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora

aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa

Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38

Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados

a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos

mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica

aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)

que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que

recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um

fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em

37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)

38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)

39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006

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1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena

harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para

a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza

de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude

desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo

da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua

frente satildeo claramente as de um bebeacute

Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero

crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a

cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos

de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava

a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa

alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia

e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde

a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos

exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de

c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no

centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada

numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma

escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa

sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica

por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria

muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade

sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina

Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420

40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)

41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)

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137

el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides

eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto

pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es

precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13

467-469

acceptior illi

quisquis is est quem caede mea placare paratis

liber erit sanguisque

ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os

disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo

versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima

tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha

mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est

(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava

se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo

donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una

princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son

palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las

Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus

ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la

tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten

de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en

una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo

devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de

Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada

por ella vv 469-473

siquos tamen ultima nostri

verba movent oris Priami vos filia regis

non captiva rogat genetrici corpus inemptum

reddite neve auro redimat ius triste sepulcri

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138

sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro

ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega

la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo

sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro

con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea

tambieacuten lo pagaba con orordquo

No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de

forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes

padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar

el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples

presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En

este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que

Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su

madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba

del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una

madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que

constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere

la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta

todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina

tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y

que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y

tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y

extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480

Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat

non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos

praebita coniecto rupit praecordia ferro

illa super terram defecto poplite labens

pertulit intrepidos ad fata novissima vultus

tunc quoque cura fuit partes velare tegendas

cum caderet casti que decus servare pudoris

10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos

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139

ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea

incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el

hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra

al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso

rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que

debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo

reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-

570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima

verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al

caer

ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών

ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta

con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque

moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura

ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo

La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste

en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten

de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los

aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin

vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan

en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a

la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de

Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe

proleacuteptica de los vv 483-485

teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx

regia dicta parens Asiae florentis imago

nunc etiam praedae mala sors

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140

ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada

regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo

incluso de un botiacutenrdquo

que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos

pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias

se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre

todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro

El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento

contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural

propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente

influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6

441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-

745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los

detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten

a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la

guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana

con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam

cecidisti) de Met 13 497-498

at te quia femina rebar

a ferro tutam cecidisti et femina ferro

ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer

has muerto por el hierrordquo

Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos

a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar

auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso

innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije

lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras

dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante

la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea

contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo

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141

insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado

de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748

οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου

ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de

los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo

Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio

confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no

responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en

Seacuteneca Contr 9 5 17

Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri

solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius

nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana

Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut

ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse

sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]

tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]

Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus

magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere

ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer

semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los

oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido

bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias

de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena

para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia

ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento

con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo

Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo

Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber

decir como saber dejar de decirrdquo

11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa

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142

pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel

forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado

esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado

orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo

perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met

13 505-520

iacet Ilion ingens

eventuque gravi finita est publica clades

sed finita tamen soli mihi Pergama restant

in cursuque meus dolor est modo maxima rerum

tot generis natisque potens nuribusque viroque

nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum

Penelopes munus quae me data pensa trahentem

matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est

clara parens haec est dicet Priameia coniunx

postque tot amissos tu nunc quae sola levabas

maternos luctus hostilia busta piasti

inferias hosti peperi quo ferrea resto

quidve moror quo me servas annosa senectus

quo di crudeles nisi uti nova funera cernam

vivacem differtis anum quis posse putaret

felicem Priamum post diruta Pergama dici

ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la

desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece

Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante

de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy

arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos

presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a

miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre

madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos

se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has

aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres

para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero

iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser

para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten

creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten

de Peacutergamordquo

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143

quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los

momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr

104-106 dice la abatida soberana

αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις

ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se

le han ido patria hijos y esposordquo

y continuacutea en 140-142

δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς

ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber

sido destruido mi poder lastimeramenterdquo

Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199

φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς

ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja

resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie

fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta

cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo

Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476

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144

ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν

ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores

no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo

y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y

descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el

sacrificio de Poliacutexena

οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα

ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa

de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por

la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de

polvo su desgraciada cabezardquo

Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba

como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513

ldquohaec Hectoris illa est

clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo

ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo

presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva

esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para

siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497

τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν

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145

κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν

ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer

esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez

me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la

que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un

camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir

este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para

los ricosrdquo

Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias

de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir

felix morte sua est nec te mea nata peremptam

adspicit et vitam pariter regnum que reliquit

ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute

a la vez la vida y el reinordquo

auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas

1312-1316

Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν

ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no

ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos

con impiacuteo deguumlellordquo

con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante

consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11

158-161

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146

tuque o sanctissima coniunx

felix morte tua neque in hunc seruata dolorem

contra ego uiuendo uici mea fata superstes

restarem ut genitor

ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada

para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para

sobrevir siendo su padrerdquo

La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye

el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda

no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten

de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen

a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha

recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que

se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna

llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute

portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se

repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate

Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610

σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός

ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del

mar traacuteela aquiacuterdquo

pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al

mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que

como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido

en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de

dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal

vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase

maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y

ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere

de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544

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205

Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio

Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12

surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo

Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida

do moccedilo do escritoacuterio

Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal

dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho

estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto

como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No

corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida

dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante

para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos

quentes

Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou

da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para

uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi

uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui

hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que

cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando

era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira

alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de

hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo

automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo

porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do

escritoacuterio foi-se embora

12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente

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206

Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino

sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute

copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da

escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em

mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a

trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu

Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13

Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco

do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio

para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo

Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos

acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao

moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa

claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as

indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a

Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-

Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa

a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria

cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade

narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente

delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando

Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar

de longo em tudo nos interessa

Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em

que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele

o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor

mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o

13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo

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207

homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias

alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara

nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se

considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me

com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele

laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do

seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o

senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz

de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa

cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute

quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas

pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum

de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem

seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este

ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou

largarraquo (91-92)16

E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para

comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute

que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao

preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua

dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite

pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo

garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17

Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor

Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas

hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a

16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)

17 Apud P D de Almeida 2008 156

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208

mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a

consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista

Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa

agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo

deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio

foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e

Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de

praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim

das traseirasrdquo (pp 21-22)

A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas

atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que

seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo

se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio

cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais

opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas

viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como

ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo

regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)

Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato

mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985

preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo

entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de

preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de

fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor

de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19

Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se

uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)

neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado

e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como

18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15

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209

em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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210

prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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212

Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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213

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334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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335

agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

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as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

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em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

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o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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vasos da Eacutepoca Arcaica Felizmente o corpus de vasos aacuteticos que nos chegou

eacute bastante extenso pelo que num trabalho de anaacutelise iconograacutefica o mais

simples e correcto eacute adoptar a metodologia dos especialistas que distinguem

as decoraccedilotildees inspiradas em episoacutedios mitoloacutegicos da representaccedilatildeo de

cenas da vida quotidiana

No primeiro grupo inscrevem-se episoacutedios da infacircncia de divindades

heroacuteis e heroiacutenas destacando-se o nascimento de Afrodite Apolo e Aacutertemis

Ascleacutepio Atena Dioacutenisos Erictoacutenio Helena Hermes e Zeus bem como

Aquiles entregue aos cuidados do centauro Quiacuteron e a proeza do bebeacute

Heacuteracles que ainda no berccedilo estrangulou duas serpentes Incluem-se

tambeacutem neste grupo as decoraccedilotildees inspiradas nos mitos de infanticiacutedio ou

exposiccedilatildeo como a vinganccedila de Medeia e de Procne o assassiacutenio de Astiacuteanax

depois da queda de Troacuteia Perseu lanccedilado ao mar dentro de uma arca e

Orestes ameaccedilado por Teacutelefo No que respeita agraves cenas da vida quotidiana

em traccedilos gerais podemos dizer que os artistas aacuteticos retratam todas as

experiecircncias que preenchem o dia-a-dia de uma crianccedila designadamente

as relaccedilotildees familiares e sociais a educaccedilatildeo e as brincadeiras

Do repertoacuterio de figuras negras sobre temas mitoloacutegicos merece destaque

o nascimento de Atena que foi dos temas mais ceacutelebres na arte da Eacutepoca

Arcaica em especial na ceracircmica aacutetica embora tenha continuado a ser

tratado durante o seacuteculo V aC surgindo em evidecircncia no centro do frontatildeo

oriental do Paacutertenon (Paus 1 24 5)

Conta Hesiacuteodo que a deusa fora concebida da uniatildeo de Zeus com Meacutetis

mas quando esta estava prestes a dar agrave luz o deus supremo engoliu-a uma

vez que Geia e Urano o tinham avisado de que dela nasceriam uma filha

saacutebia e corajosa como o pai e um filho de coraccedilatildeo orgulhoso que

ambicionaria o poder de Zeus (Teogonia 886-900 924-926) Segundo um

escoacutelio de Apoloacutenio de Rodes o poeta Estesiacutecoro de Hiacutemera (seacutec VII-VI

aC) foi ldquoo primeiro a afirmar que Atena saltara armada da cabeccedila de Zeusrdquo

O fragmento de um comentaacuterio transmitido por um papiro do seacuteculo II da

nossa era descoberto em Oxirrinco cita uma parte dos versos em que

Estesiacutecoro referia esse episoacutedio ldquo a resplandecer com as armasPalas

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70

lanccedilou-se para a terra vastardquo22 Assim eacute possiacutevel como se pensa que o

liacuterico da Siciacutelia tenha sido o responsaacutevel pela criaccedilatildeo literaacuteria deste tema

que teraacute igualmente grande fortuna na pintura de vasos23 Nem o escoacutelio

nem o fragmento que se preservou permitem esclarecer se no poema de

Estesiacutecoro a filha de Zeus nascia crianccedila ou adulta embora a segunda

hipoacutetese seja mais plausiacutevel visto que os dois textos sublinham o ardor

belicoso da deusa De acordo com a Oliacutempica VII de Piacutendaro (vv 35-38)

composta em 464 aC para Diaacutegoras de Rodes Hefestos fendeu a cabeccedila

de Zeus com um machado e ao erguer-se da fronte paterna Atena soltou

um grito de guerra fortiacutessimo do que se depreende embora o passo natildeo

seja expliacutecito que estava pronta a combater

Satildeo basicamente estes os dados miacuteticos que os artistas aacuteticos ilustram

Numa das representaccedilotildees mais antigas de um vaso atribuiacutedo ao Pintor C

conservado no Museu do Louvre do segundo quartel do seacuteculo VI aC

Zeus sentado no trono com o ceptro na matildeo direita e o raio na esquerda

ocupa o centro da cena e eacute assistido por seis divindades entre as quais se

encontram Hefestos (com o machado) Poseacuteidon (com o tridente) e as deusas

Ilitias que amparavam as parturientes Atena de elmo posto sai da cabeccedila

do pai preparada para combater com o escudo encostado ao peito e o

braccedilo direito erguido na posiccedilatildeo de arremessar a lanccedila (cf Hino Homeacuterico

a Atena 28 8-9) Apesar da estatura reduzida da receacutem-nascida nenhum

traccedilo sugere que o artista pretendia representar uma crianccedila24

Eacute este aspecto guerreiro e ofensivo da deusa a sair da cabeccedila de Zeus ndash

este habitualmente sentado no trono rodeado de vaacuterias divindades que o

22 Fr 56 Page = fr 233 PMG Vide D L Page (1962) Poetae Melici Graeci Oxford Clarendon Press D A Campbell (1991) Greek Lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and Others Cambridge Mass Harvard University Press 162-163

23 Na arte a representaccedilatildeo mais antiga segura do nascimento de Atena eacute documentada pelos relevos martelados em bronze descobertos em Oliacutempia (fragmentos de escudos) dos finais do seacuteculo VII ou da primeira metade do seacutec VI aC e preservados no seu Museu (B 1975d) cf T Carpenter 1991 71 e nordm 98

24 Exaleiptron (vaso para guardar perfumes e unguentos) triacutepode aacutetico de figuras negras atribuiacutedo ao Pintor C c 570-560 aC (Paris Museu do Louvre CA 616 ) Vide httpcommonswikimediaorgwikiFileExaleiptron_birth_Athena_Louvre_CA616jpg (acedido em 30112010)

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assistem ou sauacutedam a receacutem-nascida ndash que vamos encontrar nas decoraccedilotildees

de vasos de figuras negras atribuiacutedos ao Grupo E (c 560-540 aC) assim

chamado por ter sido o ateliecirc onde se formou o grande pintor Exeacutequias

Num conjunto relevante de acircnforas preservadas em diferentes museus este

esquema iconograacutefico manteacutem-se com ligeiras variaccedilotildees comprovando a

popularidade do tema na Eacutepoca Arcaica uma pequena Atena vestida com

um peplos e armada sai da cabeccedila de Zeus que sentado num trono elaborado

e com o raio na matildeo eacute assistido de cada lado por vaacuterias divindades Aleacutem

das Ilitias (uma ou duas) que erguem o braccedilo em sinal de auxiacutelio os deuses

normalmente trecircs satildeo identificados pelos adereccedilos proacuteprios e alternam em

cada vaso (Dioacutenisos Hermes Poseacuteidon Apolo Ares Hefestos) Sob o trono

de Zeus surge a figura reduzida de um homem ou de uma divindade alada25

Outros tratamentos do nascimento de Atena na pintura de vasos aacuteticos

retratam a deusa armada sobre os joelhos de Zeus (a partir de 550 aC) ou

junto do pai mas com aspecto de adulta figuraccedilatildeo que parece ter sido

adoptada por Fiacutedias no frontatildeo oriental do Paacutertenon26 A rejeiccedilatildeo da imagem

de Atena como crianccedila natildeo eacute caso uacutenico e relaciona-se com a complexa e

interessante questatildeo que diz respeito ao tratamento literaacuterio e iconograacutefico

do nascimento de deusas e heroiacutenas De facto regra geral (Aacutertemis parece

ser a excepccedilatildeo) estas vecircm ao mundo com formas adultas ao contraacuterio dos

25 Eg Berlim Staatliche Museen Antikensammlung 1699 vide R Vollkommer 2000 376 (fig 2) Boston Museum of Fine Arts 00330 vide S Blundell and M Williamson 1998 61 (fig 45) Munique Antikensammlungen 1382 New Haven Yale University Art Gallery 198322 vide J Neils amp J Oakley 2003 116 206-207 (cat 5) Paris Museu do Louvre F 32 vide httpcommonswikimediaorgwikiFileAmphora_birth_Athena_Louvre_F32jpg (acedido em 30112010) Viena Kunsthistorisches Museum IV 3596 Acircnforas da mesma oficina com variaccedilotildees deste esquema iconograacutefico eg Atena sem elmo e com o escudo eacute retratada sobre os joelhos de Zeus (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum L 250) sete divindades (Ilitia Heacuteracles Ares Apolo Poseacuteidon Hera e Hefestos) assistem ao nascimento sob o trono surgem duas figuras masculinas nuas (Londres The British Museum B 147) Zeus sentado num elaborado trono e uma minuacutescula Atena armada (elmo escudo e lanccedila) satildeo representados frontalmente acompanhados por Hermes Ares Ilitia e outra deusa (Richmond Virginia Museum of Fine Arts 6023) vide T Carpenter 1991 nordm 100 e httpwwwvmfastatevausCollectionsAncient_ArtBlack-figured_Amphora_60_23aspx (acedido em 30112010)

26 Sobre a iconografia do nascimento de Atena vide J Boardman 1974 37 216-217 e 1991b 102 H Cassimatis (1984) in LIMC II1 sv Athena pp 985-990 1021-1023 T Carpenter 1991 71-72 L Beaumont 1995 349-351 e 1998 76-77 R Vollkommer 2000 375-377

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deuses e heroacuteis como Apolo Dioacutenisos Heacuteracles Hermes e Aquiles que

natildeo soacute nascem bebeacutes como vivem episoacutedios ceacutelebres na infacircncia anunciando

as qualidades ou defeitos que os distinguem na idade adulta No entanto

quando os artistas gregos optavam por retratar as deusas e heroiacutenas apenas

como adultas ndash o caso de Afrodite que emerge das aacuteguas no esplendor da

sua beleza eacute paradigmaacutetico ndash natildeo estavam de facto a seguir uma convenccedilatildeo

pictoacuterica Como observou Lesley Beaumont este eacute possivelmente um caso

em que as expressotildees artiacutesticas reflectem a mentalidade vigente na Atenas

arcaica e claacutessica que atribuiacutea agrave crianccedila e agrave mulher um lugar inferior na

hierarquia social e as considerava menos capazes ser deusa eacute partilhar de

algum modo da fragilidade do elemento feminino mas ser deusa e crianccedila

eacute elevar essa fragilidade a uma escala inaceitaacutevel pelo que o mito na sua

expressatildeo literaacuteria e artiacutestica parece ter evitado a dificuldade que seria

conciliar a ideia de ldquodivinordquo com as concepccedilotildees predominantes de crianccedila

e mulher (1995 349-361 1998 80-93 especialmente)

O corpus de vasos aacuteticos de figuras negras que representam crianccedilas

humanas natildeo eacute significativo mas as cenas retratadas satildeo diversas e constituem

um contributo valioso para o estudo da infacircncia ateniense

Uma placa votiva de meados do seacutec VI aC mostra-nos o interior de um

lar onde uma mulher sentada num banco e apoiada numa mesa se entrega

a tarefas domeacutesticas possivelmente agrave tecelagem ou confecccedilatildeo de vestuaacuterio

A decoraccedilatildeo vistosa da sua indumentaacuteria eacute um elemento que sobressai e

contrasta com a figura nua que atraacutes de si vemos sentada no chatildeo entre

os moacuteveis O penteado e atitude indicam tratar-se de uma menina mas as

formas sobretudo as matildeos e pernas muito compridas natildeo satildeo proporcionais

nem harmoniosas27

Um leacutecito do mesmo periacuteodo evoca uma situaccedilatildeo provavelmente frequente

no quotidiano infantil mas tatildeo pouco representada no corpus de vasos

aacuteticos que sugeriu o nome do artista Tal como na peccedila anterior a figura

27 Placa votiva aacutetica de figuras negras c 560 aC (Atenas Museu da Acroacutepole 2525) Vide M Golden 1990 35 (fig 6) L Beaumont 2003 63 (ldquoa rare early representation of a female infantrdquo) H Foley 2003 118-119 (fig 7)

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central ndash um menino que tenta escapar aos accediloites de um homem e corre

para os braccedilos de uma mulher ndash apenas eacute identificada como crianccedila por

estar nua e ter metade do tamanho das restantes figuras A cena no seu

conjunto faz imediatamente pensar num menino ainda pequeno que foge

da sandaacutelia do pai e busca o afecto da matildee um tema adequado a um vaso

comum e muito usado em casa como recipiente para azeite28

Os autores destas imagens natildeo foram capazes de traccedilar a fisionomia

caracteriacutestica da crianccedila mas isso natildeo significa que os artistas aacuteticos desta

eacutepoca eram menos haacutebeis ou prestavam pouca atenccedilatildeo aos elementos mais

novos da poacutelis A placa votiva que comentaacutemos proveniente da acroacutepole

de Atenas natildeo eacute decerto um trabalho profissional e o vaso embora

interessante eacute atribuiacutedo a um pintor que J Boardman (1974 33) considera

um ldquoimitador sem talentordquo No entanto numa cena de despedida de guerreiros

que decora uma acircnfora atribuiacuteda ao referido Grupo E cujas obras satildeo muito

mais elaboradas a personagem de rosto masculino e formas musculadas

que se destaca do centro da composiccedilatildeo como no vaso anterior apenas eacute

identificada como um menino ou jovem por estar nu e ter metade do

tamanho das outras figuras29 Este exemplo pode sugerir que para os pintores

aacuteticos deste periacuteodo eram mais importantes as convenccedilotildees pictoacutericas ndash como

a nudez a altura e o tamanho dos mais pequenos ndash do que o realismo da

representaccedilatildeo

Uma placa (pinax) de terracota funeraacuteria com inscriccedilotildees do comeccedilo do

seacuteculo V aC pode corroborar esta hipoacutetese30 Numa composiccedilatildeo elaborada

que retrata o ritual de exposiccedilatildeo do corpo (prothesis) no qual participam

vaacuterios homens e mulheres estas mais proacuteximas do defunto distinguem-se

28 Leacutecito aacutetico de figuras negras pelo Pintor da Sandaacutelia (vaso epoacutenimo) c 550 aC (Bolonha Museo Civico Archeologico PU 204) Vide J Boardman 1974 nordm 43 M Golden 2003 26 (fig 5)

29 Acircnfora aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Grupo E c 560-540 aC (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum 247) Vide L Beaumont 2003 61 (fig 1)

30 Placa funeraacuteria aacutetica de terracota atribuiacuteda ao Pintor de Safo c 500-490 aC (Paris Museu do Louvre MNB 905) Vide J Boardman 1974 nordm 265 L Beaumont 2003 61-62 H Shapiro 2003 105 J Oakley 2003 164-165 (fig 3) httpenwikipediaorgwikiFilePinax_prothesis_Louvre_MNB905jpg (acedido em 30112010)

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trecircs figuras mais pequenas A mais baixa encontra-se no lado esquerdo

entre o grupo dos homens e o das mulheres e as roupas sugerem que se

trata de um menino talvez ainda pequeno pois apoia-se nas pernas do

leito fuacutenebre As outras duas de alturas distintas apenas diferem das

mulheres no tamanho (a inscriccedilatildeo identifica a menina mais baixa como irmatilde

do defunto) Assim esta peccedila aleacutem de documentar a participaccedilatildeo de crianccedilas

e jovens nas cerimoacutenias familiares e religiosas designadamente nos rituais

fuacutenebres um costume antigo jaacute atestado no estilo Geomeacutetrico indica que

o tamanho e a altura podiam ser os uacutenicos elementos convencionais a

distinguir uma crianccedila de uma pessoa mais velha

As imagens que comentaacutemos revelam-nos a intimidade dos lares atenienses

e os seus momentos mais dolorosos mas o repertoacuterio de figuras negras

tambeacutem contemplava os contactos com o exterior e situaccedilotildees mais alegres

Uma conhecida pelike atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides (c 500 aC) retrata

um menino a tirar medidas na loja do sapateiro na companhia do pai ou

do pedagogo31 A presenccedila deste elemento bem como o facto de a figura

mais pequena se encontrar em cima da mesa do artesatildeo e se apoiar na

cabeccedila deste sugerem que pode ser crianccedila embora as linhas do corpo natildeo

decircem essa impressatildeo Natildeo eacute claro de facto se o artista pretendia representar

um menino em idade escolar ou um rapaz mais velho

Finalmente merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de uma acircnfora

preservada em Estugarda que retrata trecircs jovens na companhia de um

homem provavelmente o pedagogo Enquanto uma delas anda de baloiccedilo

ndash uma actividade luacutedica que se relaciona provavelmente com um ritual

tambeacutem evocado na ceracircmica de figuras vermelhas32 ndash as outras cuidam de

duas crianccedilas mais pequenas Como nos vasos comentados anteriormente

31 Pelike aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides c 500 aC (Oxford Ashmolean Museum 563) Vide J Boardman 1974 nordm 229 M Golden 1990 29 (fig 2) M Vickers (1999) Ancient Greek Pottery Oxford Ashmoleum Museum 35 (nordm 23) J Neils amp J Oakley 2003 100 242 (cat 43)

32 O ritual da Aiora (ldquobaloiccedilordquo) era praticado por jovens em memoacuteria da jovem Eriacutegone que se suicidara apoacutes o assassiacutenio de seu pai Cf H Shapiro 2003 103-104 (fig 189) J Neils 2003 147 149 (fig 8) J Neils amp J Oakley 2003 288 (cat 102)

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estas satildeo facilmente identificadas pelo tamanho reduzido mas as suas formas

grosseiras contrastam com o desenho mais elegante com que o artista

representou as donzelas33

O cataacutelogo aacutetico de figuras vermelhas eacute muito mais rico e difiacutecil de

seleccionar tanto no domiacutenio dos temas mitoloacutegicos quanto no das cenas

inspiradas na vida quotidiana nas quais nos vamos deter e eacute evidente

tambeacutem que a qualidade das peccedilas e a forma de retratar as crianccedilas varia

consideravelmente

As cenas de escola constituem uma das principais novidades desta teacutecnica

e uma das obras mais belas eacute sem duacutevida a ceacutelebre taccedila assinada por Duacuteris

no princiacutepio do seacuteculo V aC e preservada em Berlim34 Decorada no exterior

com as liccedilotildees dos mestres de muacutesica (kitharistes) e de letras (grammatistes)

sob o olhar vigilante do pedagogo estas imagens satildeo certamente um

testemunho da importacircncia crescente da literacia no dealbar da Eacutepoca

Claacutessica No seacuteculo V aC em Atenas normalmente a partir dos sete anos

os meninos iniciavam a instruccedilatildeo baacutesica no exterior enquanto as meninas

continuavam em casa e aprendiam a gerir o lar junto da matildee e das escravas

Apesar da qualidade extraordinaacuteria da taccedila de Duacuteris a idade dos alunos

retratados nestas cenas natildeo eacute facilmente perceptiacutevel pois o principal traccedilo

que os distingue dos adultos eacute a estatura menor

Um dos grandes contributos das figuras vermelhas para o estudo da

infacircncia ateniense eacute o interesse que dedica aos afectos familiares e agraves

diferentes fases da vida de uma crianccedila tema que adquire cada vez mais

importacircncia ao longo do seacuteculo V aC Assim as cenas de gineceu tornam-se

muito mais correntes e se natildeo raras vezes mostram os preparativos do

casamento ou os cuidados com o corpo dos elementos femininos as crianccedilas

passam a estar cada vez mais presentes e constituem mesmo o tema principal

33 Estugarda Wuumlrttembergisches Landesmuseum 651 Vide M Golden 1990 34 (fig 5)34 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas assinada por Duacuteris c 490-480 aC (Berlim Staatliche

Museen Antikensammlung F 2285) Vide J Boardman 1975 nordm 289 J Neils amp J Oakley 2003 66 244-246 (cat 44) httpwwwmlahanasdeGreeksLXBerlinF2285html (acedido em 30112010)

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da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a

brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas

Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos

do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da

crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito

atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de

uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos

uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um

olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila

lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode

ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar

da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir

de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam

a descobrir o que as rodeia35

Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a

imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a

um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica

de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada

de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o

rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de

perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um

soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da

crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o

cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo

nem a atitude satildeo inteiramente naturais

35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)

36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)

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Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou

perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37

Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no

chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma

mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais

velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo

esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo

aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a

matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude

que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o

do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo

mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo

destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego

do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados

ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora

aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa

Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38

Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados

a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos

mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica

aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)

que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que

recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um

fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em

37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)

38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)

39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006

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1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena

harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para

a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza

de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude

desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo

da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua

frente satildeo claramente as de um bebeacute

Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero

crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a

cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos

de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava

a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa

alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia

e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde

a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos

exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de

c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no

centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada

numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma

escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa

sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica

por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria

muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade

sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina

Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420

40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)

41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)

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137

el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides

eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto

pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es

precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13

467-469

acceptior illi

quisquis is est quem caede mea placare paratis

liber erit sanguisque

ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os

disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo

versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima

tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha

mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est

(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava

se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo

donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una

princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son

palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las

Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus

ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la

tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten

de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en

una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo

devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de

Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada

por ella vv 469-473

siquos tamen ultima nostri

verba movent oris Priami vos filia regis

non captiva rogat genetrici corpus inemptum

reddite neve auro redimat ius triste sepulcri

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138

sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro

ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega

la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo

sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro

con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea

tambieacuten lo pagaba con orordquo

No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de

forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes

padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar

el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples

presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En

este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que

Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su

madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba

del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una

madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que

constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere

la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta

todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina

tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y

que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y

tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y

extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480

Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat

non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos

praebita coniecto rupit praecordia ferro

illa super terram defecto poplite labens

pertulit intrepidos ad fata novissima vultus

tunc quoque cura fuit partes velare tegendas

cum caderet casti que decus servare pudoris

10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos

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139

ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea

incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el

hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra

al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso

rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que

debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo

reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-

570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima

verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al

caer

ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών

ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta

con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque

moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura

ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo

La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste

en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten

de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los

aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin

vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan

en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a

la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de

Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe

proleacuteptica de los vv 483-485

teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx

regia dicta parens Asiae florentis imago

nunc etiam praedae mala sors

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140

ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada

regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo

incluso de un botiacutenrdquo

que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos

pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias

se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre

todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro

El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento

contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural

propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente

influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6

441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-

745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los

detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten

a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la

guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana

con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam

cecidisti) de Met 13 497-498

at te quia femina rebar

a ferro tutam cecidisti et femina ferro

ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer

has muerto por el hierrordquo

Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos

a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar

auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso

innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije

lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras

dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante

la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea

contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo

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141

insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado

de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748

οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου

ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de

los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo

Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio

confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no

responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en

Seacuteneca Contr 9 5 17

Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri

solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius

nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana

Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut

ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse

sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]

tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]

Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus

magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere

ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer

semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los

oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido

bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias

de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena

para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia

ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento

con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo

Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo

Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber

decir como saber dejar de decirrdquo

11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa

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142

pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel

forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado

esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado

orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo

perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met

13 505-520

iacet Ilion ingens

eventuque gravi finita est publica clades

sed finita tamen soli mihi Pergama restant

in cursuque meus dolor est modo maxima rerum

tot generis natisque potens nuribusque viroque

nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum

Penelopes munus quae me data pensa trahentem

matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est

clara parens haec est dicet Priameia coniunx

postque tot amissos tu nunc quae sola levabas

maternos luctus hostilia busta piasti

inferias hosti peperi quo ferrea resto

quidve moror quo me servas annosa senectus

quo di crudeles nisi uti nova funera cernam

vivacem differtis anum quis posse putaret

felicem Priamum post diruta Pergama dici

ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la

desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece

Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante

de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy

arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos

presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a

miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre

madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos

se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has

aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres

para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero

iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser

para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten

creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten

de Peacutergamordquo

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143

quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los

momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr

104-106 dice la abatida soberana

αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις

ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se

le han ido patria hijos y esposordquo

y continuacutea en 140-142

δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς

ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber

sido destruido mi poder lastimeramenterdquo

Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199

φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς

ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja

resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie

fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta

cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo

Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476

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144

ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν

ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores

no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo

y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y

descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el

sacrificio de Poliacutexena

οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα

ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa

de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por

la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de

polvo su desgraciada cabezardquo

Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba

como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513

ldquohaec Hectoris illa est

clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo

ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo

presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva

esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para

siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497

τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν

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145

κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν

ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer

esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez

me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la

que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un

camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir

este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para

los ricosrdquo

Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias

de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir

felix morte sua est nec te mea nata peremptam

adspicit et vitam pariter regnum que reliquit

ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute

a la vez la vida y el reinordquo

auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas

1312-1316

Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν

ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no

ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos

con impiacuteo deguumlellordquo

con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante

consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11

158-161

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146

tuque o sanctissima coniunx

felix morte tua neque in hunc seruata dolorem

contra ego uiuendo uici mea fata superstes

restarem ut genitor

ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada

para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para

sobrevir siendo su padrerdquo

La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye

el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda

no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten

de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen

a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha

recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que

se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna

llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute

portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se

repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate

Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610

σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός

ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del

mar traacuteela aquiacuterdquo

pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al

mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que

como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido

en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de

dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal

vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase

maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y

ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere

de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544

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205

Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio

Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12

surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo

Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida

do moccedilo do escritoacuterio

Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal

dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho

estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto

como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No

corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida

dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante

para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos

quentes

Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou

da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para

uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi

uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui

hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que

cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando

era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira

alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de

hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo

automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo

porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do

escritoacuterio foi-se embora

12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente

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206

Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino

sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute

copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da

escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em

mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a

trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu

Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13

Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco

do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio

para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo

Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos

acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao

moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa

claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as

indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a

Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-

Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa

a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria

cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade

narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente

delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando

Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar

de longo em tudo nos interessa

Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em

que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele

o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor

mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o

13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo

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207

homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias

alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara

nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se

considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me

com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele

laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do

seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o

senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz

de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa

cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute

quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas

pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum

de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem

seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este

ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou

largarraquo (91-92)16

E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para

comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute

que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao

preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua

dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite

pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo

garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17

Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor

Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas

hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a

16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)

17 Apud P D de Almeida 2008 156

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208

mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a

consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista

Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa

agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo

deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio

foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e

Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de

praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim

das traseirasrdquo (pp 21-22)

A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas

atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que

seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo

se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio

cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais

opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas

viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como

ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo

regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)

Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato

mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985

preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo

entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de

preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de

fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor

de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19

Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se

uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)

neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado

e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como

18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15

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209

em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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210

prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

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211

pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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212

Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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213

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334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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335

agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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336

da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

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339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

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341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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Page 11: & Transgressão II - digitalis.uc.pt · Carmen Soares Maria do Céu Fialho María Consuelo Alvarez Morán Rosa María Iglesias Montiel Coordenação • C O I M B R A 2 0 1 1 orma

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lanccedilou-se para a terra vastardquo22 Assim eacute possiacutevel como se pensa que o

liacuterico da Siciacutelia tenha sido o responsaacutevel pela criaccedilatildeo literaacuteria deste tema

que teraacute igualmente grande fortuna na pintura de vasos23 Nem o escoacutelio

nem o fragmento que se preservou permitem esclarecer se no poema de

Estesiacutecoro a filha de Zeus nascia crianccedila ou adulta embora a segunda

hipoacutetese seja mais plausiacutevel visto que os dois textos sublinham o ardor

belicoso da deusa De acordo com a Oliacutempica VII de Piacutendaro (vv 35-38)

composta em 464 aC para Diaacutegoras de Rodes Hefestos fendeu a cabeccedila

de Zeus com um machado e ao erguer-se da fronte paterna Atena soltou

um grito de guerra fortiacutessimo do que se depreende embora o passo natildeo

seja expliacutecito que estava pronta a combater

Satildeo basicamente estes os dados miacuteticos que os artistas aacuteticos ilustram

Numa das representaccedilotildees mais antigas de um vaso atribuiacutedo ao Pintor C

conservado no Museu do Louvre do segundo quartel do seacuteculo VI aC

Zeus sentado no trono com o ceptro na matildeo direita e o raio na esquerda

ocupa o centro da cena e eacute assistido por seis divindades entre as quais se

encontram Hefestos (com o machado) Poseacuteidon (com o tridente) e as deusas

Ilitias que amparavam as parturientes Atena de elmo posto sai da cabeccedila

do pai preparada para combater com o escudo encostado ao peito e o

braccedilo direito erguido na posiccedilatildeo de arremessar a lanccedila (cf Hino Homeacuterico

a Atena 28 8-9) Apesar da estatura reduzida da receacutem-nascida nenhum

traccedilo sugere que o artista pretendia representar uma crianccedila24

Eacute este aspecto guerreiro e ofensivo da deusa a sair da cabeccedila de Zeus ndash

este habitualmente sentado no trono rodeado de vaacuterias divindades que o

22 Fr 56 Page = fr 233 PMG Vide D L Page (1962) Poetae Melici Graeci Oxford Clarendon Press D A Campbell (1991) Greek Lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and Others Cambridge Mass Harvard University Press 162-163

23 Na arte a representaccedilatildeo mais antiga segura do nascimento de Atena eacute documentada pelos relevos martelados em bronze descobertos em Oliacutempia (fragmentos de escudos) dos finais do seacuteculo VII ou da primeira metade do seacutec VI aC e preservados no seu Museu (B 1975d) cf T Carpenter 1991 71 e nordm 98

24 Exaleiptron (vaso para guardar perfumes e unguentos) triacutepode aacutetico de figuras negras atribuiacutedo ao Pintor C c 570-560 aC (Paris Museu do Louvre CA 616 ) Vide httpcommonswikimediaorgwikiFileExaleiptron_birth_Athena_Louvre_CA616jpg (acedido em 30112010)

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assistem ou sauacutedam a receacutem-nascida ndash que vamos encontrar nas decoraccedilotildees

de vasos de figuras negras atribuiacutedos ao Grupo E (c 560-540 aC) assim

chamado por ter sido o ateliecirc onde se formou o grande pintor Exeacutequias

Num conjunto relevante de acircnforas preservadas em diferentes museus este

esquema iconograacutefico manteacutem-se com ligeiras variaccedilotildees comprovando a

popularidade do tema na Eacutepoca Arcaica uma pequena Atena vestida com

um peplos e armada sai da cabeccedila de Zeus que sentado num trono elaborado

e com o raio na matildeo eacute assistido de cada lado por vaacuterias divindades Aleacutem

das Ilitias (uma ou duas) que erguem o braccedilo em sinal de auxiacutelio os deuses

normalmente trecircs satildeo identificados pelos adereccedilos proacuteprios e alternam em

cada vaso (Dioacutenisos Hermes Poseacuteidon Apolo Ares Hefestos) Sob o trono

de Zeus surge a figura reduzida de um homem ou de uma divindade alada25

Outros tratamentos do nascimento de Atena na pintura de vasos aacuteticos

retratam a deusa armada sobre os joelhos de Zeus (a partir de 550 aC) ou

junto do pai mas com aspecto de adulta figuraccedilatildeo que parece ter sido

adoptada por Fiacutedias no frontatildeo oriental do Paacutertenon26 A rejeiccedilatildeo da imagem

de Atena como crianccedila natildeo eacute caso uacutenico e relaciona-se com a complexa e

interessante questatildeo que diz respeito ao tratamento literaacuterio e iconograacutefico

do nascimento de deusas e heroiacutenas De facto regra geral (Aacutertemis parece

ser a excepccedilatildeo) estas vecircm ao mundo com formas adultas ao contraacuterio dos

25 Eg Berlim Staatliche Museen Antikensammlung 1699 vide R Vollkommer 2000 376 (fig 2) Boston Museum of Fine Arts 00330 vide S Blundell and M Williamson 1998 61 (fig 45) Munique Antikensammlungen 1382 New Haven Yale University Art Gallery 198322 vide J Neils amp J Oakley 2003 116 206-207 (cat 5) Paris Museu do Louvre F 32 vide httpcommonswikimediaorgwikiFileAmphora_birth_Athena_Louvre_F32jpg (acedido em 30112010) Viena Kunsthistorisches Museum IV 3596 Acircnforas da mesma oficina com variaccedilotildees deste esquema iconograacutefico eg Atena sem elmo e com o escudo eacute retratada sobre os joelhos de Zeus (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum L 250) sete divindades (Ilitia Heacuteracles Ares Apolo Poseacuteidon Hera e Hefestos) assistem ao nascimento sob o trono surgem duas figuras masculinas nuas (Londres The British Museum B 147) Zeus sentado num elaborado trono e uma minuacutescula Atena armada (elmo escudo e lanccedila) satildeo representados frontalmente acompanhados por Hermes Ares Ilitia e outra deusa (Richmond Virginia Museum of Fine Arts 6023) vide T Carpenter 1991 nordm 100 e httpwwwvmfastatevausCollectionsAncient_ArtBlack-figured_Amphora_60_23aspx (acedido em 30112010)

26 Sobre a iconografia do nascimento de Atena vide J Boardman 1974 37 216-217 e 1991b 102 H Cassimatis (1984) in LIMC II1 sv Athena pp 985-990 1021-1023 T Carpenter 1991 71-72 L Beaumont 1995 349-351 e 1998 76-77 R Vollkommer 2000 375-377

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deuses e heroacuteis como Apolo Dioacutenisos Heacuteracles Hermes e Aquiles que

natildeo soacute nascem bebeacutes como vivem episoacutedios ceacutelebres na infacircncia anunciando

as qualidades ou defeitos que os distinguem na idade adulta No entanto

quando os artistas gregos optavam por retratar as deusas e heroiacutenas apenas

como adultas ndash o caso de Afrodite que emerge das aacuteguas no esplendor da

sua beleza eacute paradigmaacutetico ndash natildeo estavam de facto a seguir uma convenccedilatildeo

pictoacuterica Como observou Lesley Beaumont este eacute possivelmente um caso

em que as expressotildees artiacutesticas reflectem a mentalidade vigente na Atenas

arcaica e claacutessica que atribuiacutea agrave crianccedila e agrave mulher um lugar inferior na

hierarquia social e as considerava menos capazes ser deusa eacute partilhar de

algum modo da fragilidade do elemento feminino mas ser deusa e crianccedila

eacute elevar essa fragilidade a uma escala inaceitaacutevel pelo que o mito na sua

expressatildeo literaacuteria e artiacutestica parece ter evitado a dificuldade que seria

conciliar a ideia de ldquodivinordquo com as concepccedilotildees predominantes de crianccedila

e mulher (1995 349-361 1998 80-93 especialmente)

O corpus de vasos aacuteticos de figuras negras que representam crianccedilas

humanas natildeo eacute significativo mas as cenas retratadas satildeo diversas e constituem

um contributo valioso para o estudo da infacircncia ateniense

Uma placa votiva de meados do seacutec VI aC mostra-nos o interior de um

lar onde uma mulher sentada num banco e apoiada numa mesa se entrega

a tarefas domeacutesticas possivelmente agrave tecelagem ou confecccedilatildeo de vestuaacuterio

A decoraccedilatildeo vistosa da sua indumentaacuteria eacute um elemento que sobressai e

contrasta com a figura nua que atraacutes de si vemos sentada no chatildeo entre

os moacuteveis O penteado e atitude indicam tratar-se de uma menina mas as

formas sobretudo as matildeos e pernas muito compridas natildeo satildeo proporcionais

nem harmoniosas27

Um leacutecito do mesmo periacuteodo evoca uma situaccedilatildeo provavelmente frequente

no quotidiano infantil mas tatildeo pouco representada no corpus de vasos

aacuteticos que sugeriu o nome do artista Tal como na peccedila anterior a figura

27 Placa votiva aacutetica de figuras negras c 560 aC (Atenas Museu da Acroacutepole 2525) Vide M Golden 1990 35 (fig 6) L Beaumont 2003 63 (ldquoa rare early representation of a female infantrdquo) H Foley 2003 118-119 (fig 7)

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central ndash um menino que tenta escapar aos accediloites de um homem e corre

para os braccedilos de uma mulher ndash apenas eacute identificada como crianccedila por

estar nua e ter metade do tamanho das restantes figuras A cena no seu

conjunto faz imediatamente pensar num menino ainda pequeno que foge

da sandaacutelia do pai e busca o afecto da matildee um tema adequado a um vaso

comum e muito usado em casa como recipiente para azeite28

Os autores destas imagens natildeo foram capazes de traccedilar a fisionomia

caracteriacutestica da crianccedila mas isso natildeo significa que os artistas aacuteticos desta

eacutepoca eram menos haacutebeis ou prestavam pouca atenccedilatildeo aos elementos mais

novos da poacutelis A placa votiva que comentaacutemos proveniente da acroacutepole

de Atenas natildeo eacute decerto um trabalho profissional e o vaso embora

interessante eacute atribuiacutedo a um pintor que J Boardman (1974 33) considera

um ldquoimitador sem talentordquo No entanto numa cena de despedida de guerreiros

que decora uma acircnfora atribuiacuteda ao referido Grupo E cujas obras satildeo muito

mais elaboradas a personagem de rosto masculino e formas musculadas

que se destaca do centro da composiccedilatildeo como no vaso anterior apenas eacute

identificada como um menino ou jovem por estar nu e ter metade do

tamanho das outras figuras29 Este exemplo pode sugerir que para os pintores

aacuteticos deste periacuteodo eram mais importantes as convenccedilotildees pictoacutericas ndash como

a nudez a altura e o tamanho dos mais pequenos ndash do que o realismo da

representaccedilatildeo

Uma placa (pinax) de terracota funeraacuteria com inscriccedilotildees do comeccedilo do

seacuteculo V aC pode corroborar esta hipoacutetese30 Numa composiccedilatildeo elaborada

que retrata o ritual de exposiccedilatildeo do corpo (prothesis) no qual participam

vaacuterios homens e mulheres estas mais proacuteximas do defunto distinguem-se

28 Leacutecito aacutetico de figuras negras pelo Pintor da Sandaacutelia (vaso epoacutenimo) c 550 aC (Bolonha Museo Civico Archeologico PU 204) Vide J Boardman 1974 nordm 43 M Golden 2003 26 (fig 5)

29 Acircnfora aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Grupo E c 560-540 aC (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum 247) Vide L Beaumont 2003 61 (fig 1)

30 Placa funeraacuteria aacutetica de terracota atribuiacuteda ao Pintor de Safo c 500-490 aC (Paris Museu do Louvre MNB 905) Vide J Boardman 1974 nordm 265 L Beaumont 2003 61-62 H Shapiro 2003 105 J Oakley 2003 164-165 (fig 3) httpenwikipediaorgwikiFilePinax_prothesis_Louvre_MNB905jpg (acedido em 30112010)

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trecircs figuras mais pequenas A mais baixa encontra-se no lado esquerdo

entre o grupo dos homens e o das mulheres e as roupas sugerem que se

trata de um menino talvez ainda pequeno pois apoia-se nas pernas do

leito fuacutenebre As outras duas de alturas distintas apenas diferem das

mulheres no tamanho (a inscriccedilatildeo identifica a menina mais baixa como irmatilde

do defunto) Assim esta peccedila aleacutem de documentar a participaccedilatildeo de crianccedilas

e jovens nas cerimoacutenias familiares e religiosas designadamente nos rituais

fuacutenebres um costume antigo jaacute atestado no estilo Geomeacutetrico indica que

o tamanho e a altura podiam ser os uacutenicos elementos convencionais a

distinguir uma crianccedila de uma pessoa mais velha

As imagens que comentaacutemos revelam-nos a intimidade dos lares atenienses

e os seus momentos mais dolorosos mas o repertoacuterio de figuras negras

tambeacutem contemplava os contactos com o exterior e situaccedilotildees mais alegres

Uma conhecida pelike atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides (c 500 aC) retrata

um menino a tirar medidas na loja do sapateiro na companhia do pai ou

do pedagogo31 A presenccedila deste elemento bem como o facto de a figura

mais pequena se encontrar em cima da mesa do artesatildeo e se apoiar na

cabeccedila deste sugerem que pode ser crianccedila embora as linhas do corpo natildeo

decircem essa impressatildeo Natildeo eacute claro de facto se o artista pretendia representar

um menino em idade escolar ou um rapaz mais velho

Finalmente merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de uma acircnfora

preservada em Estugarda que retrata trecircs jovens na companhia de um

homem provavelmente o pedagogo Enquanto uma delas anda de baloiccedilo

ndash uma actividade luacutedica que se relaciona provavelmente com um ritual

tambeacutem evocado na ceracircmica de figuras vermelhas32 ndash as outras cuidam de

duas crianccedilas mais pequenas Como nos vasos comentados anteriormente

31 Pelike aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides c 500 aC (Oxford Ashmolean Museum 563) Vide J Boardman 1974 nordm 229 M Golden 1990 29 (fig 2) M Vickers (1999) Ancient Greek Pottery Oxford Ashmoleum Museum 35 (nordm 23) J Neils amp J Oakley 2003 100 242 (cat 43)

32 O ritual da Aiora (ldquobaloiccedilordquo) era praticado por jovens em memoacuteria da jovem Eriacutegone que se suicidara apoacutes o assassiacutenio de seu pai Cf H Shapiro 2003 103-104 (fig 189) J Neils 2003 147 149 (fig 8) J Neils amp J Oakley 2003 288 (cat 102)

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estas satildeo facilmente identificadas pelo tamanho reduzido mas as suas formas

grosseiras contrastam com o desenho mais elegante com que o artista

representou as donzelas33

O cataacutelogo aacutetico de figuras vermelhas eacute muito mais rico e difiacutecil de

seleccionar tanto no domiacutenio dos temas mitoloacutegicos quanto no das cenas

inspiradas na vida quotidiana nas quais nos vamos deter e eacute evidente

tambeacutem que a qualidade das peccedilas e a forma de retratar as crianccedilas varia

consideravelmente

As cenas de escola constituem uma das principais novidades desta teacutecnica

e uma das obras mais belas eacute sem duacutevida a ceacutelebre taccedila assinada por Duacuteris

no princiacutepio do seacuteculo V aC e preservada em Berlim34 Decorada no exterior

com as liccedilotildees dos mestres de muacutesica (kitharistes) e de letras (grammatistes)

sob o olhar vigilante do pedagogo estas imagens satildeo certamente um

testemunho da importacircncia crescente da literacia no dealbar da Eacutepoca

Claacutessica No seacuteculo V aC em Atenas normalmente a partir dos sete anos

os meninos iniciavam a instruccedilatildeo baacutesica no exterior enquanto as meninas

continuavam em casa e aprendiam a gerir o lar junto da matildee e das escravas

Apesar da qualidade extraordinaacuteria da taccedila de Duacuteris a idade dos alunos

retratados nestas cenas natildeo eacute facilmente perceptiacutevel pois o principal traccedilo

que os distingue dos adultos eacute a estatura menor

Um dos grandes contributos das figuras vermelhas para o estudo da

infacircncia ateniense eacute o interesse que dedica aos afectos familiares e agraves

diferentes fases da vida de uma crianccedila tema que adquire cada vez mais

importacircncia ao longo do seacuteculo V aC Assim as cenas de gineceu tornam-se

muito mais correntes e se natildeo raras vezes mostram os preparativos do

casamento ou os cuidados com o corpo dos elementos femininos as crianccedilas

passam a estar cada vez mais presentes e constituem mesmo o tema principal

33 Estugarda Wuumlrttembergisches Landesmuseum 651 Vide M Golden 1990 34 (fig 5)34 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas assinada por Duacuteris c 490-480 aC (Berlim Staatliche

Museen Antikensammlung F 2285) Vide J Boardman 1975 nordm 289 J Neils amp J Oakley 2003 66 244-246 (cat 44) httpwwwmlahanasdeGreeksLXBerlinF2285html (acedido em 30112010)

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da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a

brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas

Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos

do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da

crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito

atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de

uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos

uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um

olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila

lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode

ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar

da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir

de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam

a descobrir o que as rodeia35

Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a

imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a

um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica

de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada

de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o

rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de

perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um

soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da

crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o

cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo

nem a atitude satildeo inteiramente naturais

35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)

36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)

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Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou

perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37

Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no

chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma

mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais

velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo

esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo

aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a

matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude

que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o

do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo

mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo

destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego

do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados

ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora

aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa

Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38

Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados

a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos

mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica

aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)

que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que

recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um

fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em

37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)

38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)

39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006

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1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena

harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para

a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza

de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude

desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo

da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua

frente satildeo claramente as de um bebeacute

Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero

crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a

cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos

de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava

a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa

alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia

e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde

a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos

exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de

c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no

centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada

numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma

escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa

sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica

por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria

muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade

sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina

Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420

40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)

41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)

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137

el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides

eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto

pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es

precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13

467-469

acceptior illi

quisquis is est quem caede mea placare paratis

liber erit sanguisque

ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os

disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo

versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima

tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha

mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est

(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava

se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo

donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una

princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son

palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las

Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus

ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la

tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten

de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en

una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo

devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de

Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada

por ella vv 469-473

siquos tamen ultima nostri

verba movent oris Priami vos filia regis

non captiva rogat genetrici corpus inemptum

reddite neve auro redimat ius triste sepulcri

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138

sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro

ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega

la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo

sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro

con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea

tambieacuten lo pagaba con orordquo

No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de

forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes

padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar

el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples

presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En

este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que

Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su

madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba

del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una

madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que

constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere

la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta

todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina

tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y

que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y

tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y

extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480

Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat

non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos

praebita coniecto rupit praecordia ferro

illa super terram defecto poplite labens

pertulit intrepidos ad fata novissima vultus

tunc quoque cura fuit partes velare tegendas

cum caderet casti que decus servare pudoris

10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos

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139

ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea

incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el

hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra

al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso

rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que

debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo

reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-

570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima

verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al

caer

ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών

ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta

con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque

moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura

ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo

La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste

en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten

de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los

aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin

vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan

en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a

la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de

Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe

proleacuteptica de los vv 483-485

teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx

regia dicta parens Asiae florentis imago

nunc etiam praedae mala sors

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140

ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada

regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo

incluso de un botiacutenrdquo

que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos

pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias

se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre

todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro

El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento

contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural

propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente

influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6

441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-

745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los

detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten

a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la

guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana

con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam

cecidisti) de Met 13 497-498

at te quia femina rebar

a ferro tutam cecidisti et femina ferro

ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer

has muerto por el hierrordquo

Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos

a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar

auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso

innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije

lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras

dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante

la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea

contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo

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141

insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado

de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748

οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου

ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de

los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo

Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio

confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no

responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en

Seacuteneca Contr 9 5 17

Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri

solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius

nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana

Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut

ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse

sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]

tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]

Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus

magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere

ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer

semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los

oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido

bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias

de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena

para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia

ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento

con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo

Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo

Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber

decir como saber dejar de decirrdquo

11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa

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142

pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel

forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado

esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado

orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo

perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met

13 505-520

iacet Ilion ingens

eventuque gravi finita est publica clades

sed finita tamen soli mihi Pergama restant

in cursuque meus dolor est modo maxima rerum

tot generis natisque potens nuribusque viroque

nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum

Penelopes munus quae me data pensa trahentem

matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est

clara parens haec est dicet Priameia coniunx

postque tot amissos tu nunc quae sola levabas

maternos luctus hostilia busta piasti

inferias hosti peperi quo ferrea resto

quidve moror quo me servas annosa senectus

quo di crudeles nisi uti nova funera cernam

vivacem differtis anum quis posse putaret

felicem Priamum post diruta Pergama dici

ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la

desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece

Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante

de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy

arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos

presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a

miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre

madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos

se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has

aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres

para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero

iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser

para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten

creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten

de Peacutergamordquo

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143

quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los

momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr

104-106 dice la abatida soberana

αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις

ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se

le han ido patria hijos y esposordquo

y continuacutea en 140-142

δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς

ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber

sido destruido mi poder lastimeramenterdquo

Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199

φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς

ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja

resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie

fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta

cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo

Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476

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144

ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν

ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores

no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo

y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y

descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el

sacrificio de Poliacutexena

οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα

ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa

de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por

la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de

polvo su desgraciada cabezardquo

Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba

como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513

ldquohaec Hectoris illa est

clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo

ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo

presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva

esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para

siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497

τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν

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145

κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν

ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer

esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez

me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la

que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un

camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir

este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para

los ricosrdquo

Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias

de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir

felix morte sua est nec te mea nata peremptam

adspicit et vitam pariter regnum que reliquit

ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute

a la vez la vida y el reinordquo

auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas

1312-1316

Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν

ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no

ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos

con impiacuteo deguumlellordquo

con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante

consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11

158-161

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146

tuque o sanctissima coniunx

felix morte tua neque in hunc seruata dolorem

contra ego uiuendo uici mea fata superstes

restarem ut genitor

ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada

para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para

sobrevir siendo su padrerdquo

La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye

el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda

no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten

de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen

a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha

recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que

se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna

llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute

portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se

repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate

Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610

σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός

ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del

mar traacuteela aquiacuterdquo

pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al

mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que

como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido

en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de

dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal

vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase

maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y

ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere

de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544

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205

Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio

Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12

surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo

Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida

do moccedilo do escritoacuterio

Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal

dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho

estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto

como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No

corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida

dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante

para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos

quentes

Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou

da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para

uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi

uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui

hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que

cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando

era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira

alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de

hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo

automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo

porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do

escritoacuterio foi-se embora

12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente

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206

Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino

sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute

copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da

escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em

mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a

trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu

Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13

Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco

do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio

para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo

Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos

acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao

moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa

claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as

indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a

Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-

Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa

a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria

cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade

narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente

delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando

Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar

de longo em tudo nos interessa

Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em

que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele

o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor

mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o

13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo

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207

homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias

alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara

nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se

considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me

com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele

laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do

seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o

senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz

de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa

cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute

quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas

pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum

de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem

seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este

ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou

largarraquo (91-92)16

E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para

comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute

que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao

preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua

dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite

pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo

garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17

Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor

Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas

hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a

16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)

17 Apud P D de Almeida 2008 156

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208

mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a

consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista

Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa

agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo

deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio

foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e

Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de

praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim

das traseirasrdquo (pp 21-22)

A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas

atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que

seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo

se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio

cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais

opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas

viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como

ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo

regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)

Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato

mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985

preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo

entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de

preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de

fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor

de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19

Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se

uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)

neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado

e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como

18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15

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209

em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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210

prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

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211

pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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212

Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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213

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334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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335

agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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336

da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

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339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

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341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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Tuan Yi Fu (1996) ndash Space and place Humanistic perspective In Agnew John Livingstone David amp Rogers Alisdair Human Geography An essential anthology Blackwell Cambridge 1ordf ed 1974

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assistem ou sauacutedam a receacutem-nascida ndash que vamos encontrar nas decoraccedilotildees

de vasos de figuras negras atribuiacutedos ao Grupo E (c 560-540 aC) assim

chamado por ter sido o ateliecirc onde se formou o grande pintor Exeacutequias

Num conjunto relevante de acircnforas preservadas em diferentes museus este

esquema iconograacutefico manteacutem-se com ligeiras variaccedilotildees comprovando a

popularidade do tema na Eacutepoca Arcaica uma pequena Atena vestida com

um peplos e armada sai da cabeccedila de Zeus que sentado num trono elaborado

e com o raio na matildeo eacute assistido de cada lado por vaacuterias divindades Aleacutem

das Ilitias (uma ou duas) que erguem o braccedilo em sinal de auxiacutelio os deuses

normalmente trecircs satildeo identificados pelos adereccedilos proacuteprios e alternam em

cada vaso (Dioacutenisos Hermes Poseacuteidon Apolo Ares Hefestos) Sob o trono

de Zeus surge a figura reduzida de um homem ou de uma divindade alada25

Outros tratamentos do nascimento de Atena na pintura de vasos aacuteticos

retratam a deusa armada sobre os joelhos de Zeus (a partir de 550 aC) ou

junto do pai mas com aspecto de adulta figuraccedilatildeo que parece ter sido

adoptada por Fiacutedias no frontatildeo oriental do Paacutertenon26 A rejeiccedilatildeo da imagem

de Atena como crianccedila natildeo eacute caso uacutenico e relaciona-se com a complexa e

interessante questatildeo que diz respeito ao tratamento literaacuterio e iconograacutefico

do nascimento de deusas e heroiacutenas De facto regra geral (Aacutertemis parece

ser a excepccedilatildeo) estas vecircm ao mundo com formas adultas ao contraacuterio dos

25 Eg Berlim Staatliche Museen Antikensammlung 1699 vide R Vollkommer 2000 376 (fig 2) Boston Museum of Fine Arts 00330 vide S Blundell and M Williamson 1998 61 (fig 45) Munique Antikensammlungen 1382 New Haven Yale University Art Gallery 198322 vide J Neils amp J Oakley 2003 116 206-207 (cat 5) Paris Museu do Louvre F 32 vide httpcommonswikimediaorgwikiFileAmphora_birth_Athena_Louvre_F32jpg (acedido em 30112010) Viena Kunsthistorisches Museum IV 3596 Acircnforas da mesma oficina com variaccedilotildees deste esquema iconograacutefico eg Atena sem elmo e com o escudo eacute retratada sobre os joelhos de Zeus (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum L 250) sete divindades (Ilitia Heacuteracles Ares Apolo Poseacuteidon Hera e Hefestos) assistem ao nascimento sob o trono surgem duas figuras masculinas nuas (Londres The British Museum B 147) Zeus sentado num elaborado trono e uma minuacutescula Atena armada (elmo escudo e lanccedila) satildeo representados frontalmente acompanhados por Hermes Ares Ilitia e outra deusa (Richmond Virginia Museum of Fine Arts 6023) vide T Carpenter 1991 nordm 100 e httpwwwvmfastatevausCollectionsAncient_ArtBlack-figured_Amphora_60_23aspx (acedido em 30112010)

26 Sobre a iconografia do nascimento de Atena vide J Boardman 1974 37 216-217 e 1991b 102 H Cassimatis (1984) in LIMC II1 sv Athena pp 985-990 1021-1023 T Carpenter 1991 71-72 L Beaumont 1995 349-351 e 1998 76-77 R Vollkommer 2000 375-377

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deuses e heroacuteis como Apolo Dioacutenisos Heacuteracles Hermes e Aquiles que

natildeo soacute nascem bebeacutes como vivem episoacutedios ceacutelebres na infacircncia anunciando

as qualidades ou defeitos que os distinguem na idade adulta No entanto

quando os artistas gregos optavam por retratar as deusas e heroiacutenas apenas

como adultas ndash o caso de Afrodite que emerge das aacuteguas no esplendor da

sua beleza eacute paradigmaacutetico ndash natildeo estavam de facto a seguir uma convenccedilatildeo

pictoacuterica Como observou Lesley Beaumont este eacute possivelmente um caso

em que as expressotildees artiacutesticas reflectem a mentalidade vigente na Atenas

arcaica e claacutessica que atribuiacutea agrave crianccedila e agrave mulher um lugar inferior na

hierarquia social e as considerava menos capazes ser deusa eacute partilhar de

algum modo da fragilidade do elemento feminino mas ser deusa e crianccedila

eacute elevar essa fragilidade a uma escala inaceitaacutevel pelo que o mito na sua

expressatildeo literaacuteria e artiacutestica parece ter evitado a dificuldade que seria

conciliar a ideia de ldquodivinordquo com as concepccedilotildees predominantes de crianccedila

e mulher (1995 349-361 1998 80-93 especialmente)

O corpus de vasos aacuteticos de figuras negras que representam crianccedilas

humanas natildeo eacute significativo mas as cenas retratadas satildeo diversas e constituem

um contributo valioso para o estudo da infacircncia ateniense

Uma placa votiva de meados do seacutec VI aC mostra-nos o interior de um

lar onde uma mulher sentada num banco e apoiada numa mesa se entrega

a tarefas domeacutesticas possivelmente agrave tecelagem ou confecccedilatildeo de vestuaacuterio

A decoraccedilatildeo vistosa da sua indumentaacuteria eacute um elemento que sobressai e

contrasta com a figura nua que atraacutes de si vemos sentada no chatildeo entre

os moacuteveis O penteado e atitude indicam tratar-se de uma menina mas as

formas sobretudo as matildeos e pernas muito compridas natildeo satildeo proporcionais

nem harmoniosas27

Um leacutecito do mesmo periacuteodo evoca uma situaccedilatildeo provavelmente frequente

no quotidiano infantil mas tatildeo pouco representada no corpus de vasos

aacuteticos que sugeriu o nome do artista Tal como na peccedila anterior a figura

27 Placa votiva aacutetica de figuras negras c 560 aC (Atenas Museu da Acroacutepole 2525) Vide M Golden 1990 35 (fig 6) L Beaumont 2003 63 (ldquoa rare early representation of a female infantrdquo) H Foley 2003 118-119 (fig 7)

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central ndash um menino que tenta escapar aos accediloites de um homem e corre

para os braccedilos de uma mulher ndash apenas eacute identificada como crianccedila por

estar nua e ter metade do tamanho das restantes figuras A cena no seu

conjunto faz imediatamente pensar num menino ainda pequeno que foge

da sandaacutelia do pai e busca o afecto da matildee um tema adequado a um vaso

comum e muito usado em casa como recipiente para azeite28

Os autores destas imagens natildeo foram capazes de traccedilar a fisionomia

caracteriacutestica da crianccedila mas isso natildeo significa que os artistas aacuteticos desta

eacutepoca eram menos haacutebeis ou prestavam pouca atenccedilatildeo aos elementos mais

novos da poacutelis A placa votiva que comentaacutemos proveniente da acroacutepole

de Atenas natildeo eacute decerto um trabalho profissional e o vaso embora

interessante eacute atribuiacutedo a um pintor que J Boardman (1974 33) considera

um ldquoimitador sem talentordquo No entanto numa cena de despedida de guerreiros

que decora uma acircnfora atribuiacuteda ao referido Grupo E cujas obras satildeo muito

mais elaboradas a personagem de rosto masculino e formas musculadas

que se destaca do centro da composiccedilatildeo como no vaso anterior apenas eacute

identificada como um menino ou jovem por estar nu e ter metade do

tamanho das outras figuras29 Este exemplo pode sugerir que para os pintores

aacuteticos deste periacuteodo eram mais importantes as convenccedilotildees pictoacutericas ndash como

a nudez a altura e o tamanho dos mais pequenos ndash do que o realismo da

representaccedilatildeo

Uma placa (pinax) de terracota funeraacuteria com inscriccedilotildees do comeccedilo do

seacuteculo V aC pode corroborar esta hipoacutetese30 Numa composiccedilatildeo elaborada

que retrata o ritual de exposiccedilatildeo do corpo (prothesis) no qual participam

vaacuterios homens e mulheres estas mais proacuteximas do defunto distinguem-se

28 Leacutecito aacutetico de figuras negras pelo Pintor da Sandaacutelia (vaso epoacutenimo) c 550 aC (Bolonha Museo Civico Archeologico PU 204) Vide J Boardman 1974 nordm 43 M Golden 2003 26 (fig 5)

29 Acircnfora aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Grupo E c 560-540 aC (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum 247) Vide L Beaumont 2003 61 (fig 1)

30 Placa funeraacuteria aacutetica de terracota atribuiacuteda ao Pintor de Safo c 500-490 aC (Paris Museu do Louvre MNB 905) Vide J Boardman 1974 nordm 265 L Beaumont 2003 61-62 H Shapiro 2003 105 J Oakley 2003 164-165 (fig 3) httpenwikipediaorgwikiFilePinax_prothesis_Louvre_MNB905jpg (acedido em 30112010)

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trecircs figuras mais pequenas A mais baixa encontra-se no lado esquerdo

entre o grupo dos homens e o das mulheres e as roupas sugerem que se

trata de um menino talvez ainda pequeno pois apoia-se nas pernas do

leito fuacutenebre As outras duas de alturas distintas apenas diferem das

mulheres no tamanho (a inscriccedilatildeo identifica a menina mais baixa como irmatilde

do defunto) Assim esta peccedila aleacutem de documentar a participaccedilatildeo de crianccedilas

e jovens nas cerimoacutenias familiares e religiosas designadamente nos rituais

fuacutenebres um costume antigo jaacute atestado no estilo Geomeacutetrico indica que

o tamanho e a altura podiam ser os uacutenicos elementos convencionais a

distinguir uma crianccedila de uma pessoa mais velha

As imagens que comentaacutemos revelam-nos a intimidade dos lares atenienses

e os seus momentos mais dolorosos mas o repertoacuterio de figuras negras

tambeacutem contemplava os contactos com o exterior e situaccedilotildees mais alegres

Uma conhecida pelike atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides (c 500 aC) retrata

um menino a tirar medidas na loja do sapateiro na companhia do pai ou

do pedagogo31 A presenccedila deste elemento bem como o facto de a figura

mais pequena se encontrar em cima da mesa do artesatildeo e se apoiar na

cabeccedila deste sugerem que pode ser crianccedila embora as linhas do corpo natildeo

decircem essa impressatildeo Natildeo eacute claro de facto se o artista pretendia representar

um menino em idade escolar ou um rapaz mais velho

Finalmente merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de uma acircnfora

preservada em Estugarda que retrata trecircs jovens na companhia de um

homem provavelmente o pedagogo Enquanto uma delas anda de baloiccedilo

ndash uma actividade luacutedica que se relaciona provavelmente com um ritual

tambeacutem evocado na ceracircmica de figuras vermelhas32 ndash as outras cuidam de

duas crianccedilas mais pequenas Como nos vasos comentados anteriormente

31 Pelike aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides c 500 aC (Oxford Ashmolean Museum 563) Vide J Boardman 1974 nordm 229 M Golden 1990 29 (fig 2) M Vickers (1999) Ancient Greek Pottery Oxford Ashmoleum Museum 35 (nordm 23) J Neils amp J Oakley 2003 100 242 (cat 43)

32 O ritual da Aiora (ldquobaloiccedilordquo) era praticado por jovens em memoacuteria da jovem Eriacutegone que se suicidara apoacutes o assassiacutenio de seu pai Cf H Shapiro 2003 103-104 (fig 189) J Neils 2003 147 149 (fig 8) J Neils amp J Oakley 2003 288 (cat 102)

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estas satildeo facilmente identificadas pelo tamanho reduzido mas as suas formas

grosseiras contrastam com o desenho mais elegante com que o artista

representou as donzelas33

O cataacutelogo aacutetico de figuras vermelhas eacute muito mais rico e difiacutecil de

seleccionar tanto no domiacutenio dos temas mitoloacutegicos quanto no das cenas

inspiradas na vida quotidiana nas quais nos vamos deter e eacute evidente

tambeacutem que a qualidade das peccedilas e a forma de retratar as crianccedilas varia

consideravelmente

As cenas de escola constituem uma das principais novidades desta teacutecnica

e uma das obras mais belas eacute sem duacutevida a ceacutelebre taccedila assinada por Duacuteris

no princiacutepio do seacuteculo V aC e preservada em Berlim34 Decorada no exterior

com as liccedilotildees dos mestres de muacutesica (kitharistes) e de letras (grammatistes)

sob o olhar vigilante do pedagogo estas imagens satildeo certamente um

testemunho da importacircncia crescente da literacia no dealbar da Eacutepoca

Claacutessica No seacuteculo V aC em Atenas normalmente a partir dos sete anos

os meninos iniciavam a instruccedilatildeo baacutesica no exterior enquanto as meninas

continuavam em casa e aprendiam a gerir o lar junto da matildee e das escravas

Apesar da qualidade extraordinaacuteria da taccedila de Duacuteris a idade dos alunos

retratados nestas cenas natildeo eacute facilmente perceptiacutevel pois o principal traccedilo

que os distingue dos adultos eacute a estatura menor

Um dos grandes contributos das figuras vermelhas para o estudo da

infacircncia ateniense eacute o interesse que dedica aos afectos familiares e agraves

diferentes fases da vida de uma crianccedila tema que adquire cada vez mais

importacircncia ao longo do seacuteculo V aC Assim as cenas de gineceu tornam-se

muito mais correntes e se natildeo raras vezes mostram os preparativos do

casamento ou os cuidados com o corpo dos elementos femininos as crianccedilas

passam a estar cada vez mais presentes e constituem mesmo o tema principal

33 Estugarda Wuumlrttembergisches Landesmuseum 651 Vide M Golden 1990 34 (fig 5)34 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas assinada por Duacuteris c 490-480 aC (Berlim Staatliche

Museen Antikensammlung F 2285) Vide J Boardman 1975 nordm 289 J Neils amp J Oakley 2003 66 244-246 (cat 44) httpwwwmlahanasdeGreeksLXBerlinF2285html (acedido em 30112010)

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da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a

brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas

Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos

do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da

crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito

atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de

uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos

uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um

olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila

lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode

ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar

da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir

de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam

a descobrir o que as rodeia35

Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a

imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a

um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica

de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada

de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o

rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de

perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um

soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da

crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o

cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo

nem a atitude satildeo inteiramente naturais

35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)

36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)

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Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou

perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37

Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no

chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma

mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais

velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo

esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo

aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a

matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude

que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o

do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo

mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo

destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego

do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados

ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora

aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa

Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38

Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados

a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos

mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica

aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)

que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que

recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um

fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em

37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)

38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)

39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006

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1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena

harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para

a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza

de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude

desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo

da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua

frente satildeo claramente as de um bebeacute

Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero

crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a

cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos

de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava

a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa

alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia

e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde

a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos

exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de

c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no

centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada

numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma

escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa

sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica

por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria

muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade

sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina

Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420

40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)

41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)

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137

el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides

eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto

pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es

precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13

467-469

acceptior illi

quisquis is est quem caede mea placare paratis

liber erit sanguisque

ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os

disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo

versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima

tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha

mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est

(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava

se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo

donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una

princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son

palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las

Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus

ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la

tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten

de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en

una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo

devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de

Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada

por ella vv 469-473

siquos tamen ultima nostri

verba movent oris Priami vos filia regis

non captiva rogat genetrici corpus inemptum

reddite neve auro redimat ius triste sepulcri

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138

sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro

ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega

la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo

sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro

con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea

tambieacuten lo pagaba con orordquo

No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de

forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes

padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar

el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples

presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En

este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que

Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su

madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba

del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una

madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que

constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere

la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta

todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina

tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y

que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y

tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y

extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480

Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat

non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos

praebita coniecto rupit praecordia ferro

illa super terram defecto poplite labens

pertulit intrepidos ad fata novissima vultus

tunc quoque cura fuit partes velare tegendas

cum caderet casti que decus servare pudoris

10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos

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139

ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea

incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el

hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra

al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso

rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que

debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo

reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-

570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima

verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al

caer

ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών

ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta

con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque

moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura

ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo

La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste

en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten

de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los

aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin

vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan

en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a

la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de

Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe

proleacuteptica de los vv 483-485

teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx

regia dicta parens Asiae florentis imago

nunc etiam praedae mala sors

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140

ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada

regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo

incluso de un botiacutenrdquo

que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos

pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias

se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre

todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro

El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento

contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural

propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente

influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6

441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-

745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los

detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten

a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la

guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana

con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam

cecidisti) de Met 13 497-498

at te quia femina rebar

a ferro tutam cecidisti et femina ferro

ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer

has muerto por el hierrordquo

Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos

a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar

auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso

innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije

lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras

dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante

la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea

contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo

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141

insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado

de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748

οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου

ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de

los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo

Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio

confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no

responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en

Seacuteneca Contr 9 5 17

Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri

solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius

nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana

Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut

ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse

sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]

tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]

Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus

magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere

ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer

semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los

oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido

bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias

de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena

para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia

ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento

con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo

Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo

Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber

decir como saber dejar de decirrdquo

11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa

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142

pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel

forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado

esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado

orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo

perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met

13 505-520

iacet Ilion ingens

eventuque gravi finita est publica clades

sed finita tamen soli mihi Pergama restant

in cursuque meus dolor est modo maxima rerum

tot generis natisque potens nuribusque viroque

nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum

Penelopes munus quae me data pensa trahentem

matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est

clara parens haec est dicet Priameia coniunx

postque tot amissos tu nunc quae sola levabas

maternos luctus hostilia busta piasti

inferias hosti peperi quo ferrea resto

quidve moror quo me servas annosa senectus

quo di crudeles nisi uti nova funera cernam

vivacem differtis anum quis posse putaret

felicem Priamum post diruta Pergama dici

ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la

desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece

Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante

de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy

arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos

presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a

miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre

madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos

se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has

aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres

para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero

iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser

para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten

creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten

de Peacutergamordquo

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143

quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los

momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr

104-106 dice la abatida soberana

αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις

ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se

le han ido patria hijos y esposordquo

y continuacutea en 140-142

δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς

ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber

sido destruido mi poder lastimeramenterdquo

Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199

φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς

ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja

resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie

fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta

cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo

Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476

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144

ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν

ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores

no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo

y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y

descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el

sacrificio de Poliacutexena

οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα

ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa

de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por

la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de

polvo su desgraciada cabezardquo

Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba

como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513

ldquohaec Hectoris illa est

clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo

ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo

presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva

esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para

siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497

τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν

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145

κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν

ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer

esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez

me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la

que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un

camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir

este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para

los ricosrdquo

Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias

de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir

felix morte sua est nec te mea nata peremptam

adspicit et vitam pariter regnum que reliquit

ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute

a la vez la vida y el reinordquo

auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas

1312-1316

Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν

ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no

ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos

con impiacuteo deguumlellordquo

con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante

consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11

158-161

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146

tuque o sanctissima coniunx

felix morte tua neque in hunc seruata dolorem

contra ego uiuendo uici mea fata superstes

restarem ut genitor

ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada

para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para

sobrevir siendo su padrerdquo

La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye

el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda

no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten

de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen

a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha

recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que

se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna

llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute

portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se

repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate

Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610

σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός

ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del

mar traacuteela aquiacuterdquo

pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al

mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que

como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido

en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de

dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal

vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase

maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y

ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere

de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544

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205

Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio

Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12

surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo

Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida

do moccedilo do escritoacuterio

Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal

dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho

estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto

como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No

corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida

dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante

para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos

quentes

Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou

da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para

uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi

uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui

hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que

cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando

era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira

alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de

hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo

automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo

porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do

escritoacuterio foi-se embora

12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente

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206

Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino

sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute

copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da

escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em

mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a

trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu

Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13

Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco

do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio

para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo

Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos

acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao

moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa

claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as

indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a

Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-

Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa

a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria

cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade

narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente

delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando

Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar

de longo em tudo nos interessa

Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em

que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele

o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor

mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o

13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo

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207

homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias

alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara

nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se

considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me

com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele

laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do

seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o

senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz

de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa

cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute

quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas

pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum

de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem

seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este

ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou

largarraquo (91-92)16

E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para

comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute

que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao

preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua

dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite

pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo

garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17

Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor

Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas

hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a

16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)

17 Apud P D de Almeida 2008 156

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208

mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a

consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista

Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa

agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo

deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio

foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e

Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de

praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim

das traseirasrdquo (pp 21-22)

A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas

atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que

seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo

se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio

cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais

opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas

viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como

ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo

regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)

Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato

mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985

preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo

entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de

preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de

fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor

de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19

Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se

uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)

neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado

e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como

18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15

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209

em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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210

prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

Obra protegida por direitos de autor

211

pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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212

Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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213

Bibliografia

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334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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335

agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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336

da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

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339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

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341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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deuses e heroacuteis como Apolo Dioacutenisos Heacuteracles Hermes e Aquiles que

natildeo soacute nascem bebeacutes como vivem episoacutedios ceacutelebres na infacircncia anunciando

as qualidades ou defeitos que os distinguem na idade adulta No entanto

quando os artistas gregos optavam por retratar as deusas e heroiacutenas apenas

como adultas ndash o caso de Afrodite que emerge das aacuteguas no esplendor da

sua beleza eacute paradigmaacutetico ndash natildeo estavam de facto a seguir uma convenccedilatildeo

pictoacuterica Como observou Lesley Beaumont este eacute possivelmente um caso

em que as expressotildees artiacutesticas reflectem a mentalidade vigente na Atenas

arcaica e claacutessica que atribuiacutea agrave crianccedila e agrave mulher um lugar inferior na

hierarquia social e as considerava menos capazes ser deusa eacute partilhar de

algum modo da fragilidade do elemento feminino mas ser deusa e crianccedila

eacute elevar essa fragilidade a uma escala inaceitaacutevel pelo que o mito na sua

expressatildeo literaacuteria e artiacutestica parece ter evitado a dificuldade que seria

conciliar a ideia de ldquodivinordquo com as concepccedilotildees predominantes de crianccedila

e mulher (1995 349-361 1998 80-93 especialmente)

O corpus de vasos aacuteticos de figuras negras que representam crianccedilas

humanas natildeo eacute significativo mas as cenas retratadas satildeo diversas e constituem

um contributo valioso para o estudo da infacircncia ateniense

Uma placa votiva de meados do seacutec VI aC mostra-nos o interior de um

lar onde uma mulher sentada num banco e apoiada numa mesa se entrega

a tarefas domeacutesticas possivelmente agrave tecelagem ou confecccedilatildeo de vestuaacuterio

A decoraccedilatildeo vistosa da sua indumentaacuteria eacute um elemento que sobressai e

contrasta com a figura nua que atraacutes de si vemos sentada no chatildeo entre

os moacuteveis O penteado e atitude indicam tratar-se de uma menina mas as

formas sobretudo as matildeos e pernas muito compridas natildeo satildeo proporcionais

nem harmoniosas27

Um leacutecito do mesmo periacuteodo evoca uma situaccedilatildeo provavelmente frequente

no quotidiano infantil mas tatildeo pouco representada no corpus de vasos

aacuteticos que sugeriu o nome do artista Tal como na peccedila anterior a figura

27 Placa votiva aacutetica de figuras negras c 560 aC (Atenas Museu da Acroacutepole 2525) Vide M Golden 1990 35 (fig 6) L Beaumont 2003 63 (ldquoa rare early representation of a female infantrdquo) H Foley 2003 118-119 (fig 7)

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central ndash um menino que tenta escapar aos accediloites de um homem e corre

para os braccedilos de uma mulher ndash apenas eacute identificada como crianccedila por

estar nua e ter metade do tamanho das restantes figuras A cena no seu

conjunto faz imediatamente pensar num menino ainda pequeno que foge

da sandaacutelia do pai e busca o afecto da matildee um tema adequado a um vaso

comum e muito usado em casa como recipiente para azeite28

Os autores destas imagens natildeo foram capazes de traccedilar a fisionomia

caracteriacutestica da crianccedila mas isso natildeo significa que os artistas aacuteticos desta

eacutepoca eram menos haacutebeis ou prestavam pouca atenccedilatildeo aos elementos mais

novos da poacutelis A placa votiva que comentaacutemos proveniente da acroacutepole

de Atenas natildeo eacute decerto um trabalho profissional e o vaso embora

interessante eacute atribuiacutedo a um pintor que J Boardman (1974 33) considera

um ldquoimitador sem talentordquo No entanto numa cena de despedida de guerreiros

que decora uma acircnfora atribuiacuteda ao referido Grupo E cujas obras satildeo muito

mais elaboradas a personagem de rosto masculino e formas musculadas

que se destaca do centro da composiccedilatildeo como no vaso anterior apenas eacute

identificada como um menino ou jovem por estar nu e ter metade do

tamanho das outras figuras29 Este exemplo pode sugerir que para os pintores

aacuteticos deste periacuteodo eram mais importantes as convenccedilotildees pictoacutericas ndash como

a nudez a altura e o tamanho dos mais pequenos ndash do que o realismo da

representaccedilatildeo

Uma placa (pinax) de terracota funeraacuteria com inscriccedilotildees do comeccedilo do

seacuteculo V aC pode corroborar esta hipoacutetese30 Numa composiccedilatildeo elaborada

que retrata o ritual de exposiccedilatildeo do corpo (prothesis) no qual participam

vaacuterios homens e mulheres estas mais proacuteximas do defunto distinguem-se

28 Leacutecito aacutetico de figuras negras pelo Pintor da Sandaacutelia (vaso epoacutenimo) c 550 aC (Bolonha Museo Civico Archeologico PU 204) Vide J Boardman 1974 nordm 43 M Golden 2003 26 (fig 5)

29 Acircnfora aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Grupo E c 560-540 aC (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum 247) Vide L Beaumont 2003 61 (fig 1)

30 Placa funeraacuteria aacutetica de terracota atribuiacuteda ao Pintor de Safo c 500-490 aC (Paris Museu do Louvre MNB 905) Vide J Boardman 1974 nordm 265 L Beaumont 2003 61-62 H Shapiro 2003 105 J Oakley 2003 164-165 (fig 3) httpenwikipediaorgwikiFilePinax_prothesis_Louvre_MNB905jpg (acedido em 30112010)

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74

trecircs figuras mais pequenas A mais baixa encontra-se no lado esquerdo

entre o grupo dos homens e o das mulheres e as roupas sugerem que se

trata de um menino talvez ainda pequeno pois apoia-se nas pernas do

leito fuacutenebre As outras duas de alturas distintas apenas diferem das

mulheres no tamanho (a inscriccedilatildeo identifica a menina mais baixa como irmatilde

do defunto) Assim esta peccedila aleacutem de documentar a participaccedilatildeo de crianccedilas

e jovens nas cerimoacutenias familiares e religiosas designadamente nos rituais

fuacutenebres um costume antigo jaacute atestado no estilo Geomeacutetrico indica que

o tamanho e a altura podiam ser os uacutenicos elementos convencionais a

distinguir uma crianccedila de uma pessoa mais velha

As imagens que comentaacutemos revelam-nos a intimidade dos lares atenienses

e os seus momentos mais dolorosos mas o repertoacuterio de figuras negras

tambeacutem contemplava os contactos com o exterior e situaccedilotildees mais alegres

Uma conhecida pelike atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides (c 500 aC) retrata

um menino a tirar medidas na loja do sapateiro na companhia do pai ou

do pedagogo31 A presenccedila deste elemento bem como o facto de a figura

mais pequena se encontrar em cima da mesa do artesatildeo e se apoiar na

cabeccedila deste sugerem que pode ser crianccedila embora as linhas do corpo natildeo

decircem essa impressatildeo Natildeo eacute claro de facto se o artista pretendia representar

um menino em idade escolar ou um rapaz mais velho

Finalmente merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de uma acircnfora

preservada em Estugarda que retrata trecircs jovens na companhia de um

homem provavelmente o pedagogo Enquanto uma delas anda de baloiccedilo

ndash uma actividade luacutedica que se relaciona provavelmente com um ritual

tambeacutem evocado na ceracircmica de figuras vermelhas32 ndash as outras cuidam de

duas crianccedilas mais pequenas Como nos vasos comentados anteriormente

31 Pelike aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides c 500 aC (Oxford Ashmolean Museum 563) Vide J Boardman 1974 nordm 229 M Golden 1990 29 (fig 2) M Vickers (1999) Ancient Greek Pottery Oxford Ashmoleum Museum 35 (nordm 23) J Neils amp J Oakley 2003 100 242 (cat 43)

32 O ritual da Aiora (ldquobaloiccedilordquo) era praticado por jovens em memoacuteria da jovem Eriacutegone que se suicidara apoacutes o assassiacutenio de seu pai Cf H Shapiro 2003 103-104 (fig 189) J Neils 2003 147 149 (fig 8) J Neils amp J Oakley 2003 288 (cat 102)

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75

estas satildeo facilmente identificadas pelo tamanho reduzido mas as suas formas

grosseiras contrastam com o desenho mais elegante com que o artista

representou as donzelas33

O cataacutelogo aacutetico de figuras vermelhas eacute muito mais rico e difiacutecil de

seleccionar tanto no domiacutenio dos temas mitoloacutegicos quanto no das cenas

inspiradas na vida quotidiana nas quais nos vamos deter e eacute evidente

tambeacutem que a qualidade das peccedilas e a forma de retratar as crianccedilas varia

consideravelmente

As cenas de escola constituem uma das principais novidades desta teacutecnica

e uma das obras mais belas eacute sem duacutevida a ceacutelebre taccedila assinada por Duacuteris

no princiacutepio do seacuteculo V aC e preservada em Berlim34 Decorada no exterior

com as liccedilotildees dos mestres de muacutesica (kitharistes) e de letras (grammatistes)

sob o olhar vigilante do pedagogo estas imagens satildeo certamente um

testemunho da importacircncia crescente da literacia no dealbar da Eacutepoca

Claacutessica No seacuteculo V aC em Atenas normalmente a partir dos sete anos

os meninos iniciavam a instruccedilatildeo baacutesica no exterior enquanto as meninas

continuavam em casa e aprendiam a gerir o lar junto da matildee e das escravas

Apesar da qualidade extraordinaacuteria da taccedila de Duacuteris a idade dos alunos

retratados nestas cenas natildeo eacute facilmente perceptiacutevel pois o principal traccedilo

que os distingue dos adultos eacute a estatura menor

Um dos grandes contributos das figuras vermelhas para o estudo da

infacircncia ateniense eacute o interesse que dedica aos afectos familiares e agraves

diferentes fases da vida de uma crianccedila tema que adquire cada vez mais

importacircncia ao longo do seacuteculo V aC Assim as cenas de gineceu tornam-se

muito mais correntes e se natildeo raras vezes mostram os preparativos do

casamento ou os cuidados com o corpo dos elementos femininos as crianccedilas

passam a estar cada vez mais presentes e constituem mesmo o tema principal

33 Estugarda Wuumlrttembergisches Landesmuseum 651 Vide M Golden 1990 34 (fig 5)34 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas assinada por Duacuteris c 490-480 aC (Berlim Staatliche

Museen Antikensammlung F 2285) Vide J Boardman 1975 nordm 289 J Neils amp J Oakley 2003 66 244-246 (cat 44) httpwwwmlahanasdeGreeksLXBerlinF2285html (acedido em 30112010)

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76

da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a

brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas

Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos

do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da

crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito

atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de

uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos

uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um

olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila

lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode

ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar

da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir

de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam

a descobrir o que as rodeia35

Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a

imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a

um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica

de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada

de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o

rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de

perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um

soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da

crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o

cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo

nem a atitude satildeo inteiramente naturais

35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)

36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)

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77

Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou

perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37

Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no

chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma

mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais

velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo

esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo

aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a

matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude

que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o

do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo

mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo

destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego

do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados

ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora

aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa

Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38

Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados

a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos

mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica

aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)

que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que

recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um

fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em

37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)

38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)

39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006

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78

1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena

harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para

a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza

de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude

desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo

da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua

frente satildeo claramente as de um bebeacute

Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero

crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a

cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos

de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava

a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa

alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia

e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde

a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos

exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de

c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no

centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada

numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma

escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa

sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica

por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria

muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade

sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina

Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420

40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)

41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)

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137

el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides

eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto

pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es

precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13

467-469

acceptior illi

quisquis is est quem caede mea placare paratis

liber erit sanguisque

ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os

disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo

versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima

tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha

mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est

(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava

se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo

donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una

princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son

palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las

Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus

ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la

tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten

de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en

una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo

devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de

Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada

por ella vv 469-473

siquos tamen ultima nostri

verba movent oris Priami vos filia regis

non captiva rogat genetrici corpus inemptum

reddite neve auro redimat ius triste sepulcri

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138

sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro

ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega

la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo

sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro

con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea

tambieacuten lo pagaba con orordquo

No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de

forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes

padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar

el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples

presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En

este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que

Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su

madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba

del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una

madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que

constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere

la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta

todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina

tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y

que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y

tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y

extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480

Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat

non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos

praebita coniecto rupit praecordia ferro

illa super terram defecto poplite labens

pertulit intrepidos ad fata novissima vultus

tunc quoque cura fuit partes velare tegendas

cum caderet casti que decus servare pudoris

10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos

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139

ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea

incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el

hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra

al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso

rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que

debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo

reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-

570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima

verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al

caer

ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών

ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta

con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque

moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura

ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo

La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste

en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten

de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los

aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin

vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan

en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a

la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de

Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe

proleacuteptica de los vv 483-485

teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx

regia dicta parens Asiae florentis imago

nunc etiam praedae mala sors

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140

ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada

regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo

incluso de un botiacutenrdquo

que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos

pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias

se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre

todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro

El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento

contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural

propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente

influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6

441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-

745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los

detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten

a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la

guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana

con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam

cecidisti) de Met 13 497-498

at te quia femina rebar

a ferro tutam cecidisti et femina ferro

ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer

has muerto por el hierrordquo

Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos

a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar

auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso

innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije

lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras

dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante

la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea

contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo

Obra protegida por direitos de autor

141

insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado

de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748

οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου

ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de

los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo

Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio

confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no

responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en

Seacuteneca Contr 9 5 17

Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri

solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius

nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana

Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut

ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse

sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]

tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]

Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus

magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere

ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer

semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los

oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido

bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias

de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena

para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia

ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento

con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo

Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo

Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber

decir como saber dejar de decirrdquo

11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa

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142

pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel

forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado

esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado

orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo

perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met

13 505-520

iacet Ilion ingens

eventuque gravi finita est publica clades

sed finita tamen soli mihi Pergama restant

in cursuque meus dolor est modo maxima rerum

tot generis natisque potens nuribusque viroque

nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum

Penelopes munus quae me data pensa trahentem

matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est

clara parens haec est dicet Priameia coniunx

postque tot amissos tu nunc quae sola levabas

maternos luctus hostilia busta piasti

inferias hosti peperi quo ferrea resto

quidve moror quo me servas annosa senectus

quo di crudeles nisi uti nova funera cernam

vivacem differtis anum quis posse putaret

felicem Priamum post diruta Pergama dici

ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la

desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece

Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante

de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy

arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos

presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a

miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre

madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos

se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has

aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres

para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero

iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser

para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten

creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten

de Peacutergamordquo

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143

quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los

momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr

104-106 dice la abatida soberana

αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις

ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se

le han ido patria hijos y esposordquo

y continuacutea en 140-142

δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς

ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber

sido destruido mi poder lastimeramenterdquo

Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199

φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς

ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja

resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie

fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta

cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo

Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476

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144

ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν

ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores

no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo

y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y

descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el

sacrificio de Poliacutexena

οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα

ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa

de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por

la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de

polvo su desgraciada cabezardquo

Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba

como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513

ldquohaec Hectoris illa est

clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo

ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo

presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva

esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para

siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497

τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν

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145

κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν

ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer

esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez

me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la

que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un

camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir

este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para

los ricosrdquo

Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias

de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir

felix morte sua est nec te mea nata peremptam

adspicit et vitam pariter regnum que reliquit

ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute

a la vez la vida y el reinordquo

auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas

1312-1316

Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν

ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no

ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos

con impiacuteo deguumlellordquo

con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante

consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11

158-161

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146

tuque o sanctissima coniunx

felix morte tua neque in hunc seruata dolorem

contra ego uiuendo uici mea fata superstes

restarem ut genitor

ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada

para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para

sobrevir siendo su padrerdquo

La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye

el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda

no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten

de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen

a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha

recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que

se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna

llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute

portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se

repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate

Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610

σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός

ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del

mar traacuteela aquiacuterdquo

pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al

mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que

como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido

en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de

dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal

vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase

maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y

ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere

de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544

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205

Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio

Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12

surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo

Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida

do moccedilo do escritoacuterio

Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal

dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho

estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto

como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No

corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida

dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante

para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos

quentes

Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou

da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para

uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi

uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui

hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que

cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando

era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira

alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de

hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo

automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo

porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do

escritoacuterio foi-se embora

12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente

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206

Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino

sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute

copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da

escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em

mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a

trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu

Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13

Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco

do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio

para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo

Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos

acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao

moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa

claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as

indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a

Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-

Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa

a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria

cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade

narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente

delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando

Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar

de longo em tudo nos interessa

Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em

que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele

o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor

mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o

13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo

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207

homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias

alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara

nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se

considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me

com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele

laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do

seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o

senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz

de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa

cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute

quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas

pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum

de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem

seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este

ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou

largarraquo (91-92)16

E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para

comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute

que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao

preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua

dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite

pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo

garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17

Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor

Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas

hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a

16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)

17 Apud P D de Almeida 2008 156

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208

mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a

consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista

Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa

agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo

deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio

foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e

Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de

praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim

das traseirasrdquo (pp 21-22)

A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas

atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que

seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo

se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio

cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais

opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas

viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como

ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo

regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)

Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato

mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985

preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo

entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de

preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de

fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor

de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19

Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se

uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)

neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado

e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como

18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15

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209

em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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210

prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

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211

pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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212

Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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213

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Zenith Richard (ed) (2003) Livro do Desassossego 4ordf ed Lisboa Assiacuterio e Alvim

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334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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335

agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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336

da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

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339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

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341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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central ndash um menino que tenta escapar aos accediloites de um homem e corre

para os braccedilos de uma mulher ndash apenas eacute identificada como crianccedila por

estar nua e ter metade do tamanho das restantes figuras A cena no seu

conjunto faz imediatamente pensar num menino ainda pequeno que foge

da sandaacutelia do pai e busca o afecto da matildee um tema adequado a um vaso

comum e muito usado em casa como recipiente para azeite28

Os autores destas imagens natildeo foram capazes de traccedilar a fisionomia

caracteriacutestica da crianccedila mas isso natildeo significa que os artistas aacuteticos desta

eacutepoca eram menos haacutebeis ou prestavam pouca atenccedilatildeo aos elementos mais

novos da poacutelis A placa votiva que comentaacutemos proveniente da acroacutepole

de Atenas natildeo eacute decerto um trabalho profissional e o vaso embora

interessante eacute atribuiacutedo a um pintor que J Boardman (1974 33) considera

um ldquoimitador sem talentordquo No entanto numa cena de despedida de guerreiros

que decora uma acircnfora atribuiacuteda ao referido Grupo E cujas obras satildeo muito

mais elaboradas a personagem de rosto masculino e formas musculadas

que se destaca do centro da composiccedilatildeo como no vaso anterior apenas eacute

identificada como um menino ou jovem por estar nu e ter metade do

tamanho das outras figuras29 Este exemplo pode sugerir que para os pintores

aacuteticos deste periacuteodo eram mais importantes as convenccedilotildees pictoacutericas ndash como

a nudez a altura e o tamanho dos mais pequenos ndash do que o realismo da

representaccedilatildeo

Uma placa (pinax) de terracota funeraacuteria com inscriccedilotildees do comeccedilo do

seacuteculo V aC pode corroborar esta hipoacutetese30 Numa composiccedilatildeo elaborada

que retrata o ritual de exposiccedilatildeo do corpo (prothesis) no qual participam

vaacuterios homens e mulheres estas mais proacuteximas do defunto distinguem-se

28 Leacutecito aacutetico de figuras negras pelo Pintor da Sandaacutelia (vaso epoacutenimo) c 550 aC (Bolonha Museo Civico Archeologico PU 204) Vide J Boardman 1974 nordm 43 M Golden 2003 26 (fig 5)

29 Acircnfora aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Grupo E c 560-540 aC (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum 247) Vide L Beaumont 2003 61 (fig 1)

30 Placa funeraacuteria aacutetica de terracota atribuiacuteda ao Pintor de Safo c 500-490 aC (Paris Museu do Louvre MNB 905) Vide J Boardman 1974 nordm 265 L Beaumont 2003 61-62 H Shapiro 2003 105 J Oakley 2003 164-165 (fig 3) httpenwikipediaorgwikiFilePinax_prothesis_Louvre_MNB905jpg (acedido em 30112010)

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trecircs figuras mais pequenas A mais baixa encontra-se no lado esquerdo

entre o grupo dos homens e o das mulheres e as roupas sugerem que se

trata de um menino talvez ainda pequeno pois apoia-se nas pernas do

leito fuacutenebre As outras duas de alturas distintas apenas diferem das

mulheres no tamanho (a inscriccedilatildeo identifica a menina mais baixa como irmatilde

do defunto) Assim esta peccedila aleacutem de documentar a participaccedilatildeo de crianccedilas

e jovens nas cerimoacutenias familiares e religiosas designadamente nos rituais

fuacutenebres um costume antigo jaacute atestado no estilo Geomeacutetrico indica que

o tamanho e a altura podiam ser os uacutenicos elementos convencionais a

distinguir uma crianccedila de uma pessoa mais velha

As imagens que comentaacutemos revelam-nos a intimidade dos lares atenienses

e os seus momentos mais dolorosos mas o repertoacuterio de figuras negras

tambeacutem contemplava os contactos com o exterior e situaccedilotildees mais alegres

Uma conhecida pelike atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides (c 500 aC) retrata

um menino a tirar medidas na loja do sapateiro na companhia do pai ou

do pedagogo31 A presenccedila deste elemento bem como o facto de a figura

mais pequena se encontrar em cima da mesa do artesatildeo e se apoiar na

cabeccedila deste sugerem que pode ser crianccedila embora as linhas do corpo natildeo

decircem essa impressatildeo Natildeo eacute claro de facto se o artista pretendia representar

um menino em idade escolar ou um rapaz mais velho

Finalmente merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de uma acircnfora

preservada em Estugarda que retrata trecircs jovens na companhia de um

homem provavelmente o pedagogo Enquanto uma delas anda de baloiccedilo

ndash uma actividade luacutedica que se relaciona provavelmente com um ritual

tambeacutem evocado na ceracircmica de figuras vermelhas32 ndash as outras cuidam de

duas crianccedilas mais pequenas Como nos vasos comentados anteriormente

31 Pelike aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides c 500 aC (Oxford Ashmolean Museum 563) Vide J Boardman 1974 nordm 229 M Golden 1990 29 (fig 2) M Vickers (1999) Ancient Greek Pottery Oxford Ashmoleum Museum 35 (nordm 23) J Neils amp J Oakley 2003 100 242 (cat 43)

32 O ritual da Aiora (ldquobaloiccedilordquo) era praticado por jovens em memoacuteria da jovem Eriacutegone que se suicidara apoacutes o assassiacutenio de seu pai Cf H Shapiro 2003 103-104 (fig 189) J Neils 2003 147 149 (fig 8) J Neils amp J Oakley 2003 288 (cat 102)

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estas satildeo facilmente identificadas pelo tamanho reduzido mas as suas formas

grosseiras contrastam com o desenho mais elegante com que o artista

representou as donzelas33

O cataacutelogo aacutetico de figuras vermelhas eacute muito mais rico e difiacutecil de

seleccionar tanto no domiacutenio dos temas mitoloacutegicos quanto no das cenas

inspiradas na vida quotidiana nas quais nos vamos deter e eacute evidente

tambeacutem que a qualidade das peccedilas e a forma de retratar as crianccedilas varia

consideravelmente

As cenas de escola constituem uma das principais novidades desta teacutecnica

e uma das obras mais belas eacute sem duacutevida a ceacutelebre taccedila assinada por Duacuteris

no princiacutepio do seacuteculo V aC e preservada em Berlim34 Decorada no exterior

com as liccedilotildees dos mestres de muacutesica (kitharistes) e de letras (grammatistes)

sob o olhar vigilante do pedagogo estas imagens satildeo certamente um

testemunho da importacircncia crescente da literacia no dealbar da Eacutepoca

Claacutessica No seacuteculo V aC em Atenas normalmente a partir dos sete anos

os meninos iniciavam a instruccedilatildeo baacutesica no exterior enquanto as meninas

continuavam em casa e aprendiam a gerir o lar junto da matildee e das escravas

Apesar da qualidade extraordinaacuteria da taccedila de Duacuteris a idade dos alunos

retratados nestas cenas natildeo eacute facilmente perceptiacutevel pois o principal traccedilo

que os distingue dos adultos eacute a estatura menor

Um dos grandes contributos das figuras vermelhas para o estudo da

infacircncia ateniense eacute o interesse que dedica aos afectos familiares e agraves

diferentes fases da vida de uma crianccedila tema que adquire cada vez mais

importacircncia ao longo do seacuteculo V aC Assim as cenas de gineceu tornam-se

muito mais correntes e se natildeo raras vezes mostram os preparativos do

casamento ou os cuidados com o corpo dos elementos femininos as crianccedilas

passam a estar cada vez mais presentes e constituem mesmo o tema principal

33 Estugarda Wuumlrttembergisches Landesmuseum 651 Vide M Golden 1990 34 (fig 5)34 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas assinada por Duacuteris c 490-480 aC (Berlim Staatliche

Museen Antikensammlung F 2285) Vide J Boardman 1975 nordm 289 J Neils amp J Oakley 2003 66 244-246 (cat 44) httpwwwmlahanasdeGreeksLXBerlinF2285html (acedido em 30112010)

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da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a

brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas

Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos

do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da

crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito

atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de

uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos

uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um

olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila

lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode

ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar

da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir

de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam

a descobrir o que as rodeia35

Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a

imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a

um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica

de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada

de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o

rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de

perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um

soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da

crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o

cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo

nem a atitude satildeo inteiramente naturais

35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)

36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)

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77

Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou

perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37

Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no

chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma

mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais

velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo

esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo

aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a

matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude

que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o

do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo

mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo

destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego

do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados

ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora

aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa

Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38

Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados

a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos

mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica

aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)

que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que

recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um

fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em

37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)

38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)

39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006

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78

1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena

harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para

a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza

de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude

desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo

da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua

frente satildeo claramente as de um bebeacute

Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero

crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a

cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos

de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava

a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa

alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia

e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde

a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos

exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de

c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no

centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada

numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma

escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa

sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica

por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria

muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade

sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina

Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420

40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)

41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)

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137

el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides

eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto

pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es

precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13

467-469

acceptior illi

quisquis is est quem caede mea placare paratis

liber erit sanguisque

ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os

disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo

versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima

tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha

mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est

(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava

se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo

donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una

princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son

palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las

Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus

ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la

tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten

de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en

una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo

devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de

Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada

por ella vv 469-473

siquos tamen ultima nostri

verba movent oris Priami vos filia regis

non captiva rogat genetrici corpus inemptum

reddite neve auro redimat ius triste sepulcri

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138

sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro

ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega

la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo

sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro

con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea

tambieacuten lo pagaba con orordquo

No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de

forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes

padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar

el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples

presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En

este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que

Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su

madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba

del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una

madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que

constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere

la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta

todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina

tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y

que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y

tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y

extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480

Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat

non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos

praebita coniecto rupit praecordia ferro

illa super terram defecto poplite labens

pertulit intrepidos ad fata novissima vultus

tunc quoque cura fuit partes velare tegendas

cum caderet casti que decus servare pudoris

10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos

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139

ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea

incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el

hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra

al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso

rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que

debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo

reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-

570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima

verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al

caer

ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών

ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta

con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque

moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura

ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo

La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste

en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten

de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los

aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin

vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan

en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a

la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de

Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe

proleacuteptica de los vv 483-485

teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx

regia dicta parens Asiae florentis imago

nunc etiam praedae mala sors

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140

ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada

regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo

incluso de un botiacutenrdquo

que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos

pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias

se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre

todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro

El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento

contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural

propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente

influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6

441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-

745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los

detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten

a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la

guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana

con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam

cecidisti) de Met 13 497-498

at te quia femina rebar

a ferro tutam cecidisti et femina ferro

ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer

has muerto por el hierrordquo

Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos

a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar

auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso

innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije

lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras

dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante

la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea

contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo

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141

insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado

de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748

οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου

ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de

los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo

Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio

confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no

responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en

Seacuteneca Contr 9 5 17

Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri

solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius

nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana

Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut

ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse

sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]

tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]

Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus

magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere

ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer

semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los

oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido

bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias

de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena

para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia

ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento

con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo

Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo

Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber

decir como saber dejar de decirrdquo

11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa

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142

pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel

forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado

esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado

orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo

perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met

13 505-520

iacet Ilion ingens

eventuque gravi finita est publica clades

sed finita tamen soli mihi Pergama restant

in cursuque meus dolor est modo maxima rerum

tot generis natisque potens nuribusque viroque

nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum

Penelopes munus quae me data pensa trahentem

matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est

clara parens haec est dicet Priameia coniunx

postque tot amissos tu nunc quae sola levabas

maternos luctus hostilia busta piasti

inferias hosti peperi quo ferrea resto

quidve moror quo me servas annosa senectus

quo di crudeles nisi uti nova funera cernam

vivacem differtis anum quis posse putaret

felicem Priamum post diruta Pergama dici

ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la

desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece

Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante

de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy

arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos

presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a

miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre

madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos

se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has

aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres

para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero

iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser

para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten

creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten

de Peacutergamordquo

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143

quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los

momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr

104-106 dice la abatida soberana

αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις

ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se

le han ido patria hijos y esposordquo

y continuacutea en 140-142

δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς

ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber

sido destruido mi poder lastimeramenterdquo

Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199

φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς

ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja

resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie

fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta

cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo

Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476

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144

ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν

ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores

no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo

y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y

descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el

sacrificio de Poliacutexena

οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα

ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa

de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por

la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de

polvo su desgraciada cabezardquo

Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba

como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513

ldquohaec Hectoris illa est

clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo

ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo

presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva

esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para

siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497

τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν

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145

κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν

ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer

esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez

me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la

que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un

camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir

este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para

los ricosrdquo

Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias

de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir

felix morte sua est nec te mea nata peremptam

adspicit et vitam pariter regnum que reliquit

ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute

a la vez la vida y el reinordquo

auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas

1312-1316

Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν

ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no

ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos

con impiacuteo deguumlellordquo

con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante

consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11

158-161

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146

tuque o sanctissima coniunx

felix morte tua neque in hunc seruata dolorem

contra ego uiuendo uici mea fata superstes

restarem ut genitor

ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada

para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para

sobrevir siendo su padrerdquo

La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye

el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda

no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten

de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen

a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha

recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que

se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna

llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute

portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se

repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate

Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610

σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός

ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del

mar traacuteela aquiacuterdquo

pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al

mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que

como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido

en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de

dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal

vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase

maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y

ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere

de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544

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205

Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio

Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12

surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo

Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida

do moccedilo do escritoacuterio

Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal

dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho

estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto

como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No

corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida

dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante

para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos

quentes

Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou

da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para

uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi

uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui

hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que

cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando

era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira

alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de

hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo

automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo

porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do

escritoacuterio foi-se embora

12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente

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206

Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino

sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute

copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da

escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em

mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a

trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu

Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13

Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco

do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio

para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo

Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos

acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao

moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa

claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as

indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a

Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-

Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa

a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria

cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade

narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente

delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando

Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar

de longo em tudo nos interessa

Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em

que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele

o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor

mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o

13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo

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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias

alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara

nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se

considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me

com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele

laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do

seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o

senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz

de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa

cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute

quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas

pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum

de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem

seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este

ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou

largarraquo (91-92)16

E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para

comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute

que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao

preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua

dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite

pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo

garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17

Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor

Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas

hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a

16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)

17 Apud P D de Almeida 2008 156

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208

mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a

consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista

Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa

agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo

deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio

foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e

Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de

praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim

das traseirasrdquo (pp 21-22)

A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas

atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que

seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo

se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio

cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais

opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas

viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como

ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo

regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)

Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato

mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985

preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo

entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de

preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de

fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor

de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19

Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se

uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)

neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado

e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como

18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15

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209

em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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210

prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

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211

pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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212

Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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213

Bibliografia

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Claacuteudio Maacuterio (2005) Os sonetos italianos de Tiago Veiga Porto Asa

Claacuteudio Maacuterio (2007) O Eixo da buacutessola Vila Nova de Famalicatildeo Ediccedilotildees Quasi

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Lino Pedro Sena (2005) ldquoVersos de um muito ningueacutemrdquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in PuacuteblicoMil Folhas 10 de Dezembro 22-23

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Zenith Richard (ed) (2003) Livro do Desassossego 4ordf ed Lisboa Assiacuterio e Alvim

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334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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335

agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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336

da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

Obra protegida por direitos de autor

339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

Obra protegida por direitos de autor

341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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trecircs figuras mais pequenas A mais baixa encontra-se no lado esquerdo

entre o grupo dos homens e o das mulheres e as roupas sugerem que se

trata de um menino talvez ainda pequeno pois apoia-se nas pernas do

leito fuacutenebre As outras duas de alturas distintas apenas diferem das

mulheres no tamanho (a inscriccedilatildeo identifica a menina mais baixa como irmatilde

do defunto) Assim esta peccedila aleacutem de documentar a participaccedilatildeo de crianccedilas

e jovens nas cerimoacutenias familiares e religiosas designadamente nos rituais

fuacutenebres um costume antigo jaacute atestado no estilo Geomeacutetrico indica que

o tamanho e a altura podiam ser os uacutenicos elementos convencionais a

distinguir uma crianccedila de uma pessoa mais velha

As imagens que comentaacutemos revelam-nos a intimidade dos lares atenienses

e os seus momentos mais dolorosos mas o repertoacuterio de figuras negras

tambeacutem contemplava os contactos com o exterior e situaccedilotildees mais alegres

Uma conhecida pelike atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides (c 500 aC) retrata

um menino a tirar medidas na loja do sapateiro na companhia do pai ou

do pedagogo31 A presenccedila deste elemento bem como o facto de a figura

mais pequena se encontrar em cima da mesa do artesatildeo e se apoiar na

cabeccedila deste sugerem que pode ser crianccedila embora as linhas do corpo natildeo

decircem essa impressatildeo Natildeo eacute claro de facto se o artista pretendia representar

um menino em idade escolar ou um rapaz mais velho

Finalmente merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de uma acircnfora

preservada em Estugarda que retrata trecircs jovens na companhia de um

homem provavelmente o pedagogo Enquanto uma delas anda de baloiccedilo

ndash uma actividade luacutedica que se relaciona provavelmente com um ritual

tambeacutem evocado na ceracircmica de figuras vermelhas32 ndash as outras cuidam de

duas crianccedilas mais pequenas Como nos vasos comentados anteriormente

31 Pelike aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides c 500 aC (Oxford Ashmolean Museum 563) Vide J Boardman 1974 nordm 229 M Golden 1990 29 (fig 2) M Vickers (1999) Ancient Greek Pottery Oxford Ashmoleum Museum 35 (nordm 23) J Neils amp J Oakley 2003 100 242 (cat 43)

32 O ritual da Aiora (ldquobaloiccedilordquo) era praticado por jovens em memoacuteria da jovem Eriacutegone que se suicidara apoacutes o assassiacutenio de seu pai Cf H Shapiro 2003 103-104 (fig 189) J Neils 2003 147 149 (fig 8) J Neils amp J Oakley 2003 288 (cat 102)

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75

estas satildeo facilmente identificadas pelo tamanho reduzido mas as suas formas

grosseiras contrastam com o desenho mais elegante com que o artista

representou as donzelas33

O cataacutelogo aacutetico de figuras vermelhas eacute muito mais rico e difiacutecil de

seleccionar tanto no domiacutenio dos temas mitoloacutegicos quanto no das cenas

inspiradas na vida quotidiana nas quais nos vamos deter e eacute evidente

tambeacutem que a qualidade das peccedilas e a forma de retratar as crianccedilas varia

consideravelmente

As cenas de escola constituem uma das principais novidades desta teacutecnica

e uma das obras mais belas eacute sem duacutevida a ceacutelebre taccedila assinada por Duacuteris

no princiacutepio do seacuteculo V aC e preservada em Berlim34 Decorada no exterior

com as liccedilotildees dos mestres de muacutesica (kitharistes) e de letras (grammatistes)

sob o olhar vigilante do pedagogo estas imagens satildeo certamente um

testemunho da importacircncia crescente da literacia no dealbar da Eacutepoca

Claacutessica No seacuteculo V aC em Atenas normalmente a partir dos sete anos

os meninos iniciavam a instruccedilatildeo baacutesica no exterior enquanto as meninas

continuavam em casa e aprendiam a gerir o lar junto da matildee e das escravas

Apesar da qualidade extraordinaacuteria da taccedila de Duacuteris a idade dos alunos

retratados nestas cenas natildeo eacute facilmente perceptiacutevel pois o principal traccedilo

que os distingue dos adultos eacute a estatura menor

Um dos grandes contributos das figuras vermelhas para o estudo da

infacircncia ateniense eacute o interesse que dedica aos afectos familiares e agraves

diferentes fases da vida de uma crianccedila tema que adquire cada vez mais

importacircncia ao longo do seacuteculo V aC Assim as cenas de gineceu tornam-se

muito mais correntes e se natildeo raras vezes mostram os preparativos do

casamento ou os cuidados com o corpo dos elementos femininos as crianccedilas

passam a estar cada vez mais presentes e constituem mesmo o tema principal

33 Estugarda Wuumlrttembergisches Landesmuseum 651 Vide M Golden 1990 34 (fig 5)34 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas assinada por Duacuteris c 490-480 aC (Berlim Staatliche

Museen Antikensammlung F 2285) Vide J Boardman 1975 nordm 289 J Neils amp J Oakley 2003 66 244-246 (cat 44) httpwwwmlahanasdeGreeksLXBerlinF2285html (acedido em 30112010)

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76

da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a

brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas

Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos

do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da

crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito

atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de

uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos

uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um

olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila

lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode

ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar

da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir

de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam

a descobrir o que as rodeia35

Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a

imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a

um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica

de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada

de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o

rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de

perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um

soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da

crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o

cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo

nem a atitude satildeo inteiramente naturais

35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)

36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)

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Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou

perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37

Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no

chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma

mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais

velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo

esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo

aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a

matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude

que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o

do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo

mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo

destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego

do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados

ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora

aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa

Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38

Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados

a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos

mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica

aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)

que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que

recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um

fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em

37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)

38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)

39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006

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78

1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena

harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para

a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza

de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude

desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo

da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua

frente satildeo claramente as de um bebeacute

Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero

crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a

cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos

de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava

a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa

alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia

e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde

a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos

exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de

c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no

centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada

numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma

escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa

sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica

por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria

muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade

sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina

Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420

40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)

41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)

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137

el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides

eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto

pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es

precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13

467-469

acceptior illi

quisquis is est quem caede mea placare paratis

liber erit sanguisque

ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os

disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo

versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima

tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha

mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est

(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava

se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo

donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una

princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son

palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las

Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus

ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la

tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten

de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en

una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo

devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de

Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada

por ella vv 469-473

siquos tamen ultima nostri

verba movent oris Priami vos filia regis

non captiva rogat genetrici corpus inemptum

reddite neve auro redimat ius triste sepulcri

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138

sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro

ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega

la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo

sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro

con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea

tambieacuten lo pagaba con orordquo

No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de

forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes

padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar

el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples

presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En

este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que

Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su

madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba

del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una

madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que

constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere

la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta

todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina

tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y

que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y

tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y

extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480

Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat

non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos

praebita coniecto rupit praecordia ferro

illa super terram defecto poplite labens

pertulit intrepidos ad fata novissima vultus

tunc quoque cura fuit partes velare tegendas

cum caderet casti que decus servare pudoris

10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos

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139

ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea

incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el

hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra

al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso

rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que

debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo

reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-

570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima

verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al

caer

ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών

ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta

con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque

moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura

ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo

La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste

en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten

de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los

aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin

vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan

en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a

la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de

Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe

proleacuteptica de los vv 483-485

teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx

regia dicta parens Asiae florentis imago

nunc etiam praedae mala sors

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140

ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada

regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo

incluso de un botiacutenrdquo

que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos

pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias

se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre

todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro

El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento

contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural

propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente

influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6

441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-

745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los

detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten

a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la

guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana

con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam

cecidisti) de Met 13 497-498

at te quia femina rebar

a ferro tutam cecidisti et femina ferro

ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer

has muerto por el hierrordquo

Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos

a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar

auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso

innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije

lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras

dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante

la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea

contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo

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141

insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado

de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748

οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου

ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de

los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo

Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio

confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no

responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en

Seacuteneca Contr 9 5 17

Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri

solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius

nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana

Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut

ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse

sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]

tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]

Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus

magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere

ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer

semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los

oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido

bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias

de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena

para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia

ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento

con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo

Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo

Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber

decir como saber dejar de decirrdquo

11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa

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142

pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel

forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado

esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado

orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo

perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met

13 505-520

iacet Ilion ingens

eventuque gravi finita est publica clades

sed finita tamen soli mihi Pergama restant

in cursuque meus dolor est modo maxima rerum

tot generis natisque potens nuribusque viroque

nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum

Penelopes munus quae me data pensa trahentem

matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est

clara parens haec est dicet Priameia coniunx

postque tot amissos tu nunc quae sola levabas

maternos luctus hostilia busta piasti

inferias hosti peperi quo ferrea resto

quidve moror quo me servas annosa senectus

quo di crudeles nisi uti nova funera cernam

vivacem differtis anum quis posse putaret

felicem Priamum post diruta Pergama dici

ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la

desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece

Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante

de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy

arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos

presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a

miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre

madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos

se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has

aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres

para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero

iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser

para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten

creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten

de Peacutergamordquo

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143

quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los

momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr

104-106 dice la abatida soberana

αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις

ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se

le han ido patria hijos y esposordquo

y continuacutea en 140-142

δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς

ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber

sido destruido mi poder lastimeramenterdquo

Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199

φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς

ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja

resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie

fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta

cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo

Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476

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144

ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν

ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores

no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo

y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y

descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el

sacrificio de Poliacutexena

οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα

ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa

de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por

la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de

polvo su desgraciada cabezardquo

Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba

como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513

ldquohaec Hectoris illa est

clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo

ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo

presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva

esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para

siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497

τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν

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145

κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν

ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer

esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez

me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la

que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un

camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir

este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para

los ricosrdquo

Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias

de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir

felix morte sua est nec te mea nata peremptam

adspicit et vitam pariter regnum que reliquit

ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute

a la vez la vida y el reinordquo

auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas

1312-1316

Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν

ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no

ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos

con impiacuteo deguumlellordquo

con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante

consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11

158-161

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146

tuque o sanctissima coniunx

felix morte tua neque in hunc seruata dolorem

contra ego uiuendo uici mea fata superstes

restarem ut genitor

ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada

para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para

sobrevir siendo su padrerdquo

La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye

el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda

no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten

de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen

a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha

recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que

se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna

llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute

portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se

repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate

Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610

σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός

ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del

mar traacuteela aquiacuterdquo

pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al

mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que

como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido

en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de

dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal

vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase

maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y

ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere

de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544

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205

Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio

Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12

surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo

Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida

do moccedilo do escritoacuterio

Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal

dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho

estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto

como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No

corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida

dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante

para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos

quentes

Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou

da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para

uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi

uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui

hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que

cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando

era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira

alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de

hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo

automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo

porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do

escritoacuterio foi-se embora

12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente

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206

Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino

sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute

copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da

escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em

mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a

trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu

Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13

Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco

do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio

para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo

Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos

acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao

moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa

claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as

indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a

Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-

Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa

a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria

cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade

narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente

delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando

Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar

de longo em tudo nos interessa

Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em

que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele

o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor

mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o

13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo

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207

homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias

alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara

nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se

considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me

com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele

laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do

seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o

senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz

de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa

cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute

quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas

pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum

de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem

seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este

ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou

largarraquo (91-92)16

E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para

comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute

que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao

preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua

dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite

pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo

garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17

Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor

Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas

hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a

16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)

17 Apud P D de Almeida 2008 156

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208

mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a

consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista

Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa

agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo

deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio

foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e

Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de

praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim

das traseirasrdquo (pp 21-22)

A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas

atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que

seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo

se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio

cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais

opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas

viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como

ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo

regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)

Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato

mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985

preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo

entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de

preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de

fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor

de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19

Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se

uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)

neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado

e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como

18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15

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209

em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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210

prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

Obra protegida por direitos de autor

211

pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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212

Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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213

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334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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335

agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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336

da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

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339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

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341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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estas satildeo facilmente identificadas pelo tamanho reduzido mas as suas formas

grosseiras contrastam com o desenho mais elegante com que o artista

representou as donzelas33

O cataacutelogo aacutetico de figuras vermelhas eacute muito mais rico e difiacutecil de

seleccionar tanto no domiacutenio dos temas mitoloacutegicos quanto no das cenas

inspiradas na vida quotidiana nas quais nos vamos deter e eacute evidente

tambeacutem que a qualidade das peccedilas e a forma de retratar as crianccedilas varia

consideravelmente

As cenas de escola constituem uma das principais novidades desta teacutecnica

e uma das obras mais belas eacute sem duacutevida a ceacutelebre taccedila assinada por Duacuteris

no princiacutepio do seacuteculo V aC e preservada em Berlim34 Decorada no exterior

com as liccedilotildees dos mestres de muacutesica (kitharistes) e de letras (grammatistes)

sob o olhar vigilante do pedagogo estas imagens satildeo certamente um

testemunho da importacircncia crescente da literacia no dealbar da Eacutepoca

Claacutessica No seacuteculo V aC em Atenas normalmente a partir dos sete anos

os meninos iniciavam a instruccedilatildeo baacutesica no exterior enquanto as meninas

continuavam em casa e aprendiam a gerir o lar junto da matildee e das escravas

Apesar da qualidade extraordinaacuteria da taccedila de Duacuteris a idade dos alunos

retratados nestas cenas natildeo eacute facilmente perceptiacutevel pois o principal traccedilo

que os distingue dos adultos eacute a estatura menor

Um dos grandes contributos das figuras vermelhas para o estudo da

infacircncia ateniense eacute o interesse que dedica aos afectos familiares e agraves

diferentes fases da vida de uma crianccedila tema que adquire cada vez mais

importacircncia ao longo do seacuteculo V aC Assim as cenas de gineceu tornam-se

muito mais correntes e se natildeo raras vezes mostram os preparativos do

casamento ou os cuidados com o corpo dos elementos femininos as crianccedilas

passam a estar cada vez mais presentes e constituem mesmo o tema principal

33 Estugarda Wuumlrttembergisches Landesmuseum 651 Vide M Golden 1990 34 (fig 5)34 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas assinada por Duacuteris c 490-480 aC (Berlim Staatliche

Museen Antikensammlung F 2285) Vide J Boardman 1975 nordm 289 J Neils amp J Oakley 2003 66 244-246 (cat 44) httpwwwmlahanasdeGreeksLXBerlinF2285html (acedido em 30112010)

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76

da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a

brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas

Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos

do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da

crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito

atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de

uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos

uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um

olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila

lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode

ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar

da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir

de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam

a descobrir o que as rodeia35

Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a

imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a

um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica

de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada

de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o

rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de

perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um

soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da

crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o

cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo

nem a atitude satildeo inteiramente naturais

35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)

36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)

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77

Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou

perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37

Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no

chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma

mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais

velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo

esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo

aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a

matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude

que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o

do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo

mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo

destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego

do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados

ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora

aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa

Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38

Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados

a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos

mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica

aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)

que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que

recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um

fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em

37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)

38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)

39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006

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78

1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena

harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para

a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza

de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude

desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo

da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua

frente satildeo claramente as de um bebeacute

Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero

crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a

cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos

de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava

a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa

alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia

e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde

a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos

exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de

c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no

centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada

numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma

escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa

sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica

por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria

muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade

sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina

Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420

40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)

41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)

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137

el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides

eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto

pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es

precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13

467-469

acceptior illi

quisquis is est quem caede mea placare paratis

liber erit sanguisque

ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os

disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo

versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima

tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha

mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est

(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava

se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo

donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una

princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son

palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las

Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus

ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la

tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten

de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en

una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo

devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de

Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada

por ella vv 469-473

siquos tamen ultima nostri

verba movent oris Priami vos filia regis

non captiva rogat genetrici corpus inemptum

reddite neve auro redimat ius triste sepulcri

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138

sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro

ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega

la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo

sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro

con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea

tambieacuten lo pagaba con orordquo

No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de

forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes

padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar

el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples

presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En

este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que

Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su

madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba

del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una

madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que

constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere

la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta

todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina

tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y

que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y

tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y

extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480

Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat

non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos

praebita coniecto rupit praecordia ferro

illa super terram defecto poplite labens

pertulit intrepidos ad fata novissima vultus

tunc quoque cura fuit partes velare tegendas

cum caderet casti que decus servare pudoris

10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos

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139

ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea

incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el

hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra

al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso

rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que

debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo

reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-

570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima

verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al

caer

ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών

ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta

con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque

moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura

ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo

La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste

en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten

de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los

aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin

vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan

en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a

la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de

Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe

proleacuteptica de los vv 483-485

teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx

regia dicta parens Asiae florentis imago

nunc etiam praedae mala sors

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140

ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada

regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo

incluso de un botiacutenrdquo

que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos

pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias

se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre

todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro

El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento

contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural

propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente

influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6

441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-

745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los

detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten

a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la

guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana

con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam

cecidisti) de Met 13 497-498

at te quia femina rebar

a ferro tutam cecidisti et femina ferro

ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer

has muerto por el hierrordquo

Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos

a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar

auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso

innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije

lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras

dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante

la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea

contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo

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141

insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado

de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748

οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου

ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de

los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo

Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio

confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no

responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en

Seacuteneca Contr 9 5 17

Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri

solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius

nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana

Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut

ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse

sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]

tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]

Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus

magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere

ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer

semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los

oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido

bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias

de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena

para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia

ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento

con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo

Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo

Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber

decir como saber dejar de decirrdquo

11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa

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142

pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel

forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado

esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado

orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo

perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met

13 505-520

iacet Ilion ingens

eventuque gravi finita est publica clades

sed finita tamen soli mihi Pergama restant

in cursuque meus dolor est modo maxima rerum

tot generis natisque potens nuribusque viroque

nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum

Penelopes munus quae me data pensa trahentem

matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est

clara parens haec est dicet Priameia coniunx

postque tot amissos tu nunc quae sola levabas

maternos luctus hostilia busta piasti

inferias hosti peperi quo ferrea resto

quidve moror quo me servas annosa senectus

quo di crudeles nisi uti nova funera cernam

vivacem differtis anum quis posse putaret

felicem Priamum post diruta Pergama dici

ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la

desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece

Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante

de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy

arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos

presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a

miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre

madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos

se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has

aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres

para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero

iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser

para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten

creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten

de Peacutergamordquo

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143

quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los

momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr

104-106 dice la abatida soberana

αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις

ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se

le han ido patria hijos y esposordquo

y continuacutea en 140-142

δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς

ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber

sido destruido mi poder lastimeramenterdquo

Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199

φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς

ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja

resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie

fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta

cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo

Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476

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144

ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν

ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores

no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo

y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y

descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el

sacrificio de Poliacutexena

οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα

ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa

de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por

la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de

polvo su desgraciada cabezardquo

Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba

como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513

ldquohaec Hectoris illa est

clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo

ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo

presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva

esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para

siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497

τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν

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145

κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν

ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer

esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez

me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la

que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un

camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir

este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para

los ricosrdquo

Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias

de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir

felix morte sua est nec te mea nata peremptam

adspicit et vitam pariter regnum que reliquit

ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute

a la vez la vida y el reinordquo

auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas

1312-1316

Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν

ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no

ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos

con impiacuteo deguumlellordquo

con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante

consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11

158-161

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146

tuque o sanctissima coniunx

felix morte tua neque in hunc seruata dolorem

contra ego uiuendo uici mea fata superstes

restarem ut genitor

ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada

para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para

sobrevir siendo su padrerdquo

La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye

el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda

no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten

de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen

a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha

recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que

se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna

llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute

portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se

repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate

Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610

σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός

ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del

mar traacuteela aquiacuterdquo

pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al

mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que

como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido

en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de

dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal

vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase

maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y

ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere

de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544

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205

Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio

Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12

surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo

Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida

do moccedilo do escritoacuterio

Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal

dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho

estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto

como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No

corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida

dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante

para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos

quentes

Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou

da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para

uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi

uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui

hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que

cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando

era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira

alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de

hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo

automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo

porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do

escritoacuterio foi-se embora

12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente

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206

Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino

sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute

copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da

escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em

mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a

trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu

Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13

Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco

do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio

para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo

Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos

acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao

moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa

claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as

indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a

Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-

Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa

a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria

cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade

narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente

delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando

Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar

de longo em tudo nos interessa

Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em

que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele

o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor

mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o

13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo

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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias

alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara

nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se

considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me

com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele

laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do

seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o

senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz

de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa

cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute

quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas

pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum

de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem

seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este

ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou

largarraquo (91-92)16

E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para

comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute

que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao

preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua

dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite

pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo

garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17

Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor

Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas

hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a

16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)

17 Apud P D de Almeida 2008 156

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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a

consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista

Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa

agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo

deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio

foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e

Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de

praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim

das traseirasrdquo (pp 21-22)

A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas

atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que

seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo

se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio

cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais

opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas

viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como

ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo

regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)

Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato

mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985

preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo

entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de

preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de

fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor

de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19

Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se

uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)

neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado

e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como

18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15

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209

em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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210

prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

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211

pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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212

Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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213

Bibliografia

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Claacuteudio Maacuterio (2005) Os sonetos italianos de Tiago Veiga Porto Asa

Claacuteudio Maacuterio (2007) O Eixo da buacutessola Vila Nova de Famalicatildeo Ediccedilotildees Quasi

Claacuteudio Maacuterio (2008) Boa noite senhor Soares Lisboa Dom Quixote

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Lino Pedro Sena (2005) ldquoVersos de um muito ningueacutemrdquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in PuacuteblicoMil Folhas 10 de Dezembro 22-23

Lucas Isabel (2008) ldquoQuem escreve mal pensa malrdquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in Diaacuterio de Notiacutecias 4 de Junho 43-44

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Zenith Richard (ed) (2003) Livro do Desassossego 4ordf ed Lisboa Assiacuterio e Alvim

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334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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336

da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

Obra protegida por direitos de autor

339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

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341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a

brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas

Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos

do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da

crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito

atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de

uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos

uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um

olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila

lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode

ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar

da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir

de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam

a descobrir o que as rodeia35

Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a

imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a

um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica

de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada

de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o

rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de

perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um

soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da

crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o

cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo

nem a atitude satildeo inteiramente naturais

35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)

36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)

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77

Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou

perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37

Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no

chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma

mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais

velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo

esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo

aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a

matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude

que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o

do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo

mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo

destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego

do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados

ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora

aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa

Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38

Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados

a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos

mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica

aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)

que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que

recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um

fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em

37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)

38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)

39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006

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78

1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena

harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para

a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza

de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude

desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo

da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua

frente satildeo claramente as de um bebeacute

Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero

crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a

cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos

de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava

a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa

alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia

e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde

a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos

exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de

c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no

centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada

numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma

escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa

sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica

por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria

muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade

sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina

Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420

40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)

41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)

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137

el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides

eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto

pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es

precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13

467-469

acceptior illi

quisquis is est quem caede mea placare paratis

liber erit sanguisque

ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os

disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo

versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima

tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha

mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est

(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava

se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo

donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una

princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son

palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las

Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus

ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la

tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten

de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en

una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo

devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de

Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada

por ella vv 469-473

siquos tamen ultima nostri

verba movent oris Priami vos filia regis

non captiva rogat genetrici corpus inemptum

reddite neve auro redimat ius triste sepulcri

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138

sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro

ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega

la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo

sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro

con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea

tambieacuten lo pagaba con orordquo

No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de

forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes

padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar

el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples

presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En

este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que

Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su

madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba

del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una

madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que

constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere

la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta

todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina

tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y

que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y

tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y

extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480

Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat

non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos

praebita coniecto rupit praecordia ferro

illa super terram defecto poplite labens

pertulit intrepidos ad fata novissima vultus

tunc quoque cura fuit partes velare tegendas

cum caderet casti que decus servare pudoris

10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos

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139

ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea

incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el

hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra

al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso

rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que

debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo

reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-

570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima

verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al

caer

ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών

ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta

con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque

moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura

ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo

La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste

en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten

de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los

aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin

vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan

en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a

la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de

Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe

proleacuteptica de los vv 483-485

teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx

regia dicta parens Asiae florentis imago

nunc etiam praedae mala sors

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140

ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada

regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo

incluso de un botiacutenrdquo

que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos

pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias

se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre

todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro

El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento

contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural

propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente

influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6

441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-

745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los

detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten

a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la

guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana

con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam

cecidisti) de Met 13 497-498

at te quia femina rebar

a ferro tutam cecidisti et femina ferro

ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer

has muerto por el hierrordquo

Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos

a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar

auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso

innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije

lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras

dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante

la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea

contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo

Obra protegida por direitos de autor

141

insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado

de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748

οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου

ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de

los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo

Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio

confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no

responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en

Seacuteneca Contr 9 5 17

Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri

solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius

nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana

Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut

ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse

sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]

tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]

Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus

magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere

ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer

semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los

oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido

bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias

de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena

para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia

ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento

con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo

Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo

Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber

decir como saber dejar de decirrdquo

11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa

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142

pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel

forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado

esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado

orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo

perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met

13 505-520

iacet Ilion ingens

eventuque gravi finita est publica clades

sed finita tamen soli mihi Pergama restant

in cursuque meus dolor est modo maxima rerum

tot generis natisque potens nuribusque viroque

nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum

Penelopes munus quae me data pensa trahentem

matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est

clara parens haec est dicet Priameia coniunx

postque tot amissos tu nunc quae sola levabas

maternos luctus hostilia busta piasti

inferias hosti peperi quo ferrea resto

quidve moror quo me servas annosa senectus

quo di crudeles nisi uti nova funera cernam

vivacem differtis anum quis posse putaret

felicem Priamum post diruta Pergama dici

ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la

desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece

Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante

de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy

arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos

presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a

miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre

madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos

se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has

aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres

para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero

iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser

para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten

creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten

de Peacutergamordquo

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143

quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los

momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr

104-106 dice la abatida soberana

αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις

ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se

le han ido patria hijos y esposordquo

y continuacutea en 140-142

δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς

ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber

sido destruido mi poder lastimeramenterdquo

Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199

φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς

ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja

resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie

fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta

cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo

Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476

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144

ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν

ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores

no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo

y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y

descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el

sacrificio de Poliacutexena

οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα

ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa

de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por

la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de

polvo su desgraciada cabezardquo

Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba

como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513

ldquohaec Hectoris illa est

clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo

ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo

presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva

esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para

siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497

τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν

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145

κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν

ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer

esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez

me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la

que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un

camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir

este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para

los ricosrdquo

Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias

de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir

felix morte sua est nec te mea nata peremptam

adspicit et vitam pariter regnum que reliquit

ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute

a la vez la vida y el reinordquo

auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas

1312-1316

Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν

ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no

ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos

con impiacuteo deguumlellordquo

con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante

consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11

158-161

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146

tuque o sanctissima coniunx

felix morte tua neque in hunc seruata dolorem

contra ego uiuendo uici mea fata superstes

restarem ut genitor

ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada

para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para

sobrevir siendo su padrerdquo

La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye

el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda

no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten

de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen

a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha

recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que

se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna

llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute

portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se

repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate

Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610

σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός

ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del

mar traacuteela aquiacuterdquo

pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al

mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que

como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido

en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de

dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal

vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase

maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y

ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere

de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544

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205

Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio

Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12

surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo

Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida

do moccedilo do escritoacuterio

Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal

dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho

estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto

como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No

corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida

dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante

para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos

quentes

Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou

da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para

uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi

uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui

hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que

cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando

era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira

alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de

hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo

automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo

porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do

escritoacuterio foi-se embora

12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente

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206

Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino

sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute

copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da

escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em

mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a

trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu

Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13

Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco

do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio

para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo

Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos

acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao

moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa

claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as

indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a

Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-

Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa

a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria

cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade

narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente

delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando

Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar

de longo em tudo nos interessa

Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em

que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele

o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor

mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o

13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo

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207

homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias

alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara

nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se

considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me

com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele

laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do

seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o

senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz

de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa

cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute

quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas

pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum

de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem

seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este

ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou

largarraquo (91-92)16

E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para

comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute

que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao

preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua

dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite

pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo

garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17

Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor

Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas

hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a

16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)

17 Apud P D de Almeida 2008 156

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208

mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a

consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista

Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa

agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo

deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio

foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e

Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de

praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim

das traseirasrdquo (pp 21-22)

A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas

atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que

seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo

se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio

cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais

opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas

viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como

ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo

regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)

Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato

mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985

preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo

entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de

preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de

fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor

de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19

Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se

uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)

neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado

e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como

18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15

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209

em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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210

prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

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211

pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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212

Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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213

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334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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335

agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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336

da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

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339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

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341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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77

Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou

perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37

Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no

chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma

mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais

velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo

esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo

aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a

matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude

que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o

do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo

mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo

destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego

do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados

ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora

aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa

Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38

Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados

a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos

mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica

aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)

que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que

recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um

fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em

37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)

38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)

39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006

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78

1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena

harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para

a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza

de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude

desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo

da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua

frente satildeo claramente as de um bebeacute

Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero

crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a

cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos

de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava

a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa

alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia

e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde

a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos

exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de

c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no

centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada

numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma

escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa

sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica

por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria

muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade

sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina

Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420

40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)

41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)

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137

el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides

eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto

pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es

precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13

467-469

acceptior illi

quisquis is est quem caede mea placare paratis

liber erit sanguisque

ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os

disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo

versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima

tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha

mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est

(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava

se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo

donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una

princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son

palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las

Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus

ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la

tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten

de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en

una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo

devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de

Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada

por ella vv 469-473

siquos tamen ultima nostri

verba movent oris Priami vos filia regis

non captiva rogat genetrici corpus inemptum

reddite neve auro redimat ius triste sepulcri

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138

sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro

ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega

la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo

sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro

con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea

tambieacuten lo pagaba con orordquo

No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de

forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes

padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar

el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples

presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En

este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que

Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su

madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba

del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una

madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que

constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere

la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta

todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina

tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y

que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y

tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y

extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480

Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat

non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos

praebita coniecto rupit praecordia ferro

illa super terram defecto poplite labens

pertulit intrepidos ad fata novissima vultus

tunc quoque cura fuit partes velare tegendas

cum caderet casti que decus servare pudoris

10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos

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139

ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea

incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el

hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra

al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso

rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que

debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo

reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-

570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima

verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al

caer

ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών

ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta

con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque

moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura

ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo

La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste

en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten

de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los

aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin

vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan

en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a

la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de

Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe

proleacuteptica de los vv 483-485

teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx

regia dicta parens Asiae florentis imago

nunc etiam praedae mala sors

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140

ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada

regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo

incluso de un botiacutenrdquo

que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos

pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias

se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre

todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro

El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento

contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural

propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente

influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6

441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-

745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los

detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten

a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la

guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana

con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam

cecidisti) de Met 13 497-498

at te quia femina rebar

a ferro tutam cecidisti et femina ferro

ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer

has muerto por el hierrordquo

Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos

a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar

auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso

innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije

lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras

dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante

la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea

contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo

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141

insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado

de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748

οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου

ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de

los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo

Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio

confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no

responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en

Seacuteneca Contr 9 5 17

Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri

solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius

nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana

Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut

ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse

sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]

tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]

Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus

magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere

ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer

semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los

oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido

bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias

de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena

para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia

ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento

con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo

Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo

Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber

decir como saber dejar de decirrdquo

11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa

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142

pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel

forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado

esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado

orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo

perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met

13 505-520

iacet Ilion ingens

eventuque gravi finita est publica clades

sed finita tamen soli mihi Pergama restant

in cursuque meus dolor est modo maxima rerum

tot generis natisque potens nuribusque viroque

nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum

Penelopes munus quae me data pensa trahentem

matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est

clara parens haec est dicet Priameia coniunx

postque tot amissos tu nunc quae sola levabas

maternos luctus hostilia busta piasti

inferias hosti peperi quo ferrea resto

quidve moror quo me servas annosa senectus

quo di crudeles nisi uti nova funera cernam

vivacem differtis anum quis posse putaret

felicem Priamum post diruta Pergama dici

ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la

desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece

Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante

de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy

arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos

presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a

miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre

madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos

se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has

aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres

para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero

iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser

para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten

creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten

de Peacutergamordquo

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143

quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los

momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr

104-106 dice la abatida soberana

αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις

ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se

le han ido patria hijos y esposordquo

y continuacutea en 140-142

δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς

ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber

sido destruido mi poder lastimeramenterdquo

Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199

φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς

ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja

resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie

fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta

cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo

Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476

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144

ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν

ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores

no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo

y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y

descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el

sacrificio de Poliacutexena

οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα

ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa

de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por

la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de

polvo su desgraciada cabezardquo

Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba

como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513

ldquohaec Hectoris illa est

clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo

ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo

presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva

esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para

siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497

τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν

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145

κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν

ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer

esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez

me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la

que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un

camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir

este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para

los ricosrdquo

Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias

de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir

felix morte sua est nec te mea nata peremptam

adspicit et vitam pariter regnum que reliquit

ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute

a la vez la vida y el reinordquo

auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas

1312-1316

Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν

ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no

ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos

con impiacuteo deguumlellordquo

con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante

consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11

158-161

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146

tuque o sanctissima coniunx

felix morte tua neque in hunc seruata dolorem

contra ego uiuendo uici mea fata superstes

restarem ut genitor

ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada

para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para

sobrevir siendo su padrerdquo

La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye

el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda

no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten

de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen

a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha

recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que

se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna

llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute

portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se

repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate

Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610

σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός

ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del

mar traacuteela aquiacuterdquo

pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al

mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que

como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido

en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de

dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal

vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase

maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y

ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere

de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544

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205

Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio

Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12

surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo

Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida

do moccedilo do escritoacuterio

Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal

dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho

estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto

como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No

corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida

dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante

para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos

quentes

Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou

da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para

uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi

uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui

hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que

cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando

era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira

alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de

hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo

automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo

porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do

escritoacuterio foi-se embora

12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente

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206

Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino

sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute

copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da

escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em

mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a

trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu

Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13

Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco

do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio

para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo

Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos

acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao

moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa

claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as

indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a

Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-

Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa

a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria

cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade

narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente

delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando

Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar

de longo em tudo nos interessa

Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em

que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele

o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor

mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o

13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo

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207

homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias

alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara

nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se

considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me

com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele

laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do

seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o

senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz

de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa

cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute

quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas

pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum

de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem

seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este

ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou

largarraquo (91-92)16

E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para

comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute

que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao

preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua

dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite

pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo

garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17

Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor

Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas

hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a

16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)

17 Apud P D de Almeida 2008 156

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208

mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a

consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista

Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa

agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo

deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio

foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e

Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de

praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim

das traseirasrdquo (pp 21-22)

A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas

atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que

seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo

se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio

cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais

opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas

viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como

ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo

regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)

Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato

mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985

preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo

entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de

preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de

fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor

de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19

Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se

uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)

neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado

e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como

18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15

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209

em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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210

prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

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211

pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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212

Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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213

Bibliografia

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334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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335

agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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336

da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

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339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

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341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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Page 19: & Transgressão II - digitalis.uc.pt · Carmen Soares Maria do Céu Fialho María Consuelo Alvarez Morán Rosa María Iglesias Montiel Coordenação • C O I M B R A 2 0 1 1 orma

78

1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena

harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para

a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza

de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude

desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo

da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua

frente satildeo claramente as de um bebeacute

Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero

crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a

cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos

de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava

a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa

alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia

e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde

a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos

exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de

c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no

centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada

numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma

escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa

sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica

por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria

muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade

sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina

Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420

40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)

41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)

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137

el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides

eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto

pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es

precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13

467-469

acceptior illi

quisquis is est quem caede mea placare paratis

liber erit sanguisque

ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os

disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo

versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima

tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha

mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est

(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava

se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo

donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una

princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son

palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las

Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus

ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la

tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten

de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en

una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo

devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de

Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada

por ella vv 469-473

siquos tamen ultima nostri

verba movent oris Priami vos filia regis

non captiva rogat genetrici corpus inemptum

reddite neve auro redimat ius triste sepulcri

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138

sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro

ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega

la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo

sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro

con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea

tambieacuten lo pagaba con orordquo

No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de

forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes

padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar

el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples

presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En

este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que

Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su

madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba

del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una

madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que

constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere

la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta

todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina

tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y

que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y

tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y

extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480

Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat

non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos

praebita coniecto rupit praecordia ferro

illa super terram defecto poplite labens

pertulit intrepidos ad fata novissima vultus

tunc quoque cura fuit partes velare tegendas

cum caderet casti que decus servare pudoris

10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos

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139

ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea

incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el

hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra

al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso

rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que

debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo

reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-

570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima

verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al

caer

ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών

ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta

con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque

moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura

ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo

La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste

en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten

de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los

aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin

vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan

en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a

la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de

Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe

proleacuteptica de los vv 483-485

teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx

regia dicta parens Asiae florentis imago

nunc etiam praedae mala sors

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140

ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada

regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo

incluso de un botiacutenrdquo

que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos

pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias

se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre

todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro

El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento

contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural

propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente

influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6

441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-

745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los

detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten

a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la

guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana

con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam

cecidisti) de Met 13 497-498

at te quia femina rebar

a ferro tutam cecidisti et femina ferro

ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer

has muerto por el hierrordquo

Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos

a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar

auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso

innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije

lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras

dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante

la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea

contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo

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141

insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado

de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748

οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου

ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de

los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo

Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio

confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no

responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en

Seacuteneca Contr 9 5 17

Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri

solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius

nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana

Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut

ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse

sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]

tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]

Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus

magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere

ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer

semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los

oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido

bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias

de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena

para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia

ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento

con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo

Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo

Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber

decir como saber dejar de decirrdquo

11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa

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142

pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel

forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado

esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado

orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo

perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met

13 505-520

iacet Ilion ingens

eventuque gravi finita est publica clades

sed finita tamen soli mihi Pergama restant

in cursuque meus dolor est modo maxima rerum

tot generis natisque potens nuribusque viroque

nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum

Penelopes munus quae me data pensa trahentem

matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est

clara parens haec est dicet Priameia coniunx

postque tot amissos tu nunc quae sola levabas

maternos luctus hostilia busta piasti

inferias hosti peperi quo ferrea resto

quidve moror quo me servas annosa senectus

quo di crudeles nisi uti nova funera cernam

vivacem differtis anum quis posse putaret

felicem Priamum post diruta Pergama dici

ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la

desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece

Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante

de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy

arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos

presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a

miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre

madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos

se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has

aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres

para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero

iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser

para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten

creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten

de Peacutergamordquo

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143

quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los

momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr

104-106 dice la abatida soberana

αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις

ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se

le han ido patria hijos y esposordquo

y continuacutea en 140-142

δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς

ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber

sido destruido mi poder lastimeramenterdquo

Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199

φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς

ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja

resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie

fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta

cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo

Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476

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ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν

ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores

no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo

y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y

descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el

sacrificio de Poliacutexena

οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα

ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa

de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por

la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de

polvo su desgraciada cabezardquo

Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba

como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513

ldquohaec Hectoris illa est

clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo

ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo

presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva

esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para

siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497

τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν

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145

κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν

ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer

esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez

me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la

que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un

camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir

este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para

los ricosrdquo

Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias

de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir

felix morte sua est nec te mea nata peremptam

adspicit et vitam pariter regnum que reliquit

ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute

a la vez la vida y el reinordquo

auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas

1312-1316

Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν

ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no

ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos

con impiacuteo deguumlellordquo

con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante

consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11

158-161

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146

tuque o sanctissima coniunx

felix morte tua neque in hunc seruata dolorem

contra ego uiuendo uici mea fata superstes

restarem ut genitor

ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada

para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para

sobrevir siendo su padrerdquo

La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye

el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda

no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten

de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen

a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha

recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que

se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna

llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute

portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se

repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate

Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610

σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός

ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del

mar traacuteela aquiacuterdquo

pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al

mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que

como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido

en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de

dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal

vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase

maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y

ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere

de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544

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205

Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio

Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12

surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo

Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida

do moccedilo do escritoacuterio

Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal

dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho

estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto

como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No

corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida

dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante

para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos

quentes

Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou

da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para

uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi

uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui

hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que

cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando

era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira

alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de

hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo

automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo

porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do

escritoacuterio foi-se embora

12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente

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206

Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino

sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute

copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da

escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em

mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a

trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu

Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13

Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco

do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio

para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo

Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos

acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao

moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa

claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as

indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a

Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-

Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa

a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria

cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade

narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente

delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando

Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar

de longo em tudo nos interessa

Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em

que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele

o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor

mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o

13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo

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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias

alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara

nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se

considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me

com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele

laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do

seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o

senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz

de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa

cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute

quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas

pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum

de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem

seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este

ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou

largarraquo (91-92)16

E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para

comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute

que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao

preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua

dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite

pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo

garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17

Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor

Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas

hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a

16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)

17 Apud P D de Almeida 2008 156

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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a

consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista

Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa

agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo

deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio

foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e

Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de

praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim

das traseirasrdquo (pp 21-22)

A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas

atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que

seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo

se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio

cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais

opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas

viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como

ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo

regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)

Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato

mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985

preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo

entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de

preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de

fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor

de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19

Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se

uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)

neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado

e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como

18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15

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209

em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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210

prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

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211

pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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212

Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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213

Bibliografia

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Claacuteudio Maacuterio (2005) Os sonetos italianos de Tiago Veiga Porto Asa

Claacuteudio Maacuterio (2007) O Eixo da buacutessola Vila Nova de Famalicatildeo Ediccedilotildees Quasi

Claacuteudio Maacuterio (2008) Boa noite senhor Soares Lisboa Dom Quixote

Greimas A J e COURTEgraveS J (1982) Semioacutetica Diccionario razonado de la Teoria del Lenguaje Madrid Editorial Gredos

Lino Pedro Sena (2005) ldquoVersos de um muito ningueacutemrdquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in PuacuteblicoMil Folhas 10 de Dezembro 22-23

Lucas Isabel (2008) ldquoQuem escreve mal pensa malrdquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in Diaacuterio de Notiacutecias 4 de Junho 43-44

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Zenith Richard (ed) (2003) Livro do Desassossego 4ordf ed Lisboa Assiacuterio e Alvim

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334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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335

agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

Obra protegida por direitos de autor

339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

Obra protegida por direitos de autor

341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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137

el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides

eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto

pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es

precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13

467-469

acceptior illi

quisquis is est quem caede mea placare paratis

liber erit sanguisque

ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os

disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo

versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima

tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha

mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est

(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava

se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo

donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una

princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son

palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las

Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus

ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la

tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten

de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en

una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo

devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de

Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada

por ella vv 469-473

siquos tamen ultima nostri

verba movent oris Priami vos filia regis

non captiva rogat genetrici corpus inemptum

reddite neve auro redimat ius triste sepulcri

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138

sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro

ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega

la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo

sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro

con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea

tambieacuten lo pagaba con orordquo

No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de

forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes

padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar

el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples

presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En

este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que

Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su

madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba

del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una

madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que

constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere

la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta

todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina

tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y

que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y

tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y

extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480

Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat

non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos

praebita coniecto rupit praecordia ferro

illa super terram defecto poplite labens

pertulit intrepidos ad fata novissima vultus

tunc quoque cura fuit partes velare tegendas

cum caderet casti que decus servare pudoris

10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos

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139

ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea

incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el

hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra

al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso

rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que

debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo

reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-

570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima

verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al

caer

ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών

ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta

con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque

moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura

ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo

La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste

en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten

de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los

aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin

vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan

en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a

la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de

Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe

proleacuteptica de los vv 483-485

teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx

regia dicta parens Asiae florentis imago

nunc etiam praedae mala sors

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140

ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada

regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo

incluso de un botiacutenrdquo

que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos

pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias

se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre

todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro

El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento

contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural

propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente

influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6

441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-

745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los

detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten

a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la

guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana

con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam

cecidisti) de Met 13 497-498

at te quia femina rebar

a ferro tutam cecidisti et femina ferro

ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer

has muerto por el hierrordquo

Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos

a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar

auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso

innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije

lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras

dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante

la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea

contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo

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141

insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado

de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748

οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου

ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de

los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo

Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio

confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no

responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en

Seacuteneca Contr 9 5 17

Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri

solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius

nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana

Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut

ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse

sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]

tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]

Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus

magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere

ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer

semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los

oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido

bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias

de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena

para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia

ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento

con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo

Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo

Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber

decir como saber dejar de decirrdquo

11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa

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142

pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel

forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado

esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado

orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo

perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met

13 505-520

iacet Ilion ingens

eventuque gravi finita est publica clades

sed finita tamen soli mihi Pergama restant

in cursuque meus dolor est modo maxima rerum

tot generis natisque potens nuribusque viroque

nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum

Penelopes munus quae me data pensa trahentem

matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est

clara parens haec est dicet Priameia coniunx

postque tot amissos tu nunc quae sola levabas

maternos luctus hostilia busta piasti

inferias hosti peperi quo ferrea resto

quidve moror quo me servas annosa senectus

quo di crudeles nisi uti nova funera cernam

vivacem differtis anum quis posse putaret

felicem Priamum post diruta Pergama dici

ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la

desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece

Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante

de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy

arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos

presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a

miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre

madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos

se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has

aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres

para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero

iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser

para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten

creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten

de Peacutergamordquo

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143

quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los

momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr

104-106 dice la abatida soberana

αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις

ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se

le han ido patria hijos y esposordquo

y continuacutea en 140-142

δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς

ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber

sido destruido mi poder lastimeramenterdquo

Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199

φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς

ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja

resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie

fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta

cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo

Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476

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144

ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν

ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores

no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo

y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y

descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el

sacrificio de Poliacutexena

οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα

ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa

de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por

la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de

polvo su desgraciada cabezardquo

Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba

como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513

ldquohaec Hectoris illa est

clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo

ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo

presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva

esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para

siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497

τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν

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145

κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν

ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer

esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez

me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la

que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un

camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir

este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para

los ricosrdquo

Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias

de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir

felix morte sua est nec te mea nata peremptam

adspicit et vitam pariter regnum que reliquit

ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute

a la vez la vida y el reinordquo

auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas

1312-1316

Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν

ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no

ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos

con impiacuteo deguumlellordquo

con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante

consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11

158-161

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146

tuque o sanctissima coniunx

felix morte tua neque in hunc seruata dolorem

contra ego uiuendo uici mea fata superstes

restarem ut genitor

ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada

para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para

sobrevir siendo su padrerdquo

La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye

el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda

no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten

de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen

a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha

recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que

se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna

llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute

portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se

repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate

Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610

σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός

ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del

mar traacuteela aquiacuterdquo

pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al

mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que

como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido

en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de

dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal

vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase

maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y

ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere

de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544

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205

Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio

Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12

surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo

Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida

do moccedilo do escritoacuterio

Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal

dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho

estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto

como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No

corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida

dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante

para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos

quentes

Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou

da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para

uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi

uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui

hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que

cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando

era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira

alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de

hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo

automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo

porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do

escritoacuterio foi-se embora

12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente

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206

Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino

sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute

copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da

escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em

mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a

trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu

Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13

Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco

do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio

para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo

Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos

acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao

moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa

claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as

indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a

Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-

Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa

a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria

cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade

narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente

delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando

Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar

de longo em tudo nos interessa

Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em

que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele

o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor

mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o

13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo

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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias

alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara

nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se

considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me

com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele

laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do

seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o

senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz

de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa

cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute

quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas

pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum

de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem

seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este

ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou

largarraquo (91-92)16

E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para

comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute

que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao

preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua

dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite

pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo

garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17

Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor

Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas

hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a

16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)

17 Apud P D de Almeida 2008 156

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208

mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a

consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista

Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa

agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo

deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio

foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e

Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de

praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim

das traseirasrdquo (pp 21-22)

A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas

atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que

seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo

se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio

cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais

opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas

viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como

ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo

regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)

Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato

mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985

preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo

entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de

preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de

fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor

de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19

Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se

uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)

neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado

e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como

18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15

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209

em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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210

prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

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211

pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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212

Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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213

Bibliografia

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Claacuteudio Maacuterio (2005) Os sonetos italianos de Tiago Veiga Porto Asa

Claacuteudio Maacuterio (2007) O Eixo da buacutessola Vila Nova de Famalicatildeo Ediccedilotildees Quasi

Claacuteudio Maacuterio (2008) Boa noite senhor Soares Lisboa Dom Quixote

Greimas A J e COURTEgraveS J (1982) Semioacutetica Diccionario razonado de la Teoria del Lenguaje Madrid Editorial Gredos

Lino Pedro Sena (2005) ldquoVersos de um muito ningueacutemrdquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in PuacuteblicoMil Folhas 10 de Dezembro 22-23

Lucas Isabel (2008) ldquoQuem escreve mal pensa malrdquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in Diaacuterio de Notiacutecias 4 de Junho 43-44

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Zenith Richard (ed) (2003) Livro do Desassossego 4ordf ed Lisboa Assiacuterio e Alvim

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334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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335

agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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336

da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

Obra protegida por direitos de autor

339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

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341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro

ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega

la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo

sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro

con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea

tambieacuten lo pagaba con orordquo

No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de

forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes

padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar

el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples

presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En

este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que

Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su

madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba

del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una

madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que

constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere

la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta

todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina

tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y

que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y

tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y

extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480

Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat

non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos

praebita coniecto rupit praecordia ferro

illa super terram defecto poplite labens

pertulit intrepidos ad fata novissima vultus

tunc quoque cura fuit partes velare tegendas

cum caderet casti que decus servare pudoris

10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos

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139

ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea

incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el

hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra

al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso

rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que

debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo

reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-

570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima

verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al

caer

ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών

ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta

con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque

moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura

ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo

La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste

en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten

de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los

aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin

vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan

en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a

la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de

Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe

proleacuteptica de los vv 483-485

teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx

regia dicta parens Asiae florentis imago

nunc etiam praedae mala sors

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140

ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada

regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo

incluso de un botiacutenrdquo

que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos

pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias

se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre

todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro

El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento

contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural

propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente

influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6

441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-

745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los

detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten

a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la

guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana

con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam

cecidisti) de Met 13 497-498

at te quia femina rebar

a ferro tutam cecidisti et femina ferro

ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer

has muerto por el hierrordquo

Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos

a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar

auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso

innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije

lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras

dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante

la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea

contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo

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141

insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado

de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748

οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου

ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de

los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo

Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio

confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no

responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en

Seacuteneca Contr 9 5 17

Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri

solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius

nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana

Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut

ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse

sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]

tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]

Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus

magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere

ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer

semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los

oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido

bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias

de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena

para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia

ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento

con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo

Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo

Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber

decir como saber dejar de decirrdquo

11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa

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142

pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel

forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado

esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado

orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo

perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met

13 505-520

iacet Ilion ingens

eventuque gravi finita est publica clades

sed finita tamen soli mihi Pergama restant

in cursuque meus dolor est modo maxima rerum

tot generis natisque potens nuribusque viroque

nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum

Penelopes munus quae me data pensa trahentem

matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est

clara parens haec est dicet Priameia coniunx

postque tot amissos tu nunc quae sola levabas

maternos luctus hostilia busta piasti

inferias hosti peperi quo ferrea resto

quidve moror quo me servas annosa senectus

quo di crudeles nisi uti nova funera cernam

vivacem differtis anum quis posse putaret

felicem Priamum post diruta Pergama dici

ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la

desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece

Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante

de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy

arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos

presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a

miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre

madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos

se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has

aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres

para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero

iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser

para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten

creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten

de Peacutergamordquo

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143

quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los

momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr

104-106 dice la abatida soberana

αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις

ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se

le han ido patria hijos y esposordquo

y continuacutea en 140-142

δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς

ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber

sido destruido mi poder lastimeramenterdquo

Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199

φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς

ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja

resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie

fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta

cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo

Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476

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ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν

ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores

no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo

y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y

descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el

sacrificio de Poliacutexena

οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα

ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa

de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por

la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de

polvo su desgraciada cabezardquo

Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba

como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513

ldquohaec Hectoris illa est

clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo

ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo

presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva

esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para

siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497

τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν

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145

κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν

ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer

esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez

me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la

que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un

camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir

este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para

los ricosrdquo

Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias

de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir

felix morte sua est nec te mea nata peremptam

adspicit et vitam pariter regnum que reliquit

ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute

a la vez la vida y el reinordquo

auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas

1312-1316

Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν

ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no

ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos

con impiacuteo deguumlellordquo

con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante

consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11

158-161

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146

tuque o sanctissima coniunx

felix morte tua neque in hunc seruata dolorem

contra ego uiuendo uici mea fata superstes

restarem ut genitor

ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada

para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para

sobrevir siendo su padrerdquo

La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye

el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda

no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten

de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen

a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha

recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que

se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna

llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute

portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se

repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate

Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610

σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός

ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del

mar traacuteela aquiacuterdquo

pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al

mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que

como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido

en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de

dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal

vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase

maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y

ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere

de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544

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205

Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio

Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12

surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo

Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida

do moccedilo do escritoacuterio

Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal

dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho

estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto

como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No

corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida

dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante

para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos

quentes

Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou

da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para

uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi

uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui

hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que

cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando

era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira

alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de

hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo

automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo

porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do

escritoacuterio foi-se embora

12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente

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206

Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino

sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute

copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da

escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em

mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a

trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu

Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13

Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco

do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio

para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo

Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos

acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao

moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa

claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as

indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a

Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-

Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa

a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria

cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade

narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente

delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando

Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar

de longo em tudo nos interessa

Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em

que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele

o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor

mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o

13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo

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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias

alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara

nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se

considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me

com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele

laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do

seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o

senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz

de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa

cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute

quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas

pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum

de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem

seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este

ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou

largarraquo (91-92)16

E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para

comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute

que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao

preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua

dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite

pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo

garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17

Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor

Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas

hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a

16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)

17 Apud P D de Almeida 2008 156

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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a

consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista

Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa

agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo

deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio

foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e

Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de

praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim

das traseirasrdquo (pp 21-22)

A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas

atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que

seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo

se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio

cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais

opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas

viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como

ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo

regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)

Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato

mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985

preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo

entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de

preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de

fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor

de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19

Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se

uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)

neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado

e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como

18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15

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209

em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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213

Bibliografia

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Claacuteudio Maacuterio (2005) Os sonetos italianos de Tiago Veiga Porto Asa

Claacuteudio Maacuterio (2007) O Eixo da buacutessola Vila Nova de Famalicatildeo Ediccedilotildees Quasi

Claacuteudio Maacuterio (2008) Boa noite senhor Soares Lisboa Dom Quixote

Greimas A J e COURTEgraveS J (1982) Semioacutetica Diccionario razonado de la Teoria del Lenguaje Madrid Editorial Gredos

Lino Pedro Sena (2005) ldquoVersos de um muito ningueacutemrdquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in PuacuteblicoMil Folhas 10 de Dezembro 22-23

Lucas Isabel (2008) ldquoQuem escreve mal pensa malrdquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in Diaacuterio de Notiacutecias 4 de Junho 43-44

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Zenith Richard (ed) (2003) Livro do Desassossego 4ordf ed Lisboa Assiacuterio e Alvim

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334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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335

agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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336

da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

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339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

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341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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139

ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea

incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el

hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra

al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso

rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que

debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo

reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-

570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima

verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al

caer

ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών

ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta

con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque

moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura

ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo

La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste

en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten

de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los

aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin

vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan

en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a

la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de

Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe

proleacuteptica de los vv 483-485

teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx

regia dicta parens Asiae florentis imago

nunc etiam praedae mala sors

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140

ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada

regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo

incluso de un botiacutenrdquo

que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos

pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias

se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre

todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro

El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento

contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural

propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente

influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6

441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-

745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los

detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten

a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la

guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana

con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam

cecidisti) de Met 13 497-498

at te quia femina rebar

a ferro tutam cecidisti et femina ferro

ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer

has muerto por el hierrordquo

Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos

a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar

auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso

innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije

lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras

dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante

la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea

contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo

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141

insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado

de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748

οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου

ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de

los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo

Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio

confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no

responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en

Seacuteneca Contr 9 5 17

Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri

solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius

nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana

Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut

ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse

sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]

tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]

Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus

magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere

ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer

semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los

oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido

bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias

de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena

para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia

ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento

con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo

Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo

Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber

decir como saber dejar de decirrdquo

11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa

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142

pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel

forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado

esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado

orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo

perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met

13 505-520

iacet Ilion ingens

eventuque gravi finita est publica clades

sed finita tamen soli mihi Pergama restant

in cursuque meus dolor est modo maxima rerum

tot generis natisque potens nuribusque viroque

nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum

Penelopes munus quae me data pensa trahentem

matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est

clara parens haec est dicet Priameia coniunx

postque tot amissos tu nunc quae sola levabas

maternos luctus hostilia busta piasti

inferias hosti peperi quo ferrea resto

quidve moror quo me servas annosa senectus

quo di crudeles nisi uti nova funera cernam

vivacem differtis anum quis posse putaret

felicem Priamum post diruta Pergama dici

ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la

desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece

Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante

de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy

arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos

presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a

miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre

madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos

se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has

aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres

para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero

iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser

para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten

creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten

de Peacutergamordquo

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143

quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los

momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr

104-106 dice la abatida soberana

αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις

ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se

le han ido patria hijos y esposordquo

y continuacutea en 140-142

δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς

ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber

sido destruido mi poder lastimeramenterdquo

Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199

φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς

ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja

resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie

fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta

cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo

Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476

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144

ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν

ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores

no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo

y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y

descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el

sacrificio de Poliacutexena

οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα

ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa

de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por

la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de

polvo su desgraciada cabezardquo

Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba

como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513

ldquohaec Hectoris illa est

clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo

ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo

presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva

esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para

siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497

τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν

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145

κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν

ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer

esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez

me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la

que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un

camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir

este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para

los ricosrdquo

Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias

de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir

felix morte sua est nec te mea nata peremptam

adspicit et vitam pariter regnum que reliquit

ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute

a la vez la vida y el reinordquo

auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas

1312-1316

Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν

ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no

ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos

con impiacuteo deguumlellordquo

con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante

consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11

158-161

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146

tuque o sanctissima coniunx

felix morte tua neque in hunc seruata dolorem

contra ego uiuendo uici mea fata superstes

restarem ut genitor

ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada

para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para

sobrevir siendo su padrerdquo

La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye

el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda

no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten

de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen

a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha

recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que

se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna

llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute

portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se

repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate

Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610

σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός

ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del

mar traacuteela aquiacuterdquo

pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al

mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que

como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido

en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de

dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal

vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase

maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y

ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere

de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544

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205

Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio

Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12

surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo

Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida

do moccedilo do escritoacuterio

Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal

dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho

estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto

como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No

corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida

dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante

para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos

quentes

Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou

da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para

uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi

uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui

hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que

cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando

era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira

alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de

hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo

automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo

porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do

escritoacuterio foi-se embora

12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente

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206

Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino

sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute

copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da

escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em

mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a

trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu

Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13

Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco

do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio

para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo

Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos

acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao

moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa

claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as

indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a

Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-

Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa

a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria

cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade

narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente

delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando

Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar

de longo em tudo nos interessa

Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em

que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele

o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor

mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o

13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo

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207

homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias

alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara

nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se

considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me

com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele

laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do

seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o

senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz

de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa

cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute

quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas

pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum

de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem

seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este

ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou

largarraquo (91-92)16

E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para

comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute

que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao

preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua

dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite

pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo

garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17

Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor

Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas

hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a

16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)

17 Apud P D de Almeida 2008 156

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208

mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a

consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista

Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa

agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo

deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio

foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e

Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de

praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim

das traseirasrdquo (pp 21-22)

A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas

atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que

seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo

se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio

cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais

opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas

viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como

ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo

regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)

Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato

mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985

preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo

entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de

preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de

fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor

de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19

Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se

uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)

neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado

e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como

18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15

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209

em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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210

prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

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211

pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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212

Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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213

Bibliografia

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Claacuteudio Maacuterio (2005) Os sonetos italianos de Tiago Veiga Porto Asa

Claacuteudio Maacuterio (2007) O Eixo da buacutessola Vila Nova de Famalicatildeo Ediccedilotildees Quasi

Claacuteudio Maacuterio (2008) Boa noite senhor Soares Lisboa Dom Quixote

Greimas A J e COURTEgraveS J (1982) Semioacutetica Diccionario razonado de la Teoria del Lenguaje Madrid Editorial Gredos

Lino Pedro Sena (2005) ldquoVersos de um muito ningueacutemrdquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in PuacuteblicoMil Folhas 10 de Dezembro 22-23

Lucas Isabel (2008) ldquoQuem escreve mal pensa malrdquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in Diaacuterio de Notiacutecias 4 de Junho 43-44

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Zenith Richard (ed) (2003) Livro do Desassossego 4ordf ed Lisboa Assiacuterio e Alvim

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334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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335

agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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336

da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

Obra protegida por direitos de autor

338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

Obra protegida por direitos de autor

339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

Obra protegida por direitos de autor

341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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140

ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada

regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo

incluso de un botiacutenrdquo

que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos

pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias

se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre

todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro

El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento

contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural

propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente

influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6

441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-

745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los

detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten

a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la

guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana

con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam

cecidisti) de Met 13 497-498

at te quia femina rebar

a ferro tutam cecidisti et femina ferro

ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer

has muerto por el hierrordquo

Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos

a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar

auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso

innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije

lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras

dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante

la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea

contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo

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141

insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado

de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748

οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου

ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de

los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo

Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio

confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no

responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en

Seacuteneca Contr 9 5 17

Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri

solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius

nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana

Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut

ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse

sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]

tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]

Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus

magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere

ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer

semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los

oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido

bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias

de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena

para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia

ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento

con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo

Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo

Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber

decir como saber dejar de decirrdquo

11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa

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142

pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel

forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado

esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado

orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo

perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met

13 505-520

iacet Ilion ingens

eventuque gravi finita est publica clades

sed finita tamen soli mihi Pergama restant

in cursuque meus dolor est modo maxima rerum

tot generis natisque potens nuribusque viroque

nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum

Penelopes munus quae me data pensa trahentem

matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est

clara parens haec est dicet Priameia coniunx

postque tot amissos tu nunc quae sola levabas

maternos luctus hostilia busta piasti

inferias hosti peperi quo ferrea resto

quidve moror quo me servas annosa senectus

quo di crudeles nisi uti nova funera cernam

vivacem differtis anum quis posse putaret

felicem Priamum post diruta Pergama dici

ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la

desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece

Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante

de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy

arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos

presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a

miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre

madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos

se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has

aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres

para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero

iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser

para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten

creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten

de Peacutergamordquo

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143

quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los

momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr

104-106 dice la abatida soberana

αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις

ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se

le han ido patria hijos y esposordquo

y continuacutea en 140-142

δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς

ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber

sido destruido mi poder lastimeramenterdquo

Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199

φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς

ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja

resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie

fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta

cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo

Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476

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144

ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν

ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores

no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo

y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y

descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el

sacrificio de Poliacutexena

οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα

ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa

de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por

la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de

polvo su desgraciada cabezardquo

Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba

como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513

ldquohaec Hectoris illa est

clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo

ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo

presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva

esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para

siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497

τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν

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145

κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν

ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer

esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez

me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la

que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un

camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir

este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para

los ricosrdquo

Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias

de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir

felix morte sua est nec te mea nata peremptam

adspicit et vitam pariter regnum que reliquit

ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute

a la vez la vida y el reinordquo

auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas

1312-1316

Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν

ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no

ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos

con impiacuteo deguumlellordquo

con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante

consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11

158-161

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146

tuque o sanctissima coniunx

felix morte tua neque in hunc seruata dolorem

contra ego uiuendo uici mea fata superstes

restarem ut genitor

ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada

para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para

sobrevir siendo su padrerdquo

La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye

el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda

no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten

de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen

a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha

recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que

se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna

llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute

portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se

repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate

Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610

σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός

ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del

mar traacuteela aquiacuterdquo

pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al

mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que

como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido

en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de

dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal

vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase

maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y

ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere

de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544

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205

Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio

Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12

surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo

Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida

do moccedilo do escritoacuterio

Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal

dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho

estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto

como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No

corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida

dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante

para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos

quentes

Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou

da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para

uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi

uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui

hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que

cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando

era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira

alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de

hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo

automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo

porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do

escritoacuterio foi-se embora

12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente

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Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino

sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute

copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da

escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em

mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a

trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu

Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13

Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco

do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio

para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo

Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos

acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao

moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa

claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as

indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a

Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-

Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa

a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria

cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade

narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente

delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando

Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar

de longo em tudo nos interessa

Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em

que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele

o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor

mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o

13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo

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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias

alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara

nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se

considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me

com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele

laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do

seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o

senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz

de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa

cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute

quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas

pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum

de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem

seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este

ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou

largarraquo (91-92)16

E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para

comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute

que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao

preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua

dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite

pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo

garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17

Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor

Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas

hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a

16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)

17 Apud P D de Almeida 2008 156

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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a

consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista

Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa

agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo

deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio

foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e

Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de

praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim

das traseirasrdquo (pp 21-22)

A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas

atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que

seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo

se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio

cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais

opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas

viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como

ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo

regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)

Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato

mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985

preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo

entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de

preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de

fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor

de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19

Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se

uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)

neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado

e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como

18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15

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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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213

Bibliografia

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Claacuteudio Maacuterio (2005) Os sonetos italianos de Tiago Veiga Porto Asa

Claacuteudio Maacuterio (2007) O Eixo da buacutessola Vila Nova de Famalicatildeo Ediccedilotildees Quasi

Claacuteudio Maacuterio (2008) Boa noite senhor Soares Lisboa Dom Quixote

Greimas A J e COURTEgraveS J (1982) Semioacutetica Diccionario razonado de la Teoria del Lenguaje Madrid Editorial Gredos

Lino Pedro Sena (2005) ldquoVersos de um muito ningueacutemrdquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in PuacuteblicoMil Folhas 10 de Dezembro 22-23

Lucas Isabel (2008) ldquoQuem escreve mal pensa malrdquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in Diaacuterio de Notiacutecias 4 de Junho 43-44

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Zenith Richard (ed) (2003) Livro do Desassossego 4ordf ed Lisboa Assiacuterio e Alvim

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Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

Obra protegida por direitos de autor

339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

Obra protegida por direitos de autor

341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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141

insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado

de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748

οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου

ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de

los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo

Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio

confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no

responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en

Seacuteneca Contr 9 5 17

Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri

solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius

nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana

Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut

ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse

sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]

tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]

Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus

magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere

ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer

semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los

oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido

bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias

de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena

para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia

ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento

con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo

Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo

Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber

decir como saber dejar de decirrdquo

11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa

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142

pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel

forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado

esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado

orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo

perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met

13 505-520

iacet Ilion ingens

eventuque gravi finita est publica clades

sed finita tamen soli mihi Pergama restant

in cursuque meus dolor est modo maxima rerum

tot generis natisque potens nuribusque viroque

nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum

Penelopes munus quae me data pensa trahentem

matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est

clara parens haec est dicet Priameia coniunx

postque tot amissos tu nunc quae sola levabas

maternos luctus hostilia busta piasti

inferias hosti peperi quo ferrea resto

quidve moror quo me servas annosa senectus

quo di crudeles nisi uti nova funera cernam

vivacem differtis anum quis posse putaret

felicem Priamum post diruta Pergama dici

ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la

desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece

Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante

de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy

arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos

presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a

miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre

madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos

se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has

aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres

para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero

iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser

para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten

creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten

de Peacutergamordquo

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143

quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los

momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr

104-106 dice la abatida soberana

αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις

ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se

le han ido patria hijos y esposordquo

y continuacutea en 140-142

δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς

ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber

sido destruido mi poder lastimeramenterdquo

Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199

φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς

ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja

resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie

fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta

cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo

Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476

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144

ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν

ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores

no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo

y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y

descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el

sacrificio de Poliacutexena

οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα

ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa

de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por

la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de

polvo su desgraciada cabezardquo

Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba

como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513

ldquohaec Hectoris illa est

clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo

ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo

presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva

esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para

siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497

τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν

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145

κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν

ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer

esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez

me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la

que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un

camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir

este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para

los ricosrdquo

Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias

de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir

felix morte sua est nec te mea nata peremptam

adspicit et vitam pariter regnum que reliquit

ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute

a la vez la vida y el reinordquo

auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas

1312-1316

Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν

ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no

ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos

con impiacuteo deguumlellordquo

con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante

consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11

158-161

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146

tuque o sanctissima coniunx

felix morte tua neque in hunc seruata dolorem

contra ego uiuendo uici mea fata superstes

restarem ut genitor

ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada

para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para

sobrevir siendo su padrerdquo

La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye

el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda

no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten

de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen

a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha

recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que

se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna

llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute

portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se

repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate

Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610

σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός

ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del

mar traacuteela aquiacuterdquo

pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al

mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que

como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido

en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de

dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal

vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase

maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y

ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere

de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544

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205

Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio

Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12

surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo

Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida

do moccedilo do escritoacuterio

Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal

dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho

estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto

como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No

corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida

dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante

para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos

quentes

Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou

da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para

uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi

uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui

hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que

cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando

era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira

alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de

hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo

automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo

porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do

escritoacuterio foi-se embora

12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente

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206

Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino

sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute

copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da

escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em

mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a

trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu

Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13

Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco

do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio

para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo

Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos

acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao

moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa

claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as

indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a

Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-

Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa

a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria

cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade

narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente

delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando

Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar

de longo em tudo nos interessa

Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em

que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele

o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor

mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o

13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo

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207

homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias

alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara

nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se

considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me

com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele

laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do

seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o

senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz

de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa

cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute

quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas

pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum

de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem

seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este

ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou

largarraquo (91-92)16

E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para

comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute

que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao

preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua

dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite

pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo

garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17

Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor

Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas

hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a

16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)

17 Apud P D de Almeida 2008 156

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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a

consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista

Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa

agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo

deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio

foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e

Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de

praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim

das traseirasrdquo (pp 21-22)

A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas

atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que

seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo

se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio

cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais

opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas

viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como

ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo

regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)

Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato

mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985

preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo

entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de

preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de

fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor

de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19

Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se

uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)

neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado

e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como

18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15

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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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Bibliografia

Almeida Pedro Dias de (2008) ldquoA escrita eacute um sustordquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in Visatildeo 5 de Junho 154-156

Claacuteudio Maacuterio (2005) Os sonetos italianos de Tiago Veiga Porto Asa

Claacuteudio Maacuterio (2007) O Eixo da buacutessola Vila Nova de Famalicatildeo Ediccedilotildees Quasi

Claacuteudio Maacuterio (2008) Boa noite senhor Soares Lisboa Dom Quixote

Greimas A J e COURTEgraveS J (1982) Semioacutetica Diccionario razonado de la Teoria del Lenguaje Madrid Editorial Gredos

Lino Pedro Sena (2005) ldquoVersos de um muito ningueacutemrdquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in PuacuteblicoMil Folhas 10 de Dezembro 22-23

Lucas Isabel (2008) ldquoQuem escreve mal pensa malrdquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in Diaacuterio de Notiacutecias 4 de Junho 43-44

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Zenith Richard (ed) (2003) Livro do Desassossego 4ordf ed Lisboa Assiacuterio e Alvim

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Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

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as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

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em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

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o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

Bibliografia

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142

pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel

forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado

esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado

orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo

perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met

13 505-520

iacet Ilion ingens

eventuque gravi finita est publica clades

sed finita tamen soli mihi Pergama restant

in cursuque meus dolor est modo maxima rerum

tot generis natisque potens nuribusque viroque

nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum

Penelopes munus quae me data pensa trahentem

matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est

clara parens haec est dicet Priameia coniunx

postque tot amissos tu nunc quae sola levabas

maternos luctus hostilia busta piasti

inferias hosti peperi quo ferrea resto

quidve moror quo me servas annosa senectus

quo di crudeles nisi uti nova funera cernam

vivacem differtis anum quis posse putaret

felicem Priamum post diruta Pergama dici

ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la

desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece

Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante

de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy

arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos

presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a

miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre

madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos

se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has

aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres

para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero

iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser

para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten

creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten

de Peacutergamordquo

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143

quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los

momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr

104-106 dice la abatida soberana

αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις

ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se

le han ido patria hijos y esposordquo

y continuacutea en 140-142

δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς

ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber

sido destruido mi poder lastimeramenterdquo

Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199

φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς

ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja

resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie

fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta

cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo

Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476

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144

ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν

ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores

no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo

y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y

descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el

sacrificio de Poliacutexena

οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα

ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa

de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por

la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de

polvo su desgraciada cabezardquo

Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba

como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513

ldquohaec Hectoris illa est

clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo

ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo

presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva

esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para

siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497

τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν

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145

κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν

ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer

esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez

me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la

que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un

camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir

este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para

los ricosrdquo

Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias

de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir

felix morte sua est nec te mea nata peremptam

adspicit et vitam pariter regnum que reliquit

ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute

a la vez la vida y el reinordquo

auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas

1312-1316

Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν

ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no

ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos

con impiacuteo deguumlellordquo

con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante

consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11

158-161

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146

tuque o sanctissima coniunx

felix morte tua neque in hunc seruata dolorem

contra ego uiuendo uici mea fata superstes

restarem ut genitor

ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada

para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para

sobrevir siendo su padrerdquo

La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye

el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda

no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten

de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen

a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha

recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que

se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna

llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute

portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se

repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate

Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610

σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός

ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del

mar traacuteela aquiacuterdquo

pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al

mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que

como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido

en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de

dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal

vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase

maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y

ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere

de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544

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205

Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio

Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12

surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo

Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida

do moccedilo do escritoacuterio

Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal

dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho

estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto

como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No

corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida

dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante

para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos

quentes

Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou

da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para

uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi

uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui

hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que

cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando

era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira

alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de

hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo

automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo

porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do

escritoacuterio foi-se embora

12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente

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206

Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino

sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute

copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da

escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em

mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a

trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu

Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13

Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco

do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio

para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo

Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos

acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao

moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa

claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as

indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a

Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-

Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa

a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria

cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade

narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente

delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando

Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar

de longo em tudo nos interessa

Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em

que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele

o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor

mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o

13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo

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207

homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias

alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara

nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se

considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me

com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele

laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do

seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o

senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz

de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa

cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute

quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas

pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum

de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem

seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este

ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou

largarraquo (91-92)16

E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para

comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute

que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao

preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua

dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite

pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo

garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17

Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor

Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas

hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a

16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)

17 Apud P D de Almeida 2008 156

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208

mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a

consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista

Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa

agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo

deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio

foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e

Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de

praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim

das traseirasrdquo (pp 21-22)

A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas

atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que

seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo

se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio

cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais

opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas

viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como

ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo

regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)

Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato

mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985

preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo

entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de

preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de

fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor

de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19

Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se

uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)

neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado

e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como

18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15

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209

em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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210

prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

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211

pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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212

Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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213

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334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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335

agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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336

da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

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339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

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340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

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341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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143

quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los

momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr

104-106 dice la abatida soberana

αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις

ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se

le han ido patria hijos y esposordquo

y continuacutea en 140-142

δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς

ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber

sido destruido mi poder lastimeramenterdquo

Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199

φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς

ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja

resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie

fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta

cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo

Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476

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ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν

ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores

no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo

y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y

descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el

sacrificio de Poliacutexena

οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα

ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa

de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por

la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de

polvo su desgraciada cabezardquo

Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba

como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513

ldquohaec Hectoris illa est

clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo

ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo

presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva

esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para

siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497

τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν

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145

κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν

ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer

esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez

me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la

que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un

camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir

este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para

los ricosrdquo

Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias

de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir

felix morte sua est nec te mea nata peremptam

adspicit et vitam pariter regnum que reliquit

ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute

a la vez la vida y el reinordquo

auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas

1312-1316

Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν

ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no

ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos

con impiacuteo deguumlellordquo

con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante

consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11

158-161

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146

tuque o sanctissima coniunx

felix morte tua neque in hunc seruata dolorem

contra ego uiuendo uici mea fata superstes

restarem ut genitor

ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada

para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para

sobrevir siendo su padrerdquo

La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye

el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda

no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten

de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen

a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha

recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que

se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna

llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute

portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se

repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate

Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610

σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός

ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del

mar traacuteela aquiacuterdquo

pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al

mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que

como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido

en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de

dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal

vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase

maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y

ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere

de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544

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205

Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio

Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12

surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo

Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida

do moccedilo do escritoacuterio

Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal

dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho

estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto

como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No

corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida

dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante

para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos

quentes

Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou

da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para

uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi

uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui

hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que

cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando

era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira

alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de

hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo

automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo

porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do

escritoacuterio foi-se embora

12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente

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206

Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino

sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute

copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da

escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em

mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a

trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu

Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13

Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco

do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio

para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo

Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos

acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao

moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa

claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as

indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a

Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-

Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa

a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria

cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade

narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente

delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando

Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar

de longo em tudo nos interessa

Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em

que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele

o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor

mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o

13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo

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207

homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias

alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara

nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se

considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me

com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele

laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do

seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o

senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz

de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa

cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute

quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas

pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum

de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem

seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este

ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou

largarraquo (91-92)16

E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para

comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute

que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao

preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua

dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite

pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo

garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17

Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor

Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas

hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a

16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)

17 Apud P D de Almeida 2008 156

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208

mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a

consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista

Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa

agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo

deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio

foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e

Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de

praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim

das traseirasrdquo (pp 21-22)

A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas

atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que

seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo

se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio

cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais

opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas

viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como

ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo

regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)

Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato

mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985

preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo

entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de

preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de

fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor

de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19

Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se

uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)

neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado

e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como

18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15

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209

em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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210

prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

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211

pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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212

Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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213

Bibliografia

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Claacuteudio Maacuterio (2007) O Eixo da buacutessola Vila Nova de Famalicatildeo Ediccedilotildees Quasi

Claacuteudio Maacuterio (2008) Boa noite senhor Soares Lisboa Dom Quixote

Greimas A J e COURTEgraveS J (1982) Semioacutetica Diccionario razonado de la Teoria del Lenguaje Madrid Editorial Gredos

Lino Pedro Sena (2005) ldquoVersos de um muito ningueacutemrdquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in PuacuteblicoMil Folhas 10 de Dezembro 22-23

Lucas Isabel (2008) ldquoQuem escreve mal pensa malrdquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in Diaacuterio de Notiacutecias 4 de Junho 43-44

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Zenith Richard (ed) (2003) Livro do Desassossego 4ordf ed Lisboa Assiacuterio e Alvim

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334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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335

agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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336

da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

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339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

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341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν

ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores

no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo

y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y

descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el

sacrificio de Poliacutexena

οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα

ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa

de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por

la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de

polvo su desgraciada cabezardquo

Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba

como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513

ldquohaec Hectoris illa est

clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo

ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo

presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva

esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para

siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497

τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν

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145

κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν

ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer

esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez

me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la

que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un

camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir

este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para

los ricosrdquo

Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias

de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir

felix morte sua est nec te mea nata peremptam

adspicit et vitam pariter regnum que reliquit

ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute

a la vez la vida y el reinordquo

auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas

1312-1316

Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν

ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no

ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos

con impiacuteo deguumlellordquo

con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante

consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11

158-161

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146

tuque o sanctissima coniunx

felix morte tua neque in hunc seruata dolorem

contra ego uiuendo uici mea fata superstes

restarem ut genitor

ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada

para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para

sobrevir siendo su padrerdquo

La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye

el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda

no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten

de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen

a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha

recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que

se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna

llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute

portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se

repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate

Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610

σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός

ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del

mar traacuteela aquiacuterdquo

pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al

mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que

como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido

en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de

dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal

vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase

maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y

ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere

de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544

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205

Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio

Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12

surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo

Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida

do moccedilo do escritoacuterio

Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal

dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho

estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto

como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No

corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida

dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante

para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos

quentes

Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou

da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para

uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi

uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui

hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que

cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando

era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira

alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de

hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo

automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo

porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do

escritoacuterio foi-se embora

12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente

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206

Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino

sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute

copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da

escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em

mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a

trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu

Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13

Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco

do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio

para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo

Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos

acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao

moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa

claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as

indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a

Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-

Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa

a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria

cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade

narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente

delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando

Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar

de longo em tudo nos interessa

Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em

que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele

o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor

mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o

13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo

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207

homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias

alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara

nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se

considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me

com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele

laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do

seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o

senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz

de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa

cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute

quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas

pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum

de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem

seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este

ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou

largarraquo (91-92)16

E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para

comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute

que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao

preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua

dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite

pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo

garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17

Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor

Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas

hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a

16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)

17 Apud P D de Almeida 2008 156

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208

mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a

consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista

Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa

agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo

deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio

foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e

Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de

praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim

das traseirasrdquo (pp 21-22)

A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas

atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que

seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo

se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio

cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais

opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas

viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como

ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo

regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)

Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato

mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985

preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo

entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de

preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de

fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor

de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19

Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se

uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)

neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado

e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como

18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15

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209

em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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210

prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

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211

pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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212

Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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213

Bibliografia

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334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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335

agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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336

da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

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339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

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340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

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341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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Page 28: & Transgressão II - digitalis.uc.pt · Carmen Soares Maria do Céu Fialho María Consuelo Alvarez Morán Rosa María Iglesias Montiel Coordenação • C O I M B R A 2 0 1 1 orma

145

κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν

ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer

esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez

me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la

que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un

camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir

este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para

los ricosrdquo

Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias

de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir

felix morte sua est nec te mea nata peremptam

adspicit et vitam pariter regnum que reliquit

ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute

a la vez la vida y el reinordquo

auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas

1312-1316

Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν

ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no

ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos

con impiacuteo deguumlellordquo

con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante

consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11

158-161

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146

tuque o sanctissima coniunx

felix morte tua neque in hunc seruata dolorem

contra ego uiuendo uici mea fata superstes

restarem ut genitor

ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada

para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para

sobrevir siendo su padrerdquo

La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye

el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda

no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten

de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen

a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha

recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que

se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna

llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute

portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se

repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate

Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610

σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός

ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del

mar traacuteela aquiacuterdquo

pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al

mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que

como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido

en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de

dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal

vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase

maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y

ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere

de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544

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205

Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio

Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12

surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo

Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida

do moccedilo do escritoacuterio

Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal

dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho

estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto

como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No

corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida

dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante

para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos

quentes

Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou

da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para

uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi

uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui

hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que

cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando

era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira

alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de

hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo

automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo

porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do

escritoacuterio foi-se embora

12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente

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Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino

sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute

copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da

escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em

mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a

trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu

Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13

Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco

do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio

para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo

Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos

acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao

moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa

claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as

indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a

Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-

Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa

a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria

cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade

narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente

delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando

Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar

de longo em tudo nos interessa

Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em

que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele

o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor

mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o

13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo

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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias

alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara

nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se

considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me

com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele

laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do

seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o

senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz

de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa

cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute

quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas

pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum

de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem

seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este

ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou

largarraquo (91-92)16

E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para

comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute

que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao

preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua

dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite

pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo

garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17

Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor

Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas

hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a

16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)

17 Apud P D de Almeida 2008 156

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208

mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a

consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista

Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa

agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo

deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio

foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e

Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de

praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim

das traseirasrdquo (pp 21-22)

A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas

atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que

seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo

se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio

cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais

opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas

viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como

ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo

regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)

Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato

mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985

preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo

entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de

preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de

fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor

de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19

Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se

uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)

neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado

e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como

18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15

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209

em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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212

Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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213

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334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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335

agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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336

da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

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339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

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341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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tuque o sanctissima coniunx

felix morte tua neque in hunc seruata dolorem

contra ego uiuendo uici mea fata superstes

restarem ut genitor

ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada

para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para

sobrevir siendo su padrerdquo

La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye

el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda

no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten

de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen

a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha

recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que

se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna

llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute

portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se

repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate

Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610

σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός

ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del

mar traacuteela aquiacuterdquo

pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al

mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que

como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido

en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de

dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal

vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase

maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y

ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere

de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544

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205

Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio

Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12

surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo

Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida

do moccedilo do escritoacuterio

Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal

dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho

estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto

como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No

corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida

dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante

para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos

quentes

Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou

da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para

uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi

uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui

hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que

cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando

era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira

alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de

hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo

automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo

porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do

escritoacuterio foi-se embora

12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente

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206

Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino

sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute

copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da

escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em

mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a

trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu

Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13

Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco

do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio

para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo

Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos

acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao

moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa

claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as

indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a

Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-

Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa

a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria

cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade

narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente

delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando

Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar

de longo em tudo nos interessa

Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em

que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele

o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor

mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o

13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo

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207

homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias

alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara

nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se

considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me

com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele

laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do

seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o

senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz

de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa

cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute

quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas

pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum

de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem

seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este

ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou

largarraquo (91-92)16

E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para

comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute

que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao

preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua

dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite

pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo

garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17

Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor

Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas

hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a

16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)

17 Apud P D de Almeida 2008 156

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208

mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a

consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista

Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa

agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo

deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio

foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e

Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de

praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim

das traseirasrdquo (pp 21-22)

A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas

atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que

seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo

se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio

cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais

opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas

viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como

ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo

regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)

Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato

mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985

preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo

entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de

preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de

fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor

de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19

Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se

uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)

neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado

e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como

18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15

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209

em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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210

prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

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211

pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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212

Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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213

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334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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335

agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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336

da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

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339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

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341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio

Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12

surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo

Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida

do moccedilo do escritoacuterio

Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal

dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho

estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto

como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No

corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida

dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante

para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos

quentes

Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou

da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para

uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi

uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui

hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que

cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando

era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se

embora

Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira

alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de

hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo

automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo

porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do

escritoacuterio foi-se embora

12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente

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Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino

sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute

copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da

escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em

mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a

trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu

Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13

Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco

do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio

para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo

Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos

acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao

moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa

claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as

indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a

Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-

Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa

a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria

cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade

narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente

delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando

Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar

de longo em tudo nos interessa

Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em

que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele

o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor

mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o

13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo

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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias

alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara

nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se

considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me

com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele

laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do

seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o

senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz

de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa

cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute

quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas

pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum

de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem

seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este

ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou

largarraquo (91-92)16

E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para

comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute

que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao

preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua

dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite

pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo

garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17

Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor

Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas

hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a

16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)

17 Apud P D de Almeida 2008 156

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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a

consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista

Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa

agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo

deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio

foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e

Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de

praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim

das traseirasrdquo (pp 21-22)

A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas

atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que

seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo

se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio

cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais

opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas

viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como

ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo

regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)

Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato

mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985

preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo

entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de

preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de

fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor

de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19

Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se

uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)

neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado

e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como

18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15

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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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Zenith Richard (ed) (2003) Livro do Desassossego 4ordf ed Lisboa Assiacuterio e Alvim

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Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

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339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

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341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino

sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute

copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da

escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em

mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a

trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu

Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13

Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco

do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio

para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo

Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos

acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao

moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa

claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as

indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a

Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-

Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa

a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria

cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade

narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente

delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando

Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar

de longo em tudo nos interessa

Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em

que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele

o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor

mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o

13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo

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207

homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias

alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara

nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se

considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me

com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele

laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do

seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o

senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz

de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa

cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute

quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas

pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum

de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem

seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este

ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou

largarraquo (91-92)16

E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para

comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute

que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao

preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua

dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite

pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo

garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17

Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor

Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas

hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a

16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)

17 Apud P D de Almeida 2008 156

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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a

consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista

Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa

agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo

deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio

foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e

Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de

praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim

das traseirasrdquo (pp 21-22)

A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas

atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que

seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo

se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio

cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais

opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas

viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como

ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo

regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)

Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato

mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985

preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo

entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de

preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de

fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor

de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19

Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se

uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)

neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado

e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como

18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15

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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

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211

pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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213

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334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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335

agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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336

da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

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339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

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341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias

alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara

nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se

considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me

com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele

laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do

seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o

senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz

de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa

cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute

quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas

pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum

de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem

seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este

ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou

largarraquo (91-92)16

E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para

comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute

que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao

preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua

dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite

pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo

garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17

Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor

Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas

hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a

16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)

17 Apud P D de Almeida 2008 156

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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a

consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista

Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa

agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo

deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio

foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e

Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de

praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim

das traseirasrdquo (pp 21-22)

A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas

atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que

seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo

se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio

cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais

opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas

viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como

ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo

regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)

Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato

mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985

preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo

entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de

preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de

fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor

de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19

Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se

uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)

neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado

e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como

18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15

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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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212

Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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213

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334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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335

agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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336

da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

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339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

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340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

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341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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Page 33: & Transgressão II - digitalis.uc.pt · Carmen Soares Maria do Céu Fialho María Consuelo Alvarez Morán Rosa María Iglesias Montiel Coordenação • C O I M B R A 2 0 1 1 orma

208

mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a

consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista

Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa

agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo

deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio

foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e

Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de

praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim

das traseirasrdquo (pp 21-22)

A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas

atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que

seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo

se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio

cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais

opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas

viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como

ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo

regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)

Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato

mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985

preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo

entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de

preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de

fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor

de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19

Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se

uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)

neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado

e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como

18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15

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209

em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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210

prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

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211

pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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212

Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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213

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334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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335

agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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336

da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

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339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

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340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

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341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo

Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de

enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o

fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por

outros factores

Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por

Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa

a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo

com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede

do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)

Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso

supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter

no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga

ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das

mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia

sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo

afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila

do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de

meninas (p 42)

O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda

porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns

chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de

um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura

e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo

Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no

jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a

explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute

20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo

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210

prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

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211

pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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212

Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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213

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334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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335

agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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336

da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

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339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

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340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

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341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce

a sabedoriaraquordquo (p 77)

Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo

prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de

reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos

do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a

praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente

um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa

eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos

trinta e quarenta e o presente de 1985

Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se

imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo

proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto

que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento

que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da

histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-

poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por

exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares

(pp 75-7621)

Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar

do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo

o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos

de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil

encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de

representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos

exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao

mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash

ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor

Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata

21 Cf R Zenith 2003 frag 266

Obra protegida por direitos de autor

211

pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

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212

Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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213

Bibliografia

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334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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335

agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

Obra protegida por direitos de autor

336

da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

Obra protegida por direitos de autor

337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

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338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

Obra protegida por direitos de autor

339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

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341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da

gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)

O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende

como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no

espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados

por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas

e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem

porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e

Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()

O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par

da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo

para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e

o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se

chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira

individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp

56-57) (sublinhados nossos)

Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa

Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas

Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de

eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me

natildeo sei porquecirc

Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a

vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre

dois mundos ()

Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu

sou de desperto ()

22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares

Obra protegida por direitos de autor

212

Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

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213

Bibliografia

Almeida Pedro Dias de (2008) ldquoA escrita eacute um sustordquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in Visatildeo 5 de Junho 154-156

Claacuteudio Maacuterio (2005) Os sonetos italianos de Tiago Veiga Porto Asa

Claacuteudio Maacuterio (2007) O Eixo da buacutessola Vila Nova de Famalicatildeo Ediccedilotildees Quasi

Claacuteudio Maacuterio (2008) Boa noite senhor Soares Lisboa Dom Quixote

Greimas A J e COURTEgraveS J (1982) Semioacutetica Diccionario razonado de la Teoria del Lenguaje Madrid Editorial Gredos

Lino Pedro Sena (2005) ldquoVersos de um muito ningueacutemrdquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in PuacuteblicoMil Folhas 10 de Dezembro 22-23

Lucas Isabel (2008) ldquoQuem escreve mal pensa malrdquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in Diaacuterio de Notiacutecias 4 de Junho 43-44

Machado Aacutelvaro Manuel (2008) ldquoCroacutenica pessoanardquo in ExpressoActual 16 de Maio 16

Zenith Richard (ed) (2003) Livro do Desassossego 4ordf ed Lisboa Assiacuterio e Alvim

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334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

Obra protegida por direitos de autor

335

agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

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336

da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

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337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

Obra protegida por direitos de autor

338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

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339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

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341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

Bibliografia

Baudrillard Jean (1970) ndash A sociedade de consumo Ediccedilotildees 70 Lisboa

Deacutebord Guy (1991) ndash A sociedade de espaectaacuteculo- Mobilis in Mobile Cascais 1ordf ed 1967

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Obra protegida por direitos de autor

Page 37: & Transgressão II - digitalis.uc.pt · Carmen Soares Maria do Céu Fialho María Consuelo Alvarez Morán Rosa María Iglesias Montiel Coordenação • C O I M B R A 2 0 1 1 orma

212

Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar

e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo

sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)

Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo

entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio

Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo

podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo

heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos

no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas

os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea

o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a

descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das

sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de

Pessoa ele mesmo

O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a

hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em

romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo

delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras

de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois

que satildeo dele e nossasrdquo24

Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares

Boa noite Maacuterio Claacuteudio

23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348

Obra protegida por direitos de autor

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Bibliografia

Almeida Pedro Dias de (2008) ldquoA escrita eacute um sustordquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in Visatildeo 5 de Junho 154-156

Claacuteudio Maacuterio (2005) Os sonetos italianos de Tiago Veiga Porto Asa

Claacuteudio Maacuterio (2007) O Eixo da buacutessola Vila Nova de Famalicatildeo Ediccedilotildees Quasi

Claacuteudio Maacuterio (2008) Boa noite senhor Soares Lisboa Dom Quixote

Greimas A J e COURTEgraveS J (1982) Semioacutetica Diccionario razonado de la Teoria del Lenguaje Madrid Editorial Gredos

Lino Pedro Sena (2005) ldquoVersos de um muito ningueacutemrdquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in PuacuteblicoMil Folhas 10 de Dezembro 22-23

Lucas Isabel (2008) ldquoQuem escreve mal pensa malrdquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in Diaacuterio de Notiacutecias 4 de Junho 43-44

Machado Aacutelvaro Manuel (2008) ldquoCroacutenica pessoanardquo in ExpressoActual 16 de Maio 16

Zenith Richard (ed) (2003) Livro do Desassossego 4ordf ed Lisboa Assiacuterio e Alvim

Obra protegida por direitos de autor

334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

Obra protegida por direitos de autor

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agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

Obra protegida por direitos de autor

336

da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

Obra protegida por direitos de autor

337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

Obra protegida por direitos de autor

338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

Obra protegida por direitos de autor

339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

Obra protegida por direitos de autor

341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

Bibliografia

Baudrillard Jean (1970) ndash A sociedade de consumo Ediccedilotildees 70 Lisboa

Deacutebord Guy (1991) ndash A sociedade de espaectaacuteculo- Mobilis in Mobile Cascais 1ordf ed 1967

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Page 38: & Transgressão II - digitalis.uc.pt · Carmen Soares Maria do Céu Fialho María Consuelo Alvarez Morán Rosa María Iglesias Montiel Coordenação • C O I M B R A 2 0 1 1 orma

213

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334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

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335

agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

Obra protegida por direitos de autor

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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

Obra protegida por direitos de autor

337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

Obra protegida por direitos de autor

338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

Obra protegida por direitos de autor

339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

Obra protegida por direitos de autor

341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

Bibliografia

Baudrillard Jean (1970) ndash A sociedade de consumo Ediccedilotildees 70 Lisboa

Deacutebord Guy (1991) ndash A sociedade de espaectaacuteculo- Mobilis in Mobile Cascais 1ordf ed 1967

Dumazedier Joffre (2002) ndash Lazer valores residuais ou existenciais In Poirier Jean Histoacuteria dos Costumes Eacuteticas e Esteacuteticas 1ordf Ed 1990 Editorial Estampa Lisboa pp 147-223

Dumazedier Joffre (1968) ndash Vers une civilization du loisir Coll Points Eacuteditions Seuil Paris

Fournier Martine (2004) ndash Souci du corps et sculpture de soi Sciences Humaines 154 Novembro Auxerre

Gama Antoacutenio amp Santos Norberto Pinto (1992) ndash Tempo livre lazer e terciaacuterio Cadernos de Geografia 10 IEG Coimbra

Gama Antoacutenio (2008) ndash Notas para uma Geografia do tempo livre In Santos Norberto P amp Gama Antoacutenio Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Imprensa da Universidade CEG Coimbra 1ordf ed 1988

Gronow Jukka (1997) ndash The sociology of taste Routledge Londres

Kurz R (1998) - Mataram o lazer On line httpwwwistoecombr Acesso Dezembro de 1998 Entrevista a Eduardo Ferraz

Langman Lauren (1992) Neon cages Shopping for subjectivity In Rob Shields (ed) Lifestyle shopping The subject of consumption The International Library of Sociology Routledge Londres pp 40-82

Le Breton David (2002) ndash Conduites agrave risque Presses Universitaires de France Paris

Nazareth Linda (2007) ndash The leisure economy How changing demographics economics and generational attitudes will reshape our lives and our industries Wiley amp Sons Ontario

Nielsen Niels Kayser (1999) ndash Knowledge by doing Home and identity in a bodily perspective In Crouch David Leisuretourism geographies Practices and geographical knowledge Routledge Londres pp 277-290

Rochefort Robert (1995) La socieacuteteacute des consommateurs Paris Editions Odile Jacob

Santos Norberto Pinto (2001) ndash A sociedade de consumo e os espaccedilos vividos pelas famiacutelias Ediccedilotildees Colibri CEGC Lisboa

Santos Norberto Pinto (2008) ndash Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Imprensa da Universidade CEG Coimbra

Obra protegida por direitos de autor

342

Santos Norberto Pinto e Moreira Claudete (2008) ndash O lazer e a noite Imagens de uma cidade universitaacuteria Coimbra in Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Santos Norberto Pinto amp Gama Antoacutenio Imprensa da universidade CEG Coimbra

Stebbins Robert (1996) ndash Tolerable Differences Living with Deviance 2ordf ed McGraw-Hill Ryerson Toronto

Stebbins Robert (2008) ndash Serious Leisure A perspective for our time Transaction Publishers Londres

Simotildees Joseacute Manuel amp Ferreira Carlos Cardoso (2009) ndash Turismos de nicho Motivaccedilotildees Produtos Territoacuterios CEG Universidade de Lisboa Lisboa

Soares Bernardo (2006) - Livro do Desassossego Assiacuterio amp Alvim Lisboa

sue Roger (1982) - Vers une socieacuteteacute du temps Libre Sociologie drsquoAujourdhui PUF Paris

Tuan Yi Fu (1996) ndash Space and place Humanistic perspective In Agnew John Livingstone David amp Rogers Alisdair Human Geography An essential anthology Blackwell Cambridge 1ordf ed 1974

Obra protegida por direitos de autor

Page 39: & Transgressão II - digitalis.uc.pt · Carmen Soares Maria do Céu Fialho María Consuelo Alvarez Morán Rosa María Iglesias Montiel Coordenação • C O I M B R A 2 0 1 1 orma

334

Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo

ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo

de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e

urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens

parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem

ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos

Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer

Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas

comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com

poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-

nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito

das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento

porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem

mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos

agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos

Lazeres normas e desvios

Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo

dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas

religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as

suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e

mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e

integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo

e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia

enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como

as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem

responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-

gicamente evoluiacutedos e espectaculares

Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios

abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito

Obra protegida por direitos de autor

335

agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

Obra protegida por direitos de autor

336

da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

Obra protegida por direitos de autor

337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

Obra protegida por direitos de autor

338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

Obra protegida por direitos de autor

339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

Obra protegida por direitos de autor

341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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Langman Lauren (1992) Neon cages Shopping for subjectivity In Rob Shields (ed) Lifestyle shopping The subject of consumption The International Library of Sociology Routledge Londres pp 40-82

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Nazareth Linda (2007) ndash The leisure economy How changing demographics economics and generational attitudes will reshape our lives and our industries Wiley amp Sons Ontario

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Rochefort Robert (1995) La socieacuteteacute des consommateurs Paris Editions Odile Jacob

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342

Santos Norberto Pinto e Moreira Claudete (2008) ndash O lazer e a noite Imagens de uma cidade universitaacuteria Coimbra in Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Santos Norberto Pinto amp Gama Antoacutenio Imprensa da universidade CEG Coimbra

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Soares Bernardo (2006) - Livro do Desassossego Assiacuterio amp Alvim Lisboa

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Tuan Yi Fu (1996) ndash Space and place Humanistic perspective In Agnew John Livingstone David amp Rogers Alisdair Human Geography An essential anthology Blackwell Cambridge 1ordf ed 1974

Obra protegida por direitos de autor

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agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo

espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas

juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo

na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos

consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e

campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura

que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da

excelecircncia e da performance (Fournier 2004)

Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que

nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com

uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer

A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees

imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais

ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os

maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas

tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de

ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys

mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os

goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos

de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo

agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os

adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade

e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo

Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos

desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado

que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)

conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo

ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo

porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se

sobrepotildee ao tempo de emprego

O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua

a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer

Obra protegida por direitos de autor

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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

Obra protegida por direitos de autor

337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

Obra protegida por direitos de autor

338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

Obra protegida por direitos de autor

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as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

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o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

Bibliografia

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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo

livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente

diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros

a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente

integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de

aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos

desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o

caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao

consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de

embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer

Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante

esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos

modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes

Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que

natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato

explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase

impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos

Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos

de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo

submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos

escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo

de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees

de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo

que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem

dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)

Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier

(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do

empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo

em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos

caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos

da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do

hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho

Obra protegida por direitos de autor

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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

Obra protegida por direitos de autor

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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

Obra protegida por direitos de autor

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as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

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em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

Obra protegida por direitos de autor

341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

Bibliografia

Baudrillard Jean (1970) ndash A sociedade de consumo Ediccedilotildees 70 Lisboa

Deacutebord Guy (1991) ndash A sociedade de espaectaacuteculo- Mobilis in Mobile Cascais 1ordf ed 1967

Dumazedier Joffre (2002) ndash Lazer valores residuais ou existenciais In Poirier Jean Histoacuteria dos Costumes Eacuteticas e Esteacuteticas 1ordf Ed 1990 Editorial Estampa Lisboa pp 147-223

Dumazedier Joffre (1968) ndash Vers une civilization du loisir Coll Points Eacuteditions Seuil Paris

Fournier Martine (2004) ndash Souci du corps et sculpture de soi Sciences Humaines 154 Novembro Auxerre

Gama Antoacutenio amp Santos Norberto Pinto (1992) ndash Tempo livre lazer e terciaacuterio Cadernos de Geografia 10 IEG Coimbra

Gama Antoacutenio (2008) ndash Notas para uma Geografia do tempo livre In Santos Norberto P amp Gama Antoacutenio Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Imprensa da Universidade CEG Coimbra 1ordf ed 1988

Gronow Jukka (1997) ndash The sociology of taste Routledge Londres

Kurz R (1998) - Mataram o lazer On line httpwwwistoecombr Acesso Dezembro de 1998 Entrevista a Eduardo Ferraz

Langman Lauren (1992) Neon cages Shopping for subjectivity In Rob Shields (ed) Lifestyle shopping The subject of consumption The International Library of Sociology Routledge Londres pp 40-82

Le Breton David (2002) ndash Conduites agrave risque Presses Universitaires de France Paris

Nazareth Linda (2007) ndash The leisure economy How changing demographics economics and generational attitudes will reshape our lives and our industries Wiley amp Sons Ontario

Nielsen Niels Kayser (1999) ndash Knowledge by doing Home and identity in a bodily perspective In Crouch David Leisuretourism geographies Practices and geographical knowledge Routledge Londres pp 277-290

Rochefort Robert (1995) La socieacuteteacute des consommateurs Paris Editions Odile Jacob

Santos Norberto Pinto (2001) ndash A sociedade de consumo e os espaccedilos vividos pelas famiacutelias Ediccedilotildees Colibri CEGC Lisboa

Santos Norberto Pinto (2008) ndash Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Imprensa da Universidade CEG Coimbra

Obra protegida por direitos de autor

342

Santos Norberto Pinto e Moreira Claudete (2008) ndash O lazer e a noite Imagens de uma cidade universitaacuteria Coimbra in Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Santos Norberto Pinto amp Gama Antoacutenio Imprensa da universidade CEG Coimbra

Stebbins Robert (1996) ndash Tolerable Differences Living with Deviance 2ordf ed McGraw-Hill Ryerson Toronto

Stebbins Robert (2008) ndash Serious Leisure A perspective for our time Transaction Publishers Londres

Simotildees Joseacute Manuel amp Ferreira Carlos Cardoso (2009) ndash Turismos de nicho Motivaccedilotildees Produtos Territoacuterios CEG Universidade de Lisboa Lisboa

Soares Bernardo (2006) - Livro do Desassossego Assiacuterio amp Alvim Lisboa

sue Roger (1982) - Vers une socieacuteteacute du temps Libre Sociologie drsquoAujourdhui PUF Paris

Tuan Yi Fu (1996) ndash Space and place Humanistic perspective In Agnew John Livingstone David amp Rogers Alisdair Human Geography An essential anthology Blackwell Cambridge 1ordf ed 1974

Obra protegida por direitos de autor

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337

nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio

entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas

da pessoa

Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-

lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de

obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a

diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e

iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial

as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de

experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas

vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo

Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da

cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-

sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam

uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo

investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de

puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura

popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos

filoacutesofos das geraccedilotildees passadas

Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada

extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam

ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos

que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer

O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-

mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo

do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo

de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em

todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade

social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos

Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo

conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo

da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez

Obra protegida por direitos de autor

338

mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

Obra protegida por direitos de autor

339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

Obra protegida por direitos de autor

341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

Bibliografia

Baudrillard Jean (1970) ndash A sociedade de consumo Ediccedilotildees 70 Lisboa

Deacutebord Guy (1991) ndash A sociedade de espaectaacuteculo- Mobilis in Mobile Cascais 1ordf ed 1967

Dumazedier Joffre (2002) ndash Lazer valores residuais ou existenciais In Poirier Jean Histoacuteria dos Costumes Eacuteticas e Esteacuteticas 1ordf Ed 1990 Editorial Estampa Lisboa pp 147-223

Dumazedier Joffre (1968) ndash Vers une civilization du loisir Coll Points Eacuteditions Seuil Paris

Fournier Martine (2004) ndash Souci du corps et sculpture de soi Sciences Humaines 154 Novembro Auxerre

Gama Antoacutenio amp Santos Norberto Pinto (1992) ndash Tempo livre lazer e terciaacuterio Cadernos de Geografia 10 IEG Coimbra

Gama Antoacutenio (2008) ndash Notas para uma Geografia do tempo livre In Santos Norberto P amp Gama Antoacutenio Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Imprensa da Universidade CEG Coimbra 1ordf ed 1988

Gronow Jukka (1997) ndash The sociology of taste Routledge Londres

Kurz R (1998) - Mataram o lazer On line httpwwwistoecombr Acesso Dezembro de 1998 Entrevista a Eduardo Ferraz

Langman Lauren (1992) Neon cages Shopping for subjectivity In Rob Shields (ed) Lifestyle shopping The subject of consumption The International Library of Sociology Routledge Londres pp 40-82

Le Breton David (2002) ndash Conduites agrave risque Presses Universitaires de France Paris

Nazareth Linda (2007) ndash The leisure economy How changing demographics economics and generational attitudes will reshape our lives and our industries Wiley amp Sons Ontario

Nielsen Niels Kayser (1999) ndash Knowledge by doing Home and identity in a bodily perspective In Crouch David Leisuretourism geographies Practices and geographical knowledge Routledge Londres pp 277-290

Rochefort Robert (1995) La socieacuteteacute des consommateurs Paris Editions Odile Jacob

Santos Norberto Pinto (2001) ndash A sociedade de consumo e os espaccedilos vividos pelas famiacutelias Ediccedilotildees Colibri CEGC Lisboa

Santos Norberto Pinto (2008) ndash Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Imprensa da Universidade CEG Coimbra

Obra protegida por direitos de autor

342

Santos Norberto Pinto e Moreira Claudete (2008) ndash O lazer e a noite Imagens de uma cidade universitaacuteria Coimbra in Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Santos Norberto Pinto amp Gama Antoacutenio Imprensa da universidade CEG Coimbra

Stebbins Robert (1996) ndash Tolerable Differences Living with Deviance 2ordf ed McGraw-Hill Ryerson Toronto

Stebbins Robert (2008) ndash Serious Leisure A perspective for our time Transaction Publishers Londres

Simotildees Joseacute Manuel amp Ferreira Carlos Cardoso (2009) ndash Turismos de nicho Motivaccedilotildees Produtos Territoacuterios CEG Universidade de Lisboa Lisboa

Soares Bernardo (2006) - Livro do Desassossego Assiacuterio amp Alvim Lisboa

sue Roger (1982) - Vers une socieacuteteacute du temps Libre Sociologie drsquoAujourdhui PUF Paris

Tuan Yi Fu (1996) ndash Space and place Humanistic perspective In Agnew John Livingstone David amp Rogers Alisdair Human Geography An essential anthology Blackwell Cambridge 1ordf ed 1974

Obra protegida por direitos de autor

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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem

o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila

e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de

que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a

autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas

mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na

realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel

e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores

assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem

legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo

puacuteblica) (Stebbins 1996)

Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e

pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades

e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm

conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica

autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual

facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no

aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa

os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees

promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila

da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes

ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais

associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela

facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior

intensidade e diversidade de contactos

Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente

o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de

novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios

Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis

no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os

procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo

trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem

Obra protegida por direitos de autor

339

as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

Obra protegida por direitos de autor

341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

Bibliografia

Baudrillard Jean (1970) ndash A sociedade de consumo Ediccedilotildees 70 Lisboa

Deacutebord Guy (1991) ndash A sociedade de espaectaacuteculo- Mobilis in Mobile Cascais 1ordf ed 1967

Dumazedier Joffre (2002) ndash Lazer valores residuais ou existenciais In Poirier Jean Histoacuteria dos Costumes Eacuteticas e Esteacuteticas 1ordf Ed 1990 Editorial Estampa Lisboa pp 147-223

Dumazedier Joffre (1968) ndash Vers une civilization du loisir Coll Points Eacuteditions Seuil Paris

Fournier Martine (2004) ndash Souci du corps et sculpture de soi Sciences Humaines 154 Novembro Auxerre

Gama Antoacutenio amp Santos Norberto Pinto (1992) ndash Tempo livre lazer e terciaacuterio Cadernos de Geografia 10 IEG Coimbra

Gama Antoacutenio (2008) ndash Notas para uma Geografia do tempo livre In Santos Norberto P amp Gama Antoacutenio Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Imprensa da Universidade CEG Coimbra 1ordf ed 1988

Gronow Jukka (1997) ndash The sociology of taste Routledge Londres

Kurz R (1998) - Mataram o lazer On line httpwwwistoecombr Acesso Dezembro de 1998 Entrevista a Eduardo Ferraz

Langman Lauren (1992) Neon cages Shopping for subjectivity In Rob Shields (ed) Lifestyle shopping The subject of consumption The International Library of Sociology Routledge Londres pp 40-82

Le Breton David (2002) ndash Conduites agrave risque Presses Universitaires de France Paris

Nazareth Linda (2007) ndash The leisure economy How changing demographics economics and generational attitudes will reshape our lives and our industries Wiley amp Sons Ontario

Nielsen Niels Kayser (1999) ndash Knowledge by doing Home and identity in a bodily perspective In Crouch David Leisuretourism geographies Practices and geographical knowledge Routledge Londres pp 277-290

Rochefort Robert (1995) La socieacuteteacute des consommateurs Paris Editions Odile Jacob

Santos Norberto Pinto (2001) ndash A sociedade de consumo e os espaccedilos vividos pelas famiacutelias Ediccedilotildees Colibri CEGC Lisboa

Santos Norberto Pinto (2008) ndash Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Imprensa da Universidade CEG Coimbra

Obra protegida por direitos de autor

342

Santos Norberto Pinto e Moreira Claudete (2008) ndash O lazer e a noite Imagens de uma cidade universitaacuteria Coimbra in Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Santos Norberto Pinto amp Gama Antoacutenio Imprensa da universidade CEG Coimbra

Stebbins Robert (1996) ndash Tolerable Differences Living with Deviance 2ordf ed McGraw-Hill Ryerson Toronto

Stebbins Robert (2008) ndash Serious Leisure A perspective for our time Transaction Publishers Londres

Simotildees Joseacute Manuel amp Ferreira Carlos Cardoso (2009) ndash Turismos de nicho Motivaccedilotildees Produtos Territoacuterios CEG Universidade de Lisboa Lisboa

Soares Bernardo (2006) - Livro do Desassossego Assiacuterio amp Alvim Lisboa

sue Roger (1982) - Vers une socieacuteteacute du temps Libre Sociologie drsquoAujourdhui PUF Paris

Tuan Yi Fu (1996) ndash Space and place Humanistic perspective In Agnew John Livingstone David amp Rogers Alisdair Human Geography An essential anthology Blackwell Cambridge 1ordf ed 1974

Obra protegida por direitos de autor

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as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial

em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo

dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado

soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade

central da vida humana

Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel

identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em

trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas

particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade

outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante

ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes

significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e

poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar

que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo

avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um

comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode

ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade

Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas

situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser

difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute

associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco

Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo

praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das

normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios

Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo

responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se

assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou

da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio

a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a

conquistar (como acima foi referido)

A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de

escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras

Obra protegida por direitos de autor

340

em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

Obra protegida por direitos de autor

341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

Bibliografia

Baudrillard Jean (1970) ndash A sociedade de consumo Ediccedilotildees 70 Lisboa

Deacutebord Guy (1991) ndash A sociedade de espaectaacuteculo- Mobilis in Mobile Cascais 1ordf ed 1967

Dumazedier Joffre (2002) ndash Lazer valores residuais ou existenciais In Poirier Jean Histoacuteria dos Costumes Eacuteticas e Esteacuteticas 1ordf Ed 1990 Editorial Estampa Lisboa pp 147-223

Dumazedier Joffre (1968) ndash Vers une civilization du loisir Coll Points Eacuteditions Seuil Paris

Fournier Martine (2004) ndash Souci du corps et sculpture de soi Sciences Humaines 154 Novembro Auxerre

Gama Antoacutenio amp Santos Norberto Pinto (1992) ndash Tempo livre lazer e terciaacuterio Cadernos de Geografia 10 IEG Coimbra

Gama Antoacutenio (2008) ndash Notas para uma Geografia do tempo livre In Santos Norberto P amp Gama Antoacutenio Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Imprensa da Universidade CEG Coimbra 1ordf ed 1988

Gronow Jukka (1997) ndash The sociology of taste Routledge Londres

Kurz R (1998) - Mataram o lazer On line httpwwwistoecombr Acesso Dezembro de 1998 Entrevista a Eduardo Ferraz

Langman Lauren (1992) Neon cages Shopping for subjectivity In Rob Shields (ed) Lifestyle shopping The subject of consumption The International Library of Sociology Routledge Londres pp 40-82

Le Breton David (2002) ndash Conduites agrave risque Presses Universitaires de France Paris

Nazareth Linda (2007) ndash The leisure economy How changing demographics economics and generational attitudes will reshape our lives and our industries Wiley amp Sons Ontario

Nielsen Niels Kayser (1999) ndash Knowledge by doing Home and identity in a bodily perspective In Crouch David Leisuretourism geographies Practices and geographical knowledge Routledge Londres pp 277-290

Rochefort Robert (1995) La socieacuteteacute des consommateurs Paris Editions Odile Jacob

Santos Norberto Pinto (2001) ndash A sociedade de consumo e os espaccedilos vividos pelas famiacutelias Ediccedilotildees Colibri CEGC Lisboa

Santos Norberto Pinto (2008) ndash Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Imprensa da Universidade CEG Coimbra

Obra protegida por direitos de autor

342

Santos Norberto Pinto e Moreira Claudete (2008) ndash O lazer e a noite Imagens de uma cidade universitaacuteria Coimbra in Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Santos Norberto Pinto amp Gama Antoacutenio Imprensa da universidade CEG Coimbra

Stebbins Robert (1996) ndash Tolerable Differences Living with Deviance 2ordf ed McGraw-Hill Ryerson Toronto

Stebbins Robert (2008) ndash Serious Leisure A perspective for our time Transaction Publishers Londres

Simotildees Joseacute Manuel amp Ferreira Carlos Cardoso (2009) ndash Turismos de nicho Motivaccedilotildees Produtos Territoacuterios CEG Universidade de Lisboa Lisboa

Soares Bernardo (2006) - Livro do Desassossego Assiacuterio amp Alvim Lisboa

sue Roger (1982) - Vers une socieacuteteacute du temps Libre Sociologie drsquoAujourdhui PUF Paris

Tuan Yi Fu (1996) ndash Space and place Humanistic perspective In Agnew John Livingstone David amp Rogers Alisdair Human Geography An essential anthology Blackwell Cambridge 1ordf ed 1974

Obra protegida por direitos de autor

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em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para

muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para

o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes

de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura

Notas Finais

Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas

fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo

de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio

esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura

mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e

operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)

atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente

sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos

em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em

trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas

Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos

haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de

actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo

aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios

Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem

riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades

oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da

procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem

ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos

para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e

sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem

tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees

As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo

de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades

Obra protegida por direitos de autor

341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

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342

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341

o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo

cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos

assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente

Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos

e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de

noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com

que menos nos identificamos

Bibliografia

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Deacutebord Guy (1991) ndash A sociedade de espaectaacuteculo- Mobilis in Mobile Cascais 1ordf ed 1967

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342

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Simotildees Joseacute Manuel amp Ferreira Carlos Cardoso (2009) ndash Turismos de nicho Motivaccedilotildees Produtos Territoacuterios CEG Universidade de Lisboa Lisboa

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Santos Norberto Pinto e Moreira Claudete (2008) ndash O lazer e a noite Imagens de uma cidade universitaacuteria Coimbra in Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Santos Norberto Pinto amp Gama Antoacutenio Imprensa da universidade CEG Coimbra

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Soares Bernardo (2006) - Livro do Desassossego Assiacuterio amp Alvim Lisboa

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Obra protegida por direitos de autor