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Bahia de todos os Santos
Jorge Amado
Na portada deste livro, na entrada da barra da Bahia de Todos os Santos,
quero escrever teu nome de baiana. Um dia vies-te de passagem conhecer
minha cidade, ficaste para sempre. Aqui neste jardim onde cresceram
nossos filhos e crescem nossos netos, entre as rvores que plantamos, no
culto da amizade, tomo de tua mo de namorada e te proclamo Zlia de
Eu, filha de Oxum, mulher de Oxssi, doce companheira, jovem corao
irredutvel, nica e sem comparao.
"- Voc j foi Bahia, nega
"- No!" "- Ento v..." Dorival Caymmi
CONVITE
E quando a viola gemer nas mos do seresteiro na rua trepidante da
cidade mais agitada, no tenhas, moa, um minuto de indeciso.
Atende ao chamado e vem. A Bahia te espera para sua festa quotidiana.
Teus olhos se encharcaro de pitoresco, mas se entristecero tambm
diante da misria que sobra nestas ruas coloniais onde se elevaram,
violentos, magros e feios, os arranha-cus modernos.
Ouves?
o chamado insistente dos atabaques na noite misteriosa.
Se vieres eles tocaro mais alto ainda, no poderoso toque do chamado
do santo, e os deuses negros chegaro das florestas da frica para
danar em tua honra.
Com os vestidos mais belos, bailando os inesquecveis bailados.
As ias cantaro em iurub os cnticos de saudao. Os saveiros
abriro as velas e rumaro para o mar largo de tempestades.
Do forte velho vir msica antiga, valsa esquecida que s o
ex-soldado recorda. Os ventos de Yemanj sero apenas doce brisa na
noite estrelada. O rio Paraguau murmurar teu nome e os sinos das
igrejas de repente tocaro Ave Maria apesar de que o crepsculo j
passou com sua desesperada tristeza. No Mercado das Sete Portas, nos
pobres pratos deflandres o sarapatel te espera, escuro e gostoso. Os
potes e as moringas de barro que comprars, as redes para a sesta, os
inhames e aipins, as frutas coloridas. Se vieres, a feira ter outra
animao, beberemos cachaa com ervas aromticas. Os sobrades te
esperam. Os azulejos provm de Portugal e desbotam hoje ainda mais
belos. L dentro a misria murmura pelas escadas onde os ratos correm,
pelos quartos imundos. As pedras com que os escravos calaram as ruas,
quando o sol as ilumina ao meio-dia, tm laivos de sangue. Sangue
escravo que escorreu sobre essas pedras nos dias de ontem. Nos casares
moravam os senhores de engenho. Agora so os cortios mais abjetos do
mundo. Vers as igrejas, grvidas de ouro. Dizem que so trezentas e
sessenta e cinco. Talvez no sejam tantas, mas que importa? Onde estar
mesmo a verdade quando ela se refere cidade da Bahia?Nunca se sabe
bem o que verdade e o que lenda nesta cidade. No seu mistrio lrico
e na sua trgica pobreza, a verdade e a lenda se confundem. Se subires
o Tabuo, zona de mulheres que j perderam a ltima parcela de esperana
nos quinto-andares de prdios aleijados, nunca sabers ao certo se
uma rua maravilhosa de pitoresco, com suas janelas coloniais e suas
portas centenrias, ou se apenas um hospital enorme, sem mdicos, sem
enfermeiras, sem remdios.\Ahl moa, esta cidade da Bahia mltipla e
desigual. Sua beleza eterna, slida como a de nenhuma outra cidade
brasileira, nascendo do passado, rebentando em pitoresco no cais, nas
macumbas, nas feiras, nos becos e nas ladeiras, sua beleza to poderosa
que se v, apalpa e cheira, beleza de mulher sensual, esconde um mundo
de misria e de dor. Moa, eu te mostrarei o pitoresco mas te mostrarei
tambm a dor. Vem e serei teu cicerone. Juntos comeremos no Mercado
sobre o mar o vatap apimentado e a doce cocada de rapadura. Serei teu
cicerone mas no te levarei, apenas, aos bairros ricos, de casas
modernas e confortveis, Barra, Pituba, Graa, Vitria, Morro do
Ipiranga. Em nibus superlotados iremos Estrada da Liberdade, bairro
operrio, onde descobrirs a misria oriental se repetindo nos casebres
das invases, Massaranduba, Coria, Cosme de Faria, Uruguai, iremos aos
cortios infames, cruzaremos as pontes de lama dos Alagados. Esse bem
um estranho guia, moa. Com ele no vers apenas a casca amarela e linda
da laranja. Vers igualmente os gomos podres que repugnam ao paladar.
Porque assim a 10 Bahia, mistura de beleza e sofrimento, de fartura e
fome, de risos lacres e de lgrimas doloridas. Quando a viola gemer nas
mos do seresteiro, nascido na Bahia, filho de sua poesia e sua dor, no
reflitas sequer, pois a cidade mgica te espera e eu serei teu guia
pelas ruas e pelos mistrios. Teus olhos se enchero de pitoresco, teus
ouvidos ouviro histrias que s os baianos sabem contar, teus ps
pisaro sobre os mrmores das igrejas, tuas mos tocaro o ouro de So
Francisco, teu corao pulsar mais rpido ao bater dos atabaques. Mas
tambm sentirs dor e revolta e teu corao se apertar de angstia
ante a procisso fnebre dos tuberculosos na cidade de melhor clima e de
maior percentagem de tsicos do Brasil. A beleza habita nesta cidade
misteriosa, moa, mas ela tem uma companheira inseparvel que a fome.
Se s apenas uma turista vida de novas paisagens, de novidades para
virilizar um corao gasto de emoes, viajante de pobre aventura rica,
ento no queiras esse guia. Mas se queres ver tudo, na nsia de
aprender e melhorar, se queres realmente conhecer a Bahia, ento, vem
comigo e te mostrarei as ruas e os mistrios da cidade do Salvador, e
sairs daqui certa de que este mundo est errado e que preciso
refaz-lo para melhor. Porque no justo que tanta misria caiba em
tanta beleza. Um dia voltars, talvez, e ento teremos reformado o
mundo e s a alegria, a sade e a fartura cabero na beleza imortal da
Bahia. Se amas a humanidade e desejas ver a Bahia com olhos de amor e
compreenso, ento serei teu guia, Riremos juntos e juntos nos
revoltaremos. Qualquer catlogo oficial, ou de simples cavao, te dir
quanto custou o Elevador Lacerda, a idade exata da Catedral, o nmero
certo dos milagres do Senhor do Bonfim. Mas eu te direi muito mais,
pois te falarei do pitoresco e da poesia, te contarei da dor e da
misria. Vem, a Bahia te espera. uma festa e tambm um funeral. O
seresteiro canta o seu chamado. Os atabaques sadam Exu na hora sagrada
do pad. Os saveiros cruzam o mar de Todos os Santos, mais alm est o
rioParaguau. doce a brisa sobre as palmas dos coqueiros nas praias
infinitas. Um povo mestio, cordial, civilizado, pobre e sensvel
habita essa paisagem de sonho. Vem, a Bahia te espera. 11 ATMOSFERA DA
CIDADE DO SALVADOR DA BAHIA DE TODOS OS SANTOS
QUEM GUARDA OS CAMINHOS DA CIDADE Quem guarda os caminhos da cidade do
Salvador da Bahia Exu, orix dos mais importantes na liturgia dos
candombls, orix do movimento, por muitos confundido com o diabo no
sincretismo com a religio catlica, pois ele malicioso e ar-reliento,
no sabe estar quieto, gosta de confuso e de aperreio. Postado nas
encruzilhadas de todos os caminhos, escondido na meia-luz da aurora ou
do crepsculo, na barra da manh, no cair da tarde, no escuro da noite,
Exu guarda sua cidade bem-amada. Ai de quem aqui desembarcar com
malvolas intenes, com o corao de dio ou de inveja, ou para aqui se
dirigir tangido pela violncia ou pelo azedume: o povo dessa cidade
doce e cordial e Exu tranca seus caminhos ao falso e ao perverso. A
primeira obrigao a se fazer quando nesse solo se pem os ps, quando
aqui se desembarca, dar de beber a Exu para assim lhe conquistar as
boas graas, impedindo que ele venha perturbar a festa com suas
diabruras e arrelias. Para no se escorregar numa ladeira calada de
pedras negras e antigas, para no se correr susto num beco de fantasmas,
para evitar os ebs, os feitios, as coisas-feitas. Exu bebe cachaa
mas, na falta, aceita um substitutivo mesmo que seja usque ou vodca. O
ideal, porm, a aguardente de cana-de-acar, destilada em alambique
de barro, se possvel. Cachaa destilada em alambique de barro coisa
fina, por isso chamada de purinha. A melhor cachaa da Bahia vem de
Santo Amaro da Purificao, cidade do Recncavo, corao da zona
aucareira, terra de Caetano Veloso e Emanuel Arajo. Entre as cachaas
de Santo Amaro mais conhecidas e festejadas pela sua qualidade
encontra-se a "Azuladinha", a "gua Fria" e a "Dois Amigos", esta ltima
de muita reputao. 14 aconselhvel que o viajante, ao pretender
ingerir bebida alcolica, destine o primeiro trago a Exu, derramando-o
discretamente no cho. Assim ficar colocado sob sua guarda e proteo
e todos os caminhos se abriro para lhe dar passagem, seja os que
conduzem aos mistrios de Salvador, sua beleza e sua intimidade,
seja os que levam ao corao das mulheres mulheres morenas da Bahia,
gama de cores que vai do marfim ao cobre, e o dengue infinito. A FORA
**DO POVO O povo mais forte do que a misria. Impvido, resiste s
provaes, vence as dificuldades. De to difcil e cruel, vida parece
impossvel e no entanto o povo vive, luta, ri, no se entrega. Faz suas
festas, dana suas danas, canta suas canes, solta sua livre
gargalhada, jamais vencido. Mesmo o trabalho mais rduo, como a pesca
de xaru, vira festa. Em tendo ocasio, o povo canta e dana. Em terra
ou no mar, nos saveiros e jangadas, nas canoas. Por isso mesmo a Bahia
rica de festas populares. Festas de rua, de igreja, de candombl.
Guardam todas elas nossa marca original de miscigenao, de nossa
civilizao mestia. ATMOSFERA DA CIDADE Em certo comcio, realizado
quando da invaso da Abis-snia pelas foras fascistas de Mussolini, um
orador, solene na roupa preta e no portugus castio, afirmou que os
baianos, como latinos dos melhores e mais puros, estavam ligados Roma
Imperial que o Duce queria reviver custa dos negros abexins. Foi a
que subiu tribuna um majestoso mulato e declarou que os baianos como
descendentes dos africanos, mestios dos melhores, estavam ligados
sentimentalmente sorte da Etipia. Assim a Bahia. Quem disser que
esta a cidade de Castro Alves estar dizendo apenas meia verdade. Se
disser que esta a cidade de Ruy Barbosa estar tambm dizendo apenas
meia verdade. Entre o esprito libertrio e o esprito liberal vive a 75
hia. Nunca fascista, se bem por vezes reacionria, saudosista, imorada
de frmulas passadas. Mas por outro lado, revo-ionria, afirmativa,
progressista e, se absolutamente neces-io, violenta. Essas duas figuras
do seu passado e tudo que s representaram dominam a mentalidade da
Bahia: o poeta srtrio Castro Alves e o tribuno liberal Ruy Barbosa. De
Ruy ia a Bahia certo amor ao castio, ao verbo eloqente, mesmo trica,
frase sonora, ao liberalismo poltico. De Castro Al-recebe a vocao
do futuro, o desejo de liberdade, a ca-:idade de romper com o passado,
de marchar para a frente, a na revolucionria. Gilberto Freyre j notou
que a vaia do leque rompe sempre, na Bahia, o excesso conservador que
ta impor-se. O conservador e o revolucionrio coexistem no rito da
cidade, chocam-se, fundem-se por vezes, so quase pveis no seu
contraste. Aqui o viajante ver diferenas mais urdas em todas as
coisas. Encontrar uma arte essencial-nte poltica, desde os tempos
longnquos de Gregrio de tos at os dias de hoje, uma arte a servio
do povo, ligada ao itidiano, ao local, ao social, engajada,
comprometida, visan-ao futuro, mas encontrar tambm, com certa
notoriedade idual ou municipal, os mais carunchentos gramticos, os
estas mais torcidos, mais quinhentistamente ilegveis de todo o >. A
Bahia orgulha-se do gramtico Carneiro Ribeiro, dis-ndo com Ruy Barbosa,
seus pronomes to bem colocados 10 no o faria o melhor professor de
Coimbra, e orgulha-se um educador como Ansio Teixeira, que
revolucionou a agogia brasileira. Assim a Bahia do choque permanente
de s duas faces, dos seus dois pensamentos. Sempre poltica. No ser
poltica por acaso a literatura histrica de Pedro Cal-mon, to poltica
quanto os ensaios de Hermes Lima ou de Edison Carneiro? A poltica a
vocao do baiano. No equilbrio resultante do choque desses espritos
dspares que povoam a cidade surge um Joo Mangabeira, perfeito exemplo
da fuso das duas matrizes, o baiano com todas as virtudes de sua
inteligncia e com todas as caractersticas do seu temperamento.
Cultuando o passado e sonhando o futuro. O baiano que faz da amabilidade
uma verdadeira arte, que ar- j guto at no mais poder, que cordial
e compreensivo, descan- 1 sado e confiante. Que desmorona com uma piada
agressiva todo ; um edifcio de retrica. Escondendo sob o fraque solene
um corao jovem. Gostando de rir, de conversar, de contar casos. Eis
uma cidade onde se conversa muito. Onde o tempo ainda no adquiriu a
velocidade alucinante das cidades do Sul. Ningum sabe conversar como o
baiano. Uma prosa calma, de frases redondas, de longas pausas
esclarecedoras, de gestos comedidos e precisos, de sorrisos mansos e de
gargalhadas largas. Quando um desses baianos gordos e mestios, um pouco
solene e um pouco moleque, a face jovial, comea a conversar, quem
fechar os olhos e fizer um pequeno esforo de imaginao poder
distinguir perfeitamente o seu remoto ascendente portugus e seu remoto
ascendente negro, recm-chegado um da Europa colonizadora, recm-chegado
outro das florestas da frica. De quem essa gargalhada clara e solta
se no do negro? De quem essa solene considerao para com o doutor,
que salafrrio personagem da histria que ele conta, se no do
portugus imigrante, rude admirador dos mais sbios? Essa mulataria
baiana, essa mestiagem onde o sangue negro entrou com uma boa parte,
no produziu o mulato espevitado, pernstico, egosta, adulador e
violento com os inferiores, das caricaturas racistas. Sempre que penso
no mulato baiano vejo um homem gordo. Gordo no apenas fisicamente. Como
carter tambm: bom, amvel, gluto, sensual, agudo de inteligncia,
bem-falante mas de fala mansa, sabendo tratar to bem os inferiores
quanto os superiores, ou melhor ainda. Comendo comida gordurosa, cheia
de azeite, mas apimentada tambm. Assim o homem da cidade da Bahia, um
pouco derramado e um pouco distrado. Um pouco poeta, poder-se-ia
dizer, mas tambm astutamente poltico, o mais hbil poltico do Brasil.
17 r Assim a Bahia. Esse o seu clima, ligado ao passado, fitando o
futuro. Nenhuma outra cidade do Brasil se mantm nesse equilbrio
espiritual que exige dos homens uma constante vigilncia para no cair
num conservadorismo reacionrio ou num anarquismo inconstrutivo. Ao lado
da vetusta Catedral est a Faculdade de Medicina, onde os estudantes
abrem cadveres para buscar a explicao da vida. J h algum tempo que
os candombls deixaram de ser apenas uma constante religiosa dos negros
querendo conservar bens de sua cultura original. So hoje tambm tema e
material de estudos de jovens sbios, da criao de grandes artistas.
Existe uma cultura baiana com caractersticas prprias, ariginais? Creio
que sim. Aqui toda a cultura nasce do povo, Doderoso na Bahia o povo,
dele se alimentam artistas e escritores. H uma tradio social na arte
e na literatura baianas lue vem desde Gregrio de Matos e prossegue at
hoje. Essa igao com o povo e com seus problemas marca fundamental
ia cultura baiana. Cultura baiana que influencia toda a cultura
brasileira da qual clula mter. Sendo a cidade negra por excelncia
do Brasil, com uma grande populao de cor, aquela onde menos existe,
em nosso 5as, o preconceito racial. O que no quer dizer que ele seja
in-eiramente inexistente. A mistura de sangue muito grande e ;m s
conscincia pouca gente poder negar o av negro mais m menos remoto. A
influncia do negro sente-se em toda a par-e. No apenas no aspecto
fsico da cidade mas na sua vida. A uperstio alastrada confundindo-se
muitas vezes com a re-igio. Cidade religiosa, sem dvida. Onde se
encontraro na eligiosidade do baiano os limites entre religio e
superstio? isto as duas quase sempre confundidas e quase sempre
redominando a ltima. Os ritos religiosos adquirem aqui es-ranhas
modalidades, os cultos catlicos aformoseiam-se com ima aura fetichista.
H qualquer coisa de pago na religio dos taianos, qualquer coisa que
raia pelo sensual e que faz com que s mltiplas igrejas no sejam seno
uma continuao, estiliza-a e civilizada, das macumbas misteriosas. Ao
lado desse re-giosismo supersticioso encontramos um anticlericalismo
mi-tante no povo em geral. Raramente existem, como em muitas idades,
padres de larga popularidade. Ao contrrio, muitas as festas religiosas
e populares (a do Senhor do Bonfim por 8 exemplo) encontram feroz
oposio de certa parte do clero. Nesse particular a Bahia recorda a
Vascncia, na Espanha, com seu povo religioso e anticlerical. Ou os
mexicanos que, nas revolues de Zapata e Pancho Vila, fuzilavam os
padres aos gritos de "Viva Nossa Senhora de Guadalupe". Fenmeno
idntico se passa na Bahia onde junto ao povo negro a autoridade do
padre nenhuma se comparada dos pais e mes-de-santo, enquanto que as
classes ricas, como em toda a parte, utilizam politicamente o padre sem
lhe ter o menor respeito. Um povo bom, amigo de cores berrantes,
ruidoso, manso e amvel, de admirao fcil, acolhedor e democrata. Sob
um cu de admirvel limpidez, na fmbria do mar ou na montanha onde
corre sempre uma caridosa aragem, vive o povo mais doce do Brasil. Na
cidade do Salvador da Bahia. ESCORRE O MISTRIO SOBRE A CIDADE COMO UM
LEO Escorre o mistrio sobre a cidade como um leo. Pegajoso, todos o
sentem. De onde ele vem? Ningum o pode localizar perfeitamente. Vir do
baticum dos candombls nas noites de macumba? Dos feitios pelas ruas
nas manhs de leiteiros e 19 padeiros? Das velas dos saveiros no cais do
Mercado? Dos Capites da Areia, aventureiros de onze anos de idade? Das
inmeras igrejas? Dos azulejos, dos sobrades, dos negros risonhos, da
gente pobre vestida, de cores variadas? De onde vem esse mistrio que
cerca e sombreia a cidade da Bahia? "Roma negra", j disseram dela. "Me
das cidades do Brasil", portuguesa e africana, cheia de histrias,
lendria, maternal e valorosa. Nela se objetiva, como na lenda de Yeman-
j, a deusa negra dos mares, o complexo de dipo. Os baianos a amam como
me e amante, numa ternura entre filial e sensual. Aqui esto as grandes
igrejas catlicas, as baslicas, e aqui esto os grandes terreiros de
candombl, o corao das seitas fetichis- tas dos brasileiros. Se o
Arcebispo o Primaz do Brasil, o pai Martiniano do Bonfim era uma
espcie de Papa das seitas negras em todo o pas e Me Menininha a
Papisa de todos os candombls do mundo. Os pais-de-santo e as
mes-de-santo da Bahia vo bater candombls no Recife, no Rio, em Porto
41egre. E seguem como bispos em viagem pastoral, acompa- hados de
enorme comitiva. De tudo isso escorre um mistrio ienso sobre a cidade
que toca o corao de cada um. ~^ No h cidade como essa por mais que
se procure nos :aminhos do mundo. Nenhuma com as suas histrias, com o
seu irismo^eu pitoresco, sua funda poesia. No meio da espantosa risria
das classes pobres, mesmo a nasce a flor da poesia por- ue a
resistncia do povo alm de toda a imaginao. Dele, esse povo baiano,
vem o lrico mistrio da cidade, mistrio que ampleta sua beleza. A
cidade da Bahia se divide em duas: a cidade baixa e a al- l Entre o mar
e o morro, a cidade baixa do grande comrcio. s casas exportadoras, os
representantes de firmas de outros stados e do estrangeiro, os bancos,
as sociedades annimas, a ssociao Comercial, o Instituto do Cacau.
Antigamente, iando o mar no se quebrava no cais, quando vinha at os
ndos do Caf Pirangi, esta parte da cidade era tipicamente rtuguesa,
com seus casares, seus azulejos, suas escadas in- modas, um cheiro a
mercadorias importadas caracterstico de tnazns e mercearias. As ruas
mais pVximas ao morro e as ieiras que partem em busca da cidade alta,
igrejas como a da nceio da Praia que veio pronta de Portugal para ser
ar- ida aqui, tudo isso recorda as cidades portuguesas. Mas na parte
conquistada ao mar, onde foi antes o areai do cais, as construes
modernas j no lembram a colonizao lusa. Prdios como o do Instituto
do Cacau, os modernos edifcios de cimento armado, os arranha-cus
construdos nessa rea, a primeira a ser vista pelo turista que chega
por mar, modificaram a impresso inicial que se tinha da cidade. bem
verdade que logo se encontra o viajante ante o edifcio da Alfndega,
tipicamente portugus, construdo durante o reinado de D. Joo VI, onde
hoje se localiza o Mercado Modelo. Na estreita faixa de terra entre o
mar e a montanha, onde se situam umas poucas ruas paralelas e alguns
becos que as cortam, ladeiras que sobem o morro, a cidade baixa
trabalha sob a proteo de um monumento ao Visconde de Cairu que se
levanta em frente Associao Comercial, em estilo neoclssico ingls,
casa belssima. Nas suas proximidades fica a Mesa de Rendas Estadual.
Esses dois edifcios e o da Alfndega so admirveis casares antigos,
de largas paredes e grossas portas. J aqui estamos num mundo portugus
adoado pelo negro. Vrias ladeiras ligam a cidade baixa alta. A mais
importante delas a Ladeira da Montanha, aberta no morro em cuja
encosta rasgam-se buracos acimentados onde ferreiros trabalham e nos
quais, por mais incrvel que parea, residem famlias. Casas, cujas
fachadas simples do para as ladeiras, descem o morro numa sucesso de
andares para baixo, arranha-cus ao vice-versa. Ficam trepadas no morro
como se fossem .largas e estranhas escadas. Seu colorido rosa ou azul
brilha entre o verde da montanha. Para alm da cidade baixa no contorno
da baa, fica a pennsula de Itapagipe, bairro de pequena burguesia
pobre e de proletariado, separado do resto da cidade por uma longa rua
que parte da Associao Comercial e vai at a Calada. A estava
localizada a clebre Feira de gua dos Meninos que um incndio devorou
pouco antes de ser tambm devorado pelo fogo o Mercado Modelo. Em
substituio feira clebre funciona hoje a Feira de So Joaquim, pouco
adiante, ao lado do edifcio da Petrobrs, em frente ao Orfanato de So
Joaquim, que uma das mais belas casas coloniais da Bahia. ; al- A
cidade alta, excetuando as ruas centrais de comrcio, 3rta
residencial, desdobrando-se em bairros no caminho do mar, l de subindo
colinas e encostas. trs nos noite o silncio povba a cidade baixa.
Ela dorme no cais, as casas comerciais fechadas, bancos sem movimento,
nos casares e nos saveiros de velas arriadas. A cidade alta
movimenta-se para os cinemas, para as festas, para as visitas. Os
elevadores e planos inclinados a estas horas quase no tm freguesia. -^
As duas cidades se completam, no entanto, e seria difcil explicar de
qual das duas provm o mistrio que envolve a Bahia. Porque o viajante o
sente tanto na cidade baixa como na alta, pela manh ou pela noite, no
silncio do cais ou nos rudos da multido na Baixa dos Sapateiros.
Impossvel explicar o mistrio dessa cidade. segredo que ningum
sabe, chega talvez do seu passado na sombra do forte velho sobre o mar,
chega talvez do seu povo misturado e alegre, talvez do mar onde reina
Yna, talvez da montanha coberta de verde e salpicada de casas. certo
que todos o sentem. Ele rola sobre a Bahia, como um leo a envolv-la.
Quando na noite solitria da cidade baixa o rudo do baticum longnquo
do candombl coincidir com o encontro de um casal de mulatos que se
dirige ao amor no cais, ento o forasteiro se rende conta que esta
uma cidade diferente, que nela existe algo que alvoroa os coraes.
uma cidade negra, mas tambm uma cidade portuguesa. Por que
explic-la? Basta que a amemos como ela o merece. Com um amor que no
tente esconder suas chagas to vista. Que no tente negar a
existncia dos bandos de Capites da Areia, roubando e assaltando porque
tm fome. A Bahia no precisa de benevolncia. Precisa, sim, de
compreenso e de apoio para que seu mistrio se liberte da misria, para
que sua beleza no permanea manchada de fome. No preciso explic-la.
Pois seu mistrio como um leo que escorre do cu e do mar e vos
envolve todo, corpo, alma e corao. ; - NOME DA CIDADE Os fillogos e
historiadores perdem tempo discutindo se esta cidade se chama cidade do
Salvador ou cidade de So Salvador. Cidade do Salvador da Bahia, dizem
alguns. A verdade que ningum est ligando a mais mnima aos
fillogos. Os nomes das cidades no resultam da discusso acalorada dos
graves senhores acadmicos. Podem eles perder o tempo que quiserem,
podem encher colunas de jornais com massudos e maantes artigos,
escrever grossos volumes que ningum l, xingar e esbravejar, o povo
continua chamando sua cidade pelo doce nome de Bahia. Esta a cidade
da Bahia. Assim a trata o povo de suas ruas desde a sua fundao a 1? de
Novembro de 1549. Pode ser que o colonizador devoto desejassse colocar a
nova povoao sob o patrocnio de Jesus designando-a Cidade do Salvador.
Mas somos um povo misturado, com sangue ndio e muito sangue negro, e o
nosso primitivismo ama os nomes pagos tirados da natureza em torno.
Bahia. Em frente cidade est a baa enorme, belssima, rodeando a
ilha de Itaparica, recebendo as guas do rio Paraguau. Nela nadou Moema
em busca de seu amor at morrer. Bahia de Todos os Santos. O catlico
lusitano batizou a baa em redor. O ndio e o negro crismaram a cidade
que ali nasceu: Bahia to-somente. No adiantou o desejo de D. Joo III,
Rei de Portugal, que, mesmo antes de fundar a cidade, deu-lhe o nome de
Salvador. No adiantou a pertincia de Tome de Sousa conservando-lhe
esse nome quando todos a chamavam Bahia. Esse povo misturado , por
vezes, cabeudo. Permaneceu Bahia. De nada adianta a grave discusso dos
senhores acadmicos. Ela se processa sob a mais absoluta indiferena
popular. O povo no deseja saber se a cidade se chama Salvador ou So
Salvador, se quem tem razo o rato de biblioteca que no enxerga a
vida h um quarto de sculo e ainda intitula amante de concubina ou se
o charlato de pouco saber que apenas deseja bancar importncia e
exibir conhecimentos que no possui. Para o povo a cidade da Bahia.
BAIANO UM ESTADO DE ESPIRITO Baiano quer dizer quem nasce na Bahia,
quem teve este alto privilgio, mas significa tambm um estado de
esprito, certa concepo de vida, quase uma filosofia, determinada
forma de humanismo. Eis por que homens e mulheres nascidos em outras
plagas, por vezes em distantes plagas, se reconhecem baianos 23
a mbra desse mar de saveiros, as agruras desse serto de vaquejadas
e de milagres, os rastros desse povo de toda resistncia e de toda
gentileza. E como baianos so reconhecidos, pois de logo se pode
distinguir o verdadeiro do falso. Aqui entre ns: tem gente que h vinte
anos tenta obter seu passaporte de baiano e jamais consegue pois no
fcil preencher as condies e como diz o moo Caymmi, nosso poeta,
"quem no tem balangands no vai ao Bonfim". Pierre Verger, mestre
francs de artes e de cincias, andou meio mundo, cruzou caminhos do
Oriente e do Ocidente, mares e desertos, montanhas e arranha-cus; era
um ser errante, um inquieto. J duvidava da alegria quando de sbito a
encontrou ao chegar s ladeiras da cidade do Salvador da Bahia de Todos
os Santos. Viu realizado seu sonho antigo na civilizao mestia que
aqui plantamos e construmos com a nossa democracia racial. Chegara
ptria de seu corao. Foi reconhecido e confirmado e, em festa de dana
e canto, no terreiro recebeu o nome de Oju Ob. As ias danaram em sua
honra, sentou-se Pierre entre os notveis de Xang, entre os notveis
da Bahia. Sbio de Paris, feiticeiro da frica, baiano dos melhores.
Muitos so os baianos nascidos noutras terras que nos tm trazido a
contribuio de seu trabalho criador. O pintor Henrique Oswald, to cedo
falecido, quando alcanava sua completa maturidade de artista. O poeta
Odorico Tavares, inte-merato defensor de cada pedra de nossa cidade. O
gravador Karl Hansen, da Alemanha, que juntou ao seu nome o da terra
prometida: hoje se chama Hansen-Bahia. Mestre Rescala, a juem tanto
devemos pois preservou e restaurou tesouros de arte meaados pelo tempo
e pela insdia dos governantes. Baianos nascidos na Amaznia, os poetas
Carlos Eduardo a Rocha e seu irmo Wilson, o psiquiatra Rubim de Pinho;
no faranho, o desenhista e pintor Floriano Teixeira; em Sergipe, nner
Augusto e Jos de Dome, mestres pintores, o historiador s Calazans e os
jornalistas Joo Batista de Lima e Silva e not Silveira. Vindos de
Portugal, como o padre Vieira que ui desembarcou ignorante e tapado,
dura cabea de pedra enas aspirou o ar baiano, deu-lhe um estalo na
cabea, a ira virou talento, floresceu no padre mais inteligente do ndo
e Antnio Simes Celestino, flor dos Celestinos da Pvoa do Lanhoso. O
mais baiano de todos os baianos o pintor Caryb, nascido no mar, dos
ilcitos amores de Yemanja com um certo senhor H.J.P. de Bernab, de
duvidosa nacionalidade. Baiano um estado de esprito. REVOLUES
Inquieta cidade revolucionria! Aqui os poetas fizeram de seus versos
armas de combate e de revolta. De Gregrio de Matos a Castro Alves, de
Junqueira Freire a Jacinta Passos e a Capinam. Os tribunos pregaram as
largas idias, daqui saiu Ruy Barbosa. Vive nas docas a memria do
grevista Joo de Ado. Aqui nasceu Carlos Marighela. Era ainda o Governo
Duarte da Costa, segundo gover-nador-geral, e j ndios, reduzidos
condio de escravos pelos portugueses recm-chegados, sublevaram-se. A
vida nas imediaes da jovem cidade tornou-se impossvel. O filho do
governador, lvaro da Costa, conduzindo tropas bem armadas venceu um
combate em Piraj; os ndios fugiram para as bandas do Rio Vermelho.
Ali continuaram a lutar at o combate decisivo de Itapu, quando os
silvcolas foram obrigados rendio. Ao filho do governador foram
dadas as terras dos ndios 'revoltosos, alm das honras que a Corte lhe
conferiu. As ndias ficaram para os soldados portugueses bem armados.
Depois os negros vindos da frica substituram os ndios na escravido.
Existem ainda alguns cretinos to salafrrios que dizem que a abolio
se deve bondade da casa reinante do Brasil, ao suposto bom corao de
Dom Pedro II e da Princesa Isabel, sua filha. Isso desconhecer no
apenas as condies econmicas do Brasil de ento, como esconder,
criminosamente, a longa batalha que os negros lutaram pela sua
libertao. Foram muitos os levantes de negros em todo o Brasil. Nas
senzalas brasileiras no lhes corria vida to doce como nos querem
fazer crer certos historiadores interessados em apresentar os senhores
de escravos como santos de aurola vista. Os negros se bateram muitas
vezes pela sua libertao. Como esquecer a epopia imortal de Palmares?
Sucederam-se na Bahia os levantes de necrns Ac ,.-:.---da letrado,
sobre movimentos libertrios: "Em 4 de janeiro de 1809, em uma quarta
feira, levantaro-se os Negros Africanos nesta cidade, de q'. se teve
notcia no dia de quinta feira pelos grandes estragos q'. eles iam
fazendo pelos Caminhos da Boiada, queimando casas quantas encontravo
nos mesmos caminhos, sendo o nmero dos ditos Negros pa. mais de
tresen-tos segundo listas das faltas q'. dero os Senres. dos ditos
Negros, e logo no dia mediato viero presos 30 alm dos feridos pela
grande resistncia q'. fisero, e da mesma forma nos mais dias sendo
muitos presos; e tambm fisero o mesmo levante em Nasareth das Farinhas
donde tambm muitas mortes. Caso extraordinrio, q'. logo o Senr.
Conde, Governador desta cidade deo ordem q'. matassem a todos quantos se
no quizessem entregar Conde da Ponte , sendo castigados os q'. no
eram cabeas, a correr pelas ruas tanto fmeas como machos, no servio
do desentulho da praa da quitanda de S. Bento donde depois foi a casa
da opera". Ainda no havia transcorrido um ano e j os negros se
levantavam outra vez, em fevereiro de 1870. 150 aoites levou cada um
dos que se revoltaram, excetuando os cabeas cujo triste fim se pode
imaginar qual foi. Em 1826 um poderoso levante de negros abalou
novamente a Bahia. Durou vrios dias de encarniada luta entre os negros
e a tropa e somente depois da priso do chefe dos revoltosos, a quem
haviam dado o ttulo de Rei dos Negros, que voltou a cidade calma
habitual. O chefe negro foi feito prisioneiro quando j no podia lutar,
todo crivado de balas. Esse levante aconteceu a 25 de agosto de 1826 e
j em 17 de dezembro do mesmo ano novamente os negros tomaram das armas
roubadas aos senhores. Em 11 de maro de 1828, novo levante. E assim,
heroicamente, tenazmente, lutavam os negros pela sua liberdade. Em 1832
houve a grande revolta dos negros males. Negros com um nvel de cultura
em muitos pontos superior ao dos senhores de escravos, maometanos,
ligados me-ptria, os males eram uma fora e em 1832 levantaram-se
contra sua desgraada condio de escravos. Chefiava a revolta o aluf
Licut e mais de mil e quinhentos negros puseram-se s suas ordens. A
luta foi das mais sangrentas e a revolta dos escravos males ter- 26
minou afogada em sangue. Os senhores de escravos vingaram-se de maneira
violenta, castigando barbaramente os negros revol-tosos. De toda essa
agitao resultou a Sabinada que pretendia estabelecer a Repblica da
Bahia. Sob a chefia do Dr. Sabino Alvares da Rocha Vieira, a famosa
revolta baiana foi precedida, em 1788, por um levante de mulatos que
desejavam a Repblica Bahiense. Quatro desses conspiradores morreram na
forca, na Praa da Piedade. Os demais foram deportados para Angola. O
que caracteriza a Sabinada o seu carter acentua-damente democrtico e
popular. O movimento revolucionrio baiano teve o apoio das massas
pobres. Combatido pelos latifundirios, pela aristocracia do acar,
pois trazia o germe de novas idias sociais, foi talvez o movimento
revolucionrio de tendncias mais avanadas de quantos se processaram
no Brasil de ento. No Campo da Plvora foi arcabuzado o padre Roma. O
heri da Revoluo Pernambucana fugiu para a Bahia e seu sangue ilustre
correu em nosso cho, regou o solo baiano. Na Bahia deram-se as batalhas
decisivas da Independncia. Quando Pedro I declarou o Brasil desligado
de Portugal e foi dormir com a Marquesa de Santos, em So Paulo, os
baianos tomaram das armas, na Capital e no Recncavo, e concretizaram a
Independncia, deram realidade ao Grito do Ipiranga. Um ano depois da
proclamao da Independncia estavam os baianos expulsando os ltimos
soldados lusos que ainda tentavam manter sob o jugo de Portugal as
terras do Brasil. Em 2 de julho de 1823 as tropas liberadoras entraram
triunfantes na cidade da Bahia. ALUF LICUT: O ESQUECIDO Dos
personagens histricos brasileiros, o meu preferido. O mais esquecido de
todos, enterrado em cova funda pelos senhores de escravos, de l ainda
no foi retirado para as pginas da histria, nem da que se escreve com
H maisculo e em geral se ocupa apenas das personalidades oficialmente
consentidas e consagradas, nem mesmo daquela outra histria, mais
verdadeira, feita margem da aprovao das classes dominantes. 27 Dos
heris brasileiros que lutaram contra a escravido negra, bem poucos so
lembrados. De qualquer maneira Zumbi dos Palmares (ou a legenda dos
Zumbis) rompeu, devido talvez violncia romntica da revolta, a
conspirao do silncio. Ocupou palcos de teatro, pginas de romance,
vive na imaginao do povo. Do aluf Licut quem conhece o nome, os
feitos, o saber, o gesto, a face de homem? Comandou a revolta dos negros
escravos durante quatro dias e a cidade da Bahia o teve como seu
governante quando a nao mal acendeu a aurora da liberdade, rompendo
as gri-lhetas, e empunhou as armas, proclamando a igualdade dos homens.
No sei de histria de luta mais bela do que essa do povo mal, nem de
revolta reprimida com tamanha violncia. A nao mal no era apenas a
mais culta entre quantas forneceram mercadoria humana para o trfico
repugnante, em verdade os escravos provindos dessa nao alcanavam os
preos mais altos, sendo no s os mais caros, tambm os mais
disputados. Serviam de professores para os filhos dos colonos,
estabeleciam as contas dos senhores, escreviam as cartas das iais,
intelectualmente estavam bem acima da parca instruo dos lusos condes e
bares assinalados e analfabetos ou da malta de bandidos degredados
longnqua colnia. O mais culto dos males era o aluf Licut.
Levantaram-se os escravos, dominaram e ocuparam a cidade. Logo
derrotados pelo nmero dos soldados e pela fora das armas, a ordem dos
senhores furiosos foi matar todos os membros da nao mal, sem deixar
nenhum. Homens, mulheres e crianas, para exemplo. Ordem executada com
requintes terrveis, para que o exemplo pesasse e perdurasse. Assim
aconteceu. A rpresso foi tamanha, to desmedida, que ainda hoje a
palavra mal continua como que maldita; ainda hoje a ascendncia mal
escondida, silenciada, quando j as razes do medo foram esquecidas. Da
revolta e de seu chefe pouco se sabe. Pedro Calmon tratou do assunto
numa novela que parece haver se tornado, ela tambm, vtima do diktat
dos escravagistas pois, sendo dos primeiros livros de mestre Pedrinho,
no tenho notcias de que haja sido reeditado. No mais, o silncio. o
caso de se perguntar onde esto os jovens historiadores baianos, alguns
de tanta 28 qualidade e coragem intelectual, que no pesquisam a revolta
dos males, no levantam a figura magnfica do chefe? Quando escrevi
"Tenda dos Milagres" andei no rastro difcil do aluf Licut, alguma
coisa consegui saber sobre sua nobre estatura de homem, bem-amado das
massas populares da cidade. Uma das cenas daquele meu romance, a do povo
reunido em frente cadeia quando da priso de Pedro Archan-jo,
baseia-se em fato sucedido com o lder mal. Tema para estudos
histricos que venham repor a verdade, redimir a nao condenada,
ressuscitar o aluf, retir-lo da cova funda do esquecimento na qual o
enterrou a reao escrava-gista. Tema para um grande romance, para um
poema bravio, para a arena e o palco, para as telas de cinema. Maldito,
o aluf Licut espera que venha proclamar na praa pblica, em meio ao
povo, sua fora, sua medida, sua presena de heri. Heri no somente da
nao mal, heri do povo brasileiro, heri da liberdade ainda hoje em
luta contra a escravido. O ARTISTA, O ESCRITOR E A MEMRIA DO GUERREIRO
A memria de Antnio Conselheiro est plantada no serto de Canudos,
brota cada manh do sangue derramado pelos camponeses em armas, na
caatinga feudal onde a misria fecunda jagunos e beatos. Na cidade da
Bahia, a memria de Antnio Conselheiro est viva na madeira e no livro.
Na madeira, no Solar do Unho onde se encontram as peas do acervo do
Museu de Arte Moderna e, entre elas, uma das obras maiores da escultura
brasileira, o Antnio Conselheiro, de mestre Mrio Cravo, onde a fora
in-dmita do guerreiro rural est talhada no tronco de jaqueira e dele
salta para o combate sempre renovado. Colocado no fundo da Capela um dia
maldita, pois ali ocorreu morte de homem, vive, inteiro, o gigante do
serto. No livro, nasce e renasce nos estudos de mestre Jos Ca-lazans,
a maior autoridade brasileira sobre a "guerra dos pobres" e seu
extraordinrio comandante. Numa srie admirvel 29 de ensaios da mais
alta qualidade, pela seriedade da pesquisa, pela inteligncia do
comentrio, pela preciso histrica e pela beleza literria, Jos
Calazans construiu outro definitivo monumento memria de Antnio
Conselheiro. Vista de vrios ngulos, a figura do taumaturgo sertanejo
se revela em sua mltipla riqueza na obra do ensasta. Falta apenas ao
escritor reunir os dispersos estudos, plaquetes, artigos, conferncias,
num volume onde toda essa fecunda matria se apresente coordenada,
dando-nos a medida exata do guerreiro. Recriada pelo artista e pelo
escritor, a memria de Antnio Conselheiro prossegue a guerra dos pobres
na cidade da Bahia. A BAHIA SE LEVA NA CABEA Passa gente carregando
coisas na cabea. A Bahia se leva na cabea. Odorico Tavares confirma:
"Quem chega a Salvador, v que ainda Atlas carrega seu mundo como nos
outros tempos: se no aos ombros, pelo menos na cabea." Donald Pierson
chegou a ver "uma carta levada cabea, trazendo uma pedra em cima para
que no voasse". As baianas levam seus tabuleiros com comida e frutas
num equilbrio impossvel! Num mesmo cesto, o negro velho vende verduras
e flores. Outro carrega um balaio de laranjas, o menino conduz uma penca
de bananas. Quatro mulatos fortes levam um piano, outro um caixo de
defuntos. Passam todos pelo Pelourinho, encruzilhada da cidade. Pela
manh, nas esquinas, os ebs, os feitios ameaadores, anunciam
vinganas de amor. Nessas esquinas Exu arma suas trampas, h quem diga
que durante o dia ele se esconde na Igreja do Rosrio dos Negros, no
fundo dos altares, por detrs dos santos. Quando sai, arma fuzu,
derruba balaios, provoca quedas. Mas se acalma com um gole de cachaa e
o povo continua levando a Bahia na cabea. -* IMPORTNCIA DA CULTURA
POPULAR O importante na Bahia o povo. De uma fora vital sem medida,
artista de nascena, senhor da gentileza, capaz de 32 s piores condies
de existncia e seguir adiante, riso e a festa, criador de civilizao e
de cultura, o no marca e atesta toda a obra da criao aqui reali- o de
encontro de raas e costumes, primeira capital do e famosa nos inicios
da nao brasileira, porto aberto s do mundo, s idias e aos
forasteiros, tais condies :am a mestiagem e o sincretismo cultural (e
religioso), metrao de fontes e correntes de pensamento na mis- sangues
negro, branco, indgena mistura sempre e at tornar-se a
caracterstica dominante do panorama lando Bahia uma poderosa cultura
popular, evidente ;rsos aspectos da vida do Estado, estuante na Capital.
os alimentamos todos os que aqui criamos literatura ais de uma vez
escrevi ser a frica o nosso umbigo. Como lidade, maneira de ver a vida
e o mundo, forma de reagir mtecimentos, de viver e conviver, de pensar e
agir, somos lenos to africanos quanto ibricos. Definitiva foi a con-
:o dos negros para a formao de nossa cultura nacional. r das
terrveis, monstruosas condies em que a cultura se encontrou no Brasil
ao desembarcar dos navios ne- is nas condies de cultura de escravos,
vilipendiada, ezada, combatida morte, violada, cuja substituio ita,
na base do cacete e do batismo, foi tentada quando os ires de escravos
quiseram impor aos negros, ntegra, a cul- dos colonos, da lngua aos
deuses. A fora de vida dos negros foi mais forte do que o chicote e ua
benta, conseguindo manter viva e permanente, em meio crveis condies
da escravido, uma face original, mes- do-a no correr do tempo s duas
outras matrizes da nao iileira, para dar como resultado a
originalidade da cultura .tia do Brasil, nica talvez no mundo. Tudo
aqui se mis- 3u, as lnguas faladas na casa-grande, na senzala e na
mata, santos vindos da Pennsula Ibrica, os orixs chegados da ica, as
iaras e os caboclos retirados da floresta e dos rios. atos somos,
Senhor do Bonfim e Oxal sejam louvados, IX a um, . vidos, pela boca
(culinria to nu, w,----- netra sentidos adentro, determina a criao
literria e artstica, sua viga mestra. Determina, assim, a condio
nacional da literatura e da arte: carter popular presente mesmo na obra
mais refinadamente intelectual. OS POETAS, OS FICCIONISTAS E OUTROS
LITERATOS Para o visitante desejoso de completar seu conhecimento da
terra e da gente, aqui vo alguns nomes de poetas, romancistas,
contistas, cronistas, ensastas, e ttulos de livros importantes. Lista
certamente incompleta, um ou outro autor, esse ou aquele livro, deixando
de ser citado, injustamente esquecido. Os prprios visitantes podem
completar a relao, s perguntar ao livreiro Dmeval Chaves,
latifundirio do livro na Bahia, ele conhece todos os autores baianos e
inclusive os edita. Assim vale a pena de logo louvar a Coleo Itapu,
editada por ele, onde esto publicados ensaios sobre temas baianos
indispensveis, a comear pelas "Cartas de Vilhena", terminando num
delicioso livro de Hildegardes Viana sobre costumes da Bahia. Falamos da
Editora Itapu, cita-se igualmente a Macu-nama, editora de escolhidos
volumes de poesia, em edies restritas para assinantes, todas elas
ilustradas pormestre Calasans Neto. Vale a pena buscar e adquirir os
volumes que por acaso no estejam esgotados: poesia de Godofredo Filho,
de Florisval-do Matos, de Odorico Tavares, de Myriam Fraga, de Capinam,
poetas todos de alta qualidade. Acrescente-se aos volumes de poesia os
lbuns de gravura de mestre Calasans, com textos de Vincius de Moraes,
James Amado, Antnio Celestino,Glauber Rocha, Guido Guerra e desse vosso
criado. Admirvel o trabalho realizado pela Macunama. A Editora Janana
no prosperou, mas nos deixou a edio da Obra Completa de Gregrio de
Matos, nosso pai, reunida, comentada e analisada por James Amado. O
prefcio e o pos-fcio constituem definitivo estudo da obra e da figura
do poeta e cidado brasileiro Gregrio de Matos. 35 I Os Poetas is,
pela obra de Gregrio, na edio Janana, devemos o conhecimento
literrio da Bahia. Gregrio de Matos )rimeiro poeta e o principal,
assentou as bases da nao v, riu uma gargalhada que ainda hoje ressoa
em nossos s, denunciou os nobres, os padres, os opressores, com asco e
graa, abriu caminhose nos criou a todos. m seguida, Castro Alves, o
moo de gnio, libertando es- i, derrubando a monarquia, na fora do
verso. Era a ia liberdade restituindo a praa ao povo e foi o canto de
mais belo at hoje composto sob os cus do Brasil. Da lade e do amor,
ele soube tudo e tudo nos ensinou. L^eiam os poetas Junqueira Freire,
Artur de Sales, Pedro ;rry, Francisco Mangabeira, Pinheiro Viegas,
Pethion de de alguns ser difcil obter os livros h muito esgotados
o mais reeditados. possvel talvez encontrar um exemplar da "Obra Po-
', de Sosgenes Costa. Difcil obter a "Balada de Ouro o", a "Balada da
Dor-de-Corno", os demais livros rars- ds de mestre Godofredo Filho,
inclusive o embriagador ime dos "Sete Sonetos dos Vinhos", dos sete
licorosos. ando finalmente ser lanada uma edio completa de sua sia,
destinada ao grande pblico? Difcil, no impossvel, encontrar nas
livrarias a "Face ulta", de Carvalho Filho. Ainda mais difcil os livros
de 2mas de Hlio Simes. Os grandes nomes do modernismo scisam
providenciar urgentemente a reedio de seus livros. agora Alves Ribeiro
rene em volume seus magnficos so- tos. Onde os livros de Eurico Alves,
de Brulio de Abreu, cuja >esia hoje poucos conhecem? Tambm Florisvaldo
Matos, Joo Carlos Teixeira Gomes, tyriam Fraga e Fernando da Rocha
Perez, jovens mestres da aesia, necessitam de edies para o grande
pblico, rompendo 5 estreitos limites do livro de luxo. Jacinta Passos,
Wilson Locha, Ildsio Tavares. Capinam, Carlos Eduardo da Rocha, antos
Moraes, Cid Seixas, Carlos Cunha, Ruy Espinheira nlho, Jeovah de
Carvalho, Antnio de Jesus Saldanha, excelen- e poeta que exerce a
profisso de barbeiro, Carlos Ansio *" -,.. A viso da riqueza
artstica da Bahia que nos dada pelos Museus se completa com a
indispensvel visita a determinadas colees. A extraordinria coleo
reunida por Alberto Martins Catarino foi conservada por sua viva e seu
filho, o Professor de Direito Jos Catarino. Coleo rica especialmente
em jias e p rataria. As colees de cermica mais notveis so as do
Sr. Otvio Machado porcelana da Companhia das ndias e a do Sr.
Ansio Massora, de loua chinesa. Os senhores Pedro Ribeiro, Clemente
Mariani, Arnold Wildberg, Elsio Lisboa e Matias Bittencourt possuem as
melhores colees de prataria e de ourivesaria. Quanto imaginria, as
colees mais importantes so as de Odorico Tavares e de Mirabeau
Sampaio, ambas selecionadssimas, com peas de grande valor, sendo a de
Odorico sobretudo de santos barrocos e a de Mirabeau de santos
primitivos, muitos deles obras de santeiros populares baianos dos
primeiros perodos. Outra belssima coleo de imaginria: a do
Professor Orlando Castro Lima, especializada em santos de marfim. E
terminemos falando na coleo de leos, guaches, desenhos e gravuras de
propriedade do mesmo poeta Odorico Tavares, j dono de to numerosa
imaginria, de tantas e tantas peas valiosas. No sei se existe em
todo o pas uma outra coleo particular que se lhe possa comparar em
matria de pintura brasileira moderna. S os leos e desenhos de
Portinari valem uma fbula, sem falar nos Pancetti, nos Di Cavalcanti,
nos Djanira, nos Manabu Mabe, nos Scliar. Pintura, grande pintura,
sobrando das paredes, das arcas, dos bas, enchendo os armrios. Possui
ainda preciosa coleo de primitivos baianos: Willys, Joo Alves,
Cardoso e Silva, Rafael. Uma grandeza na casa fraternal do morro do
Ipiranga, colina que o lugar mais gr-fino, a moradia mais cara da
cidade, um jardim de casas de todo conforto, modernssimas, vizinhos
selecionados a dedo. Dali se descortinam o mar e a cidade, viso que
fala aos olhos e conforta a alma. Pois bem: o povo pobre, precisando
viver e amando o belo, comeou a invadir o morro pela outra encosta e
j chegou s vizinhanas dos ricaos. Outro dia uma senhora da Graa, ao
contratar uma lavadeira, lhe perguntou: "Onde voc mora?" Olhando-a de
cima, com seu ar manso, sua voz dengosa, a mulata respondeu modesta
porm superior: Moro no Jardim Ipiranga, sou vizinha do Doutor
Odorico. PORTINARI E PANCETTI Na matriz do Banco da Bahia, na cidade
baixa alm da srie magnfica das esculturas em madeira representando
os Orixs, de autoria de Caryb, da qual se trata noutra parte deste
livro o visitante pode admirar uma inestimvel coleo de mais de 40
telas da fase baiana de Pancetti, cada qual mais bela. 116 Completando
os tesouros de arte acumulados no tradicional estabelecimento bancrio
por Clemente Mariani e Fernando Ges, ali existe monumental painel de
Portinari: "A Chegada de Dom Joo VI ao Brasil." No sei se estas obras
de Portinari e Pancetti esto expostas visitao pblica, mas posso
garantir que Geraldo Danne-mann e Slvio Mascarenhas, diretores do
Banco, gente de primeira, no negaro ao visitante desejoso de v-las e
admir-las a entrada s salas onde se encontram o painel do mestre
paulista e os quadros do inquieto marinheiro que viveu na Bahia os
ltimos anos de sua vida. 117 T O POVO EM FESTA
OU YANS A festa de Santa Brbara ou de Yans tem seu centro no Mercado
do mesmo nome, na Baixa dos Sapateiros. Muita cachaa, um grande torneio
de capoeira. Inicia-se com uma missa em honra da santa, na Igreja de
Nossa Senhora do Rosrio dos Negros, no Pelourinho, voltando depois
todos os assistentes e mais os adesistas para o Mercado, em ruidosa
procisso. Em meio notvel imundcie desse Mercado da Baixinha,
venera-se uma imagem de Santa Brbara, em sua honra re-picam os violes
e batem os pandeiros. O Mercado se transforma num nico samba, onde
danam todos, os que ali tm barraca, os convidados, os penetras, as
baianas. A comida farta e a cachaa mais farta ainda. Para esta festa
so escolhidos padrinhos entre a gente importante da cidade. Realiza-se
a 4 de dezembro, precedendo da Conceio da Praia, que oficialmente
inaugura o ciclo das festas populares. FESTA DA CONCEIO DA PRAIA A
data 8 de dezembro mas, em verdade, ela dura toda a semana, precedida
de novenas. Em frente ao Cais Cairu armam-se as barracas clssicas. Na
bela Igreja da Conceio da Praia rezam as velhas beatas. No largo em
frente, a multido se diverte. Esta festa a preferida dos capoeiristas
que se espalham, em torno da Igreja e do Mercado, em demonstraes de
qualidade e competncia, exercitando-se na vista da multido,
acompanhados pela msica dos berimbaus e dos chocalhos. Ali se misturam
martimos, feirantes, barraqueiros, vendedores de frutas com o povo
vindo de longe para a folia. Nossa Senhora da Conceio Yemanj, no
sincretismo afro-brasileiro. A festa da Conceio da Praia inicia o
ciclo das festas populares que se estendem pelo vero, da Conceio da
Praia ao Carnaval. 120
_~ ~~, x^ dakARA OU YANS A festa de Santa Brbara ou de Yans tem seu
centro no Mercado do mesmo nome, na Baixa dos Sapateiros. Muita cachaa,
um grande torneio de capoeira. Inicia-se com uma missa em honra da
santa, na Igreja de Nossa Senhora do Rosrio dos Negros, no Pelourinho,
voltando depois todos os assistentes e mais os adesistas para o Mercado,
em ruidosa procisso. Em meio notvel imundcie desse Mercado da
Baixinha, venera-se uma imagem de Santa Brbara, em sua honra re-picam
os violes e batem os pandeiros. O Mercado se transforma num nico
samba, onde danam todos, os que ali tm barraca, os convidados, os
penetras, as baianas. A comida farta e a cachaa mais farta ainda.
Para esta festa so escolhidos padrinhos entre a gente importante da
cidade. Realiza-se a 4 de dezembro, precedendo da Conceio da Praia,
que oficialmente inaugura o ciclo das festas populares. FESTA DA
CONCEIO DA PRAIA A data 8 de dezembro mas, em verdade, ela dura toda
a semana, precedida de novenas. Em frente ao Cais Cairu armam-se as
barracas clssicas. Na bela Igreja da Conceio da Praia rezam as
velhas beatas. No largo em frente, a multido se diverte. Esta festa a
preferida dos capoeiristas que se espalham, em torno da Igreja e do
Mercado, em demonstraes de qualidade e competncia, exercitando-se na
vista da multido, acompanhados pela msica dos berimbaus e dos
chocalhos. Ali se misturam martimos, feirantes, barraqueiros,
vendedores de frutas com o povo vindo de longe para a folia. Nossa
Senhora da Conceio Yemanj, no sincretismo afro-brasileiro. A festa
da Conceio da Praia inicia o ciclo das festas populares que se
estendem pelo vero, da Conceio da Praia ao Carnaval. 120 PROCISSO DE
NOSSO SENHOR BOM JESUS DOS NAVEGANTES A festa de Nosso Senhor dos
Navegantes comea na vspera; pode-se mesmo dizer: comea no ano
anterior pois sendo uma festa de primeiro de janeiro, dia de ano-novo,
se inicia na tarde de 31 de dezembro quando a imagem de Bom Jesus
trazida da sua formosa igreja da Boa Viagem, onde os azulejos contam
seus milagres e assombros, salvando nufragos e navios, para a Igreja
da Conceio da Praia, na qual a Virgem, sua Me, o espera. Um e outra,
o Senhor dos Navegantes e a Senhora da Praia, so transposies
catlicas do mito de Yeman-j, dona das guas. Pelo mar tranqilo do
golfo, com acompanhamento de saveiros, de barcas e barcaas, canoas,
pequenos navios pejados de gente, ruma o santo para o Cais Cairu, em
frente ao Mercado Modelo, para a visita familiar, retorna no dia
seguinte. No ciclo das festas populares da Bahia, todas elas nascidas
de nossa democracia racial, a procisso do Senhor dos Navegantes a de
maior densidade catlica. j&\ Na cidade do Salvador da Bahia de Todos
os Santos, as cores, as coisas, os sentimentos, os ritos, os deuses so
misturados, nossa verdade a mistura de raas, de culturas, de crenas,
de ritmos, de alegrias e dores, de lutas de escravos males, gges,
nags, congos e angolas, para criar a nao brasileira, original e
nica, civilizao e cultura mestias, a luminosa face de nosso povo.
Na galeota do Senhor dos Navegantes viaja tambm Yemanj. 122 A volta do
santo para a Boa Viagem, acompanhado at o cais de embarque pela Virgem
da Conceio, a mais bela procisso martima que se possa imaginar, o
mar coalhado de barcos e cantos. Misturam-se o negro e o branco, o
barroco e o primitivo, a confraria religiosa e o afox dos Filhos de
Gandhi, os orixs e os santos das igrejas, Exu e o Co, e ora predomina
um som da frica ora uma nuance azul de Portugal. Na procisso do Bom
Jesus em sua galeota, o acento catlico, embora por detrs do manto
do Senhor esteja o abeb de Janana. OS TERNOS DE REIS Esta uma festa
antiga, festa de rua, ntima, nascida nos bairros, quase familiar. o
teatro e o bale dos pobres, a representao dos mistrios de Belm na
transposio afro-baiana. No dia 5 de janeiro, dia dos Reis Magos, os
ternos, os pastoris, os bumba-meu-boi desfilam pelas ruas da cidade.
Alguns desses ternos so centenrios e sua frente vm ancies de
sofrida estrada. "Sol do Oriente", "Terno da Terra", "Terno da Sereia",
da "Estrela Dalva", do "Bacurau" iluminando com suas pobres lanternas a
noite da Bahia. Nada mais pobr.e do que as luzes dessas lanternas de
papel, nada mais ingnuo que o recitativo e o canto dessas pastoras de
123 Deus em busca do presepe; nada mais dramtico do que o curtido rosto
desses homens idosos, que o tempo marcou de experincia, na labuta
difcil, na longa travessia da vida e do amor. Nada mais poderoso que
esse povo da Bahia a quem a misria, a fome, a molstia, as incrveis
condies no abatem, no vencem, no liquidam. Superando toda
desgraa, o povo da Bahia sobrevive e constri seu duro caminho, luta,
trabalha, sofre e ri, invencvel em sua fora interior, em sua
capacidade de viver. Os Ternos de Reis acendem as lanternas das
pastoras na festa do povo. LAVAGEM DA IGREJA DO BONFIM Na manh da
terceira quinta-feira de janeiro todo o povo da Bahia se encaminha para
a colina do Bonfim, onde est a Igreja do santo mais popular da cidade,
santo que no dizer do Padre Barbosa, sacerdote e literato, membro da
Academia de Letras est por cima de todas as divergncias religiosas e
polticas. Eis uma verdade: Senhor do Bonfim no exclusivo de nenhuma
religio. Sua festa, que dura oito dias (sendo que os trs ltimos
parecem um carnaval), tem muito de fetichista: mestre Edison Carneiro a
considera a "maior festa fetichista do Brasil". Para os negros o Senhor
do Bonfim Oxoluf, ou seja Oxal-velho, Oxal na sua maior dignidade.
A Igreja do Bonfim possui uma sala cheia de ex-votos. H muitos anos que
esse santo faz milagres espantosos. Salva nufragos, cura leprosos,
tsicos e loucos, fecha ferida de bala e afasta no ltimo instante
lminas de punhais assassinos. Retratos s dezenas, pernas, mos, braos
e cabeas de cera, lembranas de acontecimentos terrveis, enchem essa
sala enlou-quecedora que o mais estranho museu que se possa imaginar.
Oferendas ricas e oferendas pobres, grandes milagres e pequenos
milagres: Nosso Senhor do Bonfim faz chover, contm as enchentes dos
rios, protege as plantaes e evita as epidemias. Note-se que no um
santo muito popular entre o clero j que o arcebispado faz tudo que
possvel para evitar os festejos com que a populao celebra a festa do
Bonfim. Talvez porque seja ele to do povo e democrtico, to sem
preconceitos 124 religiosos, virando deus negro nas seitas africanas,
santo do samba e da capoeira. As festas do Bonfim duram oito dias, mas
seu maior momento sem dvida a quinta-feira da lavagem. Apesar do
sbado e do domingo com seus ranchos na colina, mistura de festa de
reisado e de carnaval, apesar da segunda-feira da Ribeira com suas
comidas, suas festinhas familiares, sua cachaa farta e fcil. Ainda
assim o maior espetculo a lavagem da igreja com a procisso que a
precede. A procisso da lavagem sai da Igreja da Conceio da Praia. A
multido se aglomera em frente ao Elevador Lacerda e ao Mercado Modelo.
Quem nunca viu esta procisso da lavagem do Bonfim no sabe os segredos
da poesia. Talvez por um milagre a mais do Senhor do Bonfim, talvez
porque no seja mesmo hbito chover no vero baiano, a verdade que a
manh desta quinta-feira sempre esplndida de luz. No cais prximo os
pequenos e lricos saveiros bordejam os grandes navios, cargueiros e
transatlnticos. H um ar de festa nas ruas comerciais e os rostos dos
homens se abrem em sorrisos. Sim, porque quem no a viu, jamais poder
imaginar a surpreendente beleza desta procisso. Primeiro direi que h
uma harmoniosa confuso de msicas e cnticos, onde cantos religiosos em
estropiado latim se misturam aos cnticos em iurub das macumbas. Mas,
ah! 125 existem devotos que vivem na bomia e no sabem nem os cnticos
ilustres da igreja nem as canes em honra de Oxoluf. Ainda assim so
devotos do Senhor do Bonfim e desejam cantar para o santo, qualquer
msica em sua homenagem. E cantam ento sambas e marchas, gemem as
violas, as cucas, os cavaquinhos. Mas tudo em louvor do santo e
nesta quinta-feira o pecado no existe nas ruas da cidade da Bahia. Vm
as filhas-de-santo dos diversos candombls, com suas saias engomadas de
muita roda, suas anguas e seus turbantes, carregadas de flores. Sobre
as cabeas, num equilbrio quase milagroso, os cntaros, as bilhas, os
potes e os moringues. Filhas-de-santo de todos os candombls da cidade,
da Gomia, do Bate-Folha, do Engenho Velho, do Gantois. Vestidas todas
de branco, a cor de Oxal, levam para o santo as coisas mais puras do
mundo: a gua e as flores, a alegria tambm. O canto das baianas, onde
ressoam atabaques e agogs, lembra os cantos de guerra dos caadores
negros nos desertos da frica. Em fila, carregando galhos sagrados de
pitangueiras, seguem-se os baleiros, os vendedores de queimados, doces
e chocolates. Conduzem ramos de folhas, formam com as baianas a guarda
de honra do Senhor do Bonfim. E vm os aguadeiros, em jumentos e
carroas. Dizer jumentos e carroas dar uma triste e falsa idia do
que esse espetculo. Os jumentos desaparecem sob papel de seda
recortado coisa to lrica nunca se viu! as carroas desaparecem sob
as flores, to variadas e to numerosas. No so carroas, so carros
florais de primavera, no so jumentos, so animais sim- 126 blicos e
lendrios. Nunca se reuniu no mundo tanto colorido, tanta graa e tanta
alegria. O branco predomina nos trajes, em honra ao pai dos orixs, mas
encontram-se todas as cores nos papis pintados, nos desenhos dos
tabuleiros, nas flores sobre as bilhas, os moringues, os potes. Ah! a
seduo dessas bilhas, destes potes, destes moringues... As frutas da
Bahia, mangas, laranjas, sapotis, abacaxis, esplndidas, saltam dos
tabuleiros, so para o santo. Porque Senhor do Bonfim, como os orixs
negros, recebe presentes de frutas nos ritos africanos. Eis um povo
irredutvel, impondo sua festa! A massa popular, muita gente de ps
descalos pagando promessas, serpenteia pelas ruas comerciais da cidade
baixa, em direo colina do Bonfim. Se o visitante tiver sorte ou
conhecidos poder talvez conseguir lugar num dos caminhes que
acompanham a procisso. Distante fica esta colina do Bonfim para onde
vai a multido lavar a igreja. Se o fervor religioso no to grande
quanto a caminhada, ento um caminho, dos vrios que acompanham a
procisso, poder servir de transporte. No aperto da conduo incmoda,
sem dvida o turista cantar como fazem os demais passageiros, pouco
ligando falta de espao. Cantam msicas de Dorival Caymmi que falam
no mar da Bahia e em Yemanj. S existem dois instrumentos: uma gaita
que ningum ouve e um berimbau de capoeira. Mas que importa? O principal
cantar. Uma velha murmura oraes numa promessa estranha. Parece o
delrio, mas apenas a festa da lavagem do Bonfim, a procisso em busca
da colina. Perder a voz quem tente acompanhar a cadncia do berimbau
mas o visitante sair do caminho amarrotado e satisfeito, cheio dessa
pura alegria do povo. Estar no alto da colina pronto para a lavagem da
igreja. Vo correr as guas de Oxal, na lavagem de sua igreja catlica.
noite a festa ser no terreiro de candombl. Senhor do Bonfim e Oxal
so um nico deus do povo baiano. Uma portaria do arcebispo probe
indefectivelmente a lavagem no interior da igreja. sempre uma portaria
zangada, sem poesia, sem pitoresco, rgida e sem graa. Ningum liga.
Certa baiana, de admirveis dentes brancos no rosto negro, disse que o
Senhor do Bonfim no aprova as tais portarias proibitivas. E a igreja
lavada toda, desde o altar-mor at as escadarias exteriores. A portaria
que se dane, amm! m Antes, porm, falemos do largo no alto da colina.
As barracas, de bandeirolas multicores de papel, se enfeitam tambm com
as cores do vatap amarelo-ouro, do caruru esver-deado, do ef negro,
do acaraj, do abar. As baianas servem a comida nos pratos de flandres
e barro. Tabuleiros de mangas e umbus, de abacaxis, de laranjas e os
refrescos de frutas, uma fartura de comida, a mais gostosa do mundo, uma
fartura de cores. O largo cheio de barracas, mais atrs os divertimentos
ingnuos: o circo de cavalinhos, a roda-gigante. Mas a praa se esvazia
quando a charanga inicia um samba, anunciando que vai comear a lavagem
da igreja. As autoridades ficam ao lado do altar. Um padre estrangeiro
e antiptico pede respeito, a verdade que o povo est perfeitamente
respeitoso. S que o padre amargo no sabe distinguir desrespeito de
alegria. As filhas-de-santo chegam para perto do altar. A multido
enche a igreja onde as vassouras se elevam e onde as bilhas e os potes
so lindos sobre os turbantes das negras e mulatas. Essa baiana to
branca nasceu na Espanha e veste as roupas populares da Bahia, fugiu
talvez de um poema de Garcia Lorca, vai-se ver Dona Amlia Fernandez,
senhora rica, da alta sociedade (e pintora). De todas as partes chegam
bilhas de gua enfeitadas com papel de seda, cobertas de flores. Junto
ao altar se acumulam os tabuleiros de frutas trazidas para o Senhor do
Bonfim. A gua derramada na igreja e as baianas comeam a lavar o
mrmore sagrado. Comeam tambm os vivas que enchem a nave, vivas aos
santos e aos orixs. Senhor do Bonfim est acima das divergncias
polticas e religiosas. um santo democrtico. Os torsos das baianas
movem-se ritmicamente no trabalho de lavar a igreja. Parece um bailado e
logo os cnticos negros se elevam. uma imensa macumba, festa
fetichista na igreja catlica! L fora as barracas tm nomes como
versos. A multido vem comer as comidas gostosas. Dentro da igreja as
bilhas, os potes e os moringues derramam a gua pura das fontes em
honra do santo popular. Assim a lavagem da Igreja do Bonfim na
quinta-feira. Mas a festa dura uma semana inteira e s termina na
Ribeira, na noite de segunda, numa festa de largo e em dezenas de
festas familiares. como um carnaval, mas parece tambm um reisado.
Talvez porque fique antes do carnaval e depois das festas de Reis. 128
SEGUNDA-FEIRA DA RIBEIRA Os folies amanhecem na Ribeira, numa espcie
de pequeno carnaval, de alegre anncio da grande festa, em seu primeiro
episdio, aps a noite insone no domingo do Bonfim. a segunda-feira
da Ribeira, tpica folia de bairro que s terminar no dia seguinte,
tera-feira, quando os choferes, ali na pennsula, sadam seu padroeiro,
So Cristvo. O samba de roda, na festa da Ribeira, j adquire um ritmo
carnavalesco, os blocos vo substituindo os grupos de capoeira, mas as
barracas permanecem as mesmas. Vm da festa da Conceio da Praia, em
dezembro, estiveram no Bonfim, hoje na Ribeira, amanh estaro no Rio
Vermelho. Tambm os folies so os mesmos: o povo da Bahia de mos
dadas na roda de samba, canto poderoso e livre. FESTA DE YEMANJ No
calendrio das festas populares da Bahia ganham relevo especial as do
ciclo do mar. Erguida numa pennsula, cercada de mar, terra de
pescadores, paisagem de barcos a vela, a Bahia tem uma rainha: Yemanj,
a senhora das guas, poderoso orix 129 de candombl, sereia de cinco
nomes, Dona Janaina, Yna, Y, Rainha de Aiok. Ela reina sobre esse
imprio das guas, do mar, dos lagos e rios, dirige os ventos, desata
os temporais. Me e esposa dos pescadores, seu amor supremo, seu desejo
impossvel. " doce morrer no mar, nas ondas verdes do mar", cantam os
mestres de saveiro pensando em Dona Janaina de longos cabelos
perfumados e olhos de naufrgio. Veio ela da frica para a Bahia de
Todos os Santos na esteira dos navios de escravos, nos gemidos dos
negros. Aqui estabeleceu para sempre sua morada. Suas mltiplas moradas
pois ela habita em diversos lugares desse mar baiano: nas runas do
Forte da Gamboa, no Rio Vermelho, na Barra na velha fonte em meio s
pedras da praia em Monte Serrat ao sop do forte, em Itapu, no Dique,
na Pituba e era Itaparica. Onde haja pescador ou martimo ela est com
seu amor e sua seduo. Duas festas martimas se destacam no ciclo de
Yemanj. A primeira a procisso de Nosso Senhor Bom Jesus dos
Navegantes, no dia primeiro de janeiro. Nela predominam as marcas
catlicas no sincretismo religioso da Bahia. A segunda a procisso de
Yemanj, no Rio Vermelho, onde predominam os elementos fetichistas. Os
pescadores cantam: "Vou pegar minha jangadinha vou me embora veleja..."
Os poderes de Yemanj so grandes e seus filhos e filhas o povo do mar
vivem a lhe trazer presentes, a cumprir obrigaes. Nos sbados, dia
de Janaina, os sabonetes e pentes, os vidros de perfumes e as cartas
com os pedidos so depositados em guas onde ela descansa: flores no
Dique, em Monte Serrat, velas acesas nos rochedos, nas praias. Sua
grande festa, porm, a maior de todas, a mais solene e bela, a de dois
de fevereiro, no Rio Vermelho. o dia dos presentes dos pescadores
sua rainha. O povo do mar e das casas-de-santo se rene no Largo de
SanfAna, onde a igrejinha, to simples e branca, participa da cerimnia
animista. A festa, em realidade, comeou uma semana antes, durante a
qual, no Largo de barracas e luzes, a multido desfilou, danou, cantou,
bebeu, comeu, amou. No mistrio das noites e da distncia, roncam os
atabaques, ora prximos, ora quase inaudveis. Essa msica de deuses
primitivos se incorpora atmosfera do Largo. A cada noite o movimento
cresce. Finalmente, chega o dia dois de fevereiro, "dia de festa no
mar", como diz o trovador: "Eu quero ser o primeiro a salvar Yemanj".
Os atabaques agora roncam ali mesmo, na ponta de terra que penetra
pelas guas, rasgando o oceano: ali os pescadores construram a
casa-do-peso que tambm o peji de Yemanj. De toda parte, desde a
madrugada, desembocam as filhas-de-santo com seus trajes e colares
rituais, cada uma traz seu presente. frente do povo, obs e ogs:
mestre Caryb, Dorival Caymmi, Flaviano, chefe dos pescadores, Manuel
Bonfim, escultor vizinho do peji, o pintor Licdio Lopes e Mrio
Portugal, exportador de fumo e og do candombl de Mirinha do Porto.
Os presentes so cortes de fazenda, caixas de sabonete e p-de-arroz,
pentes, metros de fitas, anis, vidros de perfume, chinelas finas,
brincos, tudo quanto toca e corresponde beleza da mulher, pois
Janana vaidosa. As esposas dos pescadores, dos mestres de saveiro,
dos homens do mar, as que vivem no medo espera do retorno das
jangadas e das canoas, das frgeis embarcaes, alm dos presentes,
trazem cartas: escreveram seus pedidos, rogando pela vida dos seus
homens, por um mar de peixes e bonana. Para que Yna no ponha em seus
maridos olhos de desejo e no desate a tempestade. Porque Janana cada
ano escolhe os seus amados, aqueles com os quais partir para a festa
do amor, para npcias de naufrgio nas terras de Aiok. Braadas e
braadas de flores so levadas ao peji: os jardins da cidade, os pobres
e os ricos, se despiram para que todas as rosas nesse dia sejam para a
Sereia, para a Me-d'gua. O canto se eleva ao ritmo dos atabaques:
"Viva a Rainha do Mar Yna Princesa de Aiok Yna Viva a Rainha do
Mar. " No Largo, danam ranchos e cordes animados por pequenas
orquestras, danam folies, z-pereiras, zabumbas. uma festa
extremamente alegre, como, alis, todas as festas do 131 ritual
afro-baiano nas quais os deuses vm confraternizar com os homens, vm
danar e cantar com os seus filhos. No h tristeza na religio dos
baianos, tristeza coisa de branco: quanto a ns, povo mestio,
herdamos a alegria do negro. No peji, um peixe de madeira, enorme,
contm o presente nupcial, o da colnia de pescadores. Em grandes cestos
vo-se acumulando as outras oferendas, centenas de ddivas, algumas de
preo, a maioria formada por lembranas simples e baratas, pois o povo
pobre, imensamente pobre. Rico apenas da alegria, da disposio de
viver, rico tambm de gentileza e graa. As casas da vizinhana se
enchem de gente conhecida, vinda de todas as partes da cidade. A casa
bela e fraterna de Tibrcio Barreiros, na Ladeira do Papagaio, com
admirvel vista sobre a festa, recebe, com a fidalguia baiana, amigos e
parentes. Durante toda a manh, estende-se a fila ante a casa-do-peso:
homens e mulheres, cada um com seu presente para depositar nos balaios.
No meio da tarde, os presentes so levados para um saveiro, aps ter
dado a volta ao Largo de SanfAna, em meio aos cnticos e ao roncar dos
atabaques, iyalorixs e babalorixs, babalas e ogs puxam o cortejo,
seguidos pelas filhas de Yemanj, com suas contas transparentes como
gotas d'gua. Depois os martimos, os pescadores, a multido. A
multido anda para a praia, frente o peixe de madeira e os balaios com
os presentes. O saveiro, onde so depositados, assume o comando das
embarcaes. Jangadas .de todos os tamanhos, saveiros, barcos, lanchas,
canoas. Navios da Companhia de Navegao Baiana, iates embandeirados.
Cortam as guas, enfrentam as ondas, mar adentro, at onde Yna se
encontra cercada de peixes, vestida de ostras e algas. Oferecem-lhe os
presentes e formam um grande crculo em redor com os saveiros, as
jangadas, as canoas. Homens e mulheres atentos aguardam a deciso de
Ja-nana; tambm no Largo a multido fez silncio, na expectativa:
Yemanj aceitar ou no as ddivas de seus filhos? Se as aceitar, se as
recolher das ondas e as levar consigo ento esse ser um ano bom de
peixe e de navegao. Mas, se ela as desprezar, se, zangada, partir para
as terras de Aiok, ento ser de fria e morte, de tempestade e fome o
ano dos pescadores e martimos; de luto e dor para suas mulheres. Eis
que um clamor 132 irrompe dos saveiros e as mes-de-santo comandam o
canto de alegria: Dona Janana est recolhendo os presentes em seus
cabelos verdes, em seus braos de coral, em seu rabo de esca-mas, em
seus seios de espuma. Da terra respondem em aclamaes e a dana
recomea, o baticum, o samba de roda e a roda da capoeira. O mar coberto
de flores e, por entre elas, vai a formosa das formosas, a sedutora me
dos orixs, esposa dos martimos. No Rio Vermelho, a festa continua,
prolonga-se pela tarde e pela noite, entrar semana adentro at se
transformar em festa de Nossa Senhora de SanfAna, no domingo seguinte.
Orix de candombl ou santo de igreja tudo igual na devoo e na
alegria do povo. Quem tiver a sorte de assistir a essa festa de dois de
fevereiro, no Largo de SanfAna no Rio Vermelho (talvez das sacadas do
velho sobrado onde vive o pintor Jos de Dome), jamais a esquecer. A
dana o samba de roda, o makulel, o assombroso bale da capoeira
domina essas festas baianas, um bem coletivo e fraterno. Quem no
dana nas praas e nas ruas? Dana a moa adolescente, as ancas
modeladas pela cala elegante, dana a baiana sorridente com seu torso e
seu colar; na roda do samba danam crianas, jovens e velhos, h lugar
para todos. Nos bairros pobres, nos becos e ladeiras, nos terreiros, o
povo dana. Na Estrada da Liberdade, em Cosme de Faria, na Cidade da
Palha, no Corta-Brao, em So Caetano, nos bairros operrios, nas
invases, o povo dana e canta. Diverso alegre e barata. Para
acompanhar o samba de roda basta um prato e uma faca (ou garfo), quando
muito uma violinha. Se nada disso houver, no importa. As mos marcaro
o ritmo e de mais nada se necessita. CARNAVAL O carnaval da Bahia
considerado hoje o melhor carnaval popular de todo o Brasil e dezenas e
dezenas mais de uma centena de milhares de turistas deslocam-se de
todo o pas e at do estrangeiro para curtir a grande festa, que em
Salvador realmente uma festa do povo. O carnaval encerra o ciclo das
134 festas populares que se inicia em dezembro, com as festas de Santa
Brbara e da Conceio da Praia. Quais so as coisas que o folio s
encontra no carnaval da Bahia e em nenhum outro? Antes de tudo, os Trios
Eltricos, que arrastam as multides, que do carter realmente popular
ao nosso carnaval. Exclusivos da Bahia, tambm os afoxs, folia
carnavalesca nascida nos candombls: so os orixs brincando o carnaval.
Alguns afoxs so de extrema beleza. No mais, os coi-des, os blocos,
as escolas de samba, os caretas, e a imensa animao do povo baiano. No
quero deixar de me referir ao bloco "Os Internacionais", ao qual
pertence meu filho Joo Jorge se no citasse o bloco que um dos
destaques do carnaval baiano, ficaria mal com a famlia. Realmente, a
rapaziada possui classe e animao. Para "Os internacionais", Vincius
de Moraes comps um frevo: "Quem for mulher que me siga..." Mas existem
outros blocos igualmente de muita categoria: o "Bloco do Jacu", cujo
lema um trocadilho: "H Jacu no pau"; o "Bloco do Baro", tendo
frente a grande, veneranda, extraordinria figura do Baro de Mococof,
meu velho amigo; "Os Penin-sulares" e vrios outros. Entre as Escolas de
Samba, destacam-se "Os Aristocratas de Amaralina", "Os Filhos de
Toror" da qual fui enredo h uns poucos anos: "Jorge Amado em Quatro
Tempos" e "Mocidade do Garcia". Falando-se do carnaval baiano, faz-se
indispensvel citar os nomes de Osmar e Dod, fundadores do primeiro
Trio Eltrico, e o de Caetano Veloso que todos os anos compe um frevo
para a grande festa. Tambm Batatinha, Riacho e Walmir Lima no faltam
com suas marchas e seus sambas. 135 MES DE JUNHO O So Joo para ns,
baianos, o que o Natal para os povos europeus. Porm junho no
apenas o ms de So Joo. tambm o de Santo Antnio, patrono das moas
casadoiras, e o de So Pedro, padroeiro das vivas ("viva o sexo mais
perigoso que existe", explicou-me certa vez o perito Carlinhos
Masca-renhas). Junho o ms do milho. ele que domina as comemoraes
dos santos padroeiros. De mistura com as fogueiras e os bales, o milho
est presente durante todo o ms. O milho e a laranja, as clebres
laranjas da Bahia, sumarentas, os enormes umbigos. Quanto maior o umbigo
e mais fina a casca, melhor a laranja, diz o povo. Milho das canjicas,
dos mungunzs, dos manus, dos acas, milho assado nas fogueiras,
pipocas, milho cozido com caf. Pamonhas e bolos. Doces envolvidos na
palha crespa do milho. Junho o seu ms, o tempo em que melhor se come
na cidade (excetuando o jejum da Semana Santa, claro). A finssima
canjica, a deliciosa pamonha, os manus saborosssimos. E o licor de
jenipapo para acompanhar. Em junho o cu da Bahia tem milhares de
estrelas novas. So os bales que, apesar das renovadas proibies,
surgem sobre os telhados e tomam o rumo do mar. Os Capites da Areia
abandonam qualquer outra das suas mltiplas ocupaes para catar os
bales perdidos que se apagaram no cu e descem sem rumo sobre as casas.
uma caa alegre e cheia de peripcias. Roncam os rojes de foguetes,
a meninada ensurdece os ouvidos alheios com bombas, traques e buscaps.
As fogueiras se levantam ante as casas mais devotas. Desapareceram
quase completamente do centro da cidade. Mas, ah! se a vossa residncia
for num bairro distante como o de Peri-Peri e diante dela no se elevar
uma fogueira na noite de So Joo, sereis evidentemente olhado de
maneira suspeita pelos habitantes do lugar, vossos vizinhos, operrios
da Estrada de Ferro ou pequeno-burgueses que a crise de moradia atirou
para os subrbios. Elevam-se as fogueiras sob as rvores, a terra parece
envolta numa estranha luz vermelha, cheia de sugestes e mistrios. 138
Em centenas e centenas de casas rezam-se as trezenas de Santo Antnio,
do dia primeiro ao dia treze. Um altar improvisado na Sala de visita,
duas velas aos ps do santo, a mulher que puxa a ladainha. Moas
pobres, vestidas modestamente, rapazes brechando. Trocam olhares durante
a reza. Mas os msicos amigos da casa j se encontram por ali perto
esperando que a devoo termine. Depois da reza aparecem o violo e o
cavaquinho, a flauta e a harmnica, e diante do altar os pares danam,
os namorados riem. Clices de licor de jenipapo so servidos. Junho o
ms das festas ntimas, muitas festas, que se sucedem no correr das
ruas, quase que em todas as casas, nos bairros pobres. o ms mais
alegre da cidade. No dia treze a festa de Santo Antnio. As rezas so
mais longas, a sala mais enfeitada (quase sempre bandeirolas de papel),
o baile tambm dura a noite toda. Corre o jenipapo, come-se a canjica,
soltam-se os primeiros fogos. Nos candombls, festeja-se Ogum. Depois
vm as novenas de So Joo e logo a vspera que o dia da grande festa.
Nas fogueiras inmeras assam-se pedaos de cana, batata, milhos. Os
namorados saltam sobre as brasas. Vamos ser compadres... Apertam-se
as mos ternamente, os olhos se encontram. A meninada queima os dedos,
os fogos rasgam a noite, diversos e surpreendentes. Moas colocam bacias
d'gua para meia-noite nelas espiarem o rosto do futuro noivo. Jogos
de prendas, adivinhaes, pequenos bailes familiares, muita comida de
milho, muito doce, muita laranja, muito licor de jenipapo. As festas de
junho so para velhos, adultos e crianas. Comidas, danas e fogos,
devoo e alegria, superstio e poesia. So Pedro o santo das vivas.
So elas que fazem rezar suas novenas, so elas que comemoram o dia 29.
a despedida de junho. A canjica, os manus, os foguetes e a alegria
iro ainda at o Dois de Julho, data da independncia da Bahia. O milho
domina todas as festas, seu gosto determina o ms de junho, as espigas
amontoadas nas cozinhas antiga, de grandes foges de barro. Junho o
ms baiano por excelncia. Em mil festas pequenas, em centenas de
fogueiras, em milhares de bales, se desdobra a cidade que neste ms
parece ambiente 139 SAO COSME E SO DAMIO O ms de setembro pertence
aos ibjes, So Cosme e So Damio, santos catlicos mas tambm
importantes deuses negros, Dois-Dois no chamar das mes-de-santo. Santos
populares entre a gente baiana, no ms de setembro em todos os recantos
da cidade encontram-se velhos, moos e crianas conduzindo quadros ou
pequenas imagens que representam Cosme e Damio, angariando dinheiro
para missas que devem ser celebradas em honra dos dois "primos". Os
festejos so muitos. Dizem os negros que So Cosme e So Damio so
amigos de boa comida baiana e por isso mesmo cozinham-se em honra deles
todas as comidas de azeite-de-dend, especialmente o ef, o vatap e o
caruru. A grande festa, quando batem todos os candombls da cidade, a
27 de setembro. A tradio do caruru de Cosme e Damio ainda hoje
cultivada por inmeras famlias. Entre elas, a da finada Maria de So
Pedro, que, todos os anos, em seu restaurante no Mercado Modelo,
oferece um caruru, com centenas de convidados, aos ibjes. Quando viva,
Norma Sampaio abria as portas de sua casa no Chame-Chame para receber
os devotos dos santos. Natlia e Mecenas Mascarenhas, Antonieta e Nelson
Taboada, Dorothy e Moyss Alves eis trs famosos carurus de Cosme e
Damio, de farta, rica e saborosa comida de azeite-de-dend. Igualmente
famoso o de Toninha e Camafeu de Oxssi. Com direito a uma clebre
batida de maracuj, feita especialmente em So Gonalo para a ooasio,
e a sermo de um padre barroco e ecumnico que leva sob a batina o breve
de piloto da Aeronutica. Que dizer ento do caruru oferecido por minha
comadre e amiga Dety uma das mais extraordinrias cozinheiras do mundo
na Ilha de Itaparica? No h rega-bofe igual. CALENDRIO DAS FESTAS DE
CANDOMBL Cada candombl da Bahia tem vida prpria, independente dos
demais. Ligando muitos deles existem laos de amizade, troca de
gentilezas dentro do complexo e refinado ritual que preside as relaes
entre pessoas e entidades na Bahia, os ritos de gentileza e amizade. A
ligao maior entre os terreiros da mesma nao ou seja os que so
originrios da mesma matriz cultural: geg-nag (ketu), angola, congo,
candombls de caboclo. Em tais casos acontecem coincidncias no
calendrio das festas pblicas, das cerimnias religiosas abertas ao
compa-recimento de todos quantos as desejam assistir s as pessoas
ligadas seita tm acesso a certa parte das obrigaes. Tais
coincidncias de datas so freqentes nas casas de origem ketu. No
existe, porm, volto a repetir, nenhum tipo de interdependncia entre os
diversos terreiros, apesar da constante e mals tentativa dos eternos
sabidorios que tentam colocar de p unies e federaes, pretensamente
religiosas ou culturais, com o fim de dominar e explorar econmica ou
politicamente as casas-de-santo. Cada candombl uma unidade
independente, no tendo nenhuma obrigao com os demais, apenas relaes
de fraterna amizade. Outra coisa: nenhum candombl da Bahia e creio
que do Brasil tem ligao ou dependncia com os da frica. O viajante
conseguir com facilidade, na seo competente do organismo estadual de
turismo ou no Centro Folclrico da Municipa