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Bahia de todos os Santos Jorge Amado Na portada deste livro, na entrada da barra da Bahia de Todos os Santos, quero escrever teu nome de baiana. Um dia vies-te de passagem conhecer minha cidade, ficaste para sempre. Aqui neste jardim onde cresceram nossos filhos e crescem nossos netos, entre as árvores que plantamos, no culto da amizade, tomo de tua mão de namorada e te proclamo Zélia de Euá, filha de Oxum, mulher de Oxóssi, doce companheira, jovem coração irredutível, única e sem comparação. "- Você já foi à Bahia, nega "- Não!" "- Então vá..." Dorival Caymmi CONVITE E quando a viola gemer nas mãos do seresteiro na rua trepidante da cidade mais agitada, não tenhas, moça, um minuto de indecisão. Atende ao chamado e vem. A Bahia te espera para sua festa quotidiana. Teus olhos se encharcarão de pitoresco, mas se entristecerão também diante da miséria que sobra nestas ruas coloniais onde se elevaram, violentos, magros e feios, os arranha-céus modernos. Ouves? Ê o chamado insistente dos atabaques na noite misteriosa. Se vieres eles tocarão mais alto ainda, no poderoso toque do chamado do santo, e os deuses negros chegarão das florestas da África para dançar em tua honra.

 · Web viewconquistada ao mar, onde foi antes o areai do cais, as construções modernas já não lembram a colonização lusa. Prédios como o do Instituto do Cacau, os modernos

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Bahia de todos os Santos

Jorge Amado

Na portada deste livro, na entrada da barra da Bahia de Todos os Santos,

quero escrever teu nome de baiana. Um dia vies-te de passagem conhecer

minha cidade, ficaste para sempre. Aqui neste jardim onde cresceram

nossos filhos e crescem nossos netos, entre as rvores que plantamos, no

culto da amizade, tomo de tua mo de namorada e te proclamo Zlia de

Eu, filha de Oxum, mulher de Oxssi, doce companheira, jovem corao

irredutvel, nica e sem comparao.

"- Voc j foi Bahia, nega

"- No!" "- Ento v..." Dorival Caymmi

CONVITE

E quando a viola gemer nas mos do seresteiro na rua trepidante da

cidade mais agitada, no tenhas, moa, um minuto de indeciso.

Atende ao chamado e vem. A Bahia te espera para sua festa quotidiana.

Teus olhos se encharcaro de pitoresco, mas se entristecero tambm

diante da misria que sobra nestas ruas coloniais onde se elevaram,

violentos, magros e feios, os arranha-cus modernos.

Ouves?

o chamado insistente dos atabaques na noite misteriosa.

Se vieres eles tocaro mais alto ainda, no poderoso toque do chamado

do santo, e os deuses negros chegaro das florestas da frica para

danar em tua honra.

Com os vestidos mais belos, bailando os inesquecveis bailados.

As ias cantaro em iurub os cnticos de saudao. Os saveiros

abriro as velas e rumaro para o mar largo de tempestades.

Do forte velho vir msica antiga, valsa esquecida que s o

ex-soldado recorda. Os ventos de Yemanj sero apenas doce brisa na

noite estrelada. O rio Paraguau murmurar teu nome e os sinos das

igrejas de repente tocaro Ave Maria apesar de que o crepsculo j

passou com sua desesperada tristeza. No Mercado das Sete Portas, nos

pobres pratos deflandres o sarapatel te espera, escuro e gostoso. Os

potes e as moringas de barro que comprars, as redes para a sesta, os

inhames e aipins, as frutas coloridas. Se vieres, a feira ter outra

animao, beberemos cachaa com ervas aromticas. Os sobrades te

esperam. Os azulejos provm de Portugal e desbotam hoje ainda mais

belos. L dentro a misria murmura pelas escadas onde os ratos correm,

pelos quartos imundos. As pedras com que os escravos calaram as ruas,

quando o sol as ilumina ao meio-dia, tm laivos de sangue. Sangue

escravo que escorreu sobre essas pedras nos dias de ontem. Nos casares

moravam os senhores de engenho. Agora so os cortios mais abjetos do

mundo. Vers as igrejas, grvidas de ouro. Dizem que so trezentas e

sessenta e cinco. Talvez no sejam tantas, mas que importa? Onde estar

mesmo a verdade quando ela se refere cidade da Bahia?Nunca se sabe

bem o que verdade e o que lenda nesta cidade. No seu mistrio lrico

e na sua trgica pobreza, a verdade e a lenda se confundem. Se subires

o Tabuo, zona de mulheres que j perderam a ltima parcela de esperana

nos quinto-andares de prdios aleijados, nunca sabers ao certo se

uma rua maravilhosa de pitoresco, com suas janelas coloniais e suas

portas centenrias, ou se apenas um hospital enorme, sem mdicos, sem

enfermeiras, sem remdios.\Ahl moa, esta cidade da Bahia mltipla e

desigual. Sua beleza eterna, slida como a de nenhuma outra cidade

brasileira, nascendo do passado, rebentando em pitoresco no cais, nas

macumbas, nas feiras, nos becos e nas ladeiras, sua beleza to poderosa

que se v, apalpa e cheira, beleza de mulher sensual, esconde um mundo

de misria e de dor. Moa, eu te mostrarei o pitoresco mas te mostrarei

tambm a dor. Vem e serei teu cicerone. Juntos comeremos no Mercado

sobre o mar o vatap apimentado e a doce cocada de rapadura. Serei teu

cicerone mas no te levarei, apenas, aos bairros ricos, de casas

modernas e confortveis, Barra, Pituba, Graa, Vitria, Morro do

Ipiranga. Em nibus superlotados iremos Estrada da Liberdade, bairro

operrio, onde descobrirs a misria oriental se repetindo nos casebres

das invases, Massaranduba, Coria, Cosme de Faria, Uruguai, iremos aos

cortios infames, cruzaremos as pontes de lama dos Alagados. Esse bem

um estranho guia, moa. Com ele no vers apenas a casca amarela e linda

da laranja. Vers igualmente os gomos podres que repugnam ao paladar.

Porque assim a 10 Bahia, mistura de beleza e sofrimento, de fartura e

fome, de risos lacres e de lgrimas doloridas. Quando a viola gemer nas

mos do seresteiro, nascido na Bahia, filho de sua poesia e sua dor, no

reflitas sequer, pois a cidade mgica te espera e eu serei teu guia

pelas ruas e pelos mistrios. Teus olhos se enchero de pitoresco, teus

ouvidos ouviro histrias que s os baianos sabem contar, teus ps

pisaro sobre os mrmores das igrejas, tuas mos tocaro o ouro de So

Francisco, teu corao pulsar mais rpido ao bater dos atabaques. Mas

tambm sentirs dor e revolta e teu corao se apertar de angstia

ante a procisso fnebre dos tuberculosos na cidade de melhor clima e de

maior percentagem de tsicos do Brasil. A beleza habita nesta cidade

misteriosa, moa, mas ela tem uma companheira inseparvel que a fome.

Se s apenas uma turista vida de novas paisagens, de novidades para

virilizar um corao gasto de emoes, viajante de pobre aventura rica,

ento no queiras esse guia. Mas se queres ver tudo, na nsia de

aprender e melhorar, se queres realmente conhecer a Bahia, ento, vem

comigo e te mostrarei as ruas e os mistrios da cidade do Salvador, e

sairs daqui certa de que este mundo est errado e que preciso

refaz-lo para melhor. Porque no justo que tanta misria caiba em

tanta beleza. Um dia voltars, talvez, e ento teremos reformado o

mundo e s a alegria, a sade e a fartura cabero na beleza imortal da

Bahia. Se amas a humanidade e desejas ver a Bahia com olhos de amor e

compreenso, ento serei teu guia, Riremos juntos e juntos nos

revoltaremos. Qualquer catlogo oficial, ou de simples cavao, te dir

quanto custou o Elevador Lacerda, a idade exata da Catedral, o nmero

certo dos milagres do Senhor do Bonfim. Mas eu te direi muito mais,

pois te falarei do pitoresco e da poesia, te contarei da dor e da

misria. Vem, a Bahia te espera. uma festa e tambm um funeral. O

seresteiro canta o seu chamado. Os atabaques sadam Exu na hora sagrada

do pad. Os saveiros cruzam o mar de Todos os Santos, mais alm est o

rioParaguau. doce a brisa sobre as palmas dos coqueiros nas praias

infinitas. Um povo mestio, cordial, civilizado, pobre e sensvel

habita essa paisagem de sonho. Vem, a Bahia te espera. 11 ATMOSFERA DA

CIDADE DO SALVADOR DA BAHIA DE TODOS OS SANTOS

QUEM GUARDA OS CAMINHOS DA CIDADE Quem guarda os caminhos da cidade do

Salvador da Bahia Exu, orix dos mais importantes na liturgia dos

candombls, orix do movimento, por muitos confundido com o diabo no

sincretismo com a religio catlica, pois ele malicioso e ar-reliento,

no sabe estar quieto, gosta de confuso e de aperreio. Postado nas

encruzilhadas de todos os caminhos, escondido na meia-luz da aurora ou

do crepsculo, na barra da manh, no cair da tarde, no escuro da noite,

Exu guarda sua cidade bem-amada. Ai de quem aqui desembarcar com

malvolas intenes, com o corao de dio ou de inveja, ou para aqui se

dirigir tangido pela violncia ou pelo azedume: o povo dessa cidade

doce e cordial e Exu tranca seus caminhos ao falso e ao perverso. A

primeira obrigao a se fazer quando nesse solo se pem os ps, quando

aqui se desembarca, dar de beber a Exu para assim lhe conquistar as

boas graas, impedindo que ele venha perturbar a festa com suas

diabruras e arrelias. Para no se escorregar numa ladeira calada de

pedras negras e antigas, para no se correr susto num beco de fantasmas,

para evitar os ebs, os feitios, as coisas-feitas. Exu bebe cachaa

mas, na falta, aceita um substitutivo mesmo que seja usque ou vodca. O

ideal, porm, a aguardente de cana-de-acar, destilada em alambique

de barro, se possvel. Cachaa destilada em alambique de barro coisa

fina, por isso chamada de purinha. A melhor cachaa da Bahia vem de

Santo Amaro da Purificao, cidade do Recncavo, corao da zona

aucareira, terra de Caetano Veloso e Emanuel Arajo. Entre as cachaas

de Santo Amaro mais conhecidas e festejadas pela sua qualidade

encontra-se a "Azuladinha", a "gua Fria" e a "Dois Amigos", esta ltima

de muita reputao. 14 aconselhvel que o viajante, ao pretender

ingerir bebida alcolica, destine o primeiro trago a Exu, derramando-o

discretamente no cho. Assim ficar colocado sob sua guarda e proteo

e todos os caminhos se abriro para lhe dar passagem, seja os que

conduzem aos mistrios de Salvador, sua beleza e sua intimidade,

seja os que levam ao corao das mulheres mulheres morenas da Bahia,

gama de cores que vai do marfim ao cobre, e o dengue infinito. A FORA

**DO POVO O povo mais forte do que a misria. Impvido, resiste s

provaes, vence as dificuldades. De to difcil e cruel, vida parece

impossvel e no entanto o povo vive, luta, ri, no se entrega. Faz suas

festas, dana suas danas, canta suas canes, solta sua livre

gargalhada, jamais vencido. Mesmo o trabalho mais rduo, como a pesca

de xaru, vira festa. Em tendo ocasio, o povo canta e dana. Em terra

ou no mar, nos saveiros e jangadas, nas canoas. Por isso mesmo a Bahia

rica de festas populares. Festas de rua, de igreja, de candombl.

Guardam todas elas nossa marca original de miscigenao, de nossa

civilizao mestia. ATMOSFERA DA CIDADE Em certo comcio, realizado

quando da invaso da Abis-snia pelas foras fascistas de Mussolini, um

orador, solene na roupa preta e no portugus castio, afirmou que os

baianos, como latinos dos melhores e mais puros, estavam ligados Roma

Imperial que o Duce queria reviver custa dos negros abexins. Foi a

que subiu tribuna um majestoso mulato e declarou que os baianos como

descendentes dos africanos, mestios dos melhores, estavam ligados

sentimentalmente sorte da Etipia. Assim a Bahia. Quem disser que

esta a cidade de Castro Alves estar dizendo apenas meia verdade. Se

disser que esta a cidade de Ruy Barbosa estar tambm dizendo apenas

meia verdade. Entre o esprito libertrio e o esprito liberal vive a 75

hia. Nunca fascista, se bem por vezes reacionria, saudosista, imorada

de frmulas passadas. Mas por outro lado, revo-ionria, afirmativa,

progressista e, se absolutamente neces-io, violenta. Essas duas figuras

do seu passado e tudo que s representaram dominam a mentalidade da

Bahia: o poeta srtrio Castro Alves e o tribuno liberal Ruy Barbosa. De

Ruy ia a Bahia certo amor ao castio, ao verbo eloqente, mesmo trica,

frase sonora, ao liberalismo poltico. De Castro Al-recebe a vocao

do futuro, o desejo de liberdade, a ca-:idade de romper com o passado,

de marchar para a frente, a na revolucionria. Gilberto Freyre j notou

que a vaia do leque rompe sempre, na Bahia, o excesso conservador que

ta impor-se. O conservador e o revolucionrio coexistem no rito da

cidade, chocam-se, fundem-se por vezes, so quase pveis no seu

contraste. Aqui o viajante ver diferenas mais urdas em todas as

coisas. Encontrar uma arte essencial-nte poltica, desde os tempos

longnquos de Gregrio de tos at os dias de hoje, uma arte a servio

do povo, ligada ao itidiano, ao local, ao social, engajada,

comprometida, visan-ao futuro, mas encontrar tambm, com certa

notoriedade idual ou municipal, os mais carunchentos gramticos, os

estas mais torcidos, mais quinhentistamente ilegveis de todo o >. A

Bahia orgulha-se do gramtico Carneiro Ribeiro, dis-ndo com Ruy Barbosa,

seus pronomes to bem colocados 10 no o faria o melhor professor de

Coimbra, e orgulha-se um educador como Ansio Teixeira, que

revolucionou a agogia brasileira. Assim a Bahia do choque permanente

de s duas faces, dos seus dois pensamentos. Sempre poltica. No ser

poltica por acaso a literatura histrica de Pedro Cal-mon, to poltica

quanto os ensaios de Hermes Lima ou de Edison Carneiro? A poltica a

vocao do baiano. No equilbrio resultante do choque desses espritos

dspares que povoam a cidade surge um Joo Mangabeira, perfeito exemplo

da fuso das duas matrizes, o baiano com todas as virtudes de sua

inteligncia e com todas as caractersticas do seu temperamento.

Cultuando o passado e sonhando o futuro. O baiano que faz da amabilidade

uma verdadeira arte, que ar- j guto at no mais poder, que cordial

e compreensivo, descan- 1 sado e confiante. Que desmorona com uma piada

agressiva todo ; um edifcio de retrica. Escondendo sob o fraque solene

um corao jovem. Gostando de rir, de conversar, de contar casos. Eis

uma cidade onde se conversa muito. Onde o tempo ainda no adquiriu a

velocidade alucinante das cidades do Sul. Ningum sabe conversar como o

baiano. Uma prosa calma, de frases redondas, de longas pausas

esclarecedoras, de gestos comedidos e precisos, de sorrisos mansos e de

gargalhadas largas. Quando um desses baianos gordos e mestios, um pouco

solene e um pouco moleque, a face jovial, comea a conversar, quem

fechar os olhos e fizer um pequeno esforo de imaginao poder

distinguir perfeitamente o seu remoto ascendente portugus e seu remoto

ascendente negro, recm-chegado um da Europa colonizadora, recm-chegado

outro das florestas da frica. De quem essa gargalhada clara e solta

se no do negro? De quem essa solene considerao para com o doutor,

que salafrrio personagem da histria que ele conta, se no do

portugus imigrante, rude admirador dos mais sbios? Essa mulataria

baiana, essa mestiagem onde o sangue negro entrou com uma boa parte,

no produziu o mulato espevitado, pernstico, egosta, adulador e

violento com os inferiores, das caricaturas racistas. Sempre que penso

no mulato baiano vejo um homem gordo. Gordo no apenas fisicamente. Como

carter tambm: bom, amvel, gluto, sensual, agudo de inteligncia,

bem-falante mas de fala mansa, sabendo tratar to bem os inferiores

quanto os superiores, ou melhor ainda. Comendo comida gordurosa, cheia

de azeite, mas apimentada tambm. Assim o homem da cidade da Bahia, um

pouco derramado e um pouco distrado. Um pouco poeta, poder-se-ia

dizer, mas tambm astutamente poltico, o mais hbil poltico do Brasil.

17 r Assim a Bahia. Esse o seu clima, ligado ao passado, fitando o

futuro. Nenhuma outra cidade do Brasil se mantm nesse equilbrio

espiritual que exige dos homens uma constante vigilncia para no cair

num conservadorismo reacionrio ou num anarquismo inconstrutivo. Ao lado

da vetusta Catedral est a Faculdade de Medicina, onde os estudantes

abrem cadveres para buscar a explicao da vida. J h algum tempo que

os candombls deixaram de ser apenas uma constante religiosa dos negros

querendo conservar bens de sua cultura original. So hoje tambm tema e

material de estudos de jovens sbios, da criao de grandes artistas.

Existe uma cultura baiana com caractersticas prprias, ariginais? Creio

que sim. Aqui toda a cultura nasce do povo, Doderoso na Bahia o povo,

dele se alimentam artistas e escritores. H uma tradio social na arte

e na literatura baianas lue vem desde Gregrio de Matos e prossegue at

hoje. Essa igao com o povo e com seus problemas marca fundamental

ia cultura baiana. Cultura baiana que influencia toda a cultura

brasileira da qual clula mter. Sendo a cidade negra por excelncia

do Brasil, com uma grande populao de cor, aquela onde menos existe,

em nosso 5as, o preconceito racial. O que no quer dizer que ele seja

in-eiramente inexistente. A mistura de sangue muito grande e ;m s

conscincia pouca gente poder negar o av negro mais m menos remoto. A

influncia do negro sente-se em toda a par-e. No apenas no aspecto

fsico da cidade mas na sua vida. A uperstio alastrada confundindo-se

muitas vezes com a re-igio. Cidade religiosa, sem dvida. Onde se

encontraro na eligiosidade do baiano os limites entre religio e

superstio? isto as duas quase sempre confundidas e quase sempre

redominando a ltima. Os ritos religiosos adquirem aqui es-ranhas

modalidades, os cultos catlicos aformoseiam-se com ima aura fetichista.

H qualquer coisa de pago na religio dos taianos, qualquer coisa que

raia pelo sensual e que faz com que s mltiplas igrejas no sejam seno

uma continuao, estiliza-a e civilizada, das macumbas misteriosas. Ao

lado desse re-giosismo supersticioso encontramos um anticlericalismo

mi-tante no povo em geral. Raramente existem, como em muitas idades,

padres de larga popularidade. Ao contrrio, muitas as festas religiosas

e populares (a do Senhor do Bonfim por 8 exemplo) encontram feroz

oposio de certa parte do clero. Nesse particular a Bahia recorda a

Vascncia, na Espanha, com seu povo religioso e anticlerical. Ou os

mexicanos que, nas revolues de Zapata e Pancho Vila, fuzilavam os

padres aos gritos de "Viva Nossa Senhora de Guadalupe". Fenmeno

idntico se passa na Bahia onde junto ao povo negro a autoridade do

padre nenhuma se comparada dos pais e mes-de-santo, enquanto que as

classes ricas, como em toda a parte, utilizam politicamente o padre sem

lhe ter o menor respeito. Um povo bom, amigo de cores berrantes,

ruidoso, manso e amvel, de admirao fcil, acolhedor e democrata. Sob

um cu de admirvel limpidez, na fmbria do mar ou na montanha onde

corre sempre uma caridosa aragem, vive o povo mais doce do Brasil. Na

cidade do Salvador da Bahia. ESCORRE O MISTRIO SOBRE A CIDADE COMO UM

LEO Escorre o mistrio sobre a cidade como um leo. Pegajoso, todos o

sentem. De onde ele vem? Ningum o pode localizar perfeitamente. Vir do

baticum dos candombls nas noites de macumba? Dos feitios pelas ruas

nas manhs de leiteiros e 19 padeiros? Das velas dos saveiros no cais do

Mercado? Dos Capites da Areia, aventureiros de onze anos de idade? Das

inmeras igrejas? Dos azulejos, dos sobrades, dos negros risonhos, da

gente pobre vestida, de cores variadas? De onde vem esse mistrio que

cerca e sombreia a cidade da Bahia? "Roma negra", j disseram dela. "Me

das cidades do Brasil", portuguesa e africana, cheia de histrias,

lendria, maternal e valorosa. Nela se objetiva, como na lenda de Yeman-

j, a deusa negra dos mares, o complexo de dipo. Os baianos a amam como

me e amante, numa ternura entre filial e sensual. Aqui esto as grandes

igrejas catlicas, as baslicas, e aqui esto os grandes terreiros de

candombl, o corao das seitas fetichis- tas dos brasileiros. Se o

Arcebispo o Primaz do Brasil, o pai Martiniano do Bonfim era uma

espcie de Papa das seitas negras em todo o pas e Me Menininha a

Papisa de todos os candombls do mundo. Os pais-de-santo e as

mes-de-santo da Bahia vo bater candombls no Recife, no Rio, em Porto

41egre. E seguem como bispos em viagem pastoral, acompa- hados de

enorme comitiva. De tudo isso escorre um mistrio ienso sobre a cidade

que toca o corao de cada um. ~^ No h cidade como essa por mais que

se procure nos :aminhos do mundo. Nenhuma com as suas histrias, com o

seu irismo^eu pitoresco, sua funda poesia. No meio da espantosa risria

das classes pobres, mesmo a nasce a flor da poesia por- ue a

resistncia do povo alm de toda a imaginao. Dele, esse povo baiano,

vem o lrico mistrio da cidade, mistrio que ampleta sua beleza. A

cidade da Bahia se divide em duas: a cidade baixa e a al- l Entre o mar

e o morro, a cidade baixa do grande comrcio. s casas exportadoras, os

representantes de firmas de outros stados e do estrangeiro, os bancos,

as sociedades annimas, a ssociao Comercial, o Instituto do Cacau.

Antigamente, iando o mar no se quebrava no cais, quando vinha at os

ndos do Caf Pirangi, esta parte da cidade era tipicamente rtuguesa,

com seus casares, seus azulejos, suas escadas in- modas, um cheiro a

mercadorias importadas caracterstico de tnazns e mercearias. As ruas

mais pVximas ao morro e as ieiras que partem em busca da cidade alta,

igrejas como a da nceio da Praia que veio pronta de Portugal para ser

ar- ida aqui, tudo isso recorda as cidades portuguesas. Mas na parte

conquistada ao mar, onde foi antes o areai do cais, as construes

modernas j no lembram a colonizao lusa. Prdios como o do Instituto

do Cacau, os modernos edifcios de cimento armado, os arranha-cus

construdos nessa rea, a primeira a ser vista pelo turista que chega

por mar, modificaram a impresso inicial que se tinha da cidade. bem

verdade que logo se encontra o viajante ante o edifcio da Alfndega,

tipicamente portugus, construdo durante o reinado de D. Joo VI, onde

hoje se localiza o Mercado Modelo. Na estreita faixa de terra entre o

mar e a montanha, onde se situam umas poucas ruas paralelas e alguns

becos que as cortam, ladeiras que sobem o morro, a cidade baixa

trabalha sob a proteo de um monumento ao Visconde de Cairu que se

levanta em frente Associao Comercial, em estilo neoclssico ingls,

casa belssima. Nas suas proximidades fica a Mesa de Rendas Estadual.

Esses dois edifcios e o da Alfndega so admirveis casares antigos,

de largas paredes e grossas portas. J aqui estamos num mundo portugus

adoado pelo negro. Vrias ladeiras ligam a cidade baixa alta. A mais

importante delas a Ladeira da Montanha, aberta no morro em cuja

encosta rasgam-se buracos acimentados onde ferreiros trabalham e nos

quais, por mais incrvel que parea, residem famlias. Casas, cujas

fachadas simples do para as ladeiras, descem o morro numa sucesso de

andares para baixo, arranha-cus ao vice-versa. Ficam trepadas no morro

como se fossem .largas e estranhas escadas. Seu colorido rosa ou azul

brilha entre o verde da montanha. Para alm da cidade baixa no contorno

da baa, fica a pennsula de Itapagipe, bairro de pequena burguesia

pobre e de proletariado, separado do resto da cidade por uma longa rua

que parte da Associao Comercial e vai at a Calada. A estava

localizada a clebre Feira de gua dos Meninos que um incndio devorou

pouco antes de ser tambm devorado pelo fogo o Mercado Modelo. Em

substituio feira clebre funciona hoje a Feira de So Joaquim, pouco

adiante, ao lado do edifcio da Petrobrs, em frente ao Orfanato de So

Joaquim, que uma das mais belas casas coloniais da Bahia. ; al- A

cidade alta, excetuando as ruas centrais de comrcio, 3rta

residencial, desdobrando-se em bairros no caminho do mar, l de subindo

colinas e encostas. trs nos noite o silncio povba a cidade baixa.

Ela dorme no cais, as casas comerciais fechadas, bancos sem movimento,

nos casares e nos saveiros de velas arriadas. A cidade alta

movimenta-se para os cinemas, para as festas, para as visitas. Os

elevadores e planos inclinados a estas horas quase no tm freguesia. -^

As duas cidades se completam, no entanto, e seria difcil explicar de

qual das duas provm o mistrio que envolve a Bahia. Porque o viajante o

sente tanto na cidade baixa como na alta, pela manh ou pela noite, no

silncio do cais ou nos rudos da multido na Baixa dos Sapateiros.

Impossvel explicar o mistrio dessa cidade. segredo que ningum

sabe, chega talvez do seu passado na sombra do forte velho sobre o mar,

chega talvez do seu povo misturado e alegre, talvez do mar onde reina

Yna, talvez da montanha coberta de verde e salpicada de casas. certo

que todos o sentem. Ele rola sobre a Bahia, como um leo a envolv-la.

Quando na noite solitria da cidade baixa o rudo do baticum longnquo

do candombl coincidir com o encontro de um casal de mulatos que se

dirige ao amor no cais, ento o forasteiro se rende conta que esta

uma cidade diferente, que nela existe algo que alvoroa os coraes.

uma cidade negra, mas tambm uma cidade portuguesa. Por que

explic-la? Basta que a amemos como ela o merece. Com um amor que no

tente esconder suas chagas to vista. Que no tente negar a

existncia dos bandos de Capites da Areia, roubando e assaltando porque

tm fome. A Bahia no precisa de benevolncia. Precisa, sim, de

compreenso e de apoio para que seu mistrio se liberte da misria, para

que sua beleza no permanea manchada de fome. No preciso explic-la.

Pois seu mistrio como um leo que escorre do cu e do mar e vos

envolve todo, corpo, alma e corao. ; - NOME DA CIDADE Os fillogos e

historiadores perdem tempo discutindo se esta cidade se chama cidade do

Salvador ou cidade de So Salvador. Cidade do Salvador da Bahia, dizem

alguns. A verdade que ningum est ligando a mais mnima aos

fillogos. Os nomes das cidades no resultam da discusso acalorada dos

graves senhores acadmicos. Podem eles perder o tempo que quiserem,

podem encher colunas de jornais com massudos e maantes artigos,

escrever grossos volumes que ningum l, xingar e esbravejar, o povo

continua chamando sua cidade pelo doce nome de Bahia. Esta a cidade

da Bahia. Assim a trata o povo de suas ruas desde a sua fundao a 1? de

Novembro de 1549. Pode ser que o colonizador devoto desejassse colocar a

nova povoao sob o patrocnio de Jesus designando-a Cidade do Salvador.

Mas somos um povo misturado, com sangue ndio e muito sangue negro, e o

nosso primitivismo ama os nomes pagos tirados da natureza em torno.

Bahia. Em frente cidade est a baa enorme, belssima, rodeando a

ilha de Itaparica, recebendo as guas do rio Paraguau. Nela nadou Moema

em busca de seu amor at morrer. Bahia de Todos os Santos. O catlico

lusitano batizou a baa em redor. O ndio e o negro crismaram a cidade

que ali nasceu: Bahia to-somente. No adiantou o desejo de D. Joo III,

Rei de Portugal, que, mesmo antes de fundar a cidade, deu-lhe o nome de

Salvador. No adiantou a pertincia de Tome de Sousa conservando-lhe

esse nome quando todos a chamavam Bahia. Esse povo misturado , por

vezes, cabeudo. Permaneceu Bahia. De nada adianta a grave discusso dos

senhores acadmicos. Ela se processa sob a mais absoluta indiferena

popular. O povo no deseja saber se a cidade se chama Salvador ou So

Salvador, se quem tem razo o rato de biblioteca que no enxerga a

vida h um quarto de sculo e ainda intitula amante de concubina ou se

o charlato de pouco saber que apenas deseja bancar importncia e

exibir conhecimentos que no possui. Para o povo a cidade da Bahia.

BAIANO UM ESTADO DE ESPIRITO Baiano quer dizer quem nasce na Bahia,

quem teve este alto privilgio, mas significa tambm um estado de

esprito, certa concepo de vida, quase uma filosofia, determinada

forma de humanismo. Eis por que homens e mulheres nascidos em outras

plagas, por vezes em distantes plagas, se reconhecem baianos 23

a mbra desse mar de saveiros, as agruras desse serto de vaquejadas

e de milagres, os rastros desse povo de toda resistncia e de toda

gentileza. E como baianos so reconhecidos, pois de logo se pode

distinguir o verdadeiro do falso. Aqui entre ns: tem gente que h vinte

anos tenta obter seu passaporte de baiano e jamais consegue pois no

fcil preencher as condies e como diz o moo Caymmi, nosso poeta,

"quem no tem balangands no vai ao Bonfim". Pierre Verger, mestre

francs de artes e de cincias, andou meio mundo, cruzou caminhos do

Oriente e do Ocidente, mares e desertos, montanhas e arranha-cus; era

um ser errante, um inquieto. J duvidava da alegria quando de sbito a

encontrou ao chegar s ladeiras da cidade do Salvador da Bahia de Todos

os Santos. Viu realizado seu sonho antigo na civilizao mestia que

aqui plantamos e construmos com a nossa democracia racial. Chegara

ptria de seu corao. Foi reconhecido e confirmado e, em festa de dana

e canto, no terreiro recebeu o nome de Oju Ob. As ias danaram em sua

honra, sentou-se Pierre entre os notveis de Xang, entre os notveis

da Bahia. Sbio de Paris, feiticeiro da frica, baiano dos melhores.

Muitos so os baianos nascidos noutras terras que nos tm trazido a

contribuio de seu trabalho criador. O pintor Henrique Oswald, to cedo

falecido, quando alcanava sua completa maturidade de artista. O poeta

Odorico Tavares, inte-merato defensor de cada pedra de nossa cidade. O

gravador Karl Hansen, da Alemanha, que juntou ao seu nome o da terra

prometida: hoje se chama Hansen-Bahia. Mestre Rescala, a juem tanto

devemos pois preservou e restaurou tesouros de arte meaados pelo tempo

e pela insdia dos governantes. Baianos nascidos na Amaznia, os poetas

Carlos Eduardo a Rocha e seu irmo Wilson, o psiquiatra Rubim de Pinho;

no faranho, o desenhista e pintor Floriano Teixeira; em Sergipe, nner

Augusto e Jos de Dome, mestres pintores, o historiador s Calazans e os

jornalistas Joo Batista de Lima e Silva e not Silveira. Vindos de

Portugal, como o padre Vieira que ui desembarcou ignorante e tapado,

dura cabea de pedra enas aspirou o ar baiano, deu-lhe um estalo na

cabea, a ira virou talento, floresceu no padre mais inteligente do ndo

e Antnio Simes Celestino, flor dos Celestinos da Pvoa do Lanhoso. O

mais baiano de todos os baianos o pintor Caryb, nascido no mar, dos

ilcitos amores de Yemanja com um certo senhor H.J.P. de Bernab, de

duvidosa nacionalidade. Baiano um estado de esprito. REVOLUES

Inquieta cidade revolucionria! Aqui os poetas fizeram de seus versos

armas de combate e de revolta. De Gregrio de Matos a Castro Alves, de

Junqueira Freire a Jacinta Passos e a Capinam. Os tribunos pregaram as

largas idias, daqui saiu Ruy Barbosa. Vive nas docas a memria do

grevista Joo de Ado. Aqui nasceu Carlos Marighela. Era ainda o Governo

Duarte da Costa, segundo gover-nador-geral, e j ndios, reduzidos

condio de escravos pelos portugueses recm-chegados, sublevaram-se. A

vida nas imediaes da jovem cidade tornou-se impossvel. O filho do

governador, lvaro da Costa, conduzindo tropas bem armadas venceu um

combate em Piraj; os ndios fugiram para as bandas do Rio Vermelho.

Ali continuaram a lutar at o combate decisivo de Itapu, quando os

silvcolas foram obrigados rendio. Ao filho do governador foram

dadas as terras dos ndios 'revoltosos, alm das honras que a Corte lhe

conferiu. As ndias ficaram para os soldados portugueses bem armados.

Depois os negros vindos da frica substituram os ndios na escravido.

Existem ainda alguns cretinos to salafrrios que dizem que a abolio

se deve bondade da casa reinante do Brasil, ao suposto bom corao de

Dom Pedro II e da Princesa Isabel, sua filha. Isso desconhecer no

apenas as condies econmicas do Brasil de ento, como esconder,

criminosamente, a longa batalha que os negros lutaram pela sua

libertao. Foram muitos os levantes de negros em todo o Brasil. Nas

senzalas brasileiras no lhes corria vida to doce como nos querem

fazer crer certos historiadores interessados em apresentar os senhores

de escravos como santos de aurola vista. Os negros se bateram muitas

vezes pela sua libertao. Como esquecer a epopia imortal de Palmares?

Sucederam-se na Bahia os levantes de necrns Ac ,.-:.---da letrado,

sobre movimentos libertrios: "Em 4 de janeiro de 1809, em uma quarta

feira, levantaro-se os Negros Africanos nesta cidade, de q'. se teve

notcia no dia de quinta feira pelos grandes estragos q'. eles iam

fazendo pelos Caminhos da Boiada, queimando casas quantas encontravo

nos mesmos caminhos, sendo o nmero dos ditos Negros pa. mais de

tresen-tos segundo listas das faltas q'. dero os Senres. dos ditos

Negros, e logo no dia mediato viero presos 30 alm dos feridos pela

grande resistncia q'. fisero, e da mesma forma nos mais dias sendo

muitos presos; e tambm fisero o mesmo levante em Nasareth das Farinhas

donde tambm muitas mortes. Caso extraordinrio, q'. logo o Senr.

Conde, Governador desta cidade deo ordem q'. matassem a todos quantos se

no quizessem entregar Conde da Ponte , sendo castigados os q'. no

eram cabeas, a correr pelas ruas tanto fmeas como machos, no servio

do desentulho da praa da quitanda de S. Bento donde depois foi a casa

da opera". Ainda no havia transcorrido um ano e j os negros se

levantavam outra vez, em fevereiro de 1870. 150 aoites levou cada um

dos que se revoltaram, excetuando os cabeas cujo triste fim se pode

imaginar qual foi. Em 1826 um poderoso levante de negros abalou

novamente a Bahia. Durou vrios dias de encarniada luta entre os negros

e a tropa e somente depois da priso do chefe dos revoltosos, a quem

haviam dado o ttulo de Rei dos Negros, que voltou a cidade calma

habitual. O chefe negro foi feito prisioneiro quando j no podia lutar,

todo crivado de balas. Esse levante aconteceu a 25 de agosto de 1826 e

j em 17 de dezembro do mesmo ano novamente os negros tomaram das armas

roubadas aos senhores. Em 11 de maro de 1828, novo levante. E assim,

heroicamente, tenazmente, lutavam os negros pela sua liberdade. Em 1832

houve a grande revolta dos negros males. Negros com um nvel de cultura

em muitos pontos superior ao dos senhores de escravos, maometanos,

ligados me-ptria, os males eram uma fora e em 1832 levantaram-se

contra sua desgraada condio de escravos. Chefiava a revolta o aluf

Licut e mais de mil e quinhentos negros puseram-se s suas ordens. A

luta foi das mais sangrentas e a revolta dos escravos males ter- 26

minou afogada em sangue. Os senhores de escravos vingaram-se de maneira

violenta, castigando barbaramente os negros revol-tosos. De toda essa

agitao resultou a Sabinada que pretendia estabelecer a Repblica da

Bahia. Sob a chefia do Dr. Sabino Alvares da Rocha Vieira, a famosa

revolta baiana foi precedida, em 1788, por um levante de mulatos que

desejavam a Repblica Bahiense. Quatro desses conspiradores morreram na

forca, na Praa da Piedade. Os demais foram deportados para Angola. O

que caracteriza a Sabinada o seu carter acentua-damente democrtico e

popular. O movimento revolucionrio baiano teve o apoio das massas

pobres. Combatido pelos latifundirios, pela aristocracia do acar,

pois trazia o germe de novas idias sociais, foi talvez o movimento

revolucionrio de tendncias mais avanadas de quantos se processaram

no Brasil de ento. No Campo da Plvora foi arcabuzado o padre Roma. O

heri da Revoluo Pernambucana fugiu para a Bahia e seu sangue ilustre

correu em nosso cho, regou o solo baiano. Na Bahia deram-se as batalhas

decisivas da Independncia. Quando Pedro I declarou o Brasil desligado

de Portugal e foi dormir com a Marquesa de Santos, em So Paulo, os

baianos tomaram das armas, na Capital e no Recncavo, e concretizaram a

Independncia, deram realidade ao Grito do Ipiranga. Um ano depois da

proclamao da Independncia estavam os baianos expulsando os ltimos

soldados lusos que ainda tentavam manter sob o jugo de Portugal as

terras do Brasil. Em 2 de julho de 1823 as tropas liberadoras entraram

triunfantes na cidade da Bahia. ALUF LICUT: O ESQUECIDO Dos

personagens histricos brasileiros, o meu preferido. O mais esquecido de

todos, enterrado em cova funda pelos senhores de escravos, de l ainda

no foi retirado para as pginas da histria, nem da que se escreve com

H maisculo e em geral se ocupa apenas das personalidades oficialmente

consentidas e consagradas, nem mesmo daquela outra histria, mais

verdadeira, feita margem da aprovao das classes dominantes. 27 Dos

heris brasileiros que lutaram contra a escravido negra, bem poucos so

lembrados. De qualquer maneira Zumbi dos Palmares (ou a legenda dos

Zumbis) rompeu, devido talvez violncia romntica da revolta, a

conspirao do silncio. Ocupou palcos de teatro, pginas de romance,

vive na imaginao do povo. Do aluf Licut quem conhece o nome, os

feitos, o saber, o gesto, a face de homem? Comandou a revolta dos negros

escravos durante quatro dias e a cidade da Bahia o teve como seu

governante quando a nao mal acendeu a aurora da liberdade, rompendo

as gri-lhetas, e empunhou as armas, proclamando a igualdade dos homens.

No sei de histria de luta mais bela do que essa do povo mal, nem de

revolta reprimida com tamanha violncia. A nao mal no era apenas a

mais culta entre quantas forneceram mercadoria humana para o trfico

repugnante, em verdade os escravos provindos dessa nao alcanavam os

preos mais altos, sendo no s os mais caros, tambm os mais

disputados. Serviam de professores para os filhos dos colonos,

estabeleciam as contas dos senhores, escreviam as cartas das iais,

intelectualmente estavam bem acima da parca instruo dos lusos condes e

bares assinalados e analfabetos ou da malta de bandidos degredados

longnqua colnia. O mais culto dos males era o aluf Licut.

Levantaram-se os escravos, dominaram e ocuparam a cidade. Logo

derrotados pelo nmero dos soldados e pela fora das armas, a ordem dos

senhores furiosos foi matar todos os membros da nao mal, sem deixar

nenhum. Homens, mulheres e crianas, para exemplo. Ordem executada com

requintes terrveis, para que o exemplo pesasse e perdurasse. Assim

aconteceu. A rpresso foi tamanha, to desmedida, que ainda hoje a

palavra mal continua como que maldita; ainda hoje a ascendncia mal

escondida, silenciada, quando j as razes do medo foram esquecidas. Da

revolta e de seu chefe pouco se sabe. Pedro Calmon tratou do assunto

numa novela que parece haver se tornado, ela tambm, vtima do diktat

dos escravagistas pois, sendo dos primeiros livros de mestre Pedrinho,

no tenho notcias de que haja sido reeditado. No mais, o silncio. o

caso de se perguntar onde esto os jovens historiadores baianos, alguns

de tanta 28 qualidade e coragem intelectual, que no pesquisam a revolta

dos males, no levantam a figura magnfica do chefe? Quando escrevi

"Tenda dos Milagres" andei no rastro difcil do aluf Licut, alguma

coisa consegui saber sobre sua nobre estatura de homem, bem-amado das

massas populares da cidade. Uma das cenas daquele meu romance, a do povo

reunido em frente cadeia quando da priso de Pedro Archan-jo,

baseia-se em fato sucedido com o lder mal. Tema para estudos

histricos que venham repor a verdade, redimir a nao condenada,

ressuscitar o aluf, retir-lo da cova funda do esquecimento na qual o

enterrou a reao escrava-gista. Tema para um grande romance, para um

poema bravio, para a arena e o palco, para as telas de cinema. Maldito,

o aluf Licut espera que venha proclamar na praa pblica, em meio ao

povo, sua fora, sua medida, sua presena de heri. Heri no somente da

nao mal, heri do povo brasileiro, heri da liberdade ainda hoje em

luta contra a escravido. O ARTISTA, O ESCRITOR E A MEMRIA DO GUERREIRO

A memria de Antnio Conselheiro est plantada no serto de Canudos,

brota cada manh do sangue derramado pelos camponeses em armas, na

caatinga feudal onde a misria fecunda jagunos e beatos. Na cidade da

Bahia, a memria de Antnio Conselheiro est viva na madeira e no livro.

Na madeira, no Solar do Unho onde se encontram as peas do acervo do

Museu de Arte Moderna e, entre elas, uma das obras maiores da escultura

brasileira, o Antnio Conselheiro, de mestre Mrio Cravo, onde a fora

in-dmita do guerreiro rural est talhada no tronco de jaqueira e dele

salta para o combate sempre renovado. Colocado no fundo da Capela um dia

maldita, pois ali ocorreu morte de homem, vive, inteiro, o gigante do

serto. No livro, nasce e renasce nos estudos de mestre Jos Ca-lazans,

a maior autoridade brasileira sobre a "guerra dos pobres" e seu

extraordinrio comandante. Numa srie admirvel 29 de ensaios da mais

alta qualidade, pela seriedade da pesquisa, pela inteligncia do

comentrio, pela preciso histrica e pela beleza literria, Jos

Calazans construiu outro definitivo monumento memria de Antnio

Conselheiro. Vista de vrios ngulos, a figura do taumaturgo sertanejo

se revela em sua mltipla riqueza na obra do ensasta. Falta apenas ao

escritor reunir os dispersos estudos, plaquetes, artigos, conferncias,

num volume onde toda essa fecunda matria se apresente coordenada,

dando-nos a medida exata do guerreiro. Recriada pelo artista e pelo

escritor, a memria de Antnio Conselheiro prossegue a guerra dos pobres

na cidade da Bahia. A BAHIA SE LEVA NA CABEA Passa gente carregando

coisas na cabea. A Bahia se leva na cabea. Odorico Tavares confirma:

"Quem chega a Salvador, v que ainda Atlas carrega seu mundo como nos

outros tempos: se no aos ombros, pelo menos na cabea." Donald Pierson

chegou a ver "uma carta levada cabea, trazendo uma pedra em cima para

que no voasse". As baianas levam seus tabuleiros com comida e frutas

num equilbrio impossvel! Num mesmo cesto, o negro velho vende verduras

e flores. Outro carrega um balaio de laranjas, o menino conduz uma penca

de bananas. Quatro mulatos fortes levam um piano, outro um caixo de

defuntos. Passam todos pelo Pelourinho, encruzilhada da cidade. Pela

manh, nas esquinas, os ebs, os feitios ameaadores, anunciam

vinganas de amor. Nessas esquinas Exu arma suas trampas, h quem diga

que durante o dia ele se esconde na Igreja do Rosrio dos Negros, no

fundo dos altares, por detrs dos santos. Quando sai, arma fuzu,

derruba balaios, provoca quedas. Mas se acalma com um gole de cachaa e

o povo continua levando a Bahia na cabea. -* IMPORTNCIA DA CULTURA

POPULAR O importante na Bahia o povo. De uma fora vital sem medida,

artista de nascena, senhor da gentileza, capaz de 32 s piores condies

de existncia e seguir adiante, riso e a festa, criador de civilizao e

de cultura, o no marca e atesta toda a obra da criao aqui reali- o de

encontro de raas e costumes, primeira capital do e famosa nos inicios

da nao brasileira, porto aberto s do mundo, s idias e aos

forasteiros, tais condies :am a mestiagem e o sincretismo cultural (e

religioso), metrao de fontes e correntes de pensamento na mis- sangues

negro, branco, indgena mistura sempre e at tornar-se a

caracterstica dominante do panorama lando Bahia uma poderosa cultura

popular, evidente ;rsos aspectos da vida do Estado, estuante na Capital.

os alimentamos todos os que aqui criamos literatura ais de uma vez

escrevi ser a frica o nosso umbigo. Como lidade, maneira de ver a vida

e o mundo, forma de reagir mtecimentos, de viver e conviver, de pensar e

agir, somos lenos to africanos quanto ibricos. Definitiva foi a con-

:o dos negros para a formao de nossa cultura nacional. r das

terrveis, monstruosas condies em que a cultura se encontrou no Brasil

ao desembarcar dos navios ne- is nas condies de cultura de escravos,

vilipendiada, ezada, combatida morte, violada, cuja substituio ita,

na base do cacete e do batismo, foi tentada quando os ires de escravos

quiseram impor aos negros, ntegra, a cul- dos colonos, da lngua aos

deuses. A fora de vida dos negros foi mais forte do que o chicote e ua

benta, conseguindo manter viva e permanente, em meio crveis condies

da escravido, uma face original, mes- do-a no correr do tempo s duas

outras matrizes da nao iileira, para dar como resultado a

originalidade da cultura .tia do Brasil, nica talvez no mundo. Tudo

aqui se mis- 3u, as lnguas faladas na casa-grande, na senzala e na

mata, santos vindos da Pennsula Ibrica, os orixs chegados da ica, as

iaras e os caboclos retirados da floresta e dos rios. atos somos,

Senhor do Bonfim e Oxal sejam louvados, IX a um, . vidos, pela boca

(culinria to nu, w,----- netra sentidos adentro, determina a criao

literria e artstica, sua viga mestra. Determina, assim, a condio

nacional da literatura e da arte: carter popular presente mesmo na obra

mais refinadamente intelectual. OS POETAS, OS FICCIONISTAS E OUTROS

LITERATOS Para o visitante desejoso de completar seu conhecimento da

terra e da gente, aqui vo alguns nomes de poetas, romancistas,

contistas, cronistas, ensastas, e ttulos de livros importantes. Lista

certamente incompleta, um ou outro autor, esse ou aquele livro, deixando

de ser citado, injustamente esquecido. Os prprios visitantes podem

completar a relao, s perguntar ao livreiro Dmeval Chaves,

latifundirio do livro na Bahia, ele conhece todos os autores baianos e

inclusive os edita. Assim vale a pena de logo louvar a Coleo Itapu,

editada por ele, onde esto publicados ensaios sobre temas baianos

indispensveis, a comear pelas "Cartas de Vilhena", terminando num

delicioso livro de Hildegardes Viana sobre costumes da Bahia. Falamos da

Editora Itapu, cita-se igualmente a Macu-nama, editora de escolhidos

volumes de poesia, em edies restritas para assinantes, todas elas

ilustradas pormestre Calasans Neto. Vale a pena buscar e adquirir os

volumes que por acaso no estejam esgotados: poesia de Godofredo Filho,

de Florisval-do Matos, de Odorico Tavares, de Myriam Fraga, de Capinam,

poetas todos de alta qualidade. Acrescente-se aos volumes de poesia os

lbuns de gravura de mestre Calasans, com textos de Vincius de Moraes,

James Amado, Antnio Celestino,Glauber Rocha, Guido Guerra e desse vosso

criado. Admirvel o trabalho realizado pela Macunama. A Editora Janana

no prosperou, mas nos deixou a edio da Obra Completa de Gregrio de

Matos, nosso pai, reunida, comentada e analisada por James Amado. O

prefcio e o pos-fcio constituem definitivo estudo da obra e da figura

do poeta e cidado brasileiro Gregrio de Matos. 35 I Os Poetas is,

pela obra de Gregrio, na edio Janana, devemos o conhecimento

literrio da Bahia. Gregrio de Matos )rimeiro poeta e o principal,

assentou as bases da nao v, riu uma gargalhada que ainda hoje ressoa

em nossos s, denunciou os nobres, os padres, os opressores, com asco e

graa, abriu caminhose nos criou a todos. m seguida, Castro Alves, o

moo de gnio, libertando es- i, derrubando a monarquia, na fora do

verso. Era a ia liberdade restituindo a praa ao povo e foi o canto de

mais belo at hoje composto sob os cus do Brasil. Da lade e do amor,

ele soube tudo e tudo nos ensinou. L^eiam os poetas Junqueira Freire,

Artur de Sales, Pedro ;rry, Francisco Mangabeira, Pinheiro Viegas,

Pethion de de alguns ser difcil obter os livros h muito esgotados

o mais reeditados. possvel talvez encontrar um exemplar da "Obra Po-

', de Sosgenes Costa. Difcil obter a "Balada de Ouro o", a "Balada da

Dor-de-Corno", os demais livros rars- ds de mestre Godofredo Filho,

inclusive o embriagador ime dos "Sete Sonetos dos Vinhos", dos sete

licorosos. ando finalmente ser lanada uma edio completa de sua sia,

destinada ao grande pblico? Difcil, no impossvel, encontrar nas

livrarias a "Face ulta", de Carvalho Filho. Ainda mais difcil os livros

de 2mas de Hlio Simes. Os grandes nomes do modernismo scisam

providenciar urgentemente a reedio de seus livros. agora Alves Ribeiro

rene em volume seus magnficos so- tos. Onde os livros de Eurico Alves,

de Brulio de Abreu, cuja >esia hoje poucos conhecem? Tambm Florisvaldo

Matos, Joo Carlos Teixeira Gomes, tyriam Fraga e Fernando da Rocha

Perez, jovens mestres da aesia, necessitam de edies para o grande

pblico, rompendo 5 estreitos limites do livro de luxo. Jacinta Passos,

Wilson Locha, Ildsio Tavares. Capinam, Carlos Eduardo da Rocha, antos

Moraes, Cid Seixas, Carlos Cunha, Ruy Espinheira nlho, Jeovah de

Carvalho, Antnio de Jesus Saldanha, excelen- e poeta que exerce a

profisso de barbeiro, Carlos Ansio *" -,.. A viso da riqueza

artstica da Bahia que nos dada pelos Museus se completa com a

indispensvel visita a determinadas colees. A extraordinria coleo

reunida por Alberto Martins Catarino foi conservada por sua viva e seu

filho, o Professor de Direito Jos Catarino. Coleo rica especialmente

em jias e p rataria. As colees de cermica mais notveis so as do

Sr. Otvio Machado porcelana da Companhia das ndias e a do Sr.

Ansio Massora, de loua chinesa. Os senhores Pedro Ribeiro, Clemente

Mariani, Arnold Wildberg, Elsio Lisboa e Matias Bittencourt possuem as

melhores colees de prataria e de ourivesaria. Quanto imaginria, as

colees mais importantes so as de Odorico Tavares e de Mirabeau

Sampaio, ambas selecionadssimas, com peas de grande valor, sendo a de

Odorico sobretudo de santos barrocos e a de Mirabeau de santos

primitivos, muitos deles obras de santeiros populares baianos dos

primeiros perodos. Outra belssima coleo de imaginria: a do

Professor Orlando Castro Lima, especializada em santos de marfim. E

terminemos falando na coleo de leos, guaches, desenhos e gravuras de

propriedade do mesmo poeta Odorico Tavares, j dono de to numerosa

imaginria, de tantas e tantas peas valiosas. No sei se existe em

todo o pas uma outra coleo particular que se lhe possa comparar em

matria de pintura brasileira moderna. S os leos e desenhos de

Portinari valem uma fbula, sem falar nos Pancetti, nos Di Cavalcanti,

nos Djanira, nos Manabu Mabe, nos Scliar. Pintura, grande pintura,

sobrando das paredes, das arcas, dos bas, enchendo os armrios. Possui

ainda preciosa coleo de primitivos baianos: Willys, Joo Alves,

Cardoso e Silva, Rafael. Uma grandeza na casa fraternal do morro do

Ipiranga, colina que o lugar mais gr-fino, a moradia mais cara da

cidade, um jardim de casas de todo conforto, modernssimas, vizinhos

selecionados a dedo. Dali se descortinam o mar e a cidade, viso que

fala aos olhos e conforta a alma. Pois bem: o povo pobre, precisando

viver e amando o belo, comeou a invadir o morro pela outra encosta e

j chegou s vizinhanas dos ricaos. Outro dia uma senhora da Graa, ao

contratar uma lavadeira, lhe perguntou: "Onde voc mora?" Olhando-a de

cima, com seu ar manso, sua voz dengosa, a mulata respondeu modesta

porm superior: Moro no Jardim Ipiranga, sou vizinha do Doutor

Odorico. PORTINARI E PANCETTI Na matriz do Banco da Bahia, na cidade

baixa alm da srie magnfica das esculturas em madeira representando

os Orixs, de autoria de Caryb, da qual se trata noutra parte deste

livro o visitante pode admirar uma inestimvel coleo de mais de 40

telas da fase baiana de Pancetti, cada qual mais bela. 116 Completando

os tesouros de arte acumulados no tradicional estabelecimento bancrio

por Clemente Mariani e Fernando Ges, ali existe monumental painel de

Portinari: "A Chegada de Dom Joo VI ao Brasil." No sei se estas obras

de Portinari e Pancetti esto expostas visitao pblica, mas posso

garantir que Geraldo Danne-mann e Slvio Mascarenhas, diretores do

Banco, gente de primeira, no negaro ao visitante desejoso de v-las e

admir-las a entrada s salas onde se encontram o painel do mestre

paulista e os quadros do inquieto marinheiro que viveu na Bahia os

ltimos anos de sua vida. 117 T O POVO EM FESTA

OU YANS A festa de Santa Brbara ou de Yans tem seu centro no Mercado

do mesmo nome, na Baixa dos Sapateiros. Muita cachaa, um grande torneio

de capoeira. Inicia-se com uma missa em honra da santa, na Igreja de

Nossa Senhora do Rosrio dos Negros, no Pelourinho, voltando depois

todos os assistentes e mais os adesistas para o Mercado, em ruidosa

procisso. Em meio notvel imundcie desse Mercado da Baixinha,

venera-se uma imagem de Santa Brbara, em sua honra re-picam os violes

e batem os pandeiros. O Mercado se transforma num nico samba, onde

danam todos, os que ali tm barraca, os convidados, os penetras, as

baianas. A comida farta e a cachaa mais farta ainda. Para esta festa

so escolhidos padrinhos entre a gente importante da cidade. Realiza-se

a 4 de dezembro, precedendo da Conceio da Praia, que oficialmente

inaugura o ciclo das festas populares. FESTA DA CONCEIO DA PRAIA A

data 8 de dezembro mas, em verdade, ela dura toda a semana, precedida

de novenas. Em frente ao Cais Cairu armam-se as barracas clssicas. Na

bela Igreja da Conceio da Praia rezam as velhas beatas. No largo em

frente, a multido se diverte. Esta festa a preferida dos capoeiristas

que se espalham, em torno da Igreja e do Mercado, em demonstraes de

qualidade e competncia, exercitando-se na vista da multido,

acompanhados pela msica dos berimbaus e dos chocalhos. Ali se misturam

martimos, feirantes, barraqueiros, vendedores de frutas com o povo

vindo de longe para a folia. Nossa Senhora da Conceio Yemanj, no

sincretismo afro-brasileiro. A festa da Conceio da Praia inicia o

ciclo das festas populares que se estendem pelo vero, da Conceio da

Praia ao Carnaval. 120

_~ ~~, x^ dakARA OU YANS A festa de Santa Brbara ou de Yans tem seu

centro no Mercado do mesmo nome, na Baixa dos Sapateiros. Muita cachaa,

um grande torneio de capoeira. Inicia-se com uma missa em honra da

santa, na Igreja de Nossa Senhora do Rosrio dos Negros, no Pelourinho,

voltando depois todos os assistentes e mais os adesistas para o Mercado,

em ruidosa procisso. Em meio notvel imundcie desse Mercado da

Baixinha, venera-se uma imagem de Santa Brbara, em sua honra re-picam

os violes e batem os pandeiros. O Mercado se transforma num nico

samba, onde danam todos, os que ali tm barraca, os convidados, os

penetras, as baianas. A comida farta e a cachaa mais farta ainda.

Para esta festa so escolhidos padrinhos entre a gente importante da

cidade. Realiza-se a 4 de dezembro, precedendo da Conceio da Praia,

que oficialmente inaugura o ciclo das festas populares. FESTA DA

CONCEIO DA PRAIA A data 8 de dezembro mas, em verdade, ela dura toda

a semana, precedida de novenas. Em frente ao Cais Cairu armam-se as

barracas clssicas. Na bela Igreja da Conceio da Praia rezam as

velhas beatas. No largo em frente, a multido se diverte. Esta festa a

preferida dos capoeiristas que se espalham, em torno da Igreja e do

Mercado, em demonstraes de qualidade e competncia, exercitando-se na

vista da multido, acompanhados pela msica dos berimbaus e dos

chocalhos. Ali se misturam martimos, feirantes, barraqueiros,

vendedores de frutas com o povo vindo de longe para a folia. Nossa

Senhora da Conceio Yemanj, no sincretismo afro-brasileiro. A festa

da Conceio da Praia inicia o ciclo das festas populares que se

estendem pelo vero, da Conceio da Praia ao Carnaval. 120 PROCISSO DE

NOSSO SENHOR BOM JESUS DOS NAVEGANTES A festa de Nosso Senhor dos

Navegantes comea na vspera; pode-se mesmo dizer: comea no ano

anterior pois sendo uma festa de primeiro de janeiro, dia de ano-novo,

se inicia na tarde de 31 de dezembro quando a imagem de Bom Jesus

trazida da sua formosa igreja da Boa Viagem, onde os azulejos contam

seus milagres e assombros, salvando nufragos e navios, para a Igreja

da Conceio da Praia, na qual a Virgem, sua Me, o espera. Um e outra,

o Senhor dos Navegantes e a Senhora da Praia, so transposies

catlicas do mito de Yeman-j, dona das guas. Pelo mar tranqilo do

golfo, com acompanhamento de saveiros, de barcas e barcaas, canoas,

pequenos navios pejados de gente, ruma o santo para o Cais Cairu, em

frente ao Mercado Modelo, para a visita familiar, retorna no dia

seguinte. No ciclo das festas populares da Bahia, todas elas nascidas

de nossa democracia racial, a procisso do Senhor dos Navegantes a de

maior densidade catlica. j&\ Na cidade do Salvador da Bahia de Todos

os Santos, as cores, as coisas, os sentimentos, os ritos, os deuses so

misturados, nossa verdade a mistura de raas, de culturas, de crenas,

de ritmos, de alegrias e dores, de lutas de escravos males, gges,

nags, congos e angolas, para criar a nao brasileira, original e

nica, civilizao e cultura mestias, a luminosa face de nosso povo.

Na galeota do Senhor dos Navegantes viaja tambm Yemanj. 122 A volta do

santo para a Boa Viagem, acompanhado at o cais de embarque pela Virgem

da Conceio, a mais bela procisso martima que se possa imaginar, o

mar coalhado de barcos e cantos. Misturam-se o negro e o branco, o

barroco e o primitivo, a confraria religiosa e o afox dos Filhos de

Gandhi, os orixs e os santos das igrejas, Exu e o Co, e ora predomina

um som da frica ora uma nuance azul de Portugal. Na procisso do Bom

Jesus em sua galeota, o acento catlico, embora por detrs do manto

do Senhor esteja o abeb de Janana. OS TERNOS DE REIS Esta uma festa

antiga, festa de rua, ntima, nascida nos bairros, quase familiar. o

teatro e o bale dos pobres, a representao dos mistrios de Belm na

transposio afro-baiana. No dia 5 de janeiro, dia dos Reis Magos, os

ternos, os pastoris, os bumba-meu-boi desfilam pelas ruas da cidade.

Alguns desses ternos so centenrios e sua frente vm ancies de

sofrida estrada. "Sol do Oriente", "Terno da Terra", "Terno da Sereia",

da "Estrela Dalva", do "Bacurau" iluminando com suas pobres lanternas a

noite da Bahia. Nada mais pobr.e do que as luzes dessas lanternas de

papel, nada mais ingnuo que o recitativo e o canto dessas pastoras de

123 Deus em busca do presepe; nada mais dramtico do que o curtido rosto

desses homens idosos, que o tempo marcou de experincia, na labuta

difcil, na longa travessia da vida e do amor. Nada mais poderoso que

esse povo da Bahia a quem a misria, a fome, a molstia, as incrveis

condies no abatem, no vencem, no liquidam. Superando toda

desgraa, o povo da Bahia sobrevive e constri seu duro caminho, luta,

trabalha, sofre e ri, invencvel em sua fora interior, em sua

capacidade de viver. Os Ternos de Reis acendem as lanternas das

pastoras na festa do povo. LAVAGEM DA IGREJA DO BONFIM Na manh da

terceira quinta-feira de janeiro todo o povo da Bahia se encaminha para

a colina do Bonfim, onde est a Igreja do santo mais popular da cidade,

santo que no dizer do Padre Barbosa, sacerdote e literato, membro da

Academia de Letras est por cima de todas as divergncias religiosas e

polticas. Eis uma verdade: Senhor do Bonfim no exclusivo de nenhuma

religio. Sua festa, que dura oito dias (sendo que os trs ltimos

parecem um carnaval), tem muito de fetichista: mestre Edison Carneiro a

considera a "maior festa fetichista do Brasil". Para os negros o Senhor

do Bonfim Oxoluf, ou seja Oxal-velho, Oxal na sua maior dignidade.

A Igreja do Bonfim possui uma sala cheia de ex-votos. H muitos anos que

esse santo faz milagres espantosos. Salva nufragos, cura leprosos,

tsicos e loucos, fecha ferida de bala e afasta no ltimo instante

lminas de punhais assassinos. Retratos s dezenas, pernas, mos, braos

e cabeas de cera, lembranas de acontecimentos terrveis, enchem essa

sala enlou-quecedora que o mais estranho museu que se possa imaginar.

Oferendas ricas e oferendas pobres, grandes milagres e pequenos

milagres: Nosso Senhor do Bonfim faz chover, contm as enchentes dos

rios, protege as plantaes e evita as epidemias. Note-se que no um

santo muito popular entre o clero j que o arcebispado faz tudo que

possvel para evitar os festejos com que a populao celebra a festa do

Bonfim. Talvez porque seja ele to do povo e democrtico, to sem

preconceitos 124 religiosos, virando deus negro nas seitas africanas,

santo do samba e da capoeira. As festas do Bonfim duram oito dias, mas

seu maior momento sem dvida a quinta-feira da lavagem. Apesar do

sbado e do domingo com seus ranchos na colina, mistura de festa de

reisado e de carnaval, apesar da segunda-feira da Ribeira com suas

comidas, suas festinhas familiares, sua cachaa farta e fcil. Ainda

assim o maior espetculo a lavagem da igreja com a procisso que a

precede. A procisso da lavagem sai da Igreja da Conceio da Praia. A

multido se aglomera em frente ao Elevador Lacerda e ao Mercado Modelo.

Quem nunca viu esta procisso da lavagem do Bonfim no sabe os segredos

da poesia. Talvez por um milagre a mais do Senhor do Bonfim, talvez

porque no seja mesmo hbito chover no vero baiano, a verdade que a

manh desta quinta-feira sempre esplndida de luz. No cais prximo os

pequenos e lricos saveiros bordejam os grandes navios, cargueiros e

transatlnticos. H um ar de festa nas ruas comerciais e os rostos dos

homens se abrem em sorrisos. Sim, porque quem no a viu, jamais poder

imaginar a surpreendente beleza desta procisso. Primeiro direi que h

uma harmoniosa confuso de msicas e cnticos, onde cantos religiosos em

estropiado latim se misturam aos cnticos em iurub das macumbas. Mas,

ah! 125 existem devotos que vivem na bomia e no sabem nem os cnticos

ilustres da igreja nem as canes em honra de Oxoluf. Ainda assim so

devotos do Senhor do Bonfim e desejam cantar para o santo, qualquer

msica em sua homenagem. E cantam ento sambas e marchas, gemem as

violas, as cucas, os cavaquinhos. Mas tudo em louvor do santo e

nesta quinta-feira o pecado no existe nas ruas da cidade da Bahia. Vm

as filhas-de-santo dos diversos candombls, com suas saias engomadas de

muita roda, suas anguas e seus turbantes, carregadas de flores. Sobre

as cabeas, num equilbrio quase milagroso, os cntaros, as bilhas, os

potes e os moringues. Filhas-de-santo de todos os candombls da cidade,

da Gomia, do Bate-Folha, do Engenho Velho, do Gantois. Vestidas todas

de branco, a cor de Oxal, levam para o santo as coisas mais puras do

mundo: a gua e as flores, a alegria tambm. O canto das baianas, onde

ressoam atabaques e agogs, lembra os cantos de guerra dos caadores

negros nos desertos da frica. Em fila, carregando galhos sagrados de

pitangueiras, seguem-se os baleiros, os vendedores de queimados, doces

e chocolates. Conduzem ramos de folhas, formam com as baianas a guarda

de honra do Senhor do Bonfim. E vm os aguadeiros, em jumentos e

carroas. Dizer jumentos e carroas dar uma triste e falsa idia do

que esse espetculo. Os jumentos desaparecem sob papel de seda

recortado coisa to lrica nunca se viu! as carroas desaparecem sob

as flores, to variadas e to numerosas. No so carroas, so carros

florais de primavera, no so jumentos, so animais sim- 126 blicos e

lendrios. Nunca se reuniu no mundo tanto colorido, tanta graa e tanta

alegria. O branco predomina nos trajes, em honra ao pai dos orixs, mas

encontram-se todas as cores nos papis pintados, nos desenhos dos

tabuleiros, nas flores sobre as bilhas, os moringues, os potes. Ah! a

seduo dessas bilhas, destes potes, destes moringues... As frutas da

Bahia, mangas, laranjas, sapotis, abacaxis, esplndidas, saltam dos

tabuleiros, so para o santo. Porque Senhor do Bonfim, como os orixs

negros, recebe presentes de frutas nos ritos africanos. Eis um povo

irredutvel, impondo sua festa! A massa popular, muita gente de ps

descalos pagando promessas, serpenteia pelas ruas comerciais da cidade

baixa, em direo colina do Bonfim. Se o visitante tiver sorte ou

conhecidos poder talvez conseguir lugar num dos caminhes que

acompanham a procisso. Distante fica esta colina do Bonfim para onde

vai a multido lavar a igreja. Se o fervor religioso no to grande

quanto a caminhada, ento um caminho, dos vrios que acompanham a

procisso, poder servir de transporte. No aperto da conduo incmoda,

sem dvida o turista cantar como fazem os demais passageiros, pouco

ligando falta de espao. Cantam msicas de Dorival Caymmi que falam

no mar da Bahia e em Yemanj. S existem dois instrumentos: uma gaita

que ningum ouve e um berimbau de capoeira. Mas que importa? O principal

cantar. Uma velha murmura oraes numa promessa estranha. Parece o

delrio, mas apenas a festa da lavagem do Bonfim, a procisso em busca

da colina. Perder a voz quem tente acompanhar a cadncia do berimbau

mas o visitante sair do caminho amarrotado e satisfeito, cheio dessa

pura alegria do povo. Estar no alto da colina pronto para a lavagem da

igreja. Vo correr as guas de Oxal, na lavagem de sua igreja catlica.

noite a festa ser no terreiro de candombl. Senhor do Bonfim e Oxal

so um nico deus do povo baiano. Uma portaria do arcebispo probe

indefectivelmente a lavagem no interior da igreja. sempre uma portaria

zangada, sem poesia, sem pitoresco, rgida e sem graa. Ningum liga.

Certa baiana, de admirveis dentes brancos no rosto negro, disse que o

Senhor do Bonfim no aprova as tais portarias proibitivas. E a igreja

lavada toda, desde o altar-mor at as escadarias exteriores. A portaria

que se dane, amm! m Antes, porm, falemos do largo no alto da colina.

As barracas, de bandeirolas multicores de papel, se enfeitam tambm com

as cores do vatap amarelo-ouro, do caruru esver-deado, do ef negro,

do acaraj, do abar. As baianas servem a comida nos pratos de flandres

e barro. Tabuleiros de mangas e umbus, de abacaxis, de laranjas e os

refrescos de frutas, uma fartura de comida, a mais gostosa do mundo, uma

fartura de cores. O largo cheio de barracas, mais atrs os divertimentos

ingnuos: o circo de cavalinhos, a roda-gigante. Mas a praa se esvazia

quando a charanga inicia um samba, anunciando que vai comear a lavagem

da igreja. As autoridades ficam ao lado do altar. Um padre estrangeiro

e antiptico pede respeito, a verdade que o povo est perfeitamente

respeitoso. S que o padre amargo no sabe distinguir desrespeito de

alegria. As filhas-de-santo chegam para perto do altar. A multido

enche a igreja onde as vassouras se elevam e onde as bilhas e os potes

so lindos sobre os turbantes das negras e mulatas. Essa baiana to

branca nasceu na Espanha e veste as roupas populares da Bahia, fugiu

talvez de um poema de Garcia Lorca, vai-se ver Dona Amlia Fernandez,

senhora rica, da alta sociedade (e pintora). De todas as partes chegam

bilhas de gua enfeitadas com papel de seda, cobertas de flores. Junto

ao altar se acumulam os tabuleiros de frutas trazidas para o Senhor do

Bonfim. A gua derramada na igreja e as baianas comeam a lavar o

mrmore sagrado. Comeam tambm os vivas que enchem a nave, vivas aos

santos e aos orixs. Senhor do Bonfim est acima das divergncias

polticas e religiosas. um santo democrtico. Os torsos das baianas

movem-se ritmicamente no trabalho de lavar a igreja. Parece um bailado e

logo os cnticos negros se elevam. uma imensa macumba, festa

fetichista na igreja catlica! L fora as barracas tm nomes como

versos. A multido vem comer as comidas gostosas. Dentro da igreja as

bilhas, os potes e os moringues derramam a gua pura das fontes em

honra do santo popular. Assim a lavagem da Igreja do Bonfim na

quinta-feira. Mas a festa dura uma semana inteira e s termina na

Ribeira, na noite de segunda, numa festa de largo e em dezenas de

festas familiares. como um carnaval, mas parece tambm um reisado.

Talvez porque fique antes do carnaval e depois das festas de Reis. 128

SEGUNDA-FEIRA DA RIBEIRA Os folies amanhecem na Ribeira, numa espcie

de pequeno carnaval, de alegre anncio da grande festa, em seu primeiro

episdio, aps a noite insone no domingo do Bonfim. a segunda-feira

da Ribeira, tpica folia de bairro que s terminar no dia seguinte,

tera-feira, quando os choferes, ali na pennsula, sadam seu padroeiro,

So Cristvo. O samba de roda, na festa da Ribeira, j adquire um ritmo

carnavalesco, os blocos vo substituindo os grupos de capoeira, mas as

barracas permanecem as mesmas. Vm da festa da Conceio da Praia, em

dezembro, estiveram no Bonfim, hoje na Ribeira, amanh estaro no Rio

Vermelho. Tambm os folies so os mesmos: o povo da Bahia de mos

dadas na roda de samba, canto poderoso e livre. FESTA DE YEMANJ No

calendrio das festas populares da Bahia ganham relevo especial as do

ciclo do mar. Erguida numa pennsula, cercada de mar, terra de

pescadores, paisagem de barcos a vela, a Bahia tem uma rainha: Yemanj,

a senhora das guas, poderoso orix 129 de candombl, sereia de cinco

nomes, Dona Janaina, Yna, Y, Rainha de Aiok. Ela reina sobre esse

imprio das guas, do mar, dos lagos e rios, dirige os ventos, desata

os temporais. Me e esposa dos pescadores, seu amor supremo, seu desejo

impossvel. " doce morrer no mar, nas ondas verdes do mar", cantam os

mestres de saveiro pensando em Dona Janaina de longos cabelos

perfumados e olhos de naufrgio. Veio ela da frica para a Bahia de

Todos os Santos na esteira dos navios de escravos, nos gemidos dos

negros. Aqui estabeleceu para sempre sua morada. Suas mltiplas moradas

pois ela habita em diversos lugares desse mar baiano: nas runas do

Forte da Gamboa, no Rio Vermelho, na Barra na velha fonte em meio s

pedras da praia em Monte Serrat ao sop do forte, em Itapu, no Dique,

na Pituba e era Itaparica. Onde haja pescador ou martimo ela est com

seu amor e sua seduo. Duas festas martimas se destacam no ciclo de

Yemanj. A primeira a procisso de Nosso Senhor Bom Jesus dos

Navegantes, no dia primeiro de janeiro. Nela predominam as marcas

catlicas no sincretismo religioso da Bahia. A segunda a procisso de

Yemanj, no Rio Vermelho, onde predominam os elementos fetichistas. Os

pescadores cantam: "Vou pegar minha jangadinha vou me embora veleja..."

Os poderes de Yemanj so grandes e seus filhos e filhas o povo do mar

vivem a lhe trazer presentes, a cumprir obrigaes. Nos sbados, dia

de Janaina, os sabonetes e pentes, os vidros de perfumes e as cartas

com os pedidos so depositados em guas onde ela descansa: flores no

Dique, em Monte Serrat, velas acesas nos rochedos, nas praias. Sua

grande festa, porm, a maior de todas, a mais solene e bela, a de dois

de fevereiro, no Rio Vermelho. o dia dos presentes dos pescadores

sua rainha. O povo do mar e das casas-de-santo se rene no Largo de

SanfAna, onde a igrejinha, to simples e branca, participa da cerimnia

animista. A festa, em realidade, comeou uma semana antes, durante a

qual, no Largo de barracas e luzes, a multido desfilou, danou, cantou,

bebeu, comeu, amou. No mistrio das noites e da distncia, roncam os

atabaques, ora prximos, ora quase inaudveis. Essa msica de deuses

primitivos se incorpora atmosfera do Largo. A cada noite o movimento

cresce. Finalmente, chega o dia dois de fevereiro, "dia de festa no

mar", como diz o trovador: "Eu quero ser o primeiro a salvar Yemanj".

Os atabaques agora roncam ali mesmo, na ponta de terra que penetra

pelas guas, rasgando o oceano: ali os pescadores construram a

casa-do-peso que tambm o peji de Yemanj. De toda parte, desde a

madrugada, desembocam as filhas-de-santo com seus trajes e colares

rituais, cada uma traz seu presente. frente do povo, obs e ogs:

mestre Caryb, Dorival Caymmi, Flaviano, chefe dos pescadores, Manuel

Bonfim, escultor vizinho do peji, o pintor Licdio Lopes e Mrio

Portugal, exportador de fumo e og do candombl de Mirinha do Porto.

Os presentes so cortes de fazenda, caixas de sabonete e p-de-arroz,

pentes, metros de fitas, anis, vidros de perfume, chinelas finas,

brincos, tudo quanto toca e corresponde beleza da mulher, pois

Janana vaidosa. As esposas dos pescadores, dos mestres de saveiro,

dos homens do mar, as que vivem no medo espera do retorno das

jangadas e das canoas, das frgeis embarcaes, alm dos presentes,

trazem cartas: escreveram seus pedidos, rogando pela vida dos seus

homens, por um mar de peixes e bonana. Para que Yna no ponha em seus

maridos olhos de desejo e no desate a tempestade. Porque Janana cada

ano escolhe os seus amados, aqueles com os quais partir para a festa

do amor, para npcias de naufrgio nas terras de Aiok. Braadas e

braadas de flores so levadas ao peji: os jardins da cidade, os pobres

e os ricos, se despiram para que todas as rosas nesse dia sejam para a

Sereia, para a Me-d'gua. O canto se eleva ao ritmo dos atabaques:

"Viva a Rainha do Mar Yna Princesa de Aiok Yna Viva a Rainha do

Mar. " No Largo, danam ranchos e cordes animados por pequenas

orquestras, danam folies, z-pereiras, zabumbas. uma festa

extremamente alegre, como, alis, todas as festas do 131 ritual

afro-baiano nas quais os deuses vm confraternizar com os homens, vm

danar e cantar com os seus filhos. No h tristeza na religio dos

baianos, tristeza coisa de branco: quanto a ns, povo mestio,

herdamos a alegria do negro. No peji, um peixe de madeira, enorme,

contm o presente nupcial, o da colnia de pescadores. Em grandes cestos

vo-se acumulando as outras oferendas, centenas de ddivas, algumas de

preo, a maioria formada por lembranas simples e baratas, pois o povo

pobre, imensamente pobre. Rico apenas da alegria, da disposio de

viver, rico tambm de gentileza e graa. As casas da vizinhana se

enchem de gente conhecida, vinda de todas as partes da cidade. A casa

bela e fraterna de Tibrcio Barreiros, na Ladeira do Papagaio, com

admirvel vista sobre a festa, recebe, com a fidalguia baiana, amigos e

parentes. Durante toda a manh, estende-se a fila ante a casa-do-peso:

homens e mulheres, cada um com seu presente para depositar nos balaios.

No meio da tarde, os presentes so levados para um saveiro, aps ter

dado a volta ao Largo de SanfAna, em meio aos cnticos e ao roncar dos

atabaques, iyalorixs e babalorixs, babalas e ogs puxam o cortejo,

seguidos pelas filhas de Yemanj, com suas contas transparentes como

gotas d'gua. Depois os martimos, os pescadores, a multido. A

multido anda para a praia, frente o peixe de madeira e os balaios com

os presentes. O saveiro, onde so depositados, assume o comando das

embarcaes. Jangadas .de todos os tamanhos, saveiros, barcos, lanchas,

canoas. Navios da Companhia de Navegao Baiana, iates embandeirados.

Cortam as guas, enfrentam as ondas, mar adentro, at onde Yna se

encontra cercada de peixes, vestida de ostras e algas. Oferecem-lhe os

presentes e formam um grande crculo em redor com os saveiros, as

jangadas, as canoas. Homens e mulheres atentos aguardam a deciso de

Ja-nana; tambm no Largo a multido fez silncio, na expectativa:

Yemanj aceitar ou no as ddivas de seus filhos? Se as aceitar, se as

recolher das ondas e as levar consigo ento esse ser um ano bom de

peixe e de navegao. Mas, se ela as desprezar, se, zangada, partir para

as terras de Aiok, ento ser de fria e morte, de tempestade e fome o

ano dos pescadores e martimos; de luto e dor para suas mulheres. Eis

que um clamor 132 irrompe dos saveiros e as mes-de-santo comandam o

canto de alegria: Dona Janana est recolhendo os presentes em seus

cabelos verdes, em seus braos de coral, em seu rabo de esca-mas, em

seus seios de espuma. Da terra respondem em aclamaes e a dana

recomea, o baticum, o samba de roda e a roda da capoeira. O mar coberto

de flores e, por entre elas, vai a formosa das formosas, a sedutora me

dos orixs, esposa dos martimos. No Rio Vermelho, a festa continua,

prolonga-se pela tarde e pela noite, entrar semana adentro at se

transformar em festa de Nossa Senhora de SanfAna, no domingo seguinte.

Orix de candombl ou santo de igreja tudo igual na devoo e na

alegria do povo. Quem tiver a sorte de assistir a essa festa de dois de

fevereiro, no Largo de SanfAna no Rio Vermelho (talvez das sacadas do

velho sobrado onde vive o pintor Jos de Dome), jamais a esquecer. A

dana o samba de roda, o makulel, o assombroso bale da capoeira

domina essas festas baianas, um bem coletivo e fraterno. Quem no

dana nas praas e nas ruas? Dana a moa adolescente, as ancas

modeladas pela cala elegante, dana a baiana sorridente com seu torso e

seu colar; na roda do samba danam crianas, jovens e velhos, h lugar

para todos. Nos bairros pobres, nos becos e ladeiras, nos terreiros, o

povo dana. Na Estrada da Liberdade, em Cosme de Faria, na Cidade da

Palha, no Corta-Brao, em So Caetano, nos bairros operrios, nas

invases, o povo dana e canta. Diverso alegre e barata. Para

acompanhar o samba de roda basta um prato e uma faca (ou garfo), quando

muito uma violinha. Se nada disso houver, no importa. As mos marcaro

o ritmo e de mais nada se necessita. CARNAVAL O carnaval da Bahia

considerado hoje o melhor carnaval popular de todo o Brasil e dezenas e

dezenas mais de uma centena de milhares de turistas deslocam-se de

todo o pas e at do estrangeiro para curtir a grande festa, que em

Salvador realmente uma festa do povo. O carnaval encerra o ciclo das

134 festas populares que se inicia em dezembro, com as festas de Santa

Brbara e da Conceio da Praia. Quais so as coisas que o folio s

encontra no carnaval da Bahia e em nenhum outro? Antes de tudo, os Trios

Eltricos, que arrastam as multides, que do carter realmente popular

ao nosso carnaval. Exclusivos da Bahia, tambm os afoxs, folia

carnavalesca nascida nos candombls: so os orixs brincando o carnaval.

Alguns afoxs so de extrema beleza. No mais, os coi-des, os blocos,

as escolas de samba, os caretas, e a imensa animao do povo baiano. No

quero deixar de me referir ao bloco "Os Internacionais", ao qual

pertence meu filho Joo Jorge se no citasse o bloco que um dos

destaques do carnaval baiano, ficaria mal com a famlia. Realmente, a

rapaziada possui classe e animao. Para "Os internacionais", Vincius

de Moraes comps um frevo: "Quem for mulher que me siga..." Mas existem

outros blocos igualmente de muita categoria: o "Bloco do Jacu", cujo

lema um trocadilho: "H Jacu no pau"; o "Bloco do Baro", tendo

frente a grande, veneranda, extraordinria figura do Baro de Mococof,

meu velho amigo; "Os Penin-sulares" e vrios outros. Entre as Escolas de

Samba, destacam-se "Os Aristocratas de Amaralina", "Os Filhos de

Toror" da qual fui enredo h uns poucos anos: "Jorge Amado em Quatro

Tempos" e "Mocidade do Garcia". Falando-se do carnaval baiano, faz-se

indispensvel citar os nomes de Osmar e Dod, fundadores do primeiro

Trio Eltrico, e o de Caetano Veloso que todos os anos compe um frevo

para a grande festa. Tambm Batatinha, Riacho e Walmir Lima no faltam

com suas marchas e seus sambas. 135 MES DE JUNHO O So Joo para ns,

baianos, o que o Natal para os povos europeus. Porm junho no

apenas o ms de So Joo. tambm o de Santo Antnio, patrono das moas

casadoiras, e o de So Pedro, padroeiro das vivas ("viva o sexo mais

perigoso que existe", explicou-me certa vez o perito Carlinhos

Masca-renhas). Junho o ms do milho. ele que domina as comemoraes

dos santos padroeiros. De mistura com as fogueiras e os bales, o milho

est presente durante todo o ms. O milho e a laranja, as clebres

laranjas da Bahia, sumarentas, os enormes umbigos. Quanto maior o umbigo

e mais fina a casca, melhor a laranja, diz o povo. Milho das canjicas,

dos mungunzs, dos manus, dos acas, milho assado nas fogueiras,

pipocas, milho cozido com caf. Pamonhas e bolos. Doces envolvidos na

palha crespa do milho. Junho o seu ms, o tempo em que melhor se come

na cidade (excetuando o jejum da Semana Santa, claro). A finssima

canjica, a deliciosa pamonha, os manus saborosssimos. E o licor de

jenipapo para acompanhar. Em junho o cu da Bahia tem milhares de

estrelas novas. So os bales que, apesar das renovadas proibies,

surgem sobre os telhados e tomam o rumo do mar. Os Capites da Areia

abandonam qualquer outra das suas mltiplas ocupaes para catar os

bales perdidos que se apagaram no cu e descem sem rumo sobre as casas.

uma caa alegre e cheia de peripcias. Roncam os rojes de foguetes,

a meninada ensurdece os ouvidos alheios com bombas, traques e buscaps.

As fogueiras se levantam ante as casas mais devotas. Desapareceram

quase completamente do centro da cidade. Mas, ah! se a vossa residncia

for num bairro distante como o de Peri-Peri e diante dela no se elevar

uma fogueira na noite de So Joo, sereis evidentemente olhado de

maneira suspeita pelos habitantes do lugar, vossos vizinhos, operrios

da Estrada de Ferro ou pequeno-burgueses que a crise de moradia atirou

para os subrbios. Elevam-se as fogueiras sob as rvores, a terra parece

envolta numa estranha luz vermelha, cheia de sugestes e mistrios. 138

Em centenas e centenas de casas rezam-se as trezenas de Santo Antnio,

do dia primeiro ao dia treze. Um altar improvisado na Sala de visita,

duas velas aos ps do santo, a mulher que puxa a ladainha. Moas

pobres, vestidas modestamente, rapazes brechando. Trocam olhares durante

a reza. Mas os msicos amigos da casa j se encontram por ali perto

esperando que a devoo termine. Depois da reza aparecem o violo e o

cavaquinho, a flauta e a harmnica, e diante do altar os pares danam,

os namorados riem. Clices de licor de jenipapo so servidos. Junho o

ms das festas ntimas, muitas festas, que se sucedem no correr das

ruas, quase que em todas as casas, nos bairros pobres. o ms mais

alegre da cidade. No dia treze a festa de Santo Antnio. As rezas so

mais longas, a sala mais enfeitada (quase sempre bandeirolas de papel),

o baile tambm dura a noite toda. Corre o jenipapo, come-se a canjica,

soltam-se os primeiros fogos. Nos candombls, festeja-se Ogum. Depois

vm as novenas de So Joo e logo a vspera que o dia da grande festa.

Nas fogueiras inmeras assam-se pedaos de cana, batata, milhos. Os

namorados saltam sobre as brasas. Vamos ser compadres... Apertam-se

as mos ternamente, os olhos se encontram. A meninada queima os dedos,

os fogos rasgam a noite, diversos e surpreendentes. Moas colocam bacias

d'gua para meia-noite nelas espiarem o rosto do futuro noivo. Jogos

de prendas, adivinhaes, pequenos bailes familiares, muita comida de

milho, muito doce, muita laranja, muito licor de jenipapo. As festas de

junho so para velhos, adultos e crianas. Comidas, danas e fogos,

devoo e alegria, superstio e poesia. So Pedro o santo das vivas.

So elas que fazem rezar suas novenas, so elas que comemoram o dia 29.

a despedida de junho. A canjica, os manus, os foguetes e a alegria

iro ainda at o Dois de Julho, data da independncia da Bahia. O milho

domina todas as festas, seu gosto determina o ms de junho, as espigas

amontoadas nas cozinhas antiga, de grandes foges de barro. Junho o

ms baiano por excelncia. Em mil festas pequenas, em centenas de

fogueiras, em milhares de bales, se desdobra a cidade que neste ms

parece ambiente 139 SAO COSME E SO DAMIO O ms de setembro pertence

aos ibjes, So Cosme e So Damio, santos catlicos mas tambm

importantes deuses negros, Dois-Dois no chamar das mes-de-santo. Santos

populares entre a gente baiana, no ms de setembro em todos os recantos

da cidade encontram-se velhos, moos e crianas conduzindo quadros ou

pequenas imagens que representam Cosme e Damio, angariando dinheiro

para missas que devem ser celebradas em honra dos dois "primos". Os

festejos so muitos. Dizem os negros que So Cosme e So Damio so

amigos de boa comida baiana e por isso mesmo cozinham-se em honra deles

todas as comidas de azeite-de-dend, especialmente o ef, o vatap e o

caruru. A grande festa, quando batem todos os candombls da cidade, a

27 de setembro. A tradio do caruru de Cosme e Damio ainda hoje

cultivada por inmeras famlias. Entre elas, a da finada Maria de So

Pedro, que, todos os anos, em seu restaurante no Mercado Modelo,

oferece um caruru, com centenas de convidados, aos ibjes. Quando viva,

Norma Sampaio abria as portas de sua casa no Chame-Chame para receber

os devotos dos santos. Natlia e Mecenas Mascarenhas, Antonieta e Nelson

Taboada, Dorothy e Moyss Alves eis trs famosos carurus de Cosme e

Damio, de farta, rica e saborosa comida de azeite-de-dend. Igualmente

famoso o de Toninha e Camafeu de Oxssi. Com direito a uma clebre

batida de maracuj, feita especialmente em So Gonalo para a ooasio,

e a sermo de um padre barroco e ecumnico que leva sob a batina o breve

de piloto da Aeronutica. Que dizer ento do caruru oferecido por minha

comadre e amiga Dety uma das mais extraordinrias cozinheiras do mundo

na Ilha de Itaparica? No h rega-bofe igual. CALENDRIO DAS FESTAS DE

CANDOMBL Cada candombl da Bahia tem vida prpria, independente dos

demais. Ligando muitos deles existem laos de amizade, troca de

gentilezas dentro do complexo e refinado ritual que preside as relaes

entre pessoas e entidades na Bahia, os ritos de gentileza e amizade. A

ligao maior entre os terreiros da mesma nao ou seja os que so

originrios da mesma matriz cultural: geg-nag (ketu), angola, congo,

candombls de caboclo. Em tais casos acontecem coincidncias no

calendrio das festas pblicas, das cerimnias religiosas abertas ao

compa-recimento de todos quantos as desejam assistir s as pessoas

ligadas seita tm acesso a certa parte das obrigaes. Tais

coincidncias de datas so freqentes nas casas de origem ketu. No

existe, porm, volto a repetir, nenhum tipo de interdependncia entre os

diversos terreiros, apesar da constante e mals tentativa dos eternos

sabidorios que tentam colocar de p unies e federaes, pretensamente

religiosas ou culturais, com o fim de dominar e explorar econmica ou

politicamente as casas-de-santo. Cada candombl uma unidade

independente, no tendo nenhuma obrigao com os demais, apenas relaes

de fraterna amizade. Outra coisa: nenhum candombl da Bahia e creio

que do Brasil tem ligao ou dependncia com os da frica. O viajante

conseguir com facilidade, na seo competente do organismo estadual de

turismo ou no Centro Folclrico da Municipa