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Nota Editorial A CABEÇA NO AR As coisas melhores são feitas no ar, andar nas nuvens, devanear, voar, sonhar, falar no ar, fazer castelos no ar e ir lá para dentro morar, ou então estar em qualquer sítio só a estar, a respiração a respirar, o coração a pulsar, o sangue a sangrar, a imaginação a imaginar, os olhos a olhar (embora sem ver), e ficar muito quietinho a ser, os tecidos a tecer, os cabelos a crescer. E isso tudo a saber que isto tudo está a acontecer! As coisas melhores são de ar só é preciso abrir os olhos e olhar, basta respirar. Manuel António Pina, in “O pássaro da cabeça” Este poema de Manuel António Pina pode ser o retrato da infância, uma infância onde não há preocupações, onde há muito tempo para viver, brincar e onde é possível sonhar e imaginar. O universo da infância é um universo que nos remete para a fantasia, o sonho, a brincadeira e para a capacidade de valorizar o essencial. Este retrato da infância é aquele que gostaríamos que fosse o retrato de todas as crianças em Portugal. Mas não é. Em Portugal temos muitas crianças que acordam de manhã e não têm nada para comer; que antes de entrar na escola têm que cuidar de irmãos mais novos, porque as mães estão a trabalhar desde madrugada; que não têm acompanhamento escolar em casa

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Nota Editorial

A CABEÇA NO AR

            As coisas melhores são feitas no ar,

            andar nas nuvens, devanear,

            voar, sonhar, falar no ar,

            fazer castelos no ar

            e ir lá para dentro morar,

            ou então estar em qualquer sítio só a estar,

            a respiração a respirar,

            o coração a pulsar,

            o sangue a sangrar,

            a imaginação a imaginar,

            os olhos a olhar

                    (embora sem ver),

           e ficar muito quietinho a ser,

           os tecidos a tecer,

           os cabelos a crescer.

           E isso tudo a saber

           que isto tudo está a acontecer!

           As coisas melhores são de ar

           só é preciso abrir os olhos e olhar,

           basta respirar.   

Manuel António Pina, in “O pássaro da cabeça”

Este poema de Manuel António Pina pode ser o retrato da infância, uma infância onde não há

preocupações, onde há muito tempo para viver, brincar e onde é possível sonhar e imaginar. O

universo da infância é um universo que nos remete para a fantasia, o sonho, a brincadeira e

para a capacidade de valorizar o essencial.

Este retrato da infância é aquele que gostaríamos que fosse o retrato de todas as crianças em

Portugal. Mas não é. Em Portugal temos muitas crianças que acordam de manhã e não têm

nada para comer; que antes de entrar na escola têm que cuidar de irmãos mais novos, porque

as mães estão a trabalhar desde madrugada; que não têm acompanhamento escolar em casa

porque os pais não têm formação; que são vítimas de bullying e sofrem de depressão; que

assistem ao desemprego dos pais e à perda de esperança num futuro melhor.

Estas crianças são muitas e preocupa-nos o seu futuro, mas preocupa-nos ainda mais o seu

presente; aquilo que estão a viver e aquilo que não terão oportunidade de viver. As vivências

de pobreza, solidão, de violência, de desestruturação, acompanham muitas das nossas

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crianças e têm uma influência altamente negativa no seu futuro. Os problemas de desemprego

ou precariedade laboral, problemas de alcoolismo ou outras dependências, problemas mentais

que afetam muitos agregados familiares, afetam diretamente as crianças. Porque uma criança

normalmente, salvo os casos de institucionalização, está inserida numa família e os problemas

que eventualmente essa família tenha são também os problemas da criança. Não se pode

negar que a influencia dos primeiros anos de vida de uma criança é fulcral para o seu percurso

em termos futuros e não estamos a conseguir garantir um futuro promissor à nossas crianças.

Portugal não está a conseguir garantir as condições mínimas necessárias que garantam o

bem-estar infantil.

Este número do Rediteia é dedicado ao tema do Bem-estar Infantil, um tema que nos é muito

caro. A EAPN Portugal dedica parte da sua atividade de informação, pesquisa e lobby à

temática da infância, habitualmente pela via da análise dos problemas que lhe estão

associados; problemas esses que não deveriam existir nesta fase da vida. Mas existem e são

uma realidade cada vez mais presente que importa analisar e, acima de tudo, alertar as

instâncias públicas responsáveis no sentido da sua resolução.

Preocupa-nos que existam crianças em Portugal que vivem em condições de precariedade

extrema que não lhes permite usufruir de uma infância feliz. Sabemos que a felicidade não

passa simplesmente pelo bem-estar material; passa sobretudo por um contexto familiar

equilibrado, onde prevaleça a compreensão, a tolerância e o amor incondicional. Mas não

poderemos relevar a importância das condições económicas para que se garanta um início de

vida equilibrado, promissor em termos sociais, educacionais e de saúde.

Garantir o bem-estar das crianças deveria ser uma prioridade do nosso governo, de toda a

sociedade, no entanto, sabemos todos que a atual conjuntura económica tem servido como

desculpa para descurar estes problemas. Os números da pobreza infantil são graves em

Portugal e a tendência atual passa por medidas de carater paliativo, que não resolvem o

problema, mas que o escamoteiam. A tendência crescente para resolver os problemas sociais

através de medidas de emergência social leva-nos a recuar décadas em termos de intervenção

social e a colocar os chamados “beneficiários das medidas” numa posição de extrema

vulnerabilidade, não só devido à sua fragilidade económica, mas também à fragilidade

decorrente da total dependência relativamente ao seu quotidiano. Este caminho pode conduzir

a um retrocesso em termos das aquisições feitas nas últimas décadas relativamente ao

exercício da cidadania. Caminhamos para uma situação em que as pessoas em situação de

maior vulnerabilidade social, grupo onde se encontram muitas crianças, não conseguirão ter

voz e conduzir o seu próprio destino. Devemos contribuir para alterar esta situação e fazemo-lo

através dos meios que estão ao nosso alcance; através de publicações como esta que se

apresenta. Nesta publicação recolhemos testemunhos de várias entidades que trabalham com

crianças e que conhecem de perto os seus medos, as suas vitórias, as suas alegrias e as suas

fragilidades, de vários investigadores que estudam o tema da infância e os diferentes universos

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em redor da infância. Recolhemos ainda testemunhos de crianças1, sob a forma de desenhos

que ilustram aquilo de que estas precisam para serem felizes e, como vão verificar pelas

ilustrações presentes ao longo desta publicação, as crianças precisam de muito pouco para

serem felizes. Porque, como diz o poeta Manuel António Pina: “ As coisas melhores são de ar ,

só é preciso abrir os olhos e olha “.

Pe. Jardim Moreira

Presidente da Direção da EAPN Portugal

1 Agradecimento aos agrupamentos de escolas de Castelo Branco que colaboraram com a EAPN Portugal para o desenvolvimento deste projeto.