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O Pentelho Príncipe (com rabiscos da autora) Por Antonia dos Santos Exus Peris 1

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OPentelhoPríncipe

(com rabiscos da autora)

Por Antonia dos Santos Exus Peris

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Eu me chamo Antonia dos Santos Exus Peris. O “Santos” é porque minha família é

metade católica, o “Exus” é porque ela é metade africana e o “Peris” é porque ela é metade

indígena. Opa! Três metades? Tem alguma coisa errada aí. Nunca gostei muito de matemática

mesmo. Minha aula preferida era a de desenho.

Quer ver a primeira coisa que eu desenhei na vida? Foi isso aqui:

Mostrei minha obra-prima para algumas pessoas e elas disseram.

- É um chapéu!

- É um ovo frito visto de perfil!

- É um careca passando do outro lado do muro!

- É uma bola de sorvete que caiu no chão e está derretendo!

E teve alguém mais tonto ainda que disse que era uma cobra gigante que engoliu um

dinossauro. Aí, se tirassem um raio-x do desenho, ele ficaria assim:

Todos esses palpiteiros erraram. Na verdade, meu desenho era só um traço com a

metade de uma bola em cima. As pessoas gostam de pensar que as coisas são mais interessantes

e misteriosas do que parecem.

Bom, como ninguém entendeu o que eu fiz, desisti de ser desenhista. E, como todo

mundo sempre falava que eu era bonita, decidi ser uma miss. Uma miss profissional.

Ganhei um monte de concursos. Na minha cidade fui Miss Verão, Miss Primavera, Miss

Outono e Miss Inverno, que foi um concurso muito difícil, porque tivemos que usar casacos de

peles e o ar condicionado estava quebrado.

Depois, na minha região, fui eleita Miss Festa da Uva, Miss Festa da Laranja, Miss

Festa da Banana e Miss Festa do Morango, o que foi um problema, porque eu tenho alergia a

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morangos e tive que comer um bocado deles. Acabei ficando vermelha e empipocada feito um

morango mesmo.

Então passei a concorrer em concursos de misses pelo Brasil. E ganhei vários. Por

exemplo: Fui Miss Nova Iorque (no Maranhão), Miss Barcelona (no Rio Grande do Norte) e

Miss Buenos Aires (em Pernambuco). Essas cidades existem mesmo, podem procurar no mapa.

Por fim, passei a disputar concursos de beleza pelo mundo. Assim aprendi um

pouquinho de cada língua. Por exemplo, sei perguntar “Meu batom está borrado?” em francês,

alemão, inglês, italiano, espanhol, japonês, chinês, finlandês, zulu e até em dlimi, uma língua do

Nepal, porque uma vez concorri a Miss Everest (acabei desclassificada, porque ninguém me

avisou que tinha que ter mais de dois metros de altura para participar do concurso).

Não parece, mas ser miss dá muito trabalho. É quase como ser uma princesa. Você deve

estar sempre sorridente, maquiada e penteada, e jamais, jamais!, pode ter um pedacinho de

couve entre os dentes.

Além disso, uma miss deve evitar:

- soltar gargalhadas, para não ter pés-de-galinha,

- chorar, para não estragar a maquiagem,

- tomar sorvete, para não estragar o batom,

- assoar o nariz, para não deixá-lo vermelho.

E isso é bem difícil, porque não dá para viver sem rir, chorar, tomar sorvete e assoar o

nariz.

Mas não é a minha vida de miss que eu quero contar. O que eu quero contar é um

encontro muito estranho que eu tive num lugar muito estranho com um sujeito muito estranho.

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Tudo aconteceu quando eu estava indo participar do concurso de Miss Pirâmide. Esse é

um dos mais disputados do mundo, porque o prêmio da vencedora é casar com um príncipe lá

das arábias.

Isso mesmo, um príncipe de verdade. E bem rico!

Logo que desci no aeroporto, aluguei um carro (o mais barato que encontrei) e peguei a

estrada para as pirâmides (o concurso era em cima de uma delas). Mas, bem no meio do deserto,

quando só tinha areia para todo lado que se olhava, ele parou de funcionar.

Levantei o capô para dar uma olhada no motor. Logo percebi que eu não tinha um

problema, mas dois.

O primeiro era que o carro não funcionava.

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O segundo era que eu não entendia nada de mecânica.

Tive vontade de chorar mas me segurei. Sabia que não podia desperdiçar água.

Fiquei esperando que alguém passasse por ali, mas a estrada estava mais deserta que o

deserto. Não apareceu nem um beduíno montado num camelo.

Quando começou a anoitecer, entrei no carro, coloquei todas as minhas faixas de miss

para me esquentar um pouco (eu sempre viajava com elas para dar sorte) e dormi.

Na manhã seguinte acordei com um “toc, toc” na minha janela.

Me levantei o mais rápido que pude. Nem tinha tirado as remelas dos olhos quando vi

que do lado de fora do carro havia um serzinho muito estranho. O melhor que consigo desenhá-

lo é isto aqui:

Não ficou muito bom, eu sei. É que eu parei desenhar há muito tempo e só estou

voltando agora. Talvez até o fim do livro eu melhore.

Mas isso não importa.

O que importa é que, quando eu vi aquele serzinho, soltei um assustado “Aaaaaaaaah!”,

Não é uma coisa muito inteligente para se dizer, mas o quê vocês queriam que eu

fizesse? Não esperava que ninguém me acordasse no meio do deserto, ainda mais um sujeito

minúsculo usando uma capa.

Então esfreguei bem os olhos (para tirar as remelas e para enxergar direito) e cocei a

cabeça (isso sempre me ajuda a pensar). Foi quando tive um clique!

Aquele menino, com aquela roupa, naquele deserto, só podia ser o personagem principal

do meu livro favorito!

Tá, era o único livro que eu tinha lido, mas era meu favorito mesmo assim.

Então saí do carro, fiquei cara a cara com ele e gritei!

- Você é o Pequeno Príncipe!!!!!!!!!!!!

E foi assim mesmo, com um monte de pontos de exclamação. Ele tampou os ouvidos

com as duas mãos e disse:

- Eu sou pequeno, mas não sou príncipe. E também não sou surdo!

- Mas e essa capa?

- Um monte de super-heróis usa capa e eles não são príncipes.

- E essa coroa?

- É só o meu cabelo que é meio espetado. Você não é muito esperta, né?

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- Ei, você nem me conhece e já está me xingando! Não podia mesmo ser o Pequeno

Príncipe. Está mais para Pentelho Príncipe.

- Pentelho?

- É. Significa irritante, impertinente, atrevido, insolente, rabugento.

- Vou considerar um elogio.

- O Pequeno Príncipe nunca consideraria.

- Ele era príncipe de que país?

- De nenhum. Veio de outro planeta...

- Eu também.

- O quê?!?!?!

Fiquei com a boca aberta de espanto. Ainda bem que não havia moscas por ali. Aquilo

era muita coincidência. Então perguntei para o Pentelho:

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- De que planeta você veio?

- De um asteroide que fica entre Marte e Júpiter.

- E qual é o nome dele? O do Pequeno Príncipe era B 612. O seu é B 613?

- Não. Eu o chamo de “casa” mesmo.

- Será que foi um astrônomo turco quem descobriu o seu asteroide? No livro que eu li,

foi um astrônomo turco quem descobriu o planeta do Pequeno Príncipe.

- Ué?! Mas se o tal do Pequeno Príncipe já morava lá, ninguém descobriu o asteroide.

- Como assim?

- Quem descobriu o lugar onde você mora?

- Na escola eu aprendi que foi o Pedro Álvares Cabral, um navegante português. Ele que

chegou aqui no Brasil primeiro e viu que tinha um monte de índios.

- Ué?! Se já tinha índios aqui, o Cabral não foi o primeiro nem descobriu nada. Quem

descobriu foram os índios.

- Não é assim que está nos livros.

- A gente tem que desconfiar dos livros de vez em quando.

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Aquela história não me deixou satisfeita. Então falei:

- Eu sempre ouvi que Cristóvão Colombo tinha descoberto a América e Pedro Álvares

Cabral tinha descoberto o Brasil.

- Só por que foram os primeiros estrangeiros a chegar?

- Claro.

- Se for assim, você tinha que dizer que fui eu quem descobriu o seu planeta.

- Você?

- Claro. Algum outro alienígena já tinha vindo aqui antes?

- Que eu saiba, não.

- E você acha justo que eu diga: “Descobri a Terra, agora ela me pertence”?

- Não mesmo! Antes de você chegar já tinha muita gente aqui.

- Pois é.

5

Enquanto tomávamos café da manhã (eu tinha um monte de sucos light e bolachas diet

no meu carro), continuei fazendo perguntas para o Pentelho Príncipe:

- Como é que você faz com as sementes de baobá?

- O que é baobá?

- É uma árvore imensa, bem alta e gorda.

- Desenha uma para mim?

Aí eu tentei desenhar uns baobás, e eles ficaram assim:

Quando ele viu meus desenhos, falou:

- Caraca! Que árvores legais!

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- No seu planeta não tem semente de baobá?

- Não mesmo.

- Ah, que pena... No livro que eu li, o Pequeno Príncipe contava que seu planetinha era

cheio de sementes de baobá.

- E o que ele fazia com elas?

- Todo dia pela manhã, ele procurava as sementes e as arrancava antes que começassem

a crescer.

- Não acredito!

- Mas é verdade. Ele não era nada preguiçoso.

- Não era preguiçoso, mas era meio burro.

- Não fale assim do Pequeno Príncipe! Ele é o meu ídolo!

- Poxa, mas quem é que não ia querer ter uns baobás gigantes no seu asteroide?! Se eu

pudesse, teria um monte! Eles fariam sombra, eu construiria casas nas suas copas e pontes entre

os galhos, penduraria balanços, faria escorregadores e brincaria de macaco o dia todo.

- Parece divertido...

- Claro que é! Não entendo como alguém não ia querer ter uns baobás.

- Ele disse que o planeta podia rachar.

- Mas é justamente o contrário! O solo racha em lugares sem árvores. Esse seu Pequeno

Príncipe não manjava nada de agricultura!

- Bom, talvez ele quisesse dizer que a gente tem que cortar as coisas más enquanto são

pequenas e cultivar as coisas boas para que cresçam.

- Esse negócio de bom e mau é muito relativo. O que é bom para um às vezes é mau

para o outro. Para mim, por exemplo, o baobá seria uma maravilha.

E aí ele pediu que eu desenhasse o planeta dele com baobás, e ficou assim:

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Vendo aquele desenho, que eu, modéstia à parte, achei lindo, perguntei para o Pentelho

Príncipe:

- O seu planeta é deste tamanho que eu imaginei?

- Mais ou menos.

- Então, como ele é bem pequeno, você pode fazer que nem o Pequeno Príncipe e ver

um monte de pores do sol. É só sentar numa cadeira bem gostosa e ir chegando para trás de vez

em quando. Aí você ia poder ver o sol sempre assim:

- Um pôr-do-sol por dia já é o suficiente. Mais que isso enjoa.

- Imagina! É a coisa mais linda do mundo! Você devia assistir ao sol se pôr 44 vezes

seguidas, que nem o Pequeno Príncipe.

- Ele viu o mesmo pôr-do-sol 44 vezes?

- Viu.

- Nossa! Que falta faz uma televisão, hein?

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Bom, como não aparecia ninguém por aquela estrada, resolvi eu mesma dar um jeito no

carro. Tinha que ganhar aquele concurso e casar com o príncipe-árabe-milionário de qualquer

jeito.

Então peguei umas ferramentas que estavam no porta-malas e comecei a apertar porcas

e parafusos. Mexi daqui e dali, e até entrei embaixo do carro para ver se tinha algum vazamento.

Acabei toda suja de graxa. Quando o Pentelho Príncipe me viu, perguntou:

- Você vai concorrer a Miss Pirâmide ou a Miss Petróleo?

- Em vez de fazer piadas sem graça, você podia me ajudar.

- Não entendo nada de mecânica.

- Entende de quê?

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- De jardinagem. É o que eu mais fazia no meu planeta.

- Ah, então mesmo bancando o durão, você gosta de flores?

- Quem não gosta? No cinturão de asteroides há flores lindas.

- Como elas são?

- Ah, existem vários tipos:

* tem a flor-zebra, toda rajada de preto e branco,

* as flores-gêmeas, que sempre nascem coladas uma na outra e brigam até se despetalarem,

* a flor-livro, que tem letras em suas pétalas e às vezes formam palavras,

* a flor-estrela, que fica piscando à noite,

* a flor-borboleta, que só tem duas pétalas e parece mesmo uma borboleta,

* a flor-arco-íris, que tem uma pétala de cada cor,

* e a flor-gambá, que cheira muito mal.

- Qual é a sua favorita?

Eu pensei que ele responderia bem rápido, mas o Pentelho Príncipe respirou fundo,

sentou no para-choque do carro, ficou olhando para a ponta dos seus sapatos e só uns segundos

depois é que respondeu:

- Olha, acho que eu gostava da Rosa.

- Uma rosa comum?

- Não, ela não tinha nada de comum. Era uma Rosa gullosicum! Uma espécie muito

rara. Ela era assim, olha:

Quando eu vi aquele desenho, não aguentei e disse:

- Poxa. Parece até que ela tem uma boca!

- Não parece. É uma boca mesmo.

- Sério?!

- Sério.

Eu fiquei tão curiosa com aquilo que enchi o Pentelho de perguntas:

- Ela tem dentes? Tem língua? Tem estômago? Come? Faz cocô?

Mas ele só me respondeu no capítulo seguinte.

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- Calma, você é muito perguntadeira! - ele disse botando as mãos nos ouvidos.

Depois respirou fundo e contou a história da Rosa:

- O meu planeta sempre teve muitas flores, porque os ventos solares trazem sementes

dos outros asteroides. Mas logo que vi aquela flor brotando percebi que era diferente de todas.

Então a peguei com cuidado e replantei-a no meio do meu jardim, entre uma flor-zebra e uma

flor-arco-íris.

- Ah, que lindo... Adoro histórias com flores...

- Pois bem, no dia seguinte, quando fui regá-la, a Rosa já estava bem maior.

- Que ótimo!

- Mas a flor-zebra tinha desaparecido.

- Que pena...

- No outro dia ela tinha crescido mais ainda. E nem sinal da flor-arco-íris.

- Puxa, que estranho!

- Nas semanas seguintes ela continuou crescendo e outras flores foram desaparecendo.

Até que chegou o momento em que não havia mais nenhuma outra flor, só a Rosa.

- Você acha que ela comeu as outras flores?

- Era o que eu desconfiava. Mas não tinha provas. Então, um dia, eu estava perto dela,

conversando sozinho...

- Você conversa sozinho?

- Só quando quero ter um diálogo inteligente.

- Ah, tá.

- Eu estava conversando sozinho e me perguntei: “Será que a Rosa comeu as outras

flores?”.

Então uma voz respondeu:

- É claro que comi.

- Eu gritei de susto. Nunca tinha visto uma flor falar. Ela pediu que eu me acalmasse e

disse que isso não era nada de mais, porque havia várias flores que falavam, embora poucas

conjugassem os verbos corretamente como ela. Depois a Rosa explicou que comeu as outras

flores porque detestava concorrência. Se eu queria ter uma flor tão fantástica quanto ela, teria

que ser seu jardineiro exclusivo.

- E o que você fez?

- O que eu podia fazer? Nada, né? Eu gostava daquela maldita flor. Ela era linda,

perfumava todo meu planeta e realmente conjugava os verbos muito bem.

- É, se a gente gosta de uma flor, não tem jeito...

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- O problema é que a fome dela era imensa. Um dia, um amigo meu que morava num

asteroide vizinho foi me visitar. Enquanto eu preparava um chá, ela glupt!, engoliu o sujeito.

- Mamma mia!

- Pois é. Nunca mais pude convidar ninguém para o meu asteroide.

- Tadinho...

- E ela não parou por aí. Um dia a Rosa me falou assim: “Você está com a mesma cara

há muito tempo. Posso cortar o seu cabelo?”

- Como ela ia cortar o seu cabelo? Ela não podia segurar uma tesoura.

- Foi justamente o que eu perguntei para ela.

- E o que a Rosa respondeu?

- Que ia cortar com os dentes.

- E aí?

- Aí eu cheguei minha cabeça perto dela e ela zapt!, deu uma tremenda mordida no meu

cabelo. Por isso que ele ficou assim cheio de pontas.

- Uau!

- Quase morri de susto. E aí pensei: “Por pouco ela não engoliu a minha cabeça. Se eu

continuar por aqui, a Rosa pode acabar comigo.”

9

- Já sei! - eu disse. -Na manhã seguinte você aproveitou a migração de pássaros

selvagens para fugir.

- Pássaros no espaço? Você é maluca?

- Desculpe, é que lembrei daquela história que eu li.

- Esta não é aquela.

- Mas tem umas partes que parecem iguais.

- Talvez sejam justamente as mais diferentes.

- Não mude de assunto. Você fugiu do seu planeta ou não?

- Fugi. Quer dizer, fiz uma retirada estratégica. Às vezes a separação é o melhor

caminho. Ainda mais se uma flor com dentes afiados quer te devorar.

- E como você veio para cá?

- No meu DKW63. É o modelo do meu disco voador. Não chega à velocidade da luz,

mas dá para o gasto.

- Onde ele está?

- Estacionei ali, atrás de uma duna.

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- Então ele deve ser pequeno.

- Bem pequeno. E o porta-malas é péssimo. Mal deu para as minhas roupas.

Dei uma olhada e vi a nave. Era um disco voador. Mais ou menos assim:

Depois retomei o assunto: - As separações são sempre tristes. Lembro até hoje quando

briguei com meu primeiro namorado, o Felipe Augusto. Ele me achava muito vaidosa. Só

porque eu gastava duas horas para me arrumar e a gente sempre perdia o cinema.

- Duas horas?!

- Quando eu não lavava o cabelo. Se lavasse, eram três. Nós, misses, temos que gastar

muito tempo para nos arrumar, senão parecemos moças comuns. Mas me conta o que a Rosa

disse quando viu você fazendo as malas.

- Ela falou: “Espero que você seja feliz no seu novo planeta com sua nova flor”. Tentei

explicar que não sabia para onde ia e que não tinha outras flores, mas ela estava bem irritada.

- Pelo menos posso te dar um beijo de despedida – ela perguntou.

- O que você respondeu?

- Que sim. Então fui até ela.

- E a Rosa te deu um beijo?

- Não. Abriu o bocão e tentou me engolir. Tem flores que se fazem de coitadinhas, mas,

se puderem, arrancam sua cabeça. Por sorte consegui me desviar e ela só pegou mais um tufo do

meu cabelo.

- Não era uma rosa muito delicada.

- Não mesmo. Tinha espinhos e dentes pontudos.

- O que você fez depois?

- Entrei correndo na minha espaçonave e fugi.

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Enquanto eu empurrava o carro pela estrada na esperança de chegar a uma oficina

mecânica, o Pentelho Príncipe ia andando do meu lado. Ele não se ofereceu para me ajudar, mas

pelo menos ia me contando sua história, o que me distraía.

Ele disse que o primeiro planeta que visitou foi o 66199. Mal pousou e uma pequena

multidão cercou sua nave. Quando saiu, todos ficaram de joelhos e disseram ao mesmo tempo:

“Salve, ó grande ser iluminado!”

“Eu?”, ele perguntou.

“Sim, supremo mestre!”, a multidão respondeu em coro (eles eram ótimos em falar

juntos).

“Não sou mestre de nada”, disse o Pentelho.

“És nosso rei, nosso profeta, nosso líder. Dize o que temos que fazer!”

“Vocês não têm que fazer nada”, ele disse. Então todos ficaram parados ao mesmo

tempo, sem fazer nada, como se fossem estátuas.

Aí ele tentei explicar: “Vocês não entenderam nada: não é que é para fazer nada, é que

vocês não precisam fazer nada. Entenderam?”

“Nada!”, as pessoas responderam ao mesmo tempo. E continuaram a olhar para ele

esperando alguma ordem. Ficaram assim por um tempão, até que ele ficou de saco cheio e

gritou:

“Está bem, façam ginástica!”. E aí todos começaram a fazer polichinelos, flexões e

abdominais.

Depois de um tempo, o Pentelho ficou com pena do pessoal, que já estava bem suado, e

disse: “Agora vamos dançar que nem múmias!”. E esticou os braços para frente e começou a

dançar com as pernas bem duras.

Na mesma hora as pessoas esticaram os braços e começaram a dançar como múmias.

Ele achou engraçado, mas logo se cansou daquela coreografia e falou: “Agora quero que

todos tirem meleca do nariz, façam uma bolinha e a coloquem no meio da testa.”

Nem bem ele acabou de falar e as pessoas já estavam cavoucando seus narizes e pondo

bolinhas de meleca na testa.

“Blargh! Vocês são nojentos mesmo”, desabafou o Pentelho quando viu a multidão com

melecas na testa. Aí apontou para uma mulher e perguntou: “Você, por favor, me explique o

está acontecendo aqui.”

A mulher se aproximou dele com a cabeça baixa e começou a falar:

“Altiva Alteza, queremos alguém que nos guie, que nos diga o que fazer.”

“Por que cada um não faz o que quer?”, perguntou o Pentelho Príncipe.

“Porque é mais fácil obedecer alguém do que pensar sozinho, sábio sapientíssimo.”

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“E se aparecer outro como eu por aqui?”

“Aí metade de nós seguirá um, e metade, o outro. E brigaremos um bocado por vocês

dois.”

“Isso não parece muito divertido”, disse o Pentelho.

“Para nós seria muito bom. Saberíamos a quem seguir e a quem combater.”

“Vocês precisam é aprender a pensar por si mesmos.”

A frase deixou todo mundo calado. Uns coçavam a cabeça, outros olhavam para a ponta

dos pés, uns outros andavam em círculos.

Vendo que aquilo ia demorar, o Pentelho Príncipe entrou no seu disco voador e levantou

voo. Mas, enquanto se afastava, viu um pássaro pousar numa pedra. As pessoas se ajoelharam

em volta do pássaro e disseram:

“Salve, ó grande ser iluminado. Dize o que temos que fazer.”

Então o pássaro fez “Piu”.

E todos repetiram:

“Piu!”

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O Pentelho Príncipe contou que o planeta seguinte era igualzinho a uma maçã.

Ele pousou e foi recebido pelo seu único habitante, um homem que usava uma roupa

verde.

Quando saiu de seu disco, O Pentelho falou: “Caraca! Seu planeta visto de longe parece

uma maçã!”

“E não é só isso”, falou o homem vestido de verde. “Respire fundo e vai ver que ele

também tem cheiro de maçã.”

O Pentelho inspirou bem fundo e disse: “Hummm! É verdade! Poxa, você deve

economizar um bocado em perfume.”

“E não é só isso”, falou outra vez o homem. “Prove um pedaço.”

Ele enfiou a mão no planeta, quebrando a casquinha vermelha, e trouxe uma polpa

branquinha.

O Pentelho Príncipe experimentou-a e viu que ela tinha gosto de maçã. Então disse:

“Incrível!”

“Pois é. Como isso todos os dias”, falou o homem de roupa verde.

“Ah, já sei por que o planeta está cheio de crateras.”

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“Exatamente! Fui eu. E essa polpa não serve apenas para comer. Também dá para

construir coisas.”

Só então o Pentelho reparou que ali perto havia uma casa feita de polpa de maçã. E

estátuas. E um escorregador.

“Caramba, dá para fazer tudo com maçã!”

“Tudo.”

“Mas assim um dia o seu planeta vai acabar, não vai?”

“Vai. Mas ainda aguenta um tempão.”

“Nem tanto. Ele não é muito grande.”

“Não vou sofrer antes do tempo.”

“Você é quem sabe...”

O Pentelho Príncipe percebeu que aquele planetinha não duraria muito tempo. Por isso

desistiu de ficar por ali, entrou no seu disco voador e voou.

Quando ele estava lá em cima, reparou que o homem de verde parecia um bicho de

maçã.

12

Olhei para trás e vi que só tinha empurrado meu carro por uns vinte metros. Assim eu

jamais chegaria a tempo de participar do concurso. Mas continuei empurrando. Fazer o quê?

O Pentelho Príncipe andava ao meu lado e continuava a contar sua história:

- Depois veio o planeta 111.111.

- Vivia alguém lá?

- Sim. Os umbiguistas.

- Umbi o quê?

-Guistas. Tinham esse nome porque só olhavam para o próprio umbigo. Entendeu?

- Não.

- Bom, neste planeta, que era em forma de cubo, vivia uma pessoa em cada um dos seis

lados. E eles nunca conversavam.

- Nunca?

- Nunca. Andavam o dia todo, cada um no seu lado do planeta, falando sozinhos.

- Que doidos!

- Não é só isso. Eles gostavam de carregar uns espelhos para se olharem enquanto

andavam.

- Não tropeçavam?

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- Às vezes. Outra coisa que eles gostavam de fazer era tirar fotos de si mesmos.

Esticavam o braço, viravam a câmera para si e clique, se autofotografavam.

- Faziam selfies?

- Isso. E tem mais: cada um escrevia um jornal para si mesmo. Eles se chamavam

“Diário de Mim Mesmo”, “Isto Sou”, a “Folha de Eu”, “Minha Época”, “O Estado em que

estou” e “Veja-me”.

- Você falou com os seis sujeitos?

- Tentei, mas não consegui. Eles estavam sempre ocupados olhando para o espelho. Mas

acho que não perdi grande coisa. Se você só pensa em você, nunca vai ter um bom assunto para

comentar. Ninguém é tão interessante assim.

- Nem você?

- Principalmente eu. Já enjoei de mim.

- Pensei que você só era pentelho comigo, mas você também é um pentelho com você

mesmo.

- Trato todo mundo igual.

13

De vez em quando eu parava de empurrar o carro e mexia no motor para ver se

acontecia algum milagre. Mas só o que eu conseguia era ficar cada vez mais suja de graxa. Já o

Pentelho Príncipe, sempre limpinho, continuava contando suas histórias:

- Depois encontrei um asteroide bem bonito, com árvores, flores e até um riozinho. A

temperatura era perfeita e só havia três moradoras. Elas se chamavam Kat, Muça e Jud.

- Como elas eram?

- Simpáticas, bonitas e adoravam o Sol.

- Já sei! Ficavam de biquíni o tempo todo, se bronzeando na beira do rio?

- Não. Falei “adoravam” no sentido religioso. Elas achavam que o Sol era uma espécie

de deus.

- Ah, entendi.

- O problema é que as três brigavam um bocado por causa disso.

- Ué?! Mas elas não adoravam a mesma coisa?

- É que a Muça adorava o sol nascente, a Jud adorava o sol do meio-dia e a Kat adorava

o sol poente.

- O Sol não é um só?

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- É. Mas cada uma achava que o seu sol era melhor que os outros dois. A Muça fazia

suas rezas bem cedinho, a Jud lia seu livro de orações ao meio-dia e a Kat cantava músicas

religiosas no fim da tarde.

- Que planetinha agitado!

- Era mesmo. O pior é que tinha uma pedra com um buraco no meio, de onde dava para

ver o sol, e as três diziam que aquela pedra era o seu templo.

- Xi..., isso vai acabar em briga...

- Acertou. Um dia, as três começaram a brigar para ver quem ficava com a pedra. Se

xingaram, atiraram areia umas nas outras, até puxaram seus cabelos.

- E você não tentou acabar com a briga?

- Tentei. E acabei expulso.

- Por qual delas?

- Pelas três.

- Aica! O que você fez?

- Subi na pedra, fiz xixi pelo buraco e depois falei assim: “Muça, Jud e Kat, tenho que

contar uma coisa. O deus de vocês não é um deus. É só uma bola de fogo. Ela não pensa. Ela

não dá luz e calor porque quer. É só um acaso da natureza. Vocês são muito burras em acreditar

que o Sol fez o universo.

- Uau! Você falou isso para elas?

- Não tenho papas na língua.

- E elas acreditaram em você?

- Não mesmo! Disseram que eu era um demônio das sombras, um infiel, um ateu

maldito. E depois começaram a me atirar pedras.

- Daí o que você fez?

- O que qualquer sujeito com um pouco de esperteza faria: fugi.

- E elas?

- Me perseguiram. Nem quando alcancei a minha nave elas pararam de atirar pedras.

Meu DKW63 até está com uns amassados na lataria.

14

Tinha empurrado o carro por apenas cem metros e estava exausta. Então sentei no para-

choque para descansar um pouco. E o Pentelho Príncipe, que não estava nem um pouco

cansado, continuou falando, falando. Minhas orelhas estavam ficando mais cansadas que meus

braços e minhas pernas.

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Ele contou que o terceiro lugar pelo qual passou foi um asteroide onde viviam uns

bichos meio estranhos, que pareciam umas batatas gigantes.

PP (já que estamos no meio do livro, daqui para frente vou abreviar o nome do Pentelho

Príncipe, porque ele é muito comprido) pousou bem no meio de uma grande festa, cheia de

balões e churrasqueiras. E foi muito bem recebido.

Os batatões bateram palmas para ele e, mal desceu de sua nave, o Batatão-Chefe, que

usava uma cartola, foi apertar sua mão:

- Seja bem vindo, caro alienígena! É um prazer tê-lo em nosso humilde lar.

- Obrigado.

- Você chegou num ótimo dia. Estamos fazendo a nossa Festa da Fartura. Quer comer

alguma coisa?

- Claro!

- Pode escolher o que quiser. Temos um pouco de tudo!

Só aí o Pentelho olhou para as churrasqueiras e viu o que estava sendo assado. Eram

bichos iguais aos batatões, só que com rabos. E havia quatro tipos de rabos: de penas, de pelo,

de escamas e enroladinhos. PP arregalou os olhos e disse:

- Vocês comem a si mesmos?

- Claro que não, - explicou o chefe – só comemos animais com rabos.

- Mas eles são iguais a vocês!

- Iguais, não. Eles são inferiores. Nós não temos rabos.

- Mas eles também são seres vivos.

- Eram. Agora estão mortos. E bem gostosos. Prove um pedacinho!

- Não, obrigado. Eu não mato animais para comer. Acho isso uma selvageria.

- Mas se você não comer animais, vai comer o quê?

- Legumes, verduras e frutas.

- Nós preferimos dar essas coisas aos bichos com rabo. Aí eles ficam bem gordinhos e

nós os comemos.

- Mas os vegetais fazem muito bem para a saúde.

- Isso deve ser verdade, porque sua pele está ótima, - disse o Batatão-Chefe apertando o

braço do Pentelho Príncipe. – Aliás, sua carne parece bem macia...

- Você está salivando ou é impressão minha?

- Macia, tenra, apetitosa..., - disse o Batatão babando.

O Pentelho Príncipe não gostou daquilo e começou a se despedir:

- Bem, foi um prazer conhecer vocês, mas acho que está na hora de ir embora. Quero

evitar o congestionamento de discos voadores...

- Não, não, fique, por favor. Você vai ser nosso prato principal, digo, nosso convidado

principal.

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PP saiu correndo! E os batatões dispararam atrás dele. Por sorte, não eram muito

velozes e PP conseguiu partir antes que o transformassem em churrasquinho.

15

- Você ainda visitou muitos outros planetas antes de chegar aqui? – perguntei.

- Só mais um. Ele tinha um formato meio estranho: parecia um livro aberto. Mas mais

estranho ainda é que, quando cheguei bem perto, percebi que havia várias mesas com escritores.

E cada um escrevia com uma pena da mesma cor da sua roupa. Meu DKW63 pousou bem no

meio deles, fazendo muito barulho e soltando fumaça. Tossindo um pouco, os escritores

cercaram a nave.

- Quem é você? – perguntou o que usava roupa verde.

- De onde você é? - perguntou o de preto.

- O que veio fazer aqui? - perguntou o de vermelho.

- Ouvir minhas palavras? - perguntou o de amarelo.

- Me conhecer? - perguntou o de roxo.

- Comprar um livro meu? - perguntou o de branco.

- Pedir meu autógrafo? - perguntou o de azul.

PP disse que ficou atrapalhado com tantas perguntas e respondeu apenas: - Parei aqui

por puro acaso.

- Oh... - lamentaram os escritores ao mesmo tempo.

- Mas fiquei curioso com uma coisa...

- Eh! - comemoraram todos.

- Queria saber por que vocês escrevem.

- Essa é uma pergunta difícil. Acho que cada um de nós vai ter uma resposta diferente -

falou o de amarelo. - Eu, por exemplo, escrevo porque me acho mais inteligente do que as

outras pessoas e tento explicar o mundo para elas.

- Eu quero dinheiro mesmo - falou o de branco.

- Desejo ser famoso - disse o de azul.

- Eu escrevo para ser amado - explicou o de roxo.

- Para me divertir - contou o de verde.

- Porque não sei fazer outra coisa - confessou o de vermelho.

- Porque sei que vou morrer, mas os meus livros ficarão para sempre e assim serei um

pouco imortal - revelou o de preto.

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PP achou que os escritores tinham sido bem honestos ao contar seus motivos. Até

pensou em ficar naquele planeta. Mas logo desistiu. É que logo depois os sete o cercaram e

começaram a pedir:

- Leia-me, leia-me, leia-me, leia-me, leia-me, leia-me, leia-me!

Para não morrer sufocado no meio de uma montanha de papéis, PP decidiu ir embora. O

problema é que sua nave causou uma tremenda ventania, fazendo voar os papéis e misturando

as histórias de todos os escritores.

- Coitados... – eu lamentei.

- Nem tanto – retrucou PP. – Talvez as histórias fiquem mais divertidas quando são

misturadas umas com as outras.

16

- De lá você voou direto para a Terra? - perguntei.

- Isso mesmo.

- E por que veio justamente para cá?

- Li em algum panfleto de turismo cósmico que o seu planeta era muito interessante.

- Interessante por quê? Pelas Cataratas do Iguaçu? Pelo Grande Cânion? Pela

Cordilheira do Himalaia?

- Não. Pelos terráqueos.

- Ora, quem diria? Por nossa causa é que aparecem tantos discos voadores por aqui?

- Sim, os terráqueos são tantos e tão esquisitos que viraram uma atração turística para o

resto do universo.

- E o que você está achando da Terra?

- Por enquanto conheço pouca gente e poucos lugares. Só você e esse deserto. Mas são

duas coisas bem bonitas.

Aquele elogio me deixou tão contente que eu dei um abraço e um beijo no Pentelho

Príncipe. E ele ficou todo sujo de graxa.

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Enquanto se limpava, ele disse:

- Mas você não foi o primeiro ser vivo que eu vi na Terra.

- Não?

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- Não. Você foi a primeira pessoa, mas não o primeiro ser vivo.

- Quem foi o primeiro?

- Uma cobra.

- Eca, que nojo!

- Até que era uma cobra simpática.

- Como você sabe?

- Conversei com ela.

- Você fala cobrês?

- Tenho um tradutor universal. Consigo falar com qualquer ser vivo.

- Sobre o que vocês conversaram?

- Sobre a morte.

- Brrrr! Que tétrico! Mas me conta como foi. Quero saber o que as cobras pensam.

- Bom, logo que eu desci da minha nave, ela se enrolou na minha perna. Daí tivemos

um diálogo que foi mais ou menos assim:

Cobra: Você não é daqui, não é?

PP: Não. Vim de um lugar muito distante.

Cobra: Por que veio para cá?

PP: Tive problemas com uma flor.

Cobra: As flores são perigosas. Elas têm espinhos.

PP: A minha era pior: tinha espinhos e dentes.

Cobra: Também sou perigosa. Minha mordida que manda qualquer um para o “outro mundo”.

PP: Você quer dizer “outro planeta”?

Cobra: Não. Para o “outro mundo” mesmo.

PP: Não entendi.

Cobra: Quero dizer que minha mordida pode matar.

PP: E por que você me mataria?

Cobra: Por maldade. Ou por bondade.

PP: Bondade?

Cobra: Às vezes as pessoas estão sofrendo tanto que querem morrer.

PP: Não é o meu caso.

Cobra: Se precisar, conte comigo.

PP: Não, obrigado. Morrer é a última coisa que quero fazer na vida.

Cobra: Talvez morrer não seja a última coisa que uma pessoa faça. Você não acredita em vida

depois da morte?

PP: Não.

Cobra: Não acredita num paraíso ou num inferno onde as almas se encontrem?

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PP: Não.

Cobra: Então acredita em quê?

PP: Que a morte é o fim. O que podemos fazer é aproveitar bem a nossa vida e tentar não

estragar a dos outros.

Cobra: Bem, de qualquer modo, se um dia você quiser uma mordida, estou à disposição.

- Aí ela se enfiou na Terra e sumiu – arrematou PP.

- Foi uma conversa bem estranha – eu comentei.

- Acho que as cobras são meio deprimidas. Mas também, coitadas, têm que se arrastar o

tempo todo. É difícil ser otimista vivendo desse jeito.

18

- Depois você me encontrou? – perguntei.

- Não. Antes eu encontrei uma flor meio feinha, que tinha só três pétalas.

- Santa coincidência! No livro do Pequeno Príncipe ele também encontra uma flor

assim. E ela diz uma coisa linda.

- O quê?

- Que viu passar uma caravana de homens pelo deserto, e que eles são levados pelo

vento porque não têm raízes.

- A minha disse a mesma coisa.

- Deve ser uma tradição delas. Uma sabedoria que passa de geração em geração.

- Não achei nada sábio, e falei para ela que se os homens tivessem raízes não seriam

homens, seriam árvores. E eles não são levados pelo vento. Pelo contrário, às vezes vão até

contra ele.

- O que a flor respondeu?

- Ela disse que não estava falando de raízes de verdade. O que ela queria dizer é que os

homens não se prendem a um lugar.

- As flores são tão inteligentes, não é? Aposto que você ficou sem saber o que dizer.

- Pelo contrário. Falei que aquilo era uma bobagem tremenda, porque os homens fazem

caravanas pelo deserto há milhares de anos, e fazer a mesma coisa por milhares de anos

significa ter raízes bem profundas.

- Mas a frase dela era tão poética...

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- Uma bobagem dita de maneira poética continua sendo uma bobagem. Só que se

espalha mais.

- Às vezes você é bem pentelho.

- São os meus melhores momentos.

19

- Depois da conversa com a flor você chegou aqui? – eu perguntei.

- Não. Antes eu subi numas pedras bem pontudas para dar uma olhada na paisagem.

- No livro do Pequeno Príncipe acontece uma coisa igualzinha no capítulo 19. Isso é

praticamente um plágio! – eu exclamei.

- Prefiro usar a palavra paródia – ele argumentou.

- Paródia?

- É quando você imita uma coisa para dizer o contrário do que aquela coisa diz.

- Não entendi nada. Mas me diga o que você fez quando subiu no alto das pedras.

- Eu gritei.

- Eu sabia! Fez que nem no Pequeno Príncipe. Até já sei como é o resto da história:

você gritou “Bom dia” e o eco respondeu “Bom dia”; você gritou “Quem é você?” e o eco

respondeu “Quem é você?”; você gritou “Sejam meus amigos, estou só...” e o eco respondeu

“Sejam meus amigos, estou só...”. E aí você pensou: “Os homens são estranhos, só repetem o

que a gente diz.” Não é isso?

- Não.

- Então o que você gritou?

- Co.

- Co? Qual a graça em gritar “co”?

- É que aí o eco fica repetindo: “cocô, cocô, cocô...”

- Francamente... Você poderia ter tirado uma verdadeira conclusão filosófica deste

momento, e em vez disso ficou repetindo cocô?!

- Foi mais divertido. E talvez até tenha alguma lição nisso.

- Qual?

- Quem só repete o que os outros dizem acaba falando cocô.

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Naquela altura eu já tinha poucas esperanças de participar do concurso de Miss

Pirâmide. Estava muito longe para ir a pé e não aparecia ninguém por ali. Minha única saída era

consertar o carro. Então peguei a chave de fenda e voltei a apertar porcas e parafusos, a

desmontar e remontar o motor. Ah, eu queria muito virar princesa! Princesa é uma espécie de

supermiss!

Enquanto isso, PP, na maior tranquilidade, sentou na capota e seguiu com sua história.

Ele contou que desceu da montanha e andou até chegar num jardim com um monte de flores, de

todos os formatos e cores.

- Bom dia! – disse o Pentelho usando o seu tradutor universal.

- Bom dia! – responderam as flores.

- Quem são vocês? – ele perguntou.

E elas responderam:

- Margarida

- Begônia.

- Gardênia.

- Hortência.

- Acácia.

- Jasmim.

- Petúnia

- Violeta.

- Dália

- Camélia.

- Rosa Branca

- Rosa Amarela.

- Rosa Vermelha.

- Rosa Laranja.

- E eu sou a Rosa Cor de Rosa.

Então o Pentelho Príncipe tocou nas suas pétalas e sentiu seus cheiros. Gostou tanto das

flores terráqueas que pensou: “Ainda bem que não deixei a Rosa do meu asteroide me devorar e

saí de lá, senão não conheceria estas belas flores.”

Então o Pentelho Príncipe deitou-se entre as flores, respirou fundo, fechou os olhos,

sorriu e dormiu.

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Ele ficou dormindo no meio das flores até que foi acordado por uma voz que disse:

- Bom dia.

- Bom dia - ele respondeu sem abrir os olhos.

- Ei, olhe para mim. Estou aqui, do lado da macieira.

PP se sentou e viu um bicho de pelo avermelhado.

- Sou uma raposa – disse a raposa. - Vamos brincar?

- Claro!

- Mas antes você tem que me cativar – falou a raposa.

- Cativar? Que palavra estranha! Vou dar uma olhada no meu dicionário universal.

PP olhou no seu dicionário universal (um aparelho do tamanho de um celular que ele

levava num bolso de sua capa) e viu que “cativar” significa “escravizar”.

- Você quer que eu te escravize? – PP perguntou à raposa.

- Não. A palavra “cativar” tem dois sentidos. O segundo é bem melhor.

PP consultou de novo seu dicionário e viu que “cativar” também queria dizer

“conquistar”.

- Ah, entendi, raposa, você quer que eu te conquiste.

- Prefiro o termo “criar laços”.

- Deve-se tomar cuidado com laços. Eles podem enforcar você.

- Estou falando de laços afetivos, seu bobo.

- Eu também, sua boba.

- Então você não quer me cativar nem ser cativado por mim?

- Não é isso. É que, se cativamos o bicho ou a flor errada, podemos ter muita dor de

cabeça. Eu, por exemplo, fui cativado por uma flor no meu asteroide. Primeiro, no segundo

sentido. Depois, no primeiro.

A raposa não desistiu e tentou explicar as vantagens de cativar:

- Veja bem, hoje você é igual a mil outras pessoas para mim. E eu sou igual a mil outras

raposas para ti. Mas, se tu me cativares, serás o único para mim. E eu serei a única para ti.

- Isso é bom? Não seria melhor que eu tivesse várias raposas e você tivesse vários

amigos?

- Não mesmo! Se você tiver várias raposas, não me sentirei única!

- Mas e se depois de um tempo você enjoar de mim ou eu não gostar mais de brincar

com você?

- Ainda assim continuaremos juntos, porque... - a raposa limpou bem a garganta,

encheu o peito, fez cara de inteligente e terminou a frase - ...tu te tornas eternamente

responsável por aquilo que cativas.

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Ela falou com tanta imponência que PP resolveu pensar bem sobre o assunto. Como se

fosse um filósofo, coçou a cabeça, cutucou o nariz, fez uma bolinha de meleca e atirou-a longe.

Aí disse:

- Não quero ser eternamente responsável por você. E já sou bem crescido. Não preciso

que ninguém seja responsável por mim.

- Você está estragando minha melhor frase.

- Vamos trocá-la por “Cada um é responsável por si mesmo”.

Uma lágrima correu pelo olho dela, que sussurrou: - Por favor, cativa-me...

- Não dá – respondeu PP. - Tenho muito amigos para fazer e lugares para conhecer.

- Ser cativado exige certos sacrifícios.

- Às vezes o cativado acaba cativo. Aí é sacrifício demais.

- Pelo menos, posso te dizer meu segredo?

- Claro.

- É uma frase muito simples.

- Qual é?

A raposa pigarreou e disse:

- Só se vê bem com o coração.

- Hum..., não concordo.

- Não? Mas essa é uma verdade absoluta!

- Para começar, não acredito absolutamente em verdades absolutas. Depois, o coração

não vê muito bem. Dizem até que ele é cego.

A raposa ficou irritada e falou entre dentes: - Você não me compreende. O que quero

dizer é que o essencial é invisível aos olhos.

- Papo furado! Essencial é comida, roupa, escola, hospital, sua família, seus amigos e

quem você ama. Coisas bem visíveis.

A raposa uivou de raiva e falou: - Desisto. Você é um pentelho!

Então deu meia volta e foi embora.

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- Poxa, nem acredito em tanta coincidência! – eu falei.

- Que coincidência? – perguntou PP.

- É que no livro que eu li, “O Pequeno Príncipe”, também aparece uma raposa, se não

me engano, no capítulo 21, e ela também fala coisas como: “O essencial é invisível aos olhos”,

“Só se vê bem com o coração” e “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”.

- Deve ser a mesma raposa – teorizou o Pentelho. – Você tem um exemplar deste livro

por aí?

- Claro. Sempre levo um na bolsa para o caso de precisar dizer alguma frase inteligente.

Toma aqui.

- Hum... ele tem 27 capítulos.

- Sei todos de cor.

- O nome do autor é Antoine de Saint-Exupéry. Deixe eu ver o que eu descubro sobre

ele no fofocafone.

Então o Pentelho Príncipe tirou outro aparelho estranho de sua capa. Esse parecia um

telefone antigo. Ele botou uma ponta do aparelho no ouvido, outro na boca, e disse: “O que

você sabe sobre um tal de Antoine de Saint-Exupéry?”. Logo o fofocafone começou a contar

alguma coisa e PP ficou só escutando.

Quando o aparelho finalmente parou de falar, PP olhou para mim e disse:

- Uau! Descobri um monte de coisas sobre o Antoine.

- Por exemplo...?

- Ele era aviador.

- Que nem o narrador do livro...

- Sofreu um acidente no deserto e ficou alguns dias isolado.

- Que nem o personagem do livro.

- Ele era casado com uma moça chamada Consuelo, que tinha asma.

- Que nem a rosa do livro...

- A Consuelo era de El Salvador, e perto da casa dela tinha três vulcões: dois ativos e

um extinto.

- Que nem os vulcões do livro...

- Na entrada da fazenda da família da Consuelo existiam três árvores gigantes.

- Que nem os baobás do livro...

- Ele abandonou a Consuelo, mas depois voltou para ela.

- Que nem o Pequeno Príncipe fez com a rosa no livro...

- E também descobri que o Antoine teve várias namoradas enquanto estava com a

Consuelo.

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- Ops! Isso é bem diferente do livro.

- Pois é. Às vezes as pessoas escrevem uma coisa e fazem outra.

23

Era muitas coincidências! Eu estava vivendo uma história parecida com a história de um

livro, que, por sua vez, era parecida com a história do autor do livro, que, por sua vez, tinha um

nome parecido com o meu. Como as coincidências deixam a gente curiosa, eu perguntei:

- O seu fofocafone contou mais alguma coisa sobre a Consuelo?

- Ah, claro. Disse que ela escreveu um livro chamado “Memórias da rosa”.

- E o que ela contou?

- A vida dela com o Antoine.

- Aposto que ele era maravilhoso!

- Nãnanina. A Consuelo escreveu que o Antoine se ausentava muito, que era egoísta,

mulherengo, infantil, cruel e sovina.

- Poxa... – eu lamentei. - Li aquele livro tantas vezes que pensava que o seu autor era

um sujeito perfeito.

- De perto, ninguém é perfeito. Mas parece que ele era legal e amava mesmo a rosa.

Quero dizer, a Consuelo.

- Como, se ele tinha outras namoradas?

- Acho que o amor não é uma coisa perfeita como dizem por aí.

Então ele pegou uma folha de papel, fez dois desenhos e disse:

- A gente pensa que o amor é assim:

Mas ele é assim:

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Fechei o capô e desisti de tentar consertar o motor. Eu estava completamente negra.

Parecia que tinha caído num poço de petróleo. E, para piorar, estava morrendo de sede.

- Minha boca está seca! – reclamei.

PP sacudiu meu cantil, que não fez nem um barulhinho, e falou: - Você não tem nem

mais uma gota.

- É isso! – eu gritei bem alto.

- Isso o quê?

- Estou sem uma gota.

- De água?

- Não. De gasolina! Esqueci de abastecer o carro quando saí do aeroporto.

- Ah, então esse é o defeito dele!

- Pois é. Precisamos achar um posto. Vamos lá?

- Você quer que eu ande horas por este deserto com você?

- É isso ou ficar aqui sozinho.

Ele pensou um pouco e disse: - Tudo bem, vamos lá.

Andamos, andamos, andamos. O suor escorria, desenhando riozinhos transparentes na

minha testa preta de graxa.

- Meus pés estão doendo muito! – eu falei.

- Por que você não tira esse sapato de salto alto?

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- O quê? E ficar baixinha? Nunca! O salto alto é o pedestal de uma miss.

- Você é quem sabe...

- Não pode faltar muito para encontrarmos um posto. Já estamos andando há quanto

tempo? Três ou quatro horas?

- Quinze minutos.

- Só? O tempo passa devagar às vezes.

Depois de mais quinze minutos, que pareceram um dia inteiro, avistamos um posto. Seu

nome era Posto do Poço.

O frentista nos explicou a história do lugar:

- Havia um poço de água meio abandonado aqui. Era daqueles feitos com pedrinhas e

tinha um balde que subia e descia por uma roldana.

- Igualzinho o poço do livro do Pequeno Príncipe! – gritei. – Mais uma coincidência!

- Vai ver é o mesmo – PP falou.

O frentista continuou: - Um dia, em vez de água, o balde trouxe uma coisa preta. Era

petróleo. Daí fizeram aquela torre ali e transformaram o poço de água num posto de gasolina. É

bem mais lucrativo.

Olhei para cima e só então percebi que estávamos embaixo de uma gigantesca torre de

petróleo.

- Poxa, o poço antigo devia ser bem mais bonito e matava a sede – reclamei.

- Também vendemos garrafinhas de água – respondeu o frentista.

- Mas um poço é mais poético - rerreclamei.

- O seu carro não funcionaria com água. Às vezes é melhor ser prático do que poético –

falou o frentista.

E o Pentelho Príncipe comentou: “Esse é dos meus”.

25

Enquanto bebíamos água (não do poço, mas das garrafinhas plásticas) o Pentelho

Príncipe me confessou uma coisa:

- Sabe, estou com saudade daquela rosa do meu planeta.

- Arrá!

- Arrá o quê?

- Você fica se fazendo de durão, mas no fundo gosta da Rosa.

- Nunca disse que não gostava. É que nosso problema de convivência virou um

problema de sobrevivência.

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- Você está pensando em voltar para o seu asteroide?

- De vez em quando, só de vez em quando, me parece uma boa ideia. Mas minha nave

está sem combustível.

- Ora, estamos num posto de gasolina.

- Meu disco voador não é movido a gasolina.

- Nesse caso, se você quer mesmo voltar para seu asteroide, só tem um jeito.

- Qual?

- Deixar aquela cobra venenosa do capítulo 17 morder você.

26

Quando PP escutou minha sugestão, fez uma cara que queria dizer:

- ???????

Então expliquei para ele:

- É que, naquele livro que eu li, o Pequeno Príncipe deixa uma serpente venenosa

mordê-lo para ele voltar para a terra de onde veio.

- Mas você não entendeu, Antonia? Uma mordida de cobra não leva ninguém para casa.

Essa história de “voltar para a terra de onde veio” é uma metáfora.

- O que é uma metáfora? – perguntei.

- É um jeito de dizer uma coisa falando outra.

- Não entendi.

- Seus olhos são duas estrelas.

- Poxa, obrigada!

- Não, isso foi uma metáfora. Eu não quis dizer que seus olhos são mesmo duas estrelas.

Quis dizer que eles são muito brilhantes e belos como se fossem duas estrelas.

- Obrigada do mesmo jeito.

- Pois bem, no caso do seu Pequeno Príncipe, o “voltar para a terra de onde veio” é uma

metáfora de morrer.

- É mesmo?

- Claro. O autor quis dizer que o Pequeno Príncipe estava com tanta saudade da sua rosa

que preferiu o suicídio.

- Que lindo!

- Lindo, não. Horrível! O suicídio quase sempre é uma coisa muito triste. E, quando ele

acontece por amor, é uma coisa triste e burra.

- Por quê?

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- Porque os males de amor sempre têm cura: outro amor.

- Isso é muito cínico.

- Não. É muito realista. Quando se perde um amor parece que o mundo vai acabar. Mas

ele não acaba. E, depois de um tempo, sempre aparece outro amor. É como um jardim. No

inverno as flores somem, mas, se você adubá-lo bastante, na primavera as flores vão aparecer de

novo.

- Adubá-lo?

- Sim, colocar adubo, esterco, cocô.

- Blargh, você misturou amor com cocô. Que mau gosto!

- Ora, como você acha que as rosas ficam tão grandes, belas e cheirosas? Com muito

adubo, ou seja, cocô.

- Pare de falar cocô!

- Parei.

- Ainda bem.

- Cocô.

- Ei!, você disse que tinha parado.

- Falei mais uma vez só para te irritar.

- Você é um pentelho!

- Obrigado.

Decidi ficar um pouco em silêncio para pensar naquilo. Mas ficar em silêncio para mim

é um sacrifício. Então, depois uns quinze segundos, perguntei: - Você acha mesmo que no final

do livro o Pequeno Príncipe e a rosa não ficam juntos?

- Não. Se ele foi picado, morreu. E por um motivo bem besta. Coisa de adolescente

romântico. Tipo Romeu e Julieta.

- Quem?

- É outro livro, tão famoso que é conhecido até no meu asteroide. Mas deixa pra lá. O

que importa é que a morte não junta ninguém. O Pequeno Príncipe poderia ter cultivado outras

flores até achar uma da qual gostasse bastante.

- É o que você está fazendo? Procurando uma outra rosa que não queira arrancar sua

cabeça?

- É. E logo que eu encher o tanque da minha nave, volto a procurar.

- Qual o combustível do seu disco voador? Álcool ou gasolina?

- Xixi.

- Sério? Então acho que posso te ajudar. Bebi um monte de garrafinhas de água.

Sem perder um segundo, saímos correndo pelo deserto na direção da nave do Pentelho

Príncipe. Dessa vez eu tirei o salto alto.

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Já faz seis anos que tudo isso aconteceu.

O Pentelho Príncipe, depois que enchemos seu tanque, foi passear pela Terra e acabou

indo parar na Malásia. Lá ele encontrou a flor de sua vida, a Rafflesia, que ele chama de Rafa. É

a maior flor do mundo. Ela chega a um metro de diâmetro e pesa seis quilos. De lá, ele me

escreveu esta carta:

“Cara Antonia, estou muito feliz com a Rafa. É uma flor sem frescura. Ela cuida muito bem de si mesma, é enorme, linda, e tem um perfume único. O curioso é que ela é carnívora. Mas só come insetos. Nunca tentou arrancar minha cabeça. Vai aí uma foto nossa.

Um beijo do seu Pentelho Príncipe.”

Já eu, depois de botar gasolina no meu carro, fui até o concurso de Miss Pirâmide.

Cheguei tão em cima da hora que nem deu para limpar a graxa. E por causa disso fiquei em

primeiro lugar. Os jurados disseram a minha ideia de me cobrir com petróleo foi muito criativa.

Ah, se eles soubessem...

Mas não casei com o príncipe árabe. Ele era muito baixinho e muito chato. E eu não

queria passar a vida toda ao lado de um pequeno príncipe chato. Então não aceitei o prêmio,

voltei para casa e desisti de ser miss.

Como eu tinha gostado de mexer no motor daquele carro no deserto, decidi ser

mecânica e abri uma oficina.

Um dia, quando eu estava cheia de graxa (na verdade, todos os dias eu estava cheia de

graxa) apareceu um taxista na oficina. Em cima do seu táxi ia uma coisa assim:

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E, por uma grande coincidência, o motorista era o Felipe Augusto, o meu primeiro

namorado.

Ele ficou muito surpreso ao me ver toda suja e disse:

- Antônia, que sujeira! Acho que você não é mais tão vaidosa quanto antigamente. Poxa,

como você era insuportável!

Atirei uma lata de óleo na cabeça dele. E acabamos nos casando. De vez em quando

brigamos, mas sempre fazemos as pazes.

Outra coisa: depois daquele encontro com o Pentelho Príncipe comecei a ler outros

livros. E achei isso muito bom. Não sei como uma pessoa pode achar que tudo o que ela precisa

saber cabe num livro só.

Não cabe mesmo. Em nenhum!

Muito menos nesse aqui.

Um beijo, Antonia.

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