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A banda da Sociedade Musical União XV de Novembro e a construção de uma identidade nacional no início do século XX

Autora: Manuela Areias Costa* ([email protected])

Resumo

Este trabalho propõe uma investigação sobre as práticas musicais da banda Sociedade Musical

União XV de Novembro, oriunda do município de Marina, Minas Gerais, entre o período de

1901 a 1930. Daremos ênfase nesse artigo à análise sobre as práticas culturais dessa banda e a

construção de uma identidade nacional. Criada com uma postura político partidária, a banda

da Sociedade Musical União XV de Novembro, fundada em 1901, tinha o objetivo claro de

propagar os ideais republicanos, utilizando-se do valor do simbólico para a formação ou

afirmação de uma identidade nacional. Uma multiplicidade de traços e indícios nos leva a

perceber o quanto a música em Mariana manteve relações com o universo social. Para tanto,

consideramos que as bandas de música estão inseridas num mundo de pluralidade cultural e

de configurações sociais repletas de conflitos e diálogos.

Palavras Chave: práticas culturais, banda de música, identidade nacional

Abstract

This work propose an investigation about the musicals practices from XV de Novembro Music

and Society (SMXVN) music band, from 1901 to 1930. It will give emphasis to the analyses

of the cultural practices and construction of national identity that band. The XV de Novembro

Music and Society (SMXVN) music band, created in 1901 whit posture politics, had the

objective of propagate the republican ideal, to make use of value of symbolic for the

formation or affirmation of an identity national. Furthermore this work p resent several traces

and signs which demonstrate the relations among the music and the social universe. That

music band was inside a world with of so many cultures, and social configurations replete of

conflicts and dialogues.

Key Words: cultural practices, music band, national identity

* Mestranda em História na Universidade Federal Fluminense (UFF).

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Introdução:

“O mistério da nossa música é o mistério do Brasil mesmo, diz-me o que cantas e eu te direi quem és.Mas nós cantamos tanta coisa e tão diferentes... Quem seremos nós?” (ALMEIDA, 1928)

Daremos ênfase nesse trabalho à análise das práticas da banda Sociedade Musical

União XV de Novembro, oriunda da cidade de Mariana, Minas Gerais e a formação de uma

identidade nacional. Esta pesquisa possui o objetivo de discutir algumas questões que fazem

parte do universo das representações culturais e como se organizam os símbolos no ambiente

dessa sociedade musical durante o período que compreende as três primeiras décadas do

século XX. Para melhor compreender as questões referentes às práticas dessa banda, é

necessário levar em consideração algumas questões pertinentes ao contexto da época, pois

neste período, as sociedades musicais tiveram que cada vez mais que se incorporar no cenário

urbano das várias cidades brasileiras.

Ao contemplar o recorte temporal que envolve os anos de 1901 (período que remete a

fundação da banda) a 1930 (período da Primeira Republicano), partindo do estudo das

práticas dessa banda também pretendemos apreender algumas questões sobre a fase de

modernização de caráter nacionalista que se deu no país. Cabe ressaltar que essa época foi

marcada tanto pela modernização técnica de grande parte das cidades brasileiras, quanto pelas

múltiplas construções simbólicas ligadas ao novo viver, cuja apropriação de alguns símbolos

modernizadores influenciou a sociedade de todo o país durante esta época abordada (Cf.

CARVALHO, 1990:32). É relevante ressaltar que neste período os republicanos buscavam

cada vez mais a criação de uma identidade para a nação brasileira e as bandas tiveram o papel

fundamental nessa construção. Desta forma, acreditamos que existe uma conexão entre as

práticas dessas sociedades musicais e o uso de símbolos no processo de formação de uma

identidade nacional.

“A busca por uma identidade coletiva para o país, de uma base para a construção da

nação, seria a tarefa que iria perseguir a geração intelectual da Primeira República (1889-

1930)” (CARVALHO, 1990:32). Assim, ao tentar interagir com o contexto modernizador, as

bandas de música tiveram que conviver com todas essas mudanças de maneira que foram

reinventando suas tradições. Um bando de idéias novas iria acompanhar a articulação e a inserção do país nesse contexto modernizador e propiciar a gestão de novas elites formadas pelos modelos de um pensamento científico e cosmopolita. Essas elites atuariam já na ordem

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republicana, como mediadoras na integração do país aos novos termos da gestão internacional do capitalismo (CARVALHO, 1990:35).

Substituir um governo e construir uma nação, esta era a tarefa que os republicanos

tinham que enfrentar. Segundo José Murilo de Carvalho, para que as ideologias republicanas

não permanecessem apenas em um círculo elitista, as visões de república para o mundo extra-

elite deveriam ser passadas por sinais mais universais, de leitura mais fácil, como as imagens,

as alegorias, os símbolos e os mitos (CARVALHO, 1990:10).

Ainda segundo Carvalho, a discussão dos símbolos e de seus conteúdos fornece

elementos preciosos para entendermos a visão de República e da sociedade da época. “Ela

pode ser particularmente importante para revelar as divergências e os conflitos entre as

distintas concepções de república então presentes” (CARVALHO, 1990:13).

Portanto, ao estabelecer conexões entre práticas culturais e a utilização de símbolos no

processo de construção de diferentes formas identitárias, podemos apreender a lógica que

organiza os símbolos no ambiente de uma banda de música. Para tal, assumimos o enfoque

que vê os símbolos e comportamentos, idéias e ação, teoria e prática como componentes

integrados na vida social. Conforme Lúcia Lippi Oliveira, a idéia de nação está integrada no

universo simbólico (OLIVEIRA, 1990:14). Deste modo, levaremos em consideração a

vertente que estuda o nacionalismo do período como um movimento de idéias e ações que

visam construir a nação brasileira por meio do uso de símbolos. Através dessa perspectiva,

pretendemos confirmar a hipótese de que as bandas também estavam comprometidas com os

valores da nova ordem, devido à utilização do poder do simbólico.

Com tantas significativas mudanças acontecendo no âmbito mundial e no quadro

brasileiro, podemos dizer que a vida social em Mariana encontrava-se num limiar de difícil

definição, na batalha entre o “tradicional” e o “moderno”. O município, à sua maneira, foi

gradualmente sintonizando-se às novas projeções constituídas sobre o progresso e a

modernidade. É justamente nesse ambiente marcado pela prática cultural colonial, mas

permeado pelas apropriações de novos discursos, costumes e símbolos que pretendemos

evidenciar alguns aspectos sobre as práticas identificadas no interior de suas bandas de

música.

A música tocada pelas bandas era apropriada como signo de modernidade,

desenvolvimento e opulência, reforçando a imagem que se queria construir da cidade no final

do século XIX e começo do XX. Sendo assim, essas instituições musicais colaboraram para a

construção de uma identidade musical para a nação. Seus músicos contribuíram para esse

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ideal republicano, pois, cabe lembrar que a banda também pode ser vista como espaço de

diálogo, construção e afirmação de uma determinada identidade.

Valendo-se principalmente desse ponto de vista, é relevante ressaltar que desde sua

origem, as associações musicais, em geral, sempre mantiveram próximas do poder,

apresentando funções simbólicas. As referências encontradas em relação às mesmas são

sempre associadas à figura do rei ou do imperador, de uma irmandade religiosa, de um

poderoso proprietário rural, ou partidos políticos. A sua existência sempre esteve

condicionada a realização de eventos e comemorações onde se fazia necessário o destaque

através da música. É com tal perspectiva que é pensado o objeto dessa pesquisa.

Contudo, a nossa proposta é de analisar a banda da Sociedade Musical União XV de

Novembro contempladas pelos habitantes de Mariana, a partir de suas práticas (incluindo:

imagens, discursos, símbolos, atos e gostos musicais), nas quais elas procuravam construir

suas posturas e identidades sociais no âmbito da República, modos de ser dinâmicos que se

forjavam entre o “novo” e o “tradicional”. Nesta perspectiva, as sociedades musicais de

bandas podem ser vistas como instituições que em um dado momento um grupo ou

coletividade projetou simbolicamente a sua representação de mundo (Cf.VOVELLE,

1991:70).

A partir de conceitos de práticas, representações e apropriações, apresentados por

Roger Chartier, constituiremos a nossa reflexão de como essa banda citada se fez signo de

distinção social, como foram apropriadas pelos diversos segmentos da sociedade, como se

davam a sua produção e o seu uso. Para alcançarmos tais orientações, foram cruzadas

diferentes fontes como: partituras musicais, correspondências, fotografias, catálogos de

instrumentos, estatuto, livro de atas, jornais e revistas. Tais fontes envolvem, basicamente,

dois arquivos privados e institucionais: Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana e

Arquivo da Sociedade Musical União XV de Novembro.

As práticas musicais e a História Cultural

Partimos da conjuntura de que as práticas musicais se inserem no plano das práticas

culturais, excluindo a visão dicotômica de cultura erudita e popular. Desta maneira,

consideramos que o campo cultural é dinâmico e seus significados variáveis e historicamente

condicionados. Chartier salienta que a História Cultural dirige-se ás práticas e representações

que, de maneira plural e contraditoriamente, dão significado ao mundo (CHARTIER, 1990:2).

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Nos últimos anos as práticas musicais ganharam um espaço muito grande na pesquisa

histórica. Esta conquista ocorreu a partir do desenvolvimento de alguns trabalhos que

apresentaram na sua metodologia a relação da música com fatos e eventos da vida

sociocultural (MORAES, 2000:203-221). A partir da exploração de debates teórico e

metodológicos como este, a música passou a ser vista como fonte ou objeto privilegiado da

historiografia por contribuir para a construção de uma história cultural. Como obra de arte, ela

pode ser vista como a expressão de projetos e lutas culturais contraditórias de uma

determinada época, dessa forma ela é “historicamente produzida pelas práticas articuladas

(políticas, sociais, discursivas) que constrói [...]” (CHARTIER, 1990:28). Tais práticas são

consideradas complexas e ajudam a construir um mundo repleto de representações.

Durante um bom tempo os trabalhos sobre o universo da música brasileira

estabeleceram uma diferenciação discutível entre música erudita, popular e folclórica. Porém,

essa problemática passou a ser cada vez mais posta em xeque por uma série de pesquisadores,

por causa da dificuldade de se compreender a história da música brasileira em conceitos tão

estanques (popular; erudito). Portanto, a música brasileira é resultado de encontros culturais

entre diversos segmentos da sociedade, englobando etnias, classes sociais, tradições e

modernidades, em um processo dialético repleto de tensões.

Na virada de 1980 para 1990, historiadores como Arnaldo Contier, começaram a

explorar as polifonias das experiências musicais como parte da história de uma sociedade.

Desta maneira, Contier também elucida que a música deve ser compreendida num contexto

cultural amplo, que vai além da dicotomia entre o popular/erudito (Cf. CONTIER, 1991).

Através desse viés metodológico, reconhecemos que tornou-se cada vez mais difícil

pensarmos a música na fronteira de conceitos tradicionais de música erudita e popular,

sobretudo, porque as práticas musicais na América permitiram historicamente as mais

inusitadas formas de misturas, fusões, hibridizações, circulações e difusões entre variadas

culturas musicais.1

Assim como outras artes, a música oferece um conjunto de investigação bastante

amplo, que não se reduz a um criador e a uma obra, restrita a repertório e a notações musicais.

“Seus mediadores que são os instrumentos e intérpretes (profissionais e amadores), seus

modos de difusão (edição, concerto, disco, rádio, televisão alternando com a imprensa),

merecem ser igualmente pesquisados e questionados” (PROST, apud, CHIMÉNES, 2007:26).

1 O historiador da micro história italiana Ginzburg encontrou no trabalho do lingüista Bakhtin (A cultura popular no Renascimento e na Idade Média) a inspiração para descrever o conceito de circularidade cultural. Ele apontou em suas pesquisas o quanto a cultura popular dialoga com a cultura letrada, podendo ter um caráter de troca ou de luta cultural. Cf. GINZBURG, 1987.

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Portanto, a análise da vida musical pode nos fornecer dados como preferências do público,

sobre formas e gêneros mais em voga, sobre a classe social que a sustenta e sobre fontes de

importação, além de outros fatores (Cf. KIEFER, 1977:66). É de suma importância pensarmos

que o documento musical apresenta um caráter polissêmico, onde perduram vários códigos

que podem ser decifrados.

No universo das práticas musicais, “gestos, comportamentos, sons palavras e cores,

tornam-se, portanto, formas básicas da expressão e decodificação dos sentimentos e idéias”

(MONTEIRO, 2008:32). As práticas musicais trazem também informações sobre determinado

tipo de costume, gosto e estética da sociedade e da época em evidência.

Como instituições sociais, as sociedades musicais incorporam sob a forma de

categorias mentais e de representações coletivas as demarcações da própria organização

social. Desta maneira, o universo das práticas das bandas de música está relacionado com um

sistema de símbolos, 2 significantes e decifráveis que ao serem decodificados, nos informam o

contexto histórico no qual o grupo de músicos se inscreve, revelando-os como agentes sociais

e personagens históricos de seu próprio tempo (Cf. ELIAS, 1995:10-45).

Neste sentido, as práticas musicais no âmbito das bandas podem nos fornecer

informações sobre formas de difusão de certas representações e produções simbólicas,

inscritas na vida social. O autor Jorge Santiago, por sua vez, tece considerações a respeito das

bandas de música dizendo que:Dotadas de representações, de símbolos, de emblemas de uma prática social que as legitima, lhes dão uma função social e a qual é preciso assegurar a proteção, as sociedades musicais têm um papel a desempenhar: aquele de ser, através do reconhecimento público, agentes de reunião e da interação entre as diferentes partes da população urbana (SANTIAGO, 1997/1998:190-191).

Essas sociedades musicais se apresentam como lugares onde se articulam idéias e

imagens, ritos e práticas que exprimem a via escolhida pelo grupo para a sua inserção na

sociedade, melhor dizendo, elas constroem espaços de sociabilidade, afirmando uma

determinada cultura e identidade (SANTIAGO, 1997/1998:190). Chartier salienta, que as

práticas visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar

frente ao mundo, significar simbolicamente um estatuto ou uma posição (CHARTIER,

1990:23). “Através da música, a religião, as demonstrações cívicas e as práticas de

entretenimento podem criar seus discursos e expressar seus conteúdos”

2 Segundo Castoriadis, tudo que se apresenta no mundo social-histórico, está indissociavelmente entrelaçado com o simbólico. Para o autor os atos, individuais e coletivos são impossíveis fora da rede simbólica. Os sistemas simbólicos sancionados ligam a símbolos (a significantes), significados (representações). Cf. CASTORIADIS, 1982:142.

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(MONTEIRO,2008:36). Deste modo, as bandas de música participam efetivamente de uma

linguagem social. A presença nas festas civis, políticas ou religiosas nas quais se apresentam

faz com que elas incorporem, cada vez mais, outros e “novos” discursos sociais. Assim, as

bandas de música se apresentam como lugares de apropriações forjadas a cada tempo e ao

gosto de um grupo de músicos formados por “profissionais liberais”. A forma com que a

história social da banda é constituída implica na “construção” ou “produção” da realidade por

meio de representações.

O conceito de dialogismo inspirado na teoria de Bakhtin é usado aqui como recurso

metodológico compreendendo as práticas culturais reais dos músicos da banda da Sociedade

Musical XV de Novembro - comportamentos, condutas, interpretações, produtos - no plano

dos dialogismos culturais.3 Assim, as bandas possuem a capacidade de evidenciar sempre

novas representações culturais, de trazer na sua base uma polifonia de vozes: o diálogo com

diferentes dimensões temporais e culturais. Desta forma, o exercício das práticas culturais das

bandas de música está inserido na perspectiva da linguagem social, cujo dialogismo cultural

vem a nos oferecer ferramentas para entendermos a construção da produção artística dos

músicos da banda, como foram desenvolvidos os diálogos e como ocorreram os

atravessamentos entre o discurso e a cultura.

A análise da banda da Sociedade Musical União XV de Novembro pode nos fornecer

indícios importantes sobre a vida sociocultural de seus músicos, as ocasiões em que se

apresentava, o perfil do público que participou de suas apresentações, o tipo de instrumento

utilizado pela mesma, os gêneros musicais reunidos no seu repertório e o propósito do uso de

alguns símbolos. Esses aspectos colocados em cena, através de suas práticas culturais, nos

informam como foram constituídas diferentes identidades no quadro social local e regional.

A banda da Sociedade Musical XV de Novembro e o Nacionalismo

Em relação às formações das bandas no Brasil, podemos dizer que elas foram iniciadas

no século XVIII, com a música dos negros nas fazendas e com a música de barbeiros.4

Porém, no período colonial, as bandas cultivaram instrumentos de sopro diversos, muitos

3 O termo dialogia, foi usado por Bakhtin “para descrever a vida no mundo das produções e das trocas simbólicas, [...] num universo composto de signos do mais simples, como dois paus cruzados formando uma cruz, até os enunciados mais complexos”. Bakhtin nos mostra que uma rede de textos da cultura se dialoga de modo conflitante e contratual. Cf. BARROS, 1999:10.4 Música executada por um conjunto de negros ex-escravos que somavam a profissão de barbeiro o ofício de músico. Cf.ANDRADE, 1989:355.

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ainda, rudimentares, comparando-os com os modelos instrumentais modernos e performáticos

do século XIX. Para Vicente Salles as formações modernas 5 das bandas começaram a ser

introduzidas no Brasil, somente a partir de 1808, com a transferência da Corte portuguesa

para o país, por meio das bandas das corporações militares (SALLES, 1985:11). Em

consonância com essa afirmação, José Ramos Tinhorão considera que:

Formadas a partir do século XIX em alguns regimentos de Primeira Linha, em

substituição a confusa formação de músicos tocadores de charamelas,6 caixas e

trombetas vindos dos primeiros séculos de colonização, as bandas militares tiveram

organização e vida precárias até a chegada do príncipe D. João com a corte

portuguesa em 1808 (TINHORÃO, 1998:139).

Com o passar do tempo, as bandas dos regimentos de Primeira Linha, começaram a

receber maior atenção das autoridades, ocupando, desta maneira, a condição de instituição

encarregada em produzir música oficial até o aparecimento da Guarda Nacional,7 a partir de

1830. Assim, as bandas dessa corporação intensificaram rapidamente as suas ocupações nas

ruas, praças, festas e em outras ocasiões, contribuindo para a formação de capacitados

músicos e para a evolução de vários gêneros musicais em voga no período (incluindo no seu

repertório, além dos hinos, marchas e dobrados, peças de música clássica e popular).

Foi através dessa atuação constante e diversificada que se vinculou a banda de música

civil a traços militares, como no repertório, uniforme e instrumentação. Portanto, grande parte

dos autores relaciona o surgimento das bandas civis à formação das bandas militares, que

atuaram com vários fatores simbólicos e estruturais para a difusão da banda de música civil.

De maneira semelhante, no plano de Minas Gerais a partir da disseminação das

primeiras bandas militares no começo do século XIX, surgiram as bandas civis de caráter

mais moderno. Partindo da averiguação de alguns documentos (citados nas fontes

documentais consultadas), constatamos que muitas vezes, a prática da banda União XV de

Novembro mesmo no século XX, mantinham relações com as práticas das bandas militares,

pois um conjunto de elementos apropriados de bandas de corporações militares ainda era

constantemente utilizado e adaptado nas práticas dessas sociedades musicais.

5 A popularização das bandas e suas formações modernas estão relacionadas com a adaptação das válvulas aos instrumentos de metais, tornando-os mais fáceis de serem executados, e ao desenvolvimento de novos métodos industriais de manufatura, resultando na produção de instrumentos em larga escala, com preço acessível a todas as classes. BINDER, 2006:46.6 Charamelas são instrumentos de sopro de palha dupla e sons estridentes do qual descendem o oboé e o fagote. Cf.KIEFER, 1977:14-15.7 A Guarda Nacional se define como uma organização de caráter paramilitar, criada pelos grandes proprietários de terras, através da Lei de agosto de 1831. TINHORÃO, 1998:141.

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Além da disseminação das bandas civis em Minas ter sido bastante intensa, a maior

parte dos músicos das bandas era composta por mestiços, fato que se comprova pela presença,

em larga escala do mulato profissional livre na região. Pelos dados levantados por Iraci Del

Nero da Costa, podemos considerar que os músicos da Capitania de Minas Gerias no ano de

1804, representavam 41% de todos os profissionais liberais alistados no setor terciário do

sistema produtivo (COSTA, apud, MONTEIRO, 2006 :1-14). O número expressivo de

mulatos profissionais livres, relaciona-se com a intensa miscigenação na região mineira e

principalmente na região mineradora. O motivo que levou tantos mestiços a se envolverem

com a atividade musical deve ser procurado na própria ordem da sociedade escravista.8

A população mestiça era grande e o hibridismo cultural atingiu todos os grupos

sociais, embora a impermeabilidade de certos costumes também se fizesse presente, ainda que

camuflados. Assim, as práticas culturais das bandas de música em Minas, foram resultantes de

significativa miscigenação. Essa mistura de características culturais nos oferece uma vazão

para pensarmos na inserção da banda num quadro de apropriações.

Em relação à relevância das bandas de música em Minas, podemos dizer que, fruto de

uma tradição musical marcada pela valorização da música religiosa, que vem de tempos

remotos do Brasil colonial, as instituições de bandas de música foram pioneiras no interior da

região mineira. Deste modo, as bandas em Minas Gerais atuaram como celeiro de inúmeros

gêneros musicais (entre eles, gêneros populares como a polca, a mazurca, a quadrilha e o

maxixe) e exerceram um papel de suma importância no quadro cultural da sociedade mineira.

Em quase todos os coretos das cidades mineiras do interior havia uma banda que envolvia

uma grande parte da população, criando desta maneira, espaços de sociabilidade. A sua

intensa movimentação em Minas faz com que o estudo da atividade musical no século XX, se

relacione com o universo das bandas de música.

No interior das cidades mineiras, principalmente nas regiões agro-mineradoras, as

bandas cumpriam duas atividades: fornecer música religiosa à Matriz e as demais igrejas e

servir de música profana á população nas retretas aos domingos e dias festivos, não excluindo

disso a sua adesão a um partido político, pois, “em todos os povoados, até nos mais

insignificantes, existiam sempre duas bandas rivais, correspondendo uma do partido

conservador e a outra ao liberal [...]” (HOLANDA, 1976, v.3: 401).

Neste sentido, preocupada em interagir com a nova idéia de nação, a banda da

Sociedade Musical União XV de Novembro, utilizou-se do valor do simbólico como guia de

8 Para Raymundo Faoro, mesmo com a existência de mulatos cativos, a maioria foi de homens livres, executando funções que podiam favorecer a mobilidade social por parte desses mestiços. Cf. FAORO, 1979, v.2: 171-239.

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suas práticas. Criada com uma postura político-partidária, a banda União XV de Novembro,

fundada em 1901, por iniciativa do Dr. Gomes Freire de Andrade, médico, militar, professor e

líder do Partido Republicano na cidade, tinha o objetivo claro de propagar os ideais

republicanos. Nessa época, a técnica da propaganda contribuíu para o culto de veneração a

pátria.

Assim, durante as suas apresentações, ficava evidente o uso do valor do simbólico.

Dentre os símbolos utilizados pela mesma e que faziam referências ao nacionalismo, podemos

citar o uniforme, a bandeira, as músicas e o estatuto. A bandeira e o hino nacional, por

exemplo, elementos usufruídos pela banda em todas as suas apresentações, eram os símbolos

nacionais mais evidentes durante o período (Cf.CARVALHO, 1990:109). O próprio uniforme

dos músicos, confeccionado em 1922, era de cor azul marinho, botões dourados e lista lateral

verde e fazia referências explicitas nacionalistas. A música executada pela banda também

tinha a sua dimensão ideológica, contribuindo para a exaltação do regime. 9 Enquanto a banda

tocava nas comemorações, dobrados e marchas eram inventados com o objetivo de provocar

seus adversários políticos. Além disso, só podia participar da banda quem estivesse do lado do

partido. Em uma de suas apresentações, descrita pelo jornal Rio Carmo, de 1902, os

integrantes da banda e simpatizantes sacudiram a bandeira nacional e gritaram: “Viva o

Partido Republicano do Município!”10. Juntamente com essa sociedade musical, também

nasceu o jornal Rio Carmo, desaparecido em 1903 e reaparecido em 1905 com o nome de O

Germinal. Assim, a banda e o jornal numa espécie de sintonia faziam propaganda do Partido

Republicano na cidade de Mariana.

A apresentação dessa sociedade musical em festas civis, cívicas e religiosas nas quais

participavam toda a comunidade se incorporou no cenário de Mariana. Nas ruas, as práticas

das bandas, bem como as suas músicas e maneiras de interpretá-las, permitiram manifestações

visíveis do que foi o entrecruzamento de várias culturas. Assim, a atividade musical da banda

da sociedade musical União XV de Novembro, possibilitou a sociabilidade popular, pois

durante as apresentações públicas, tanto os músicos, quanto os espectadores, adquiriram

identidades. Seus músicos passaram a ser uma influência cultural devido à difusão de certas

representações, envolvendo os espectadores num laço social.

Através do estudo dessa banda, podemos também exprimir as mutações socioculturais

e políticas que Mariana vivenciou. Desta maneira, confirmamos a hipótese de que pelas

9 Sobre a dimensão ideológica da música podemos citar o estudo de Arnaldo Contier que trabalhou com essa questão durante o período do Estado Novo. Cf.CONTIER, apud, LENHARO, 1986,:60.10 Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Jornal, Rio Carmo. Mariana, 25 de mai. 1902, ano. s/a, n. 15: 2.

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sociedades musicais obtemos contato com diferentes formas de produções simbólicas inscritas

na vida social da época, onde os diálogos culturais tornam-se um dos alicerces mais

importantes para entendermos as práticas de bandas de música.

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