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FORA DE HORAS Paulo Castilho Biblioteca Prestígio Fora de Horas Paulo Castilho (O Paulo Castilho e Contexto, Editora, Lda. C 2OO1 BIBLIOTEX, S. L. para esta edição Licença editorial por cortesia de Contexto, Editora, Lda. Capa: New Color Book Revisão: Ignacio Vázquez e Dante Hermo Impressão e encadernação: Printer, Industria Gráfica, S. A. Ctra. N-II, km 6OO O862O Sant Vicenç deIs Horts (Barcelona) Impresso em Espanha Data de impressão: Maio de 2OO1 ISBN: 84- 813O-366-6 Depósito legal: B.26.578-2OO1 Tiragem: 3O OOO exemplares Todos os direitos reservados De venda conjunta e inseparável com este jornal FORA DE HORAS Paulo Castilho Grande Prémío de Romance e Novela ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE ESCRITORES The streets were dark with sornething more than night. Raymond ChandIer Se quisesse definir a invisível peste que ao acordar me toldava a existência, a palavra seria bruma. Espessa e turva. Um nevoeiro sujo de fumo. Uma asfixia ancestral. Uma derrota atávica. Capitulação num ponto indeterminado do meu passado. A resignação de fel do quotidiano. Arrastei-me sem rumo pelo quarto. Depois sentei-me na cadeira. Apoiei o cotovelo na mesa. Sobre a qual reconheci os marcos da viagem, do pesadelo claustrofóbico do avião, do jet-1ag. O canto dum cartão de embarque. Uma embalagem de amendoins. Uma venda preta para os olhos. Uma carteira de fósforos com as insígnias da TWA. Coisas emocionantes desse gênero. E, entretanto, a minha cabeça como a bateria dum concerto hard rock. Um ponto no estômago como uma lâmina de gelo. Imóvel, em silêncio absoluto, um resvalar lento e imparável para a indiferença total por tudo o que não fosse aquele mal-estar físico sem contornos. Ao fundo, muito ao fundo, cenários de uma existência longínqua, pessoas, coisas, eu próprio. Cabo das Tormentas numa geografia irreal. Eu todo,

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FORA DE HORAS Paulo Castilho

Biblioteca Prestígio Fora de Horas Paulo Castilho (O Paulo Castilho e Contexto, Editora, Lda. C 2OO1 BIBLIOTEX, S. L. para esta edição Licença editorial por cortesia de Contexto, Editora, Lda. Capa: New Color Book Revisão: Ignacio Vázquez e Dante Hermo Impressão e encadernação: Printer, Industria Gráfica, S. A. Ctra. N-II, km 6OO O862O Sant Vicenç deIs Horts (Barcelona) Impresso em Espanha Data de impressão: Maio de 2OO1 ISBN: 84-813O-366-6 Depósito legal: B.26.578-2OO1 Tiragem: 3O OOO exemplares Todos os direitos reservados De venda conjunta e inseparável com este jornal

FORA DE HORAS Paulo Castilho Grande Prémío de Romance e Novela ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE ESCRITORES

The streets were dark with sornething more than night. Raymond ChandIer

Se quisesse definir a invisível peste que ao acordar me toldava a existência, a palavra seria bruma. Espessa e turva. Um nevoeiro sujo de fumo. Uma asfixia ancestral. Uma derrota atávica. Capitulação num ponto indeterminado do meu passado. A resignação de fel do quotidiano. Arrastei-me sem rumo pelo quarto. Depois sentei-me na cadeira. Apoiei o cotovelo na mesa. Sobre a qual reconheci os marcos da viagem, do pesadelo claustrofóbico do avião, do jet-1ag. O canto dum cartão de embarque. Uma embalagem de amendoins. Uma venda preta para os olhos. Uma carteira de fósforos com as insígnias da TWA. Coisas emocionantes desse gênero. E, entretanto, a minha cabeça como a bateria dum concerto hard rock. Um ponto no estômago como uma lâmina de gelo. Imóvel, em silêncio absoluto, um resvalar lento e imparável para a indiferença total por tudo o que não fosse aquele mal-estar físico sem contornos. Ao fundo, muito ao fundo, cenários de uma existência longínqua, pessoas, coisas, eu próprio. Cabo das Tormentas numa geografia irreal. Eu todo, reduzido a um frustrado vómito. A uma convulsão incontrolável. A casa de banho. O líquido amarelo expelido da boca em jactos. O odor acre. Estranho de mim próprio distante, como um espectáculo a que estivesse a assistir. Lavei a boca. Gargarejei. Voltei a sentar-me na cadeira. Uma luz a entreabrir-se. Aplacar o medo de voar numa insensata sucessão de copos. Tinha sido isso apenas. Nem um alcoólico decente, rapaz, conseguirás jamais ser. Posto o que me permiti achar que enquanto há humor há esperança. Humor? Ironia? Um sorriso sardônico e gratuito. Iludir-me. Porque não? Porque sim? Qual ironia? A ironia de me ferir com os arranhões dos meus próprios jogos mentais. já lá vai, hélas, o tempo em que os dramas se resolviam com achados, tiradas cintilantes e outros

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adornos de adolescência serôdia. O tempo em que as coisas, simplesmente, se resolviam. Ou eu achava que se resolviam. Atirando, nesse tempo, para o futuro, com irreflectida naturalidade, as incómodas contrariedades que não se encaixassem na fútil perfeição em que me revia. Que não me queixe portanto de o encontrar - o futuro - juncado agora de indesejados detritos. Mas descobri talvez algumas coisas. Como, por exemplo, que em última análise tudo se paga. Um preço para todas as coisas. Reagan, Thatcher, Friedman, mais a gloriosa década de oitenta. Lucro, produtividade, eficiência. Egoísmo erigido em virtude. Desprezo pelo que ostente como valor acrescentado apenas uma não contabilizável vibração humana. Valor acrescentado: o servo sucumbindo à linguagem dos senhores. Causas perdidas. Gestos inúteis para cumprir um princípio. Cargas da brigada do espírito. Cadáveres relegados para os dejectos esquecidos da História. Por agora, que o futuro tem inesperadas formas de se vingar. Nasci para a ética nos anos 6O. O homem. A libertação. A moral. jamais poderei, na verdade, acreditar em outra razão. Uma limitação que me imponho. Que quero impor-me. E se tiverem razão, eles, hão-de tê-la como um cataclismo tem razão. Por mim, fico com a solidão dos meus erros. Com a lucidez que paralisa. Com a memória de um tempo de graça. Não falo de religião: mas atravessei um tempo de graça. Que se dissipou. Ou que eu dissipei. Não sei quando, nem como, nem porquê. Foi simplesmente assim: um dia constatei que a graça, a magia, talvez também o tudo ser possível - não eram mais. Suponho que não há culpados. Nem inocentes. As coisas acontecem, desenrolam-se. Inevitáveis, porque não soube ou não pude evitá-las. Ou então não quis. Ou não reparei sequer que havia qualquer coisa a evitar. A Marta, também ela, perdeu o estado de graça. As suas singularidades metamorfosearam-se em manias. Em obsessões os pequenos tiques que tão irredutivelmente única a tornavam. A maneira leve que tinha de tocar na vida transformada agora numa mão cansada, absurda, grotesca. Até as crianças. Ou então sou eu, incapaz de me reconhecer na força, na violência da sua presença física. Abrindo caminho para um mundo próprio. Admitirei até que é insuportável a ideia de que esse mundo, essas décadas para vir, me batem com uma estrondosa porta na cara. Mas seja qual for a razão, sejam quais fo, rem as razões, o que importa são os factos. Os factos, que permanecem, teimosos, contra todas as análises, todas as explicações.

De que me serve, porém, perceber, pensar até à exaustão, até que tudo acabe por ser justificável? Devia talvez, acima de tudo, impedir-me de pensar. Soçobrar a uma voluptuosa catalepsia mental. Esquecer, ignorar, soltar as amarras que me prendem a esta doentia obsessão de compreender. Hei-de ser capaz. Ainda que por um momento apenas. De esquecer. Mas, por agora, a claridade do dia insiste em contaminar-me de sobressalto. Olho para o relógio. Quatro da tarde. No fundo, dormi hora e meia apenas. Um meio-sono de pesadelos e suores. Abro a pasta. Retiro a embalagem de Valium. Na casa de banho encho de água o copo dos dentes. Tomo dois comprimidos. Depois deito-me. Nojo de enfrentar o dia. Encerrado na noite artificial dos meus olhos fechados. Até que se esgote de exaustão a invisível corda que me faz vibrar o corpo. Até que tudo se dissolva em esquecimento total. Abri os olhos. Como se fosse no instante seguinte. O estremecimento ainda do estrondo que me tinha acordado. E eu compondo então um patético quadro. O corpo descaído para o lado, a cabeça tombada, os braços esquecidos fora do cobertor. O livro caído das mãos tinha resvalado até ao chão, as suas páginas dobradas no impacto da queda. Peguei no relógio de pulso pousado na cabeceira. Quase dez. Da noite, ao que suponho. Pelo menos não passava já

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luz por entre as dobras da cortina. Excepto um relâmpago vibrando três vezes, como um anúncio de néon. Seguido duma detonação seca que se multiplicou em ecos pelo geométrico labirinto da cidade. E depois o restolhar suave e uniforme de chuva grossa a encharcar o asfalto. Levantei-me. Fui até à casa de banho. Bebi um copo de água. A testa a pingar de suor. Trópicos, monções, malária, the end, Apocalypse Now. We want the world and we want it NOW O inferno quente e abafado do quarto 14O7- Privativa câmara de tortura. Sede como se tivesse atravessado o deserto. Despertando aos poucos. Primeiro sob o duche. Seguindo-se a barba. Diálogos sem sentido vindos da televisão. Absurdos sons para preencher o vazio do quarto. Depois vesti-me. Roupa amarrotada, retirada da mala, que tinha ficado por desfazer. Rituais também de reconhecer o espaço. Habituar-me aos odores acumulados de outros seres humanos que por ali tinham passado. Pousei a mala em cima da cama. Arrumei a roupa nos armários. As minhas malas quando eram feitas pela Marta. Esta não, Longe vão os tempos. Tempos em que a roupa me saía direita, como se não tivesse viajado. Evadido de um apartamento vazio na Avenida dos Estados Unidos para um

vazio quarto de hotel em New York. E a ironia da toponímia não me fez sequer sorrir. Tinha rodado o botão da TV por uma infinidade de estações. À procura de coisa nenhuma. Detive-me num velho western série Z. Pontuar o silêncio. O silêncio do mundo, de Deus, do que quiserem. O silêncio da Marta, exilada na quinta com as crianças. Como se de refugiados de uma guerra se tratasse. A infindável guerra que nos últimos meses nos tínhamos movido. Guerra feita mais de omissões que de actos. Com explosões ocasionais, logo contidas, como se subitamente tomassem consciência da sua própria inutilidade. A fase terminal. Aquela em que já nada há por que lutar. A preto e branco, o filme. Cavaleiros sem nortê, imagens aceleradas, numa labuta de tiros para dentro e para fora do écran. Fazendo-me companhia, os ruídos electrónicos que passavam por grotescas vozes humanas. Também a Marta tinha estado a fazer as malas, numa serenidade quase descontrolada. Não lhe restavam já lágrimas. E eu sem força, sem vontade, no fundo, para esboçar uma palavra de reconciliação. Os miúdos perdidos no meio daquilo tudo. Arrumei a mala no armário. Pus a camisola às costas. Saí. O corredor vazio. O elevador. Deixar a chave na recepção. Até à rua. Mergulhar sozinho na noite. Durante um instante fiquei parado no passeio. O guarda-chuva na mão. Mas já não estava a chover. Tratava-se agora de medir a cidade. As ruas como um túnel es- curo, ventoso, húmido, sufocante. A Lexington Avenue enorme e quase deserta, numa hora de outro fuso, que não tinha ainda para mim sentido que não fosse o abstracto número nos ponteiros do relógio. A noite espessa de calor. 82 Fahrenheit, lembro-me de ter ouvido na TV. And thundershowers setting in during the night. Parado na esquina da Lexington e 49. Depois comecei a descer Manhattan. Alguns carros. Pessoas, quase nenhumas. Qualquer coisa de irreal em tudo aquilo. Vapor branco emitido, como de uma chaminé, por tampões recortados em círculo no asfalto. Na Rua 42 virei à direita. A mesma escuridão. Embora, a vários quarteirões de distância, se distinguisse o cintilar longínquo da Broadway. Andar, andar sempre. Como se quisesse iludir um invisível perseguidor. O gigantesco anúncio da Coca-Cola. Burger King. Howard Johnson's. New Paris Theatre, anunciando topless french revue live xxx girls girIs girIs. Um português em Times Square à procura da América. Runyon perdido. Goldstar video audio appliances. Pessoas numa azáfama urgente e sem norte. Transeuntes de indeterminados vícios. Ofereceram- 1O

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-Me droga. Mulheres também. Entrei numa cafeteria plagiada do Edward Hopper, como um gigantesco aquário de néon. Janela de ponta a ponta descrevendo uma curva de 9O graus. Fila de bancos à volta do balcão. Empregado de bivaque às tiras brancas e vermelhas. Mas, uma vez mais, era como se nada daquilo estivesse na verdade a acontecer. just my imagination. Sentei-me ao balcão. Mandei vir um hot-dog e um café. Meti moedas numa máquina e saiu um maço de cigarros e uma carteira de fósforos. De novo a rua, a multidão. O arrepio íntimo de um cansaço que tinha deixado de ser físico. Rapaz da alma fatigada. Sons de Pedro Homem de Melo. Dedilhando um fado mudo e expatriado. Cigarro ao canto da boca. Comprei o New York Times. O único exemplar que restava. Roto e amarfanhado. Ninguém o tinha querido. North to be next witness. Meter-me no ambiente. A cada passo polícias aos pares passeando lobos-d'alsácia. A 42rid Street, sem o Busby Berkeley. Prostitutas negras pelos vãos das portas. Come along and listen to the lullaby of Broadway. Portas entreabertas para os equívocos prazeres que ali se transaccioriam. Sex shops propondo revistas e outros sedativos da solidão. Homens em silêncio folheando desejos frustrados. Entrei numa espécie de galeria obscura onde fumo velho se misturava com suor de corpos. Onde mulheres nuas executavam réplicas de pesadelos eróticos. Imagens a 5 dólares liquidados à porta e mais 1O por uma taça que não tentava sequer passar por champagne. O ritmo obsessivo da Donna Summer. Homens obscuros sentados em mesas, virados para o palco. Estranhas químicas percorrendo-lhes as entranhas. Noutros tempos, noutros palcos, pelo meio daquelas ou de outras mesas, os seus passos insolentes, o james Cagney, safando-se mesmo antes de a porta ser arrombada pela polícia (cujo chefe se chamaria O'Rourke). A proibição. Uma chávena em vez desta taça que me gela os dedos. A pequena não precisava de estar nua porque o seu nome seria Rita Cansino. Cumprimentos de Joseph 1. Breen. Pago a conta e saio. Numa incontrolada agitação. Percorro várias vezes os mesmos quartei- rões da Rua 42. Paro nos cartazes dos cinemas. Detenho-me nas montras das lojas que exibem, em excessos de iluminação, objectos inúteis. E as pessoas. Em grupos. Multidões. Numa animação de quem anda ali com propósito. Mas a verdade é que insisto em percorrer aquelas ruas. Em preencher aquela noite. Sem direcção. Sem sentido. Sem razão que eu próprio fosse capaz de discernir. Mas insisto. Que diabo, há-de haver ali qualquer coisa de 11

fundamental que eu deva fazer, que eu deva ver. Que possa absorver-me, Recuso-me, repito, recuso-me a aceitar que também aquela noite tenha de terminar como uma porta a abrir-se para coisa nenhuma. Disponibilidade deitada a perder. Absurda procura de um horizonte que não existe. Por fim, tudo aquilo me esmaga. Tudo aquilo me dilacera. Feridas abertas, expostas à crueldade cega e implacável da cidade. O cansaço do ruído. Das luzes. De mim próprio. Exposto como a um sol de Verão. Acendo outro cigarro. Procuro uma sombra qualquer em que possa diluir-me. Em que me não sinta recortado contra a realidade. Uma rua lateral. Caixotes do lixo. Um homem de meia-idade, o seu cão pela trela farejando sórdidos despojos urbanos. Para mim, a perplexidade apenas. A surpresa daquilo em que tudo se transformou. Os anos que passaram. E tudo ficou na mesma. A surpresa da minha própria capitulação. A surpresa da impotência em que me transformei. E a única surpresa autêntica, que é, no fundo, a de ainda estas coisas me surpreenderem. Luz pálida embalando em sonolência o hall do hotel. Passam-

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me para a mão uma chave pesada. O elevador enorme e vazio. Vou sufocado. Sinto a subida como a vertigem duma queda. O quarto abafado. Abro a janela. Ligo a TV Tento amarrar-me a estas pequenas coisas. Apanho um filme do Preston Sturges. Descalço-me. Estendo-me na cama vestido. Olho para as imagens. Screwball comedy. No entanto, nem um sorriso, ainda que contrafeito, sou capaz de me forçar. Do que sou capaz, isso sim, é duma dispersão de alienado, imagens incoerentes possuindo-me em avalanche. Sintomas físicos também. O pulso bate-me com força. O meu corpo, todo ele, como se estivesse no ponto de explodir. Levanto-me. Abro a janela um pouco mais. Sento-me no parapeito. Olho em volta. Olho para baixo. Traseiras feitas de labirintos e janelas. Escadas de ferro como se ali tivessem sido colocadas para cumprir padrões cubistas. Escadas de ferro como no West Side Story. E se me deixasse cair? Um, dois, três segundos e depois nada. Um estremecimento que durou apenas um instante. Mas tê-lo pensado restitui-me uma paradoxal leveza. A mera possibilidade. Que existia, pelo menos essa. O despertar de um torpor antigo e cansado. Como se tivesse tocado num nervo que dentro de mim andava perdido. Passada a vertigem daquela fracção de segundo. Perdida a carta que completa o flush. Fechei a janela. Sentei-me na cama. Olhei-me para dentro. Fiz-me um inquérito. Retirando, no fundo, ainda uma estranha satisfação 12

de poder autolamentar-me do enjoo existencial que nessa noite me tolhia. Lady Eve desvendando o seu mistério, como se jogos daqueles pudessem remotamente interessar-me. Fui até à casa de banho. Enchi de água o copo dos dentes. Engoli dois Valiuras. Deitei fora o resto da água. Que substituí por dois dedos bem medidos de whisky puro. Encostei-me na cama a olhar para a reprodução pendurada na parede em frente. A grande pradaria americana, decorada por um búfalo e por um cavaleiro índio coroado num esplendor de penas brancas. Tentando não pensar em nada. Desesperadamente, Até esgotar a garrafa, se necessário fosse. Essa noite, prometi-me, havia de acabar por adormecer. 13

11 E stendido na cama, a braços com o tumulto que me fremia por dentro. A longa noite. Olhando impotente para as imagens sem sentido no écran da televisão. O som agora desligado. Na mesa-de-cabeceira o copo e a garrafa de whisky. O seu nível descendo como um relógio de areia. E, não obstante, aquela agitação que me arrasava as fundações. Vencida, por fim, na ponta do terceiro Valium, dissolvido em álcool. Potencializando o efeito. Ao que me dizem. Mas ainda vi o dia a declarar-se tímido através duma nesga aberta na cortina. Que não tive já alento para fechar. Foi tudo o que vi da luz desse dia. Recordo-me de terem batido à porta. De a terem aberto e voltado a fechar. Ou então foi um sonho que transbordou. A mulher da limpeza, segurando nas mãos o aspirador e um pano. E talvez também uma expressão de: o que é que se há-de fazer quando eles são desta força. O meu sono sacudido à beira de uma janela escancarada para abismos de indefiníveis turbulências. Levantei-me. A cabeça como uma bola de chumbo. Sabor acre na boca. Fui até à janela. Abri as cortinas. A escuridão negra das traseiras, uma vez mais. No céu a lua, quarto crescente ténue como um cabelo de luz. Voltei a fechar as cortinas. Pedi room service. Um café preto, como manda Hollywood. Uma sandwich. Dois comprimidos de Optalidon. Um terceiro para ter a certeza. Estimulante para repor a engrenagem em marcha. E a TV de novo, outra janela irreal para um

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mundo remoto. Programa de vídeo clips de hip-hop. Os movimentos sincopados da coreografia a marcarem o ritmo violento do MC numa interminável arenga. 1 don't mean to blow your bubble, but the girIs of the world are nothing but trouble. Rapper feminina seguindo-se, vestida toda de branco, mais um imenso chapéu de cossaco. Roxanne Shanté, voz doce, palavras agressivas. 1 gave birth to most of them MCs. Fra 15

Shanté the microphone grand mistress, a pioneer like Lona Ferlona with a name that stands big like Madonna. Fra the super female that's called Shanté and like hurricane Annie 1'11 blow you away. Um duche a converter-me para a noite. No silêncio da noite o prédio era um monstro sem contornos. Massa perdida na escuridão. Janelas iluminadas numa geometria de acaso. Erguido nos anos 4O, enquanto Roosevelt acabava de dobrar a depressão e os marines construíram nas areias de lwo Jima um monumento de carne e osso à bandeira. Stars and stripes à maneira de Allan Dwan. O elevador lento. Grades escuras de ferro e um condutor negro. Oitavo andar. Depois a porta do apartamento abriu-se para um espaço enorme. Inundado de luz a mais. Poucos móveis. Mas os que havia ostentavam a elegância de objectos de arte. Um discreto brilho de qualidade. Colocados com precisão de mestre. Um toque que não se aprende. A Maria José disse que me sentasse. jogo de sofás forrados de tecido branco. Através da porta de vidro que ao fundo dava para a varanda, uma vista de fazer perder o fôlego. Riverside Drive, asfalto e jardins. O resto, planos seguintes, era o rio Hudson e, na outra margem, o Estado de New Jersey. A Maria José trouxe-me, sem que eu lho tivesse pedido, um copo com whisky, água e muito gelo. Um guardanapo de papel para não me molhar, ou para não me arrefecerem as mãos. Ou não sei para quê. A Maria José ergueu o copo e sorriu-me: long time no see. E depois disse: ainda bem que vieste mais cedo, assim podemos falar um bocadinho. Dos bons velhos tempos - disse eu. Sorriso que pretendia ser amar- go. Não fales em velhos - disse a Maria José. Levantei-me. Fui até à janela. As luzes e as sombras. O palpitar nocturno da cidade. Abri o vidro. O ar fresco. Prova de que existia qualquer coisa de tangível. Para além da doentia redoma em que me tinha en- cerrado. A vista prodigiosa que tu tens. Lá em baixo, acompanhando os contornos da mancha negra do rio, candeeiros eléctricos, clarões de luz na avenida. Com a sua fila de árvores. Os seus passeios largos. Movimento de carros. Vidas cruzando-se numa faina de insecto. Fechei a janela. A Maria José tinha-se esquecido dos aperitivos. Distribuir pela casa os últimos retoques. Entretive-me a olhar para os livros dentro duma estante com portas de vidro. Os discos também. A colecção de rock cessava por volta de 1971. O resto era jazz, música barroca e algumas óperas. A Maria José atirando-me perguntas soltas enquanto acabava de espalhar pela casa taças com amendoins, bolachas 16

salgadas, coisas do género. Preparar o campo, numa trivial teia de palavras. Mas depois disse: a Marta e os miúdos? Sabia. Ou pressentiu. Ou eu que estou a ficar paranóico. Gaguejei qualquer coisa que não era sequer uma explicação. Longamente. Denunciei-me. Mostrei a mão. Mas que raio tinha eu para esconder? E ainda por cima da Maria José. Depois disse: merda, que confusão, a Marta acabou-se, foi tudo pelos ares, kaputt. Tudo. Estás a olhar para uma ressaca de muitos e muitos meses. Entornando-me agora nu e a sangrar. Ela disse: que chatice. Lamento. Destas coisas que se dizem. Porque havia ela de lamentar? Amigos de

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infância. E daí? Depois perdemo-nos o rasto. Encontros esporádicos apenas. Daqueles que terminam com temos de nos ver, telefono-te um dia destes. Não consigo lembrar-me se ela conheceu a Marta. A Maria José perguntou o que é que se tinha passado. Uma porta por onde fugir. Mas não consegui encontrá-Ia. Uma ponta de pânico. Como explicar-lhe sem transformar o meu desespero num enredo? E depois e depois e depois. Talvez um dia seja capaz de arquivar tudo isto num coerente melodrama. Mas por agora não. Presumo, porém, que terei dito qualquer coisa. Porque ela me respondeu que há menos de um ano nos tínhamos cruzado na Baixa e eu lhe tinha falado com tanto entusiasmo nos meus planos. Meus e da Marta. Uma casa que iam comprar no Algarve, não era? Eu disse: tanto, tanto entusiasmo, no fundo para não pensar no que estava já a passar-se. Lembro-me de que me falaste - disse a Maria José - que querias fugir da trituração da cidade. Lembro-me - disse ela - porque na altura pensei que eu, por mim, seria incapaz de viver sem a trituração da cidade. O ruído, o movimento, o frenesim das pessoas e das coisas. Sentia-me perdida sem isso. Acho que até da poluição eu gosto. E ao dizer isto, a Maria José sorriu um pouco. Como se quisesse pedir desculpa. Eu disse: triturados, pela vida, pela idade, por nós próprios. Sei lá. A Maria José quis saber se tinha acontecido alguma coisa de especial. Respondi que não, que eu não tinha arranjado outra, ou a Marta outro. Pelo menos que eu soubesse. Mas não, não me parecia. Suponho que era isso que ela estava a perguntar. A Maria José disse: então o quê? Falei então em coisas como: ninguém em quem pendurar a culpa. Nenhuma porta de saída. Ou de regresso. Apenas a distância, o silêncio, o vazio. A resignação duma doença terminal. Sentir que tudo falhou. Que nunca seríamos aquilo que tínhamos querido ser. O destino transformado num descalabro sem regresso. E 17

ali estávamos, dia após dia um em frente ao outro. A repetir, a repisar, a prestar quotidiano testemunho do nosso fracasso. A dois é o inferno. O do Sartre ou outro qualquer. O inferno é vermo-nos nos olhos dos outros. A Maria José disse: menino, o estado em que tu estás. Estado de coma moral - disse eu. Ouve lá uma coisa - disse ela - não te parece que anda aí uma ponta de autocompaixão a mais? Seguindo-se uma chuva de conselhos práticos. úteis como um jornal da véspera. Maria José típica. A sua face mais superficial. Pragmática, rectilínea. Por outras palavras, como no fundo as pessoas nunca mudam. Ainda quis irritar-me. Mas ela sempre me falou assim. Sem que nunca me tivesse ocorrido objectar. As palavras brutais com que ela se entretém a confrontar-me. Disse-lhe que, no fundo, talvez me restasse ainda uma esperança. A esperança de que se calhar era a Marta, sem o saber, que tecia as malhas da minha prisão. Que, libertando-me, talvez eu conseguisse. Ponto em que a Maria José me interrompeu. Indignada. Conseguias o quê? Explicação tão pusilânime nunca tinha ouvido. Faz-me um favor - disse ela - conta-me as histórias que quiseres, mas essa não. Tocou a campainha. A Maria José, toda ela charme e sorrisos, circulando entre os seus convidados. Doze, ou pouco mais, se me lembro bem. Portadores, todos eles, de pequenos embrulhos com prendas, que a Maria José abriu com bem distribuídas exclamações de surpresa e alegria. Mas a manifestação maior ficou reservada para uma enorme caixa branca, da qual saiu um bolo com uma floresta de velas mínimas. A Maria José disse que horror, assim toda a gente ia ficar a saber quantos anos ela tinha. Frase que mereceu ruidosos aplausos. Por mim, constatei que nada me apetecia menos no mundo do que encontrar-me no meio de pessoas executando rituais de festa. Sorrindo. Falando sem cessar, para não deixar cair a conversa. Como se as

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palavras fossem objectos de cristal. Bebendo o suficiente, mas não de mais. jogando pequenos jogos fúteis. Como ser agradável. Procurar afinidades. Não exibir saliências agrestes. Trautear temas inócuos. Mas, ao mesmo tempo, medir, fazer juízo, avaliar, pôr um preço na pessoa com quem se fala. Acender o cigarro a uma senhora. Dizer-lhe como lhe fica bem o vestido que hoje traz. O cabelo como agora o usa. E outras pequenas amenidades que tornam suportável, ou mesmo desejável, sei lá, a vida em sociedade. Seres humanos reduzidos, naquela festa e em mil outras festas, a grotescas caricaturas munda- 18

nas de si mesmos. Optei por renunciar. Por me sentar num dos imaculados sofás brancos. E seguir a Maria José com os olhos. Como se estivesse a guardá-la. Cão fiel. A Maria José que veio para a América há vinte anos para ser hippie. Para ser livre. Tempos em que ser livre era suficientemente importante para se mudar de vida. E que ficou para fazer trinta e oito anos. Para apagar as velas em três fôlegos. Para ouvir um caótico e desafinado happy birthday to you. Para que a sua alegria ficasse registada em instantâneos Polaroid a cores. Para ter um apartamento com vista sobre o Hudson. Para dar uma festa em que já ninguém usa vestidos compridos com padrões de flores. Ou xales de franjas. Em que ninguém acredita já em causas que não sejam as de Wall Street. Banidos, como se nunca tivessem existido, os flower children e os seus cigarros de hash. A sua música psicadélica. O Ravi Shankar. Os Beatles. All you need is love. Love. Love. Ou o Jim Morrison. Come on baby, light my fire, come on baby, light my night on fire. A Maria José e o seu terror de que os tempos a ultrapassem. A bizarra mistura de pessoas ali reunidas. Guccis laboriosamente descuidados. Sobras grisalhas, como eu, dos anos 6O, sem perceberem bem como tudo aquilo se tinha passado tão depressa. E até dois ou três teenagers, intensos e agressivos, os cabelos pintados, as roupas escuras. Novos, firmes, perfeitos. Rugas, nenhumas. Dir-se-iam inacabados. ícones dos anos 8O. Do desemprego. Da recessão. Do monetarismo. Do regresso triunfante da direita. Filhos de pais que estiveram em Woodstock. Que iam mudar o mundo. And 1 dreamed 1 saw the bombers riding shotgun in the sky turning into butterflies. Que acordaram à voz do Bob Dylan. Something is happening but you don't know what it is, do you Mr Jones? Ainda tentei inserir-me, participar. Mas nada. Gente de outras tribos. E eu sem saber de quem falavam. Escapando-me as referências. Desconhecendo as músicas. Não tendo visto os filmes que deviam ser vistos. Não tendo lido os livros que deviam ser lidos. Estrangeiro naquela suavidade cultivada. Na vacuidade do último suspiro da moda. Sendo-me indiferente o que toda a gente está a fazer naquele mês e vai certamente desprezar no seguinte. Bebi copos de whisky até lhes perder a conta. Percorri uma curva que passou por um entusiasmo sem direcção (não perder um só átomo do que à minha volta se passava), mas que desembocou depois num vertiginoso recuo, como se tudo aquilo fosse um circo; e eu condenado a assistir. Reduzido ao fluir livre 19

do whisky pelas entranhas a um ritmo que me mantivesse num glorioso estado de torpor. Quando as últimas pessoas saíram, levantei-me também. Constatei que seria provavelmente capaz de chegar até à porta. Constatei ainda que me apetecia sentir na cara a brisa fresca da noite. Percorrer ruas da cidade até amanhecer. A chama do meu cigarro ao vento. E cair depois exausto na cama para um sono opaco como a morte. Mas a Maria José, a sua mão leve,

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segurou-me pelo braço e disse: fica mais um bocadinho. Repetiu que eu estava em péssimo estado e que não podia ir para o hotel assim. Compaixão, uma das coisas a que não resisto nos tempos que correm. Perguntou porque é que eu não ficava lá em casa. Eu disse que não. Ela disse que ficasse ao menos mais um pouco, que ela me arranjava café. Quase doméstica, esta enternecedora cena. Eu disse que café ainda era pior. Para os copos, um copo de leite. Ela perguntou se eu queria um copo de leite. Respondi-lhe, que só pensar em leite me virava o estômago do avesso. E depois disse-lhe: sabes o que é que me apetecia? (O que me apetecia era apetecer-me qualquer coisa. E em segundo lugar), andar a pé pela rua. Ela tentou explicar-me que era perigoso. Mas depois disse que sim, que ia comigo, desde que não fosse uma volta muito grande. A brisa fresca cortando-me o calor do corpo. A Maria José deu-me o braço. Andando em silêncio. Carros passando de tempos a tempos. Não devia tardar a amanhecer. Sentia-me agora desperto, sóbrio, dolorosamente lúcido. Sem se virar para mim, a Maria José começou a falar. A primeira frase que ela disse: as malhas que a vida tece. No seu português correcto, mas com o vago travo de um sotaque bizarro. As cordas vocais moldadas já a um americano fluente. Depois a Maria José disse: agora vou distrair-te um pouco; vou falar de mim. Queres saber uma coisa? Pode ser que te sirva de consolação. Disse então que não tinha ninguém a quem pudesse falar de si. O ano era 1967 e ela tinha vindo para os Estados Unidos passar férias em casa duma amiga em Santa Barbara, na Califórnia. Mas isso eu sabia - disse a Maria José. Família conservadora, igreja protestante ao domingo, mother and apple pie. Estás a ver? Conhecidos da minha mãe, não podiam deixar de ser assim. Por trás da ironia, a inconsciente necessidade de marcar o seu terreno social. Defendendo, ao fim destes anos todos, uma imaginária retaguarda familiar. Identificando o seu lugar na tribo lusitana. Durante dois meses fez aquilo que era suposta fazer. Aprendeu inglês. Viu televisão. Fre- 2O

quentou drive-ins. McDonald's. Baskin Robbins. Sábado à noite cruising na Main Street. Barbecues no jardim. MiddIe America. Cocktails, charcoal steaks e, para as crianças, ice-cream soda e frankfurters. Um filme do Douglas Sirk. A Jane Wyman a distribuir marshmallows e a sonhar com o Rock Hudson. As palavras da Maria José chegando-me distantes como uma emissão de ondas curtas, aparecendo e desaparecendo num percurso de continentes. Foi numa festa da Universidade - disse a Maria José - que conheci o Tim. Timothy. Eu costumava chamar-lhe. Tinha um toque romântico, o nome. Como numa peça de música, todas as pequenas inflexões na voz da Maria José me anunciavam que era chegado o auge da sua pequena crónica. Nesse tempo - disse a Maria José - o Tim era magro, o seu porte ascético, o seu cabelo loiro, quase branco. A barba curta e loira. Como só o desejo de uma mulher o pode sonhar. O homem que ela inventou. Os mitos que criamos para sermos capazes de coexistir com a realidade. Digo-o sem ironia, note-se, que andamos todos ao mesmo jogo. Havia mais, evidentemente. A Maria José que o dizia: duro e sarcástico e violento a falar, mas portador ao mesmo tempo de uma paixão, de um idealismo total, absoluto, irredutível. Mais tarde deixou crescer o cabelo e a barba. Parecia um Cristo. Nessa altura a guerra do Vietriam era tudo. No dia em que nos conhecemos ele falou-me durante horas sobre a guerra - numa paixão de fogo. Caminhando na noite. Ao longe, as luzes fundiam-se numa mancha imprecisa. A brisa soando nas árvores. Como um suspiro de prazer no escuro. A Maria José presumindo que eu queria saber aquilo tudo. E também que o Timothy tinha sido dirigente estudantil. Andava pelo país - disse ela - a organizar a resistência contra a guerra. Ao fim de duas semanas a Maria José tinha

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decidido ir com ele. Groupie da política - o comentário é meu. Durante dois anos percorreram o país de ponta a ponta várias vezes. De carro. De Greyhound. De boleia. Como calhasse. Dormindo em camas emprestadas, em carros, no meio do campo. Um toque q. b. de aventura - comentário, idem. Durante uns tempos até viveram numa comunidade de hippies. Mas o Tim tinha objecções fundamentais em relação aos hippies. Do mesmo lado da barreira. Contra o Establishment. Meu Deus, o EstablisImient - disse a Maria José - há quanto tempo eu não usava essa palavra. Nesse tempo era frase sim frase não. Reminiscência de emoção profunda. E de entusiasmo, como se eu o pudesse partilhar. Fico perdido quando 21

me fazem isso. O Tim às vezes punha-se a imitar os hippies: peace, man, peace. Levantava a mão, os dedos em V E depois dizia: how can you stop the fucking war if your head is blown half of the time? Não pertencia a nenhum grupo. Dizia que se situava numa esquerda radical enough. Um emocional, o Tim. Tem uma avó italiana. Mas ficava doente com os excessos. Mortal siri of irrationality, era o que ele costumava dizer. Um individualista irredutível, à boa maneira americana - disse a Maria José. Timothy encaixilhado. Retrato nem a meio corpo. Apenas o que coubesse dentro da moldura. Chegávamos a qualquer sítio - disse a Maria José - e era garantido que tínhamos os maiores problemas com as várias organizações. Mas estivemos em tudo. Na Convenção democrática de Chicago, do lado de fora, evidentemente, no julgamento dos Chicago Eight, na grande manifestação de Washington de 197O e, sim, sim, em Woodstock também. Os grandes nomes a caírem descuidados e sem uma ponta de embaraço. Um enorme sorriso no seu lugar. Parámos por um momento. Um movimento, um ruído, uma sombra à nossa esquerda. Um vulto, um homem, enrolado em trapos e jornais, estendido no passeio, resmungando consigo próprio. Tentou levantar-se. Olhou para nós. Mas depois caiu de novo, no meio de uma sucessão de obscenidades e do ruído de vidro a estilhaçarse. Passámos para o outro lado da Avenida e começámos a andar para trás. No meio daquilo tudo - disse a Maria José - casámo-nos. Era a única solução para ela poder continuar na América. De qualquer maneira, já tinham decidido que queriam viver juntos. Não fora eu pensar que. Não sei. Mas sabia ela - o propósito com que o disse. Depois o movimento começou a perder força. Época Nixon e companhia. Mais tarde o Tim trabalhou na campanha do McGoverti. The great McGovern disaster. E quando isso acabou, o Tim juntou um grupo de tipos novos que tinham estado nas relações públicas da campanha e fundou uma agência de publicidade. O resto era menos excitante. Para ela, que por mim estava-me rigorosamente nas tintas. A impacientar-me com aquela história, narrada em metafóricos bicos dos pés, como quem acena: olhem para mim e para o que eu fui capaz de fazer. A tremer de cansaço e fraqueza. Os meus próprios fantasmas a clamarem atenção. Só que o Tim - disse a Maria José - é realmente um gajo brilhante. Aquilo em que se mete faz extremamente bem. E o resultado foi mais uma American success story. Quanto a política é que nada. Não 22

há neste país política para pessoas como ele. Uma bomba desactivada. O Tim costuma dizer: 1 haven't changed, only the times have changed. Vertigens perante tanta originalidade. Em 79 divorciámo-nos. Fiquei com a casa, quer dizer, com o aluguer da casa, e com um emprego na firma. Não quis alimony. E fui subindo na firma. Foi rápido, pelo menos ao princípio. Primeiro,

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empregada e logo a seguir associate partner. Acho que também já estou apanhada pela obsessão do sucesso. Ela o disse, pelo que me dispenso de um pequeno sarcasmo. Uma ou duas vezes por ano o Tim convida-me para jantar. É casado com uma anglo-saxónica alta e loira e têm duas criancinhas lindas e incrivelmente loiras. Por qualquer razão, ocorreu-me a imagem da Doris Day e um lar de Hollywood com piano, cão peludo, front porch, e um irrepreensível relvado até ao passeio. Subúrbio próspero a perder de vista. À porta do prédio, a Maria José parou e disse: um casamento é como tudo o resto na vida. Ou mantém-se em harmonia com aquilo em que nos transformamos ou então é posto de lado. Quando as coisas começaram a mudar, não conseguimos mudar os dois da mesma maneira. A Maria José abriu a porta do apartamento. A escuridão não era já total. Reflexos do sol que iria nascer no outro lado de Manhattan. Tínhamos debatido o assunto longamente à entrada do prédio. E chegado a um compromisso. Eu subia para tomar um último copo, comer qualqyer coisa e então decidia. Duas voltas para abrir a porta da casa. A entrada um pequeno patamar recortado do resto da sala por dois degraus de uma escada larga. De cada um dos lados, em círculo até à parede, uma divisória baixa separando os dois espaços. Ao fundo, no ponto em que a sala estreitava, as portas de vidro para a varanda. Era aí o recanto com os sofás forrados de tecido branco. Ao centro uma mesa baixa quadrada com tampo de vidro. Encostado à parede, um móvel preto lacado onde estavam os livros, os discos, a alta fidelidade, a televisão, o vídeo e uma infinidade de pequenos objectos de decoração espalhados com criterioso descuido. Entre os quais molduras com fotografias. Excepto uma delas, que continha uma folha de papel pautado com um breve poema. Sibilina declaração de amor. A Maria José tinha dito: é de um amigo meu que é poeta. Estava assinado David. Mais perto da entrada, à esquerda, uma porta para a cozinha. À direita, portas para o quarto e para a casa de banho. Fomos para a cozinha. Onde a desarrumação era total. Copos sem fim, pratos, cinzeiros cheios de pontas de 23

cigarro, cinza e outros restos. A Maria José disse: ajudas-me a dar um jeito nisto? Libertámos a mesa. Em volta, resplandecia a sociedade de consumo. Fogão eléctrico e forno com uma infinidade de botões e luzes. Microondas. Máquina de lavar e secar e um abundante mostruário de outros electrodomésticos. Armários brancos contornando três paredes. Na outra parede, uma janela que presumivelmente dava para uma transversal. Os hippies não aprovariam. Sentados à mesa, frente a frente, acarinhando os nossos whiskies em silêncio. Os primeiros dois ou três golos como uma bola de chumbo. Em cima de tudo o que eu tinha bebido nessa noite. Pareceu-me que um calor insuportável se tinha ali levantado. E o cheiro a fumo gasto. Perguntei à Maria José se podia abrir a janela. O que foi feito. Depois ligou o fogão. Estrelou quatro ovos. Em cima da mesa pousou um prato com tostas redondas. Uma embalagem com manteiga. Outra com cottage cheese. Apagámos a luz. O repousante lusco-fusco da madrugada entrando pela janela. O meu apetite nenhum. Mas não tinha voltado a comer desde o pequeno-almoço ao fim da tarde no hotel. A Maria José preparou um cigarro de hash. Passou-mo duas vezes. Mas depois não quis mais. Receio de desfazer o precário bem-estar que me inundou. Ela disse: agora toda a gente usa coke. Mas eu, por mim, continuo a ser a child of the sixties. Lembras-te da canção do Steven Stills? É um concerto - Four Way Street - dirige-se às pessoas e chama-lhes sempre children. A Maria José tinha dito que era tarde de mais para eu voltar para o hotel. E porque é que eu estava a gastar aquele dinheiro todo? A sala num inefável nojo. Se prometes que te portas bem - disse a Maria José - podes mudar-te

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definitivamente para cá. Sentia-me exausto, vazio, velho de mil anos de idade. Sentia-me incapaz de me portar bem ou mal. Agradeci. Disse que no dia seguinte se veria. A Maria José respondeu: como quiseres. Abri a janela para arejar a sala. Esvaziei para o caixote do lixo uma dúzia de cinzeiros a transbordar. A Maria José abriu um dos sofás, que se transformou em cama. Trouxe lençóis lavados, uma almofada e um pijama. De homem. Não perguntei de quem era. Nem curiosidade. Rudimentos de toilette. Uma inesperada cerimônia instalando-se entre nós. Quem vai primeiro à casa de banho. Não, por amor de Deus, vai tu, de maneira nenhuma, etc. Na casa de banho, tirei dois Valiums do bolso e engoli-os com água sorvida directamente da torneira. A Maria José apareceu com uma camisa de dormir comprida, branca e com rendas 24

nos punhos e à volta do pescoço. Deu-me um beijo. Disse boa-noite. Foi para o quarto. Fechou a porta. Corri os estores das portas que davam para a varanda. Mais não conseguiam do que roldar vagamente a luz. Paciência. O Valium que cumpra a sua função. Faltava-me um livro. Peguei numa Rolling Stone que estava em cima da mesa. Even career-girls get the blues. Um artigo sobre uma nova série de televisão chamada The Days and Nights of Molly Dodd. Que não cheguei a acabar. Apaguei a luz. E não sonhei com coisa nenhuma. 25

111 D omingo. Imobilidade total. Absolutamente nada me apetecia fazer. Outro pequeno-almoço às duas da tarde. Sentado à mesa, como se me tivesse esquecido de mim próprio, a fumar cigarros uns atrás dos outros. Depois, na varanda, a folhear os jornais de domingo. Monumentais: meio quilo de papel cada um. Sem sombra de vergonha por deixar a Maria José sozinha na faina de pôr um pouco de ordem na casa. E eu por ali, de alma abalroada. Quis tomar um Optalidon. Mas estavam no hotel. Perguntei à Maria José se tinha qualquer coisa do género. Não tinha. Mais tarde consegui arrastar-me até ao hotel. Fazer a mala. Deixar o quarto. Um breve embate na recepção e acabei por não pagar aquele dia. In a tough city you gotta be tough. Quem é que dizia aquilo? Tomei um yellow cab. O compartimento do condutor separado por um vidro grosso. Imaginei que seria à prova de bala. Quando parámos, perguntei: can you break a hundred? - e senti-me nova-iorquino. Mas gratifiquei generosamente para não correr o risco de ser insultado. As malas pousadas no passeio, à porta do prédio da Maria José. E eu a perguntar-me: que raio é que eu estou aqui a fazer? Difícil, com gente à volta, continuar a cultivar as delicadas sombras que me iam por dentro. Mas não era para fugir de tudo isso que eu estava em N. Y? Podia pelo menos tentar. Olhando, não obstante, com arrogante desprezo para o pequeno canto que dentro de mim conserva ainda força para tentar. A Maria José tinha gente em casa. A única coisa que faltava para completar a minha felicidade. O repugnante gregarismo das pessoas. Nem sequer o anonimato de uns estrangeiros quaisquer. Português, o casal. Ou o que parecia ser um casal. Pequenos sintomas imediatos de pertencerem um ao outro. Pouco mais novos do que nós. E uma rapariga, portuguesa também, 23 ou 24 anos, 27

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quanto eu lhe daria. Clara era o nome. No dia em que ela nasceu estava eu já com um pé fora da Faculdade. A ensaiar os primeiros andamentos daquilo que passa por ser a vida real. Os melhores anos da minha vida. A frase consagrada. Não me ocorria en, tão que estivesse gente a nascer. Ou então ocorreu-me, mas com a realidade de uma estatística. Ali, casa da Maria José, dia 28 de junho de 1987, trocavam-se apresentações. Rogério, Maria Helena. Depois eu disse: Zezinha, arranja-me um copo, se não morro. Oito da noite. Jantar-se-ia? Ao Rogério, poderia descrevê-lo assim: magro, rijo, quase austero de aparência; olhos inquietos numa procura constante; calças beges de veludo cotelé estrias largas, camisa verde-pálida sem gravata, casaco de tweed castanho (pendurado nas costas de uma cadeira), óculos ligeiramente escuros, grandes, aros finos. Tratou-me logo por tu. Gostava do disco de jazz que a Maria José tinha posto a tocar. Gostava de artes plásticas e de arquitectura. Gostava da América, embora achasse que não devia admiti-lo. A sociedade de consumo. O materialismo. O desconforto da abundância. Refugiava-se, portanto, na palavra fascínio. E gostava sobretudo de cinema. Era crítico. Escrevia para um dos semanários de Lisboa. Mas, para ganhar a vida, era funcionário público, na Secretaria de Estado da Comunicação Social. Loquacidade em sessão contínua. Um interminável arsenal de histórias encadeadas. A palavra fácil. Mas falava devagar, a voz firme e segura de quem não tem medo de perder o seu público. A Leria, outro barro. Mais frágil, pareceu-me. Calada. Auditório perfeito para aquele marido. Ligavam bem. À primeira vista. Da outra ponta da sala, bips electrónicos, como um concerto descontrolado de música concreta. A Clara sentada no chão aos comandos de um jogo de vídeo. Fui ver. Como todos os jogos de vídeo, também aquele consistia em destruir invasores espaciais que se apresentavam sob a forma de pequenas aranhas. A Clara, vestida com calças demasiado cur- tas, dez centímetros acima dos tornozelos. Amarelas. E uma camisa meia dúzia de tamanhos acima do tamanho dela. Sapatos de ténis amarelos e meias brancas. Suponho que o último fôlego da moda. Baixei-me para ver melhor. E depois disse: isso é que são reflexos. Ela não disse nada. Pulverizando aliens em estilhaços de luz ao ritmo dos bips electrónicos. Eu disse ainda: não tenho jeito nenhum para esse género de jogos. Ela virou a cabeça. Olhou para mim, um instante apenas, mas não disse nada. Lábios perfeitos, um pouco insolentes, boca bem traçada. Nariz 28

fino, eu diria helénico. Olhos de um verde quase gelado. Uma expressão que não me dava pistas. Cometia, no entanto, a afronta de ser inconcebivelmente nova. A pele bronzeada, cheirando ainda a beira-mar, lisa e sem uma marca que fosse de ter vivido. O cabelo curto, castanho muito muito claro. A um passo de ser loiro. Eu disse: também vieste de Portugal? Pergunta sem jeito. Ela olhou para mim outra vez e disse: quer jogar? Havendo ali uma ponta de hostilidade. O subentendido sendo: quem é este tipo que insiste em me interrogar? E pôs-me no meu lugar. Tratando-me por você. juntei-me aos adultos. Discutindo-se o que se havia de fazer quanto a jantar. Qualquer coisa ali perto. Chamaram a Clara. Desligou o Amstrad e veio ter connosco. Então a priminha já brincou tudo? - disse a Lena. A qual, prima, vestiu uma camisola, larga também. A fralda da camisa aparecendo por baixo. Um restaurante para refeições rápidas. A decoração leve. Mesas pequenas, de madeira, com panos de plástico às riscas brancas e azuis. Gente vestida para a informalidade dum domingo. Algum movimento, apesar da hora. No ar, o ritmo, a vivacidade, a auto-satisfação de pessoas na curva ascendente da vida. Suponho que a palavra agora é yuppies. Paredes cobertas de posters. A Marilyn do

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Andy Warhol, a lágrima do Lichtenstem. E outros lugares-comuns de pop art. Optámos por hamburgers; e cerveja. Excepto a Clara, que pediu uma salada e uma Coca-Cola. O Rogério tomando de novo conta da conversa. Histórias do jornal. Polémicas. Intrigas do cinema nacional. Passatempo de cineastas à espera do filme seguinte que nunca mais chega. E subitamente lembrei-me. Rogério Fernandes. R. E, as iniciais no fim das pequenas notas sobre filmes, que eu costumava ler para decidir das minhas idas ao cinema. Tentar perceber que género de filme estava oculto debaixo da linguagem cifrada. Expressões como registos equívocos de um exercício de sedução. Como a transparência subversiva das aparências. Como a vertigem ambígua de um olhar libertário. O críptico de cinema, disse um dia a Marta. Um certo nareisismo no gosto com que obviamente se ouvia a si próprio. Algo infantil. Como todos os narcisismos. Uma sinceridade estudada. Frases pensadas, construídas como um mecanismo de precisão. Um pouco pomposas. Mas muitas vezes não resistia à tentação de virar-se contra elas com urna ironia de demolição. Ao fim e ao cabo, era português. E gostava de comida. Ao ponto de nos tentar explicar por que razão era limi- 29

tado o requinte que se podia alcançar num hamburger. Nada o demoveu da explicação circunstanciada. Nem os nossos sorrisos de troça. Nem a Maria José a dizer: um hamburger é um hamburger, ok? Não, comer é uma arte - insistia o Rogério. Comer - disse a Maria José - é matar a fome e pode ser prazer e sensualidade, como tomar um banho quente, como fazer amor; agora arte? Fazer a comida pode ser uma arte - disse eu. Certamente não como a Leria a faz - disse o Rogério. E riu-se. Mas depois parou de repente. Ninguém mais se estava a rir. Abriu-se um momento de silêncio. Que o Rogério logo preencheu dando-nos conta de que tinha um projecto de filme já com guião entregue no 1PC para subsídio. Seria uma alegoria do Portugal contemporâneo. Realista na aparência, a história. Ou seria estória? Cada uma das personagens simbolizava uma diferente opção de futuro nacional. Que ele dizia projecto alternativo de devir colectivo. Por mim, deixei de prestar atenção quando entrou na análise dos diversos níveis de significação. Outros tempos, outros lugares, retalhos de Hegel, Karit, Schopenhauer, transaccionados sobre as mesas dos cafés de Lisboa. Conversas vividas como tempestades. No tempo em que tudo era Simples, como encontrar a explicação do universo. Duas décadas volvidas, suspensas as ambições, num pequeno restaurante em N. Y., a requentar diálogos num absurdo tricot social. Mas sem a Clara, que quase não disse uma palavra. Sentada à minha frente. Atacando metodicamente a sua salada. Aparentemente nada mais que a interessasse. Pontos de interrogação sobre a dimensão mental daquele espírito silencioso. Mas, na verdade, ocupei-me mais dos seus olhos, da sua boca, do seu cabelo. Como se contivessem uma mensagem qualquer. Como se estivessem a dizer-me: come and get me. Depois a conta, que o Rogério insistiu em pagar. Quando fosse no Gambrinus pagávamos nós. A Maria José ajudou-me a abrir o sofá-cama. Meia-noite e pouco. Disse-lhe que não tinha sono. Ela disse que eu podia ouvir música, desde que não fosse muito alto. Perguntei-lhe se o computador se podia usar. Estás em tua casa - disse a Maria José. Foi a um armário e trouxe uma pilha de caixas com programas. Coloquei o PC em cima da mesa. Procurei uma tomada. Pedi o livro de instruções. A Maria José apontou para a estante e disse: ali algures. Depois deu-me um beijo e foi para o quarto. Liguei o Amstrad. As cores do écran acenderam-se à minha frente. Tentar não consultar as instruções. Estas coisas são todas basica- 3O

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mente iguais. Durante um bocado entretive-me com um jogo chamado Maze. Encontrar o caminho no meio dum interminável labirinto. Depois Classic Axiens. Depois fartei-me. Ver que outros programas havia. Decidi meter um processador de texto. Alguns erros, mas acabei por dominar os comandos principais. Durante mais de uma hora tentei compor uma poesia. Apenas uma dúzia de versos. Mas incapaz já de a melhorar. Não tinha diskettes. Não a podia registar. Papel e caneta? Desliguei o computador. Obra lírica perdida para todo o sempre. No fundo, o destino merecido. Levantei-me. Servi-me de mais whisky. Fui até à cozinha arranjar gelo e água. Impressão minha, ou a noite estava a ficar incrivelmente quente? Lembrei-me do boletim meteorológico da TV Dizendo o que ia acontecer, a precisão ao ponto de indicarem as horas a que se dariam as mudanças. Creio que tinham falado de calor. Fui até à janela grande. Depois para a varanda. Puxei duma cadeira. Sentei-me na companhia do meu copo, do cinzeiro, dos cigarros e do isqueiro. Pouca coisa, mas melhor do que estar sozinho. Preparado para uma longa vigília. As noites longas de calor, Agosto em Lisboa a estudar para os exames da segunda chamada. Muitas vezes com a Marta. Retirando a coragem para continuar da companhia um do outro. Foi numa noite assim que fizemos amor pela primeira vez. No meio do cansaço, do calor, da transpiração. Foi no momento errado. Salvou-se a sinceridade, a ternura, o amor sem condições. O deslumbramento. Estivemos a ouvir discos até o Sol nascer. Lembro-me do Simon and Garfunkel. Dei comigo a trautear ohoh-oh-oh Mrs Robinson, Jesus loves you more than you will know. Levantei-me. Procurei entre os discos da Maria José. Tinha. Não podia deixar de ter. Liguei o gira-discos. Extremamente baixo. Um sussurro. Sentado no chão, o ouvido encostado ao alto-falante. O som distante, como se estivesse a ser emitido de Portugal. A ideia fez-me sorrir. E sentir-me mal. Um indefinível desconforto. Uma súbita maré negra interior. Desliguei o aparelho. Arrumei o disco. No mesmo sítio, precisamente. Não deixar vestígios. Supondo que eu morria naquela noite. E que alguém quisesse interpretar o quadro. E tirar conclusões. Não me apeteciam conclusões. Sentia-me inacabado. Incompleto. Inconcluso. A falta sempre de qualquer coisa mais. Sentei-me de novo na cadeira. Como se estivesse a velar à cabeceira da cidade. Pôr o disco tinha sido um erro grave. Foi o calor. E pensar em Lisboa. E outros tempos. E a Marta. Pensar. O erro fundamental, pensar. 31

Não deixar que o cérebro trace o seu próprio caminho. Esta doença de não ser capaz de largar. De querer encontrar a explicação. A causa e o efeito. Deixá-los, resvalar cada um para seu abismo. Convencer-me, placidamente, Alberto Caciro, de que a missão do homem sobre a Terra é outra. Que não compreender as coisas. Arranjei um terceiro whisky. Mais tarde outro e depois ainda outro. A casa às escuras. Apenas os dígitos luminosos do vídeo exibindo os minutos que iam passando. 4.33 am. Mais um cigarro. O copo a meio. 4.42 am. Primeiro foi uma tira de luz pela frincha da porta. Depois a porta a abrir-se e os objectos na sala a ficarem manchados por uma claridade suave e indirecta. A silhueta da Maria José. Tu não te deitas? - disse ela. Nunca durante a noite - disse eu. A tentar um pouco de ironia, um pouco de insolência. Mas o tom falhou-me. Ficou apenas uma frase impertinente. E tu? - disse eu. Ela disse que também não conseguia dormir. Que tinha estado a noite toda a ouvir os meus passos dum lado para o outro. Pedi-lhe desculpa, se a tinha impedido de dormir. Ela disse que não era eu. Era com certeza do café. Não costumava tomar café à noite. Estava numa

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incontrolável agitação. Sem posição na cama. Ouvindo o coração a bater-lhe como o eco duma bateria. Sentou-se no sofá ao meu lado. Trazia vestido um roupão de algodão azul, comprido, quase até ao chão. Arranjas-me um copo? - disse a Maria José. Arranjei. Estás com uma cara que pareces desenterrado - disse ela. Sabes, tenho a impressão de que estamos os dois com uma ressaca de vinte anos aos trambolhões. E depois disse-me que vivia num frenesim- Que tinha lutado e lutado durante anos no emprego para ter sucesso profissional. E agora, com o sucesso tão perto que era quase só estender o braço e tocar-lhe, perguntava-se a cada passo: que vou eu fazer com tudo isto? Típico da Maria José: lastimar-se durante todo o percurso que implacavelmente a si mesma se impõe. Uma personalidade esquizóide a que em tempos atribuí algum encanto. Não me sobra um momento para coisa nenhuma - disse ela - e se sobrasse, tenho a impressão de que já não sabia o que fazer. Responder o quê a uma declaração destas? Creio que optei bem: um olhar sério, atento, intenso, que não significa absolutamente nada. A sua vida, os seus gostos, os seus amigos, quase todos pelo menos, organizados à volta de uma única coisa: o emprego. E agora que, digamos, tinha queimado as pontes atrás de si, descobria que não era feliz. E esta palavra, feliz? Um chavão gratuito como as palavras que nas pala- 32

vras cruzadas servem para tapar buracos onde nada mais cabe. Não que não gostasse de trabalhar, ou do trabalho que estava a fazer. Apenas que às seis da tarde, aos fins-de-semana, quando fechava a porta do seu gabinete, a única companhia que a esperava era o imenso silêncio daquela casa vazia. Entrando-se aqui já no domínio das mais convencionais situações dramáticas. Ficção pura, que nenhuma vida humana é redutível a estas simplificações unidimensionais. Para lhe dizer alguma coisa, disse: depressão? Se calhar - disse a Maria José. Mas a ideia de ir a um shrink deprime-me ainda mais. Convencional. Yuppie. Mas alguém lhe tinha perguntado? Revela, no entanto, que já se lhe tinha colocado a hipótese. É claro que ela só in extremis consultaria um psiquiatra. Indefectível fiel da igreja do ir yourself. Perguntei-lhe: vida sentimental? Olhou para o copo. Balouçou o copo. O líquido às voltas, mas sem o entornar. E acabou por dizer, como se estivesse a falar para si: boa pergunta; se calhar é esse o problema. Leia-se: é esse o problema. E se bem a conheço, não é abstracto e ontológico, o problema. É actual. Tem um nome e está a ser abordado com todo o frio cálculo do pragmatismo. E esporádicos remorsos de idealismo. Foram sempre, ai- ternadamente, dois os problemas da Maria José: demasiada facilidade em se integrar nas coisas práticas da vida; demasiadas causas inúteis em que acredita com insensata paixão. Perguntei-lhe ainda: não tens um namorado? E ela insistindo naquele diálogo mudo com o copo. A ganhar tempo. Mas acabou por dizer: o que é que uso como homem? Muito pouco, nos tempos que correm. Andei com um tipo, um espanhol. Mas foi há uns tem- pos. Acabou há mais de um ano. Meu Deus, só de me lembrar. As cenas lamentáveis que deu para o fim. O gajo era a real jerk. E eu no fundo sabia perfeitamente desde o primeiro dia. Apanhou-me num mau momento, é a única desculpa que encontro. Ao princípio ainda foi tolerável. Mas depois arrastou-se, arras- tou-se. Se calhar o meu mal é não saber acabar no momento cer- to. Eu disse: e agora? Agora o quê? - disse a Maria José. Tens alguém? - disse eu. Ela disse que não exactamente. Mas depois, corno se só então tivesse decidido, disse que não, que não tinha ninguém. Não perguntei mais nada. A Maria José levantou-se. Foi até à janela. Não tarda nada é dia - disse ela. E depois ficámos os

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dois a olhar para o rio. Em silêncio. Como se estivéssemos à espera de que acontecesse qualquer coisa. Fiz-lhe uma festa na cara, com a parte de fora dos 33

dedos. Ela moveu a cabeça ao meu encontro. Reforçando aquele contacto. Beijámo-nos. Com alguma hesitação. Ela disse: achas que isto é sensato? Eu disse: acho que não. Beijámo-nos de novo. Com mais desordem. Um razoável fac-símile de paixão. Abraçados. As pernas a procurarem encaixar-se. Desatei-lhe o cinto do roupão. Enfiei as mãos pelos ombros nas mangas largas do roupão. Até o fazer deslizar para o chão. O passo seguinte com a ajuda dela: a camisa de noite. Depois desabotoou-me a camisa. O peito da Maria José contra o meu. Abraçados com força. Com desespero. Com urgência. Como se tudo aquilo estivesse para se desvanecer dum instante para o outro. O odor do cabelo dela. E lá em baixo, através da janela, os carros que continuavam a passar. As luzes dos barcos, pontos imóveis na água. Fizemos amor na cama que tinha sido improvisada para mim na sala. Não tanto com ardor. Mas com o abandono de condenados que nada tivessem já a perder. Lembro-me de que me senti como que sorvido numa sede de ternura, numa pressa, numa inquietação de quem não soubesse o que o instante seguinte lhe poderia reservar. Senti-me conquistado. Senti-me não amado. Senti-me desejado. Senti-me útil. Senti-me usado. Não resistimos, no entanto, ao condicionado reflexo de simular os pequenos sinais de uma paixão autêntica. As palavras desconexas dum amor ausente. Segredadas ao ouvido. O seu alcance, porém, cuidadosamente controlado. Não transgredir uma imaginária fronteira. Cada um, no fundo, retendo uma fracção de si próprio, o suficiente para no fim poder retirar-me intacto. Falaria ainda do fascínio, porventura doentio, de haver uma parte de mim capaz de assistir sem participar. E o prazer de usar aquele corpo sem me ser pedi, do que hipotecasse a alma. No fim ela sorriu-me e disse: estamos alagados em suor. Afastei-me um pouco. Ela segurou-me com força e disse: não faz mal, eu não me importo. Depois levantámo-nos. Fui preparar outro copo. Quando voltei, ela estava sentada na cama a enrolar um cigarro de hash. Ofereceu-me, mas eu não quis. Drogas a mais para um dia só. Fomos para a cama dela. E continuámos, já sem paixão, ou urgência sequer. Sem embaraço. Com a licença incondicional que nos era dada pelo facto de, em última análise, nos importarmos pouco com o que o outro pudesse estar a pensar de tudo aquilo. A Maria José levantou-se para ir trabalhar. Que estava exausta, mas não podia faltar. Disse que se sentia completamente vazia. Eu disse: muito obrigado. Ela disse que não era isso que que- 34

ria dizer. Era um vazio bom. Como se todos os seus problemas tivessem desaparecido. Disse que, durante o dia, se se sentisse só podia ao menos pensar naquela noite, em que tinha valido a pena não dormir. E por que raio me provocou um tão profundo mal-estar a bem intencionada hipocrisia daquela frase e do beijo que nesse momento ela me deu? Depois disse: e tu? Eu disse que ia tentar dormir. Fui buscar o Valium. A Maria José perguntou se eu não era capaz de passar sem aquilo. Eu disse que nos tempos que correm não. Quando ela saiu, estendido na cama, era como se pudesse ouvir o espaço enorme e vazio da casa. A espera de que o sono me transportasse para lá da fronteira onde cessam as dúvidas, os conflitos, as meias-verdades, as meias-mentiras. 35

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IV M life is a mess. Não há como o inglês com estas frases Ylapidares para definir as coisas em duas penadas. O que será feito do David? Depois da pequena cena do outro dia. Quando irá tocar o telefone e aparecer do outro lado a sua voz sumida? E eu dizer-lhe o quê? Contar-lhe do Luís? Sei perfeitamente que não vou resistir a dizer-lhe tudo. Como quem remexe a ferida com um punhal novo. É claro que de fazer feridas sabe o David. Eu que o diga. Mas vejamos antes o dia de hoje. A trepidação que me espera como se me desabasse em cima uma parada de Sr. Patricks é inteiramente previsível, excepto nos mais ínfimos pormenores. O elevador leva-me até à garage na cave. Meto a chave no carro. Olho, como sempre, à minha volta com uma ponta de inquietação. Será hoje o dia em que vai aparecer emboscado o tipo que me há-de assaltar? Abro a capota. O que eu gosto de apanhar na cara o vento do carro em movimento. Ao volante do meu BMW vermelho, convertible, 325i. Uma extravagância. Uma loucura que durante meses me deixou financeiramente de rastos. Subo depois a rampa iluminada pelos faróis do carro. Acciono o remote que abre a porta da garage. O turbilhão do trânsito, como se entrasse num estádio a transbordar de agitação. Os minutos a passarem nos dígitos verdes do relógio de quartzo no dashboard em frente ao volante. Ali instalado pelos gênios perversos de Munique para alimentar a ansiedade dos motoristas. Um milagre como não morro todos os dias vitimada nestas ruas pelo astronómico número de tarados que andam à solta com um volante nas mãos. E diz o Luís que tem problemas. Deixa entender, que dizer diz muito pouco. A fragilidade dos homens. Levei quase quarenta anos a descobrir essa verdade. O que, note-se bem, não os torna menos perigosos, nos ricochetes da sua vaidade. As 37

exigências do papel que inconscientemente andam a representar. Uma nova garage. De edifício a edifício sem pôr o pé no asfalto da cidade. Tomo o elevador que me levará ao décimo sétimo andar. A minha attaché case na mão. Pareço uma profissional. Carcer woman e sucesso. Que sou, sem saber se quero verdadeiramente ser. A minha pasta com os documentos para a reunião das dez. Mas também com absurdas trivialidades. O estojo de maquillage, para acabar a toillete que não tive tempo de completar em casa. Kleenexes. Meia dúzia de contas e outros papéis com fretes domésticos que vou ter de resolver pelo telefone. A agenda. Não me esquecer de mudar a marcação com o dentista. E quando é a próxima massagem? E a aula de aerobics? Estou a ver a Jane Fonda regressando de Hanói com um chapéu vietnamita. 197 1 ? Mas o facto é que me sinto melhor. Se calhar é só de me mexer, de transpirar um pouco. A sinistra invenção dos espelhos nos elevadores. Para todas as manhãs poder constatar que já fui mais nova. Olho para o espelho. Constato. Quinze anos atrás, diziam-me às vezes que eu me parecia com a Mary TyIer Moore. Falo com o espelho. Essas rugas, Maria José. Vá, isso, kid yourself, tenta convencer-te do que te acrescentam uma outra dimensão, uma maior profundidade - a riqueza acumulada de anos. O que nenhuma teenager pode oferecer. O meu cabelo está um nojo. Cabeleireiro às duas. Tem de ser. Uma hora de tranquilidade, no fundo. Tratam de mim. Como se fosse criança ainda. Lavam-me a cabeça. Tentam fazer obras de arte destes caracóis rebarbativos com que a natureza me abandonou no mundo. Arranjam-me as unhas. Trazem-me chávenas de chá. E tudo isto se passará num cenário longínquo. O meu espírito entregue então a um paperback. Um thriller, que o fôlego não me dará para mais. Sento-me à secretária. O Tim foi a Kansas City para estudar o mercado do Middiewest. Antes assim. Não me apetecia encontrá-lo hoje. Que ele me visse exausta, o

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temperamento à flor da pele. A noite por dormir mal escondida debaixo da maquillage. O receio absurdo de que ele, como dantes acontecia, fosse capaz de me adivinhar para além das palavras. Uma dúzia de cartas à espera da minha assinatura. Sempre sem um erro. A Vívian e a sua eficiência na fronteira do desumano. Não sei como é que estas coisas acontecem, mas a verdade é que nunca conseguimos dar-nos bem. Nem mal. Uma permanente falta de à vontade re- 38

ciproca. Sinto que ela não me aprova. Eu e a minha desordem latina. Ler um projecto. A correr. Dentro de dez minutos uma entrevista com um possível cliente. Dizem que tenho jeito para essas coisas. Para angariar clientes. Catch them by the balls, na expressão do Jack Witney, rapaz subtil e delicado. Um animal na selva. Um sobrevivente profissional. Será que dizem o mesmo de mim? Preencher a folha de produtividade. Na qual me vingo, exercitando um pouco de imaginação lusitana. Telefonar aos tipos do fogão. O forno está a dar o berro. Creio que me suicidava se chegasse a casa à noite e em vez de um TV diner fosse obrigada a criar uma refeição. A chamada telefónica, acho que a vou mencionar como contactos para prospecção do mercado de electrodomésticos. O que me falta é espaço. Espaço psicológico. Embora não me fizesse mal nenhum um pouco mais de espaço físico. Este gabinete. Esta secretária. Esta cadeira. Familiar paisagem moldada à forma do meu corpo, ao percurso dos meus gestos. Os pequenos objectos pessoais. O calendário perpétuo que comprei no mercado da Village. O copo para as canetas. Uma faca de tartaruga que nunca uso. O candeeiro que o Tim me ofereceu. A caixa inglesa de prata que trouxe de Portobello. Coisas que me ajudam a também aqui me sentir em casa. Mas a verdade é que estou na firma há, há quantos anos? Doze anos, no próximo mês de Setembro. Cansada de olhar todos os dias para a mesma gravura à minha frente. De que não gosto particularmente. Embora saiba que nunca hei-de mudá-la. A desculpa é a falta de tempo. Mas tudo isso é acessório. Do que eu preciso é de um gabinete novo e maior. É como ter uma promoção. Ou não a ter. Vou falar-lhes na questão do gabinete. Não. Atacar de frente os problemas. Do que tenho de lhes falar é da promoção. Aproveitar a próxima vez que discutirmos quantos milhares de dólares facturei para a firma no último ano. A reunião com o possível cliente correu bem. Extremamente bem. Tenho a certeza de que consegui mais uma account. Durante um momento sinto-me feliz. Aliviada também. Ainda que repetisse este número, com sucesso, durante cem anos continuaria a entrar para as reuniões com o mesmo stage fright do primeiro dia. Desde miúda. Lembro-me de me esconder atrás duma porta enquanto os pais discutiam o que haviam de fazer para eu vencer a minha patológica insegurança. Aprendi entretanto, sozinha, a utilizar várias armas. Creio que a viragem se deu no momento em que descobri - e a surpresa foi total - que as pessoas 39

com quem lido não me são necessariamente superiores. Descobri a desoladora banalidade das pessoas. Exploro-lhes as dúvidas, a cupidez, as vaidades. Alimento-lhes as fraquezas. Coloco como um axioma a minha ilusória segurança. Mas faço-o com cuidado, com leveza, sem ferir. Dizem-me que falo sempre como se quisesse sorrir. Um sorriso de medo, se me conhecessem bem. Mas recorro também a outros expedientes. Como jogar sem acanhamento com o sexo. Com subtileza, espero. Nesse capítulo devo confessar que perdi os escrúpulos. No momento

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em que percebi que os homens, de uma maneira irreflectidamente hipócrita, o fazem em cada fôlego. E esperam, desejam, que nós o façamos também. True to type. E se o não fizermos sentem-se defrauda- dos. Ameaçados. Duvidam da sua própria virilidade. E uso ainda o talento que tenho para perceber qual o momento em que posso desferir-lhes a estocada fatal. É, pelo menos, o que dizem os meus colegas. The killer instinct. Mas, voltando ao presente. Quando o tipo saiu, entrou a Vivian. Uma lista de telefonemas que tinham entretanto chegado. E ainda dois partners que precisavam de falar urgentemente comigo. Disse à Vivian para ir pondo as chamadas em linha. Ela perguntou por que ordem. Eu disse que por qualquer ordem. Ela perguntou: e os partners? Respondi: they'll have to wait. Estas pequenas satisfações. Mas a Vivian - tenho a certeza de que me lê os pensamentos - não aprova. No seu silêncio ostensivamente disciplinado. Disse-lhe ainda para ligar para minha casa. Ela quis confirmar: a minha casa? Disse-lhe que sim; mas pensando melhor só por volta da uma e meia. O Luís, a inesperada ternura que por ele senti on- tem à noite. E hoje? Hoje não sei. Neste momento apetecia-me ouvir a voz dele. Mas não falar com ele. A mera curiosidade de verificar se transbordou para o dia seguinte um pouco daquela inesperada ternura. Receio, no entanto, que esteja já a germinar dentro de mim uma sensação que vou conhecendo excessivamente bem. No fundo, no fundo, trata-se de não ser capaz de aceitar que os outros não são perfeitos. Daí a irresistível vontade de lhes pegar por uma ponta vulnerável qualquer. O caso do Luís é óbvio. A gravidade dorida daquele sofrimento todo. A auto- compaixão. O comprazimento, a quase satisfação pela experiência humana que lhe traz tanto sublime padecimento espiritual. Quem o viu e quem o vê. Ele e também a Marta, sempre juntos, como figuras de um quadro célebre. Como se tivessem sido con- cebidos no céu. Eram de ouro, naquele tempo. Tudo lhes corria 4O

bem. O mundo talhado à medida deles. O brilho com que o Luís se exprimia. A elegância, a leveza de palavras e gestos. Um livro de poesia publicado aos vinte anos. Críticas a dizerem que tinha nascido um novo poeta. Depois não escreveu mais nada. E a Marta: beleza de fazer perder o fôlego; como a roupa lhe caía bem; graça, delicadeza, imagem recortada de um conto de fadas. Contagiando de magia tudo aquilo em que tocavam. O Luís fez o curso de Letras com o fulgor de um predestinado. Ficou assistente na Faculdade. Casaram-se. Não sei donde lhes vinha o dinheiro. Mas a verdade é que durante vários anos passavam a vida em Paris e em Londres. Traziam notícia dos swinging sixties. De livros, filmes, música, peças de teatro. A Marta vestia-se em Paris. Recordo-me do meu deslumbramento. E não só do meu. Onde chegassem, eram eles o centro de tudo. Como se fosse um privilégio vê-los, tocá-los, falar-lhes e sobretudo ouvi-los. Nada se organizava ou se fazia sem eles. O Luís continuava a ensinar na Faculdade. A Marta tinha interrompido o curso e fazia traduções em casa. Mas aos poucos, insidiosamente, imperceptivelmente, as coisas foram mudando. Os anos a passarem. O que era novo começou a não ser já tão novo. Os amigos, de cuja admiração eles no fundo se alimentavam, cada vez mais ocupados com a faina chá de ganhar o seu pão de cada dia. Vieram duas crianças. Vieram os trinta anos. Veio o momento em que o Luís percebeu que já não tinha tempo para preparar o doutoramento. Veio o emprego burocrático na Biblioteca Nacional. E de repente o Luís e a Marta eram como toda a gente. Suponho que foi esse "como toda a gente" que eles nunca foram capazes de aceitar. Passaram os dez anos seguintes a culpar-se mutuamente. E inutilmente. O que mudou não foram propriamente eles, mas a

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efémera imagem de juventude que durante algum tempo tiveram a felicidade, ou o infortúnio, de simbolizar. Receio bem que o Luís nunca consiga recuperar. O toque suave do meu telefone. A voz profissional da Vivian. A primeira chamada. E, logo que desliguei, a segunda. Depois uma pausa de dois ou três minutos. Houve momentos ontem à noite. Momentos em que consegui esquecer-me de tudo. E o resto da manhã passeia-a entre o telefone e uma leitura interrompida de relatórios em cadeia. Pelo menos tem boa memória. Era o que o pai costumava dizer depois de ter desesperado de me encontrar qualquer outra qualidade redentora. Atrasada para o cabeleireiro. E ainda por cima tinham pedido que não chegasse depois das duas. Ponho-me lá em dez minu- 41

tos se andar depressa. Ambos os elevadores inexplicavelmente retidos. A impaciência a crescer-me. É o que sucede quando estou com falta de tempo. O que é sempre. Como sempre, também, carregada de coisas. A minha carteira do Vuitton. O saco de plástico com a camisola que comprei na semana passada e que afinal sempre quero trocar pelo tamanho acima. O paperback. O New York Times e o Wall Street Journal. Se tiver coragem ainda passo os olhos pelos jornais. As últimas do mundo e da finança. O Tim escreveu há tempos um artigo sustentando em termos polémicos, como ele gosta, que a informação é a chave da nossa época. Receio ter acordado o Luís. Sentiu-se na obrigação de dizer que não. Sentiu-se na obrigação de se me dirigir com artificial ternura. Vai ser um problema. Menor, talvez, mas mesmo assim um problema. Voltar a instalar entre nós alguma naturalidade. Fluidez. Não tenho em mim subtileza suficiente para jogar jogos de circum-navegação. Não tenho força mental, não tenho reservas se não para colocar as coisas e para me colocar a mim numa linha recta. A mais curta distância entre dois pontos. Se a memória não me trai. Não sei o que é que vai acontecer. Mas, por mim, estou firmemente determinada a não permitir que o facto de termos feito amor interfira na nossa amizade. Mas não sei. O Luís é, no fundo, um inconfessado conservador. Gente a mais nestas ruas. Acotovelei algumas pessoas. Dois ou três encontrões. Nada que não me façam também a mim. E quando me sentei no cabeleireiro faltava exactamente um minuto para as duas. No meu Cartier. A única boa recordação do Javier. The Spanish jerk. Pela minha parte, ofereci-lhe um Dupont de ouro. Não ficar a dever-lhe nada. Tudo muito convencional. Um pouco impessoal. Mas era assim que eu queria. Folheei rapidamente o Times. Fiquei a saber que o "Seoul party chief backs direct vote for the President". E que Secaucus, do outro lado do rio, em New Jersey, se está a transformar numa Suribelt office park boorn town. Mas depois mergulhei nas delícias da PD James. Três e um quarto. Nunca conseguem despachar-me em menos de uma hora e tal. Eu já devia saber. Comi entretanto uma sandwich com o chá. O suficiente para me manter a circular durante mais um bocado. O suficiente para ganhar uma úlcera. Devia passar pela lavandaria e levantar a saia que já está com certeza pronta. Mas tenho o vestido e as calças no porta-bagagens do carro. Absurdo fazer o percurso duas vezes. Fica para amanhã. 42

Apetecia-me vestir a saia. Paciência. E ainda não é hoje que vou trocar a camisola. Os dois parmers. Se voltam a chamar-me e não estou lá durante office hours? No fundo não tem importância. E eu sei que não tem importância. Estas ridículas sensações de culpa. A Vivian.

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sempre sentada à sua secretária. Sempre a fazer qualquer coisa. Inveja daquela paz de espírito. Assim me parece, que a vejo de fora. Tudo lhe é suave e natural. Os gestos saem-lhe sem esforço. Nunca uma crispação. Mas não pode ser. Acabo de decidir que aquela mulher dissimula qualquer inferno interior. Ninguém, é que ninguém, pode viver em perene serenidade. Tenho um recado do Luís. Diz que saiu, mas que estará de volta à hora do jantar. Estará de volta? Que contas tem ele de me prestar? E a factura que me será cobrada por conta dessas contas? O mal-entendido que eu receava. Pôr tudo em pratos limpos ainda hoje. Mas, para já, mergulhar no trabalho. Alienar-me. Era assim que se dizia na Faculdade. Alienar. Para o filho do Tim, a palavra invocaria um filme sobre monstros espaciais. Da última vez que fui lá a casa, o puro ostentava com orgulho uma T-shirt: com a inscrição "Masters of the Universe". Deve ser uma série de televisão. Às cinco e meia, nem mais um minuto, nem menos um minuto, a Vivian veio despedir-se. Saíram todos. Mas eu, na minha desordem, na minha falta de método, preciso de mais meia hora, pelo menos. E isto, note-se bem, num período calmo. Que nos outros, levo os papéis para casa. Para ler entre os bocejos fatigados do fim do dia, sozinha, em frente à televisão. Não me importo. Gosto da companhia de mim mesma. Agora, no silêncio do meu gabinete, constato que estou demasiado excitada para me concentrar. Vai-me ser impossível trabalhar a sério. Tento convencer-me de que um dia não são dias, de que no fundo não tem importância. Não vai acontecer nada se os papéis ficarem esta noite por ver. O meu drama é que não aprendi ainda a resistir a um dever. Aquilo que me parece ser um dever. Gravada no subconsciente, a certeza de que a menor falta, a mais pequena in, fracção, fará abater-se sobre mim a inclemente fúria dos deuses. Ou dos homens, o que é bem pior. Foi a conversa com o Jack Daniels. Conhecido por Mr. Bourbon. Ou Mr. B. É um dos partners. Sim, fui finalmente falar com ele. Dispensando os fastidiosos detalhes, chegámos a um insanável desacordo sobre uma questão de táctica. Suponho que gritámos um com o outro. E o tipo cedeu. O meu gosto pela luta. Sobretudo quando me encos- 43

tam à parede. Digo coisas nas quais depois mal me reconheço. São os únicos momentos em que tenho certezas inabaláveis. Em que jogo a sério. Em que jogo tudo, se necessário for. E tenho ganho. Até aqui. já duas vezes ameacei demitir-me. E ainda cá estou. Os momentos da minha vida em que não conseguem intimidar-me. Mas no fim fico a tremer. A perguntar-me: fui eu que fiz isto tudo? Quando saí, eram seis menos cinco. Sem ter conseguido pegar no que quer que fosse. Parei no rés-do-chão. Estava com fome. Um doughnut e um café no bar em frente, que fecha sempre tarde. Mais um contributo para a úlcera que me espera. Se o ataque cardíaco não me colher primeiro. Depois subi dois quarteirões. Acho que ganhei o direito a uma extravagância. Também pelo que está para vir no resto deste dia. Uma boutique para late shopping. A blusa que eu tinha visto na montra na semana anterior. Paixão à primeira vista. Provei-a. Ficava-me bem. Paguei com o American Express, Quanto é que eu já pus em cartões de crédito este mês? A multidão de cartões que povoam a minha carteira. O desgoverno total. Dizem-me que ganho um handsome salary. Mas a verdade é que não me sobra nada. Sem hipótese também de comprar uma casa. De qualquer maneira, recuso-me a ir viver para um subúrbio sem alma. E uma casa em Manhattan está fora do meu escalão. Paro num news-agem. Compro o Village Voice e o Rolling Stone. Hábitos de outros tempos. Em que tanto eles

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como eu éramos diferentes. Não pertencíamos a ninguém. Estas ideias românticas. Agora mal os folheio. Volta e meia meto os Rolling Stones acumulados num embrulho e mando-os ao meu sobrinho. Profundamente deprimente. Ter sobrinhos que já lêem o Rolling Stone. Entrei de novo no prédio. Desci até à garage. O trânsito àquela hora um pouco mais suportável. Ligo o rádio. Apetece-me música clássica. Opto por uma cassette com um concerto de Mozart. Por um momento sinto-me extremamente bem. Segura. Descendo a Madison, envolvida pelo espaço fechado do carro, as notas do piano a preencherem os meus vazios. Mas tenho de pensar nas férias. De hoje a uma semana. Devia ir a Portugal. A última coisa que me apetece. Prefiro não pensar nisso. No ano passado, Cape Cod, o mar e o veny e a casa do Lou e da Joan. E aquele incrível casal de velhos com mais de mil anos que morava numa cottage no topo da falésia. O velho mostrou-nos um retrato da mulher, jovem flapper nos anos trinta, e perguntou se ela não era 44

a coisa mais bonita que Deus tinha posto no mundo. E era. A velha sorrindo para nós com os três únicos dentes que lhe restavam. Mas isso foi no ano passado. E este? Talvez desafiar o Rogério e a Leria para qualquer coisa. Paro à porta da clínica. Na recepção peço pelo quarto da Emily. Mrs. Johnson. Tudo impecável. Imaculado. Como se não fosse um lugar de sofrimento, de morte. A Emily estava sentada na cama. Camisa de dormir branca com flores cor-de-rosa. A sua expressão serena. Achei-a resignada. Uma enfermeira a tomar notas na folha clínica ao fundo da cama. Depois saiu. Pareceu-me que afinal a expressão da Emily era de medo. Um mal-esboçado sorriso de terror. Tentei ser ligeira. Mostrar-me alegre. Nem uma ponta de preocupação. Puxei duma cadeira e sentei-me ao lado da cama. Da conversa, nada de memorável, a não ser quando ela disse: o que mais lhe custava, se as coisas corressem mal, era deixar os filhos e o Peter abandonados. 1 can't help thinking - disse ela - that somehow it's my fault. Eu respondi nonsense. Com veemência. E depois as banalidades que se dizem nestas circunstâncias. Operação extremamente simples. Os avanços da medicina. Não tardava nada a voltar para casa. O marido e os filhos iam ter muito tempo para se fartar dela. Depois voltámos ao diálogo da normalidade, como se nada daquilo estivesse de facto a acontecer. Como se estivéssemos ainda no jardim da casa dela, onde passámos tantas tardes de domingo a falar, no fundo, de coisa nenhuma. Mas agora as palavras saíam-lhe mecanicas, pareceu-me. Era evidente que estava noutro lado. Num lugar tão longe dentro de si mesma que eu não seria capaz de tocar-lhe. Depois levantei-me. Prometi que voltava em breve. Ela disse que era operada no dia seguinte. Talvez fosse melhor eu não vir antes de dois dias. Quando me baixei para lhe dar um beijo, a Emily segurou-me na mão. Apertou-a com força, Disse: uma pessoa aqui estendida sem nada para fazer tem tempo para pensar de mais. Gosto muito dos meus filhos e do Peter - disse ela - mas a verdade é que é por mim que não quero morrer, não por eles. No elevador, desci na companhia dum homem de idade, a sua expressão impenetrável. A caminho de casa não me apeteceu continuar a ouvir o Mozart. Não me apeteceu ouvir nada. A Emily tinha menos dois anos do que eu. Que faria eu no momento em que o médico, por de trás da sua bata branca, me anunciasse o resultado da biopsia? Positivo. Acrescentando que, evidentemente, não havia razão para alarme. 45

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Estacionei o carro no espaço que na garage me está reserva- do. A seguir fui ao supermercado. Dois pacotes grandes de papel castanho. O que isto pesa, sempre. Lembrei-me de que não tinha cigarros. Mais uma volta. Comprei dois maços. Oito menos um quarto. Será que o Luís já está em casa? Apetecia-me que não. Apetecia-me um momento para estar só. Preparar um whisky. Descalçar os sapatos. Sentar-me na varanda e não fazer nada durante meia hora. Não é pedir muito, pois não? Olhar para o rio. Ver o trânsito passar na rua lá em baixo. Mas, quer o Luís lá esteja quer não, vai eventualmente chegar o momento em que terei de decidir o que é que vou fazer com ele. Ou deveria antes dizer cormosco? 46

v A Maria José convencida de que me tinha acordado. Mas foi a luz. Ou outra coisa qualquer. Ou coisa nenhuma. Meio-dia e um minuto no relógio do rádio à cabeceira e eu desperto, irremediavelmente, como se tivesse dormido oito horas. Ainda pus a hipótese de mais um Valium. Mas era tarde. Ora ela saiu uns minutos antes das oito. Ainda estive a ler, até o livro me cair das mãos. Ao todo, umas três horas e meia de sono. Levantei-me. Sentia-me fraco, frágil, vulnerável, doente. No frigorífico encontrei um sumo de laranja. Não me apetecia comer. Arrastei-me até à varanda. Dediquei-me, como um inválido, ao estimulante exercício de ver os carros passar. Até à chamada telefónica da Maria José. Foi então que decidi arranjar-me. Na casa de banho, o habitual calvário das manhãs. Em Portugal eram quase sete horas. Resolvi tentar. Compus várias vezes os números. Finalmente a chamada passou. Respondeu a criada. A Marta demorou ainda um bom bocado a vir ao telefone. A conversa foi seca e breve. Perguntei pelos pequenos. Tinham saído com a tia. Bom - disse eu - telefono noutra altura. Como se fosse com eles que eu queria falar. A Marta disse: está bem. Eu disse: então adeus, até breve. Ela disse: adeus. Uma voz distante, sem uma réstea de expressão. Desligámos. Tomei um autocarro na rua 86. Ia na direcção certa, esperava eu. Apeei-me umas trinta ruas abaixo. Sétima Avenida. Vários quarteirões até à Quinta. Ora, se a memória me não engana, é um pouco mais para cima. Mas enganou. Voltei para trás pelo outro lado, para não repetir as montras. Quase meia hora disto. Mas acabei por encontrar a Doubleday. Um imenso supermercado de livros. Demorei-me pela secção dos paperbacks. Comprei três livros. Less Than Zero do Bret Easton Ellis, Family Dancing do David Leavitt e Bright Lights, Big City do Jay Mclnerney. 47

Pôr-me em dia. s leituras da moda. A nova geração, etc. Há sempre uma no geração. O irresistível fascínio do novo. Também nós estáv2@ os destinados a ser sempre novos. E quando deixámos de o s ninguém teve de trazer a mensagem. Não foi sequer preciso e o dissessem expressamente. Foi mais subtil. Mais perverso. creveram livros. Fizeram filmes. Vieram ao mundo e começ am a ocupá-lo. E eu a não me dobrar com a década. Não obsta e, acredito no progresso como uma lei de Darwin da ética. Pr avelmente o único ponto em que sou capaz de me aproximar d qualquer coisa como fé. Um conceito demasiado abstracto, no entanto, para me aquecer o presente. E para quê continuar a falar,se ninguém me está a ouvir? já nem a mim mesmo me estou a ouvir. Ocupado, como ando, a tentar sobreviver neste pântano de compromissos. É esse o meu drama. Não ser capaz de largar as amarras obsoletas. Não ser capaz de aceitar que o vazio, o desespero, o negativismo são

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detentores de um título tão legítimo como a romântica intensidade ética pela qual me deixei seduzir. Resta-me agora apenas ser moralista. Ignóbil destino dos portadores de princípios quando se sentem acossados nos seus fundarnentos. Mas, na verdade, tudo isto é bem mais concreto. Questão de rugas, de fadiga, de fracassos nas provas do quotidiano. E o resto são desculpas. Exercicios inúteis como discutir com a chuva. Barragens contra o Pacífico. Entro numa cafeteria. Sento-rne a uma mesa. Peço um café. Não é permitido fumar. O novo puritanismo. Abomino as causas. Sobretudo as boas causas. O zelo. O evangelismo. As pessoas que sabem o que é bom para os outros. A sala está quente. Falta o ar condicionado. Desce sobre mim uma agradável sonolência. Não lhe resisto. Suponho que adormeci. É que uma empregada veio perguntar se estava tudo alríght. Ergui-me num gesto de falsa frescura. Respondi um pouco alto demais. Pedi a conta. Passar por vergonhas. Saí. Expulso por njim próprio. Não me apetecia fazer nada. Fui andiando pela @Lvetjida abaixo. De novo na Broadway. Comprei um bilhete de cinema. Nine and a Half Weeks, de Adrian Lyne. Sentei-me a meio da sala. Que estava praticamente vazia. Vi al- t gumas cenas. Interessou-me pouco, o Mickey Rourke e a sua expressão única. So@riso fixo de rapaz travesso. Romantismo de Chatfly. Bonitas irnagens de gente bonita. Kim Basinger e tudo. E ainda, violência, sado-masoquismo e desencanto chique. Un Homme et Une F@,,mme para os anos oitenta. Não tinha importância, as pálpebras a pesarem-me de novo. E o resto da sessão 48

foi uma espécie de bailado entre dormir e acordar. Uma doce sensação de impotência. Creio que sonhei com os pequenos. A passearem com a tia. Gelados na mão. Passar a vê-los de quinze em quinze dias. Ou de semana a semana. Será que me importo? Que tenho forças para me importar? Que existirá alguma vez dentro de mim um canto qualquer que não esteja ocupado por esta escuridão que utilizo para me esconder do mundo? Sete da tarde. Mais umas voltas pelas ruas. Sem propósito ou rumo. Depois decidi tomar um táxi e voltar para casa. Os sítios a que eu chamo casa. Nos tempos que correm. Sentei-me na varanda. Começar pelo Easton Ellis. A arte de falar de coisa nenhuma. E de o fazer com brilho. Mas como se não o quisesse. O meu copo de whisky pousado no chão. Tinha trazido a garrafa e um jarro com água para não ter de me levantar. Mas tive. Quando tocou o telefone. Ainda hesitei. Mas podia ser a Maria José. A voz do Rogério. Para saber se a Maria José queria combinar qualquer coisa. E, já agora, eu também. A gente está em casa esta noite - disse o Rogério. A gente sendo eles três. Ou só dois. E onde raio seria casa em N.Y? Não perguntei. Disse que transmitia à Maria José. Depois, quase dez minutos, a ouvir entusiasmos sobre o filme que ele tinha visto naquela tarde. Uma eternidade, para estar afastado do meu copo. Não encontrei maneira de interromper. O Rogério e aquele modo de subjectivar as coisas. De as colocar como se fossem pedaços de si mesmo. De ficar silenciosamente magoado com qualquer menor interesse do seu interlocutor. Por fim despedimo-nos. Quer dizer, despediu-se ele. Eu fiquei apenas grato e aliviado. Regressei ao meu posto. Profundamente desagradado com o cerco humano em que estava a deixar-me cair. Tentando responder que não me restavam forças senão para ser sacudido pela maré. Pouco depois chegou a Maria José. Cheia de agitação. Tinha ido às compras. Que arrumou na cozinha. Que atirou com irritação para o frigorífico. Para dentro dos armários. Perguntou pelo whisky. Fui buscá-lo à varanda. Arranjei-lhe um copo. Sentámo-nos na varanda. Falei-lhe do telefonema do Rogério. Ela disse: nem pensar, exausta como estou; por acaso queria falar com ele, mas fica para amanhã. Depois fez-se silêncio. Mas acabei por

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lhe perguntar como tinha sido o dia dela. Respondeu que um inferno. Uma sucessão de problemas. Uma correria dum lado para o outro. Disse-o com uma aresta tão cortante que me saiu um: não foi culpa minha, pois não? Não, não foi tua culpa. Resposta dada 49

num tom seco que de alguma forma deixava de pé a possibilidade. Depois ela disse: não me apetece cozinhar; se não te importas, vamos jantar a qualquer lado. Disse-lhe que por mim não se incomodasse, fizesse como faria, se eu lá não estivesse. Ela disse que se estivesse sozinha bebia dois ou três copos e ia para a cama. Eu disse que isso lhe fazia mal. Ela disse: sei lá o que é que me faz mal ou o que é que me faz bem. Seria paranóia, mas achei que havia naquilo mensagens para mim. Aguentar. A sós, o inferno. A dois, dois infernos. Eu disse: deixa-me convidar-te para jantar; arranjamos um sítio simpático. Não achas que devíamos comemorar, pelo menos um bocadinho, a noite passada? Ela disse que não se sentia com disposição para comemorações. Eu disse: então não é uma comemoração; jantamos calmamente, descansas, tentas não pensar em nada; só em coisas agradáveis; vá, um sorriso. Como raio é que eu me via agora colocado na situação absurda de a convencer a ir jantar fora? O que ela própria tinha começado por propor. E ali estava eu, a repetir: vá, um sorriso. Ela não sorriu. Mas disse: está bem, deixa-me só acabar o copo. Foram vários copos. Para cada um. Durante duas horas. Vimos o dia apagar-se. A brisa leve e morna da noite a levantar-se. Trocámos conversa esparsa e solta. Falámos sobre muitas coisas. Sem nos fixarmos em nenhuma. Ela quis saber porque é que, of all places, eu tinha decidido ir para N.Y. curar-me da Marta e de tudo o resto. Disse-lhe que Lisboa se tinha tornado insuportável. Em Lisboa, as pessoas, as coisas, os lugares tinham para mim uma história. E eu tinha uma história em Lisboa. Antes o anonimato, dissolvido no meio de dez milhões de pessoas e cimento armado a perder de vista. Mas porquê N.Y.? - disse a Maria José. Eu disse: porque não? Ela disse: o expatriado. A divertir-se comigo. Peguei-lhe no tom e continuei: expatriado, mas da pátria do coração. E sorri um sorriso de auto-ironia. Quase dez quando comecei a insistir que eram horas de irmos. A Maria José voltou a perguntar porque é que eu não a deixava ir para a cama, agora que estava mais bem-disposta. Mas acabámos por sair. Tomámos um táxi. A Maria José não queria correr o risco de a mandarem parar naquele estado. Fomos para Greenwich Village. Um res- taurante com um nome italiano, Dinos ou Luigi's, já não me lembro. Decoração a imitar rústico europeu de século indeterminado. Mesas com as inevitáveis toalhas de chita. E as inevitáveis velas em garrafas de Chianti. Muito típico. Mandámos vir uma garrafa do dito Chianti. Raviolli para ela, lasagne para mim. 5O

Não estávamos grossos. Apenas animados, expansivos, as guardas um pouco tombadas. Procurando eu uma maneira de a pôr à vontade. Uma maneira algo perversa: falando-lhe daquilo de que talvez não devesse falar-lhe. Da Marta. O oblíquo raciocínio sendo que ao arriscar aquele tema lhe demonstrava a minha confiança na solidez daquilo que nos unia. O que é tramado - disse eu - é que não consigo pôr de parte, arrumar, a ideia da Marta. Trago-a pendurada como um fantasma. E dou comigo a pensar que, perdendo-a, perco com ela uma boa parte do meu passado. A Maria José perguntou então porque é que eu a tinha deixado.

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Respondi que era mais o contrário. A Marta é que já não conseguia suportar a tenebrosa criatura em que eu me tinha transformado. E a libertação de que estavas a falar no outro dia? Respondi-lhe que tudo isso coexistia dentro de mim. Tornei-me silogístico: liberto-me, recomeço, novo ponto de partida; logo, renuncio àquilo que era; logo, foi tudo para nada. A Maria José disse que era essa a definição da vida: é sempre tudo para nada. E depois rematou, muito depressa: não ligues, estou com os copos. Eu disse: estamos com os copos. E tu? Eu o quê? - disse a Maria José. Vida sentimental, o que é que havia de ser? já me perguntaste, ontem - disse ela. E tu não respondeste. Fez-se um pequeno silêncio durante o qual a Maria José se entreteve, uma vez mais, a balouçar o vinho no fundo do copo. Depois disse: tenho praí uma coisa pendurada, nada de cuidado. Rimo-nos os dois. Sabes - disse a Maria José, recuperando a sua expressão séria - qual é a diferença entre nós? A diferença entre nós era que ela, não obstante alguns protestos, estava em última análise disposta a pagar o preço das suas opções e eu não. E com esta frase féchou-se a porta que nós tínhamos entreaberto. A conversa continuou com ela a contornar o que mais intimamente a tocasse. Por mim fiz o mesmo. Retomando o indefinido mal-estar que perante ela continuava a sentir. Seria aquele olhar que me parecia duro. Ou a voz firme. Ou a insegurança de não saber ao certo como classificar a paradoxal ternura que sentia por ela. Talvez por isso lhe falei então da noite passada. Ela disse: a célebre noite. O que foi acompanhado de um condescendente sorriso; sorriso também de uma ténue dor; de uma memória remota e quase esquecida. Depois disse: não podíamos falar doutra coisa? Perguntei-lhe se estava arrependida. Ela disse que nunca se arrependia de nada. Eu disse: não é resposta. Ela disse: é uma resposta como outra qualquer. Eu disse: e para além disso? Para além dis- 51

so, nada. Depois vieram perguntar-nos se tínhamos gostado da refeição. Dissemos que sim, estava tudo óptimo. Serviram o café. Lembrei-lhe que o café lhe tirava o sono. Ela disse: mas apetece-me muito. E com o café esbateu-se a euforia alcoólica em que tínhamos estado. Durante a qual tudo me foi permitido. O efémero efeito do Chianti. Nenhuma pressa em formular respostas. Saborear longamente a volúpia de olhar um pouco à distância para a teia de conflitos que era eu. Notava agora que, não obstante a intensidade ligeiramente descontrolada com que me havia exprimido, as minhas palavras tinham sido parcas, o seu alcance cuidadosamente medido. Foi assim que falei da Marta. Ou antes, de mim em conjugação com a Marta. Mas, na verdade, tinha-me detido muito àquem da verdade. Receio, contudo, que a Maria José o tenha suspeitado. Que outro sentido para a pergunta: no outro dia disseste que a Marta acabou-se; tens mesmo a certeza? Foi nesse momento que olhei para o relógio, sem, na realidade, ter reparado nas horas, e lhe respondi: e se fôssemos andando? Saímos. A noite agora um pouco mais fresca. Pela rua fora, sem rumo certo. Alguns minutos depois da meia-noite. Mais à frente, a Maria José parou à porta de um edifício velho e degradado. Disse que morava ali uma amiga dela. Ia tocar à campainha. já viste as horas que são? Ela disse que a Susan e ela eram amigas há muitos anos e, de qualquer maneira, a Susan nunca se deitava cedo porque não tinha emprego. Chamaram-nos lá de cima. Uma cabeça, cabelos claros, pendendo da j anela. Trocaram, as duas, uma conversa aos gritos em que a Maria José perguntou se ela estava só e se podia subir with a friend. A Susan perguntou male

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or female? E depois disse: give me a couple of minutes to get decent. E atirou a chave, que recolhi do passeio. Subimos até ao terceiro andar por umas escadas esquálidas. Vi pelo menos duas baratas fugirem à nossa frente. No patamar do primeiro piso ouvia-se um ressonar distante e persistente. Do segundo, vinham as vozes artificialmente animadas de um talk show na TV A porta da Susan estava encostada. Entrámos. A Maria José atirou lá para dentro um cantarolado: anybody home? Casa feminina de ponta a ponta. O aconchego. As flores. Os padrões quase infinitos dos tecidos misturados. Os móveis minúsculos, como se não fossem bem a sério. Dezenas de fotografias em molduras espalhadas um pouco por todo o lado. Um tapete artesanal. Navajo, explicaram-me depois. Uma pequena mesa a servir de bar, com uma colecção de copos de todas as for- 52

mas e de todas as cores. Os sofás moles a absorverem o corpo como um convite. E na parede quadros coloridos, figurativos, naif, kitsch. A Susan apareceu vestida de shorts brancos. Mal apareciam, no entanto, debaixo duma camisa enorme. Como uma camisa de homem, que ela usava solta, as mangas arregaçadas até aos cotovelos. Descalça. Sentou-se no chão, à nossa frente, pernas cruzadas à maneira dos índios nos westems. O cabelo loiro, longo e frisado. Firme e vivo como uma árvore ao vento. Feições expressivas. Um sorriso permanente e extrovertido. Serviu-nos vinho branco gelado. Circulou um cigarro de hash. De resto, conversa para passar o tempo. A Susan perguntou se eu era um novo namorado. A Maria José disse que não. A Susan riu-se, disse que não acreditava. Espicaçou a Maria José durante mais um bocado. Eu a assistir comprometido com um sorriso paralisado. Falaram ainda do que andava, cada uma, a fazer. A Maria José, o seu jogo sempre fechado, deu um panorama frio e distante. Como se estivesse a debitar um noticiário. Amenizou, porém, com uma ou duas histórias cómicas de colegas seus, que a Susan aparentemente conhecia. Admitiu contudo que tinha coisas a mais para fazer. A Susan respondeu que a Maria José lhe parecia feliz como uma pessoa on the way to the gallows. Mas disse-o sem abandonar o tom frívolo que a conversa nunca deixou de ter. A Maria José apertou as mãos à volta do pescoço, deitou a língua de fora e, por entre esgares cómicos e grotescos, emitiu sons como se estivesse a ser estrangulada. A Susan riu-se e disse que a Maria José devia era fazer como ela and not give a damn. Concluíram que tinham de se encontrar sozinhas um dia destes, embebedarem-se a sério e entornar as respectivas almas. Quando partimos, à porta da casa, combinaram coisas vagas, daquelas que depois não se cumprem. Como irem no domingo à feira da Village. Como fazerem um piquenique um fim-de-semana destes. Sim, com certeza, that would be fun. Telefonamo-nos. Na rua, enquanto esperávamos por um táxi, a Maria José disse que a Susan era a sua melhor amiga. Mas. O inevitável mas. Tinha o mau hábito de se pôr a catequizar as pessoas para viverem a vida como ela. A fazer flores de papel. Quando se chateia, dedica-se à cerâmica. Quando volta a chatear-se redecora a casa. E a maior parte do tempo não faz nada. Sustentada pelo generoso cheque que o pai lhe manda todos os meses. Podres de ricos. A Susan vende as flores e a cerâmica e quando lhe passam cheques esquece-se ou não tem paciencia de os ir levantar. A Maria José 53

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disse ainda: a Susan é uma hippie reformada. Conhecia-a num festival de música na Califórnia. Quando chegámos a casa, a Maria José não quis que eu ligasse as luzes da sala. Mas iluminou a varanda, que atirava uma espécie de luar artificial para dentro de casa. Segurei-lhe na mão. De regresso, no táxi, poucas palavras tínhamos trocado. Como se nos estivéssemos a estudar em silêncio. Mas ela ainda tinha dito: o que eu estou deprimida; acho que é de não ter dormido. Por isso, quando lhe segurei na mão, disse: o que é que se passa, amor? Ela, quase numa súplica: não me chames isso. Eu disse: porquê? Ela disse: porque não é verdade. Não insisti. Mas depois disse: apetecia-me dar-te um beijo; estou há horas a morrer por te dar um beijo. Ela disse: não vamos começar outra vez, não? O seu olhar era de renúncia. De derrota também. Beijei-a na boca. Ela não resistiu. Depois abraçou-me com força. Quase com violência e sussurrou o meu nome. Duas vezes. Uma ponta de desespero. Uma ponta de dese+jar-me. Fizemos amor na cama dela. Mas foi uma coisa desencontrada, como se estivéssemos ambos um pouco noutro lado. E uma persistente sensação de carência. Depois ela ficou imóvel na cama, os olhos fixos no tecto. Os olhos cheios de lágrimas. Os olhos que haviam sempre de me escapar. Perguntei-lhe o que era. Ela disse que não era nada. Esforçou um sorriso feito todo de tristeza: sou eu que não estou boa. E depois disse: queria ver se dormia, está bem? Fui para a sala. Preparei o sofá-cama. Mas não tinha sono. Revendo as absurdas praxes a que me sujeito. Fazer amor com a Maria José, a última coisa que me teria apetecido naquela noite. Não obstante, cumpri os rituais numa obstinada dedicação. Aquilo que de mim era esperado. Mas por quem? No fundo, apenas a absurda obsessão de povoar a vida com a geometria em que todos os bons moralistas gostam de se encarcerar. Fiquei até às sete e meia da manhã a beber whisky e a ver filmes no vídeo, auscultadores nos ouvidos para não fazer barulho. Primeiro o Touch of Evil, depois o Top Hat e depois desenhos animados do Fritz Freeling, quase todos Sylvester and Tweety. 54

vi S eguiram-se três dias de ténebras. Durante os quais mil vezes me arrependi de ter saído do hotel. Da forçada intimidade com a Maria José. Mas parecia-me impossível voltar depois do que se tinha passado. Naturalmente ela ficaria a pensar que. E que ficasse? O mais espantoso era descobrir que ainda me importava com esse género de coisas. Foi assim. Terça-feira, dia a seguir ao jantar italiano e à visita à Susan. A Maria José regressou a casa um pouco mais cedo. Eu tinha-lhe arranjado um whisky como ela gosta. Com muito gelo e quase nenhuma água. Sentados na varanda a fazer horas para sair e ir jantar. julgava eu. A Maria José, aliás, com mais vitalidade e energia do que nos dias anteriores. Dir-se-ia que uma jornada inteira de trabalho não tinha deixado as suas marcas. Por mim, depois do fracasso da noite anterior, decidido a proceder com cautela. Encostado para trás na minha cadeira, ocupado com duas coisas apenas: o copo gelado na mão e estudar os gestos, as expressões, os olhos da Maria José. À espera dum sinal. Dum sinal que não veio. Não sei se foi isso que me desequilibrou. E me fez abandonar a contenção que me tinha imposto. Ou se foi apenas o gesto natural perante a alegre exuberância com que a Maria José se me apresentava naquela noite. Sentei-me ao lado dela na cadeira de verga de dois lugares. Ela virou-se para mim, sorriu, como se achasse natural que eu fosse sentar-me ali. Pareceu-me. Mas, ao virar-se, levantou do chão a perna direita e colocou-a como uma barreira à minha frente. Encostou-se para trás. Provar que as lágrimas da véspera não tinham passado de um absurdo incidente sem significado ou consequências. Foi essa, e apenas essa, a razão por que estendi o braço esquerdo e lhe fiz uma

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festa na nuca. Suponho, aliás, que no meu olhar se poderia ler não tanto esperança, como satisfação por ter sido capaz de lhe oferecer aquela ponte. 55

Ela não me repeliu. Mas disse: Luís, não, a gente tem de falar sobre isto tudo. Não, a Maria José não me repetiu. Como se quisesse demonstrar-me que, mesmo tocando-lhe, eu não seria já capaz de a tocar. Temos de falar - disse ela. Sobre tudo isto - disse ela. Virou-se para mim e disse. E mais não precisava de ter dito. Retirei a mão. Retirada. Derrota. Ignomínia. Explicou-me então que aqueles últimos dias a tinham desfeito. Em parte é talvez - disse a Maria José - que ando esgotada; um pouco desorientada; sem perceber bem o que é a minha vida; sabes como é, quando os problemas nos caem em cima todos ao mesmo tempo? Perguntei-lhe porque é que não mo contava. Ela respondeu que não era comigo. Um fardo que não podia partilhar com ninguém. E eu tinha problemas que chegassem. Ocorreu-me que haveria certamente ali uma lição para mim. Se eu fosse ainda capaz de sujeitar-me ao redundante labor de aprender. Insisti que: às vezes, as pessoas falando. E ela respondeu-me, estocada final: a verdade, Luís, a verdade é que não estou apaixonada por ti. Golpe de misericórdia para rematar a execução formal. Mesmo sabendo eu que era verdade. Como verdade era também o que ela disse a seguir: nem tu por mim. Apaixonado. Com efeito. O mundo cheio de verdades. Não me tinha, contudo, ocorrido que estar ou não apaixonado fosse relevante para o que entre nós se tinha passado. Mas, aparentemente, para ela era. Ou tinha passado a ser - diria eu, se quisesse ser rigoroso. Foi com certeza essa a razão por que ela disse, logo a seguir: e eu assim não sou capaz, desculpa, mais assim não sou capaz. Fiquei a olhar para ela. Esperando-se que me saísse uma palavra qualquer. Uma ideia, um achado, uma explicação. Não necessariamente uma varinha mágica com o condão de transformar as coisas naquilo que não são. Mas, que diabo, pelo menos um sinal do que dentro de mim não poderia deixar de estar a passar-se. Em vez disso, o meu espírito afogado pela obsessiva frase: o grande coleccionador de rejeições. Com um refrão sem fim. Disco encravado. Coleccionador de rejeições. E depois dei comigo a perguntar-lhe se ela nunca tinha feito amor com alguém por quem não estivesse apaixonada. A Maria José repetiu o seu tique de olhar fixamente para o líquido que fazia baloiçar no copo: não estás a perceber, é mais complicado do que isso; e depois, a palavra apaixonada, não sei se estamos a falar exactamente da mesma coisa. Explicou-me que podia gostar dum homem, ou achar-lhe graça, ou outra coisa qualquer. E pronto, podiam ficar por aí, ou não iscar. O proble- 56

ma não era esse. O problema era que, naquele momento, naquela altura da sua vida, não tinha disponibilidade. Não, ela não funcionava assim. Não funcionava por compartimentos estanques. Respondi-lhe que aquilo não fazia muito sentido. Que tinha de haver outra razão qualquer. Ocorrendo-me, contudo, que seria talvez antes o meu orgulho ferido à procura de uma intangível razão com R grande. A Maria José disse que não. Que, em última análise, as coisas complicadas da vida nunca fazem muito sentido. Sobretudo quando temos de as explicar. Nessa noite a Maria José não quis ir jantar comigo. Insistiu que estava extremamente cansada. Que queria comer apenas uma sandwich e enfiar-se na cama com um livro para ver se conseguia adormecer cedo. Continuávamos amigos. Suponho que é habitual nestes casos.

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Não obstante, estava instalada uma ponta de mal-estar entre nós. Pela minha parte, continuei a virar os dias ao contrário. Deitando-me ao amanhecer. Levantando-me ao fim da tarde. Como se assim me estivesse a libertar de uma servidão de ordem e de normalidade. Saía de casa com os últimos raios do sol de Verão. Sentindo na pele o calor húmido que a cidade tinha armazenado. Cheirando o pó e o odor queimado dos escapes. Partia cansado e gasto à procura de um estímulo, de qualquer coisa que me desse corda como se eu fosse um brinquedo partido. Ou na inconsequente busca de um sinal em que pudesse reconhecer-me na cidade como um espelho. Àquela hora, a luz e as cores a esbaterem-se, N.Y. revelava-se-me em recortes geométricos de preto e branco. Manhattan do Woody Allen. E se, como ele, eu fosse capaz de me resolver em neurose pura e exibicionista. E se tivesse a Diane Keaton. E tudo isto fosse outra coisa. E me fosse permitido recomeçar. E pensamentos patéticos como: condenado a não coexistir em paz com a vida; nem mesmo com os seus instrumentos de fuga. Aproveitava a última hora de claridade para ir descendo a pé até ao centro. Para atravessar o parque. Por vezes comprava um Frankfurter e uma Coca-Cola a um vendedor ambulante fardado de branco e com um boné que era apenas uma tira à volta da cabeça segurando uma pala vermelha de cartolina brilhante. Passava pelo Guggenheira e lembrava-me pela enésima vez que tinha de lá voltar. Um dia destes. Depois, na rua 59, onde o parque termina, o Plaza Hotel em frente. Os turistas a fazerem bicha para trens puxados por um cavalo. Passeios pelo parque ao anoitecer. Foi assim que um dia me apareceu a Rira 57

Hayworth; aparição vestida de sensualidade e traição, artes aprendidas em depravados bares de Xangai a Buenos Aires. Um sonho chamado Elsa ou Gilda. Um legítimo ícone do século xx. Procurar resistir à tentação de um snack rápido em vez do jantar. Não abundava o apetite; mas o tempo, esse sim. Encontrar um restaurante que servisse vinho. Comprado o jornal, Ou uma revista. Em casa da Maria José constatei que ainda existe o Rolling Stone. E o Mad. E que o Superman é agora um Stallone musculoso e banal. Consulto os menus afixados à porta dos restaurantes. Os dólares e a curiosa maneira que têm de se dissipar. Escolho um restaurante. Entro. Sento-me à mesa disposto a fazer a refeição durar o tempo de uma garrafa de vinho. Geralmente branco, com o calor que faz. Vou passando as páginas, não me interessando na realidade pelas notícias. Petiscando títulos, fotografias, cartoons. No restaurante, executo ainda um pequeno ritual diário. Telefono à Maria José. Responde-me que não precisa de nada. E vai perguntando se eu tenho a certeza de que estou bem. Depois assegura-me que não, não a acordei na noite anterior quando entrei em casa. Por volta das dez estou de novo na rua. Batendo a Broadway e Times Square. A luz e o movimento. Turistas, prostitutas, marinheiros bêbados, repetindo-se como o movimento dos ponteiros dum relógio. Black warriors altos, magros, os seus modos arrogantes, gigantescos ghetto blasters pousados no ombro, encostados ao ouvido, volume do som no máximo, passeios a estremecerem de hip-hop. A minha noite gasta-se então numa lenta e fatigada estafeta entre bares onde ninguém me conhece e onde não conheço ninguém e pequenas salas escuras onde ministram strip-tease miserável a um público ruidoso e patético. Hesito entre o desejo de que alguém me dirija a palavra e o nojo perante uma realidade feita de suor e de carne para aluguer. Entro num Disco. Rajadas de luz às cores, como se fosse disparada duma metralhadora ao ritmo da música. Tipos de patilhas, cabelos compridos, gordurosos, sujos e transpirados. Uma espécie de hangar para balouçar as ancas. Esticar as pernas. Simular actos sexuais; como que um ensaio de

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etnografia africana. Raparigas de pernas compridas e mini-saias quase inexistentes. PuII-overs sem mangas de malha larga, vincando bem os peitos firmes. E eu ali, espectador apenas, para trás e para a frente, não fosse alguém fixar-me. Uma vez perguntaram-me se queria dan- çar. Era uma rapariga alta e magra, o cabelo pintado de loiro, as feições cansadas. Doentes ou prematuramente envelhecidas. 58

Disse que não, muito obrigado. Fui correcto e brusco. Ela encolheu os ombros com desprezo e virou-me as costas. Afastei-me devagar e depois saí. A casa chegava à hora em que me vencesse a exaustão. Punha-me a ver vídeos. Ou o que qualquer dos mil e um canais tivesse para oferecer. Ou então ia para a varanda ler. E continuar a beber. Até as pálpebras perderem o seu cintilar mecanico e o livro me cair para o chão. Várias vezes a Maria José me encontrou assim de manhã. Me enxotou para a cama. E me deu um beijo de adeus antes de sair para o emprego. Lembro-me de pensar que nunca me tinha sentido tão sem propósito, sem amarras, sem referências. Uma espiral de abjecção. Mas de pensar também que não tinha verdadeiramente aitemativas. Que não existia dentro de mim qualquer refúgio em que pudesse ocultar-me. Que os dados estavam lançados e me negavam mesmo um pouso onde me sentisse verdadeiramente em casa. Uma manhã, ou seria já de tarde, fui acordado pela campainha do telefone, a que se seguiu a voz da Maria José. O Rogério e a mulher tinham-nos desafiado para ir jantar fora. Porque é que não vens? - disse a Maria José. Disse-o como quem propõe uma causa perdida. Hesitei. Foi então que ela passou ao ataque. Pregou-me moral. Chegou mesmo a dizer quanto a incomodava ter em casa uma alma penada. E que eu não me atrevesse a não estar em casa às oito, pronto e satisfeito. Desligou o telefone. E estava. Pronto, mas não satisfeito. A Maria José deu-me um beijo e um olá um pouco mais quentes do que ia sendo hábito. Vais ver que te faz bem. Perguntei porque é que as coisas que supostamente nos fazem bem são sempre aquelas que menos nos apetece fazer. E ainda protestei que o Rogério era um chato. Chamei-lhe outra vez críptico de cinema. Disse que a Lena me parecia uma galinha tonta. E que a Clara, se tinha cérebro, o havia certamente deixado em Portugal. A Maria José zangou-se. Um pouco. Disse que eu tinha de perder o mau hábito de passar juízos de uma penada sobre as pessoas. E, de qualquer maneira, a vida não era uma convenção de gênios perfeitos. Se eu já alguma vez me tinha detido a pensar no que as outras pessoas podiam pensar de mim. As piores coisas. E muitas delas com inteira razão. Depois falou-me um pouco do seu dia. Disse que ia entrar de férias no fim-de-semana e que não me queria a arrastar-me pela casa como um head case ambulante. Disse ainda que tinha planos. Depois conta- va-me. 59

O pior do jantar foi no fim termos ido para casa da Maria José. Passar uma noite pacata, expressão inspirada de alguém. De mim, se calhar. A Clara não apareceu. Estritamente para gente de meia-idade. Sentei-me, bem comportado. Mas a conversa infectava-me de um tédio mortal. Que raio é que aqueles dois estavam a fazer em Nova lorque? A ouvi-los falar, dir-se-ia que o objectivo era apenas estar entre portugueses. O Rogério, umas escapadelas ao cinema. Levantei-me. Comecei a andar dum lado para o outro na sala. Como um bicho fechado numa jaula. A pergunta da Maria José, no outro dia, era, no fundo, inteiramente pertinente. Por que

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cargas de água é que eu tinha ido para N.Y.? Porque não Paris, ou Londres, ou o Algarve, ou um exílio simples e doméstico nos familiares recantos de Lisboa? Tinha respondido com palavras como: possivelmente um impulso irreflectido. Uma ideia, que, sem eu saber porquê, se sobrepôs às outras. Mas, se quiser encontrar explicações mais ou menos racionais, candidatos também não faltam. Ter-me-á apetecido colocar um oceano entre mim e o meu dia-a-dia. Ou tentar persuadir-me de que no chamado novo mundo poderia abrir o primeiro capítulo de uma nova vida. Imitar os primeiros colonos. Mas a minha fé era nula. A vontade de construir, nenhuma. Como uma nau infectada, transportava comigo as sementes de uma indeterminada peste. Discurso risível; mas não senti vontade sequer de sorrir. Conversa ocorrida há vários dias. No presente do indicativo sentei-me. Dessa vez ao lado da Leria. A Maria José começou a passar no gira-discos música dos bons velhos tempos. Dizia ela. Os Doors anunciavam the end. O Donovan sussurrava psicadélicos mellow yellow. A paranóia do Steven StilIs crescia ao descobrir um carro da polícia no retrovisor. O Scott McKenzie prevenia que se fôssemos a San Francisco devíamos usar flores no cabelo. Os Stones declaravam-se eternamente não satisfeitos. Os Beatles diziam yeah yeah yeah. Os Mamas and the Papas California dreamin'. O Paul Simon, sentia-se groovy. O Bob Dylan proclamava a sua Cinderela em desolation row. Os Who falavam da sua geração, esperando morrer antes de envelhecerem. Os Troggs, wild thing 1 think 1 love you. As Teddy Bears to know, know him is to lovel love him. O Paul Simon, outra vez, dizia olá silêncio, meu velho amigo. O Don McLean bye bye miss American Pie e depois guiava o seu Chevy to the levy, but the levy was dry. Os Beach Boys ba-ba-ba ba-barane. A Marianne Faithfull nostál- 6O

gica antes de tempo porque those were the days, my friend, oh yes those were the days. Não sei como foi, mas deixei-me envolver, deixei-me capturar. Mais tarde, digerindo na varanda o meu dia e o meu whisky, o plano pareceu-me sinistro. Ia desistir. Dizer à Maria José o que pensava daquilo tudo. Da maneira como ela me tinha coagido. Mas, à medida que as horas avançavam, começou tudo a parecer-me inevitável. O que quisessem fazer comigo. Os olhos ven- dados, conduzido pela mão para um precipício. Impossível esca- par. Como também não conseguia libertar-me das teias que ultimamente o destino apertava à minha volta. Sucumbir, única resposta coerente com a abulia que era agora a trave-mestra da minha personalidade. No dia seguinte, por volta do meio-dia, praticamente ainda a dormir, fui com a Maria José a um stand de automóveis usados. Depois de muitas voltas e hesitações, optámos por um Ford com cinco anos, aspecto e preço razoáveis. Vermelho vivo, com uma tira branca e larga em forma de seta ao comprido de cada um dos lados. Pneus de faixa branca como nos anos 5O. No regresso, vendia-se de novo. Mesmo com algum prejuízo. Safa mais barato do que alugar um carro. E o BMW descapotável da Maria José era demasiado pequeno e desconfortável. Sem esquecer o cuidado com que ela o trata. jamais sujeitá-lo às sevícias de uma longa viagem, cinco passageiros e malas várias. Depois voltámos para casa. O carro ficava estacionado, até ao dia da partida, num espaço livre na garage. Dentro de dois dias. Nessa noite fomos ao teatro, a Maria José e eu. Espectáculo musical. A reconciliação possível. Depois cear ao Sardi's. Cannelloni alla Sardi. Champagne. Comida atroz. A Maria José re- conheceu vários actores e pessoas ligadas ao teatro. No fim, insistiu em pagar a conta, que era violenta. Suponho que quis, um pouco, impressionar-me. Impressionado ou não, dei comigo a pensar que era agradável, ou talvez a palavra fosse repousante, estar assim com a Maria José, a trocar

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observações inconsequentes sobre o que à nossa volta se passava. Ponto final no ro- mance, no desejo, no que se lhe quisesse chamar. A tomar-se aos poucos possível regressar ao ponto em que há vinte anos nos tínhamos perdido de vista. A Maria José já sem a inquietante cintilância que naquele tempo exibia como um emblema. A capacidade de exalar em cada frase, em cada gesto, a certeza de que tudo o que à volta dela se passava era de uma impor- 61

tância capital. E eu, pela minha parte, tinha pelo menos perdido a inocência de acreditar que a vida pudesse ser assim, uma minterrupta cadeia de entusiasmos. Permanecia, não obstante, entre os dois uma inesperada facilidade de comunicar. Como se os pressupostos de que partíamos fossem os mesmos. Como se o essencial não precisasse sequer de ser explicado. Como se tivéssemos entrado no jogo da vida instruídos com as mesmas regras. Como se nunca houvesse necessidade de nos justificarmos um ao outro. Quando saímos do Sardi's ela deu-me o braço até ao carro. Chegados a casa, fomos para a varanda. A Maria José já sem a pressão de ter de se levantar cedo no dia seguinte. Ia ape- nas passar pelo escritório, arrumar papéis, resolver duas ou três coisas penduradas. Silêncios, longos mas sem tensão. Ali sentados para colher no corpo a brisa fresca da noite. Quando voltei da cozinha, com dois whiskies nas mãos, ela disse: tenho estado aqui a pensar, as voltas que a vida dá. Abertura para outras coisas que ela me quereria dizer? Não, nada de especial. Balouçar apenas um pouco dela própria ao sabor duma conversa sem rumo definido. Como o tempo apaga a memória - disse a Maria José - não me consigo sequer lembrar de como é que eu pensava aos 18 anos que a minha vida ia ser. Eu disse que talvez um dia lhe pudesse contar. Muitas páginas sobre ela no meu diário. Ela respondeu que, no fundo, preferia não saber. Ia com certeza ter vergonha dos planos tolos que tinha feito. Porque me lembro de que tinha planos. Lembremede fragmentos. Mais nada. E aqui estou. O que foi acompanhado de um gesto largo e vago com a mão, que quereria dizer: esta vida, esta casa, esta cidade. E o que mais me aflige - disse ela ainda - é que só consigo prever mais das mesmas coisas, indefinidamente. Não sei se sentes o mesmo; mas a mim - disse a Maria José - dáme calafrios pensar que se calhar já atingi, ou até já ultrapassei, o ponto mais alto da minha vida. Levantou-se. Foi até à grade de ferro da varanda. A olhar para o escuro. E sem se voltar para mim, disse: não sei, pergunto-me se é inevitável que chegue um momento em que uma pessoa pára e se resigna a não fazer mais nada que não seja repetir o que já fez. E, com um pequeno riso forçado, disse ainda: mas ele há sempre a subtilíssima arte de nos aperfeiçoarmos, de não nos movermos e conseguirmos mesmo assim explorarmo-nos em profundidade. Depois voltou a sentar-se. Suspirou. O drama - disse a Maria José - é que eu sou uma cábula nessa arte da perfeição. Gosto de largar as coi- 62

sas antes de as ter acabado. Gosto de ter sempre mais, em bicha, à minha espera no momento em que eu decida virar a atenção para outro lado. E com isto levantou-se. Declarou que ia deitar-se. Se eu não tinha um daqueles comprimidos mágicos que nos fazem dormir sem sonhar. 63

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Vil O cerco aperta-se à minha volta e são vários os seus tentáculos. Sexta-feira, último dia de trabalho antes de entrar de férias. Três semanas de paragem para de novo regressar à selva em que escolhi viver. Escolhi, é um facto. Mas quanto à palavra selva, não sei. O efeito é dramático, mas duvido que traduza a complexidade disto tudo. Dentro e fora das quatro paredes do meu gabinete. Estou, na verdade, a pensar no mundo lá fora. É uma ilusão como outra qualquer, mas aqui dentro é sobretudo segurança aquilo que sinto. E o facto de haver regras precisas que conheço bem. De olhar em volta e os meus olhos pousarem sempre nos mesmos objectos familiares. Absurdo, mas é isso que sinto. Mesmo ao certificar-me, com uma preocupação que tem algo de patológico, de que não deixei ficar nada por resol, ver. Sei perfeitamente que não deixei. Mas subsiste este difuso e irracional receio de que o mundo caia no caos se, por um mo- mento que seja, eu deixar de atender a um qualquer dos seus mais ínfimos detalhes. Quando cheguei tinha dois recados. Um era do David. Depois da cena do outro dia, comecei por desejar e depois por recear que ele não voltasse a telefonar-me. Comecei por dizer-me que não seria certamente eu quem iria tomar a iniciativa de falar. Depois apareceu o Luís. Não percebi ainda inteiramente o que se passou. Ou porquê. Porventura colocar-me a mim mesma perante um facto consumado. Embora eu devesse saber que a vida não se resolve assim, a carregar em botões, a dirigir-me ordens, como se eu fosse uma destinatária abstracta e sem vontade. Não sei o que vou fazer do David. Mas sei pelo menos que não quero acabar assim. Por omissão. O David de novo em linha, a Vivian do outro lado à espera da minha resposta. Disse-lhe que passasse. O David, todo ele naturalidade, como se nada tivesse acontecido. Perguntou-me se eu tinha planos 65

para essa noite. Respondi que ia entrar de férias, que estava ali só de passagem. Como se isso constituísse um motivo de escusa. O David mudou de assunto. Anunciou que a Cathy tinha voltado para o hospital. Apeteceu-me dizer qualquer coisa como: e queres que eu te vá segurar na mão. Mas disse antes: Prn sorry. O David sugeriu que eu aparecesse; quando quisesse; ficava o dia todo em casa. Um pouco no tom de quem implora. Pareceu-me; mas provavelmente interpretei-o mal. Respondi que não sabia, que ia ver. Desligámos o telefone. O segundo recado era do Jack. Queria falar comigo imediatamente. A última palavra sublinhada. Por mais esforços que faça, nunca consigo chegar à agência antes do tipo. Infernal máquina de trabalho. Usa viseiras mentais. Para ele a vida é simples. Gosta de frases como: if you're not part of the solution, you're part of the problem. E os problemas resolve-os com pequenas, e eficazes, receitas retiradas do seu próprio dicionário de respostas. Detestamo-nos; e nem sempre cordialmente. Mas paciência, as coisas são como são. On my own two feet, já que o Tim agiu desde o primeiro dia como se dentro daquelas paredes eu fosse um associate parmer como qualquer outro. Nem eu permitiria que fosse de outra maneira. O recado do Jack era na realidade uma ordem. E hoje estou com pouco tempo. Resolver tudo durante a manhã. Saio do meu ga, binete. Atravesso o corredor. Desço um andar no elevador. Não páro na secretária, a temível Dorothy, mais conhecida por The Beast. Pergunto-lhe apenas se o Jack está com alguém. Ela diz que não. Bato à porta e entro, sem esperar por resposta. O tipo levanta-se.

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Cumprimenta-me com despropositada efusão. Sentamo-nos nos sofás. Não é costume. Uma forma de me ir dizendo que aquilo que está para vir é importante. E provavelmente desagradável. Para mim. Começa por lançar, como uma rede, uma longa conversa sobre as minhas férias. De que sou amplamente merecedora. A opinião é dele. Espera que eu aproveite para descansar. E quer saber pormenores. Como se lhe interessasse. Respondo de forma evasiva. Tenho a sensação de que com muito esforço seria possível ouvir-lhe engrenagens mecânicas no cérebro a colocarem-se em postura de assalto à presa. E por fim chegou o momento. O qual foi introduzido por um intenso: well, Maria, as you know. Tinha respirado fundo antes de se lançar ao ataque. Meia hora depois, no meu gabinete, sentada à secretária. Caneta na mão. A olhar para a parede em frente. Para o quadro de 66

que não gosto particularmente. Pelo menos via-me livre do quadro. Sorrio um pouco. Os subterfúgios que invento para me descolar um pouco da realidade. O Jack tinha,me feito uma oferta. Só que não se tratava de uma verdadeira oferta. A ideia de que era eu a única pessoa na firma capaz de lançar o escritório de Chicago é verdadeiramente ridícula. À beira do insultuoso. Digamos antes que sou a única pessoa que reúne duas condições essenciais: sou teoricamente capaz de desempenhar a missão e não tenho peso suficiente, na constelação destes nossos pequenos equilíbrios de poder, para lhes dizer secamente que não. Lutei. Dentro daquele gabinete. Durante meia hora. Lutei certamente para além do que é a minha verdadeira força. Excedi-me no calor da minha reacção. Denunciei insegurança, vulnerabilidade. Nessa medida fui porventura um pouco patética. E até ridícula. Não foi a primeira vez. Não será com certeza a última. Não é comigo a disciplina da contenção. E se eu recusasse? Não me foi claramente dito por palavras. Mas nem por isso deixou o sentido de ficar inequivocamente expresso. Foram as alusões à reestruturação que estava a ser preparada. E, embora o meu trabalho se tivesse revelado nestes últimos anos valioso, o tipo de talento que me era próprio só podia encontrar agora a sua plena expressão numa venture como a de Chicago. O que eu odeio a hipocrisia. A insinuação sibilina. O punhal espetado com um sorriso. E o Tim? Porque é que não me disse nada? Será possível que não saiba? Quando até a marca do café que se bebe tem de receber a concordância dele? Balanço-me na cadeira, lentamente, dum lado para o outro. As minhas próprias engrenagens mentais de career wornan, como eles dizem, a funcionarem agora também. A Vivian pressentiu já que alguma coisa se passa. Tenho a certeza. As engrenagens dizem-me que não se trata propriamente de uma despromoção. Talvez o tradicional pontapé pelas escadas acima. A sucursal de Chicago está a ser cuidadosamente preparada há meses. É uma peça essencial para a futura expansão da firma. O que, evidentemente, o Jack não se esqueceu de me referir. Sucede, porém, que ficarei irremediavelmente, para sempre, afastada do centro. A mil milhas da sala de reuniões onde todas as sextas-feiras de manhã é traçado o destino da firma e das pessoas que aqui trabalham. As pulsações batendo-me agora a um ritmo mais acelerado. Sinto-me desperta, viva, pronta para o combate. Adoro, aliás, um bom combate. Como era o anúncio dos Salem? You've come a long way, baby. Boa piada. Mas será 67

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que este é um bom combate? Segundo a regra de que uma boa guerra é aquela em que ganhamos? Sucede ainda que ir viver para Chicago me lixa completamente a vida. Corta-me das poucas amarras que me ligam a uma existência fora destas quatro paredes. Chicago seria o passo simbólico que eliminaria definitivamente a adolescente que está ainda instalada num pequeno canto dentro de mim. Que poria termo a algumas esperanças ténues que não estou ainda preparada para abandonar. Nenhuma razão para viver em Chicago que não seja o trabalho. Aceitar, no fundo, duma assentada ser apenas aquilo que possivelmente já sou. Mas que não quero admitir. Talvez simplesmente uma questão de atitude. Que, no entanto, tem, para mim uma importância vital. Existencial. E o David? O que seria feito do David neste esquema? O que será feito do David em qualquer esquema? Não sei. Não preciso sequer de saber neste momento. Fiquei de dar a resposta quando regressar de férias. A certeza de três semanas envenenadas à minha frente. Mas por agora vou tentar não pensar mais no assunto. Procedo a arrumações sumárias no meu gabinete. Subitamente todas estas coisas deixaram de ter importância. Meto meia dúzia de papéis na pasta e saio. A Vivian perguntou-me por um forwarding address durante as férias. Respondi-lhe que nenhum. Ela não acreditou. Obviamente mais um imprevisível truque da minha exótica latinidade. Pelo menos em Chicago não haveria a Vivian. Passo pelo banco. Levantar um cheque. Pedir um extracto de conta para ter a certeza de que durante as férias não perco o norte nas minhas precárias finanças. Depois vou ao Bloomingdale's comprar coisas que me fazem falta para a viagem. Não tenho tempo, nem disposição, nem paciência para andar de boutique em boutique a escolher. Trapos de Verão. Não tem tanta importância. Meia dúzia de blusas. Dois ou três pares de calças. Umas saias leves. Sandálias. Etc. Depois meto-me no carro e paro no supermercado. A seguir vou até casa. Telefono para Lisboa. A mãe atende ao segundo toque. Acho que é bom sinal. Mas a voz chega-me quebrada e longínqua. Como se a mãe me estivesse a falar não de Portugal, mas de mais longe, um pouco já fora deste mundo. Diz-me que não, que não está melhor. Que na idade dela as notícias são sempre más. Absurdamente, pede-me desculpa. Pergunta-me quando é que eu lá vou. Digo-lhe que não posso. Invento uma viagem de trabalho. Talvez lá mais para Agosto. Depois vem o meu irmão ao telefone. A mãe ali ao lado; mesmo

assim, espero conseguir dele informações mais precisas sobre a evolução da doença. O Carios, como sempre, pouco expansivo. Ao contrário de mim, nunca se lhe ouviu uma palavra desnecessária, ou redundante, ou inconveniente. Mas a ideia geral, implícita, é, como sempre, clara: porque é que eu não estou lá também, ao lado dele, ao pé da mãe? Despedimo-nos. Desligo. Durante um bocado fico imóvel, com a mão pousada no telefone, como se assim pudesse permanecer um pouco mais de tempo ligada a eles. Ocorre-me que poderá ter havido um inconsciente toque de encenação. A jogarem com a minha má consciência. Sabendo o Carlos como isso é fácil. E a mãe. Sobretudo a mãe, que durante anos manipulou com admirável mestria as minhas fraquezas. Mas suponho que não foi sequer essa a razão por que sempte tivemos tanta dificuldade em nos entendermos. Demasiado parecidas. Ela, no entanto, mais forte do que eu. Ou nem isso. Apenas o papel que teve de desempenhar ao longo da vida. E a tenaz oposição a tudo o que eu andei a fazer na América? As pequenas e as grandes chantagens. A coacção psicológica. A mesada cortada. Mas o que eu jamais serei capaz de

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esquecer foi a maneira como ela jogou com o seu desgosto - é essa a palavra habitual - para se assegurar de que eu não pudesse sentir-me inteiramente bem na minha nova pele. Se é verdade que as coisas passam, é igualmente verdade que deixam feridas profundas por sarar. E o pai, apesar da secreta predilecção que sempre teve por mim, assistindo a tudo em silêncio. Depois do enterro, a mãe não foi capaz de resistir a dizer-me: no fim, o teu pai não fazia outra coisa senão perguntar o que era feito de ti, se ninguém te tinha chamado. Não creio que ela tenha sequer ouvido quando o Carlos lhe disse: mãe, a Maria José apanhou o primeiro avião. Não obstante, é-me impossível afastar a ideia de que uma pessoa normal meter-se-ia agora no avião e dedicaria as suas férias ao que poderiam ser os últimos dias da mãe. O facto de me repugnar a ideia de pessoa normal, curiosamente, não me resolve este problema. Digamos antes que não tenho forças. Em completa desagregação a fraca fibra de que sou feita. Tenho apenas vontade de fugir. Fugir de tudo. Nem que seja só por três semanas. Durante três semanas, tentar esquecer. Depois pago o preço. Todos os preços que haja para pagar. Nunca me entendi com a mãe. Excepto agora. A este nível básico. Entendo o esfrangalhamento moral de se deixar de ter futuro. Começo a entender um pouco. E de o que ficou para trás, perfeito ou imperfeito, não servir para 69

coisa nenhuma. A mãe nunca foi religiosa. Suponho que continua a não o ser. No seu voluntarismo, muitas vezes lhe ouvi, como um desafio, que só acreditava na vida. Será que ainda acredita? Nunca me entendi com a mãe. Vinte anos a ostentar- -me o seu exemplo. A sua força. O seu sacrifício. Sacrifício que foi a sua opção. Ou talvez antes a única forma que encontrou para agarrar qualquer coisa da vida que estivesse ao seu alcance. Tirei a mão do telefone. Levantei-me. Sacudir-me. Afastar fantasmas. Vá, um esforço, Maria José. Vais mudar de fato. Desformalizar-te. Dar-te desde já um toque de férias. De quem não tivesse uma preocupação neste mundo. Olho-me longamente no espelho grande do meu quarto aos pés da cama. Forço-me um momento de complacência: ocorre-me que, as linhas do meu corpo não são totalmente imperfeitas. É verdade que poderia ser cinco centímetros mais alta. Não mais. Mas, de resto, respiro em cada poro o meticuloso cuidado que tenho posto na embalagem, com que me ofereço ao mundo. Aproximo-me do espelho. Estudo a minha cara. Nunca consegui resolver o problema de saber se posso considerar-me bonita. Naquela fronteira em que a nições claudicam. Dantes costumava satisfazer-me com a palvra interessante. Com 38 anos, a minha expressão será porventura firme, mas não dura. Os traços, a que não quero chamar ainda rugas, são a tradução da experiência vivida. São nesgas abertas para a complexidade que me vai por dentro. E, para quem quisesse estudar-me com um pouco mais de atenção, a garantia de que debaixo da epiderme existe alguma substância. Visto-me. Mas para quem? A quem é que eu estou a tentar enganar com tudo isto? O meu Chanel n.o 5 pulverizando-me ânimo. Hei-de tombar. Como toda a gente. Mas há-de ser a lutar. Sento-me na mesa da sala. Com os livros de cheques, os balanços e o extracto de conta que me deram esta tarde. Quinze minutos depois, tenho a tradução aritmética daquilo que eu sabia já. Estou tesa. O salário gasta-se num galope. A savings account é uma patética insignificância. Para as férias não há problema. Nunca há problema. Os cartões de crédito para tudo o que seja loja, hotel ou bomba de gasolina permitem que me atire para os abismos da insolvência. O problema está em que, aos 38 anos, não possuo nada que não sejam efémeros bens de consumo a caminharem para a obsolescência com cada tiquetaque de segundo que passa.

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Noutros tempos, a sociedade de consumo era o primeiro inimigo a abater. Mais uma das batalhas que perdi. 7O

Esta, na realidade, não a cheguei a encetar. Digamos que durante uns anos, com duas saias (às flores), outras tantas blusas, um par de sandálias e uma guitarra, que eu não sabia sequer tocar, me limitei a permanecer de fora. Num Rolling Stone diziam há tempos que a geração de sessenta, não tendo conseguido transformar o mundo, optou por comprá-lo. Os jornalistas gostam destas frases. Mas falham o alvo. E começa a causar-me náusea o lugar-comum de que houve uma geração de sessenta. Estive lá e sei que não era assim. Se alguma coisa aconteceu, foi antes que havia tantas gerações quantas as pessoas. Olho de novo para as contas. Não melhoraram entretanto. O Luís é que se entretém, num saudosismo doentio, a inventar uma geração de sessenta que nunca existiu. Mas ele não passou verdadeiramente por lá. Em Portugal as lutas eram outras. O Salazar, a ditadura, as colónias, a guerra. Arrumo os papéis. Sinto-me deprimida. Não ter dinheiro causa-me uma estranha insegurança. Sensação nova, destes últimos meses. Pensar no que significaria um dia querer passar um cheque e não o poder fazer. E as doenças e a reforma e a velhice. Como é que tudo isto me aconteceu? Praticamente de um dia para o outro. Prometo,me que vou começar a poupar para uma casa. Quantas vezes é que eu já me fiz esta promessa? Mas, como sempre, agora é que é a sério. Quando voltar de férias. Desgostante, deplorável: ter chegado ao ponto em que a mil nha vida começa a ser pautada por cálculos deste tipo. Volto a sair. Apenas quatro da tarde. Mas estou esvaída como se fosse já noite. Trago comigo um cansaço acumulado de anos. Um inferno atravessar a cidade a esta hora. Paciência, não me apetecem transportes públicos. Até Soho. Dir-se-ia que todas as pessoas com quem tenho algo em comuça moram aqui ou na Village. O estereótipo que espreita em cada esquina. Atravesso Washington Square. O Henry James, tenho que ver se acabo o livro. Um dia destes. Viro para a Bowery, depois Delancey Sr. e depois à esquerda. Arrumo o carro. Atravesso a rua. Entro numa delicatessen. Compro um camembert e um brie. Estou com fome e o David nunca tem nada que se coma em casa. Hesito entre uma garrafa de vinho branco e champagne. Mas não há nada para comemorar. Opto pelo Riesling. Trocken, diz o rótulo. Ensinaram-me que quer dizer seco. Dois prédios abaixo, no sentido de East River. Toco à campainha. Um edifício antigo. O David mora no último andar. Minúsculo, mas com uma enorme varanda à frente cheia de plantas como se fosse um jardim. E ainda 71

tem uma nesga de vista por cima dos telhados. Ruinosamente caro. Mais do que ele pode pagar. Nos períodos em que tudo falha, é capaz de se fechar quinze dias em casa a comer conservas. Quando finalmente chego ao topo das escadas, a porta está aberta e o David à minha espera. Beijamo-nos. Ele diz que teve saudades minhas. Que foi tanto tempo. Eu digo que sim, que foi tanto tempo. Pergunta-me se ainda estou zangada com ele. Respondo: estou aqui, não estou? Depois pergunto pela Cathy. Ele pede para não falarmos da Cathy. Eu digo: ok, não se fala da Cathy, por agora. E eis-me a capitular de novo. Mas porque é que persisto na palavra capitular, se ali estou de minha livre, racional e fria deliberação? Talvez para me desculpar a mim mesma da incontrolável perturbação que me envolve sempre que nos

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reencontramos. Eu ia usar aqui a palavra sensual. Mas, no fundo, é bem mais do que isso. Ou então, talvez não seja; talvez seja tudo uma enorme e hipócrita construção minha para me justifi- car impulsos bem simples e primários. Mas então, porquê o David, porquê apenas ele? E o que sinto é isto: qualquer coisa de indefinido, de indeterminado, a ferver dentro de mim. Quando nos olhamos, nos tocamos, ou estamos simplesmente na presença um do outro. Como se uma invisível corrente eléctrica se formasse entre nós. Uma dor que não dói, uma tensão violenta à espera de se libertar. Avanço para a cozinha. Deposito as coisas em cima da mesa. O David abre a garrafa. Retira do armário um pacote de bolachas Ritz. Sentamo-nos frente a frente na mesa da cozinha. Comemos devagar. Contamos um ao outro o que temos an `dado a fazer. Com alguma frieza. O ambiente ainda por desanuviar. No fim, o David acende um cigarro. Pega-me na mão. Diz: Fve missed you, honey. Digo-lhe que eu também. Bebemos o resto da garrafa. O suficiente para me sentir leve. Livre. Num universo à parte. O David apaga o cigarro. Pega-me de novo na mão. Faz-me festas. Pelo braço acima. Um suave arrepio percorre-me o corpo. Baixo a cabeça e dou-lhe beijos na mão. O joelho dele toca no meu. Levanta-me a saia. Avança devagar. Como uma tortura suave. Digo: David, please don't. A minha convicção é nula. O David levanta-se. Coloca-se ao meu lado. Encosta o corpo ao meu. Passa os dedos pelo meu cabelo. Depois, com ambas as mãos, vira-me a cara para ele. Inclina-se um pouco. Beija-me. Beija-me sem fim. Preciso de respirar. Lembro-me de ter pensado que não me importava de morrer assim. Desfalecer em paz, sem um estertor, como uma vela que se consumiu, um 72

dia que se extingue. O David segura-me pela cintura. Levanta-me. Começa a despir-me. Os nossos corpos reencontram-se. Reconhecem-se. Como se fosse a primeira vez. Fecho os olhos. Um abandono que me traz à superfície o turbilhão de todos os sentimentos, de todas as experiências, de todos os desejos que em mim existem. Para serem entregues, para serem exorcizados, para serem resolvidos. O David leva-me para o quarto. Sinto-me conduzida. Dirigida. Rendida. Caem-me todas as barreiras. Renunciar a tudo. Passar para um recanto da minha existência onde não possa ser chamada a decidir. Em que viver se resumisse ao esquecimento de fazer amor. De aceitar o David como se fosse parte de mim. Como se nada mais existisse no mundo. Até me libertar em explosão. Mais tarde levantamo-nos. Os nossos corpos cobertos de suor. Para hoje estavam previstos 75 Fahrenheit. Lavo-me. Volto a vestir-me. Vamos até ao terraço. Está a chover. Lá fora, as formas e as cores das coisas esvaindo-se na penumbra do sol posto. O David pergunta pelas minhas férias. Falo-lhe da viagem. Duas semanas ausente, pelo menos. Não me pergunta porquê. Acha bem. Não me pede que fique. A esuanha angústia que agora me preenche. Depois falamos de coisas banais. Por exemplo, dos espectáculos que há para ver; do último livro que ele leu. Como sempre, cada qual no seu lugar. O David não entra no meu mundo; e eu não tento entrar no dele. O nosso pacto tácito. Que poderia chamar-se de liberdade. Liberdade igual a necessidade. Volto a perguntar-lhe pela Cathy. Ele recorda-me o compromisso de não falarmos dela. Acrescento: por hoje. Encontrei a Cathy apenas uma vez. Fomos jantar fora juntos. Ela sabe. O David disse-lhe. E aceita que seja assim. Aceita a sua fragilidade, a sua incapacidade, a sua doença. É pelo menos o que diz o David. Mas eu não acredito. Nem o David devia acreditar. Ainda que ela lho tenha dito. Mesmo se, como a cada passo me garante, a relação entre eles passou a ser de simples amizade. Ou até filial; father daughter relationship para usar as palavras do David. Histórias longas e

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complicadas. Na noite em que jantámos juntos, a Cathy parecia uma carga eléctrica. Tremiam-lhe as mãos. Derrubou dois copos. Tremiam-lhe também os lábios. Mas não tocou numa gota de álcool. Passou a noite a dizer: Fin alright. Como se precisasse de se tranquilizar a si própria. Conheci a Cathy e compreendi um pouco. Mas repetir o tormento naquele jantar, nunca mais. A chuva a cair agora num excesso quase tro- 73

pical. A varanda inundada do odor húmido e quente da cidade. O David levantou-se e foi buscar um caderno onde nessa tarde - disse ele - tinha registado a última versão das suas poesias mais recentes. Leu-me algumas. Não sendo versada em literatura, ou sequer leitora habitual de poesia, pareceram-me muito boas. Nelas o David deixa vir à superfície toda a sensibilidade e ternura pelas pessoas e pelo mundo de que é capaz. Disso sou testemunha. Embora com a visão de quem olha por uma porta apenas entreaberta. Disse-me que contava poder entregar o manuscrito ao editor em Setembro. Depois sentou-se no sofá ao meu lado. A conversa foi esmorecendo. Os nossos corpos juntando-se de novo. Apetecia-me ficar eternamente naquele mundo semi-real, povoado somente de carícias suaves, de frases ao ouvido que não chegam a completar-se. Várias horas assim. Cassettes a tocarem música barroca. A minha música preferida. O David sabe e toca-a para mim. Depois fizemos amor outra vez. O momento era também outro. A tranquilidade duma ilha deserta. Ondas tépidas desfalecendo suavemente na areia branca da praia. Saímos de casa para ir cear. O David voltando a falar com entusiasmo dos seus projectos literários. Apetecia-me ouvi-lo e nada mais. Ainda lhe disse que tinha agora um amigo português lá em casa por uns dias. Esperava talvez perguntas, ou pelo menos, alguma curiosidade. Mas não. O David registou a informação e prosseguiu no seu monólogo. Suponho que se trata de uma irónica forma de justiça a castigar-me por eu tantas vezes ter dito que os ciúmes são um sentimento inferior. Passava da uma qyando saímos do restaurante. O David foi comigo até ao carro. Ultimo beijo através da janela aberta. Depois, pelas ruas quase desertas, senti-me vazia. Senti-me débil, vulnerável, quase inexistente, como se tivesse acabado de me levantar duma longa doença. Como se dentro de mim tudo estivesse a tremer de desolação. Os meus pensamentos tomando a forma de diálogos, fingindo que ele vinha sentado ao meu lado. Ao meu lado o vazio. Ao meu lado coisa nenhuma. Ninguém. 74

VIII O esticão do primeiro dia. Saímos cedo. Fugir à cidade antes que começasse o movimento do Fourth of July. Evitar paradas e majorettes. Péssima a ideia de se partir neste dia e em fim-de-sernana. Mas a Maria José insistiu. Não suportava mais um dia em N.Y. - dizia ela. Uma hora de intermináveis áreas suburbanas de New Jersey. Depois, um caos de trânsito na Interstate 78 até Harrisburgh. Por volta do meio-dia, a paisagem a tomar-se rural, o asfalto à nossa frente estendendo-se a perder de vista pela planície sem fim. A seguir a Pittsburgh, o sinal sobre a auto-estrada dizia-nos Welcome to Ohio the Buckeyk State. Ficámos a algumas milhas de Columbus num motel chamado Quality Court à beira da Flighway 7O. Diluído em suor. Apetecia-me um duche. Um hamburger rápido. Estender-me na cama e olhar para o que a televisão tivesse para oferecer. Mas quiseram ir dar uma volta. Primeiro, as breves

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formalidades do check-in no motel. O edifício era uma bizarra construção ao estilo japonês. Porventura réplica de algum templo ou palácio; uma monumental gargalhada kitsch. Por dentro, um luxo módico na decoração em que predominavam cores suaves cortadas por violentos pastiches dourados de pintura oriental. Uma escadaria larga dando para os pisos de cima, onde ficavam os quartos. O meu dava para a piscina, situada no centro de um imenso pátio exótico que poderia ter sido concebido em Hollywood. Olhei pela janela. Ã espera de encontrar o Marlon Brando; ou uma gueixa a dizer sayonara. Mas, em vez disso, vi a Clara à beira da piscina exibindo a harmonia do seu corpo perfeito num minúsculo biquini. Virou-se e olhou em volta. Levantou a cabeça como se qualquer coisa lhe tivesse chamado a atenção. Ou como se quisesse apenas inspirar mais fundo a brisa do fim do dia. Depois dobrou-se numa elegância de ginástica para examinar um pé. Vol- 75

tou a erguer-se e sem um instante de hesitação mergulhou de cabeça na piscina. Afastei-me da janela. Tomei um duche. Roupa fresca. Meia hora depois, encontrámo-nos de novo lá em baixo. Metemo-nos no carro. Fomos andando devagar, sem destino certo, em direcção à cidade. A ideia sendo apanhar um subúrbio qualquer onde houvesse algum movimento. Por fim, as luzes da cidade no horizonte. Saímos da estrada e começámos a tomar ruas ao acaso. As casas foram-se adensando em filas compactas, enormes relvados até ao passeio. Uma primeira main street. Deserta e um pouco insólita. Uma estação de serviço da Amoco. Uma ou outra loja de fast food. Um carry out. Pessoas, quase nenhumas. Grinaldas azuis, vermelhas e brancas unindo os candeeiros de um lado ao outro da rua. E outros despojos das comemorações, lixo varrido já para os cantos. Nada de muito excitante. Procurar outras paragens. A Maria José a guiar. Passámos por um parque. Ao fundo luzes de novo. Outra main street. Mais movimento. Um centro pequeno. Mas a transbordar de vida. Pessoas, carros, cruzando-se, colocando-se em posição para a sua noite de sábado. Outros certamente partindo para a night on the town. Carros imensos, os seus faróis acesos, navegando devagar pela rua larga. E eu sem perder a esperança de encontrar um American Graffiti congelado no tempo. Estacionámos o carro. Saímos. Fomos até ao McDonalds. Big Mac para cinco. Strawberry Milk Shake. Café em copos monstruosos. Apple pie. Sentámo-nos numa mesa lá fora. E o calor não queria abater. Um calor perverso e sensual. Que inquietava o corpo e o espírito. A brisa escaldante das primeiras imagens do Body Heat. Quando o William Hurt olha pela janela para a noite em chamas, a Kathleen Tumer ao fundo, atrás, nua sobre a cama, cumprindo o primeiro exercício de devoração da sua vítima, à boa maneira noir. O Rogério e eu numa ponta da mesa. Ensaios de uma conversa sobre cinema. O americano, claro. Falando das décadas. De como era na realidade possível dizer anos 3O, 4O, 5O, etc. Mais directo e sincero o Rogério falado do que escrito. Embora abrisse com as frases estereotipadas do seu calão crítico. Mas depois ia-se esquecendo. No esforço de dizer o que verdadeiramente tinha visto. Um observador subtil. A capacidade de extrair das imagens coisas que não estavam bem à superfície. Não tínhamos conseguido ainda encontrar conversa em comum se não aquela. Quer dizer, ele falava e eu ouvia. Um sentido também, 76

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muito português, do que possa haver de caricato em todas as situações. Entretendo-se depois com elas num prazer evidente de contador de histórias. Não havia, contudo, nele a mais leve ponta de bonomia. O mundo como um lugar de ciladas; os seus habitantes movidos sempre por motivações mesquinhas. A resposta do Rogério a tudo isso era o sarcasmo ácido que não concedia à humanidade sequer o benefício da dúvida. Mas, quando o Rogério se empenhava em demolir uma pessoa, dizia, na realidade, mais sobre si mesmo do que sobre a vítima das suas palavras de fel. Veio então o incidente. Tínhamos terminado a refeição; en- cerrado a nossa conversa a dois. Sem pré-aviso, sem provocação, aproveitando apenas um momento de silêncio, o Rogério atirou à Lena, à queima-roupa: estás a ver como isto é mais divertido do que bocejar durante quinze dias em São Martinho. E disse-o sem olhar para ela. Uma espécie de proclamação dirigida à mesa toda. A Lena respondeu: importas,te de não começar com isso? O Rogério disse: o que é que eu disse, digam-me, o que é que eu disse de mal? A Clara perguntou à Maria José se tinha dinheiro trocado para a máquina dos cigarros. A Maria José começou a procurar na carteira. A Leria dizendo entretanto: importas-te, importas-te de me deixar em paz? Levantei-me também. Juntei-me à Clara em frente à máquina na outra ponta do terraço. Disse-lhe- não sabia que fumavas. A Clara respondeu que só às ve- zes, muito raramente; mas gostava de ter um maço à mão para não ter de cravar. Meti três moedas. Um maço de Marlboro e uma carteira de fósforos tombando no recipiente em baixo. Passam a vida nisto - disse a Clara. Eu disse: é o cansaço. O que não significava coisa nenhuma; mas não era exactamente o momento para psicanalisar aquele matrimónio. A Clara disse: fico doente. Olhámos um para o outro. Será que ela nunca se ri? Com os seus olhos claros e um pouco insolentes brilhando na noite azul e vermelha do néon. Com a sua expressão fechada como se encerrasse dentro de si um enigma que não quisesse partilhar. Voltámos para a mesa. Sentei-me. Mas ao mesmo tempo disse: e se fôssemos andando? A conversa, essa, permanecia no mesmo tom. Ou antes, a Leria num mutismo carregado e sombrio, o Rogério martelando lentamente, em tom de displicente paternalismo, as pequeníssimas idiossincrasias que a levariam à irracional vocação de ser difícil. Olhei para a Maria José, à espera talvez de uma saída para o embaraço daquilo tudo. Mas a Maria José continuou calada. Tensa, a olhar para a Leria e para o 77

Rogério, como se precisassem de ser vigiados. A Clara, mau-humor ostensivo, levantou-se e foi sentar-se sozinha na mesa ao lado. Só não disse: poupem-me, não tenho pachorra para isto. Mas foi como se tivesse dito. A atmosfera em estilhaços. O Rogério, lentamente, pacientemente, como um professor que tenta ensinar um aluno pouco dotado, continuava a ilustrar o seu tema. Que nesse momento era já a família da Lena. A tribo - dizia o Rogério - juntava-se todos os anos em São Martinho como um rebanho de carneiros; e os divertimentos eram apenas dois: continuarem a odiar-se uns aos outros e mostrarem às outras tribos que ninguém tinha mais dinheiro do que eles. Fico doente - tinha dito a Clara. Para fazer qualquer coisa, puxei do maço de cigarros, rompi o celofane, levantei a tampa, retirei o papel prateado, servi-me dum cigarro. Falhei o primeiro fósforo. Mas acendi o segundo. Foi então que, sem dizer uma palavra, a Lena se levantou. Num movimento brusco. E começou a afastar-se de nós. Os seus passos rápidos, pequenos, nervosos. A Maria José correu atrás dela. Apanhou-a.

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Passou-lhe um braço à volta dos ombros. Começou a dizer-lhe coisas ao ouvido. Sempre a andarem. Levantámo-nos os três. A segui-Ias. Vários passos atrás. O Rogério, com um sorriso quase,de triunfo, disse: mulheres. E a Clara, sem se dirigir a ninguém em especial, rosnou a rebentar de fúria: havia de ser comigo. Parámos no passeio. A Maria José e a Lena formando um grupo à parte. O Rogério exteriorizando impaciência. Iluminados pela luz da montra de uma loja que estava aberta. Bebidas alcoólicas e outras pequenas coisas. Sugeri que se comprasse uma garrafa de whisky. O bar do motel estava com certeza fechado quando regressássemos. Entrei na loja. A Clara entrou atrás de mim. O Rogério ficou de fora a examinar a montra. Por de trás do balcão um homem pequeno e magro. Bigode. Careca. Uns cinquenta anos. Afixado na parede, um letreiro: in God we trust, all others pay cash. A Clara dando uma volta pela loja, olhando para as prateleiras, mas como se não estivesse na realidade a ver. O homem embrulhou a garrafa de Teachers num pacote de papel castanho. Depois carregou em meia dúzia de teclas na máquina registadora. Abriu-se uma gaveta cheia de dinheiro e cheques. A Clara pousou no balcão uma embalagem de pastilha elástica. Avançou com duas moedas. Eu disse que pagava eu. Ela guardou o dinheiro e não disse nada. Cá fora tinha-se dado a reconciliação. Pelo menos uma pequena reconciliação. O Rogério fez uma 78

festa pró-forma no cabelo da Lera. Ela não acusou recepção. O Rogério insistiu: pronto, já passou, vá, não queremos rancores. A Maria José disse: vamos andando. Sugeri que se passasse pelo carro para deixar a garrafa. Após o que percorremos a Main Strect para baixo e para cima. Um passeio diferente em cada um dos itinerários. O movimento tinha entretanto diminuído. Passou por nós um carro da polícia. Courity Sheriff e um distintivo pintados na porta. No tejadilho um aparelho com duas luzes que naquele momento estavam apagadas. Ao passarem por nós abrandaram a marcha; quase parados. Examinaram-nos. Do interior do carro, como música de fundo, o ininterrupto diálogo de indistintas transmissões rádio da polícia. Depois o carro acelerou ligeiramente e afastou-se. Opiniões dividindo-se sobre o que fa- zer a seguir. Eu votando por voltarmos para o hotel. Mas a Maria José insistia em que fôssemos tentar um bar por onde tínhamos passado. E donde saía o som primário de uma banda de country caseira. Ganhou a Maria José, com a ajuda do Rogério. Quando lhe perguntei o que preferia, a Clara encolheu os ombros e respondeu: tanto me faz. Uns três minutos a pé. Passaram por nós vários carros. Deslocando-se com lentidão. A noite era eterna. Dos seus rádios, e dos rádios das lojas de hamburgers e fried chicken também, o som envolvente, como numa catedral, da Madonna e da sua Material Girl. Only boys that save their pennies make my rainy days 'cause wc are living in a material world and 1 am a material girl. A Clara disse que se tinha fartado de dançar aquela música em Portugal há uns três anos. Reminiscências atiradas para o ar em tom distante. Boys may come and boys may go and that's alright, you see, experience has made me rich and now the're after me 'cause everybody's living in a material world and 1 am a material girl. A rua vibrando de néons coloridos com anúncios. Da Texaco e da Exxon, ostentando preços de desconto. Do McDonalds, o número, em biliões, de hamburgers vendidos em todo o mundo até àquele momento. Do Coronel San, ders, as suíças e a barbicha branca. Do Roxy Theater exibindo o número não sei quantos do Beverly HilIs Cops. Dum 24 hours carry out. Dum All Nite Chemist. Mais ao fundo, o anúncio de um Motor Lodge e logo a seguir o distintivo da Chevron. Constelação de luzes, de cores, de electricidade,

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de vertigem, de reflexos, de espelhos. E, não obstante, reinava ali uma pacata harmonia suburbana. À espera de que a manhã apagasse, obliterasse, aqueles episódios de nocturna licença e instalasse, resplandecen-

'71,--- 1/1 M111-1 tes, as alvas e puritaníssimas igrejas protestantes e as famílias, pilares da comunidade, comungando ao pequeno-almoço sumo de laranjas da Califórnia, com flakes da Kellogg's e pancakes da Aunt Jemima com maple syrup. Fragmentos de América aprendidos no cinema e na televisão. No bar, que dava pelo originalíssimo nome de Country Dive, sobretudo barulho e fumo. Como se tivesse ali caído um banco de nevoeiro. Cervejas para todos. Cinco latas de Schlitz e cinco copos. Embora a maior parte dos clientes as bebessem directamente da lata. A banda atroz. Quatro tipos de uma magreza invulgar, com fisionomias de uma ancestral fadiga, massacrando instrumentos, torturando o microfone. Vestidos de botas de cowboy, blue jeans e blusas de xadrez vermelho e preto. Five gallon hats. Impossível conversar. Pela parte que me tocava, apeteceu-me sobretudo olhar para a Clara, sentada à minha frente. Um curioso jogo das escondidas. Que consistiu em só um olhar para o outro de cada vez. E quando os nossos olhos por acaso se encontravam, dir-se-ia que ganhava aquele que primeiro os desviasse. Excepto de uma vez em que, durante alguns segundos, ela não desviou os olhos e ficámos a olhar um para o outro. Uma eternidade de tensão. Dessa vez, pareceu-me que ela sorriu. Apenas um pouco. Um sorriso que quereria somente dizer: tenho mais coragem, ganhei. Uma segunda rodada de cervejas. Os ânimos a crescerem. O Rogério abraçou a Lena ainda relutante. A Maria José dizendo: a música é uma merda. E fazendo uma saúde à dita música com o seu copo. Eu, como se tivesse sido tolhido por uma doença súbita, a afundar-me num pântano de depressão. A música e as gargalhadas do público tomaram-se ridículas e intoleráveis. Germinando dentro de mim uma inexplicável náusea. Disse que estava a ficar com claustrofobia. Que ia um pouco até lá fora. Pagou-se a conta e saímos todos. A caminho do carro, o Rogério e a Lena inequivocamente reconciliados. Trocando pequenos sinais de ternura. E nada mais de assinalável houve naquela noite. A não ser que o Rogério perguntou à Maria José se ela se importava de dormir com a Clara. E que a Clara tomou a iniciativa de inquirir que idade é que eu tinha; para a seguir me informar que o pai dela era cinco anos mais velho. Após o que se afastou. Tudo isto, sem que jamais abandonasse a faina mecânica da sua pastilha elástica. 8O

1X S aint Louis, Missouri. Uma longa viagem pelas planícies do MiddIewest. Terras de cereais repetindo-se monótonas de horizonte em horizonte. Dispersos no meio de tudo aquilo, pequenos marcos na paisagem. Celeiros, instalações fabris, estações de serviço. Arcos sobre a auto-estrada com os seus painéis verdes indicando os destinos seguintes e povoações de ambos os lados da Highway 7O. Dayton, Indiana State Line, Cincirmati, New Lisbon, Indianapolis, Chicago. Calor seco e sufocante. Almoçámos num Stuckeys à beira da estrada. Inundado de suor. Sentia-me pegajoso. Comprei uma t-shirt: para poder vestir qualquer coisa de fresco sem ter de abrir a mala. Depois do ar condicionado do restaurante, uma brisa lentíssima ardendo como uma chama. A paisagem em volta trazendo-me imagens do North by Northwest. O Cary Grant e a avioneta. Entre nós, pareceu-me, a atmosfera ia gradualmente

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ganhando a naturalidade do hábito. Quando as pessoas deixam de sentir a obrigação de ponderar cada palavra que entre si trocam. Observações inconsequentes sobre o que ia deslizando pelas janelas do carro. Mas também longos silêncios sem tensão. Depois do jantar instalámo-nos na esplanada do motel. A tomar refrescos e a fumar. Bebidas alcoólicas não permitidas. A Clara sentada com os pés apoiados noutra cadeira usando as pernas como suporte para o seu bloco de desenho. Depois pedimos-lhe para mostrar o que estava a fazer. A Clara levantou-se. Depositou o bloco na nossa mesa e foi buscar outra bebida. Sketches sobre moda. Mas um deles, incompleto, era o esboço dum McDonald's. A Leria explicou que a Clara ia começar a trabalhar em Outubro como desenhadora para uma firma de têxteis. A palavra jeito foi mencionada por alguém. Era ainda cedo quando a Lena e o Rogério se retiraram. Depois a Maria José disse que estava a morrer por um 81

copo. Se eu tinha qualquer coisa que se bebesse no meu quarto. À Clara disse que não esperasse por ela, que estava sem sono. O Luís, esse nunca dorme - sorriu a Maria José. No corredor havia uma máquina que produzia cubos de gelo. Com uma pequena pá de plástico enchemos os nossos copos. Depois, no quarto, sentei-me no sofá e a Maria José em cima da cama, de pernas cruzadas. Disse-me que, mais ainda do que o copo, lhe apetecia durante um bocado ver-se livre da Clara. Esperar que ela adormecesse. Não te importas, pois não? Abriu a carteira. Retirou mortalha e um saquinho com erva. Enrolou um cigarro. Fez unia boquilha com um pedaço de cartolina. Disse: e aviso-te que não saio daqui enquanto não estiver completamente grossa e high as a kite. Liguei o rádio. Notícias do caso Oliver North. O depoimento perante o Senado ia finalmente ter lugar na semana que entrava. O novo herói americano. Aparentemente os povos precisam de heróis. Excepto os portugueses. Seguindo-se música country. Fomos para a varanda. Estava-me a pôr louca - disse a Maria José - o Rogério e 1 got the Saint Louis blues. Como um disco partido, tinha trauteado o tema sem parar desde que apareceram na estrada os primeiros anúncios da cidade. E já me viste - disse a Maria José - que agora me saiu a Clara na rifa? Disse que ia ter de falar com eles. Estava habituada a dormir sozinha. E não tinha conversa para a Clara. É que não havia conversa para a Clara. Além disso, que obrigação tinha ela de subsidiar a vida sexual do Rogério e da Leria? São um casal patético - disse a Maria José. Conheço-os há anos e é sempre a mesma coisa. Zangam-se e reconciliam-se. Zangam-se e reconciliam-se. O mais espantoso é que lá se vão aguentando. No fundo, devem gostar daquilo. Muito estranho. Estas coisas fazem-me pensar - disse a Maria José - quando olhamos para as pessoas, falamos com elas, até quando as conhecemos um pouco melhor, não se pode imaginar o turbilhão de segredos bizarros e doentios ocultos debaixo dos comportamentos mais normais deste mundo. Respondi que no caso do Rogério e da Leria as aparencias enganavam muito pouco; e que ela, Maria José, é que era, no fundo, uma irrecuperável idealista; a maior parte das pessoas imagina que esse tipo de coisas se passam sempre, que são a regra. Ela disse que eu era um irrecuperável cínico. Sorrimos um para o outro, satisfeitos talvez com as etiquetas que nos tinham calhado. Consumido o cigarro de erva, a Maria José propôs que fôssemos até à varanda. Começou então a falar das duas primas. Como ela se referia à Leria e à 82

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Clara. Valem o seu peso em ouro - disse a Maria José - sobretudo a miúda. São do Norte. Têxteis. A Leria por enquanto só recebe uns dinheiros que a mãe lhe dá às escondidas; por causa do Rogério; a família odeia-o. A Clara, pelo contrário, está, como costuma dizer-se, na crista da onda. Com aquela idade e aqueles modos calados, tinha, não obstante, os traços fundamentais que em duas gerações puseram a família onde está hoje. Uma intuição infalível para tudo o que seja fazer dinheiro e uma tenacidade que chega a ser desesperante. O mais dramático - disse ainda a Maria José - é que durante anos a Leria foi uma espécie de mentora da Clara. A miúda adorava-a, imitava-a, seguia-a para todo o lado. Mas à medida que foi crescendo, começou a perceber que a Leria é, na realidade, uma pessoa extremamente fraca. Depois a Leria casou-se, foi cada uma para seu lado. A Clara estudar apenas o suficiente para entrar depressa nos negócios do pai. E a Leria ligou-se a um tipo que ninguém naquela família é capaz de entender. Estou convencida - concluiu a Maria José - que a Clara tem hoje um profundo desprezo pela prima. Respondi que isso não me parecia tão óbvio. óbvio era que detestava o Rogério. Faiscavam-lhe os olhos quando olhava para ele. E já reparaste que ela nunca lhe fala direito? Rosna-lhe. Fui entretanto ao quarto buscar a garrafa. Mais dois dedos de whisky para cada um. Derreter o resto do gelo. Enquanto servia a Maria José, disse-lhe que o retrato que ela traçava da Clara não parecia cor, responder de todo à pessoa que andava ali connosco. Vazia e imóvel. É o que tenho deduzido do que me conta a Leria - disse a Maria José - e olha que a Lena continua a ter um fraquinho pela prima. Respondi que a Clara me parecia algo parada, pouco inteligente, desinteressada de tudo. Não sei, mas a minha experiência diz-me que a inteligência conta pouco para o sucesso; outras características são mais importantes - disse a Maria José, insinuando amargos dissabores nessa matéria. Para se ter sucesso, o principal é querer-se mesmo ter sucesso e estar-se disposto a fazer o necessário, seja o que for; podes crer, eu sei, vivo na América há vinte anos. Ergueu o copo e disse: heres to success. Depois ficámos em silêncio a olhar para a noite. Silêncio que a Maria José acabou por quebrar dizendo: sabes, sobre o nosso. Aqui hesitou, parou, à procura da palavra. Acabou por optar pela expressão interlúdio amoroso: sobre o nosso interlúdio amoroso, gostava de dizer-te uma coisa; é que um dia hei-de explicar-te melhor o que se passou comigo; mas agora não, eu pró- 83

pria ainda não sei bem. Eu disse que não tinha perguntado nada. A Maria José disse que ela, com uns copos a menos, talvez também não tivesse falado no assunto; mas ainda bem que o tinha feito, porque conhecendo-me há tantos anos. E parou. Perguntei-lhe o que é que conhecermo-nos há tantos anos tinha a ver com o assunto? A Maria José disse que para ela tinha tudo a ver. Após o que se levantou. Deu-me um beijo e dirigiu-se para a porta. Olhei para o relógio. Meia-noite e meia. Antes de sair, a Maria José ainda comentou que se sentia optimamente. Se calhar estava a ficar alcoólica. Beber uns copos começava a fazer parte obrigatória do seu ritual de descontracção. Sozinho no quarto. Liguei a televisão. Mas não o som. Fiquei a olhar para imagens sem sentido e acabei por adormecer no sofá. Acordei num sobressalto. No écran apenas uma espécie de neve preta e branca. Fui buscar mais gelo. Arranjei outra bebida. Instalei-me na varanda. A noite sem levantar o seu cerco de calor. E dei comigo a pensar nas coisas em que não queria pensar. Desperto como se fosse já o começo do novo dia. Voltei para o quarto. Sentei-me na mesa ao lado da TV E dediquei-me a acrescentar notas a um imperfeito diário aberto no princípio da viagem. Abilene, Karisas. Terra do Red

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River de Hawks. Ainda ao longo da Interstate 7O. Atravessámos Sr. Louis, o seu imenso arco de cimento armado à nossa direita. O Missouri das incríveis novelas do Catamount. Uma estação de serviço com uma estátuta colorida de um cowboy com 1O metros de altura. O sinal Welcome to Karisas com um imenso girassol amarelo. Cruzámos também as Highway 67 e 65. Seria por aqui a Highway 61 do Dylan? De resto, planície, sempre planície. E mais um motel. Mais uma volta de carro depois do jantar. A ideia sendo percor- rer o país e ver. A América, nação na horizontal. A propósito deste tema, o Rogério esteve expendendo a teoria de que a p@norâmica era a resposta de Hollywood à geografia americana. A sociologia americana. Recuou a Griffith. Explicou por que razão o facto de, por exemplo, o cinema russo primitivo utilizar a panoramica não invalidava a sua observação. Era a estepe. Foi mais ou menos um quarto de hora disto. Divertido, desde que não se levasse a sério. Mas a Maria José acabou por lhe dizer que ele estava com certeza a brincar connosco. O Rogério respondeu: está aqui está em letra de imprensa. Depois voltámos para o motel. A última noite que a Maria José fica com a Clara. Teve uma con- 84

versa com a Leria. Parece que o Rogério ficou furioso. O que manifestou partindo bruscamente para o quarto sem dizer boa-noite. A Maria José resmungou que queria que ele fosse ter muitos meninos. Eu depois disse-lhe que a Leria tinha com certeza ouvido. Era essa a ideia - respondeu a Maria José - sabes o que se passou ontem quando fomos pagar? O quarto onde eles dois dormiram foi dividido por três, Leria, Rogério e Clara: o meu quarto, onde dormiu a Clarinha, foi pago só por mim. Muito simpáticos mas muito agarrados - explicou a Maria José. Aliás a ideia de meterem a Clara no meu quarto era apenas para eles dois pouparem, que a miúda traz consigo, em notas e travellers, mais dinheiro do que nós todos juntos. Respondi: mas estás a ver como ela vai fazendo o que a prima mais velha quer? E ainda por cima - disse a Maria José - no fim, o Rogério virou-se para mim com um sorriso cúmplice e teve a desfaçatez de me dizer: não te importas, pois não? A Clara está só emprestada por dois ou três dias e a malta tem de esticar os dólares. já me viste a lata? Seguiu-se mais uma noitada com a Maria José. Não sei porquê, mas sentia-me agreste. Conter-me para resistir à tentação de a arranhar. Mesmo assim, insisti demasiado em saber o que é que ela tinha querido dizer com aquela conversa da noite anterior. A Maria José recusou-se a responder. Mas estava bem disposta; obviamente divertida com a minha curiosidade. Disse-lhe que podia pelo menos dizer-me como é que se sentia por termos feito amor. Ela disse que não se sentia nada de especial. One of those things. Mas eu queria saber mais. Ela disse que não havia mais. Eu disse que não acreditava. Ela disse que o problema era meu. Ficámos calados durante um bocado. Depois eu disse: essas coisas alteram sempre as relações entre as pessoas. Ela disse que eu era um moralista. E disse ainda: um moralista da pior espécie, um moralista sem moralidade. Frase que me irritou. Irritação que ela tentou desarmar garantindo-me que só tinha dito aquilo porque era um trocadilho divertido. E depois disse: isto está a ficar outra vez uma conversa de bêbados. Quando a Maria José foi para o quarto dela, fiquei a ver o resto dum episódio do Rockford Files. Após o que me dediquei a pensamentos edificantes como: ninguém sabe onde é que eu estou; podia morrer um dos miúdos que eu não sabia. Olhei para o relógio. No dia anterior tínhamos passado mais um fuso horário. Central Standard Time. Em Portugal deviam ser seis ou sete da manhã. Cedo de mais para telefonar. Decidi fazer horas. Mas duas horas depois, a ideia de ligar 85

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para Portugal pareceu-me grotesca. E com meia dúzia de whiskies no activo, a minha voz seria certamente motivo de escândalo. Ou de comiscração, o que seria ainda pior. No fundo, quanto mais dias passavam, quanto maior a distância que nos separava, menos à vontade eu me sentia para enfrentar tanto a Marta como os miúdos. O que tinha sido a minha família. Depois foi a habitual via-sacra antes de conseguir adormecer. Colorado Springs. Hoje metemo-nos numa estrada secundária Highway 5O. Passar por alguns marcos do este segundo Hollywood. Dodge City, pintada de fresco, pitoresca e resplandecente como se tivesse sido retirada intacta do back1ot da MGM. Fomos a Boot HilI, bebemos cerveja no Long Branch Sãloon e comprámos postais turísticos na General Store. Depois Cimarron. Welcome to colorful Colorado. E o Fort Garland, de Kit Carson. Por fim, novo motel, escolhido in extremis. É que prolongámos a viagem para podermos continuar a assistir a um pôr do Sol interminável e esplendoroso. Território desértico e pobre. Como pobre e degradado era o único motel que conseguimos descobrir. Comparado com isto - disse o Rogério - o motel do Psycho é um estabelecimento de cinco estrelas. Na recepção um tipo magro, esquálido, de alguns trinta anos. Não calhámos no dia da semana em que ele faria a barba. Cigarro apagado descaindo-lhe dos lábios à maneira do Lucky Luke. Mostrou-nos os quartos, arrastando sapatilhas velhas por um corredor mal iluminado. Alugar quartos parecia ser a última das suas preocupações. Habitações modestas e delapidadas. As casas de banho cheiravam a esgoto. As colchas das camas estavam coçadas e rotas. A decoração fazia lembrar um cenário de filme série B. Refugo dos anos cinquenta e algumas ruínas de décadas anteriores. Os trapos que passavam por cortinas tinham certamente servido também para puxar o lustro a sapatos. Em volta, uma paisagem árida. Poeira, pedras, árvores magras e esfomeadas implorando para o céu. Na estrada, movimento praticamente nulo. Para além de nós, apenas um casal de meia-idade, cinzento e metido consigo, se tinha submetido à indignidade daquela espelunca. Completados os rudimentos de instalação, percorremos alguns quilómetros de carro até encontrarmos um snack-bar onde nos serviram hamburgers secos e apple pie com natas rançosas. Senti-me George Raft no They Drive by Night. De regresso ao hotel, juntámos cadeiras no alpendre corrido 86

em frente aos quartos. Cinco pessoas, uma garrafa de whisky, copos e gelo. E uma conversa que saltitou inofensiva durante uma hora, ou um pouco mais. O Rogério bebendo sem travão. Arrastando a fala. Tropeçando nas sílabas. Voltando atrás com lentidão para se corrigir, obcecado pela precisão verbal. Impedindo que os outros falassem. Cortava-nos as frases pela raiz com: aguenta, aguenta aí, eu estou a acabar de explicar; isto é importante, deixem-me explicar. A conversa engasgando-se. Esforços para considerarmos aquilo normal. Depois pegou-se comigo por causa da data dum filme. Eu insisti. Ele insistiu. Acabei por desistir. Por conceder. Mas ele sem largar. Frases como: não, não, meu filho, isso assim era demasiado fácil. Vou provar-te, provar-te, não, não, demonstrar-te que tenho razão. Entrando depois por um interminável historial. Enganando-se constantemente. Repetindo. Perdendo o fio à meada. A Lena e a Maria José começaram a falar entre si de outras coisas. Foi então, ao fim de uns dez minutos de abandono por parte delas, que o Rogério ex- plodiu. E explodiu contra a Leria. Por ela não o estar a ouvir. Por fazer de propósito. Para o ofender. Sempre a mesma merda. A Leria fazendo um esforço para não perder a calma; mas tremia-lhe a voz: Rogério, não achas

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que já bebeste o suficiente; porque é que não nos vamos deitar? Bebi demais? - gritou o Rogério, virando-se para nós, como se procurasse testemunhas abonatórias - eu é que sei quando é que bebi demais; e esta? bebi demais, diz a patroa. Estava farto. Farto de mulheres estúpidas. Ainda pensei em ir dar uma volta. Mas que se lixe, o problema é deles. A Leria disse, repetiu: Rogério, por amor de Deus. Depois foi também perdendo a calma. Palavras fortes resvalando para gritos. Dois ou três minutos disto, após o que a Leria se levantou e foi para o quarto. Durante alguns instantes, silêncio total, cor- tado apenas pela Maria José a dizer um originalíssimo: e o calor que está, mesmo à noite? Mas logo a seguir o Rogério levantou-se também e foi para o quarto. Passos decididos, de um homem que tem uma missão. Antes tinha dito: se ela julga que isto fica assim. Do quarto, através das paredes de madeira, chegavam-nos claras e distintas as vozes deles. Arengas longas e cortantes. Subindo de tom. Depois uns momentos de silêncio. Seguidos de ruídos impossíveis de identificar. Talvez objectos a partirem-se. Até que a Leria saiu pela porta que dava para o alpendre, a cor- rer em corrida desordenada. A repetir-se a cena de há dois dias. Desceu as escadas, dirigindo-se para a rua. O Rogério apareceu à 87

porta do quarto e gritou: isso, foge, foge. A Leria tropeçou. Caiu. Durante um instante ficou estendida no chão. Depois levantou-se e continuou a correr. Em direcção ao ponto no horizonte onde o céu explodia numa teia de relâmpagos. Acompanhados de um leve rumor de trovoada distante. A Maria José deu um salto da cadeira e pôs-se a correr atrás dela. Olhei para a Clara, que estava a acender um cigarro. Impassível, como se nada tivesse acontecido. Pendurado nas costas da cadeira, o seu blusão azul feito com tecido de jeans. Uma t-shirt branca decotada e com alças. A alça esquerda descaída sempre sobre o braço. Deviam ser feitas já assim. E uma ultramini-saia, travadíssima de tecido igual ao do blusão. A brisa quase imperceptível sacudindo-lhe ao de leve o cabelo firme. Eu disse: mas que raio de coisa. A Clara disse: volta e meia fazem este número; depois fazem as pazes e ficam a amar-se ainda mais. Debaixo da aparente, ou real, indiferença, a Clara abrindo-se numa nesga de ironia. Depois virou-se para mim, como se quisesse assegurar-se de que o seu sorriso ficava registado, e disse ainda: reconciliam-se, fazem amor, contribui tudo para aumentar a intensidade do orgasmo. Eu, como não tinha nada para dizer, disse: vidas complicadas. A Clara disse: se fosse comigo, começava por não acontecer; e se acontecesse, matava o gajo. E concluiu, olhando para a chama do seu c' - mas as pessoas são como são e a Leria vai passar a vida a fugir. Observei que talvez estivesse, no fundo, a fugir de si mesma. Ao que a Clara respondeu: essa é profunda. Não disse, mas pensei: touché. A Clara ergueu então ligeiramente as pernas, apoiou-as na cadeira em frente e encostou-se para trás. Depois disse: porque é que vocês bebem tanto? Eu disse um redundante: para nos sentirmos bem. E em vez disso - respondeu a Clara - ficam irresponsáveis e completamente alarves. A tipa a entrar-me nos nervos; mas contive a irritação: fala pelo Rogério - foi tudo quanto disse. O Rogério - respondeu a Clara - não precisa de beber para ficar alarve. Entretanto, o vento a levantar-se. Aproximando-se a tempestade eléctrica. Os primeiros pingos grossos de chuva. A Maria José passeando a Leria, consolando-a com palavras sussurradas ao ouvido. Dois ou três soluços quando passaram por nós. A Clara e eu, poupados do contacto físico com aquele pequeno drama. Chuva caindo agora em dilúvio. Mais tarde, a Maria José juntou-se a nós. A Leria tinha voltado para o quarto conjugal. A Maria

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José disse à Clara: tenho a impressão que é melhor ficares ainda esta noite comigo. Mas a Clara res- 88

pondeu: deixa estar, vou pedir ao tísico da recepção que me arranje um quarto. Do chão começava a crescer o cheiro a terra molhada. Monticello, Utah. Deserto de pedra e cactos. Paisagem esmagadora de secura e desolação. Gigantescas rochas esculpidas por milénios de vento. Uma insólita obra de arte da própria natureza. O percurso tinha sido feito em quase ininterrupto silêncio. Mimetismo entre homem e ambiente, ou, mais prosaicamente, ressaca das cenas da véspera. Silêncio total, se não fossem as canções de Simon and Garfunkel, numa cassette que a Maria José tinha escolhido para aquele dia. O motel, da cadeia Ramada Inn, num oásis verde de relva como uma aparição no deserto. Decoração em pseudo estilo espanhol com pretensões de moderado luxo. Edifício em quadrado à roda de uma espécie de claustro ou pátio mexicano com uma piscina ao centro. Cenário ideal para a Jeannette McDonald e o Nelson Eddie irromperem em árias de opereta. A Clara surgiu, num ápice de biquini. Uma escrava de ouro no tornozelo direito. Peculiar noção de requinte. Atirou-se de mergulho para a água. Executou vinte piscinas em ambos os sentidos. Como se não fosse nada. E eu, o que é feito do meu jogging, da minha ginástica três vezes por semana, da razoável forma física com que, apesar de tudo, cheguei a esta idade? Vestir um fato de banho, saltar para a piscina, movimentar-me, sentir a alegria de forçar o corpo. Imagens de uma outra existência em que não consigo já reconhecer-me. A Clara saiu da água, o seu fôlego intacto e disse: está uma maravilha. Depois secou-se. Foi buscar uma Coca-Cola. Sentou-se à mesa. Nós a experimentarmos cocktails com nomes exóticos e cores improváveis. Duma pequena bolsa de plástico transparente, a Clara retirou uma escova. Em meia dúzia de golpes quase descuidados deu um jeito ao cabelo molhado. O calor que fizesse o resto. A Leria disse: a sorte de teres um cabelo desses, havia de ser o meu. Jantámos sandwiches à beira da piscina. Depois metemo-nos no carro e fomos até à povoação. Irmã pobre da prosperidade americana. Casas dispersas a implorarem remendo e tinta. Comércio, quase nenhum. Bombas de gasolina de um modelo com duas gerações de atraso. Demos uma volta a pé, fundamentalmente porque a provisão de whisky estava a esgotar-se. Conseguimos abastecer-nos numa General Store. Onde se vendia de tudo. Roupa e alfaias agrícolas. Ferramentas e comida. Medica- 89

mentos e bebidas. No regresso ao carro, a Clara e eu ficámos um pouco para trás a ver um incipiente jardim zoológico. Meia dúzia de jaulas, a principal atracção sendo um casal de coiotes cinzentos e escanzelados. O olhar ansioso. Que muito impressionou a Clara. Pagava-se um dólar para ver aquilo. Foi então que ela me disse: tu e a Maria José são amantes? Pergunta que me lançou em desequilíbrio, me pôs a gaguejar. Balbuciei qualquer coisa como porque é que ela fazia semelhante pergunta. A Clara disse: era só uma pergunta; a mim tanto me faz. Acabei por lhe dizer que não. E depois achei que talvez não tivesse sido suficientemente categórico. Mas porque raio é que isso havia de me preocupar? Obsessivamente, durante o resto da noite, a memória, o eco das minhas palavras. Sem conseguir perceber qual a impressão que teria transmitido no meio de tanta hesitação. Flagstaff, Arizona. Um dia de arrasar. O resto do deserto. Monument Valley, como se tivesse sido criado apenas para o John

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Ford ali situar os seus westems. Arranha-céus de rocha recortados no horizonte. O Grand Canyon, paisagem lunar sulcada por uma serpente sinuosa com a forma de rio. Dead Horse Point. Ponto onde os mustangs eram encurralados. Quando finalmente arranjámos hotel, era já demasiado tarde para outra coisa que não fosse comer hamburgers na cafeteria. Derreados de cansaço e pó, gastámos a noite a beber cervejas na varanda. Uma rotina a instalar-se nos nossos exercícios nocturnos. O Rogério e a Lena repetindo escaramuças sem fim. Uma espécie de ruído de fundo a que se não presta atenção. A Maria José trocando comigo palavras sobre o nosso dia. Lançando os planos também para o dia seguinte. Activa apenas a Clara, num frenesim de desenhos, notas visuais fazendo as vezes de uma máquina fotográfica. E recolhemos cedo. Desta vez, foi a Maria José que me desafiou a ir até ao quarto dela: for same serious drinking. O que fizemos até cerca da uma. Eu a falar, ao de leve, de Portugal, do meu trabalho, de pequenas coisas quotidianas. A Maria José a falar, ao de leve também, do que tinha sido a sua vida na América. Nenhum de nós disposto a abrir ao outro muito mais do que a sua face mundana. Cada um, como tantas vezes sucede, a ouvir o outro mais por cortesia do que por interesse verdadeiro. No fundo, interessados sobretudo em encontrar uma caixa de ressonância perante a qual pudéssemos desenrolar o tema preferido: falar de si mesmo. Depois regressei ao meu quarto. Recolhendo 9O

com as feridas que me continuavam por dentro, retiradas as pessoas, retirada a paisagem, retirada a necessidade ou a vontade de me preencher com as coisas que compunham aquele artificial e provisório quotidiano. Um padrão que se tornava familiar. Durante o dia, era como se não houvesse espaço para mais nada. Depois descia a noite. As conversas sem rumo. Por fim, ficar a sós numa metafórica escuridão. E constatar que os quilómetros não contam. Que tudo se desvanece menos aquela interminável servidão moral. Que na realidade não se foge de coisa nenhuma. Que chega implacável o momento em que as contas se apresentam para serem saldadas. Que autocompaixão e renúncia são uma e a mesma coisa. Que o presente se esbate por falta de futuro. Que amanhã será uma cópia a papel químico da impotência que hoje me mantém paralisado. A terapêutica a revelar-se incapaz de libertar o doente da sua agonia crónica. Momentos, porém, em que procuro fazer apelo a forças que não tenho. Em que tento convencer-me de que poderei, pelo menos, afundar-me numa alienação ainda mais perfeita. Para que me não reste espaço ou tempo fora dela. Uma alienação absoluta, sem princípio, sem fim. Encontrá-la. 91

H i e ghway 93. A Hoover Dam. Depois uma paragem para ncher o depósito. Apeteceu-me fugir ao calor, poucos minutos que fosse. Entrei no barracão delapidado da es- tação de serviço. De uma velha arca frigorífica fumegando gelo, servi-me uma Coca-Cola. A Clara entreteve,se a alimentar uma slot-machine. Sem sucesso. De novo na estrada. Ao longo da qual, implantados na desolação ocre e seca da paisagem, enor- mes cartazes publicitários anunciando, a cores vivas, a cidade e as suas diversões. Algumas milhas mais adiante, o deserto cessou de repente, dando lugar à cidade. Primeiras casas, plantadas no meio de pequenos jardins áridos. Logo a seguir, também num ápice, o centro, avenidas largas e planas num quadriculado que parecia

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por acabar. Espreitando por algumas das transversais, podia ver-se a planície semidesértica em que a cidade estava implantada como um gigantesco e provisório cenário de cinema. Uma profusão de anúncios, propondo casinos, hotéis, bares, res- taurantes e capelas que celebravam casamentos a qualquer hora do dia e da noite. Ficámos no Tropicana Hotel, Las Vegas Boulevard. A Maria José tinha proposto um hotel chamado Aladdin, recomendado por amigos. Na recepção perguntámos o preço e desistimos. A Clara tinha dito: este hotel é fabuloso; eu, por mim, ficava. Ninguém lhe prestou atenção. O episódio deu, aliás, lugar às primeiras lamentações sobre dinheiro. A falta dele. Sobretudo o Rogério, a sobreviver com a ajuda do subsídio que tinha recebido para participar num simpósio sobre cinema em N.Y. Mesmo acrescentando algum dinheiro próprio, era pouco provável que desse para sustentar com largueza duas pessoas à descoberta do continente inteiro. O Rogério tinha produzido a primeira queixa. Mas nenhum de nós lhe quis ficar atrás. Excepto a Clara, que desde o princípio gastava com liberalidade. 93

Compradora voraz. Recordações de viagem, peças de artesanato índio e outros objectos inúteis. A Maria José murmurou-me ao ouvido: vais ver que ainda me tramo, com os meus cartões de crédito. Para os quais, confesso, olhávamos desde o princípio da viagem com mal dissimulada gula sempre que ela completava as suas transacções sem ser obrigada a produzir o vil metal. Combi- námos voltar a encontrar-nos no lobby às oito em ponto. A Clara tinha dito que ia dar um mergulho na piscina. Por mim, desfiz a mala, tomei um duche e estendi-me na cama a ver um episódio do L.A. Law que descobri num dos canais da TV Mas adormeci no meio de um dos tumultuosos tormentos psicológicos da Gracie van Owen. Acordei com o telefone. A voz do Rogério. Todos à minha espera. Dei um salto da cama. Vesti-me a correr. Alinhar o cabelo, marcado pela almofada. A TV entretendo-me então com um ruidoso e acéfalo concurso. Fomos a pé pelas ruas, iluminadas já num delírio de néones cintilantes. Stardust, Lido, Riviera, Pancakes and Sausages 1 AM to 9 AM, Cupid's wedding Chapel Irrimediate wedding services all checks OK open 24 hours. Honest John's Liquor. Escolhemos um casino. Instalámo- ,nos na sala de jantar. Ambiente a ferver de excitação, como se estivesse para eclodir um acontecimento histórico. Febre talvez de dinheiro a circular demasiado depressa. Mas a refeição foi decepcionante. Para além do que tivemos ainda de sofrer intermináveis comentários do Rogério. Mandou o prato para trás; queixou-se do vinho tinto demasiado frio; das tostas, que estavam moles; do café, que parecia água. Depois fomos para a sala de jogos. Mesas a perder de vista. Optámos por roleta americana. A Clara trocou vinte dólares em moedas e preferiu as slot-machines. Na nossa mesa o dinheiro foi correndo no sentido da banca. Depois de perder todas as suas fichas, o Rogério apropriou-se também da entrada da Leria. jogadora tímida. Ele não. Tinha uma teoria. Não é bem um sistema - explicou-me o Rogério - baseia-se essencialmente na intuição. Consistia em captar aquilo a que chamava o jeito do croupier. Os números na roda da roleta não estão em sequência; mas há agrupamentos que coincidem em parte com o xadrez da mesa; é tudo uma questão de observar em qual dos grupos a bola está a cair com frequência; a partir daí, era apostar forte nessa área até se ganhar o suficiente para sair com um lucro que se visse. Essa a teoria. Na prática, o Rogério estava a revelar uma habilidade rara para carregar os números que nunca saíam. Culpa do croupier. Personalidade instá- 94

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vel, mão imprevisível. Mudámos de mesa. Por um momento, a sorte virou. Mas, logo a seguir, a hecatombe a prosseguir implacável. Completamente transfigurado, o Rogério, como se nada existisse no mundo se não o gesto nervoso de espalhar fichas pela mesa e o diálogo surdo entre o seu olhar inquieto e a bola que girava indiferente a cálculos, a probabilidades, ou a sistemas. Ainda voltou a ter um golpe de sorte. Duas ou três jogadas com plenos, cavalos, carrés. O suficiente para recuperar uma parte do que havia perdido. A Leria insistiu para que saísse. Implorou: Rogério, por amor de Deus, vais acabar por perder tudo. Podiam, ao menos, ir dar uma volta, apanhar ar. E depois, se ele quisesse, voltavam. Mas o Rogério continuava noutra dimensão. Murmurou qualquer coisa sobre aproveitar a sorte quando ela vem ter connosco. A Maria José jogando pouco. Fazer o dinheiro render - disse ela. Divirto-me que nem uma louca. Não me importo de pagar desde que consiga continuar no jogo. As minhas fichas esgotaram-se depressa. Após o que fiquei a ver o espectáculo que o Rogério estava a dar. Não era obviamente um principiante naquelas lides. O automatismo com que gratificava os croupiers; quando fazia um pleno. O rigor com que colocava as fichas no pano. A sofreguidão pela rodada seguinte. Mas depois aborreci, -me. Disse que ia até ao bar tomar um copo. A Maria José respondeu que iam ter comigo quando acabassem. Primeiro dei uma volta pela sala. Encontrei a Clara, passeando ociosa no meio de tudo aquilo, como se estivesse a assistir a um espectáculo. Perguntei-lhe: então, foi-se o dinheiro todo? Ela sorriu e apresentou-me um saco de plástico transparente cheio de moedas. Saiu-me um jackpot, um jackpotzinho. Comentei que moedas eram muitas, mas dinheiro devia ser pouco. Ela disse: não, acho que ganhei uns quinze dólares. Perguntei-lhe se não queria ir tomar uma bebida. Ela disse: ok. A caminho do bar, disse-lhe que quinze dólares não valia a pena ganhar. Não era preferível jogar até ao fim para tentar que saísse um grande jackpot? A Clara achou que não, que dessa maneira é que se perdia sempre. E odiava perder. Porquê? Uma questão de princípio. Não gosto de perder. Respondi que era apenas um jogo. Nem a feijões disse a Clara - perder é sinal de fraqueza. Poucos clientes no bar. Sentámo-nos numa mesa, a Clara virada para a sala de jogo. Filosofei um pouco: perder e ganhar, faz parte da vida. Da minha não faz - disse Clara. Sabes uma coisa - disse eu - só quando se perde é que se começa a perceber como é que o mundo verda- 95

deiramente funciona; vê-se o outro lado das coisas, que nunca se tinha visto antes. Tanta experiência acumulada - disse a Clara. Sorriso, sarcasmo, ironia. Verdadeiramente deliciada, pareceu-me, com estes pequenos arranhões verbais destinados a provocar-me. A marcar o seu terreno. A demolir-me com o seu amável desdém. Eu queria um whisky. O que é que ela queria? A Clara disse que também bebia whisky. Transmiti ao empregado. Acrescentei on the rocks. Senti-me num filme. Depois ela disse: de qualquer maneira, não fui eu que inventei o mundo; já estava tudo montado quando cá cheguei. Falei então de inconformismo, de rebelião, de tentar mudar as coisas. Mudar as coisas? - surpresa genuína - mudar as coisas, para quê? Era muito mais fácil adaptarmo-nos. E muito mais rentável. Mas as coisas estão assim tão mal? - surpresa de novo genuína. Acendi um cigarro. Abandonar o assunto. Olhei para ela, a minha vez de sorrir. E de passar ao ataque: ena, um whisky, como uma senhora crescida. Ela disse: mas que idade é que achas que eu tenho? Eu disse: quinze anos. Ela - disse:

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não, a sério. E depois disse: vinte e dois, mas não pareço. Não percebi se queria parecer mais se menos. Não perguntei. Em vez do que, voltei atrás e disse: ultrapassa-me como é que na tua idade se pode pensar dessa maneira; achar que o mundo está bem tal como está; tout vã pour le mieux dans le meilleur des mondes possibles; esse género de coisas; representa tudo o que eu mais odeio. Ela perguntou porque é que então eu não a odiava. Perguntei como é que ela sabia que eu não a odiava. Ela disse: é um palpite. A expressão da Clara era de triunfo. Um pouco de desprezo até. O toureiro no mo- mento em que vira as costas ao touro lidado. Profundamente irritante. Pelo menos devia ser, mas a verdade é que me estava a divertir. E, no fundo, sentia-me talvez lisonjeado por ter sido ao menos capaz de a arrancar da cataléptica indiferença em que habitualmente se fechava. Mas a conversa estava agora esgotada. Sentados ali a olhar um para o outro sem mais palavras para trocar. A Clara vestida a rigor para aquela noite. Como se tivesse sido recortada de uma revista. Um vestido azul eléctrico muito curto, decotado, colado ao corpo, uma peça apenas, mangas a três quartos. Carteira mínima. Sapatos de saltos altíssimos. E um jeito ao cabelo que parecia impossível de manter. Penteado todo para um lado, a tapar-lhe quase o olho esquerdo. Encostei-me para trás. A olhar para a Clara. O fascínio daquele cabelo. Ela a beber o seu whisky em prestações ínfimas. Gestos curtos, um 96

pouco nervosos. Serena apenas enquanto remetida a si mesma. Quando descia até ao mundo, a sua voz e os seus gestos irradiavam tensão, prontos para repelirem um ataque. Os nossos olhos encontrando,se. Um instante apenas. Porque logo ela os pousou na sala de jogo ao fundo. Mas a seguir atirou-me mais um olhar rápido. E ainda outro. Depois desistiu. Aparentemente decidida a entreter-se de novo com o movimento à volta das mesas de ro' lera, de blackjack, das slot-machines. O tilintar das moedas, as campainhas, o crepitar das roletas. Mas acabou por cansar-se. Encostámo-nos nas nossas cadeiras frente a frente. A Clara disse: o que é que se passa? Eu disse: o que é que se passa, o quê? A olhar para mim dessa maneira - disse ela. Estou a olhar para ti porque vale a pena olhar para ti. A minha resposta tinha sido calma, pausada, pensada. Aquele jogo de novo a divertir-me. A excitar-me um pouco. A Clara finalmente desequilibrada. De pernas cruzadas. Ostentando a sua perfeição. O vestido azul eléctrico pouco fazendo para as encobrir. Foi para isso que o costureiro o criou. Para isso que ela o vestiu. Mas recuperou bem, a Clara: onde é que eu já ouvi um milhão de frases desse gênero? Eu disse: no outro dia vi um filme em que havia uma mulher com um vestido mais inofensivo do que o teu e alguém lhe disse que estava com um come and get me dress. A Clara não respondeu. O que isto quer dizer é que. Percebi perfeitamente o que quer dizer - interrompeu então a Clara. E a conversa parou de novo. Pedi outro copo. Ela a debater-se ainda com o primeiro. Depois perguntou-me: vais divorciar-te da tua mulher? Quem disse? - foi a minha resposta. Consta por aí - evasiva. A vez agora de a Clara se divertir um pouco comigo. Respondi-lhe que não sabia. Que tínhamos concordado em nos separarmos durante uns tempos; suponho que costuma ser o primeiro passo; tudo perfeitamente banal. Ela disse que não se queria casar. Eu disse que as pessoas mudam de ideias a esse respeito muito depressa. Aparece uma pessoa e sentimos por ela qualquer coisa que nunca tínhamos sentido antes. E a gratidão é tanta - completou a Clara - que nos casamos com e.la. Qualquer coisa

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desse gênero - disse eu - só que não sei se será exactamente por gratidão. Se não é por gratidão - disse a Clara - é por egoísmo, querer possuir a pessoa que nos faz sentir as tais coisas que nunca tínhamos sentido. Perguntei-lhe se era muito versada em egoísmo. A Clara respondeu que todas as pessoas são muito versadas em egoísmo. Estamos a falar por experiência própria - disse eu 97

ou isto é apenas filosofia? A Clara respondeu que, de qualquer maneira, não acreditava nessas coisas, nas pessoas certas, nos grandes sentimentos irresistíveis. Exagerando, pareceu-me, para deliberadarnente, polemicamente, se situar fora daquilo que para ela seria a banalidade da doutrina predominante. Perguntei-lhe em que é que acreditava. Ela perguntou se era preciso acreditar nalguma coisa em especial. Eu faço a pergunta doutra maneira - disse eu - o que é que queres fazer na vida, onde é que queres chegar? A Clara disse que eu não estava a perceber. Que havia tanta coisa para fazer que lhe interessava apenas fazer muito bem, fazer com perfeição, aquilo que se metesse a fazer. Queria apenas ser a melhor - ostensiva boutade, com uma ponta, não obstante, de ingénua sinceridade. Perguntei-lhe se ter sucesso era importante para ela. Respondeu que sim, que o sucesso era tudo. E depois disse que, de qualquer maneira, era fácil ter Sucesso. A maior parte das pessoas eram medíocres e acabava por vencer quem tivesse mais qualidades. Eu disse: especialmente as pessoas que nascem e crescem num bairro da lata. Achou que sim; se tivessem qualidades podiam vencer corno as outras. Apeteceu-me responder. Mas não. A conversa a tomar-se séria. Deixando de ser o inconsequente jogo de palavras com que nos tí, nhamos estado a picar. Olhei para ela. A qualidade imediata da sua beleza. O desprezo, a arrogância, cresciam na sua voz. A sin, ceridade que não teve ainda tempo de se dissimular em rodeios. E aquele jeito deliciosamente primário de atirar todas as suas palavras como evidências. E de disparar ao mesmo tempo para to, dos os lados. Momento de silêncio. Que ela tomou a iniciativa de quebrar. Perguntou-me como é que era a minha mulher. Eu ri,me: como é que se responde a uma pergunta dessas? Interrogação que a Clara ignorou e disse: foi ela que te deixou? Nestas coisas é irrelevante quem deixa quem - disse eu. Não queres responder - disse a Clara - mas eu acho que já percebi. E eu tenho a certeza de que não percebeste coisa nenhuma. Seco. Um pouco rude. A tactear o terreno, tinha descoberto, pelo menos, que era impossível irritar a Clara. Nada aparentemente a tocava fundo. Novo silêncio. Acendi outro cigarro. Bebemos ambos um pouco mais de whisky. A Clara retirou também um cigarro do maço. Levou-o à boca. Estendi-lhe a chama do isqueiro. Ela aspirou o fumo. Expeliu o fumo. E depois disse: andas à procura doutra mulher? Eu disse que não sabia do que é que estava à procura. Sorri um pouco. E depois disse que não, que não andava à

procura de nada em especial. Eu acho que andas à procura doutra mulher - disse a Clara. Nesse momento chegaram os outros. A Maria José disse: o cantinho da juventude. O Rogério não disse nada. Não quis sequer um copo. Queria apenas ir para o hotel. Estava mal-disposto, desfeito, derrotado. Tinha trocado mais dinheiro. E voltado a perder. No hall do hotel, a Maria José ainda insistiu um pouco para que a Lena e o Rogério fossem cormosco até ao bar. Em vão.

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O Rogério repetindo que queria ir deitar-se. Mas tu, Lena, se quiseres, fica. A Lena disse que não, que ia com ele. Uma resignação de condenada. Sentámo-nos, os três, à volta de uma mesa. Vela no meio cortando um pouco a penumbra da sala. A ilusão de algum calor no ambiente frio do ar condicionado. Três whiskies a explodir de gelo. Acirrei um pouco a Clara: o segundo copo da noite, tens a certeza de que aguentas? Ela ignorou a observação. Virou-se para a Maria José, como se eu não existisse, e perguntou o que é que se tinha passado com o Rogério. Perdeu tudo e, como era de prever, estava já a tentar atirar as culpas para alguém. As culpas de quê? - perguntou a Clara. De o terem posto a jogar, do que é que havia de ser? Posto a jogar? - disse a Clara - o gajo estava louco por se enfiar na sala de jogo. Pois - disse a Maria José - mas mesmo assim estava a tentar; e de quem é que havia de ser a culpa? Da Lena? - disse a Clara - não é possível, diz-me que não é verdade. Juro - disse a Maria José - mas a ideia era de tal maneira absurda que nem mesmo ele teve coragem de continuar. Ainda começou, mas depois teve vergonha ou qualquer coisa. Estavas lá tu; aposto que agora no quarto a Leninha está já a pagar por qualquer falta que aquele sacana lhe inventou. Depois a Clara virou-se para mim e disse: casais. Satisfeita por me estar a dizer aquilo. Eu disse que nem todos eram assim. A Clara respondeu: pois não, há pior. Eu disse: tan- ta amargura, não quero pensar como é que vais ser aos quarenta anos. A Maria José interrompeu: meninos, meninos, mas o que vem a ser isto? Silêncio, cortado, no entanto, pela Clara que repetiu duas ou três vezes: o filho da mãe. A Maria José contou como tinha conhecido o Rogério. No liceu. Até era um tipo giro. Cheio de interesse. Sempre com o nariz enfiado num livro, daqueles que só os títulos metiam respeito. Mas, ao mesmo tempo, terrivelmente ostracisado no meio da leviandade, da falta de sensibilidade dos bandos de malta com quinze ou dezasseis anos que se formam nos liceus. Lembro-me que um dia estiveram ho- 99

ras sem fim a fazer troça dele. Acabou por sair da sala, a fugir. Fui encontrá-lo, praticamente em lágrimas, num canto ao fundo do campo de jogos. Sentei-me ao lado dele. Disse-lhe para não lhes ligar importância. E ele a repetir que só queria que o deixassem em paz. Depois fomos para uma pastelaria. Estivemos a lanchar. E o Rogério começou a abrir-se, aos poucos. Embalou-se de tal maneira que a certa altura estava a falar de, creio que era de filosofia, a dizer coisas que eu não percebia muito bem. Mas que me fascinavam. Como se tivesse fogo a falar. Hipnotizada a seguir-lhe a música das palavras. Não me digas - disse a Clara - que estiveste apaixonada por ele. Talvez um bocadinho; nesse tempo apaixonava-me todos os dias; uma droga, uma espécie de speed para me pôr a viver com mais intensidade; mas no fundo o Rogério não era o meu gênero. Incrivelmente frágil e inseguro. Não é possível - disse a Clara. Juro-te - disse a Maria José - nada do que é agora, deste azedume, desta necessidade de magoar. De ser impertinente, convencido, cobarde - completou a Clara. Mas é que não era de todo assim - disse a Maria José. E como é que apareceu a Leria? - disse eu. A minha querida prima - disse a Clara - apareceu do Porto. São ambos do Porto. Eu também. História do menino pobre e esperto que saca uma menina rica e tonta. Além de tonta, ou provavelmente por isso mesmo, a Leninha teve sempre a obsessão do casamento. Mas garanto-te disse a Maria José - que o Rogério é mesmo um tipo com interesse. Deve estar a passar por uma fase complicada qualquer. A fase complicada - disse a Clara - é muito simplesmente que o sogro é podre de rico, mas não lhe abre os cordões à bolsa. E a minha tia - disse a Clara - devias conhecê,la, é uma força da natureza. Forte, directa, franca, brutal se for preciso. Disse-lhe tudo o que

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pensava quando ele se recusou a ir para Guimarães trabalhar numa das empresas. O menino gosta de cinema e de intelectuais, então governa-se com o cinema e com os seus amigos das letras. Quanto à Leria, a tia diz a quem a quiser ouvir: a Leria, coitada, é sempre a Leria coitada, a Leria puxou-lhe sempre para baixo. Eu disse que talvez fosse por se sentir insegura no mundo que os pais lhe prepararam. E a conversa continuou em variações à roda deste tema. Depois a Maria José disse: bom, meninos, horas de ir para a caminha. Peguei na chave, no maço de cigarros, no isqueiro. Mas a Clara virou-se para mim e disse: ainda não acabei o copo; fazes-me companhia durante mais um bocadinho? Pousei os meus objectos. Disse que sim, com certeza. 1OO

Até bebia outro copo. Disse-o não sei se com satisfação se com embaraço. Durante uma fracção de segundo a Maria José ficou como que paralisada. Depois decidiu-se: bom, eu vou andando; então até amanhã. Seguido de uma saída de cena com a naturalidade de um actor que se tivesse esquecido do seu papel. Levantei o braço, duas ou três vezes. O empregado acabou por reparar. Ainda perguntei à Clara se bebia mais alguma coisa. Não me digas que estás a tentar embebedar-me. Depois sorriu e disse que não, que ainda tinha um fundo, que talvez mais tarde. E ali estávamos os dois, calados, a jogar não sei bem que jogo. Lembro-me de que procedi a uma rápida pesquisa pela minha memória à procura de um tema para relançar a conversa. Não me apetecia falar do Rogério. Ou da Maria José. Não tínhamos no fundo nada mais em comum. A não ser aquela viagem. Mas achei que falar da viagem seria como fugir. Pegar em objectos e em eventos para não enfrentar o facto de estarmos ali os dois sem nenhuma outra explicação que não fosse. Que não fosse o quê? O silêncio, no entanto, embaraçoso. E bem difícil de suportar. Um daqueles momentos em que não sei o que fazer às mãos. Tentei parecer casual; a situação mais natural deste mundo; mas nada me ocorreu; apenas, por fim, num tom descuidado, as inevitáveis palavras: então, o que é que estás a achar da viagem? Esmerou-se na resposta, a Clara: estou a conhecer gentes novas e terras diferentes; é tudo muito bonito e cultural; ando a enrique- cer o espírito e quando acabar faço uma redacção muito linda, sôr prossor. Very funny Bugs Bunny. Novo silêncio. Depois eu disse: ok, então de que é que falamos? Porque é que é preciso falar?- disse a Clara. Eu disse que preciso não era, mas. Ela disse: podes olhar para mim, sem fugir com os olhos, sem ser às escondidas, como estás sempre a fazer. Eu disse muito obrigado. Furioso. À procura duma porta para fugir àquele ataque. Ou talvez fosse um cerco. Ao fim ao cabo - disse a Clara - há um bocado disseste que valia a pena olhar para mim. Retirou um cigarro do maço. Colocou-o entre os lábios. Ficou parada a olhar para mim. Depois disse: não me queres acender o cigarro? Peguei no isqueiro. Estendi o braço. A chama na ponta do cigarro. Porque é que estás com a mão a tremer? - disse a Clara. Protestei que não estava. E não estava. Espantosamente. Devia ser a única parte do meu corpo que não estava a tremer. O ar condicionado - disse a Clara - está frio aqui. Mas tinha mudado de tom. Perdido a ligeireza. Séria. Intensa. Eu disse: ouve, suponho que 1O1

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te estás a divertir imenso, mas eu não estou; se é para continuarmos assim, vou para o quarto. Ela disse: desculpa, não te chateies, era uma brincadeira. Novo silêncio. Para fazer alguma coisa, acendi um cigarro. A Clara apagou o dela, ainda a meio. Casual, quase como se estivesse distraída, disse: bom, estou a ver que tenho de ser eu. Tu o quê? A olhar um para o outro. A Clara acabou por dizer: ainda não percebeste que estou a tentar perguntar-te se queres ir para a cama comigo? Pegou no copo. Bebeu um golo. Olhando em volta para a sala, como se houvesse alguma coisa para ver. Deixei a frase assentar. O ambiente espesso, como antes duma trovoada. Acabei por lhe dizer: posso dar a resposta honesta? Ela fez que sim com a cabeça. Resposta honesta - voz a falhar-me um pouco - resposta honesta - disse eu - é que quero, mas acho que não devo. A Clara pegou noutro cigarro e ao mesmo tempo no isqueiro. E dessa vez acendeu-o ela mesma. Aspirou o fumo. Com força. Deixou-o sair, devagar, quase com descuido. E, como se não estivesse a falar para ninguém em especial, disse: quero, mas não devo; sim, suponho que é uma resposta honesta. Pagas a conta? Vou-me deitar antes que faça mais figuras tristes. Protestei que não, nada disso, a sinceridade, a franqueza, etc. Deixei duas notas e uns trocos em cima da mesa. No silêncio do elevador, apenas o tilintar nervoso da chave na minha mão. Parámos à porta do quarto dela. A Clara disse: então boa-noite. E deu-me um beijo. Que começou na face. Mas em menos de um instante as nossas bocas encontraram-se. Abracei-a. Uma insuspeitada ternura dentro de mim. Surpreendente ternura pela Clara. Por toda aquela sibilina encenação. Pela desarmante ingenuidade escondida atrás de uma transparente barreira de sangue-frio. Ocorreu-me ainda que tinha prometido a mim mesmo que não daria um único passo em direcção à Clara. Não bulir com o simulacro de equilíbrio em que me tinha instalado. E não ser agora capaz de resistir a que ela escolhesse por mim. Saíram-me palavras como meu amor. Descarregando a opressiva tensão de que ela me tinha inundado. A Clara abriu a porta do quarto. Acendeu a luz da casa de banho, deixando o quarto numa penumbra suave. Desfez a cama. Despiu-se. Duas peças apenas para ultrapassar. Mais complicada a minha intendência. Deitou-se na cama. Escondida entre os lençóis à minha espera. Quando lhe toquei ela disse que as minhas mãos estavam frias. Eu disse que era de estar nervoso. Ela perguntou porquê. Eu disse: sou um senhor de meia-idade, não sei como é 1O2

que me vou portar. Ela riu-se e disse: vá, eu ajudo. E fez amor com um rigor quase clínico. Com determinação. Com o vigor de quem nada vinte piscinas nos dois sentidos sem perder o fôlego. E com a mesma naturalidade. Mais tarde sentámo-nos na varanda, a cidade em baixo, pulsando ainda de luz e movimento. Perguntei-lhe por que é que tinha sido aquilo. Ela disse: gosto de fazer amor. Eu achei que não era razão suficiente. Ela disse que era a única razão honesta. Sublinhou honesta. Rimo-nos os dois. A noite das razões honestas. Alguém tinha de tomar a iniciativa - disse a Clara - aposto que por ti não tinhas feito nada; ficavas até ao fim da viagem a olhar, a olhar e a olhar. Eu disse: são sempre as mulheres que tomam a iniciativa, duma maneira ou doutra. Pois esta mulher - disse a Clara - estava a tremer toda por dentro. Eu disse que não acreditava. Ela disse: juro-te, estava a ver que deixava cair o copo. Mas disse que não fazia mal, que gostava de emoções fortes. Quando nos despedimos, a Clara estendeu-me as duas mãos fechadas e disse: escolhe. Acertei à segunda. Uma ficha de um dólar das slot machines. Que depois pousei na mesa de cabeceira ao lado do relógio. A Clara tinha dito: para

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te lembrares de mim. Sozinho no meu quarto, o eco daquela frase a intrometer-se na recordação do corpo da Clara. Como uma despedida prematura. 1O3

X1 P or mim partia já hoje. Mas o Luís e a sua romântica fixação na cidade de Marlowe. Não tenho, no entanto, autoridade para falar. Tão curiosamente equívoca e reveladora da mi, nha personalidade esta relação de amor e ódio que persisto em manter com as cidades. Ou com a cidade: para quem vive em NX jamais poderá, no fundo, haver outra. Isto a propósito de termos chegado a Los Angeles. Se não me conhecesse como tão bem me conheço, diria que poucos dias bastaram para me converter às virtudes do campo. Mas a verdade é que nada existe no vazio. A minha vida e as minhas preferências gravitam como satélites à volta da necessidade que é o quotidiano. E o quotidiano destes últimos dias é artificial. Um parêntesis, uma fuga que a própria vida na cidade me permite, me impõe. Mas em L.A. reencontro um pouco do que tinha querido esquecer. Reconheço em cada pessoa a sofreguidão de passar à frente. Pressinto as cotoveladas físicas e morais. Adivinho a convicção, a certeza de que não vai chegar para todos. Mergulho na sufocação duma ar, mosfera em que não se pode respirar. Foi perante sintomas destes que me receitei a fuga. A estrada, os espaços vazios a que se seguem outros espaços igualmente vazios. E suponho, que tudo isto me estará a fazer bem. A diária sacudidela de mudar de paradeiro. Nunca chegar bem a pousar. Mas sem horários, prazos, obrigações. A viagem como terapia. Quando era miúda. Há muitos, muitos anos, quando tive dez, doze anos. Sempre adoentada. Fe, brões que punham os pais numa agitação tonta. E que depois me passavam durante a noite. Dores de garganta; de barriga; tudO'. Diziam-me a cada passo: vá, anda, come, bebe, faz-te bem. Ecos sem fim que povoam a memória da minha infância. Talvez daí este reflexo condicionado de descobrir nas coisas um ilusório efeito terapêutico. Mas o facto é que me tenho sentido leve, li- 1O5

berta, por momentos até maravilhosamente bem. Os espectros que ficaram para trás permanecem razoavelmente ausentes da primeira linha dos meus pensamentos. Ando de um lado para o outro, ocupo os olhos com imagens novas e trato com dedicação dos pequenos pormenores que preenchem o nosso exigente diaIa-dia. Alojamento, refeições, fazer e desfazer malas. O suficiente de logística para não poder parar. Sempre a fazer ou a planear qualquer coisa. E depois, com a paciente dedicação de uma mãe, tem-me cabido a tarefa de manter um precário equilíbrio nesta bizarra família que me rodeia. Casos patológicos, cada um à sua maneira. Pergunto-me por vezes se terá sido boa ideia. Um pouco de egoísmo meu. Nunca me teria metido à estrada sozinha. Nem para voltar a sentir esta inexplicável emoção de viajar sem rumo. De andar de um lado para o outro sem que o destino seja verdadeiramente importante. É, no entanto, certo que foi diferente com o Tim. Uma verdadeira cruzada para semear a palavra. Talvez a ideia, na sua ingenuidade, devesse hoje fazer-me sorrir. Mas não faz. O Tim. Quando éramos novos. Quando nova era a esquerda. E a ostentávamos com orgulho, como um distintivo. Quando a esquerda tinha futuro. O futuro que acabou por não ter. Mas, no fundo, foi também muitas vezes um pouco assim. A necessidade, a imperativa necessidade de não se estar no sítio onde se está. Sempre uma terra adiante. Eldorado no horizonte seguinte. Fui eu que os escolhi, que os desafiei. Mas tenho de admitir que o

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ambiente se desanuviou com a partida do Rogério e da Leria. Episódio em que fui vilão e vítima. Paciência, já me vou habituando. O figurativo suspiro de alívio, quando vi a camioneta arrancar. Conta-se depressa, aliás, a abjecta história desta separação. Começa na primeira noite em Lãs Vegas, aquela em que fomos ao casino. Ou talvez antes. Duvido que mesmo sem a hecatombe financeira dessa noite eles tivessem dinheiro suficiente para a viagem toda. Nunca fizeram, por exemplo, menção de pagar a parte que lhes cabia no aluguer do carro. Embora fos- se essa a combinação. Em Lãs Vegas o Rogério perdeu cerca de mil dólares. Informação da Leria, porque ele tentou convencer-me de que tinham sido só quinhentos e poucos. A disposição do Rogério passou a ser qualquer coisa de indescritível. Tudo defeitos. A viagem uma péssima ideia. Como é que ele se tinha deixado convencer (sic). Nada daquilo tinha o menor interesse. Tempo e dinheiro perdidos. Andarmos como ciganos a bateres- 1O6

tradas quando havia tantas outras coisas mais importantes para ver. Foi este o tom da conversa entre Las Vegas e Los Angeles. O resmungar contínuo do Rogério, que tentámos ignorar. Multiplicando-nos nós em interrupções do tipo: já viram aquela casa, como é divertida? Mas o Rogério a entrar-me nos nervos. Eu ao volante, com um trânsito infernal. Depois, em Los Angeles, depositámos as malas nos quartos e fomos jantar. Nenhum pormenor que não o irritasse. Pelo menos, deixou de chatear a Lena. Passou a chatear-nos a todos. Mas esta manhã apareceu fresco, renovado, bem disposto. E a Maria José, que anda nesta coisa da vida há um bom par de anos, pensou como um relâmpago: estás tramada pequena, é agora. E foi. De permeio, um pequeno-almoço cheio de cordialidade. No fim do qual manobrou até me apanhar sozinha: tu desculpa lá, mas a gente precisava de te pedir algum dinheiro emprestado. Respondi-lhe que tinha muito pouco cash, que mal chegava para mim. Ele disse que eu tinha os cartões de crédito. Ou então um cheque, podia com certeza descontar-se também num banco da Califómia. Perguntei-lhe de quanto é que precisava. Ele disse que tinha feito umas contas por alto e, já agora, se eu pudesse, lhe dava jeito aí uns mil dólares. Eu disse que não tinha mil dólares, disponíveis. Ele disse que então talvez conseguissem sobreviver só com quinhentos se não nos metêssemos em extravagâncias. Perguntei-lhe quanto dinheiro é que ele tinha. A Lena juntando-se entretanto a nós. Foi ela que disse: menina, estamos completamente lisos, já nem dá para pagar o hotel. E depois disse ainda: isto é uma loucura, a gente devia era ter-se ido embora quando se espatifou aquele dinheiro todo em Las Vegas. Nem então se atrevendo, a Lena, a citar o verdadeiro culpado. Seguindo-se, mesmo assim, um duelo verbal entre os dois. O que me deu tempo para pensar. Para puxar de toda a minha coragem. E para depois lhes dizer: tenho muita pena, mas eu também estou tesa e os cartões de crédito têm de se pagar no fim do mês. O Rogério disse que me mandava um cheque logo que chegasse a Portugal. Can't this jerk take a hint? Eu disse que as transferências de Portugal são problemáticas e, mesmo quando se conseguem, demoram séculos. A verdade é que a hipótese de o Rogério alguma vez me pagar era tão improvável como o desfecho dum conto de fadas. O gajo entretanto a perceber - era inevitável - o que eu estava a pensar. E a reagir em conformidade: não posso acreditar; tu estás é convencida de que a gente depois não te paga. Neguei. Ele zangou-se. Disse que 1O7

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ninguém lhe chamava caloteiro. Que não tinha necessidade nenhuma de passar por um vexame daqueles. O ofensor ofendido. Mas a virar a mesa com alguma eficácia. O suficiente, pelo menos, para me chegar um toque de remorsos. Assim sendo, preferia ir-se imediatamente embora. Como se fosse uma ameaça. O tom de voz a crescer. já praticamente a gritar. Pessoas no restaurante a olharem para nós. E então o Rogério, num movimento ostensivo e brusco, virou as costas e foi-se embora. A Leria correu atrás dele. Pararam ao fundo das escadas do lobby. Numa pequena conferência. O Luís e a Clara vieram ter comigo. Perguntaram o que é que se passava. O Rogério pediu-me dinheiro emprestado e eu disse que não. A Clara disse: eu tinha a certeza de que isto ia acontecer; repara que a mim não me pede ele. Nesse momento, a Leria começou a caminhar na nossa direcção. A Clara disse: lá vem a minha querida prima; acho que vou ter qualquer coisa que fazer noutro sítio. O Luís foi com ela. Voltaram a sentar-se à mesa do pequeno-almoço. Acompanhados agora por um jovem incrivelmente bronzeado. Lembro-me de o ter visto a meter conversa com a Clara quando estavam ambos de tabuleiro na mão a decidir se queriam ovos estrelados ou mexidos. Encontro breve, mas o suficiente para a Clara me ter dito ao ouvido que se chamava Tom e que era bem giro, não achas? A Leria apareceu-me sumida. Abjecta de humilde. Uma vocação. Eu disse-lhe: desculpa, Lena, mas a sério, não posso. Ela disse: deixa estar, no fundo é melhor assim: mas infelizmente tenho que te pedir algum dinheiro para podermos regressar; e se não te importasses de pagar o hotel. Prometo que te mando o dinheiro. Eu disse: o.k., não há problema. Creio que nesse momento lhe teria até oferecido a roupa que trazia vestida, se ela ma pedisse. Depois perguntei: como é que vocês vão sobreviver em New York? A Lena disse que iam direitos para o aeroporto e apanhavam o primeiro avião que tivesse lugares. De qualquer maneira, tudo isto tem sido um pesadelo. O Rogério, não sei que mais é que hei-de fazer. E um inferno, não imaginas o que é - disse ela. Dia e noite, não percebo o que é que se passa com ele. Queria ajudá-lo, mas não sei como. Não fala comigo. A única coisa que o diverte é magoar-me. Lágrimas nos olhos. Debaixo daquelas palavras, que podiam ter saído duma soap opera, um sofrimento genuíno. Perguntei-lhe: e a Clara? A Clara - disse ela - vem connosco. Mas a Clara recusou-se a ir com eles. Disse que não tinha nada a ver com aquilo. O Rogério ultrajado. Como se fosse 1O8

uma afronta pessoal. A Clara a responder-lhe: tu não falas, está bem? Não te metes nisto, para teu bem. Frase cujo alcance me escapou. Mas devia ter algum. Tal a veemência com que foi dita. Não há como as cenas de família. Tudo muito edificante. A imperturbável Clara, sempre cold as a fish, a atingir finalmente o seu limiar de ebulição. Também a Leria insistiu com ela. Falou em responsabilidade. No que tinha prometido à tia. Ao que a Clara se limitou a repetir que era maior e vacinada. Eu achei que devia dizer que não tinha importância, que a Clara ficava a meu cargo. O Rogério soltou uma gargalhada desagradável e rouca e disse: deixem-me rir; e não me perguntem porque é que ela quer ficar, que eu ainda digo. Transparente a insinuação. Pensei: será possível? Mas, como estava capaz de desfazer o Rogério, repeti que tomava conta dela, qual era o problema? O Rogério disse que estava farto de farsas e que ia mas é fazer a mala. Nessa tarde, já ao anoitecer, fomos deixá-los à estação dos Greyhourid. Um simulacro de reconciliação tendo-se entretanto operado. Por fim, o sorriso triste da Leria e

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o seu aceno tímido, reflectidos no vidro da janela, a dissiparem-se com o movimento do autocarro. No regresso nenhum de nós falou. Fui para o quarto. Apetecia-me descansar. Folhear uma revista, olhar para a televisão, ou então não fazer nada. Desliguei o ar condicionado. Abri a janela. Deixar entrar a humidade, o calor. Deixar entrar o que ainda houvesse lá fora de natural. Despi a saia. Descalcei-me. Deixei ficar a T-shirt. Bateram à porta. Perguntei quem era. O Luís. Abri a porta e disse: não estou inteiramente decente, mas entra de qualquer maneira. Ele entrou. Olhou para mim sem interesse. Deixou-se cair no sofá. Acendeu um cigarro e disse: Maria José, estás preparada para um choque? Ao que eu respondi, com uma ponta de satisfação, confesso, por lhe destruir a surpresa: tu e a Clarinha, não me digas? Não sabia que já constava - disse o Luís. Decepcionado. Expliquei-lhe: foi o que o Rogério disse há bocado, calculei logo. O Luís levantou-se. Apagou o cigarro, que estava ainda quase inteiro, e sentou-se na cama, encostado à cabeceira. Eu disse: o que é que se passou ao certo? Passou-se tudo - disse ele. Eu repeti: tudo, pois claro, pergunta idiota. O Luís voltou a levantar-se. Pedi-lhe que decidisse de uma vez por todas onde é que queria sentar-se. Pediu desculpa. Mas estava extremamente agitado. Optou pelo sofá. Depois perguntou-me o que é que havia de fazer. Perguntei-lhe o que é que ele queria fazer. O Luís disse que a coisa tinha 1O9

começado em Lãs Vegas. Na altura pensou que aquilo era absurdo. Que não fazia sentido. Fantasia de uma noite. Na manhã seguinte, saciada a curiosidade, a Clara retomaria a sua distância fria, o desprendimento que usa como um uniforme. As primeiras rugas, alguns cabelos brancos, as marcas da idade, tudo isso desqualificaria o Luís, exposto à luz do dia. One night stand, como se diz por estas partes. Mas na noite seguinte, antes de ir para o quarto, a Clara, como se fosse a coisa mais natural deste mundo, disse-lhe para ir ter com ela. E o Luís foi. Disposto a explicar-lhe que não podiam continuar. Diz ele. Que aquilo era insensato. A diferença de idades. Os mundos diferentes em que viviam. Receita segura para acabarem ambos seriamente magoados. Mas ela a insistir que não tinha mal nenhum. Porque é que não haviam de deixar acontecer o que estava a acontecer? Abraçou-se a ele e disse: não tem importância. Começou a beijá-lo: juro, não faz mal; se me magoar um bocadinho, paciência, acho que vale a pena. E agora explica-me, menina - disse o Luís - o que é que eu faço? Respondi que nada, porque obviamente não queria fazer nada senão contar tudo aquilo a alguém. Precisamente o que estava a fazer. Sorri um pouco. O Luís perguntou o que era. Eu disse que era a ideia de ele a fazer amor com a Clara. Ele perguntou o que é que isso tinha. Ofendido. Eu disse: é um pouco cómico, na tua idade, já reparaste que te começa a faltar o cabelo aí na frente? já pensaste que ela podia ser tua filha? O Luís achou que eu estava a exagerar. Mas era um problema. Concordava que era um problema. Agora podes imaginar - disse ainda o Luís - como é que eu me sentia no meio daquela conversa. A Clara fica, não fica, fica à tua guarda. Eu disse: pois, mas ela disse que é maior e vacinada e é verdade. Por mim, dorme na cama de quem quiser. Receio, contudo, ter deixado nessa frase transparecer alguma animosidade em relação à Clara. Absurdo. Ela é-me indiferente. Não gosto nem deixo de gostar dela. E do Luís nem sequer curada preciso de estar. Aconteceu. Não falo e não penso mais no assunto. Mas senti no Luís um leve tom defensivo, um excesso de cuidado, quando me perguntou: para ti é que naturalmente é chato, ficarmos assim os três. Adoro luas-de-mel - dis@ se eu - mesmo as dos outros. Não, mas a sério, estou-me rigorosamente nas tintas. Mãe

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love not war. Seguiu-se um momento de silêncio. Para o quebrar só me ocorreu: lembras-te daquela música, if you can't be with the one you love, love the one you're with? Mas o Luís tinha deixado de me ouvir. Levantou-se e ]]o

disse: é um inferno, isto é um inferno. Eu disse-lhe que o processo infalível de darmos cabo da vida era inventarmos sempre pretextos para não aceitarmos com naturalidade as coisas que nos calham. Não foi, de resto, mais ou menos isso que ela te disse? Se calhar não é tão vazia como parece, a Clarinha. O Luís disse que ela tinha uma espantosa, uma inesperada força interior. E sabia muito bem o que queria e o que fazer para consegui-lo. Mas o problema - disse o Luís - é que raio é que nós dois temos em comum? Sentia-se à deriva, como se tivesse de orientar-se sem mapa num país desconhecido. Eu disse,lhe que então, se era as- sim um inferno, que tivesse um momento de coragem e despachasse a Clara com um não absoluto, categórico e final. O Luís disse que isso era mais fácil de dizer do que de fazer. Havia agora nele uma parte que queria a Clara. Um desejo cego, irracional, irresistível. Passava os dias obcecado com a ideia de que queria voltar a tê-la. Perguntei-lhe se por acaso não estaria apaixonado por ela. Ele disse que nesse momento a pergunta não fazia sentido. Queria-a em cada instante que passava. Um querer tão absorvente que não havia espaço para mais nada. E menos ainda para perceber o que é que se passava dentro dele. Eu disse-lhe: pois é, palpita-me é que te vais estampar e levantar-te a sangrar. E ele disse: a ti palpita-te, eu tenho a certeza. Quando o Luís saiu estendi-me na cama com a televisão ligada à minha frente. Suponho que tivemos aquilo a que se pode chamar uma boa conversa. Mesmo assim, várias vezes me apeteceu sacudi-lo pelos ombros e dizer qualquer coisa como: deixa-te de exercícios mentais, toma um decisão e não chateies. Mas não podia ser. A tal boa conversa. Coração aberto. Um adolescente que acaba de descobrir o amor. As figuras que fazemos. Não seria eu a deitar a primeira pedra. Mas ocorreu-me depois o absoluto e total absurdo daquela situação. Uma lua-de-mel serôdia na com- panhia duma tia de meia-idade. Mãe love not war. Boa piada. Como as coisas se tomam ridículas fora do seu contexto. A volúpia perversa de espreitar um pouco para a vida dos outros. Seria isso? Sei lá. Tentei seguir o programa da TV Mas não conseguia concentrar-me. Tudo aquilo me tinha estranhamente excitado. Pensei no David. O que estaria ele a fazer nesse momento? O meu mal, o meu mal. Qual será o meu mal, que algum deve ser? Talvez ter-me habituado a dar sem esperar receber. Uma espécie de pudor. A ideia, no fundo, de que há qualquer coisa de obsceno, de moralmente errado em esperar contraparti- 111

7,----4Xo- das. A ideia de que nunca se pede. A ideia de que as dádivas são dádivas puras. jamais provocadas. Ou insinuadas. Ou mesmo esperadas. Haverá nesta atitude algum puritanismo? A superioridade moral de nunca pedir. A segurança de não ficar a dever nada. A profunda satisfação de haver quem tenha dívidas para comigo e de eu nunca as cobrar. A tudo isto, Maria José, chama-se resvalar num plano inclinado para um abismo de solidão, que não se vê, mas que está lá. Sem a sombra de uma dúvida. Na TV anunciaram as oito horas. Levantei-me. Esta agitação que agora me vai preencher o resto da noite. Mas vou contra-atacar. Vou tomar um duche. Purificar-me. Vestir o meu melhor vestido. Forçar o meu cabelo até ao máximo que ele é capaz de dar. Pintar-me. Perfumar-me. Enfrentar o mundo fingindo

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que sou a imagem que de mim tenho quando fecho os olhos. Convencer-me por um momento de que não há nada de profundamente errado na minha vida. 112

X11 H à apenas quatro dias. Mas é um pouco como se toda a minha existência se resumisse a esses quatro dias. A Clãra a crescer dentro de mim, a ocupar-me, como uma cidade conquistada. Sem vontade de resistir à obsessão em que ela se transformou. De descartar a dependência absoluta a que me reduzi. Ela, não sei o que lhe vai por dentro. O que de mim pensa. O degrau de comiscração em que me coloca. Não tento saber. A lucidez chega-me ainda para tanto. Resta-me, porém, a esperança de que lhe seja indiferente o estado de amputação moral em que lhe apareço. Ou porventura agrada-lhe: misterioso exercício de afecto maternal. Porque alguma razão terá de haver. Cedendo eu, como de costume, ao vício de imaginar que há sempre uma razão para todas as coisas. Mas, do que não está oculto, da imagem que à minha frente se move, da Clara que me dirige a palavra como se nada fosse, só posso falar de leveza, de normalidade, da reduzida importância de tudo isto. O que me tortura e me prende em nós de perplexidade. Incapaz, como sempre fui, de admitir que os outros são o que são. Insusceptíveis, em última análise, de serem capturados nas arbitrárias teias da geometria com a qual, pateticamente, me dedico à vã tarefa de recriar a vida. Ocorre-me que talvez a preferisse de outra maneira. O que é irrelevante, porque foi ela que me escolheu. A certeza também de que não está ao meu alcance tecer à roda dela jogos de Pigmaleão. A sua força é a indiferença. No comércio da vida, segura, diria eu, do seu valor de troca. Em cada gesto, em cada movimento, em cada frase deixando até a marca duma involuntária arrogância. Como se tudo lhe fosse devido. Como se nada verdadeiramente a tocasse. Como se os passos da vida lhe sucedessem com a naturalidade de respirar. Não me abrindo sequer espaço para o apetecido exercício de examinar o que está a 113

acontecer. É assim que a desenho ao cabo de quatro dias. Traços imperfeitos, fragmentos apressados, caricatura infiel. Incapaz, no entanto, de a analisar com maior profundidade. Ou então o desei.o a manifestar-se já de que a realidade fosse assim linear. Impreparado como estou para deixar eclodir sobre mim a complexidade de um ser humano feito de contraditórios impulsos. Que porventura exigisse algo mais do que a magra dieta de sentimentos que me sinto capaz de dispensar. E, para além de tudo isto, a velha, constante, perene incapacidade de viver as coisas saudavelmente colado aos momentos que passam. Ainda que absorvido pela intensidade desses momentos, permanece aberta uma janela através da qual, como para um abismo, teimo em olhar para a natureza efémera das coisas. A Clara partilhando o meu espírito com o espectro do momento em que tudo aquilo deixará de ser. Inútil, como viver na ciência de que algures num desconhecido horizonte a morte aguarda com infinita paciência. Os happy ends segundo a Dorothy Parker, mestra da lucidez desencantada. Disse ela um dia ao Louis B. Mayer, ou a outro intelectual de idêntico calibre, que uma coisa pelo menos, a vida, jamais terminava com um happy end de Hollywood. Mas suponho que a Clara nunca ouviu falar da Dorothy Parker. Ou de Sartre et allia com receitas nestas redondezas. A Clara nos meus bra@ ços. Fazemos amor. Amor de que ela disse que gostava. Comunicamos dessa forma elementar. Eu ia dizer primitiva; mas não, que também por aqui passaram milénios de civilização a

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ditarem regras, ritos, pontos de encontro entre os sexos, que transfiguraram o ancestral imperativo de procriar. Amor, de que ela disse que gostava. Depois ficamos a falar, ou em silêncio. Exercícios de arrefecimento. Por fim despedimo-nos. Prefere dormir sozinha. Diz ela. E no dia seguinte voltamos a pegar numa tarimba de dia a dia. Esporádicos gestos de ternura. Que são, na realidade, sobretudo manifestações da intimidade casual de quem ultrapassou o embaraço gerado pela vizinhança de um corpo desconhecido. Coisas como beber do meu copo. Como, no carro, deixar descair a cabeça sobre o meu ombro apenas porque está exausta. Como procurar cumplicidade numa troca de olhares quando vê qualquer coisa que a diverte. De resto, nenhum sentimento de união. De se conjugar comigo. De me incluir num só dos seus planos. O meu impulso seria forçá-la um pouco. Estabelecer as regras do jogo. As minhas regras. Definir as fronteiras da nossa relação. Obrigá-la a mostrar a mão. Decantar-lhe as emoções. Mas há 114

qualquer coisa que me detém. Como se o menor deslize meu a alienasse para sempre. Auto-intimido-me. Sinto-me portador de um indeterminado pecado original. E a presença da Maria José causa-me um inexplicável constrangimento. Faço cerimónia. Sintomas, presumo, de um homem que não se sente à vontade na sua pele. Surpresa, nenhuma: o diagnóstico há muito feito. A Maria José preveniu-me de que vou sair disto a sangrar. Imagino que será verdade. Sei que é verdade. E, não obstante, qualquer coisa me impede de o aceitar. A absurda esperança de um milagre em que não acredito. A sublime esquizofrenia de saber e ao mesmo tempo não querer saber. Esta manhã, por exemplo, sentados à mesa do pequeno-almoço a traçar planos para o nosso segundo e último dia em Los Angeles. Não se coloca sequer a hipótese de a Clara me acompanhar. Ou eu a ela. Vai, com a Maria José cumprir a via-sacra das boutiques. E eu fazer de peregrino numa arqueologia dos recantos da cidade em que o Chandler tenha deixado a sua marca. É verdade que ando desde o primeiro dia a dizer que é isso apenas que quero fazer em Los Angeles. Mas passou-me a vontade. Ou não me surgiu agora, quando devia ter surgido. Ou então era simplesmente uma daquelas coisas cujo destino é nunca passarem de uma boa ideia. Mas não posso já voltar atrás. Talvez o ânimo me nasça no terreno. A Maria José foi num instante ao quarto. Tinha-se esquecido da escova do cabelo. Levantámo-nos. A Clara e eu. Fomos para a porta do hotel. Tentei um: sabes que gosto muito de ti, pequena? Ao qual ela nada respondeu. Insisti: e tu? Ela disse: o que é que te parece? E fê-lo com um sorriso de desarmar. Um sorriso também de desafio. Como se quisesse dizer: duvida se fores capaz. Encostei-me à coluna que sustentava a longa placa de cimento armado que cobria a entrada do hotel até à rua. Entretive-me a olhar para a Clara. Para o seu perfil. Que não era, no fundo, o de uma escultura grega. Nunca os clássicos produziriam um objecto exalando tanto de vida e de coisas terrenas e imediatas. Nem tão-pouco a beleza da Clara se poderia dizer absoluta. Não gosto, porém, de absolutos. Moderado incorrigível, faz-me sempre falta alguma imperfeição. Depois apareceu o Tom. Fresco e matinal como um prato de corn-flakes. Ia para não sei que praia nos arredores de L.A. A Clara acompanhou-o até à rua. Um carro à espera dele, dentro do qual um rapaz e duas raparigas. Pareciam todos saídos da mesma cadeia de montagem. O Tom tinha dito: come and meet my 115

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friends. A Clara trocou com eles sorrisos, acenos, palavras soltas. O carro arrancou e ela veio de novo para junto de mim. Eu disse: simpático, o Tom. A Clara disse: achas que sim? Surpreendeu-me que ela tivesse ficado satisfeita com a minha observação. Suponho, no entanto, que não foi pelo desejo de eu lhe aprovar os amigos. A Maria José deixou-me no Hollywood Boulevard. A primeira estação de um dia que se anunciava um pouco à deriva. Tinha comprado em N.Y. um livro chamado Chandlertown, the Los Angeles of Philip Marlowe. Ao fundo, na esquina de Vine Street, o prédio art déco, onde pode ter sido imaginado o escritório de Marlowe. Ou um outro no cruzamento de HighIand Avenue. Depois, em Hollywood Hills, Frank1in Avenue, uma casa imensa em estilo colonial que talvez contivesse a estufa onde se conservava uma orquídea humana chamada General Stemwood. E a sua filha Carmen padecendo de ninfomania: TalI, aren't you? she said. 1 didn't mean to be. E a sua outra filha Vivian atirando diálogos como se fossem cartas num jogo de bluff- My God, you big dark handsome brute! 1 ought to throw a Buick at you. De táxi através de Laurel Canyon. E Santa Monica, Bay City. Entrei numa cafeteria para tomar um café. Fumar um cigarro. Folheei o livro. Aparentemente a estação de caminho-de-ferro do Union Pacific está ainda intacta, tal como descrita em Playback. Estação que eu tinha visitado em filmes sem conta. Mas faltava em tudo aquilo qualquer coisa de essencial. Demasiada luz. Uma inundação de claridade. Era isso. Faltava a noite. Faltavam as sombras. Faltava a chuvada negra do Big Sleep. Faltava a face obscura de que os homens contagiam as cidades que povoam. Faltava a lucidez gelada da escuridão. Faltava também o Humphrey Bogart. Faltava a Lauren Bacali. Eventualmente faltaremos todos. Permanecendo, porém, como deuses imortais, os sítios para continuarem a prestar o seu indiferente testemunho de silêncio. Detalhes ínfimos numa paciente caminhada cósmica de biliões de anos. Acendo um cigarro. Continuo a folhear o livro. Duas citações do Chandler sobre Hollywood. O autor do ensaio comenta que Chandler é incapaz de deixar passar a oportunidade de denunciar a falsidade e a hipocrisia. Será isso? A oportunidade que ele é incapaz de deixar passar é a de verter um pouco de veneno sobre tudo o que lhe cai no papel. Com a excepção de Marlowe, a cumprir uma pena de eterna integridade moral. O que me parece perfeitamente legíti- 116

mo. E corresponde ao natura 1 e humaníssimo impulso de nos afirmarmos em detrimento dos outros. As demais leituras sendo apenas exercícios do banal vício de atribuir uma mítica perfeição a quem escolhe uma das chamadas artes para se exprimir. Por volta das seis encontrámo-nos de novo no hotel. Depois partimos para Anaheim. Pouca vontade de ir à Disneylândia, a Maria José. Porque é que não íamos sem ela? Aproveitava para descansar. Talvez até para escrever os postais que andava há dias a adiar. Mas eu insisti. Ela respondeu que a Disneylândia era pulu crianças. Eu disse que na Europa vou aos museus. Mas na América quero hamburgers, música country e Disneylândia. A Maria José acabou por ceder. Conduzindo-nos por ruas e estradas sem fim. Sem nunca deixar de ser cidade. Parámos no caminho para comer rapidamente qualquer coisa num snack-bar. As minhas andanças, referidas de forma muito breve, foram recebidas com a mais total falta de interesse. A Maria José e a Clara preferindo falar das suas próprias voltas. Com entusiasmo, excitação. Das lojas. Das pequenas coisas que tinham comprado. A Maria José inesperadamente a lançar a sua asa protectora sobre a Clara. Como se de uma discípula se tratasse. Como se estivesse investida de um qualquer mandato para lhe encontrar caminhos neste mundo. Neste novo mundo. A

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dedicação, o empenho com que o fazia. A alegria por esta ou aquela peça de vestuário que tão bem ficava à Clara. Coisas a que Maria José chamava pequenas loucuras. Que jamais ela se atreveria a usar. Como se daquela forma pudesse reviver hoje uma nova juventude. Um pouco patético. Um pouco comovente. Ciúme, aparentemente nenhum. Colocando-se noutro plano. Maternal. Condescendente. Não era ela que contava. Ocorreu-me que a Maria José estaria possivelmente aliviada por transferir para outras mãos o encargo emocional que eu ainda representasse. Durante as nossas longas conversas nocturnas nesta viagem, várias vezes me surpreendi a tentar ressuscitar a memória do breve amor que tínhamos partilhado em N.Y. Tema que ela aceitava com naturalidade. Mas sem deixar que a conversa pudesse tocar, ainda que ao de leve, no que na realidade se teria passado entre nós. Ou no que o nosso insólito encontro físico pudesse ter representado para ela. Sinais bem visíveis de zona interdita. Ocorreu-me também que a atitude da Maria José perante a Clara seria isso mesmo: uma atitude. A sua maneira de provar (a nós ou a ela mesma) quão longe se encontrava de banais sintomas de insegurança. Crianças em Anaheim. 117

Como a Maria José tinha previsto. Foi ela, aliás, a primeira a entrar no espírito daquele pequeno jogo. Declarou-nos que aquilo ou se faz numa atitude de doze anos ou não se faz de todo. Menos entusiasmo da Clara, que não tinha já doze anos e não se deu ao trabalho de dar o salto. Interessou-se, no entanto, pelos fatos das figuras que povoam aquele universo de delirantes fantasias. A coleccionar ideias para alguns sketches. Foi pelo menos o que ela nos disse. Quando saímos eram dez e meia. A Maria José quis ir à casa de banho. A Clara e eu fomos andando para o carro. Noite quente e húmida. Sem uma aragem. A Clara encostou-se ao carro. Abanando com as duas mãos a blusa para fazer circular o ar. Escusavas de ter insistido tanto para ela vir - disse a Clara. Respondi que, de facto, escusava. Mas tinha-me saído sem pensar. O hábito de andarmos juntos. Quando ela começou a dizer que não vinha - disse a Clara - pensei logo "enfim sós"; e afinal. Encostei-me a ela e disse: mas agora estamos enfim sós. Beijámo-nos. Um beijo que me soube a ela. Disse-lhe: estás a transpirar. A Clara perdendo enfim a sua permanente frescura matinal e asséptica. Passando de imagem abstracta a presença física, com corpo, suor e cheiro. Beijei-a de novo. Ela disse: vá, agora não, ela deve estar a voltar. Perguntei que mal é que tinha. Ela não respondeu e eu não insisti. No hotel a Maria José disse que nos convidava para tomar um copo. Desde que a Clara prometesse que não pedia Coca-Cola. E, ao referir-se a nós, usou a expressão love birds. Aparentemente divertindo-se com aquela pequena alusão. Pensando bem, creio que até àquele momento nunca a Maria José tinha dito à frente de ambos uma só palavra que pudesse dar a entender que estava ao corrente do que entre nós se passava. No fundo da sua alma, uma moralista à moda antiga, aquela mulher. Eu sempre suspeitei. Instalámo-nos a uma mesa no bar. A Maria José começou a falar do Rogério e da Lena. Com pena deles. Um pouco de remorso. E que podia ela ter feito? Mas agora, pensando neles perdidos para aí, metidos num autocarro, como repatriados, in the middle of nowhere. E se calhar - disse ainda a Maria José - a culpa disto tudo foi minha. O que eu os entusiasmei para virem na viagem. No fundo, os sinais estavam todos à vista, já em New York. Aquele pequeno jogo do gato e do rato. Mas, pelo menos - disse a Maria José, como se subitamente se tivesse reconciliado com o destino - isto agora parece um paraíso. A Clara disse que aqueles dois não duravam muito. Porque 118

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raio é que haviam de prolongar aquela tortura? Eu disse que as pessoas têm estranhas formas de tentar comunicar umas com as outras. E mesmo que acabassem por se separar, nada na vida acontece sem que primeiro sejam dados todos os passos. Há nestas coisas uma espécie de cerimonial que tem de se cumprir. Mesmo que isso pareça inútil para quem esteja a assistir. Os passos do Calvário - disse a Maria José. A Clara disse: vocês lá devem saber, mas eu acho uma estupidez. Eu disse que as rupturas só se dão quando não resta já uma nesga de coisa nenhuma. Que não adianta dizer nada, ou dar conselhos. As pessoas têm elas próprias de experimentar os seus próprios infernos. A Clara disse: para quê? Eu acho que a vida são oportunidades sem fim; o único embaraço é o da escolha. A Maria José disse que a questão é saber se as pessoas têm qualquer coisa numa relação que queiram salvar. Se tiverem - disse ela - faz sentido que lutem até ao fim. A Clara disse: tu e o Tim, foi assim? A Maria José disse que as coisas nunca são idênticas. Com ela não tinha havido guerras de palavras. Nem agressões psicológicas ou físicas. Pelo menos daquela maneira aberta. Mas um desgaste ao longo de meses e depois um afastamento sem regresso, isso tinha havido. E mais tarde ela acabou por descobrir que o Tim tinha arranjado outra; tão banal como isso. Mas o Tim não a deixou por ter arranjado outra. Arranjou-a porque, no fundo, lá muito no fundo, já tinha decidido que ia deixar a Maria José. Foi a gaj a com quem casou? - perguntou a Clara. A Maria José disse que não, que nunca é essa. Fez, aliás, várias paragens pelo caminho. Foi um horror - disse a Maria José - eu ia naufragando no meio daquilo tudo. A certa altura percebi, não tive a menor dúvida de que nos tínhamos de separar; e, ainda assim, demorei vários meses a aceitar, a admitir honestamente, para mim mesma, que era de facto isso que ia acontecer. Que ia viver sozinha. Voltar para casa e não encontrar lá ninguém. Deitar-me, estender o braço e sentir a cama vazia. Querer contar o que tinha feito durante o dia e não ter quem me ouvisse. Mas o pior de tudo, ao fim de al- gum tempo - disse a Maria José - foi ser forçada a admitir perante mim e perante os outros que tinha fracassado. Que de algum modo havia falhado. Tinha investido tudo o que era capaz de investir. Como sempre lhe tinham ensinado que se devia fazer. E acabar de mãos vazias sem saber como é que se recomeça. Mas enfim - disse a Maria José - coisas que já lá vão. E repetiu o seu habitual gesto de olhar para o copo fazendo balouçar o 119

líquido. E depois não disse mais nada. Foi a Clara quem tomou a iniciativa de cortar o silêncio. Voltou ao Rogério. Achava que a culpa era toda dele. Eu disse que as aparências às vezes enganam. Que o facto de o comportamento do Rogério ser frequentemente ofensivo não significava que mais lá no fundo não houvesse razões sérias que eram dos dois e não apenas do Rogério. Pois - disse a Clara - mas o que vocês não sabem é que ele tentou ir para a cama comigo. E a Lena sabia. Não que eu lhe tenha dito, ela percebeu, de certeza. Durante os primeiros dias em N.Y. as coisas tinham sido muito diferentes. O Rogério andava bem-disposto. Radiante. Era divertido, engraçado, contava histórias. Parecia tonto. Speedado. Tudo aquilo em benefício da Clara, rornou-se depois evidente. Como um pavão que abre o seu arco-íris de penas. O tipo quando falava, falava só para ela. Era como se a Lena não existisse. Uma noite, ficaram os dois, o Rogério e ela, na cozinha do apartamento que lhes tinham emprestado. A Lena, sempre sofredora e exausta, já estava deitada. Foi então que o Rogério

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começou com uma conversa estranhíssima, a perguntar-lhe se ela tinha muitos namorados e se fazia amor com eles. Sabia muito bem que a malta nova agora fazia essas coisas sem complexos. A sério, foi mesmo assim que ele disse; parecia tirado duma telenovela. Levantei-me - disse a Clara - e disse-lhe que fosse à merda. Mas o gajo não desistiu. Foi atrás dela. Tentou agarrá-la. Beijá-la. Apostava - disse o Rogério - que ela estava morta por experimentar. Dei-lhe uma joelhada - disse a Clara - que o gajo ficou a ganir. No dia seguinte ainda pensou em dizer à Lena. Mas depois achou que, no fundo, o problema era deles, da Lena e do Rogério. Episódio que a Clara contou num tom de total neutralidade. Conotações apenas de profundo desprezo pelo Rogério. Depois, no meu quarto, reiniciando gestos de reconhecimento dos nossos corpos, eu disse: com que então, uma sedutora de homens. Ela disse: nem a brincar; aquele tipo nojento, a tentar forçar-me. Eu disse: e eu, achas que também tentei forçar-te? Palavras ligeiras. Tentar mudar o rumo da conversa. Mas a Clara, que não tem um grama de sentido de humor, respondeu: forçar-me, a mim? Só faço o que me apetece e nunca faço o que não me apetece. Para que conste. Respondi: então falamos dentro de uns anos a ver se ainda és capaz de dizer isso. Então falamos - disse ela - e vais ver. Linha de conversa esgotada. Pareceu-me. E agora - disse eu - o que é que apetece à menina que só faz o 12O

que lhe apetece? Ela sorriu e disse: que tal mudares de conversa e começares a ocupar-te um pouco de mim? Só um pouco? - disse eu. Nem te atrevas - foi a resposta. E depois, ao ouvido: vá, chega-te para aqui, quero mostrar-te uma coisa. Fizemos amor. O que eu daria por saber se durante esses momentos ela sentiu por mim qualquer coisa que só pudesse ser descrita, ainda que remo- tamente, pela palavra amor. Com o seu corpo e também, pelo menos um pouco, com a sua alma. Depois afastámo-nos. Estendidos cada um do seu lado da cama. Ela nunca fumava nestas ocasiões. E eu não me atrevia. Mais tarde, a Clara levantou-se. Foi à casa de banho. Vestiu-se. Disse. Agora vou dormir. Despedimo-nos com um beijo de alguma paixão. Não lhe ocorreu dizer que ficava. Mas disse: foi muito bom, foi óptimo. 121

XIII oi Oceano Pacífico. Malibu. Palmeiras. Santa Barbara do orge de Sena. Rumo a norte. Estrada pela montanha, fora do itinerário principal. Deixando para trás paisagem árida e alguns vestígios ainda de colonização espanhola. San Simeon e Hearst Castle. Charles Foster Kane e Xanadu. Trepando em direcção às nuvens que se fundiam com o topo das montanhas. Vegetação densa, verde-escura. O mar lá em baixo, cada vez mais distante. Reduzindo-se depois, o mar, a aparições esporádicas à nossa esquerda por entre os recortes da montanha. Chegámos a Big Sur com o céu encoberto. Nuvens escuras criando a ilusão de um anoitecer prematuro. Os faróis ligados para furar o nevoeiro. Limpa-vidros para trás e para a frente a varrerem a humidade espessa que toldava o pára-brisas. Parámos um momento para ler os sinais na estrada e estudar o mapa. Em volta um silêncio pesado devolvendo o som das nossas vozes como se estivéssemos dentro de uma caixa. A Maria José tinha telefonado de Los Angeles a uma amiga que vivia por ali. Um reencontro: não tinham voltado a ver-se desde os tempos em que andaram, ambas, percorrendo a América à procura da verdade. Ou de outra coisa trivial do gênero. Chamava-se Peggy, o mais americano de todos os nomes, tinha dito a Maria José. E, tal como a Peggy Sue do Buddy Holly, também esta se tinha casado. O marido

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trabalhava em Monterey para uma companhia de seguros e todos os dias fazia o percurso duas vezes. O preço que se paga para quotidianamente se regressar à natureza. Respi- rar o ar impoluto da montanha. E à noite ouvir o vento a sacudir as árvores. Mas para mim Big Sur era Henry Miller. O ponto do mundo para onde um homem se retira depois de ter esgotado Clichy, Brooklyn e outros pesadelos com ou sem ar condicionado. Três vezes tivemos de pedir indicações. Acabámos por meter 123

por uma estrada em que mal cabia um carro. Penetrando um pouco mais para o interior da serra. Primeiro uma luz ao fundo. Uma vedação de madeira. E uma placa dizendo Morgan Hill. O nome da terra onde tinha nascido o marido da Peggy. E também o nome da casa. Feita de madeira escura. Piso térreo e primeiro andar. Telhados inclinados. Um vasto jardim à frente, produto óbvio, pareceu-me, no excesso da sua perfeição, de um arquitecto paisagista. Retirámos as nossas coisas do carro. A Peggy, um enorme sorriso. Genuinamente satisfeita por voltar a ver a Maria José. Tinha uma destas caras a que é impossível atribuir uma idade. O rosto largo, plácido, de uma serenidade inocente. Um toque ainda de adolescência um tudo nada fatigada. De sardas, um vestígio apenas, dispostas à volta de um nariz grande e achatado. Corpo um pouco pesado, gestos seguros, mãos firmes e ásperas de trabalhar. Se fosse um elemento, seria certamente a terra. Disse que o marido devia estar a chegar dum momento para o outro. A Maria José pediu desculpa por trazermos um hitch-hiker. É que o Tom tinha pedido boleia até São Francisco. Pedido que a Clara transmitiu à Maria José, rematando com um não te importas, pois não? O Tom disse que dormia em qualquer canto. Na garagem, se fosse preciso. Viajava acompanhado sempre do seu saco-cama. A Peggy disse que de maneira nenhuma. Havia na casa quartos mais do que suficientes. Apenas ela, o marido e a miúda de sete anos. Mas outra criança a caminho, numa gravidez ainda imperceptível. A Maria José tinha dito: how woriderfui, hope it's a boy. E a Peggy disse: keep your fingers crossed. Riram-se em coro, um riso excitado de cumplicidade. O Richard e ela preferiam não saber. O qual, Richard, chegou entretanto. Foi para o quarto, anunciando que queria tomar um duche e mudar de roupa. Sentámo-nos na sala, à roda duma pequena lareira. Que não era em rigor necessária. Depois o Richard apareceu, calças de veludo cotelé, botas e uma camisa de flanela aos quadrados. Se quisesse dar-se um nome ao estilo da casa e da decoração, teria de ser rústico próspero. Conforto como se brotasse espontâneo da terra. Inevitavelmente um bar. Eixo da sala para o americaníssimo ritual dos cocktails. Uma espécie de religião. Como vésperas sem o sino. Para preencher um instante de silêncio, eu disse que em Portugal as pessoas reuniam-se sempre à volta duma mesa, duma refeição; e na América à volta duma bebida. O Richard ergueu o copo e sorriu: let's drink to Portugal, and to a good meal. Mas respirava-se naquela casa qualquer coisa de 124

individual. O esforço manifesto de construir uma ilha de diferença no mar americano. A Peggy coleccionava objectos de artesanato dos índios. Espalhados um pouco por todo o lado. Livros sobre arte em cima das mesas. Ao fundo, subindo-se dois degraus, a continuação da sala. Do lado direito, um piano. Do esquerdo, uma escrivaninha, canetas e papéis espalhados sobre o tampo aberto. Em frente, uma imensa janela de vidro dava para o jardim das traseiras. Que

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estava iluminado. Um volumoso são-bemardo a olhar para dentro de casa. Depois desistiu. Deu meia volta e arrastou a sua tristeza pesada para outro lado. A miúda excitadíssima. Saltando, daddy daddy, mommy mommy, por cima dos sofás, por cima de nós. A Peggy acabou por levantar,se e teve com ela uma conversa segredada a um canto. Foi para o quarto. Séria e compenetrada. Voltou de camisa de dormir e com um enorme Snoopy nos braços. Despediu-se da mãe e do pai. E para nós disse: good night everyone. Como num filme. Mais tarde, numa generosidade de muitos copos, foi decidido que íamos todos contribuir para a preparação do jantar. Mas a confusão na cozinha tornou-se total. A Peggy acabou por dizer que não precisava de ajuda. Bastava que puséssemos a mesa. Enxotou-nos para a sala de jantar. Separada da cozinha apenas por um balcão. Ficámos por ali, a acabar as bebidas e a conversar de um lado para o outro da divisória. A Maria José continuou, no entanto, a ajudar a Peggy, falando as duas dos tempos idos. O Richard punha a mesa, dedicando-se ao mesmo tempo a ensinar-me sobre plantas e jardins mais do que me interessava saber. Armei-me de coragem e de um sorriso aqui estou eu morto por aprender. Incapaz, no entanto, de lhe responder fosse o que fosse. Respostas que ele, de resto, não esperava, tão óbvio se tomava que plantas e jardins eram a sua paixão e domínio seu. A Clara perguntou à Maria José se não se importava de emprestar o carro ao Tom. Queriam ir até Pacific Grove depois do jantar. Onde havia um Disco que o Tom conhecia. A Peggy ainda disse: porque é que não vamos todos, podia-se pedir à Ann para vir fazer baby sitting. Mas o Richard disse que não. A meio da semana. Tinha de se levantar cedo. Além disso, sentia-se mole e pe' sado. E, de qualquer maneira: 1 hate the plastic music they play in that dive. Depois sentámo-nos à mesa. O Tom ao meu lado. Simpático. Sem saliências. Não se daria por ele. Bom humor em cada gesto. Incapaz de falar a sério. Vivo, alerta, a habilidade de inserir comentários breves numa conversa que não era a dele. 125

The boy next door. A clean American kid, não obstante a nuance cosmopolita que lhe acrescentava o bronzeado. Nele, incomodava-me, no entanto, a enormidade quase obscena do apetite. Indício porventura de outros apetites? Mas incomodava-me sobretudo a irreflectida familiaridade com que tratava a Clara. Como se pertencessem a uma mesma fraternidade. Depois do café, a Clara levantou-se para se arranjar. Voltou com um saia e casaco encarnado vivo. Indumentária nova. Comprada em L.A. com certeza. Saia menos do que mini. Das pernas pouco ficava por exibir. Com o cabelo tinha consumado um inexplicável milagre. De pintura, de bâton, um levíssimo toque apenas, como se pretendesse demonstrar que na realidade não precisava. A Clara transformada numa espécie de imagem luminosa de ela própria. O Richard disse: take a look at that. O Tom levantou-se. Pegou nas chaves do carro e da casa. Saíram. A Peggy disse: she's very pretty. E o Richard disse: what do you mean, pretty, shes a real knockout, and doesn't she know it. Sorri. Um sorriso creio que algo imbecil. E não tive coragem de olhar para a Maria José. Um filho da natureza, o Richard - ocorreu-me. O gênero de pessoa a quem é permitido fazer comentários daqueles. A Peggy disse: come on Richard. Toda ela complacência. O Richard disse: she's awful quiet, but she gives you all she's got, which is plenty. A Peggy riu-se e disse: stop showing off, will you Richard? Mas o Richard continuou: hey, 1 know what 1'm talking about, Fve been around; not lately, but Fve been around. A Maria José riu-se também e perguntou se ele era sempre assim. Such a male chauvinist. A Peggy disse que o Richard estava apenas a exibir-se. E depois começaram a falar de quando a expressão male chauvinist era o pior dos insultos. Daí saltando, naturalmente,

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para anos deixados para trás. Tinham-se conhecido, a Maria José e ela, em Washington no Verão de 7 1, durante a grande manifestação contra a guerra. Estavam ambas no YWCA. A Peggy em turismo de mochila às costas. Aproveitar as férias para percorrer o país. Foi a Maria José quem a corrompeu. Acabou por dizer que sim, que ia com ela à manifestação. O Tim apareceu de manhã cedo com o carro. Que ia ser usado como uma arma. Eu não fazia a mais reduzida ideia do que estava para acontecer - disse a Peggy - porque se soubesse. Se soubesse, nunca se tinha metido numa coisa daquelas. Morria de medo. 1 was quite square and naive at the time. And you still are, my dear, that's part of your charm - acrescentou o 126

Richard. A Maria José achou que era uma maravilha, casados há tantos anos e ele a dizer palavras daquelas. Bom, passaram pelo Capitólio - a Peggy dirigindo-se a mim, única pessoa para quem a história era nova. Passaram pelo Capitólio, por Downtown, por Georgetown. E daí para a Massachusetts Avenue. Onde o plano era paralisar o trânsito. O Tim atravessou o carro na faixa de rodagem. Abriu o capot. Simulando uma avaria. Formou-se uma interminável fila de carros. Tentavam passar pela outra faixa, mas deparavam com o trânsito que vinha do sentido oposto. Buzinas zangadas rompendo em volta. O ruidoso protesto da silent majority. Cinco minutos disto. Não mais. Depois arrancaram. Repetindo a cena noutros pontos da avenida. Cruzando-se com vários automóveis dedicados à mesma tarefa. Com os quais trocavam saudações de punho cerrado. Ou o V da paz, era a mesma coisa. Not quite, corrigiu a Maria José. A Peggy respondeu que nunca se tinha interessado o suficiente por minority politics para entender essas subtis distinções. E continuou. A Maria José nervosíssima. A Peggy confessou também a sua aflição, o pânico. Olhando para todos os lados à espera de ver aparecer carros da polícia. Mil vezes arrependida de se ter metido naquilo, Imaginou-se numa cela de prisão. Anything you say can and will be used against you in a court of law; a imaginar momentos desses como se tivessem já acontecido. É que, em volta, o som das sirenes crescia num cerco invisível. Finalmente o Tim decidiu que a sua missão ali estava cumprida. Voltaram para Capitol HiII. O Tim totalmente absorvido com a organização. Elas juntaram-se aos manifestantes que começavam então, aos milhares, dezenas de milhares, a preencher a alameda. Mais uma festa do que uma manifestação. A gathering of the tribes - comentou o Richard. Hippies e flores e mil e uma cores. Barbas, colares, cabelos compridos. But no por - interrompeu a Maria José - não vi uma única pessoa a fumar, estávamos todos a portar-nos muito bem. Cartazes artesanais. Estudantes. Atmosfera de festa. Vendas ambulantes. Produtos naturais. Botões com dizeres políticos. Objectos de cabedal. Revistas radicais. Underground comix. Paus de insenso. Gay Task Force. Bandeiras por todos os lados. Vermelhas com estrelas douradas de cinco pontas. Bandeira negra com um punho vermelho cerrado. Bandeiras do Vietcong. Bandeira americana, as suas listas e estrelas em preto, como se estivesse de luto. Candeeiros públicos apinhados de gente até ao topo. Bring our boys home now. End the drafr. Um 127

cartaz que dizia apenas LIFE. Uma boneca trespassada por uma espada vermelha como sangue com a legenda My Lai enemy. Teachers for peace e uma pomba branca. Vets for peace. Uma mulher envolta num lençol transportando uma imensa foice da morte em cuja lâmina estava

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inscrita a palavra VICTORY. Uma hippie de cabelo à Angela Davis envergando uma cartola. Tipos com bandeiras americanas coladas de pernas para o ar nas costas dos blusões. God is love em letras psicadélicas. Up your arsenal Pentagon. Câmaras de televisão, WETA 26, CBS Color. E praticamente nenhum negro. White anglo-saxon and protestant. Real WASP gathering - disse a Peggy. A Maria José disse que os negros tinham as suas próprias coisas e não se misturavam. Ou não eram na realidade aceites. Não sabia. There was no such thing as a black hippie - disse o Richard. No outro dia estive a ver as fotografias que tirei - disse a Peggy - é incrível, éramos todos crianças. Borbulhas. Lenços em tira atados à volta da testa. Se nos lembrávamos do Bobby McGee and my dirty red bandana. And freedom is just another word for nothing left to loose - completou a Maria José. Saias compridas. Calças larguíssimas como uniformes de marinheiros. E, de facto, uma atmosfera de festa. De alegria. As pessoas estendidas na relva ao sol. Casais beijando-se. Obrigatório amarmo-nos uns aos outros. Mesmo aos polícias. Um ambiente incrível, tempos incríveis - disse a Peggy - nunca mais voltamos a ver uma coisa daquelas, mil anos que vivêssemos. Mas lá em cima, no terraço do Capitólio, lembras-te? - disse a Maria José - uma fila cerrada de National Guards de uniforme escuro. A Peggy disse que sim, que se lembrava: e lembrava-se também da música. Os grupos sucedendo-se numa enorme plataforma montada no topo da alameda. Os manifestantes, era o auge da festa, dançando e acompanhando a música ao ritmo de palmas. Formando-se rodas. É verdade - disse a Maria José - a música, one two three, 1 don't give a damn, next stop Vietnam. Country Joe and the Fish gritou a Peggy. Etc., etc. A Peggy foi a um armário e trouxe uma guitarra. Depois de vários começos em falso, lá acabámos por acertar: don't give a damn, next stop Vietnam. E o resto da noite foi-se es' gotando entre copos e canções da Joan Baez, do Bob Dylan, do Phil Ochs, do Pete Seeger e do Woody Guthrie. Tocava razoavelmente bem a Peggy. A voz suficientemente poderosa para transmitir a ilusão distante de uma Joan Baez a plenos pulmões. A Maria José disse que lhe tinha feito bem cantar aquelas pala- 128

vras: prova de que não fui ainda totalmente triturada pelo sistema. A Peggy disse-lhe: yeah, you got to be yourself. Por isso é que eles viviam ali. A montanha, a floresta, estavam naquele sítio há um milhão de anos. E ainda lá estariam dentro de um milhão de anos. já ligeiramente grossos. Pelo que aquelas palavras soavam plenas de verdade e de significado, Depois um passeio. Nós e o são-bernardo. Sempre à volta da casa. Não nos afastarmos muito por causa da pequena. Um frio húmido. Mas nem uma brisa. O nevoeiro tinha entretanto ocupado a montanha. Visibilidade de poucos metros. Os candeeiros à beira do caminho derretendo a sua luz num halo difuso. O ruído dos nossos passos fazendo,nos companhia. A Maria José e a Peggy, por momentos, um pouco mais atrás. O Richard respirando ostensivamente fundo, tentando convencer-me de que naquele recanto da montanha tinham encontrado tudo o que queriam da vida. A Peggy disse à Maria José que era feliz, indescritivelmente feliz, feliz como nunca imaginou que pudesse ser. E perguntou à Maria José: what about you. A Maria José respondeu: 1 get along, Frn o.k. 1 guess. A Peggy disse que o essencial era encontrar a paz. Paz interior. Uma pessoa sentir-se incondicionalmente bem consigo própria. Depois deu o braço ao Richard, encostou-se a ele e disse: you're happy, aren't you honey? Após o que voltámos para trás. O são-bemardo manifestava a sua alegria roçando-se pelas nossas pernas. Estava molhado. Um pouco lamacento. Cheirava a cão. De novo em casa, perguntei se não se importavam que eu ficasse durante mais um bocado na sala a tomar um último copo. Foram

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deitar-se. Reavivei a lareira. Instalei-me num dos sofás com o meu whisky. A Maria José veio buscar os cigarros, e o isqueiro de que se tinha esquecido em cima da mesa. Olhou para mim e disse: então o teu brinquedo foi brincar esta noite. Eu não disse nada. Ela disse ainda: desculpa, foi de mau gosto; mas vá, não penses nisso, porque é que não vais para a cama? Não bebi um whisky. Bebi três, ou quatro, ou mais. Quan, do fui para o quarto, passava das duas. Deitei-me. Continuando a releitura do Farewell My Lovely, que tinha comprado em L.A. Depois pareceu-me ouvir um ruído lá fora. Um carro. Levantei-Me. Espreitei entre as cortinas. Não eram eles. Um Volkswagen, que continuou estrada acima. Voltei para a cama. Um cobertor apenas. Adormeci gelado. À mesa do pequeno-almoço, uma Maria José alegre e radiosa declarou que desde N.Y. não dormia tão bem. A Peggy disse que 129

era o ar da montanha. E porque é que não ficávamos pelo menos mais um dia? Tema que deu para uns minutos de conversa. Por fim decidiu-se que só partíamos depois do almoço. A Peggy queria levar-nos a um restaurante ali perto onde serviam comida tradicional americana. Perguntei pela Clara e pelo Tom. A Peggy disse que tinham chegado tardíssimo. E disse ainda que também ela costumava ser assim. Começando a dançar, só se vinha embora quando apagassem as luzes. Praticamente preciso expulsá-la. A Maria José disse que o melhor era deixá-los dormir. Mas pouco depois apareceu o Tom. Já vestido, barbeado, leve, bem-disposto. Fresco como se tivesse descansado dez horas. Só eu me sentia velho e gasto e ausente do entusiasmo que parecia ter contagiado toda a gente. O Tom sentou-se à mesa. A Peggy preparou-lhe ovos. Que ele comeu com várias torradas e pancakes barrados de maple syrup. Copo com sumo de laranja e uma série de chávenas de café sem leite. Disse que tinha sido great fun. E pouco mais disse. Depois sentei-me no jardim com o meu ChandIer. A Clara apareceu já passava das onze. O nevoeiro tinha levantado. Manhã ainda fresca. Mas um sol puro e quente. A Clara deu uma volta pelo jardim. Brincou com o cão. Brincou com a pequena. Depois apanhou algumas flores e sentou-se na relva à minha frente. Eu não disse nada. Continuando a ler o livro. Mas sem conseguir já prestar atenção às palavras. A Clara entretendo-se com as flores. Arrancando-lhes as pétalas. Criteriosamente, com geometria, como se quisesse criar uma nova espécie. Por fim levantou a cabeça e disse: vais dizer-me o que é que se passa, ou sou eu que tenho de dizer? Respondi que não se passava nada. A Clara disse que não percebia porque é que eu tinha ficado assim só por ela ter ido dançar. Eu disse: querias ir dançar com o Tom, foste dançar com o Tom, não há problema nenhum. Ela disse: o problema é o Tom, não é? Pousei o livro, levantei a cabeça e fiquei a olhar para ela. Olhos nos olhos. Depois ela disse: há uma coisa que tem de ficar entendida; eu não pertenço a ninguém, não pertenço a ti, não pertenço ao Tom. Eu disse: foste para a cama com ele? Ela levantou-se num gesto brusco de irritação. Fúria. Quase a gritar: sabes que mais? Vai à merda, não estou para te aturar. E foi-se embora. Mais tarde, a Peggy Meteu-nos a todos na sua station e levou-nos para o restaurante. Na varanda, à espera da refeição que tinha sido encomendada, estivemos a ver a vista. Fui até à ponta da varanda, a parte que ficava directamente sobre um precipício de vertigem. A Clara 13O

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veio ter comigo e disse: Luís, não fiz amor com o Tom, nunca me passou pela cabeça, o Tom é giro, gosto dele, é divertido, mas não é de todo o meu gênero; deixa-me fria, não me excita; estás satisfeito? O tom continuava a ser de irritação. Pensei que da' quela explicação resultava pelo menos óbvio que o Tom tinha já sido estudado por ela sob aquele ângulo. Incurável cínico. Em vez de me satisfazerem, as palavras de Clara deixaram-me numa profunda inquietação. Seria porventura demais esperar que ela se reservasse inteiramente para mim? Ainda tentei convencer-Me de que, ao fim e ao cabo, era apenas natural que ela, no exercício de uma inevitável operação mental automática, não pudesse deixar de avaliar o Tom, ou qualquer outro homem com quem tivesse contacto, à luz daqueles critérios ou de outros semelhantes. Um homem e uma mulher, olhares, intercâmbios em silêncio dos quais nunca o sexo pode estar ausente. Tentei convencer-me, mas não consegui. Vencendo a ideia de que estou farto de ser racional. Por que raio não hei-de ter, também eu, direito a algumas saudáveis irracionalidades? A Clara ainda repetiu: é uma vez sem exemplo; não tenho de dar explicações; que isso fique perfeitamente claro. Mas depois fez-tne uma festa no cabelo, ofereceu-me um sorriso de reconciliação e disse: mas não me importo que tenhas um bocadinho de ciúmes de vez em quando. 131

XIV M onterey, Silicon Valley, Highway 1O1 e depois, recortados à nossa frente contra o vermelho e amarelo do pôr do Sol, os contornos rectilíneos dos arranha-céus de São Francisco. San Fran sky1ine. O fascínio daquele encontro, mas, ao mesmo tempo, a irreprimível sensação de que a partir dali se iniciaria a nossa contagem decrescente. Restando apenas voltar para trás. Porventura com um pouco mais de pressa. Um pouco menos de paciência. Passada já a sofreguidão de ver. De conhecer. As coisas, mas também as pessoas. Ainda que por percursos diferentes, a impressão de déjà-vu. O entusiasmo da viagem dando talvez lugar ao cansaço das rotinas que se tinham entretanto instalado. E ainda a certeza do muro em que, algures no meu próximo futuro, teria de me deter e olhar para o descalabro, de contraditórias emoções que transportava dentro de mim. O momento em que haveria de me confrontar com o facto de a minha vida se encontrar no mesmo ponto em que cobardemente a tinha deixado quando embarquei nesta fútil e insensata fuga. E agora havia a Clara. Mais um problema. Que dali não me viria qualquer solução. Tinha-me deliberadamente abstido de lhe colocar interrogações de futuro. Sob o pretexto de não toldar o presente. Evitando ao mesmo tempo reflectir no que a Clara verdadeiramente significava para mim. Tinha apenas a desculpa de que era ainda tudo demasiado recente e, por isso, pensar nela trazia sempre uma tempestade de sentimentos que me tolhiam o discernimento. E a acrescer a isto, um pequeno episódio insignificante à chegada a San Francisco. O hotel tinha apenas dois quartos livres. A Maria José disse à Clara que podiam ficar juntas. Seria só por uma noite. No dia seguinte haveria já outra vaga. A Clara hesitou. Mas acabou por dizer que sim. Subimos na meia-luz de um 133

elevador velho e lento. No corredor, enquanto procurávamos acertar com os números das portas, a Clara virou-se para a Maria José e disse: se calhar fico com o Luís; não te importas, pois não? Pergunta dirigida a mim. Disse que não me importava; com todo o gosto. Tendo-me falhado um pouco a voz na segunda parte da resposta. Suponho que ninguém a ouviu. Tudo

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isto absurdo: a Maria José sabia e nós sabíamos que ela sabia. Por que raio é que haveria ali lugar para qualquer embaraço? Mas houve, pelo menos para mim. Foi esse o pequeno episódio. Sem saber se devia estar zangado comigo mesmo, se com a Maria José. Comigo, porque me faltou a presença de espírito para atalhar o assunto com a palavra exacta, colocando assim a Clara na posição de ser ela a intervir. Com a Maria José, porque fez a oferta sem inocência, os seus olhos a brilharem de gozo. Depois, no quarto, desfazendo as malas, instalou-se entre a Clara e eu uma estranha sensação de tão estranhos nos sentirmos um ao outro. Posso, neste caso, falar também pela Clara. Evidentes como eram os sinais, que só faltaria estarem escritos na parede. A urgência de dizer qualquer coisa para afogar o incómodo daquela indesejada intimidade. Os exageros de cordialidade antes de decidirmos questões triviais, como quem fica de que lado da cama. Surpreendeu-me, no entanto, que também a Clara se tivesse deixado cair naquele jogo de absurdas cerimônias. Talvez a rigidez do meu comportamento a intimidasse. Talvez ela não fosse, afinal, feita de um estofo tão duro como eu tinha imaginado. Por isso tentei estender-lhe uma metafórica mão. Chegar-me um pouco a ela. Fazendo humor com a situação. O que não deu resultado. Ela ignorou o humor. Como habitualmente sucedia. Prosseguiu na sua faina de arrumação. Fazendo ao mesmo tempo comentários sobre o quarto. As gavetas não fechavam bem. A porta da casa de banho estava mal concebida, porque não se podia abrir sem bater na pessoa que estivesse em frente ao lavatório. Falhou tudo. Por isso lhe dei um beijo. Por isso o impulso de a segurar, de a reter nos meus braços. Como se assim nada mais precisasse de ser explicado. Mas ela respondeu-me dizendo: agora não. Eu disse: era só uma festa. Ela disse: desculpa. Mas estava já a estudar a vista da janela. Nessa noite, depois de termos feito amor, a Clara levantou-se. Foi à casa de banho. Disse que queria tomar um duche. O quarto asfixiado de calor. Hotel antigo, sem ar condicionado. Da casa de banho gritou-me, por entre o ruído da água a bater na banheira, que lhe apetecia ir a qualquer lado tomar uma bebida. 134

Ainda era cedo. Procurar um bar; mas não, não nos apetecia o fumo, a penumbra, começar a beber. Não foi difícil encontrar um drugstore aberto. Sentámo-nos ao balcão. Éramos os únicos clientes. Ela pediu um ice cream soda. Resolvi experimentar. Coisa repelente. A Clara disse: já reparaste, é como na nossa primeira noite. Perguntei porquê. A Clara disse: então, não te lembras, a noite em Lãs Vegas e nós os dois sozinhos no bar? E era verdade, pelo menos, que fora dos nossos quartos e do amor que nele partilhávamos nunca tinha surgido uma ocasião em que estivéssemos os dois apenas um com o outro. O arrepio de constatar que não tinha sentido ainda a necessidade de conversar, conversar apenas, com a Clara. E ela proclamando com ligeireza, com alegria quase, aquilo que, no fundo, era o reflexo de um fracasso. Sem dar por ele. Com os dedos molhados de pegar no copo gelado, a Clara entreteve-se a salpicar-me a cara. Olhando, -me de lado, como uma criança a tentar perceber até onde pode ir. Achando imensa graça àquele jogo. Riu-se. Repetiu o gesto. Agarrei-lhe a mão. Beijei-lhe a mão e depois disse: aposto que preferias andar na borga com o Tom. O Tom que se tinha separado de nós à chegada a San Francisco. A Clara disse que eu não percebia nada de mulheres. Pelo menos desta mulher - disse ela. O que me apetece - disse ela - é voltar para o hotel, adivinha para fazer o quê? Olhei para ela, a tentar decidir se tinha ânimo para entrar também naquele pequeno jogo. Ela não me deu tempo para decidir: mas que falta de entusiasmo, muito obrigada. Eu disse: explica-me uma coisa - porquê eu? Ela disse: sei lá porquê; o que é que

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interessa? A mim interessa-me - disse eu. Sei lá - repetiu a Clara - porque estavas à mão? Porque gosto de tipos um pouco passados? Acompanhado de um gesto interrogativo com a mão direita. A última coisa que lhe apetecia, ter uma conversa a sério. Eu disse: importas-te de parar com isso? Está-me a entrar nos nervos. Pronto, desculpa, faz de conta que nem cá estou - disse a Clara. Ficámos calados. Uma eterni- dade. Depois ela disse: posso saber o que é que se passa contigo? Passa-se - disse eu - que não faz parte dos meus esquemas mentais passar com esta ligeireza toda por cima duma coisa que devia ser importante para os dois. Então agora - disse a Clara - sou ligeira, fútil, superficial. Respondi que não era isso que eu estava a dizer. A Clara disse: recuso-me a ter de explicar porque é que faço as coisas; recuso-me sequer a pensar nisso; acho que estraga tudo. A olhar um para o outro, como adversários que se 135

estudam. Até ela dizer: vá, um beijo; as pazes? E deu-me um beijo. Depois fez-me uma festa e disse: andavas triste e sozinho e sem ninguém, mas agora tens-me a mim; mas tens de prometer que vais ser feliz. Consegui não sorrir. Em vez do que, prometi. À saída comprei o J .ornal. Olhei para os títulos. Tudo na mesma. Mais ou menos. U.S. flag flies in Gulf war.'Poindexter says he told Congress'The whole truth'. London's Stock Market is booming after the'big bang'. Todays weather sunny and warm; high 72. Uma volta pelas ruas a caminho do hotel. A Clara deu-me o braço. Inexplicavelmente excitada. Cheia de energia. No quarto insistiu em ser ela a despir-me. Rituais que ela habitualmente ignorava. E tratou-me como se eu fosse excessivamente frágil. Como se estivesse enfermo. Um senhor de idade. Chegou mesmo a perguntar-me se eu estava cansado. Menti que não. Mas tudo se me apagou nos momentos de esquecimento que ela soube ministrar-me. Depois disse que estava cheia de sono. Deu-me um último beijo e virou-me as costas. Perguntei-lhe se podia ler, se a luz a incomodava. Ela disse que nem um terramoto a incomodaria. Acabei o Chandler. Peguei uma vez mais no Less than Zero. Na esperança de que a toada repetitiva e monocórdica do livro me trouxesse o sono. Mas não trouxe. O meu coração a pulsar como se estivesse ligado a um motor eléctrico. Levantei-me. Fui até à janela. Lá em baixo, a tranquilidade mal iluminada da rua. Abri o vidro. Abafava-se naquele quarto. O ar fresco do mar. Tal como em Lisboa. O rumor distante da cidade. O ruído ocasional dum carro. Quase em frente, o acender e apagar dum enorme reclame luminoso. Que invadia de luz'intermitente o quarto quando se abriam as cortinas. Parecia um cenário para um filme noir. Servi-me de um cigarro. Uma luta, deitar o fumo para fora. A Clara e o seu dormir tranquilo, numa imobilidade total. A paz de um feto. Disse-me uma vez que nunca sonhava. Fui até à casa de banho, onde apaguei o cigarro. Guiado apenas pelo cintilar do reclame. Não perturbar a Bela Adormecida. Depois deitei-me. Tinha cedido à tentação de dois Valiums. Esperando uma vez mais pelo sono. Mas era como se tudo à minha volta fossem indícios de opressão. A falta de espaço. A claustrofobia. O ritmo certo e suave da Clara a respirar ao meu lado. Não me mexer. Não lhe tocar. Uma prisão. Os precários estados de espírito que eu agora percorro num quotidiano baloiço de contradições. Nessa tarde, por exemplo, quando nos aproximávamos de São Francisco, cantámos em coro a canção do Scott 136

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McKenzie. Que a Clara não conhecia. Como é possível? - disse a Maria José. lf you're gq@ing to San Francisco be sure to wear some flowers in your hair. E gira - respondeu a Clara. lf you're going to San Francisco you're going to meet some gentie people there. Gira! - disse a Maria José indignada - a mim comove-me até às lágrimas. Ali across the nation such a strange vibration people in motion there's a whole generation with a new explanation. De um lado para o outro na cidade. A paciência decididamente já com a rédea curta. E senti hoje, pela primeira vez, como que um preliminar de tensão entre nós. A Maria José e eu. O calor, a fadiga, a proximidade forçada. Foi assim. A Maria José tinha insistido que fôssemos os três a Haight-Ashbury. A peregrinação da Maria José a Haight-Ashbury. Onde, em 197O, tinha passado uns dias com o Tim. Os tempos em que aquelas ruas eram a América inteira. Dizia ela. A América que contava, pelo menos. Hippies afluindo de todos os pontos do país. O ambiente era incrível - disse a Maria José. Não se encontrava uma pessoa que não estivesse high. O paraíso à face da Terra. Times Square da counter-culture. Por e I_SD à venda como bens de primeira necessidade que eram. E em que todos os cantos se organizavam sit-ins, happenings e outros eventos que de tão novos e efémeros nunca chegavam a ter nome. Raparigas, as suas saias inevitavelmente longas e às flores, improvisando Joan Baez em guitarras que mal sabiam manejar. Embora soubessem que we shall overcome. Flower children pintados como arco-íris psicadélicos. Entusiasmando-se com as suas palavras, a Maria José. Acabando repetidamente com: é impossível explicar, era preciso ter lá estado. Descemos do autocarro. Atravessámos um pequeno parque. E quando chegámos à esquina de Haight-Ashbury, a Maria José teve um momento de silêncio antes de dizer: não é possível, não acredito, isto está irreconhecível. Já lhe tinham dito. Mas aquilo, aquilo, não podia acreditar. No ponto em que Haight e Ashbury se cruzam, ruas banais, um indiferente bairro próspero americano. Restaurantes, cafés, várias boutiques de luxo. Pessoas cumprindo as fainas vulgares do seu dia-a-dia. Como se não fosse nada. E nada era. Demos uma pequena volta. Depois a Maria José disse: vamo-nos embora, o que isto me deprime. Durante o almoço cometi o ultraje de comparar Haight-Ashbury a Carnaby Street. Com a Clara a perguntar o que era Carnaby Street. A Maria José a gritar-me que Carnaby Street era para turistas. 137

Após o que tive de ouvir uma mal-humorada arenga sobre a mania que as pessoas têm de falar daquilo que não conhecem. Durante o resto da tarde, em monótono turismo, suportei um ostensivo silêncio da Maria José. Que não era apenas a resposta à minha insignificante observação. Silêncio que trazia consigo uma global desaprovação de mim. Paciência. Estes últimos tempos tendo-me feito crescer uma insuspeitada indiferença pelo que de mim pensam. Dois dias em São Francisco e de novo na estrada. O regresso. A debandada. Um pouco como um exército derrotado. Rumo a sul para atravessar Death Valley. Apenas porque era esse o plano traçado desde o princípio. Um espírito de já agora vamos lá despachar isto. A paisagem deslizando pelas janelas do carro e pela nossa indiferença. A Clara estendida ao comprido no banco de trás, isolada do mundo pelo seu walkman repetindo sem se fartar as três cassettes que tinha trazido consigo. Músicas que nos eram estranhas como um continente por descobrir. Às vezes a Clara deixava cair nomes como Duran Duran, New Order, Mirage, Curiosity Killed the Cat, Bon Jovi. E outros nomes - dizia a Maria José - que não se sabe se são o nome do conjunto se o da música. A Clara encolhia os ombros, não se dando sequer ao trabalho de nos tentar instruir. Death Valley, o deserto de pedra. Branca. Ocre. Algumas

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formações coloridas. Ao fundo, montanhas nuas de agrestes arestas cortantes como uma paisagem lunar. O asfalto escuro, interminável serpente contornando sem esforço os relevos do terreno. À beira da estrada, a intervalos regulares, barris enormes de metal contendo água. Um aviso, uma ameaça. E em cada ligeira subida, o termómetro do motor a saltar para o vermelho. Depois, uma estação de serviço. Bomba de gasolina e uma casa de madeira. Parámos. O carro ao sol. A casa era velha e decadente. A sua frontaria antecedida de uma varanda dois degraus acima do chão. Sobre a qual corria um alpendre apoiado por postes de madeira. Um rafeiro de pêlo comprido preto e branco tinha tomado a única decisão sensata. Estava deitado, espalmado, imóvel à sombra. A Clara baixou-se um instante para lhe fazer uma festa. O cão ergueu ligeiramente a cabeça, abanou o rabo de satisfação e depois voltou à posição de abandono absoluto. Pendurado num dos postes de madeira, um termómetro que dizia Wagner termite control. E dizia também 114 graus, Fahrenheit. Achei que devia ser qualquer coisa à roda de 4O' centígrados. Entrámos. Servimo-nos de refrescos de uma 138

máquina em que se metiam moedas. Por mim, bebi duas Coca-Colas. Que expeli pelos poros em menos de dois minutos. De novo na rua. No outro lado da estrada, um edifício que se intitulava Blacksmith Shop, Stove Pipe WelIs Village. Entrámos para o carro, a queimar-nos com o calor que entretanto se tinha acumulado. Parámos ainda em mais duas bombas de gasolina. Para beber. Embora já ninguém tivesse sede. Apenas calor. E nessa noite ficámos num motel decrépito depois de Lãs Vegas, à beira da Highway 4O, Arizona. Um hotel decrépito em que os canos faziam barulho. Em que os insectos andavam à solta. Em que a Clara disse que vinha ter comigo mais tarde e não veio tendo no dia seguinte explicado que adormeceu, de exaustão. Passei a noite à espera e a beber bourbon com muita água e muito gelo. Ainda na Highway 4O, conseguimos chegar a Amarillo, Texás. Digo conseguimos porque ao princípio da tarde o carro começou a fazer um ruído preocupante, cuja origem não fomos capazes de determinar. No calor, na imensidão despida e sem fim do Arizona, de New Mexico, do Texas. A Maria José a aproveitar todos os pretextos, e mesmo pretextos nenhuns, para dar corpo a uma inexplicável irritação. Desde que dobrámos o cabo do regresso que a vejo assim. Tudo à sua volta serve para expressar um descontentamento óbvio, mas que para mim era novo. E também o reflexo de tentar culpar os outros. Como por exemplo, no caso do carro, em que chegou a dizer que ela tinha sido sempre contra a ideia de comprar a piece of junk em segunda mão. Com essa decidi não me ficar. A Maria José acedeu então a corrigir dizendo que tinha sido ideia do Rogério. O que também não era verdade. A ideia foi, na realidade, dela. E logo a seguir disse, sem hesitar: é sempre a mesma coisa, deixam-me tudo nos braços para eu decidir, para eu fazer; não sei porque é que me queixo; a culpa é minha, de ser parva. Aparentemente sem se dar conta da contradição. Achei que não valia a pena responder-lhe. À noite demos uma volta pela cidade. De carro. Depois de eu ter garantido que não fazia mal. Tinha-se tomado já então óbvio que o problema era o tubo de escape. A Clara ligou o rádio. Notícias. The news report every hour on the hour. White House officials. Reagan now had a stronger case. More aid for anti-Sandinista rebels. President Daniel Ortega. Congressional hearings on the Irari-contra affair. Decomposition of the so called democracy in the United States. Senate Republican leader Bob Dole. Strongly worded speeches. Campaign in the Deep 139

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South. George DahI, the architect. America's first drive-in bank and the R.EK. Stadium in Washington. Died today. Was 93. Tom Landry has agreed to coach the Dallas Cowboys for three more seasons. Todays highs in the Lone Star State were in the upper nineties. Relative humidity 75 per cent in Dallas. E depois o hit parade. Ia já nos dez primeiros. Mais uma colecção de nomes estranhos. Recordo-me, no entanto, de ter ouvido as palavras Exposure, T Pau, Crowded House. E depois Miami Sound Machine, George Michael, Whitney Houston, U2, Bob Segar. Mas antes do número um, o locutor leu a lista do top ten de há vinte anos. Beatles, Scott McKenzie, The Monkees, The Turtles, Pink Floyd, Stevie Wonder. Após o que: and now the number one song across the nation, Heart and their smash hit Alone. Estacionámos o carro no gigantesco parque dum gigantesco centro comercial. Shopping MaIl. Saímos. A Maria José e eu lado a lado. A Clara deixando-se ficar um pouco para trás, como frequentemente fazia. Como se a Maria José e eu formássemos um grupo de que ela não queria fazer parte. Perdemo-nos em compras sem critério. Somar objectos. Coisas inúteis. Gastar dinheiro para ocupar o tempo. E ainda cigarros e booze, como dizia a Maria José. Depois voltámos para o motel. Uma paragem no bar. A Maria José declarou-se cansada. Farta. Tinha sido má ideia planear a viagem assim. Devíamos ter tomado um avião até São Francisco e alugado então um carro para o regresso. Amanhã guias tu - disse a Maria José. Depois perguntou à Clara se ela não estava também farta. A Clara respondeu: não, estou com o Luís. Eu disse: por mim continuava assim eternamente. O que pretendia ser uma declaração de amor, ou coisa no gênero. Não sei se a Clara percebeu. Mas a Maria José percebeu e disse: que enjoativos que eles estão. Depois, no quarto, a Clara, enquanto se despia com o seu habitual automatismo, disse: vou compensar-te por ontem à noite. Casualmente. Como se houvesse uma contabilidade. Mais tarde, no meu quarto, demasiado agitado para adormecer, apeteceu-me vestir-me, ir ter com a Maria José e queimar o resto da noite entre copos de whisky e conversa inconsequente. Mas para isso teria de ser possível ressuscitar o entendimento sem palavras que tinha havido entre nós. Podia tentar. Mas, no fundo, não conseguia impedir-me de pensar que não valia a pena. Ou talvez não fosse bem isso. Talvez não me sentis- se com forças para correr o risco de ela me rejeitar. Outro risco que não me apetecia enfrentar: o risco de ela me querer falar da 14O

Clara. Tendo eu atingido o ponto a partir do qual já não há regresso. Sem ter verdadeiramente optado, tinha, não obstante, permitido que a Clara se transformasse numa indissociável parte do equívoco equilíbrio que acabei por encontrar. Equívoco e certamente precário. Mas o único a que podia aspirar. Irónico que tudo girasse agora à volta da Clara. Que eu me tivesse deixa do prender assim. Deixado? Se quiser ser inteiramente honesto, terei antes de falar da irresistível necessidade de encontrar uma ilusória segurança numa qualquer servidão que porventura esteja ao meu alcance. A Clara no centro do meu pequeno mundo. E a Maria José? Curioso como as pessoas tendem a afastar-se umas das outras por causa de outras pessoas. No fundo, a Maria José tinha razão. Estava naquela viagem mais só em cada dia que passava. A Clara e eu e os embrenhados meandros da nossa improvável relação. Com todos os abismos que nos separavam. Inevitável, mesmo assim, excluir a Maria José de tudo o que entre nós

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ocorria. Excluir, primeira operação para podermos marcar o nosso terreno. Optei por ficar no meu quarto. 141

XV L evantei-me às sete. Desperta, cheia de energia. É que, ao contrário de eles dois, não passo noites tórridas de que depois precise de recuperar. Acusem-me de azedume ou de sarcasmo deslocado. É-me indiferente. Meti-me no carro. Tocando apenas ao de leve no acelerador para não perturbar a sonolência tranquila dos arrabaldes de Amarillo com o roncar livre do escape. Dirigi-me a uma oficina que se gabava nas páginas amarelas da rapidez do seu serviço. Quando abriram as portas já eu lá estava. Fui a primeira pessoa a ser atendida. E despachada. Trabalho duma grande simplicidade. Não me esquecer de dividir a conta por três. De volta no motel às nove. Acordei-os pelo telefone interno. O Luís ainda me resmungou: porquê a madrugada? Mas, pouco depois, quando desci para o pequeno-almoço, já eles lá estavam. E a discutir. É que a Clara apareceu, cheia de provocante orgulho, ostentando um autocolante laranja do PSD. Na noite anterior, tínhamos ouvido pela rádio os resultados das eleições em Portugal. Altura em que a Clara disse: é a onda laranja. Esse o pomo de discórdia. Não me meti na discussão. Tinha a minha própria mensagem para vender logo que eles se calassem. Lembrei-me, no entanto, de que em algumas das nossas conversas telefónicas nos últimos meses a mãe me tinha falado do Cavaco. Com o tom de voz que ela habitualmente adopta quando me tenta ensinar o bom caminho que invariavelmente eu me recuso a seguir. Suponho, portanto, que não gosto do Cavaco. Mas, expatriada que sou, dizem-me muito pouco as vicissitudes da política partidária nacional. Logo a seguir ao 25 de Abril dei uma festa para celebrar a queda da ditadura e a instauração da democracia. Uma espécie de te deum laico, para o qual convidei os meus amigos liberais e radicais, que na altura eram em maior número do que hoje. Cumpri o meu dever; satis- 143

fiz a consciência, exprimi as minhas emoções. Deixei o Luís concluir a sua indignada diatribe contra a juventude actual. Apresentei então o meu caso. A primeira reacção foi de surpresa. E a seguir de resignação. O Luís ainda tentou contrapor que estávamos nisto juntos; a opinião deles devia contar, que diabo. Mas não insistiu. A Clara, como de costume, nada disse. Apesar de a minha decisão ser firme, surpreendeu-me a facilidade com que o Luís a acatou. Por isso dei comigo a argumentar com o silêncio deles. Argumentava que não fazia sentido continuarmos a deambular de terra em terra quando estávamos já exaustos. Continuarmos apenas para cumprir um plano. A olhar para a paisagem com indiferença, tédio, náusea. A cultivar questiúriculas uns com os outros. A única coisa sensata era fazermos um forcing e avançarmos sobre N.Y. Uma directa para Nova lorque? - o Luís não queria acreditar - fazes alguma ideia da distância a que estamos? Sem dúvida um esticão. Eu sabia que era um esticão. Mas, se fosse preciso, guiava eu toda a noite. O Luís respondeu que não, que podíamos dividir. E depois disse: mas então está decidido? Era um pergunta. Pressupondo já que a minha vontade se tinha transformado em lei. Respondi que sim, que estava decidido. Contrafeito, o Luís. O que compreendo muito bem. O doce idílio com a não tão doce Clara ia ver-se obrigado a enfrentar um prematuro embate com a realidade. But the hell with it. Estou farta de sistematicamente me apagar perante as conveniências dos outros. E a verdade era esta: havia

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já vários dias que nada daquilo tinha para mim o menor interesse. Ou mesmo um vestígio sequer de sentido. Exactamente o que eu lhes tinha dito. Absurda peregrinação. A Clara fechada no universo do seu walkman. O Luís metade do tempo a dormir o que não dormia durante a noite. E eu, sozinha, apertando-se, com cada dia que passava, o cerco dos problemas que tinha deixado em N.Y. Acresce que a viagem destes últimos dias nada tinha já a ver com a viagem que tínhamos planeado antes da partida. O grupo inicial totalmente desfeito. Por razões diferentes, mas irremediavelmente desfeito. Primeiro a Leria e o Rogério. Cuja inclusão o Luís tinha aceitado a ranger os dentes. Aí o erro de julgamento foi meu. Ilustrando o velho princípio de que as pessoas só ganham em não ser bem conhecidas. E agora estes dois. Quero, no entanto, deixar bem claro que não passa por aqui uma ponta sequer de ciúmes. Gostaria de poder dizer que desejo sorte ao Luís. Mas não posso. Na verdade, não lhe desejo coisa nenhuma. 144

Nada posso fazer: o complicado novelo em que ele anda metido deixa-me indiferente. E não me sinto em condições de partilhar as dores dos outros. Porque é isso que está no horizonte. Não tenho a menor dúvida. Quando finalmente o desastre se der, quero estar bem longe, onde não me cheguem sequer os estilhaços. Pergunto a mim mesma como foi possível que ao princípio me tenha deixado embalar por ingénuas ilusões. Tanto mais que a situação continha desde o início todos os ingredientes do desastre. Mas a verdade é que herdei a Clara como uma espécie de indesejado troféu no meu embate com o Rogério. Nos primeiros dias tudo correu bem. Como se fôssemos uma família unida. Agora sinto que fui um pouco usada. Pode dizer-se que, de certo modo, o Luís precisava de mim. Fui uma espécie de álibi, en- quanto não se consolidava a verdadeira justificação para ele estar com a Clara. A minha presença serviu, no fundo, ao Luís para não cair na incómoda e até ridícula situação de andar a pas, sear uma quase teenager com a qual não sabe muito bem o que fazer à luz do dia. Mas depois, era inevitável, foi-se formando entre os dois uma união de cumplicidades, de coisas que eram apenas deles, recordações até de momentos passados já em comum. Foi inteiramente franco sobre o assunto, o Luís. Num momento em que há dias ficámos os dois a sós, o Luís resolveu filosofar um pouco. Lamentava,se ele de que na vida, sempre que se escolhe alguma coisa, é inevitável rejeitar as restantes. Vieram estas palavras a propósito de uma noite em que ele praticamente me não dirigiu a palavra, tão ocupado que esteve a cochichar insignificâncias ao ouvido da Clara. Muito característico do Luís: fazer o que lhe apetece fazer e depois tentar punir-se ficando com má consciência. E assim fui rejeitada. Muito subtilmente. Mas rejeitada. O que, não deve deixar de ser dito, vinha mais do Luís do que da Clara, com o seu neurótico desinteresse pelo mundo. Com o seu egocentrismo silencioso. Que não me incomoda particularmente. Mas incomodou-me, sim, ter de assistir às patéticas tentativas do Luís de prender a Clara nas suas teias. De a prender mais do que ela estava disposta a deixar-se prender. Os erros que aquele homem comete. Escrevia-se, a partir do caso do Luís, um tratado sobre o que não se deve fazer quando se quer conquistar uma mulher. Tive, por vezes, vontade de o ajudar. Se fosse possível ajudar os outros. Se fosse, eu começaria por lhe di- zer que desse espaço à Clara. Que a deixasse descobrir por si mesma o que tivesse de descobrir. Que não lhe destinasse a cada ins- 145

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tante um impossível guião de comportamento. Tudo isto numa complicada estratégia de cerco que não se confessa. A Clara transformando-se-lhe num emprego a tempo inteiro. Assim se retirou da minha companhia. Retirou-se de tudo. Para se dedicar apenas à Clara. Tomou-se inteiramente vulnerável. Três pessoas isoladas umas das outras. Mesmo o Luís e a Clara: o que é que lhes resta após o fugaz intercâmbio dos seus corpos? E eu, numa ansiedade crescente, em implosão sobre os desconfortáveis fardos que comigo trago. A frustração de não poder agir, quando sei já o que vou fazer. Coisas que tive esperanças de poder colocar entre parêntesis durante duas ou três semanas. É um lugar-comum; mas verdade: em última análise, não é possível fugirmos de nós próprios. Foi o que comecei a sentir depois de Big Sur. Aproximando-se o regresso. Em L.A. tinha podido ainda ocupar-me estendendo a mão à Clara. Fez, aliás, uma coisa inesperada e bizarra, a Clara. Depois de a Lena e o Rogério terem partido, perguntou-me quanto é que eu tinha acabado por lhes emprestar para pagarem o hotel e comprarem os bilhetes do Greyhound. Respondi-lhe, estranhando embora aquele súbito interesse por parte de uma pessoa que raramente faz perguntas. A Clara abriu a carteira e de um envelope gordo de notas contou os dólares necessários para me ressarcir. Quando lhe perguntei porque, a Clara disse que a Lena era prima dela. E, com um pequeno sorriso: na minha família não estamos habituados a dever dinheiro. Pareceu-me outra pessoa a falar pela voz da Clara. Terei talvez de confessar que ela me intriga e me fascina um pouco. E que não consegui ainda colar-lhe uma etiqueta que correctamente a descreva. Em L.A. ajudei-a a comprar as pequenas ousadias que eu i à não gosto de usar. Criou-se entre nós duas, o quê? Talvez uma precária, ambígua, desconfortável solidariedade. Trocando apenas confidências. Mas nenhuma intimidade. Antes uma implícita rivalidade. Quantas vezes ela tentou saber se o Luís e eu tínhamos sido amantes. Talvez estivesse a pensar apenas no passado distante, em Portugal. Mas não creio. Confesso que me deu alguma satisfação responder-lhe sempre em termos equívocos com o propósito claro de deixar a dúvida em pé e sem resposta. Falei em fascínio. É que me fascinava também um pouco a loucura daquele amor. A loucura que existe sempre em todo o verdadeiro amor. Parecia-me belo, parecia-me romântico que eu sou ainda capaz de albergar noções juvenis desse tipo. Presentes pelo menos alguns dos condimentos indispensáveis. 146

Uma paixão que tinha de transpor várias fronteiras para se poder exprimir. Idade, formação, interesses. Podendo o encontro dar-se apenas no abstracto ponto do amor puro. Mas nem disso estou agora segura. Não se trataria para a Clara apenas de uma expertencia mais a somar à colecção de egoísmo que, começo a suspeitar, compõem o essencial de toda aquela introversão? E o Luís, onde é que devo situá-lo nesta família de vocábulos? Na família amor, paixão, desejo? Ou não se tratará antes dos primeiros passos nutri processo de terapia pessoal? E ao mesmo tempo a tentação irresistível de refrescar um cansaço velho num corpo novo como a manhã? Ou ainda a ilusão de que uma Clara qualquer possa fazer com que na vida dele tudo volte a ser-lhe de novo oferecido para escolher? Não sei. Coisa curiosa, as palavras. Incapazes de acertar no alvo; por isso me entretenho com elas a reinventar a realidade. É que, no fundo, compreendo o que se passa com o Luís; mas compreendo-o num momento que é anterior às palavras. Foi em São Francisco que se deu a ruptura. Embora

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ruptura não seja talvez a palavra exacta. Não houve drama, não houve excesso. Nada de definitivo. Apenas uma ferida que se abriu e ficou desde então a sangrar. Um incidente, isso sim. Um detonador. O momento em que o Luís comparou Haight-Asl-ibury a Carnaby Street. Não que a coisa em si fosse particularmente ofensiva. Sucede, no entanto, que há já vários dias o Luís instalava o seu sorriso trocista quando eu porventura falava daqueles tempos. Primeiro desvalorizando-me com frases como: pois, pois mas não tiveste de enfrentar a polícia de choque, a pide, as prisões, um regime fascista como a malta em Portugal. Pergunto-me quem é que ele engloba na expressão malta. Ele não certamente, sempre tão cuidadoso em todos os passos da sua vida. Mas o que realmente me ofende, me ofendeu, foi a insinuação de que recordar esses tempos era de alguma forma uma fraqueza ligeiramente patética de uma pessoa que não tinha sido capaz de crescer até ao futuro. E a ideia repetidamente insinuada de que terei feito parte de um bando de tontos totalmente inconsequentes e inúteis. Insinuação tanto mais ofensiva quanto sei que ele não pensa em abstracto assim. O sorriso e os sarcasmos são portanto dirigidos a mim e não aos anos 6O. Nem às flores. Nem ao protesto contra o Vietriam. Nem às expressões e slogans da época. Que a Peggy se entreteve a repetir sem fim ao cabo de muitos copos durante a noite em Big Sur; groovy, carry ir on, love is a 147

7,---, @ %-, four letter word, ban the bra, war is not healthy for children and other living things, make love not war. Etc. E depois, quando chegámos a São Francisco, aquela teimosia, a birra de que a noite deles, expressão que o Luís me atirou, não era para partilhar. Vinha isso a propósito de eu ter sugerido, e depois insistido um pouco, que fôssemos dar uma volta a seguir ao jantar. Nada o demoveu. E às oito e meia já eu estava no quarto com a noite toda à minha frente, a televisão apenas por companhia. Podia ter-me respondido que se sentia cansado, que não lhe apetecia dar voltas, qualquer coisa. Mas não; apenas um sorriso de superioridade e aquela de a noite deles não ser para partilhar. Por isso - não passava de uma provocação - convidei a Clara para ficar comigo quando se constatou que o hotel só tinha dois quartos vagos. Sabia, evidentemente, que a Clara não aceitaria. Como não aceitou. Mas ficou a mensagem dada ao Luís. E houve mais coisas. Recordo-me, por exemplo, de que em Death Valley ele tentou, para além do razoável, convencer a Clara de que beber Coca-Cola era absurdo. Era água pura que ela devia beber. A Clara olhando para ele, inamovível e silenciosa, por detrás da sua palhinha mergulhada numa garrafa da bebida condenada. Eu disse: deixa-a beber o que lhe apetece, nessa idade nada nos faz mal. O Luís virou-se para mim, um olhar de fogo, e disse: importas-te de não interferir? Isto não é contigo. Querendo dizer que a Clara me estava off limits. Por outras palavras, sempre que da Clara se tratasse o assunto era de família. E depois de tudo isto, acabou ele também por beber uma Coca-Cola. Patético. Patético e um ponto final no espírito de camaradagem indispensável nestas coisas. Um ensaio para outro Rogério se a Clara se deixasse manobrar como a Lena. Curioso como na aparente vacuidade da Clara existe algures uma grande força. Uma força passiva, mas que nem por isso deixa de ser um factor a ter em conta quando se lida com ela. Não creio que o Luís o tenha ainda percebido, encandeado como está pelo deslumbramento de ter só para si um objecto tão novo e apetecível. Nem vale a pena tentar explicar-lhe. Descobri, aos 38 anos, que nunca vale a pena dizer nada às pessoas. Lembro-me, aliás, de o Luís, em momento de maior lucidez, ter dito também qualquer coisa no mesmo sentido. Os erros fizeram-se para serem cometidos. Sem deixar nenhum de fora. Aqueles que não cometemos é porque não eram os nossos, mas

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os de outras pessoas. Falo por experiência própria, que nisto de erros considero-me imbatível. A minha vida pre- 148

sente é um conjunto de erros que teimo em perpetuar. Problemas que devia resolver, nem que fosse deitando uma moeda ao ar, reincido em deixá-los como estão. O meu drama é este: as únicas coisas que me proporcionam algum prazer são inquestionáveis erros. Sempre assim foi comigo. Uma intransponível dificuldade em encontrar o meio caminho entre a austeridade espartana e o deixa andar lusitano. Tomemos o caso do David. Conheci-o em minha casa, numa festa que dei no fim do ano. Vai fazer dois anos. Chegou com uns amigos e foi-me apresentado como o mais prometedor e o mais preguiçoso dos poetas da Village. Uma introdução inesperada. Ri-me. Ele riu-se também. Depois meteram-se outras pessoas. Creio que não voltámos a falar. No dia seguinte, ao fim da tarde, tocou o telefone. Do lado de lá, uma voz desconhecida, num tom deliberadamente artificial, declamando o monólogo do Harrilet. Depois parou e disse: fala o mais prometedor e preguiçoso dos poetas de Greenwich Village. Fiquei a gaguejar de surpresa. Mas logo a seguir o David recuou uma pequena quadra rimada, muito simples, quase infantil, em que me convidava para jantar. Resolvi não levar a coisa a sério. Fiz small talk. Falei da festa da noite anterior. Perguntei-lhe como é que tinha sido o começo de ano para ele. Trocámos algumas frases. Não tínhamos na realidade muito de que falar. E ele insistiu. Jantar. Fui um pouco difícil. Disse que nessa noite não podia. Na noite seguinte também não. E para os outros dias, sim, podia voltar a falar; claro que eu não me importava. O que ele fez, cerca de uma semana mais tarde. Nesse intervalo não me lembro de ter pensado uma única vez no David. Como de costume, demasiado absorvida nas minhas batalhas profissionais. Dessa vez a graça foi outra. Imitou a voz de um italiano e comunicou que um prometedor e preguiçoso poeta da Village tinha feito reservas para dois nessa noite na Alessandros Tavern. Durante o jantar, o David dedicou-se exclusivamente a fazer charme. Saía-lhe com facilidade. Ocorreu-me que me estavam a ser recitadas as palavras de sedução que nestas circunstâncias habitualmente se dizem a caminho da cama. E que eu, com esta idade, já ouvi mais do que uma vez. A única diferença estava em que o David as dizia com uma elegância acima da média. Achei-lhe piada. Estava a agra, dar-me que ele quisesse seduzir-me. Qualquer coisa a dizer-me que não éramos apenas dois estranhos sentados a uma mesa trocando prólogos para um one night stand. Apetecia-me ser sedu- 149

zida; mas decidi que não havia de ser ainda naquela noite. Funcionando certamente a familiar preocupação de não ser tomada como uma mulher sem homem, presa fácil, na ânsia de que a adoptem. A doerem-me ainda algumas experiências nessas bandas. Encorajei-o um pouco. Muito pouco. Apenas o suficiente para que prosseguisse. Nada mais. Mas depois ele fez 18O graus na conversa. Deixou cair o nome da Cathy. E contou,me tudo. Os esgotamentos nervosos. O episódio de drug addiction. Os traumatismos da cura. As constantes entradas e saídas em casas de saúde. Disse que os pais da Cathy eram relativamente prósperos. Pagavam as contas. Mas nunca apareciam. A filha não os suportava. Especialmente a mãe. O David explicou que funcionava um pouco como pai e mãe adoptivo. Mas era mais do que isso. Viviam

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juntos. Como homem e mulher. Quando ela não estava em casas de saúde. Evidentemente uma relação incompleta. A broken relationship - dizia ela - Scott and Zelda. E sorriu. O sorriso que já então me fazia derreter. Perguntei-me por que raio é que ele me estava a contar tudo aquilo. jogar na compaixão? Ou simplesmente para que mais tarde não pudesse ser acusado de me ter escondido a verdade? Depois do café propôs que fôssemos até casa dele. Comecei a construir razões para não poder ir. Mas ele disse: it's all right, we'll just talk. Acedi. E foi isso que fizémos. Falámos. Durante horas a fio. Abrindo-nos mutuamente os nossos mundos. Nessa noite. Lembro-me de no dia seguinte ter decidido que não queria ter absolutamente nada a ver com o David e com a Cathy dentro ou fora do hospital. Mas a verdade é que a imagem do David me ocupava como se estivesse ensombrada. E dei comigo a repetir o nome dele, como se fosse música. Inundada de uma indefinível e mole ternura. Os sintomas todos. Os erros tinham, na realidade, começado já na noite anterior. Agora, a conduzir o carro, o Luís e a Clara a dormirem, no silêncio desta imensa noite americana, prometo-me que as coisas vão mudar. Não que eu acredite em autopromessas. Mas desta vez vai ser diferente. Estou demasiado acossada por demasiadas coisas para que possa permitir-me o luxo de uma vez mais fugir e adiar. Trata-se de mudar de atitude. Sob pena de me desintegrar mentalmente. No fundo, chegou o momento de tomar as rédeas à vida. Curioso como, no fundo, ninguém suspeita o estado de crónica insegurança em que eu vivo. Para os outros somos sempre feitos de aparências. Falam no meu êxito profissional. Pois bem: porque não avançar decididamente por esse caminho? E 15O

também, não ter vergonha de ser como sou. Não pedir desculpas. Recusar a ida para Chicago e depois aguentar o embate. Pôr termo à mutilada relação com o David, que me está a destruir aos poucos. Deixar de inventar desculpas por não ir a Portugal ver a mãe. A tall order indeed. Mas é certo que tenho de ser mais agressiva. Deixar de me apagar sempre que exista o perigo de ferir os outros. Para isso preciso de reagrupar as minhas forças. Preciso de espaço. Espaço físico também. Preciso de estar a sós comigo mesma. Dizer ao Luís, quando chegarmos a N.Y, que não posso continuar a tê-lo lá em casa. Não posso ou não quero? Tanto faz. E se começasse desde já? Parar o carro. Acordar o Luís. Comunicar-lhe que estou cansada. Pô-lo ao volante. Páro o carro. O Luís como um desenterrado. E queixa-se ele de insônias. Diz que tem de apanhar um pouco de ar. Anda para trás e para a frente na berma da estrada. Bebe uma Coca-Cola morna. Fuma um cigarro. Depois arrancamos, sem que a Clara tenha dado por nada. Um pesadelo pela noite, pela madrugada, pela manhã dentro. Mais de vinte e quatro horas de marcha e quase nenhumas paragens. Cafés, sandwiches, nada mais. O sky1ine de NN. apareceu-nos era já quase meio-dia. Depois, mais uma hora de trânsito. Disse-lhes que podiam ficar lá em casa nesse dia para descansarem. A Clara respondeu que não, que ia para casa duma amiga. Ao Luís já eu tinha dado parte da minha decisão. Que ele aceitou sem protestos. Mas creio que tirou a conclusão errada. Achou que era por causa da Clara. Disse que voltava para o hotel. Disse ainda que, de qualquer maneira, não devia demorar-se já muitos dias nos Estados Unidos. 151

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XVI U ma campainha. Ao longe. Como uma voz rouca que me chegasse de uma outra existência. Ergui-me. À minha volta apenas a escuridão trespassada pelo grito estridente do telefone a tocar. Durante um instante sem perceber onde estava. A janela grande à minha frente. Restos da claridade baça do céu de N.Y. Procurei o botão da luz. Não o encontrei. E o raio do telefone, como se estivesse a anunciar o fim do mundo. Levantei-me. Aos tropeções. Tacteando. Os dígitos verdes do vídeo dizendo,me que eram nove horas e treze minutos. Não sei o que faria sem tanta precisão. Agarrei o aparelho. Encostei o aus- cultador ao ouvido. A voz da Clara. Fresca e viçosa como uma manhã de Primavera. Apenas para me dizer onde estava. Dar a morada. O número de telefone. E perguntar se não queria ir cear com eles. Disse-lhe um momento, não tinha com que tomar nota. Mais umas voltas pela sala. Acabei por descobrir o interruptor. Desencantar papel e caneta. Diz lá - disse eu. A Clara repetiu. Perguntei que horas eram. Só para ganhar tempo. Ela disse nove e um quarto. Eu disse: o.k., estou aí pelas dez e meia. Perguntei, pergunta deslocada: e a Maria José? A Clara disse que a levasse se quisesse, a ela tanto lhe fazia. A frieza foi total. Pousei o telefone. Cear com eles. Quem seriam eles? Crescendo-me uma ponta de irritação. Uma nota sombria a poluir o meu despertar. Terá sido por isso que me saiu aquela da Maria José? Dei uma volta pela sala. O caos em que tinha deixado as minhas coisas. Fui até ao quarto da Maria José. A porta entreaberta. Entrei. Ninguém. Na cozinha, abri o frigorífico. Vazio. Bebi um copo de água. Fui para a casa de banho tratar de uma barba de quase dois dias. Como se me tivessem colado chumbo nos pés. Tomar dois Optalidons? Num estômago vazio. Tive medo. Um whisky idem. Táxi até à Village. Apenas serniacordado: percurso irreal, as 153

pulsações da cidade como fragmentos de um sonho distante. O Yellow Cab depositou-me no número que eu tinha indicado. Toquei à campainha. Nada. A rua totalmente deserta. Algum mal-estar. Senti-me num filme do Scorsese. Voltei a tocar. Reparei então que estavam a chamar-me de uma das janelas de cima. A Clara. Disse para eu esperar só um momento. Que descia já. Apareceram passados quase cinco minutos. A Clara mais uma mulher e dois tipos. Trocados rapidamente os nomes. Como se não importassem. Entrámos para um carro estacionado ao fundo do quarteirão. A amiga da Clara ao volante. Um dos tipos à frente. No banco de trás, o outro tipo, eu e, ao meio, a Clara. Americanos. Viagem curta. Depois instalámo-nos num bar a rebentar de fumo e gente. Música de estremecer. Entretive-me a comer aperitivos minúsculos. Depois achei que já podia aguentar um whisky. Que, no entanto, me caiu como um corpo estranho e abrasivo. Acentuando a escorregadia sensação de irrealidade em que me senti dissolvido. A já familiar sensação de nada daquilo estar na verdade a passar-se comigo. Espectador distante e desinteressado. Um quarto de hora ao balcão até vagar uma mesa. Trouxeram-nos então club sandwiches e uma garrafa de mau vinho branco italiano. Passando-me por cima, a conversa fluía solta e sem sequência. Com a naturalidade de pessoas que se conhecem. Ou que são do mesmo universo. Que não o meu. Mesmo assim, tentei participar. One of the boys. Perguntei ao tipo sentado ao meu lado o que é que ele fazia. Disse que era fashion designer. Como se fosse uma evidência. E mais não disse. A Clara atirou-me uma bóia. Explicou que o Martin - o nome da criatura - era um inovador, um designer de vanguarda, que estava agora a lançar-se; preparando para o Outono a sua primeira passagem de modelos. Mas ninguém pegou também nessa ponta. Fiquei sem saída. Eu, que a poucas coisas sou mais indiferente do que à moda. Que não ao estilo; mas isso, cada

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um deve ter o seu e não certamente um Vivaldi de quatro estações. Não obstante, um difuso mal-estar pela clássica banalidade da minha indumentária. Enquanto eles se ostentavam com os últimos tiques e toques da moda. Recortados de uma das revistas que a Clara costumava comprar. Era sem dúvida esse o sentido do cabelo curto, rigorosamente aparado para dar à cabeça a aparência de um quadrado perfeito. Ou, do outro tipo - que dava pelo nome de Jonathan - longo e revolto no topo, decaindo para a frente, mas cortado rente à cabeça nos lados e na nuca. Era sem dúvida 154

também esse o sentido do fato completo branco, casaco de bandas mínimas, que o Jonathan usava por cima de uma camisa de marinheiro. Ou do casaco do Martin, relíquia dos anos 5O, que ficaria grande ao Robert Mitchum. Casaco acompanhado de uma camisa castanha, quatro botões abertos para uma camisola interior azul. A amiga da Clara - chamava-se Stella - exibia a simplicidade de um tailleur branco, as mangas propositadamente longas, meio-arregaçadas; colete assertoado e T-shirt. Calças pretas leves e informais como um pijama. Sapatos pretos picotados, de atacador. Tudo isto coroado por um indiscreto arco-íris de colares de fantasia. Por mim, fui bebendo; copos de anestesia para iludir o mal-estar. Foi assim que a segunda garrafa da zurra- pa italiana ficou quase só por minha conta. E as coisas passaram não a estar bem, mas a serem-me indiferentes. Depois, de novo no carro, encostei a cabeça ao ombro da Clara. Perguntou-me se eu me sentia bem. Se não tinha bebido um pouco de mais. Tudo a andar à roda; de resto estava o.k. Mas não estava. Quando entrámos em casa da Stella, senti a familiar, inconfundível pressão no vértice do estômago. Perguntei onde era a casa de banho. E vomitei com a facilidade de uma criança. A Clara bateu à porta da casa de banho. Perguntou se podia fazer alguma coisa. Depois saí. Fui ter com eles à sala. Todos a admirar o freak. Sala que tinha, aliás, uma curiosa particularidade. Não continha um único móvel. Embora se encontrasse profusamente decorada. Objectos pousados no chão. E as pessoas também. Sentadas em enormes almofadas de tecido cor-derosa igual às cortinas. Um requinte. Suponho que o estilo em causa poderia designar-se por fundamentalismo japonês. O que eu mais tarde observei à Stella. Que, em vez de se rir, optou por uma reacção séria e reticente: well, not really. Mas naquele mo- mento limitei-me a perguntar-lhe se não teria qualquer coisa de muito simples que se comesse. Cream crackers, por exemplo. E se me arranjava um whisky, para me desintoxicar da zurrapa italiana. Vieram bolachas Ritz, manteiga, um prato e uma faca. O whisky era JB. Os jovens praticavam uma dieta menos convencional. Serviram-se apenas de cocaína. Excepto a Clara, que disse: 1 never touch the stuff. Insistiram. Não a conheciam com certeza muito bem. Ela voltou a dizer que não. E o mais extraor' dinário é que explicou: 1 don't need it, 1 feel great ali the time. E esta, Luís? Um anúncio da campanha Reagan antidroga coexistindo com o concerto do sniff-sniff em volta. Como te propões, 155

rapaz, circular neste labirinto? A Stella tinha posto a tocar um disco da Sade. Que entretanto chegou ao fim. Dando lugar à Susan Vega. My name is Luka. lf you hear sornething late ar night. A conversa oscilando entre o estado da moda e o estado da música contemporânea. Just don't ask me how 1 am. E depois das ar- tes em geral. Todos os estados. Todos artisticamente

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orientados. My name is Luka. Fazer coisas. lt's not your business anyway. Mas não qualquer coisa; o numerus clausus das coisas que se devem fazer. Aí pelo terceiro ou quarto whisky, voltei a sentir-me em paz comigo e com o mundo. Quase. Foi nessa altura que disparei a do fundamentalismo japonês. Convencido de que ia ter graça. Mas, como diria do riso o Bergson. O que é que dizia o Bergson? O humor e pertencer ou não pertencer ao grupo. A seguir engataram numa conversa sobre o Casablanca. Quer dizer, sobre a roupa que usavam as personagens do Casablanca. Nada do banalíssimo play ir again Sam. Apenas roupa. Nem uma palavra sobre a garrafa de água de Vichy que o Claude Rains reduz a simbólicos estilhaços. Roupa. Ou round up the usual suspects. Ou A Marselhesa em coro vibrando liberdade. Trapos. Ou a deliciosa neurose sonâmbula da Ingrid Bergman. Fatos. Aproveitei um pequeno buraco na conversa para perguntar se tinham reparado que o avião no fim parte para Lisboa. Serei o primeiro a admitir que não se trata de um elemento de informação particularmente estimulante. Mas, pelo menos, nada tinha a ver com a roupa. Ninguém lhe pegou. Levantei-me. A minha coluna com hábitos de outros confortos. Dei uma volta pela sala. Interessei-me pelos únicos objectos que se erguiam mais de vinte centímetros acima do chão. Os quadros, um pouco de tudo. De abstractos medíocres a falsos naifs. Fotografias de primeiríssimos planos de inidentificáveis partes do corpo humano. Cartazes de concertos pop. E, numa parede, dezenas de fotografias, ordenadas como se estivessem num álbum. Colocadas com pioneses. Legendas em baixo, inscritas na própria parede, trabalho de canetas ponta de feltro finas e de todas as cores imagináveis. Muitas fotografias da Stella em palco. As mais variadas poses. Indumentárias. Cenários. O inconfundível esquálido despojamento do teatro de vanguarda. Em algumas das fotografias o Jonathan, esse sempre à paisana. Deduzi que teria qualquer coisa a ver com os cenários. Arrastei a minha almofada para junto da Clara. Voltei a sentar-me. A Clara deu-me a mão. A minha gratidão quase abjecta. Felizmente não se notava. Esperava eu. 156

E com isto, dolorosa caminhada, eram quatro e meia da manhã. Começaram a falar em ir dormir. A Clara disse-me: ficas comigo, está bem? Perguntei-lhe se a Stella não se importava. A Clara disse: que ideia. Como se fosse a mais absurda das interrogações. E devia ser. O Jonathan, pelos vistos, vivia com a Stella. O Martin, ou não tinha onde ficar, ou era tarde de mais para sair. juntou várias almofadas e construiu um ninho no chão da sala. O quarto em que estava a Clara seguia a lógica da casa. Colchão sem suporte, assente no chão. Candeeiro pousado no soalho. Duas ou três pilhas de livros e outras tantas de revistas, idem. Uma televisão e um vídeo também no chão. Em frente à cama, dois posters gigantes. O David Bowie e um nu masculino, que algumas pessoas diriam artístico. Alternativamente: um perfeito Apolo contemporâneo. A cama coberta com uma colcha lilás. Retirada a qual, foram-nos revelados lençóis igualmente lilases. Mas o mais extraordinário era o facto de o quarto não ter porta. Dava para um corredor, para o qual davam os outros quartos e a sala. Nenhuma das divisões tinha porta. Sublinhando o óbvio, disse à Clara: e porta, não há? Ela disse que não tinha importância. Para que é que é precisa uma porta? A Stella tinha-lhe explicado que a ideia era as pessoas permanecerem abertas umas às outras. Não pareceu, no entanto, muito convencida, a Clara. Eu disse que não me queria abrir a ninguém senão a ela. A Clara disse que a ela não a incomodava muito. De qualquer maneira, fazer amor era a coisa mais natural da vida e, na verdade, não havia nenhuma razão para nos escondermos. Eu disse: e que tal no

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passeio público? A Clara encostou-se a mim. Passou-me os braços à roda da cintura. Deu-me um beijo. E disse: um dia experimentamos. Por agora contentamo-nos com não haver portas. Eu disse: pode ao menos apagar-se a luz? Não me apetece ter de olhar para aqueles dois Adónis. E a Clara disse: se prometes que conheces o caminho mesmo às escuras. Ri-me. E ela riu-se também. Riso que depois abafámos noutro beijo. Porque, de facto, não havia porta. O raio da porta. A falta dela. A certa altura a Clara perguntou o que é que eu tinha. Eu disse que não tinha nada. Ela disse: é a história da porta. Eu disse que não sabia. Que me sentia como se estivesse cercado. Com claustrofobia. Ergui-me na cama. A Clara também, Os nossos vultos visíveis numa indeterminada luminosidade que flutuava pela casa, Disse que me apetecia um cigarro. A Clara disse que os cinzeiros tinham fi-

cado lá dentro. Eu disse que me apetecia dar uma volta. A Clara deu-me um beijo. Como se quisesse fazer-me desistir da ideia. As pontas do cabelo dela roçando-me a cara. O perfume. No entanto, uma parte de mim ausente daquele abraço. A Clara voltou a perguntar: mas o que é que tu tens? Eu disse que não sabia. Ela disse: está bem, vou contigo. Para chegar à porta tivemos praticamente de passar por cima do Martin. Perguntou onde é que íamos. A Clara sussurrou-he: it's o.k., we're going out for a bit of fresh air. A luz da escada não funcionava. Descemos os três andares iluminando o caminho com o meu isqueiro. Sombras disformes e fantásticas em movimentos ondulantes. Um filme do Siodmak. A Clara ainda me disse, quase em segredo, como se alguém pudesse estar a ouvir: isto é um disparate. Já na rua, perguntou-me: e agora? Ainda somos assaltados. Cinco e quarenta e cinco da manhã. Lembrava-me de um anúncio ao lado do bar onde tínhamos ceado, em que se proclamava: Breakfast: from 6 a.m. Media dúzia de quarteirões. Andando quase no meio da rua, Evitar surpresas. Fomos os primeiros clientes. Pedimos cafés e nada mais. Expliquei ao empregado que o resto encomendávamos um pouco mais tarde. Fui comprar cigarros a uma máquina junto à porta da entrada. Quando voltei, a Clara declarou que se sentia gelada. Eu disse que não estava frio. Ela disse que era com certeza do cansaço e da falta de sono. Silêncio. Quem seria o primeiro a cortá-lo? Foi a Clara. Com a pregunta que insistia em voltar com a obsessiva persistência de um refrão: o que é que se passa contigo? O que se passa comigo? - repetiu eu. É tudo; este dia de hoje; e depois, ainda não recuperei da má disposição; e depois, a noitada; e toda a noite a falarem de coisas que não dizem nada. E onde raio é que foste desencantar esta gente? A Clara explicou-me que durante uns tempos tinha frequentado um curso de design em Londres; a Stella andava no mesmo curso; foi lá que se conheceram. Um pouco bizarros, não são? - disse eu. Não gostas deles - disse a Clara - eu tinha a certeza. Respondi que não, que não era bem isso, apenas que não conseguia comunicar com eles. Pois eu acho - disse a Clara - que eles são as pessoas mais fáceis e mais simples deste mundo. Fáceis e simples é que não são de todo - disse eu - cheios de pretensões artísticas; e sentido de humor, nenhum. Começo a estar farta - interrompeu a Clara - dessa mania do sentido de humor. O.k., esquecemos o sentido de humor; mas explica-me en- 158

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tão o que é que eu faço no meio das Stellas, dos Jonathans e dos Martins? A Clara não percebia: o que é que tu fazes? Porque é que hás-de fazer alguma coisa de especial? Eu disse que ela não estava a entender: o problema é que são pessoas com interesses, mentalidades, hábitos para mim completamente estranhos. Não vês que eu não tenho nada a ver com aquilo? A Clara disse que eram pessoas como quaisquer outras. Tudo uma questão de as conhecer. Eu disse que não me parecia que fosse. Ela sentia-se à-vontade no meio daquilo tudo; eu não. Ficámos catados, a olhar um para o outro. Ocorreu-me que, na realidade, não estava a falar apenas dos amigos da Clara, mas da própria Clara. Não das minhas dificuldades com a Stella, ou com o Jonathan, ou com o Martin, mas da própria dificuldade da minha relação com a Clara. Seguro, no entanto, de que isso não lhe estava a ocorrer a ela. No que, uma vez mais, me devo ter en- ganado; é que a Clara acabou por me perguntar à queima-roupa: se assim é, se eu estou tão bem com eles, se estamos tão bem uns para os outros e tu não os suportas, explica-me como é que consegues andar comigo? Eu disse que era diferente. Ela perguntou: diferente como? Eu disse que duas pessoas podem isolar-se, formar como que uma unidade. Mas isso não significa que depois possam entrar no quotidiano um do outro. A Clara bebeu mais um golo de café. Pediu-me um cigarro. Acendi-lho. Ela disse: e o que é que queres fazer? Ir para uma ilha deserta? Tom de desafio, de enfado também. Estou apenas a tentar explicar - disse eu - que as coisas não são tão simples como tu imaginas. Pronto - disse a Clara - as coisas não são tão simples como eu imagino; e depois? O que queres que eu faça? Não consegues ao menos perceber como tudo isto é difícil para mim? Não consegues perceber que estou a atravessar um momento mau; a minha vida em estilhaços, numa espécie de noite sem fim. Ela levantou um pouco a cabeça, olhou para mim e disse: lamento muito; se calhar era duma mãezinha que tu precisavas; não sou candidata. Levou o cigarro à boca. Expeliu o fumo. E já reparaste - disse a Clara - andamos juntos há uma data de dias e vens agora dizer-me que estás numa noite sem fim. Tentei explicar. Mas a Clara não estava interessada. No fundo - disse a Clara - para ti é como beber uma meia dúzia de copos até ficares bem disposto. Sexo, sedativo, anestesia - não havia sequer amargura naquelas palavras. Mas foram-me atiradas como uma acusação. Disse-lhe: vou contar-te duas ou três coi- 159

, 7--- Y, /,, . W,;, sas para ver se tu entendes o que se passa comigo. Faleí-lhe de coisas de que nunca lhe tinha falado. Falei-lhe da Marta. Da separação. Dos extremos de abjecção em que me sentia caído. De noites sem rumo pelas ruas de Lisboa, de KY., ou em casa, a sós, sem conseguir dormir, a pensar, a repensar e a repensar. A tentar que tudo aquilo fizesse algum sentido e a não conseguir. Disse-lhe que ela não podia saber o que era chegar a este ponto na vida e a vida desabar-nos subitamente em cima. Entrando já, sem pudor, no império da autocompaixão. Que começou por ser apenas mais um peão atirado para aquele jogo de xadrez emocional. Mas depois, a deixar-me comover pelas minhas próprias palavras. Até a Clara me interromper com uma frase espantosa. O que tinha ela a ver com tudo aquilo? Respondi-lhe que nada, se não quisesse. Ela recuou um pouco. Disse que eu lhe podia contar, se isso me ajudava; e que, pelo menos, ela ouvia. Mas os meus problemas - disse eu - são intransmissíveis, não é isso? Tenho de os sofrer sozinho; de os resolver sozinho. Pedimos outros dois cafés. Tinha entrado entretanto um cliente. Motorista de táxi. Carro estacionado à porta. Conversando com o empregado. Acerca de uma cena de violência na noite anterior. Barba por fazer. Blusão de plástico preto sobre uma t-shirt. Jeans. Enquanto ingeria uma dose

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substancial de pancakes. Um prato com ovos estrelados e salsichas. O cheiro enchendo a sala. Disse-lhe que duas pessoas como nós têm de construir qualquer coisa em comum, que seja de ambos, um ponto de encontro afectivo, sentimental, sei lá. O que não se pode é ao mesmo tempo entrar e não entrar na vida do outro. Sem,olhar para mim, como se estivesse a falar apenas consigo mesma, a Clara disse: e eu convencida que era possível duas pessoas estarem i .untas com toda a naturalidade, sem se traumatizarem. Eu disse: il n'y a pas d'amour heureux. A Clara disse: palavras. Eu disse: Aragon. A palavra amor. Nunca eu a tinha usado. Nem ela. Arriscar? Não. Deixei cair. Em vez disso, perguntei-lhe: porque é que andamos juntos, do teu ponto de vista? A Clara respondeu: sinto-me bem quando estamos juntos; pelo menos até agora. Eu disse: só isso? Para mim chega-me - disse a Clara. Chega-te? - disse eu. Espanto. Incredulidade. Mas pareceu-me inútil continuar por aquele caminho. Forçar respostas que obviamente não me iam ser dadas. Acabar por ouvir as respostas que não queria ouvir. Decidi passar por cima do que ela tinha dito. Não abandonar a lógica que eu mesmo 16O

tinha proposto. A verdade - disse eu - é que têm sido fáceis as coisas entre nós; resta ver como será na vida real. Ela disse: então o que se passou até aqui não foi a vida real. Não era bem uma pergunta. Antes uma monocórdica constatação. Ferida? Seria possível? Decidi pôr termo à conversa. Decidi capitular. Peguei-lhe na mão. Eu próprio sem perceber onde é que tinha querido chegar com tudo aquilo. Inexplicavelmente, apetecia- -me usar as palavras: meu amor. Pedir-lhe desculpa - sem saber bem de quê - e jurar-lhe que não tinha querido magoá-la. Mas resisti. Limitei-me a dizer: bom, mudamos de conversa. Ela disse: porque é que tudo tem de ser tão complicado contigo? Achei que ela não estava à espera de uma resposta. Apenas a apaziguar, a encaminhar as coisas para um ponto em que a culpa de tudo decorresse de injustificados fantasmas meus. Decidi que a deixaria seguir esse caminho. Permitir que ficássemos por ali. Tendo lançado os dados, ia abster,me de continuar o jogo. Não aprofundar. Não pensar. Não pensar demais. Não pude, contudo, deixar de pensar que o desenlace estava errado. Mas vinte anos de lógica e de pretensa profundidade tinham-me conduzido a nada. A Clara disse: mas que cara; vá, um sorriso, vai tudo correr bem; podes acreditar; tudo em que eu me meto sai bem. Olhei para ela. Dúvidas, muitas. Mas tinha pelo menos a certeza de que não queria que acabássemos ali, naquele momento, àquela mesa, exaustos, numa espécie de negativo perícito da vibração em que durante os últimos dias tínhamos vivido. Fiz-lhe uma festa no cabelo, depois na cara. E disse coisas ridículas como: se pudesses imaginar como adoro o teu cabelo, a tua pele; é como se sentisse um choque eléctrico. Um choque eléctrico de prazer. Ela sorriu. E depois eu disse: mas é complicado, muito complicado, tudo isto. O perigo tinha passado. Sentia-se no ar. Passado o espectro da ruptura. Até o risco de nos magoarmos, Ela disse: vamos pensar só no presente; amanhã logo se vê e nos dias seguintes vê-se quando chegarem. Enquanto sentirmos os tais choques eléctricos. Depois saímos. A Clara disse que lhe tinha passado o cansaço. Queria passear um pouco. As lojas ainda fechadas. Mas já o movimento de carros nas ruas. Em Washington Square sentámo-nos num banco. Em silêncio. Ela encostou a cabeça ao meu ombro. Depois disse: afinal estou a ficar com sono; vamos dormir? Em casa, apenas a Stella. Na cozinha a arrumar para um canto a loiça do pequeno-almoço. Disse que ia sair. Tinha um ensaio. 161

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Combinou qualquer coisa com a Clara para o fim da tarde. Deitámo-nos, a casa toda em silêncio. A luz pura da manhã entrando-nos pelo quarto. Fizemos amor. Sem forças já para a paixão a que nos tínhamos habituado. Mas com uma suave ternura nova. E adormecer foi obra de um instante. 162

XVII S ono e cansaço nenhuns. Apenas uma incontrolável excitação. A vontade de fazer coisas. Qualquer coisa. Ocupar as mãos e o espírito. Tudo menos estar parada. Atrás de mim, dia e meio sem dormir. So what? Recupero esta noite. Deitar-me às três da tarde ia, de qualquer maneira, lançar no caos os meus metabolismos todos. As infindáveis horas de condução ontem à noite e esta manhã deram,me pelo menos tempo para pensar. E voltar a pensar. Passar-me em revista. Pôr a casa em ordem. O presente. O futuro também. Afinar os meus planos. Uma vez mais: eu e os meus planos. Mas desta vez são modestos, que os anos têm-me ensinado a esperar pouco de mim e do mundo. São também menores as desilusões. Tracei-me objectivos. Apenas dois ou três. Para reduzir o risco de fracassar. Após o que me senti melhor. Senti-me viva. Senti-me pronta para a luta. É mais fácil assim, quando se sabe o que se quer. E se quer apenas o que se pode alcançar. Sim, estou de um pragmatismo abjecto. Vou pelo menos tentar: não é coisa que me saia com facilidade. Como todos os planos, também este começa amanhã. Por hoje, apenas os preliminares. Dei-me ao luxo de desperdiçar uma eternidade a arranjar-me. Banho de espuma e uma revista até a água estar quase fria. Depois, sentei-me à mesa, no meu quarto, em frente ao espelho. Sequei o cabelo. Rolos. Ensaiei penteados. Fiz e desfiz maquillages. Várias vezes mudei de roupa. Até me dar por satisfeita. Na medida do possível. O realismo é a minha nova polí, rica. O Luís a dormir lá dentro. O Luís que se deleita na sua própria destruição. Que recusa os elementos mínimos de norma- lidade. Esta coisa de dormir durante o dia. E de penar como uma alma perdida pela noite dentro. A desculpa de ter problemas que lhe cheguem e sobrem. Não sei se gosto de estar na minha pele. Mas tenho a certeza de que por nada neste mundo queria estar 163

na dele. E agora, com o insolúvel problema chamado Clara, que, suponho, é apenas a ponta visível de um insolúvel iceberg. Sentei-we na cama e liguei para Lisboa. Para casa da mãe. A voz sempre cansada, como um atleta no fim da corrida. Estava bem. Razoavelmente bem. As well as can be expected, como diriam our British cousins. É o problema número três. Aquele a que acorrerei eventualmente, Eventualmente. Ainda não decidi. Calculating bitch, chamou-me uma vez um americano, grosso, no wornento em que passámos de amantes a inimigos. Mas isso foi há muito tempo. Há várias eternidades. Na altura, deixou-me a pensar. Um dos inconvenientes de viver só é raramente me chegarem ecos da visão que os outros têm de mim. Sou, portanto, obrigada a goverriar-me com os pequenos indícios que as boas maneiras dos outros não chegam a filtrar. Naquele caso, acho que o tipo não tinha razão. Só por causa deste hábito de tentar ordenar as coisas em sequências que para mim façam algum sentido. Não é tanto um hábito, como uma necessidade. Necessidade iiiiposta pela minha irredutível desordem interior. Creio que enlouquecia se de tempos a tempos não fosse capaz de parar e olhar com distância, com um pouco de frieza, para a minha vida e tarribém para as pessoas que nela estão. Depois saí. Com cuidado, para não acordar o Luís. Provavelmente

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desnecessário, estando ele com certeza encharcado em drogas para dormir. A mala aberta. Roupa espalhada um pouco por todo o lado. Objectos vários também. Na casa de banho tinha,se esquecido dos seus instrumentos de toilette. Incomoda-me esta subversão da ordem, que foi por mim estabelecida. Perturbante a força destes silenciosos testemunhos de intrusão alheia. Espero que logo à noite ele tenha voltado já para o hotel. Se calhar fui, e estou ainda a ser, um pouco cruel com o Luís. Cruel, não. A palavra justa é egoísta. Mas a verdade é que ninguéra sobrevive sem um pouco de egoísmo. E os dias que se seguern vão ser para mim de grande intensidade. Não posso dar-me ao luxo de esbarrar com pessoas, ou outros obstáculos, no espaço onde, como um gladiador, tenho de afiar o ânimo para o combate. Não posso sentir-me vinculada por obrigações que não sejam para comigo. Elevador até à garage. Tinha telefonado também à Jariliett. Já devia ter saído do hospital. De casa atendeu o Peter. * conversa pouco me revelou nas palavras que foram trocadas. * tem, num excesso nervoso de euforia, deixou-me, no entanto, apreensiva. Vou ter de ir visitá-la. Ganhar coragem para o fazer. 164

Um dia destes. Da última vez que lá estive, combinámos que este Verão havíamos de fazer em casa dela, mas a meias, um barbecue para todos os nossos amigos comuns. Começámos mesmo a compor uma lista de convidados. Dei comigo a recordar-me dessa tarde. Desse plano. Dei comigo a lutar contra uma lágrima de comoção. Entrei no carro. Estava com fome. A batalha habitual com o trânsito. Alguns quarteirões à frente, arranjei um lugar para o carro. Tinha decidido experimentar um novo restaurante. Uma cafeteria que me servisse àquela hora. Sentei-me a uma mesa numa sala praticamente vazia. Olhei para o menu plastifi, cado. Li-o em diagonal várias vezes. Nada que me apetecesse. Optei por uma roast beef sandwich e um café. Tinha comprado o Times num newstand. Abri-o em cima de mesa enquanto a comida não chegava. Continuavam os Iran/Contra hearings. E Newark queria abrir um hospital para doentes com AIDS. Mas tinha dificuldade em concentrar-me. O olhar a fugir-me para irrevelantes pormenores gráficos. O cabeçalho: "All the News That's Fit to Print". Late Edition. New York: today, hazy, hot and humid, breezy. High 9O-97. Tonight, warm, humid. Low 7O- 77. 3O cents. A ideia tinha sido comer, fazer compras mínimas e voltar para casa. Fazer arrumações, ver qualquer coisa na TV e ir para a cama logo que escurecesse. Mas ocorria-me agora o risco de encontrar o Luís mais a sua tralha e a sua neurose. Dar-lhe talvez um pouco de tempo para sair. Podia entretanto telefonar à Susan. Aparecer se ela estivesse livre. Estava. Sempre livre. A preparar-se já para jantar. Ficámos pela cozinha a conversar. Falei-lhe por alto da viagem. Moderadamente interessada. Um processo como outro qualquer de abrir caminho para aquilo de que eu, no fundo, lhe queria falar. Depois sentei-me na mesa, em frente à Susan. Ela a comer, eu com um martini. A Susan tinha-se gabado de que fazia os driest martinis in Manhattan. Pela amostra no meu copo, era certamente verdade. Depois pegou ela na conversa. Falando dos seus últimos projectos para uma nova linha de cerâmica. As palavras da Susan a recuarem para um remoto pano de fundo. Incapaz de lhe prestar atenção: o meu espírito abandonado ao balouçar suave de um barco à deriva num oceano calmo. O David. Chocando-se dentro de mim o desejo de o ver e a determinação de lhe falar a sério. Por momentos caí numa espécie de sonho acordado em que tentava ter com ele uma conversa séria e ele me ignorava, dedicando-se a deliciosos preliminares de sedução. Foi nessa altura que a Susan me disse: 165

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wake up, kid, what's the matter with you? Respondi-lhe que nada. Levantei-me. Perguntei se podia fazer uma chamada. A Susan na cozinha a lavar a loiça. Os dedos tremiam-me a marcar os números que conhecia de cor. E o David respondeu-me com um espanto de alegria. Onde é que eu estava? N.Y.? Tão depressa de volta? Eu não lhe tinha dito ao certo quanto tempo me ia demorar. Nem ele mo tinha perguntado. Sim, estava de volta. A minha reacção deliberadamente reservada. Perguntei se podia aparecer; precisava de ter uma conversa com ele. Achei que era importante não deixar de fora a expressão: conversa com ele. Perguntou a que horas é que eu ia aparecer. Olhei para o relógio. Disse aí pelas dez, talvez um pouco mais cedo. Pousei o telefone. A Susan surgiu da cozinha. Perguntou: hey, what was that all about? Positivamente deliciada. E eu a hesitar, no momento da verdade. Digo, não digo? Decidi que dizia. A verdade verdadeira, se quisesse ser honesta comigo mesma, era que tinha decidido ir a casa da Susan apenas porque me apetecia alguém com quem pudesse falar do David. Contei-lhe tudo. Ela ouviu sem me interromper. Com toda a sua atenção, como se tivesse absorvido a óbvia importância que aquilo tinha para mim. Nenhuma da leviandade com que reagia sempre aos meus supostos sweethearts. No fim, perguntei-lhe o que é que achava que eu devia fazer. A Susan respondeu: aquilo com que eu me sentisse melhor. Reacção típica: honestidade; grab the bull by the horns. Como se a honestidade fosse uma receita mágica, uma estrada de sentido único sem encruzilhadas de hesitação. Eu disse que era esse o drama. Aquilo com que racionalmente me sentiria melhor era o que menos me apetecia fazer. Sourids familiar - disse a Susan. Aconselhou-me ainda a deitar fora a racionalidade e as pretensões de moralidade a fazer aquilo que instintivamente me apetecesse fazer. Se fosse um homem, achava eu que estaria com aqueles problemas todos? Eu disse que não era um homem. E que, de qualquer maneira, aquilo não tinha absolutamente nada a ver com moral. Levantei-me. Fui até à janela. Lá em baixo os carros com os faróis já ligados, restos ainda de luz do dia morrendo em sombras na rua. Depois virei-me para ela e disse: e andei eu estes anos todos convencida de que na minha situação, divorciada, essa história toda, a pior coisa que me podia acontecer era apaixonar-me por um tipo casado. A Susan disse que era como se fosse. Eu disse que era pior. Competir com uma inválida. E como é que se luta contra o grande sacrifício que o David está a fazer? 166

Sacrifício é palavra que ele utiliza a cada passo. A Susan disse: bullshit. Eu disse: bullshit ou não, a realidade é esta. A Susan achou que o gajo era apenas another regular jerk. Eu disse que não era verdade. Que não era. Os sacrifícios são reais. Pelo menos até certo ponto. E depois havia nele um lado desarmantemente ingénuo e sincero. Um lado infantil. Um egocentrismo paradoxalmente comovedor. A absoluta recusa de olhar a sério para a vida. Tenho por vezes a sensação de que para ele a vida é uma espécie de interminável recreio. A Susan decidiu ser didáctica. Lembrou que eu tinha começado por dizer que queria passar a pensar sobretudo em mim. E ali estava eu a falar do David. A falar sem fim. A inventar-lhe desculpas. A cobri-lo de explicações. O conselho dela era este: eu punha as cartas na mesa; ditava as regras do jogo; com a minha força - foi a palavra que ela usou - eu ia ver, conseguia do David o que quisesse. Voltei a sentar-me. Disse-lhe que infelizmente era capaz de não ser assim tão simples. A vida das pessoas está cheia de tortuosas raízes subterrâneas. Depois, ainda que a sorrir, perguntei à

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Susan o que era essa história da minha força. A Susan disse: umas pessoas têm-na, outras não. E, para o caso de eu não ter ainda reparado, ela informava-me de que havia em cada um dos meus gestos, dos meus movimentos, das minhas palavras, até no meu silêncio, uma espécie de força implícita. Eu disse: que exagero, eu que estou breaking up inside. That has nothing to do with it - disse a Susan e perguntou se eu queria outro martini. Respondi-lhe que não, que precisava de estar lúcida nessa noite. A Susan achou que era uma péssima ideia ir falar com o David depois de ter guiado não sei quantas horas e ter passado a noite em branco. Eu disse que, pelo contrário, me sentia excepcionalmente lúcida e alerta. Durante um bocado, não dissemos nada. Depois ela virou-se para mim, sorriso indicando mudança de tom, e disse que eu tinha de aguentar o David pelo menos até ela o poder conhecer. Roída de curiosidade. Maria's secret lover. Como num romance. E por que raio é que eu o trazia escondido? Depois perguntou-me que tal é que ele era na cama. Apostava que era fantástico. A pergunta não me causou propriamente embaraço. Apenas a instintiva recusa de discutir o David naqueles termos. Mas respondi que era o.k. Resposta que ela não aceitou. Come on, you can do better than that. Não respondi. Mas depois co- mecei a sorrir. A Susan perguntou o que era. Eu disse: prometes que não te ris? Ela disse: cross my heart. Eu disse: sabes qual é 167

quase sempre a primeira coisa que lhe digo quando nos enfiamos na cama? O quê? - disse ela. Eu disse: não vais acreditar, mas promete que não te ris. Prometeu outra vez. Eu disse: David, you forgot your socks again. A Susan começou por conter o esboço de um sorriso. Mas numa fracção de segundo explodimos ambas às gargalhadas. Convulsivamente. Num descontrolo total. As lágrimas a caírem-nos pela cara. Ela a repetir: David's sexy socks. Depois fui à casa de banho retocar a maquillage, que tinha ficado desfeita. Quando acabei, disse à Susan que ia andando. Na porta, entre despedidas, ela disse que lhe parecia que eu não tinha pensado ainda o suficiente no assunto. Para não fazer nada de que viesse a arrepender-me. E a última coisa que lhe apetecia era ter-me um dia destes a chorar-lhe no ombro. Meti-me no carro. Cinco minutos até ao David. Toquei à campainha. O coração numa cavalgada. E eu sem saber se era de alegria se de angústia. Abriu-me a porta com um sorriso e um beijo. A sua indumentária de poeta em repouso. Frase dele. Calças brancas, camisa larga às flores, solta para fora das calças. Sandálias. Passou-me o braço direito pela cintura. Os nossos corpos juntos um instante. E disse: 1 missed you, imagine that, 1 actually missed you. Naquela maneira sempre de dizer as coisas entre a ironia insolente e a verdade que fere. Sentei-me no sofá da sala. O David foi arranjar bebidas. Depois sentou-se na outra ponta do sofá. Ostensivamente afastado. E foi nesse momento que desceu sobre mim, como uma chuva cinzenta a que não pudesse fugir, um cansaço profundo, visceral. Como se tudo no mundo, tudo na minha vida, tivesse deixado de ter importância. O desejo apenas de fechar os olhos e renunciar. Peguei com ambas as mãos no copo gelado. Estremeci um pouco. Senti-me só e frágil, ameaçada por indefinidos perigos. Recitei-me mentalmente: assim não, Maria José, vá, um esforço, um safanão. Levantei-me. O David disse que eu parecia desenterrada. A zombie, a living dead. Em meia dúzia de palavras expliquei-lhe as minhas últimas quarenta e oito horas. O David disse que o turismo era a coisa mais enfadonha que a sociedade moderna tinha inventado. Depois disse que eu estava a enervá-lo, com os meus passos de um lado para o outro da sala. Se não me importava de ser uma menina bem comportada e de me sentar.

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Paternal. Tudo como dantes. Senteime. Mas disse-lhe de chofre: David, tenho de falar contigo. Ele respondeu que também ele. E disparou num cerrado discurso so- 168

bre os infortúnios da Catky. Ainda tentei interrompê-lo duas ou três vezes. Mas, como de costume, deixei-me dominar pela voz, pelas palavras, pelo talento de contador de histórias que ele tão bem sabe utilizar. A Cathy tinha entretanto regressado da clínica. Mas vinha em péssimo estado. Incompetent fools, deixaramna sair assim. Ou então queriam pura e simplesmente ver-se livres dela. Em casa, passou os dias no quarto. Alternando entre o silêncio total - sem responder sequer ao David - e ataques de um choro contido durante horas a fio. Eu não podia imaginar o que era para ele estar deitado no quarto, sozinho, à noite, e ouvir o lamento lancinante e interminável do outro lado da parede. Telefonou para a clínica. Falou com o médico. E foi-lhe dito que, na fase actual, a Cathy só podia beneficiar em ficar exposta a um ambiente natural. Doctor knows best - frase com que o David encolheu os ombros. Ao quarto dia aconteceu. O David estava a trabalhar. De repente gritos tremendos, descontrolados, como se tivesse aberto a porta do inferno. Na casa de banho, a Cathy estendida na banheira, tudo embaciado da água escaldante em que ela se tinha mergulhado. A água tingida de vermelho. Vermelha de sangue. Sangue dos pulsos que a Cathy tinha cortado. Depois, aterrorizada talvez com o que tinha feito, com a visão do sangue, perdeu o autodomínio de que uma pessoa precisa para poder suicidar-se. Na realidade, o que o David disse foi: para se suicidar decentemente. Retirou-a da água. Atou-lhe os pulsos com ligaduras improvisadas. Estendeu-a na cama. Secou-a. Enrolou-a no roupão. Ambulância. Hospital. Onde passou a noite toda. Dai levaram-na para a clínica. Quase inconsciente com os calman' tes. Sentada ao lado do David, a Cathy não disse uma palavra. Apenas um olhar vazio. Não imaginas o que isso me perturbou. O corpo dela como um fardo sem vida. Na clínica, o médico tentou desdramatizar o incidente. Disse que se tratava dum risco que é preciso correr em casos destes. O David furioso. Para eles tratava-se dum caso. Não há seres humanos naquelas goddamned institutions. Apenas casos. E a solução tinha sido - lamentou-se o David - depositarem-ma nos braços. A mim, um irredutível hipocondríaco; basta-me pensar numa doença para logo sentir os sintomas. Uma imagem, disse o David, que desde essa noite não o largava; a expressão suplicante que a Cathy lhe atirou no momento em que, já na clínica, se despediram em silêncio. Parecia um bicho em sofrimento sem saber porquê. De tal maneira a imagem o ficou a ensombrar que passou a noite a 169

compor uma poesia à volta do desespero daquele olhar. O que mais o revoltava era a impotência que sentia perante tudo aquilo. Não poder fazer nada. Não ter forma de comunicar com ela. Palavras, frases, explicações curtas, longas, racionais, emocionais, simples gestos, simples olhares. Nada, nenhuma forma de comunicar. Podes imaginar - disse o David - o que foram os meus dias no meio daquilo tudo. A Cathy fechada num mundo aonde não é possível entrar. Mas com a sanidade intacta; viver na solidão desse mundo devia ser a mais terrível experiência a que um ser humano pode ser sujeito. Espraiando-se depois o David sobre o tormento dos seus dias nestes últimos tempos. Quando acabou, ocorreram-me várias coisas

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que me apeteceria dizer-lhe. Como por exemplo que havia naquela história, tal como era contada, mais do sofrimento dele do que da Cathy. Mas não disse. Ao fim e ao cabo, o que é que me interessa a Cathy? E tentar modificar o David? Para quê? Mesmo que fosse possível. Que não era. E portanto não disse. Em vez do que, cobardemente, estendi o braço e peguei-lhe na mão. E comecei a fazer-lhe festas na mão. E a dizer: poor David. Uma voz, cada vez mais distante, a sussurrar as promessas todas que eu me tinha feito. O David estendeu-se no sofá e pousou a cabeça no meu colo. Para receber carícias. Que recebeu. Como um cão abandonado. Nada que eu não conheça de cor. Este virar as cartas. A intuição do momento em que lhe deixa de ser arriscado abandonar o leme. Do momento em que pode entregar-se desarmado numa passividade quase feminina. Um dos ónus do hábito. As situações que se repetem. Um dia, em idêntica postura, eu disse-lhe que me sentia quase como se estivesse a fazer amor a uma mulher. O David respondeu que não me queixasse; era sobretudo nesses momentos que eu estava verdadeiramente a tocar no poeta. O David pediu um beijo. Dei-lhe um beijo rápido. Que não o satisfez. Disse-me que não era assim. Que não queria ser beijado apenas pelos meus lábios. Recitou: 1 got yotir body, but 1 also want your soul; Bob Dylan said that, or words to that effect. Respondi-lhe que me sentia exausta. Que queria ir para casa. Que estava praticamente a dormir em pé. Empurrei-lhe lentamente a cabeça para cima. Ele voltou a sentar-se. Levantei-me. O David perguntou porque é que eu não dormia lá em casa. Evitava o caminho todo uptown. Apanhar o trânsito dos teatros que deviam estar a acabar àquela hora. Eu disse que hoje não. Não sei que inflexão terei dado à frase, mas o facto é que ele respondeu prometendo que o 17O

convite era só para dormir. Não me tocava. Respondi-lhe que ele só me tocava quando eu queria. A mesquinha vingança de quem não tinha tido força para vender a sua mensagem. Depois disse-lhe que não. Que precisava de ir para casa, de acordar na minha cama, de sentir logo de manhã que podia assentar os dois pés no chão. Que estava ainda numa espécie de nuvem. O David disse: o.k., foi apenas uma ideia, não insisto. Só insistia em me levar a casa. Entrámos no carro. Não consegui evitar que ele fosse. Nem sequer tentei com grande convicção. Não consegui sobretudo evitar que me causasse satisfação o facto de ele querer acompanhar-me a casa. O que acontecia pela primeira vez. Não voltei a dizer-lhe que precisávamos de falar. Nem ele me perguntou o que é que eu tinha para lhe dizer. Mas tinha ouvido. Disso não me ficava a menor dúvida. Disso era prova o facto de ele ir ali sentado ao meu lado. Prova foram também as palavras que me disse pelo caminho. Nenhuma da displicência ou da ironia a que me tinha habituado. Em vez do que, alguma insegurança. Como o esforço de quem subitamente perdeu o equilíbrio. Não sei se senti remorsos. Ou pena. Ou desconforto. Talvez um pouco. Mas aguentei-me. E para além de tudo isso, o prazer que me causava saber-me desejada e não apenas adquirida. Os jogos que as pes' soas jogam. Sabendo, não obstante, que são jogos. A certa altura, o David colocou a mão no meu joelho. E por aí se ficou em leves carícias, como se estivéssemos a viver os primeiros momentos de um primeiro encontro. Duas pessoas que se desconhecessem ainda. Depois, à porta de casa, despedimo-nos. Ele tinha mandado parar um táxi. Entrou. Abriu o vidro da janela. Fez-me prometer que no dia seguinte íamos jantar juntos. Respondi que talvez. Subi no elevador. Percorri o corredor do meu andar. Da ponta oposta, uma TV aos uivos. Desporto pela noite dentro. Um dos vizinhos a debater-se com o calor, certamente na companhia dum six-pack. Abri a porta.

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Acendi a luz. Do Luís apenas um bilhete sobre a mesa dizendo para onde tinha ido. Agradecendo. Prometendo que me telefonava. A casa em silêncio. Eu e os meus objectos. Enfim sós. Sem corpos estranhos. Sem interrupções. Sem desculpas. Tudo preparado para o regresso ao quotidiano. A realidade. Tudo preparado. E eu? 171

XVIII S egunda vez que dormimos juntos duma ponta à outra da noite. Por isso talvez o sono pouco repousante que foi o meu. Dormir e acordar em ciclos intermitentes de agitação. Aquele corpo estranho ao meu lado. Mas a Clara despertou a transbordar de vida. Trepidante. Empurrando-me, forçando pressa no meu calvário matinal. Mas onde ia já a manhã? Uma da tarde quando nos levantámos. A Clara rondando-me sem cessar, perguntando se eu ainda demorava muito. A imagem dela reflectida no espelho, ao lado da minha máscara feita de cansaço e de creme branco da barba. A irritar-me aquele frenesim. Mas não disse nada. Nunca digo. Quase nunca. Só perguntei porquê a pressa toda? Como resposta ouvi: apetece-me ir às compras; vá, despacha-te. Depois desistiu. Quando acabei de me arranjar, fui encontrá-la no quarto, sentada na cama, a fazer coisa nenhuma. Saímos. Fui enfiado num táxi. Que ela insistiu absolutamente em pagar. Assim me encontrei à porta do Tiffany's. O nome que ela tinha dado ao motorista. Durante uns momentos a olhar para as montras. Perguntei-lhe se tinha visto o Breakfast at Tiffany's. Não sabia. Com a Atidrey Hepbum. Não, não se lembrava. Como era a história? Disse-lhe: deixa lá, não vale a pena. E não valia. Comigo naquele estado de irritação. Faltavam-me dois ou três cafés. Dois ou três cafés a separarem-me da espécie humana. A Clara disse que ia ver roupas. E eu, o que é que queria fazer? Ainda me apeteceu dizer que podia ir com ela. Mas não tinha sido convidado. Coisa que obviamente não lhe ocorria. Separámo-nos. Fui andando pela Quinta Avenida. A transbordar de turistas. A bonomia serena de quem deixou as quotidianas tensões noutras paragens. Entrei num estabelecimento de comes e bebes, estreito e comprido. Parecia uma carruagem de caminho-de-ferro. Sentei,me ao balcão. Trouxeram- 173

-me um café. A aguada habitual, numa caneca de quarto de litro. Acendi um cigarro. Senti-me um pouco melhor. Um pouco mais acordado. Um pouco mais humano. Depois andei a ver montras. Entrei em duas ou três livrarias. Por fim na Doubleday. Tinha combinado encontrar-me lá com a Clara. Entretive-me a folhear os paperbacks, secção das novidades. Tentar adivinhar se algum me interessaria. Pelas capas. Como se estivesse a apreciar mercadorias num supermercado. Pela prosa publicitária nas contracapas. Por dois ou três parágrafos escolhidos ao acaso. Uma boa meia hora demorou a Clara a aparecer. Encontrei-a a olhar para um expositor de livros. Aparentemente interessada. Não resisti. Disse-lhe: subitamente letrada? Ela sorriu e disse: já viste como tu és? O que te vale é que estou bem disposta. Eu a reincidir. Uns dias atrás, ela tinha pegado num dos meus livros. Começado a folheá-lo. E eu tinha dito: não tem bonecos. Zangou-se dessa vez. Arrependi-me. A frase vil a produzir ecos nos destroços que restavam duma consciência que em tempos tive. Por outras palavras, nem sequer a terapia pela agressão eu me permitia. A Clara vinha carregada de sacos ostentando os nomes das boutiques por onde tinha andado a distribuir o seu dinheiro. De um dos sacos retirou um embrulho mínimo. Que me estendeu sem uma palavra. Pequena encenação de

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mistério. Compacto e pesado. Comecei a desembrulhar. Uma caixa. Que abri. Relógio do Cartier. Quadrado, de ouro, mostrador de letras romanas, corrente castanha de crocodilo. E só me saiu: mas isto custa uma fortuna. A Clara disse: achei que era giro, não resisti. Fiz-lhe uma festa na cabeça. Dei-lhe um beijo. E disse que era uma maravilha. Um disparate, uma coisa daquelas. Coloquei o relógio no pulso. Guardei o antigo num bolso. Depois saímos de mão dada. Como adolescentes. Just a teenagers in love. Senti-me subornado. Um pouco. Mas senti-me também movido. Comovido. Porque me pareceu que aquele pequeno objecto criava entre nós um laço novo. Porque me pareceu que através daquele pequeno gesto ela me estava a dizer qualquer coisa que não era capaz de dizer com palavras. Passeando, sem rumo certo, pela gigantesca teia de homens e cimento que é a ilha de Manhattan. Passava um pouco das cinco quando nos sentámos ao balcão de um drugstore. Uma bebida fresca e uma sandwich. Foi então que decidi dizer-lhe. O seguinte: ia passar por casa da Stella para buscar as minhas coisas. Queria instalar-me num hotel. A Clara limitou-se a dizer: o.k., fazes 174

o que quiseres. Não havia surpresa nas suas palavras. Mas havia desaprovação. Mesmo assim, não deixei de lhe colocar a pergunta: porque é que ela não vinha comigo. Estava perfeitamente bem, em casa da Stella. Porque é que eu? Seguindo-se uma breve troca de palavras. Que não foram litigiosas. Apenas frias. Uma hostilidade que não se queria declarar. Tentei explicar-lhe que não me sentia bem em casa da Stella. Se lhe apetecia outra noite como a anterior? A Clara limitou-se a repetir: muito bem, faz o que quiseres. Depois calámo-nos. Mas acabei por dizer: bom, então vamos, não vale a pena continuarmos nisto. Pegou na car- teira. Levantou-se. Parada e em silêncio, à espera que eu pagasse a conta. No regresso, o táxi a explodir de animosidade contida. Fazer a minha mala foi simples. Não tinha quase chegado a desfazê-la. Sítio para pôr as roupas, nenhum. A Clara sentada na cama a fumar um cigarro e a assistir. Depois levantou-se e foi telefonar. Eu a tentar perceber o que se passava. Mas da voz da Clara, que me chegava abafada e distante, consegui apenas perceber que falava em inglês. Fechei a mala. Coloquei-a no chão ao lado da cama. Voltou a Clara. Perguntei-lhe então o que é que combinávamos. Ela respondeu que não sabia; o que eu quisesse. Eu disse: deixa-te disso, está bem? A Clara perguntou: deixo-me de quê? Que raio, é que se passa contigo? Explicou então que iam todos (aquele plural outra vez) para casa dum tipo que tocava num conj .unto; ia passar-lhes umas gravações que tinha acabado de fazer. Peguei na mala e comecei a andar em direcção à porta. Momento em que fiz mais uma pergunta idiota: que género de música? Sei lá - disse a Clara - música. Eu disse: o.k., dá-me a morada. Separámo-nos na rua. Cada um para seu lado. O edifício onde hoje é o Chelsea Hotel foi, no século passado, o mais alto de Nova lorque. Trivialidades abundando no meu guia de bolso. Curiosidade destinada, suponho, a sublinhar a natureza efémera das coisas. Sendo, no entanto, uma criatura chá, limitar-me-ei a notar a fachada imensa de tijolo vermelho; alguns arrebiques coroando janelas, portas e o topo do edifício - como se alguém tivesse um dia sonhado que assim estaria, de facto, a criar um castelo; um ball de entrada povoado com os fantasmas que por ali passaram, Wolfe, Warhol, Dylan, outros; o corredor largo e frio que conduzia ao quarto; o meu quarto, espartano, mas com uma gloriosa varanda de ferro para a frente. O empregado tinha-me dito que seguindo em sentido inverso pelo mesmo corredor se ia dar ao apartamento de um artista. Pela re- 175

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verência com que o nome foi declamado era obviamente imperdoável que eu o não conhecesse. Percebi, pelo menos, que se tratava de um pintor. Temos alguns hóspedes permanentes - disse o empregado - mas apenas artistas, ou gente especial. Aristocratas, à sua maneira. Se calhar, sempre era um castelo. Seja como for, o apartamento - disse o empregado - era como um sonho irreal, tão fabulosa a imaginação expendida na sua decoração. Masterpiece. Expressão várias vezes deixada cair para que a importância do seu significado nem à minha manifesta boçalidade pudesse escapar. Depois o homem entregou-me a chave e desejou-me uma agradável estadia. E eu sem conseguir decidir que gratificação se dá a um empregado que culturalmente nos põe no lugar. Arrumadas as minhas coisas, achei que era cedo ainda para o serão musical que ia ensombrar a minha noite. Peguei na Clepsidra, que desde Portugal jazia abandonada no fundo da mala. Rumo ao elevador. Mas parei junto às escadas. Encostei-me à grade de ferro. Para baixo, um poço de vertigem emprestado pelo Hitchcock. Desci as escadas. Detendo-me em cada um dos andares. Lançando o olhar para os corredores. Não vi nenhum mito. Nenhuma legenda viva. Ou morta. Na realidade, não vi ninguém. Dediquei-me, não obstante, com afinco à culturalíssima tarefa de tentar absorver um pouco da atmosfera. Contagiar-me de arte. Mas não senti nada. E foi assim que, ao entrar no El Quijote Bar, me encontrava tão ignorante e insensível como tinha saído do quarto. Remediar isso com o Camilo Pessanha e dois martinis. Do princípio ao fim, num só fôlego. Mesmerizado. Genial alquimia de sons. Palavras como se fossem notas de música. Foi a primeira poesia, a Inscrição, que me fez trazer o livro. " Eu vi a luz em um país perdido. A minha alma é lânguida e inerme / Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído! / No chão sumir-se, como faz um verme ... ". Até o verso final. "Adormeci. Não suspireis. Não respireis." Fechei o livro. Deixei-o na recepção juntamente com a chave. Na rua apanhei um táxi. E fui dar com este espectáculo. A Clara sentada num banco alto, do qual só com as pontas dos pés tocava no chão. Headphones a taparem-lhe os ouvidos e microfone na mão. A cantar. Tentando. Meia dúzia de palavras e depois parava. Pedia para recomeçar. Quando me viu à porta, fez-me um gesto breve com a mão. E continuou. Uns quinze minutos mais tarde, pousou o microfone, retirou os headphones, levantou-se do banco e disse que precisava de parar um pouco. Veio ter comigo. Deu-me um 176

beijo. Perguntei-lhe o que é que se passava. A Clara disse que era uma brincadeira. Virou-se para um tipo alto e loiro, que aparentemente dirigia as operações, e disse, como se pedisse uma confirmação: just fooling around. Era bizarra a sala onde estávamos. Um estúdio em miniatura. Paredes forradas de material isolador. Aparelhos electrónicos em todo o lado. Dois ou três eram gravadores. Os restantes, por mim, podiam muito bem ser instrumentos de navegação espacial. Sala de um pequeno apartamento. Uma outra divisão, que era ao mesmo tempo quarto e escritório de trabalho; estantes enchendo três paredes de livros e de pastas de arquivo. Tudo aquilo se passava no décimo sétimo andar de um prédio moderno junto às docas, a ponte de Brooklyn ao fundo, à direita, como no Sorry, Wrong Number do Anatole Litvak. Mas, ao contrário da Barbara Stanwyk, a Clara estava alegre, excitada, feliz. Quase irreconhecível. O tipo da música chamava-se Peter. Tinha surpreendido na voz da Clara não sei que fascinante timbre. Exactamente aquilo de que precisava para dois ou três momentos de

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backup vocal numa das canções. Quando cheguei, tinham completado já essa parte da ses- são. A pedido da Clara, o Peter passou de novo a gravação para eu ouvir. Achei que podia ser qualquer pessoa. Mas não fiz ne- nhum comentário. Só depois é que puseram a correr a fita com a Clara a tentar uma canção completa. Um simples divertimento - defendeu-se de novo a Clara. Olhou para mim a suplicar cumplicidade. Sorri. A cumplicidade possível. A voz da Clara, um pouco rouca, monocórdica, distante, quase ausente, não era, reconheço, inteiramente inadequada ao estilo Velvet Underground que por ali andava em abundância. Duvido, no entanto, que tenha assistido ao nascimento de uma nova Nico. Faltavalhe o insólito e gelado desespero. E o sotaque lusitano não tinha sequer a provocante fragilidade da Jean Seberg no A Bout de SouffIe. No entanto, aplausos gerais. Incluindo a Stella e o Joriathan, que estavam grossos. A audição das chamadas novas gravações havia já passado. Mas pela amostra do que a Clara tinha tentado cantar, o tom seria lúgubre e decadente; falando das vidas estranhas de estranhas gentes; música complexa, instrumentos cruzando-se numa espécie de polifonia desconexa, um toque apenas, em discreto fundo, de um ritmo repetido. Não daria para dançar. De um dos gravadores o Peter retirou uma cassette, que ofereceu à Clara. Cópia feita a partir do master. Sobre o qual a Clara voltaria a trabalhar nos dias seguintes. O Peter insistia. Ela 177

tinha de voltar, para continuarem. Um trabalho de aperfeiçoamento. Como um labor de ourives. De miniatura. A música hoje - disse o Peter - é toda feita assim. É preciso persistir, só então se fica a conhecer o resultado. A nossa música - disse o Peter - é tudo menos comercial. Não obstante, estava convencido de que havia um público para trabalhos daquele gênero, dirigidos à inteligência e só através dela às emoções. Ele devia saber. Produtor numa empresa discográfica. Sabia, aliás, tudo. O seu tom didáctico começando a irritar-me. Passámos para a outra sala. O Peter sentou-se à secretária, como se dali estivesse conduzindo os seus negócios. Explicou-nos que não tinha resistido à tentação de saltar para o lado de lá da barreira. O lado do trabalho criativo. Uma personalidade dominante, o Peter. Seria sempre o centro na companhia em que se encontrasse. Falava com firmeza e convicção. Com a arrogância de quem tem a cabeça bem arrumada. Uma familiaridade de tu cá tu lá com as palavras. Uma segurança de quem não precisa sequer de se deter para avaliar o efeito que produzem as suas frases. De quem tem uma relação fácil e cómoda com a realidade. De quem não se interroga sobre o seu direito de ser como é. À Clara tinha lançado como que uma asa protectora e tutelar. Ela fascinada. Toda aquela atenção que lhe estava a ser dispensada. E era, na verdade, para ela que o Peter falava. Para ela, intermináveis reflexões sobre música. Sobre a gênese e a evolução do Rock. Dissertou sobre Blues, RNB, Rockabilly. Virou a cadeira para o lado, ligou um computador, bateu várias tecias. Perguntou se sabíamos quantas versões tinha havido nos anos 5O do Blue Suede Shoes. A Clara, como se estivessem a falar-lhe de física quântica. Mas sem se refugiar atrás da expressão ausente que costumava adoptar nestes casos. E que eu, na posição de vítima, tão bem lhe conhecia. Fascínio, seria a palavra. Falta-lhe a humildade de não saber. Falta-lhe aprender com derrotas sofridas na tempestade dos anos. O Peter carregou em mais uma teclas. Desencadeando o zumbido vertiginoso de uma impressora. Alguns segundos e parou. O Peter cortou a tira de papel que tinha ficado impressa e passou-a à Clara. Explicounos que estava a escrever um livro sobre as origens do Rock. A Stella perguntou-lhe se tinha gravado as cassettes para a festa. O Peter respondeu que já estavam três, num total de

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quatro horas e meia, mas ainda ia gravar outra. Depois o Peter levantou-se, e sugeriu que se fosse comer qualquer coisa. Passou sobre os ombros da Clara um braço de 178

descuidada camaradagem e disse que ia mostrar à sua futura estrela o restaurante onde todas as estrelas da música devem ser vistas a jantar. Ligou o telefone ao atendedor automático. Programou o vídeo. Apagou as luzes. Saímos. No elevador, a Clara disse-me: estás chateadíssimo, não estás? Respondi que não. Insistiu: estás a odiar a ideia de ir jantar com eles. Eu disse que não fazia mal. Depois, já na rua, a Clara declarou que estava cansa- díssima. Que lhe apetecia a nice quiet diner. Que já tinha, de resto, combinado que iria jantar comigo. Foi mesmo um pouco rude. Suponho que sem querer. Só a Stella protestou. Só a Stella insistiu pela companhia da Clara. O Peter disse que nos dava bo, leia. A Clara e eu sentados no banco de trás. Dei-lhe a mão. Gesto da ternura que eu sentia. Mas, ao despedirmo-nos, o Peter disse: now don't make yourself scarce. E a Clara respondeu: 1 won't, you'll grow tired of me yet. Calor e humidade mortais. Lembrei-me de uma vez a Clara me ter dito que gostava do calor. Que a fazia sentir-se mais viva. Que a fazia tomar consciência da realidade física do seu corpo. Cada um dos poros da pele em activa combustão. Frases ditas em diferente contexto. Parte dos ritos quando dois corpos se preparam para mutuamente se descobrirem. Falei-lhe nisso. Recordei-lhe o momento. A andarmos no passeio. Algures perto do Chelsea. A Clara sorriu. Deu-me a mão. Disse: estás sempre a lembrar-te de pequenas coisas que aconteceram, de coisas que se disseram. Perguntei-lhe se ela, pelo contrário, estava sempre a pensar no que ia acontecer. Respondeu que ainda menos. Só pensava no momento presente. E no momento presente - disse * Clara - estou com uma fome que comia um cavalo. Eu disse: * primeiro restaurante que aparecer com um ar simpático. Acabámos por encontrar uma esplanada cheia de gente. juventude animada entre bebidas e conversa, como se a noite fosse para gastar sem pressa. já tinha passado a hora do jantar. Conseguimos apenas que nos servissem omoletes e salada. Depois de termos encomendado, a Clara disse: passamos a vida a comer à pressa; amanhã, não, amanhã não podemos, mas depois, vamos descobrir um restaurante bom. Eu disse que os restaurantes bons custavam uma fortuna e o meu dinheiro estava a acabar-se. A Clara respondeu que não fazia mal; pagava ela. A Clara com um apetite espantoso acompanhou a parca refeição com pão com manteiga em abundância. Comendo ambos em silêncio. Uma garrafa de vinho branco consumida entre os dois. No fim, a Cla- 179

rã declarou que se sentia um pouco tonta. Deliciosamente. Voluptuosamente tonta. A palavra é minha. Mas o olhar foi dela. Foi então que eu disse: então, o que é que fazemos? Não sei, o que tu quiseres - disse a Clara. Chelsea Hotel? - foi quanto eu arrisquei. Cheisea Hotel - confirmou a Clara - mas primeiro quero um café, senão ainda te desmaio nos braços. Eu disse: sempre. E vieram cafés. Depois levantámo-nos. Ir a pé até ao hotel. Ligeiríssima brisa, que a Clara baptizou de deliciosa. Sempre as mesmas palavras para as mesmas situações. E eu a achar que simplicidades daquelas lhe iam bem. Ou antes, não resistindo, eu, a complicar as coisas, decidi que terá certamente de haver na simplicidade um re- côndito encanto. Apreciar o encanto, que nem todos os dias me permito tamanha liberalidade. A Clara perguntou-me que horas eram. Meia noite e meia. A hora a que a noite verdadeiramen, te começa. A hora

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em que a vida, como uma planta nocturna, lança estranhas raízes na escuridão incompleta das cidades. E eu - disse a Clara - que costumo deitar-me às onze. Uma des, sãs - disse eu. Uma dessas - confirmou a Clara. Mens sana. A culpa é tua - disse a Clara - acho que estás a corromper-me. In corpore sano. Estou a fumar o dobro do que fumava. Seria possível que ela estivesse a falar a sério? Seria. Que não lhe conheço outro modo de falar. Parámos numa esquina. Luz encar- nada para os peões. Carros a passarem em fila lenta e espaçada. A saia da Clara ondeando leve ao vento. Virou-se para mim e disse: vamos fazer um pacto; tenho estado a pensar na conversa de ontem à noite. Achas que adiantou alguma coisa? Eu acho que não. Eu acho que falar nunca adianta nada. O pacto era que não havia mais dúvidas, nem mais perguntas, nem mais discussões. Daqui em diante - disse a Clara - vivemos momento a momento; o primeiro que se cansar diz adeus, sem cenas, sem recriminações. Dei comigo a dizer que sim. Vá, selamos o pacto com um beijo - disse a Clara. Beijámo-nos. Um casal de idade a passear de braço dado. Nenhuma pressa; todo o tempo do mundo. Pararam um instante a olhar para nós. A luz de novo en- carnada. Mas não vinham carros. Passámos para o outro lado. Dez minutos até ao hotel numa trégua de silêncio. Atravessámos o hall de entrada. A Clara ainda se deteve para atirar um displicente olhar às pinturas na parede. Subimos no elevador. Não resisti à tentação de lhe explicar o que era o Chelsea Hotel. A procurar impressioná-la. E a falhar. Mea intei- 18O

ra culpa. Tinha obrigação já de saber. O lado da Clara que eu me recusaria sempre a aceitar, mil anos que estivesse com ela. Uma espécie de letargia a que não sei se chame desinteresse. Se falta de sensibilidade. No fundo, incapacidade de ser surpreendida. Pecado mortal de ingratidão pela vida. Uma forma de anestesia chamada autoconfiança. E, para mim, uma porta de acesso à Clara que me permanecia vedada. O drama de não lhe descobrir fragilidade suficiente para me atear a ternura. A Clara abriu a porta que dava para a varanda. Olhou para baixo. Voltou para dentro. Depois deixou-se cair na cama e disse: podes abrir as hostilidades. Sentei-me na cama. Baixei-me para lhe dar um beijo. Ela disse: posso passar cá a noite, se me quiseres. Eu disse: não, não te quero. Ela disse: então vais ter de me expulsar. E agarrou-se à almofada, como se fosse uma âncora. jogos pouco habituais, a Clara aparentemente renunciando à clínica determinação com que habitualmente se lançava ao amor. Optei por não fazer qualquer comentário; não agitar fantasmas. Deixar-me deslizar por aquele inesperado momento. Comecei a desabotoar-lhe a blusa. A Clara interrompeu-me com um abraço: hoje não quero pressa; apetece-me passar a noite toda assim. Vamos fazer uma promessa. Perguntei-lhe qual era. íamos prometer que não adormecíamos antes de amanhecer. Amor sem fim. Duma ponta à outra da noite. Ficar exausta. O sono apenas quando estivéssemos esvaídos. Esvaídos ao ponto de não nos apetecer mais nada. 181

XIX L evantei-me cedo. Na casa de banho, tinha procurado dar-me um toque de sobriedade, que vincasse, no entanto, o extremo cuidado posto na minha aparência exterior. O resto ficava a cargo do Pierre: sempre a dizer que não o deixo tirar todo o partido do meu cabelo. Ia hoje finalmente obrigá-lo a mostrar do que é capaz. Sem me importar que o produto correspondesse fielmente à imagem que tenho de mim mesma. Hoje preciso antes da imagem

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adequada à missão que tenho de levar a cabo. Um saia-casaco de um azul inconfundivelmente conservador e uma blusa creme de seda por baixo. Se a isto chamar uniforme, não andarei longe da verdade. Pequeno-almoço, um sumo de laranja e uma torrada apenas. Na véspera, tinha telefonado ao Richard Clayton. Disse-lhe que precisava de falar com ele. Era urgente. Se podíamos almoçar no dia seguinte. Foi assim que nos encontrámos no Clos Normand. Cheguei antes da hora. Sentei-me no bar. O Richard acabou por aparecer ao mesmo tempo que o martini. Cumprindo as boas regras, começámos por falar de trivialidades. Os temas habituais. Perguntei-lhe pela família, Depois um pouco de teatro, cinema, livros. Por fim, férias. As dele seriam num isolado recanto de New England, longe da cintilante banalidade dos lugares na moda, onde o comum dos mortais se concentra para continuar a exercitar o seu gregarismo atávico. Queria descansar, ler, pensar e, evidentemente, bater umas bolas de golf e pescar um pouco. Shoot a few balls, a bit of trout fishing. Uma ponta, sempre amável, de fabricado snobismo, o Richard. Quanto às minhas férias, foi fácil. Bastou-me dar à nossa errática ciganagem o toque respeitável de um reencontro com a América verdadeira. Passámos à mesa, sob a orientação do Maitre D', que a cada um deixou um menu em francês. Deitei-lhe uma olhadela rápida e escolhi um consomé gelado e o 183

Canard aux figues. O Richard disse que queria o mesmo. Depois uma garrafa de Chateau Giscours de 75. Escolhido por mim. Os gestos adequados para exemplificar a minha perícia nestes exercícios de relações públicas. Pão tostado e patê maison enquanto se esperava. Foi então que abri as hostilidades. Comecei por dizer ao Richard que lhe ia falar de um assunto profissional, mas que o fazia como amiga e a título inteiramente informal. O Richard disse: shoot. Perguntei-lhe se a firma dele estaria porventura interessada em contar no seu activo com mais uma carteira de accounts. O Richard percebeu, como uma faísca. Vivemos ambos numa civilizada versão de selva onde a sobrevivência quotidiana depende da rapidez destes reflexos mentais. Acrescentei que, no entanto, essas accourits só poderiam ser transféridas em conjunto com a pessoa em quem os clientes depositaram a sua confiança. Algo de um pouco cómico, de um pouco encenado, nesta forma de apresentar a questão. Não era sequer muita a subtileza. Apenas a suficiente. Conheço bem o Richard: o seu sólido realismo adornado sempre por um barroco excesso de rodeios; como se fosse portador de uma fragilidade que não tolerasse o contacto directo com a aresta afiada dos factos. Comentou que era muito interessante o que eu lhe estava a contar. Depois perguntou quando é que tudo isso poderia acontecer. Disse-lhe que, praticamente de imediato. Digamos quatro a seis semanas. Perguntou-me do que é que estávamos a falar ao certo. Em termos de volume de negócios. Expliquei-lhe brevemente, mas com precisão, quais eram os clientes que estavam neste momento em vias de assinar contratos por meu intermédio e que, eu tinha a certeza, o fariam sempre comigo; quer dizer, com a firma para a qual eu trabalhasse. Dei-lhe uma estimativa do valor de cada account. Lembrei-lhe ainda, o que ele já sabia, que na nossa firma, o trabalho de angariar clientes era feito em termos pessoais. Por essa razão, eu tinha, ao longo dos anos, estabelecido uma rede substancial de contratos. Era mesmo de admitir que clientes já com contratos firmados acabassem eventualmente, para futuros negócios, por optar pela firma onde eu estivesse na altura a trabalhar. Ele disse: very impressive. E depois disse: but why should all this happen? Respondi-lhe que ia ser inteiramente franca com ele; poderia, por exemplo, dizer-lhe que nos últimos meses estava a constatar uma incapacidade de

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crescimento na minha firma. Que não me apetecia ficar amarrada a um empreendimento cujo futuro me parecia duvidoso. Or some such 184

crap. Mas a verdade era que, por razões várias, estava insatisfeita com as oportunidades que me eram dadas na firma. Não entrei em pormenores. Mas dei-lhe a entender que a ruptura com os meus colegas não estava ainda consumada; embora me parecesse que era uma questão de dias. Mas isso, evidentemente, nada tinha a ver com a resposta que o Richard me desse. A decisão estava tomada. Era inevitável, para que a minha posição não parecesse demasiado fraca, mendicante. O sorrimelier voltou a encher-me o copo. Maria José, um Grand Cru Classé, um pouco de intriga e as pontes cortadas. Playing for keeps. O Richard perguntou-me como é que eu podia ter a certeza de que os clientes não optariam pela firma. Respondi-lhe apenas que tinha a certeza. Pelo menos os mais importantes. O Richard disse: very interesting. Voltei a invocar a nossa amizade. Para explicar a razão pela qual me permitia fazer-lhe aquela sondagem sem que, na realidade, estivesse por enquanto em posição de assumir um compromisso firme. Compreendia, portanto, se ele não pudesse dar-me desde já uma resposta, ainda que preliminar, ainda que simplesmente pessoal, sobre qual seria a reacção da firma dele. O Richard respondeu que compreendia perfeitame@te. Depois fez vários comentários sobre o Canard, que tinha entretanto chegado, sobre o vinho, sobre o restaurante. Azulejos de Jean Pagés no meio de um décor rústico, que pretende evocar a Normandia. Mas estava certamente a pensar no que eu lhe tinha proposto. A examinar a coisa sob todos os ângulos. À procura talvez dum elo fraco. O meu coração a bater com força. No fundo, tinha a esperança de que ele me desse uma indicação qualquer. O apetite subitamente desaparecido. A minha, chamemos-lhe pomposamente, estratégia tinha sido cuidadosamente arquitectada durante as férias. Mas nunca me senti inteiramente satisfeita com ela. Parecia-me demasiado simples. E ao mesmo tempo demasiado ousada. Tinha-me inclusivamente ocorrido que a reacção do Richard constituiria uma boa prova quanto à viabilidade do meu plano. O Richard, com a sua experiência. Com a sua prática numa firma sólida que não gosta de correr riscos. Veio a sobremesa. O café. Só então se voltou ao assunto. O Richard disse que estava disposto a recomendar à sua empresa a minha entrada. Ficaria, no entanto, claro que isso nada tinha a ver com clientes que eu estivesse ou não a angariar para a minha presente firma. Antes de tomarem uma decisão, quereriam natural' mente conhecer a situação e as perspectivas desses clientes; mas 185

7---,'/ M6,--- apenas para tentar evitar conflitos com a firma onde eu anteriormente trabalhava. De qualquer maneira, a iniciativa e a decisão sobre clientes a propor seria da minha inteira responsabilidade. Creio que não contive um leve sorriso perante tão elaborada duplicidade. Respondi que estava inteiramente de acordo. O Richard continuou: também eles não poderiam oferecer-me um partnership; apenas uma posição de associate, com uma remuneração ligada ao volume de negócios que facturasse. Mas é claro - disse ainda o Richard - o partriership fica sempre aberto como uma hipótese para o futuro. Teria evidentemente de consultar os sócios, mas estava convencido de que o esquema tinha possibilidades de ser aceite. O Richard não deixou, no entanto, de notar que o gesto seria considerado por algumas

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pessoas como deontologicamente duvidoso. Mas, acrescentou: but after alI, it's done all the time. Não deixei de notar que, ao falar em partriership, o Richard tinha dito que também eles não mo poderiam oferecer. Também eles. O também deixado cair como um discreto sinal de que adivinhava qual o meu verdadeiro pomo de discórdiá com a firma. E foi assim que lancei a primeira pedra da minha grande traição. Era essa a expressão que me ocorria sempre que pensava no assunto. O Richard perguntou se podia dei- xar-me em qualquer lado. Agradeci, mas disse que tinha de fazer uma chamada. Despedimo-nos no lobby do restaurante. Eu disse que voltava a falar-lhe dentro de uma semana. E outra coisa, Richard, até lá, esta conversa não existiu, o.k.? O Richard respondeu: qual conversa? Liguei para o Tim, passando primeiro pela secretária, que quis saber sobre as minhas férias mais do que me apetecia contar-lhe. O Tim parecia bem disposto. Deu uma piada às pessoas - eu - que estão sempre com pressa de tirar férias. Voltam depois para ver os outros partir. Disse-me que este ano iam para o MiddIewest, acampar e a seguir para o rancho dum amigo da mulher. Finalmente, perguntou-me: what's up? Sugeri que falássemos over a drink. Quando? Hoje - disse eu. O Tim, no mesmo tom bem disposto, disse que era um homem casado e não podia portanto ser visto em bares a tomar cocktails com beautiful yoting women. Obviamente não tinha perdido o toque. Propôs que em vez disso eu fosse jantar a casa deles. Eu disse que sim. Depois o Tim perguntou o que é que se passava, que eu lhe soava preocupada. Dead serious. Respondi que não era nada de grave. Logo lhe contava. Combinámos encontrar-nos no news-stand à saída 186

do edifício. Às cinco e meia. Não me apetecia ir ao escritório; encontrar pessoas; responder a perguntas. Pousei o telefone. Saí. Várias horas à minha frente. De qualquer forma, queria ir a casa mudar-me. Telefonar ao David para o avisar de que não podia jantar com ele. Mas primeiro, algumas compras. Nada como uns trapos novos para me restaurar a confiança. Havia, no entanto, o problema do banco. Ia-me esquecendo. Mas não podia deixar de ser hoje. Meti-me num táxi. E consegui chegar antes de fecharem. Pedi para falar com o manager. Perguntaram-me qual era o assunto. O gabinete do manager era pequeno. Frios e impessoais toques de decoração. Uma jarra com flores. Não eram de plástico. Mas tão perfeitas que pareciam. Paredes cobertas de fotografias encaixilhadas representando dependências do banco em várias cidades do país. Sentei-me numa cadeira em frente à secretária. E expliquei-lhe. Expliquei-lhe que estava a pensar em contrair um empréstimo para adquirir uma quota na firma em que trabalhava, para me tornar sócia. O homem tinha o meu processo à frente. Olhando para ele, distraidamente, como se o conhecesse de cor. Não precisava portanto de lhe dizer qual era a firma. Nem qual o meu rendimento anual. Desnecessário falar-lhe também da incontrolável propensão daquela cliente para rapidamente o gastar em bens de consumo não duradouros. Perguntou-me em que quantia é que eu estava a pensar. Disse-lhe cinquenta mil dólares. Esperei que desabasse o telhado. Que o céu me caísse na cabeça. Que um raio me fulminasse. Que o tipo tivesse uma síncope. Mas, em vez disso, perguntou-me, numa voz sempre monocórdica, se eu podia oferecer uma garantia; um imóvel, títulos. Respondi-lhe que não. Mas que oferecia a garantia de um rendimento regular e relativamente elevado. Posição sólida numa firma em expansão. O gerente perguntou se eu poderia obter duas coisas: uma carta da firma confirmando a minha remuneração e um seguro pelo montante do empréstimo. Disse-lhe que evidentemente. O tipo disse que nessas circunstâncias não via nenhuma dificuldade. Após confirmação do seu director, poderíamos estudar as modalidades de

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amortização. Quando saí do banco, passava ligeiramente das quatro. Outro táxi até ao Saks. Não me restava tempo para a via-sacra das boutiques. Quando entrei em casa, mesmo em frente à porta, no meio da sala, um descomunal cesto de flores. Suponho que poderia ser classificado de ostentatório. De mau gosto no seu excesso. Mas o David costuma dizer que nada o fascina como o excesso. 187

Ao fim e ao cabo, o que seria da ópera se não fosse o excesso? Abri o envelope que vinha preso ao plástico transparente com um alfinete e retirei o bilhete do David. Não era bem um bilhete. Uma folha de papel branco dobrada em quatro em que ele me tinha improvisado uma poesia. Não certamente uma das suas obras-primas. Mas tinha sido escrita apenas para mim e continha um pouco da paixão e da ternura que ele sabe pôr nas palavras quando realmente quer. O meu primeiro impulso foi telefonar-lhe. Dizer-lhe que cancelava o jantar com o Tim. Que ia ter já com ele. Mas de primeiros impulsos está o inferno cheio. Em vez disso, abri o cesto. Retirei as flores e coloquei-as em jarras espalhadas pela casa. O bilhete do David, esse, foi para o pequeno pseudocofre com uma redundante chave, que conservo desde a adolescência, onde tenho acumulado os papéis que estão ligados aos momentos verdadeiramente importantes da minha vida. Vida sentimental. Se é que há outra verdadeiramente importante. Para o jantar optei por indumentária menos formal. Ainda que não menos estudada. Possivelmente mais. Coisas que se passavam com certeza apenas na minha cabeça. Mas a verdade era que nunca conseguia estar em casa do Tim sem ter a sensação de que a Glória me inspeccionava sem fim dos pés à cabeça. Como quem se pergunta: que raio é que o Tim pôde jamais ter visto nesta gaja? Foram, portanto, calças brancas, camisa de seda azul-turquesa, longa, e uma camisola de algodão grosso do mesmo tom para pendurar às costas. A camisa larga e solta até ser presa na cintura pelo cinto preto do Gucci. Ao telefone, o David aceitou sem protestos a minha mudança de planos. Aceita sempre. Limitou-se a dizer duas ou três piadas do tipo: sempre desconfiei que levavas uma vida dupla. Mas antes de desligarmos, insistiu para que no regresso eu passasse por casa dele. Não se deitaria sem que eu aparecesse. Se não apareceres, ficas com uma noite branca na consciência. E, de qualquer maneira, depois de uma dose maciça de suburban bliss tinha a certeza de que eu ia precisar dum antídoto. Disse-lhe que ia tentar. Só depois de desligar me ocorreu que me tinha esquecido de lhe agradecer as flores. O Tim nunca traz o carro para N.Y. O esquema habitual. A mulher distribui marido e filhos por comboio e escola respectivamente. Têm uma station e um English Sheepdog chamado Woody. Homenagem ao Woody Guthrie. Fomos no meu carro. Durante o caminho, falei ininterruptamente sobre as férias, sobre a viagem. O objectivo era não lhe dar abertas para me per- 188

guntar de que é que eu lhe queria falar. Quando o fizesse, não me apetecia ter um volante nas mãos e estar a lidar com trânsito; carros de todos os lados. Falei-lhe de como a viagem acabou por ser um pouco uma peregrinação quase sentimental a alguns dos sítios onde tínhamos estado no passado. Mas sem carregar dema' siado na nota. Evitar sobretudo que o Tim sentisse embaraço. Não me parece que ele tenha propriamente vergonha do seu passado. Ou de mim. De nós. Mas não posso deixar de notar a extrema relutância que ele tem em se referir

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a qualquer coisa que possa remotamente relacionar-se com a nossa vida em comum. Surpreendente, para um tipo tão seguro de si e das suas opções. Confesso que ao princípio isso me irritou. Mas habituei-me. Acomodei-me, como sempre. Atravessado o rio, metemos pela Expressway. Saídas para as sucessivas povoações, ligadas todas entre si como um infindável subúrbio de classe média próspera. Depois virámos à direita e começámos a atravessar ruas com filas ininterruptas de casas idênticas, imaculadas, pintadas todas de branco, com enormes relvados à frente. Garagens para dois carros. Inconfundível marco de afluência. Sebes a servirem de divisórias. Mas não suficientemente altas para impedirem as mulheres de através delas trocarem receitas, combinarem chás e bridge, comentarem as infidelidades dos maridos. E as delas. Deito-me a adivinhar, tanto quanto me é possível a partir do se- midourado ghetto urbano em que me encerrei. Não obstante, uma absurda nostalgia pela aparente paz e ordem desta América que não é a minha. A nostalgia que se pode ter por uma coisa de que apenas se conhece a imagem ideal. O Tim disse-me que pusesse o carro no driveway. A Gloria já tinha com certeza voltado. Depois, a cena que era de esperar. As crianças vieram ter com o pai, contando em atropelo coisas que tinham feito nesse dia. A Gloria à porta. Nunca percebi como é que o Tim se meteu neste estereótipo de casa. Um hall largo, do qual parte a escada para o andar de cima. À esquerda, a sala de jantar, que dá, na parte de trás, para a cozinha. A direita, a sala de estar. Enorme. Vários recantos de sofás. Lareira. A mobília, moderna, toda ela. Sem ostentação, no entanto. A Gloria dedica-se vagamente a decoração. A sua grande influência, a Inglaterra. Disse-me uma vez que esperava ter conseguido dar à casa um toque europeu. Detestava aquilo a que chama the American tendeney to be loud. Na parede, quadros modernos. A mais recente paixão do Tim. Investir em arte. Como se estivesse a falar de operações de 189

bolsa. Mas de resto, estava lá tudo: um bar com garrafas e copos a perder de vista; um móvel incorporando o Hi-Fi, a TV, o vídeo e o computador. Mesas baixas decoradas com livros grandes abundantemente ilustrados com fotografias; daqueles que são para ver e não para ler; meia dúzia de antiguidades modernas, incluindo, pendurada na parede, a réplica duma espingarda antiga. Não precisarei de explicar por que motivo não sou capaz de resistir a fazer estes comentários. Mas a casa está lá; não a inventei. Fomos para o terraço nas traseiras que dá para o relvado e para a piscina. A mesa já posta. Com toda a simplicidade. Para cinco. Pouco passava das seis e meia. O Tim disse, como se fosse uma felicidade, que tínhamos ainda uma hora para cocktails. Pedi um scotch. Scotch para eles também. O Tim disse ainda que antigamente bebia sempre martinis. Mas o Carter tinha-o dissuadido, com a campanha contra os three martini lunches. Agora contribuía para agravar o déficit da balança comercial à razão de meia dúzia de garrafas de scotch por mês. Durante cinco ou dez minutos, mais alguma conversa inconsequente deste tipo. Depois a Gloria levantou-se e disse que ia ver como é que o jantar estava a sair. Era a deixa. O Tim virou-se para mim e disse: right, now what is the big mistery all about? As crianças a brincarem ao fundo do jardim. Dir-se-ia que a família toda tinha sido previamente instruída. Com o Tim fui direita ao ponto. No caso dele a minha melhor estratégia era a franqueza. Que diabo, os argumentos eram suficientemente fortes. Comecei por lhe perguntar se estava ao corrente da história de Chicago. Pergunta desnecessária. Mas

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disse-lhe que isso não era o mais importante. Tinha sido apenas o detonador. O problema central era a maneira como eu era tratada naquela firma. Ao fim e ao cabo, fui uma das fundadoras. O Tim disse que sim, mas, ao contrário dos outros, não tinha entrado com dinheiro. E sem dinheiro nunca teria havido firma. Respondi-lhe que isso podia estar muito certo, mas que sem clientes a firma não teria sobrevivido. E, como ele muito bem sabia, era eu a maior angariadora de clientes. O Tim reconheceu que a minha contribuição era importante, mas não a mais importante. A maior carteira de clientes era a do Tony Brooks. Eu disse que sim, que o Tony tinha mais nomes; mas a minha carteira era a que maior rendimento trazia à firma. Tinha feito as contas e podia mostrar-lhas se quisesse. O Tim disse, o.k., não valia a pena discutir isso; o que é que eu queria? Entrei de frente no assunto. Respondi-lhe que 19O

queria ser sócia em igualdade de circunstâncias com os outros. O Tim perguntou se eu tinha o dinheiro necessário. Eu disse que arranjava. E disse-lhe ainda: and Chicago is out. Era um lugar possivelmente muito interessante, um desafio, blah, blah. Mas definitivamente um lugar para um empregado. O Tim calado. O que não significava nada. Conheço milímetro a milímetro o funcionamento daquela mente. Confrontado com um problema, olha fixamente, em silêncio, para os seus interlocutores. Antes de tomar uma decisão ouve os argumentos, pondera,os, pesa prós e contras. Achei que devia falar de justiça e de injustiça. O Tim e a sua velha preocupação com a justiça. Coisas que uma pessoa nunca perde. Falei longamente. De quanto me tinha dedicado à firma. Dias inteiros a batalhar. Noites sem dormir. Foram assim os primeiros tempos. Falei-lhe da intensidade com que ainda continuava a viver tudo o que lá se passava. Dos sacrifícios. De ter praticamente renunciado a uma vida normal. Exagerei um pouco; mas apenas um pouco. As noites em casa a estudar os dossiers. Os almoços de trabalho com clientes, hipotéticos clientes, três e quatro vezes por semana. De como tinha acabado por organizar a minha vida social, os meus conhecimentos, em termos de trabalho. Cultivar pessoas que não me interessam, só porque eram as pessoas certas. E tudo isso para quê? Para ser mandada para Chicago. Para me dizerem agora desanda que não passas de um peão neste xadrez. A pawn in their game. (Pergunto-me se o Tim ainda se lembra da canção do Donovan.) E os anos de investimento pessoal em N.Y.? Os contactos cuidadosamente estabelecidos e mantidos à custa do meu esforço e do meu desgaste físico e mental? O que é que lhes faço? Digo-lhes adeus, que vou recomeçar, partir do zero em Chicago? E o Tim continuava a não dizer nada. Depois a Gloria perguntou lá de dentro se já estávamos prontos para jantar. O Tim respondeu que só mais um pouco. Perguntei-lhe então se estava disposto a apoiar-Me. Respondeu que compreendia os meus argumentos. No meu lugar, reagiria provavelmente da mesma maneira. Durante alguns momentos calou-se. E depois, como quem sai duma longa meditação, disse que sim, que me apoiava. Mas disse também que o apoio dele podia, no meu caso, não ser o mais eficaz, por razões óbvias. Disse-lhe que não me parecia. O prestígio dele na firma era mais do que suficiente, se se empenhasse verdadeiramente. Acirrá-lo um pouco. Por mim, estava convencida de que teria, pelo menos, o apoio do John Casey. O Tim perguntou se eu 191

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já tinha contactado o John. Seria possível que estivesse preocupado com a eventualidade, remota, de se formar uma qualquer coligação sem ele? Disse-lhe que ainda não, não tinha falado ao John. O Tim achou que o melhor era almoçarmos os três um dia destes. Eu disse que preferia ser eu a falar ao John. Não insistiu. Mas disse, iniciando já gestos para se levantar: well, that settles that. Respondi-lhe que havia outra coisa. Não a tinha mencio, nado porque não queria ser acusada de exercer pressão sobre ele. E sorri para dizer: ou até de usar uma pequena dose de blackmail. Contei-lhe o essencial da conversa com o Clayton. Pela primeira vez, o Tim reagiu. Com vivacidade. À beira da indignação. Disse-lhe que não havia lugar para ninguém se ofender. Ele ti, nha de compreender que para mim aquilo era muito sério. Todo o meu futuro em jogo. Não podia correr o risco de me ver desempregada dum momento para o outro, quase com quarenta anos. O Tim disse que isso o colocava numa posição difícil. Quando a firma foi constituída, tinha lutado para que o direito de gerir uma carteira de clientes própria me fosse concedido também, apesar de eu não ser sócia. Foi uma batalha que acabou por ganhar, mas com grande dificuldade. Respondi que não tinha sabido, mas que lhe agradecia agora. Ele disse que era... E depois parou. Suponho que a frase, se tivesse sido completada, seria a seguinte: era o mínimo que ele podia fazer. Aquilo passou-se certamente na altura do nosso divórcio. Divórcio indecentemente civilizado - disse uma vez uma amiga minha. Seja como for, eu tinha renunciado, desde o início, ao direito de lhe exigir alimony. Pergunto-me se o Tim acreditou que só então eu tivesse ficado a saber. Poderia parecer que estava naquele momento a cobrar a segunda prestação. E isso incomodava-me. Mas paciência; nada que eu pudesse fazer. O Tim disse que, no fundo, não tinha importância. O essencial seria a maioria dos sócios estar persuadida de que era importante eu continuar na firma. Perguntei-lhe se achava que eu devia revelar a oferta do Clayton. O Tim achou que era preferível evitar isso. Ele poderia, no entanto, colocar a questão de forma a que ficasse no ar, mas apenas no ar, a possibilidade de eu ir para outro lado. A paranóia da traição - disse o Tim - é uma característica de todos os grupos; políticos, religiosos, profissionais, tanto faz. De qualquer forma - disse ainda o Tim - neste negócio não há verdadeiros segredos e dentro de muito poucos dias toda a gente vai saber. Falei então de timing. Disse que tinha pressa. Na reunião de sexta-feira. Na 192

reunião de sexta-feira - disse o Tim - não adianta protelar. Explicou-me que primeiro faria umas sondagens. O principal obstáculo ia com certeza ser o Jack Witney. Respondi que me parecia mau para a firma que o Jack fosse sistematicamente autorizado a inflectir as decisões no seu sentido. Ao fazer este comentário, estava a jogar com dois factores contraditórios, bem conhecidos de todas as pessoas que trabalhavam na empresa: sendo o primeiro a repugnância do Tim em se envolver nas pequenas guerrilhas quotidianas, a que, no fundo, podia subtrair-se sem correr grandes riscos em virtude do seu prestígio junto da generalidade dos partners; e sendo o segundo o permanente choque de personalidades entre ele e o Jack Witney. O Tim levantou-se. Jantar. Mas era inevitável que naquele momento estivesse já a ponderar as vantagens de contar entre os sócios com mais uma voz que lhe fosse favorável - a minha - na sua velha rivalidade com o Jack. Era um segredo aberto que tinham ambos a ambição de um dia estarem à frente da firma. O jantar foi, como sempre, totalmente informal. Não co- miam já na cozinha; isso só durante os primeiros tempos, na casa antiga, um apartamento modesto alugado no East Side. Mas comigo não faziam cerimónia. Pacotes de leite em cima da mesa.

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Guardanapos de papel. O cão a chatear toda a gente para lhe darem restos. Coisas desse gênero. Devo confessar: ao princípio causava-me admiração e mesmo algum ressentimento que a Gloria não me retribuísse o constrangimento que eu sentia na presença dela. A superioridade da vencedora perante a vencida? Na altura perguntei-me, aliás, se o Tim a teria conhecido enquanto vivia ainda comigo. E se teriam ido para a cama. Provavelmente não. Soube de vários interlúdios românticos antes de se fixar na Gloria. Tudo questões que hoje deixaram de me interessar. No entanto, ainda me irrita, e muito, que ela me trate sempre com alguma condescendência. Como se eu fosse uma alma desprotegida. Vítima permanente de um indeterminado infortúnio. De qualquer forma, uma diminuída. Incapaz de felicidade. De uma vida plena. Urna mulher mutilada. Uma mulher sem homem. Um intransponível fosso nos separa. Pela minha parte, não queria a vida da Gloria, ainda que me fosse servida com dois Tim perfeitos. A plácida existência da dona de casa suburbana. Mil vezes a neurose crónica da cidade, O sobressalto. O apartamento vazio. jantar sozinha em frente à televisão. E, não obstante, esta impossibilidade de me sentir à vontade, de me 193

apresentar à Gloria com a superioridade que, no fundo de mim mesma, sinto quando uso a razão para me comparar com ela. Os miúdos reclamam apple pie antes de acabarem a carne. A Gloria perde a paciência. O Tim intervém. Logo a seguir os miúdos quiseram ir ver televisão. A Gloria implacável. Mandou-os para a cama. Várias vezes em anteriores jantares ela me tinha explicado que é bom para eles habituarem-se a alguma disciplina. E até a arranjarem-se sem a assistência dos pais. Pouco depois, voltaram à sala para se despedir. Os protestos tendo cessado como que por milagre. Presumo que àquilo se chama uma boa educadora de crianças. Mas o Tim disse-lhe que ela era por vezes demasiado severa com eles. A Gloria respondeu secamente que não admitia crianças a arrastarem-se noite dentro pela casa, cheias de sono. O Tim disse: what the heli, you're a kid orily once. Mas não estava interessado em prosseguir o tema. E ficámos os três à mesa a tomar enormes chávenas de café aguado. A que nunca hei-de habituar-me. O Tim fumou um charuto. Disse: Cuban - em tom conspiratório - don't tell the FBI. Após o que se espreguiçou sem cerimónia. E sem cerimónia declarou que estava cansadíssimo. E cheio de sono, caso eu não tivesse percebido à primeira. Ri-me e disse: está bem, está bem, vou-me já embora. O Tim disse que tinha chegado à conclusão de que eu o tinha abandonado porque não era capaz de viver com um homem que à noite caía de sono. Tentando ser simpático. À sua maneira. Foi na realidade ele que me abandonou. A Gloria foi lavar a loiça. O Tim acompanhou-me até ao carro. E despediu-se dizendo que então estava tudo combinado; e ainda: more power to you. Uma frase nossa. Que generosamente dispensávamos urbi et orbe nas velhas lutas. Que não eram certamente por posições em empresas do establishment. Quando entrei na Expressway, o relógio do carro informava-me que eram dez e dezassete. No LincoIn Turmel, ainda a hesitar. Mas ao entrar em Manhattan, em vez de virar para a esquerda e ir para casa, como devia, virei à direita a caminho da Village. Quando toquei à cam- painha, passavam poucos minutos das onze. O David disse que toda a noite tinha tido a certeza de que eu vinha. Disse-lhe que estive quase para não vir. Na verdade, sentia-me tão cansada que ia certamente fazer-lhe péssima companhia. De qualquer maneira, não podia ficar muito tempo. O David disse que teve a certeza porque esteve toda a noite a escrever e a poesia a sair-lhe muito bem. Perguntei se podia ler. Ele disse que eu teria de pagar 194

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o preço do livro, como toda a gente. Mas depois disse: a sério, ainda não me sinto inteiramente confortável com o que escrevi. Frase que ele usava muitas vezes. No momento em que escrevo é a alma a falar. Quando reescrevo é o cérebro. Se eu protestasse que queria ler o que a alma tinha escrito, ele responder-meia que a alma não é apresentável. É ridícula, muito sentimental, por vezes um pouco banal; mas acima de tudo, pouco inteligente. Depois o David perguntou como é que ia o meu jardim. O meu jardim? - disse eu. E então lembrei-me. Abracei-me a ele, dei-lhe um beijo, pedi desculpa por não ter dito nada sobre as flores; mas o meu dia tinha sido um inferno. Ela abraçou-me também. Agarrou-me com força. Beijou-me longamente. Disse: na realidade só te mandei as flores para ganhar direito a um beijo. Deixei-me quase cair, em total abandono, nos braços do Da, vid. E subitamente foi como se todo o meu cansaço se tivesse dissolvido em nada. Como se as lutas do dia passado fossem uma distante insignificância. Como se não me sentisse desfigurada pelas cicatrizes das desgastantes batalhas travadas desde que me tinha levantado. Como se não me esperasse no dia seguinte um dia igual. Como se o universo todo fosse apenas os nossos dois corpos ali abraçados no meio da sala. O David desabotoou-me os botões da camisa. Baixou a cabeça e beijou-me o peito. Eu disse: David, 1 love you, 1 love you, 1 love you. Depois, na cama, fizemos amor. E perguntei-me, uma vez mais, os olhos fechados, numa maravilhosa escuridão íntima, porque seria que para mim fazer amor só contava verdadeiramente quando conseguia retirar-me para uma espécie de limbo feito do esquecimento de tudo. De tudo o que não fosse reencontrar-me num incontrolável crescendo de explosão a flutuar no vazio. Mais tarde, estendida ao lado do David, pareceu-me que para ele, como sempre também, o amor seria algo de menos total. Uma de entre as muitas experiências da vida. Não propriamente o auge ou o cúmulo de qualquer coisa. Suponho que o David terá uma relação mais saudável, menos neurótica, consigo próprio. Não precisa de se libertar de nada. De fugir de coisa nenhuma. De se esconder de perigos ou de ameaças. Mas, no fundo, não sei. Nem lhe pergunto. Por exemplo, o que faz ele da imagem da Cathy nestes momentos? Não sei. Cada um fala de si. Por si. Nos nossos universos estanques. Mas, curiosamente mantendo viva a ilusão de que comunicamos com os outros. Ao princípio, recordo-me, costumávamos permanecer longamente na cama a descrevermos 195

mutuamente o que tínhamos sentido. Depois, recordando aqueles momentos, parecia-me sempre que, no fundo, nos tínhamos limitado a criar uma espécie de narrativa, de ficção, que apenas remotamente se relacionava com a complexidade do nosso amor. O que eu atribuía à insuficiência das palavras. À impossibilidade de encontrar na fala uma tradução exacta, uma réplica fiel, dos sentimentos e das sensações. Mas creio que não era apenas isso. Creio, creio hoje firmemente, que os seres humanos não foram destinados a verdadeiramente comunicar. É-nos dado um nome e uma identidade própria quando nascemos. Somos indivíduos e indivíduos permanecemos. Somos únicos e únicos queremos ser. Natural é que paguemos o preço. Virei-me para o David. Fiz-lhe uma festa na cara e disse: sabes, passei o dia todo a sonhar com este momento. Não era inteiramente verdade, mas apenas porque o tempo que me sobra para sonhar é, na realidade,pouco. 196

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XX S eis da manhã. Ainda me virei para o lado e fechei os olhos com força. Mas não havia nada a fazer. Estava inteiramente desperta, pensamentos a girarem-me como um merrygo-round. Voltei a abrir os olhos. Seis horas e sete minutos cintilando verdes e digitais no vazio da noite. Nunca consigo dormir até tarde quando fico em casa do David. Receio que o meu subconsciente esteja a tentar dizer-me qualquer coisa. Levantei-me com cuidado para não o perturbar. O David mexeu-se um pouco na cama e nada mais. Vesti-me. Dei uma volta à casa para procurar a carteira. Depois lembrei-me. Na mesa ao lado do sofá. Mas tinha caído para o chão. Estranha aquela casa, como a ponta final dum sonho. Cenário deixado deserto pelas persor3agens. Uma sensação que se repetia. Na penumbra da madrugada, era o negativo exacto do porto seguro e quente que para mim ela re- presentava sempre que ia ter com o David. Como se quisesse dizer-me que eu não pertencia já. Que não havia ali qualquer canto que pudesse acolher-me. Como se me apontasse a porta para sair. Voltei ao quarto. Dei um beijo ao David. Sussurrei-lhe ao ouvido que tinha de partir. Emitiu alguns monossílabos; o suficiente apenas para perceber que ele tinha ouvido. Depois meti-me no carro, rumo a casa. A frescura ténue da madrugada ferindo-me como uma lâmina gelada. São estes os momentos que eu mais odeio. Os momentos em que sobre mim desaba a certeza de que há qualquer coisa de profundamente errado na nossa relação. O lugar vazio ao meu lado, não ter a quem dirigir uma palavra. A solidão. Um sentimento de perda que se repete sem fim. Uma carência quase física, como me lembro de sentir apenas quando era muito pequena e os meus pais me deixavam sozinha. Um golpe, um corte na minha vida, que me obriga a ir buscar forças, que não tenho, para recomeçar. O que a relação com o 197

David me não dá. jamais me deu. A sensação de fazer parte natural do fluir da minha vida. É antes um mundo à parte, um tesouro que guardo escondido numa gaveta. Com o qual, durante algumas horas, me entretenho em vertiginoso abandono. Mas de que inevitavelmente sou obrigada a regressar para enfrentar um bem prosaico quotidiano. Passando, nesse percurso, por uma perturbante variedade de estados de espírito. Nenhum deles o de serenidade interior. Em casa, o itinerário matinal do costume. Paradoxalmente, alivia-me o facto de poder finalmente meter-me dentro da minha rotina, dos meus hábitos, da minha segurança. O David. Não sei, na realidade, o que quero. Duvido que fosse nesta altura capaz de partilhar com ele as 24 horas dos meus dias. Mudar muita coisa. Prestar contas. Abrir a minha intimidade. Entrar na dele. Depois de tomar um duche e de um pequeno-almoço frugal, telefonei ao John Casey e combinei almoço para hoje. Deitei-me. Lendo um livro. As pálpebras a pesarem-me. À cautela pus o despertador para as onze e meia. Adormeci. O rádio começou a funcionar, como se fosse o momento seguinte. Arranjei-me rapidamente. Mas sem cuidados de especial. Com o John nunca fiz cerimónia. O almoço, sandwiches e cerveja, foi coisa rápida. A conversa fluindo com facilidade. Em todo o caso, achei preferível não lhe falar da conversa com o Richard Clayton. Apenas a injustiça que representava a minha actual situação na firma. O John garantiu-me todo o seu apoio. Não detectei nele a menor surpresa. Nem um momento de hesitação. Fiquei convencida de que o Tim lhe tinha falado já. O que fazia sentido. já ontem tinha suspeitado. Mesmo que não lhe tivesse ocorrido de imediato, o Tim, com algumas horas para pensar no assunto, só podia ter chegado à conclusão de que a jogada, uma vez iniciada,

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passaria a ser tanto minha como dele. Olhando bem para as coisas, e a prazo, era ele quem mais tinha a ganhar com um reforço da minha posição. O John pediu desculpa; tinha de me deixar. Receber uns clientes às duas em ponto. Continuei sentada à mesa. Fazendo render a minha segunda chávena de café. Encher-me de coragem. Tinha de ser. Levantei-me. Até à cabine telefónica. Liguei para o David. Disse-lhe o seguinte, mais palavra menos palavra: desde o meu regresso que queria falar com ele a sério; por uma ou outra razão, tinha vindo a adiar esse momento; mas não queria que passasse de hoje. O David disse que já tinha percebido; e 198

que, já agora, me dizia que também ele queria falar comigo a sério. E até brincou um pouco, acrescentando que assim era menos monótono: escusava de ser eu a falar a noite toda. Sugeriu que nos encontrássemos no Luigi's. Não há como uma garrafa de vinho italiano e uma vela entre duas pessoas para pôr a conversa a girar. Eu disse que preferia ir ter a casa dele. Por volta das oito, podia ser? Pousei o telefone. Alea jacta est. O coração a bater- -Me COM força. Ninguém me conhece como eu própria me conheço. Talvez o David comece a entrever-me em fragmentos dispersos; mas não dispõe, na realidade, de elementos suficientes para ter muitas certezas. Fala frequentemente daquilo a que chama a minha vida dupla: diz - a brincar, é certo, mas, não obstante, vai dizendo - que sou como uma concha fechada. Neste caso a chamada telefónica foi o meu estratagema para me autocomprometer. Agora não posso recuar. Não posso já permitir que a minha própria fraqueza me faça claudicar no momento decisivo. E o resto da tarde gastei-a em voltas pelos meus itinerários habituais na cidade. Voltei ao Pierre. Dois dias seguidos: um luxo. Pentear apenas o cabelo e arranjar as unhas. A seguir, as lojas onde costumo encontrar os meus trapos favoritos. O prazer de experimentar dez coisas diferentes para levar apenas uma. Tratava-se, como sempre a meio do Verão, de começar a pesqui- sar nas colecções do Outono. Comprei meia dúzia de coisas. Gastei uma fortuna. Mas a verdade é que não será na roupa que poderei iniciar os meus austeros planos de finanças sãs. Roupa, um instrumento chave da minha actividade profissional. Ferramenta de trabalho. E a alegria que sempre me dá transportar os sacos com as insígnias dos costureiros. Como uma criança, a impaciência de não poder vesti-los logo. Às seis fui à massagem. Meia hora durante a qual posso soltar os músculos, estendida sem defesa, em terapêutico abandono, esquecida de tudo o que não sejam os gestos, o suave toque profissional da massagista. As sete menos um quarto de novo na rua. Retirei o carro do parque. Rumo a casa. Quase sete e meia quando liguei o duche. Ia chegar tarde. Não vale sequer a pena telefonar. O David está habituado. Não fez certamente a reserva para antes das nove. O conforto de ter alguém que está habituado. Aio espelho, retoquei o cabelo, refiz a maquillage, preparei o meu discurso para aquela noite. É sempre este o momento em que tomo as decisões finais sobre o que vou fazer, o que vou dizer, no dia ou na noite à minha frente. Não sei. Mas suspeito que o facto de me encontrar com a ré- 199

plica exacta da minha imagem me dá uma ilusão de diálogo, como se tivesse ali à mão alguém com quem pudesse debater os lances da vida. Ou então, de forma mais prosaica, será apenas a circunstância de nesses instantes nada haver que me distraia ou desvie da cadeia lógica que

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me conduz, muitas vezes com enganadora facilidade, à resolução dos problemas. Ou pelo menos à mera identificação dos seus contornos exactos. No quarto, escolho a carteira que vou usar nessa noite. Duas possíveis para os tons de bege com que hoje me vou apresentar ao David. Será que ele já me viu com esta roupa? A retórica pergunta. Sei perfeitamente que não. O gênero de coisas de que eu jamais me esqueço. O meu lado fútil, que cultivo com o carinho devido a uma tradição em vias de se extinguir. Escolho a carteira do Dior. Não por ser do Dior e ostentar como padrão o logótipo D, mas porque tem uma corrente longa e pode usar-se à tiracolo. Casual, porque o David odeia aquilo a que chama o estilo worrian executive. Um precário meio caminho entre uma simplicidade descuidada e o toque de alguma formalidade que dê a entender um pouco de distância. Mas, no fundo, ao escolher a roupa, conta apenas o que me apetece ao sabor desse instante. As explicações são construídas depois. Mudo os meus objectos para a carteira. Procuro um lenço novo na gaveta. Depois, na sala, tiro do armário um maço de cigarros. Vou à casa de banho buscar o bâton, de que me tinha esquecido. A dissipar-se já o habitual cansaço do fim da tarde. O novo fôlego da noite gradualmente tomando conta do meu espírito e do meu corpo. Um copo completaria a tarefa. Mas não tenho tempo. Talvez rapidamente ainda em casa do David. Ou então já no restaurante. São oito e dez. O David abriu-me a porta apontando para o relógio. Gesto com o qual tantas vezes me recebe. Um hábito aceite, que deixou de me irritar. Tanto mais que ele o pratica com um misto de seriedade e de ternura. Um jogo, um ritual. Beijámo-nos. Tentei mostrar-me distante. O meu tom de pressa. De profissional com todos os espaços da sua agenda ocupados. Sempre um compromisso seguinte para o qual tenho de correr. A atmosfera que eu estava a tentar instalar. O David percebeu. Nisso ele é mestre. Intuição, ou outra qualquer palavra que sirva a um poeta. Tornou-se deliberadamente atencioso. Correcto. Boas maneiras e nada mais naqueles momentos. E sempre tomei o whisky, porque o Luigi guardava a mesa até às nove e meia. O David fazia sempre de conta que nos restaurantes existia como entidade física o 2OO

dono do nome inscrito na tabuleta. Uma vez disse: e, de qualquer maneira, não tem importância porque num restaurante italiano há-de haver pelo menos uma pessoa que dê pelo nome de Luigi. Sentámo-nos no sofá a olhar um para o outro. Sem nos tocarmos. Uma curiosa tensão. E silêncio. Dir-se-ia que haver uma conversa programada nos inibia então de falar. Depois perguntei-lhe como é que ia a Cathy. Respondeu que melhor. Que se tudo continuasse a correr bem contavam dar-lhe alta dentro de uma semana. Novo silêncio. Perguntei-lhe se tinha escrito muito ultimamente. Pelos vistos, a despesa do small talk ficava por minha conta. O David disse que assim-assim. Sempre reticente quanto ao seu trabalho. Sempre pouco inclinado a deixar-me pisar a sua coutada lírica. Tento convencer-me de que não quer correr o risco de colocar na roda fútil de uma conversa rápida aquilo que lhe é mais pessoal, mais irredutivelmente interior. Estou habituada. Ainda que não resignada a que essa área me esteja vedada. Mais um hábito. Ao princípio desesperava-me um pouco. Mas eventualmente aceitei. As pessoas têm direito às suas próprias inseguranças. Minúscula a mesa que nos estava reservada. Feita para dois namorados. Frente a frente, as nossas pernas podiam tocar-se. Se fosse outro o momento. Não era certamente aquele o cenário que eu teria preferido. O nosso recôndito canto iluminado quase só pelo desmaiado clarão de uma vela ao centro da mesa, dentro de um balão de vidro vermelho transparente com uma abertura circular em cima. Pus o guardanapo no colo. O David não. Esquece-se sempre, quase até ao fim da refeição, do

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guardanapo sobre a mesa. Quando finalmente repara, sorri e diz: não foi assim que a minha mãe me ensinou. As coisas que eu esqueci. Consultámos longamente o menu. Trocámos impressões sobre os pratos antes de nos decidirmos. Depois o chefe recomendou outra coisa. Eu mudei. O David não. Enquanto esperávamos, pão do forno recheado de manteiga com alho. E entre nós um grande silêncio. Que por fim o David quebrou atirando para a arena: suponho que chegou o grande momento. O que era então essa coisa importantíssima que eu tinha para lhe dizer? Um pouco de ironia para aliviar a tensão. Como eu o conheço já. Se o deixasse prosseguir por essa via, era bem capaz de me desarmar antes mesmo de eu ter começado. Mas hoje não. In a fighting mood. O dia todo armazenando força e razão. Por isso abri desta forma lapidar: David, vou direita ao assunto; a nossa relação está a ror- 2O1

nar-se para mim muito difícil de aguentar. O David continuou a olhar para mim, sem dizer uma palavra. Sem desviar os olhos durante uma fracção de segundo que fosse. Disse-lhe que o problema não estava nele, ou mesmo em nós, ou no que se passava quando estávamos juntos. Sobre esse ponto queria que ficasse desde logo bem claro que não sentia nenhum problema. Que, pelo contrário, havia entre os dois um entendimento profundo, para além das palavras, dos gestos, de todas as coisas materiais. Havia como que uma implícita comunhão. O que era, achava eu, extraordinário conhecendo-nos nós há pouco mais de um ano. Se quisesse ser romântica poderia até dizer que tínhamos nascido um para o outro. Sorri, como se quisesse subtrair da frase o ingénuo sentimentalismo que continha. Mas o David não sorriu. O problema - disse eu - é que, não obstante tudo isso, saio invariavelmente insatisfeita, frustrada. Para encurtar a história, era-me impossível tê-lo apenas em part time. Ele não imaginava o que era; mesmo nas pequenas coisas, como não poder telefonar quando apetecia para não dar com a Cathy. O David respondeu que a Cathy não se importava. Eu disse: that is not the point. Ele disse que, de facto, calculava que não seria. Disse-lhe então que, para além da disponibilidade material, que não podia também ser ignorada, era o problema talvez mais profundo de haver toda uma zona da vida dele, uma zona muito importante, a que eu não tinha acesso. O David disse que em todas as relações há uma parte da pessoa que é indisponível. Eu disse que era diferente. Uma coisa era o que se passava no desenrolar normal de qualquer relação. Outra, inteiramente diferente, o que acontecia connosco e que nada tinha de normal. Por mim, preferia francamente não falar nela. Mas paciência, não podia evitá-lo. Encarando a questão de frente, o problema era a parte dele que pertencia à Cathy. E depois disse: David, lamento, mas vais ter de escolher entre mim e a Cathy. O David irritou-se um pouco. Disse que não conseguia perceber isso. Não queria acreditar que o que ali se estava a discutir era um sentimento tão baixo como o ciúme. Mas se calhar era mesmo isso. Porque, com toda a honestidade, não podia concordar que a existência da Cathy influenciasse num só átomo o comportamento dele para comigo. Se vivêssemos juntos, se fôssemos casados mesmo, se a Cathy não existisse, podia garantir-me que, nesse aspecto, nada seria diferente. Mas havia uma coisa que ele podia compreender. Aquilo a que eu tinha chamado a disponibilidade material. Aí, 2O2

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para o caso de eu não me ter apercebido, também eu tinha as minhas limitações, as minhas servidões. Que do ponto de vista do David eram tão frustrantes como as dele seriam para mim. Seria possível que eu não tivesse reparado como o meu modo de vida me condicionava, me tolhia a sensibilidade? A disponibilidade. Sobretudo a disponibilidade psicológica. Para não falar do tempo. Da minha constante falta de tempo para tudo. Falta de tempo para mim mesma. Falta de tempo para ele. Se eu não me tinha apercebido de que na vida a mais finita de todas as mercadorias é, não o dinheiro, mas o tempo. E outra coisa; ou talvez a mesma coisa: a minha obsessão com o sucesso; o sucesso; o deus sem imagem inventado pela civilização contemporânea. Não percebia. Era uma coisa que genuinamente estava para além das suas faculdades de compreensão. Quer dizer, a ambição, a ambição pelo dinheiro, pelas coisas materiais, pelo estatuto. São realidades, sabia o David. Para muitas pessoas; se calhar para a maior parte das pessoas; um facto inegável; podia observar-se, ler,se livros sobre isso. Mas permanecia o facto de que se tratava para ele de um comportamento tão estranho, tão distante como, como por exemplo as manobras do space shuttle. Tão irreal e irrevelante como a evolução das galáxias. E eu, of all people, andava nessa vida. Não conseguia perceber. Respondi que ele estava a mudar de assunto. O David pegou na garrafa e voltou a encher os nossos copos. A desesperante serenidade com que ele se mascara sempre que tem de enfrentar situações difíceis. E eu a procurar controlar-me. Não levantar a voz. Não me emocionar. Sabia perfeitamente que o David, como sempre faz, estava a partir de uma coisa ínfima, em que porventura acredita, para depois ampliar para além de tudo o que é razoável. Voltei ao ataque. Como é que subitamente se estava a falar de mim? O David respondeu que não se estava a falar de mim ou dele. Estava a falar-se de nós dois. Com que direito é que eu me encerrava numa imaginária redoma. Tentei retomar o fio das minhas palavras. Explicar-lhe: dum lado estava eu, com uma vida mais ou menos banal, não interessa; mas as minhas emoções, os meus sentimentos, não estavam comprometidos com nenhuma outra pessoa em todo o universo. Do outro lado, ele, limitado, coarctado, emocionalmente comprometido não com a sua profissão, a sua poesia, os seus gostos, eu sei lá, mas com uma coisa que jamais poderia partilhar comigo. Outra mulher, que tinha existência física, exigências, necessidades. E se quiséssemos pôr a questão crua- 2O3

mente, seria assim: a parte que ele oferecia à Cathy era descontada ao que me era devido a mim. O David com os cotovelos pousados sobre a mesa, as mãos juntas em frente à cara. Os dedos entrelaçados, num movimento firme, contínuo, distraído. Gesto frequente. Sinal familiar da tensão que tentava dominar. O David disse, como se fosse um desabafo para si mesmo: coitada da Cathy, que exige tão pouco, que não recebe quase nada. Eu respondi-lhe que a situação era injusta para ambas. O David disse, como quem joga o seu trunfo supremo: e podes estar descansada, que a minha relação com a Cathy é. Aqui hesitou; antes de dizer: J.a não vamos para a cama; há muito tempo. Apeteceu-me responder-lhe: onde é que eu já tinha ouvido aquilo? Mas não. Era provavelmente verdade. Disse-lhe apenas que isso era inteiramente irrevelante; repeti: that is not the point ar all. Não se tratava ali de fidelidade ou de infidelidade, de quem dorme com quem. O que estava em causa era quem estava na vida de quem e de que maneira. Senti-me a marcar pontos. A minha confiança a aumentar. Permiti-me mesmo um pouco de sarcasmo: a monogamia não era ter duas mulheres e só ir para a cama com uma. O David a recuar gradualmente para uma resignação magoada. Comentou,

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como se não estivesse a falar para ninguém, que não percebia porque é que as pessoas não eram capazes de viver a vida tal como ela se lhes apresenta. E depois, virando-se já para mim, com exasperação, com fúria quase: se entre nós não havia problemas por que raio era preciso inventá-los? Depois perguntou como é que eu, que tinha vivido a revolução dos anos 6O, me punha agora a reagir como uma suburban hausfrau. Náusea. Quando é que vão deixar de me atirar com os anos 6O e com o que eles supostamente representaram? Respondi-lhe que ter aguentado aquela situação este tempo todo era uma prova de tolerância que não havia muitas mulheres que lhe dessem. Nos anos 6O, 7O, 8O, ou no ano dois mil. Não, David - disse eu - vais ter de escolher. Era total a minha convicção. Não me tendo, nesse momento, ocorrido, ao repetir a exigência, que o David podia muito bem responder-me: então, paciência; adeus. Mas ocorreu-me logo a seguir. E não era isso que eu pretendia; pretendia apenas discutir a questão, dar algum tempo ao David para se habituar à ideia de que o problema da Cathy tinha de ser resolvido. Por isso esbocei palavras de alguma conciliação: 1 feel awful; how do we get out of this, David? Limitou-se a olhar para mim, um olhar desfocado e distante. E com isto veio o café. A 2O4

minha vitória. Vitória, pelo menos, de palavras. Quanto ao resto, a ver vamos. O David costuma, aliás, dizer que eu encaro tudo em termos de simples e maniqueístas alternativas de ganhar e perder. Neste caso, a vitória foi em primeiro lugar sobre mim mesma. Ter sido capaz, sem vacilar, de conduzir a conversa ao termo que desejava. E, não obstante, a vitória tinha um indefinivel sabor a vazio. A verdade é que não me apetecia ter de ganhar num confronto com o David. A braços, Maria José, com uma culposa sensação de mal-estar. Naquele momento, em que a conversa finalmente se detinha, nascia-me uma inexplicável aflição feita de insegurança. Mesmo de inadequação física. Começando a preocupar-me com coisas banais, como o que fazer com as mãos. Outra familiar sensação. O meu problema é, nesses casos, agir com naturalidade. Problema insolúvel, porque come- ça com a pergunta: o que é agir com naturalidade? Olho em volta para o vaivém solícito dos empregados numa anárquica agitação latina. O restaurante cheio. Reparo nas mesas mais próximas. Tudo gente normal. A normalidade outra vez. Por exemplo, aquela mulher e aquele homem, possivelmente casados. Envolvidos numa conversa espaçada e sem crispação. Sem intensidade de especial. Reparei, ao princípio, que tinham dis' cutido longamente os pratos do menu. Uma relação, qualquer que ela fosse, em paz naquele momento. Na mesa a seguir, um grupo de cinco homens. Todos de fato e gravata. Homens de ne, gócios, apostei comigo. Da mesma tribo, facilmente nos reconhecemos uns aos outros. Um deles dominando a conversa. Os outros ouviam e riam-se em sessão contínua. Gargalhadas de excitação alcoólica. Imaginei que se trataria de histórias ligadas à sua vida profissional. Sempre um traço de união entre pessoas que nada mais têm em comum. Bem podia olhar em volta; nem assim seria capaz de encontrar um canto em que se reproduzisse o drama, a atmosfera tensa que se havia instalado na nossa mesa. O David cuidando dos seus próprios pensamentos. A olhar agora para baixo, para um ponto fixo e indeterminado da mesa. Prosseguindo nas minhas tentativas de aliviar o ambiente, disse: a penny for your thoughts. Ele disse: ah, nada de especial; coisas. Mas havia nas suas palavras uma aresta agreste de irritação. E o mal-estar que isso me provocava? Longe do estado de espírito em que devia encontrar-me. Maria José: essa vitória? Devia-me sentir agressiva,

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manter-me militante, permanecer ao ataque. Devia. Mas apenas nas palavras. Que de resto balouçava-me como 2O5

uma ruína velha à espera de desmoronar com a primeira rajada de vento. O David levantou o braço. Chamou a atenção do empregado. Pediu a conta. A qual veio numa bandeja de metal, acompanhada de dois After Eight. O David puxou da carteira e colocou sobre a bandeja o cartão de crédito. Insisti que devíamos partilhar. Ao fim e ao cabo, a ideia tinha sido minha. Pró forma. Ele nunca me deixa pagar. Cultiva pequenos gestos anacrónicos. Absurdo e irracional; mas a verdade é que estas coisas de nada me tocam profundamente. Eu que me auto-eduquei na fraternidade dos sexos. O David disse, de resto, que não, que não tinha sido minha a ideia, porque, se eu me lembrava bem, também ele queria falar comigo. E então o que é que tens para me dizer? respondi eu. O meu tom foi desinteressado, longínquo, indiferente. O David sugeriu que fôssemos até casa dele. Levantámo-nos. À porta, o David disse que não voltava àquele restaurante. A comida era óptima, mas serviam péssima conversa. E com isto sorriu. Solicitando a minha cumplicidade com aquilo que tinha sido o seu único sorriso daquela noite. Duas voltas à primeira chave. Outras tantas à segunda. Depois um jeito especial ainda numa terceira. O gesto seguinte foi meter a mão rápida pela porta entreaberta e desligar o alarme. Tem a obsessão da segurança, o David, desde que - conta-me ele - há dois anos lhe assaltaram a casa. Não podia perdoar que lhe tivessem remexido as gavetas dos escritos e espalhado as folhas pela sala toda. Com o resto não se importava especialmente. Precisou de dois dias para repor alguma ordem nos papéis. Mas não; outra coisa ainda o tinha entristecido: a sua fabulosa - dizia ele - colecção de discos de ópera. Tinha tudo o que valia a pena ter. E depois o tempo, o amor, o que de si mesmo tinha posto ao longo dos anos na procura daqueles discos. Os discos - disse-me uma vez o David - são objectos irredutivelmente pessoais, porque escolher uns e rejeitar outros transforma a colecção numa obra perfeitamente individual. Como escrever. É, no fundo, também escolher palavras e rejeitar as restantes, até se alcançar exactamente aquilo que se pretende. E também, ao ouvir os discos, o som vai-se diluindo dentro de nós até se transformar numa imagem sonora autónoma, enriquecida com o nosso investimento pessoal. Gosta de se embalar nestes achados, o David. Um dia disse-me: tens de ter paciência comigo; sou um dedutivo típico; a minha verdade só a encontro na ponta de um longo raciocínio. Auto-retrato correcto. Quantas vezes me tem 2O6

exasperado com o tempo que perde para chegar à conclusão que logo à partida me parecia óbvia. Mas não a ele. Garante-me o David. Não sei; creio que gosta também de se ouvir a falar. Em casa, ligou apenas um candeeiro. Estava cansado, apetecia-lhe meia-luz. A média luz te vi, a média luz te amé. Sussurrando o tango, com a voz desafinada e o seu grotesco castelhano de Pittsburgh. Mas opus-me. Não me apetecia meia-luz, nem qualquer ambiente de intimidade. Liguei mais dois candeeiros. Queria olhá-lo nos olhos, registar-lhe as expressões. Nada de esconderijos. O David declarou-se fatigado, derreado, abatido. Tinha-se deixado cair no sofá como se não lhe restasse um último alento sequer. Estado de espírito que eu conhecia. Bem de mais. Apenas para depois, numa súbita erupção de energia, renascer de uma insuspeitada Fénix. Naquela noite começou por me pedir que lhe servisse uma bebida. Que fosse a dona da

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casa. The woman of the house. Disse-o não sei se com ironia. E ao dizê-lo ergueu com esforço supremo o braço lento e apontou para a mesa das bebidas. Como uma criança, encenando carências afectivas. Dei comigo a reprimir um sorriso. A repetir para mim mesma: não cairás em tentação. O David disse que lhe apetecia um licor. Achava que a noite hoje lhe estava para licores. Eu disse: com este calor? O David respondeu que o calor é apenas aquele que cada um sente dentro de si. Atirei-lhe com um: come on David, stop it. Servi-lhe um Drambuie. Estendi,lhe o copo minúsculo. Disse-lhe que se abafava dentro daquela sala, Porque é que não íamos para a varanda? Corri a porta de vidro. O ar que entrou era quente e húmido. Mas continha o odor da rua. Não o da casa. Curioso como nunca me adaptei ao cheiro desta casa. Suponho que estamos vacinados apenas contra os nossos próprios cheiros. Virei-me para trás e disse: vens? Respondeu que ia ver se conseguia. Sentei-me numa das cadeiras de palha. Pousei o meu copo na mesa de plástico transparente colocada no centro do círculo de cadeiras na varanda. Olhei lá para dentro. O David tinha-se levantado. Ido à casa de banho. Depois sentou-se à minha frente. Ergueu o copo. Fez-me uma saúde silenciosa e grave. Bebeu um pouco mais. Pousou o copo também sobre a mesa. Descalçou os sapatos. Como sempre fazia. Os sapatos que usava sem meias. Como sempre os usava no Verão. Nessa noite estava com os Guccis pretos que eu lhe tinha oferecido. Estendeu-se na cadeira, quase deitado, como numa cama. Eu disse: então? Ele disse: então o quê? Mas depois disse: ah, é verdade; mas acho que 2O7

ainda não estou pronto. Eu disse que era melhor ficar rapidamente pronto. Eu tinha muito que fazer no dia seguinte e não queria deitar-me tarde. Repetindo, eu, implicitamente, com aquela frase, o sinal de que não era minha intenção arrumar nessa noite o nosso contencioso. O David levantou-se. Foi até ao muro da varanda e virou-me as costas. As mãos pousadas no muro, olhando um pouco para cima, como se lhe interessasse o que se passava no céu, nas estrelas, na noite. Depois, sem se voltar, disse: nunca te contei como é que a Cathy e eu nos conhecemos. Foi neste ponto que cometi o meu único erro daquela noite: não o interrompi logo. Se o que ele tinha para me dizer começava pela Cathy, eu não queria saber. E, no entanto, nada disse. Era uma vez - disse o David - um jovem que veio até N.Y. para ser poeta. Divagou então um pouco. Explicou que em New Orleans é-se cantor de cajun, o nosso lamento espalhando-se pelo Vieux Carré. Em Filadélfia é-se contabilista e todas as noites se agradece aos Fotinding Fathers a Constituição e a reforma. Em Boston escrevem-se romances, com títulos começando de preferência pela palavra Wapshot. No resto de New England pintam-se paisagens na esperança de que tenha escapado alguma coisa ao Hopper. Na Califórnia faz-se parte de um grupo pop ou então escreve-se Hollywood trash enquanto se espera que o mundo reconheça o gênio contido nos dez romances que já publicámos. No MiddIewest compõem-se artigos para jornais chamados The Sentinel, que não ficam para a posteridade; nem mesmo para o dia seguinte; e de tempos a tempos participa-se numa manifestação contra a política agrícola de Washington. No Texas é-se podre de rico e cura-se o spleen partilhando com os inimigos o iate, a amante e um pouco de coke. Concluída esta petulante e desencantada volta à América, o David declarou que era de Pittsburgh, onde só se podem escrever ensaios com temas sociais, que têm sobre a realidade o impacto da aspirina na cura do cancro. Mas em N.Y. - disse o David - pode ser-se o que se quiser. Passei tempos muito, muito difíceis. Tinha vindo com a total e veemente oposição do pai. E sem um tostão. Como nos filmes, o pai queria que

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ele se encaixasse nos negócios da família. Cheguei a N.Y. sem dinheiro para comer, sem dinheiro para alugar uma casa, um quarto sequer. Tinha dormido em jardins. É verdade, em bancos disputados a bêbados e a pedintes. E quando se voltava para cima, o seu tecto era o espaço, ilimitado, até às estrelas. Conviveu com vadios, com indigentes, provavel- 2O8

mente também com criminosos. Depois subi um degrau na escala social e passei a chamar casa a um edifício em ruínas onde dúzias de squatters se estendiam à noite enrolados em cobertores rotos ou em jornais. Partilhámos com os ratos e com toda a variedade de insectos o esqueleto ressequido de um prédio à espera de ser demolido. Cem anos que vivesse, não seria capaz de apagar a imagem de ratazanas enormes a passearem sem-cerimónia por cima de corpos derrotados pela violência clandestina da cidade. Uma noite reparei que me tinha estendido ao lado duma rapariga. Reparei que era uma rapariga extremamente nova, extremamente frágil, toda ela feita de olhos grandes de pânico. Perguntei-lhe como é que se chamava e ela disse que se chamava Cathy. Pronunciou o nome com a timidez de quem, por uma desconhecida razão, não tivesse bem o direito de ocupar um es- paço neste mundo. Não posso dizer que nos conhecemos e amámos. Mas podia dizer que se tinham conhecido e passado a andar sempre juntos. Era uma relação bizarra; acho que funcionei desde o princípio como se fosse uma espécie de pai. A Cathy olhava para ele em silêncio com aqueles olhos enormes a implorarem protecção mesmo contra as coisas mais insignificantes da vida. Seguia-me para todo o lado, como se eu fosse a Verdade. E nessa altura o David estava um pouco convencido de que era. Finalmente arranjaram emprego num restaurante. Ela a servir às mesas, ele a ajudar na cozinha. É ridículo, mas há ainda dentro de mim um pequeno canto que sente saudades desses tempos, em que tudo era de uma simplicidade fundamental. Garanto-te que a luta pela sobrevivência é um emprego a tempo inteiro. Sobra muito pouco espaço para dúvidas ou para angústias metafisicas. Mas sentiam-se imensamente próximos um do outro. Além do mais, vivíamos ambos na esperança, na certeza, de que, de um momento para o outro, as coisas iam mudar. Tinham os dias livres; o restaurante, que era também um bar, só funcionava à noite. A Cathy queria ser várias coisas ao mesmo tempo. Actriz, pintora, até cantora. No fundo, nunca soube o que queria ser. Pela minha parte, escrevia, escrevia torrentes de palavras, na esperança de que no fim tudo aquilo fizesse algum sentido. Tentava caminhos diferentes. Escreveu contos, redigiu ensaios, chegou mesmo a começar um romance. Colaborou esporadicamente numa revista literária que já desapareceu. Acabei por me fixar, sem esforço, com toda a naturalidade, na poesia. Um dia olhei para o caderno e repeti para mim mesmo, até me con- 2O9

vencer: isto é poesia. Mas sentia que estava ainda a experimentar. A treinar-se. Não lhe passava pela cabeça publicar um verso que fosse. E durante as tardes, quando me faltava a inspiração, acompanhava a Cathy nas suas deambulações desnorteadas pelos antros da arte. É claro que a Cathy nunca conseguiu fazer nada. Faltava-lhe acreditar um pouco em si. Mas fomos pelo menos conhecendo pessoas. Entrando no meio. Uma espécie de roda trepidante de gente comportando-se como se a vida fosse apenas o instante que passa, como se amanhã

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não existisse. Nessa altura usava-se ainda fumar por. Era uma coisa social, como usar a roupa certa, como ler os livros que toda a gente lê. À uma da manhã, quando o restaurante fechava, íamos quase sempre para casa de alguém e ficávamos até o Sol nascer a conversar e a ouvir música. Discutia-se o homem, a arte, Deus, a filosofia; e política; política que nada tinha a ver com o que se passava na América ou em qualquer outro ponto do mundo; discutia-se a utopia como se fosse uma realidade tangível, como se fossem os trocos que se trazem no bolso. Depois, o pequeno-almoço, caindo nos nossos corpos exaustos, repunha a realidade brutal da vida quotidiana e das suas mesquinhas e inevitáveis necessidades. Deitavam-se aí pelas dez e dormiam até às quatro ou cinco da tarde. Muitas vezes, porém, tinham coisas para fazer e levantavam-se mais cedo. Com apenas três ou quatro horas de sono. A Cathy, exposta a este ritmo de vida - mas só mais tarde é que percebi - estava a soçobrar lentamente. Eu, pelo contrário, o cansaço extremo punha-me mais directamente em contacto comigo mesmo e invadia-me de uma sensibilidade espontânea que se traduzia numa maior sinceridade no que andava a escrever. Foi um tempo de descoberta; a maravilhosa sensação de encontrar coisas pela primeira vez. Momentos que não se repetem. E eu tinha a perfeita consciência disso. Empurrava-me até aos meus próprios limites. E empurrava a Cathy para além dos limites dela. Uma noite estavam em casa dum pop star de segunda ou terceira categoria. Ao meu lado um jovem loiro, pálido e de uma magreza que parecia impossível, sem a menor cerimónia, diante de toda a gente, sacou duma seringa e dos outros apetrechos e injectou-se de heroína. É claro que a heroína não era propriamente tabu naquele círculo; mas era pelo menos uma espécie de fronteira que não se atravessava com a alegre displicência de quem fuma um pouco de pot. O ponto onde acabava o paraíso e começava o inferno. Ninguém disse nada. Durante o resto 21O

da noite o tipo magro e pálido foi discretamente ignorado por toda a gente. Excepto pelo David. Decidiu perguntar-lhe o que é que ele sentia. O tipo disse: it's like somewere you've never been, man. Frase que repetiu a noite toda. O facto de ele não me ter conseguido explicar, nem remotamente descrever, o que estava a sentir fez-me crescer a vontade de eu próprio experimentar. Deu-lhe algum trabalho, mas acabou por arranjar uns gramas de heroína. Depois de várias tentativas frustradas, a Cathy e o David embarcaram na sua primeira viagem. Ao fim de três ou quatro vezes chateei,me e pus a coisa de parte. Fundamentalmente, o que me fez desligar foi o facto de entrar num mundo que depois não tinha pontos de contacto com o resto da minha vida. Era como se tivesse estado hipnotizado durante aquele tempo. E, ao contrário, por exemplo, do I_SD, não trazia nada comigo que pudesse aproveitar na minha escrita. Além disso, muito francamente, a coisa assustava-o um pouco. Mas a Cathy não conseguiu desligar-se. Tiveram cenas tremendas. Ela, como sempre fazia, acabou por ceder. Mas apenas aparentemente. Tropeçava a cada passo na Cathy escondida num canto a injectar-se. Ou então fechava-se na casa de banho. Foi um inferno. E o inferno maior era saber que, tal como em tudo o resto, tinha sido eu quem a tinha iniciado. Aquilo durou vários meses. Até à primeira overdose. Foi hospitalizada. Safou-se. Mas pouco tempo depois voltou ao mesmo. Não faço ideia onde é que ela ia buscar o dinheiro. É possível que os pais tenham por essa altura começado a mandar-lhe dinheiro para ela sobreviver em N.Y Sem imaginarem o que estava a passar-se. Teve mais duas ou três recaídas. Da última vez, ainda no hospital, tiveram uma longa conversa. Uma conversa muito difícil e muito dolorosa. Ela no extremo do

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desespero. Só lhe dizia que queria morrer. Mas convenceu-a a tratar-se. Garanti-lhe que arranjava o dinheiro. Tudo aquilo era triste, deprimente, trágico. À porta do hospital, senti-me doente. Com tonturas, vómitos. Tive de encostar,me a uma parede. Depois sentou-se num banco. Apetecia-lhe chorar, mas não conseguia. No dia seguinte, meti-me num avião e cumpri a tarefa mais penosa de toda a minha vida. Foi falar com os pais da Cathy. Teve de contar-lhes exactamente o que se passava. Convencê-los a pagar o tratamento. E ainda por cima, explicar-lhes que o psiquiatra me tinha dito que, dado o antagonismo violento da Cathy aos pais, era essencial manterem-se de momento afastados. Disse-lhes que tudo mudaria quando ela se curasse, 211

esse género de coisas. Mas fiquei com a certeza de que perceberam perfeitamente que eu, ali a implorar pela Cathy, era o grande responsável pelo estado a que ela tinha chegado. E pronto. A Cathy completou a cura. Com sucesso relativo, disseram os médicos. Significava isso que, num ambiente adequado, tinha 85% de possibilidades de nunca mais voltar à heroína. Há estatísticas para tudo. Ficaram os 15% e ficou também uma imensa ferida por sarar; desequilíbrio emocional, dificuldade de enfrentar a vida, depressões cíclicas, etc. Segundo o médico, são tendências que existem na personalidade dela: a heroína limitou-se a precipitar o seu aparecimento e a acentuar os efeitos. Agora, mas isso eu sabia, eram as crises de alcoolismo. Durante um dos períodos em que andou melhor, consegui persuadi-Ia a ir visitar os pais. A Cathy e eu. Foi a única condição que ela acabou por pôr: que eu a ajudasse a enfrentar os pais. Um desastre. Indescritível o que se passou. Três pessoas com uma capacidade infinita de se magoarem. Tudo, mas literalmente tudo, servia de pretexto. A meio da sua récita, o David tinha-se voltado para mim. Depois andou dum lado para o outro. No fim sentou-se. O seu olhar era firme, quase de triunfo, quando me disse: como vês, mesmo que quisesse, não tinha o direito de abandonar a Cathy. Foi tudo obra dele. A heroína e o resto. Foi ter pegado numa pessoa, tê-la moldado numa forma em que ela não cabia. Foi ter sido egoísta, ou egocêntrico, seja o que for, ao ponto de nem sequer dar conta do que estava a fazer. Não me ter detido um instante para pensar no que estava a passar-se com ela. And that's the whole goddamned fucking mess - concluiu o David. Ficámos durante longos instantes a olhar um para o outro em silêncio. Ocorreram-me várias coisas para dizer. Tenho que confessar, no entanto, que a história dos padecimentos da Cathy não me comovia. Compreendia, racionalmente, o que o David me tinha contado. O que ele queria dizer. E até as razões dele. Mas não consegui sentir que aquele problema fosse meu, ou que devesse sequer tocar-me. Mas o David saiu completamente abatido do seu recital. Em sofrimento. Em dor. Podia ler-lhe nos olhos um desespero de que não o acharia capaz. E isso tocava-Me. Apenas isso. Mesmo descontando a ponta de encenação que ele nunca resiste a acrescentar a todas as coisas, começando pelos seus próprios sentimentos. Achei, no entanto, que tentar reconfortá-lo seria quase obsceno. Um acto de promiscuidade. Fiquei sem saber o que é que havia de fazer. O que havia de lhe 212

dizer. Optei pela saída fácil. Levantei-me. Disse-lhe que tínhamos ambos falado. E que naquele momento não me parecia possível falarmos mais. Apeteceu-me, mesmo assim, dizer que

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mantinha tudo o que tinha dito ao jantar. Mas não era necessário. Bastaria dizer, como disse, que me ia embora. Que voltávamos a falar noutra altura. E que ele não se esquecesse da nossa conversa durante o jantar. Durante o jantar; sublinhei bem. O David achou a minha reacção monstruosa. Foi a expressão que ele utilizou. Eu disse: David, neste momento não seria possível falarmos de nós sem falarmos da Cathy. E eu, muito simplesmente, recuso-me a discutir a Cathy. Perguntei se seria possível que ainda não tivesse percebido ao menos isso? Continuo a achar que é um problema teu. Que vais ter de resolver duma maneira ou doutra. Disse-lhe que o amor é egoísta. E que se o meu egoísmo parecia muito grande era apenas porque o meu amor por ele também o era. Disse-lhe ainda que, se quisesse, podíamos falar um dia sobre a Cathy. Mas só sobre ela. E não da Cathy como parte de um triângulo amoroso de que eu era a vítima. O David não reagiu. Quer dizer reagiu atirando-me com a resignação da sua dor. Tentando punir-me com o seu sofrimento. Até à porta. Onde nos despedimos. Atmosfera de grande tristeza. Como se qualquer coisa entre nós tivesse morrido para sempre. Dei-lhe um beijo, que ele recebeu na mais completa passividade. Mas ainda lhe disse: não sei quanto vale a minha opinião, mas acho que não foi tua culpa; mete isso na cabeça. 213

XX1 A cordei com a Clara a mexer-me na cama. Um acordar remoto. Sem abrir os olhos. Concentrando-me no esforço de voltar a adormecer. Mas depois ela ergueu-se. O colchão a ceder um pouco. Saiu pelo fundo. Devagar, com cuidado. Não me acordar. Cama de pessoa e meia, encostada à parede. Momentos depois, o ruído distante do autoclismo, abafado pela porta, que ela tinha fechado. Virei-me para o outro lado. Estendi o braço para o relógio. Cinco para o meio dia. Sentia-me esvaído, exausto. Mas era óbvio que não ia ser capaz de continuar a dormir. A Clara voltou. Repetiu o percurso em sentido inverso. Deslizou para dentro dos lençóis. Virei-me para ela. Fiz-lhe uma festa na cabeça. Os meus dedos encontrando cabelos em desordem sobre a almofada. A Clara desculpou-se que não tinha querido acordar-me. Eu disse que não fazia mal, que já era tarde. Levantamo-nos? - disse a Clara. Respondi que sim; aproveitar o resto do dia. Apanhado numa engrenagem em que dia e noite tinham deixado de fazer sentido como tempos distintos. A Clara tomou um duche rápido. Remexendo eu entretanto na minha mala à procura de objectos que na véspera não tinha chegado a arrumar. O quarto de hotel enorme e ainda estranho. Como se devesse perguntar-me: o que estou eu a fazer aqui? Faltava-me ficar a sós com aquelas paredes. Mobílias. Pequenos objectos. E tudo isso absorver em silêncio. Depois a Clara saiu da casa de banho, uma pequena toalha de rosto pela cintura. O peito ainda húmido, fresco como uma flor acabada de abrir. Vestiu-se em meio instante. Sentou-se na cama, pernas cruzadas, um espelho de mão pousado na colcha, e começou a pentear-se. Mas antes, olhou para mim e disse: então? Estou pronta dentro de três minutos. De pintura quase nada. Clara ao natural. Teve ainda de esperar meia hora por mim. Durante a qual continuou sentada, a fazer coisa nenhuma. 215

Táxi até 49th and Lexington. Doral Inn. Disse à Clara que era aquele o hotel em que tinha ficado à chegada a New York. E, como se temesse desaprovação, expliquei que tinha marcado do aeroporto sem saber de todo o que era. Coisa anónima, para turistas igualmente anónimos. Como à chegada eu me sentia. Com amarras apenas a um passado para esquecer. Futuro

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incerto. Apenas um anónimo nome esquecido na escuridão de uma interminável limousine, olhando sem interesse para as imagens distorcidas duma televisão instalada no compartimento de trás. Tinha também um bar, o carro. Servi-me de whisky, com a hesitação de quem não sabe se estará a infringir uma lei desconhecida. Mas os meus motivos eram respeitáveis, aos meus olhos pelo menos: manter o élan alcoólico iniciado no avião. Contei estes episódios à Clara. Como quem narra de raspão as irrelevantes tribulações duma pessoa que tivesse existido apenas num remoto ponto do passado. Cada vez mais de raspão, tão óbvia era a indiferença mal dissimulada na expressão que ela adoptou para me ouvir. A caminho da cafeteria do hotel, onde eu tinha proposto que comessemos qualquer coisa. A Clara riu-se e disse: já reparaste, três refeições numa só, pequeno-almoço, almoço e lanche. Eu disse: é a isto que se chama má vida. Só nos falta começar o dia com champagne. Ela disse: por mim... E eu respondi: vamos é ter juízo. A Clara sorriu-me então um sorriso total e deu-me o braço, como se eu lhe pertencesse. Tínhamos entrado no lobby do hotel. Imagens dos meus primeiros dias em N.Y. Os dias de ténebras. Os dias que não tiveram senão noites. Lá estava, à direita de quem entra, a cafeteria. Hordas de gente anódina esperando com resignada paciência que lhes fosse servida alimentação anódina para restaurarem as forças antes de se lançarem em não menos anódino turismo urbano. O menu familiar. Pratos idênticos em milhares de idênticos restaurantes pela América fora. Sobre chávenas de café e pratos com ovos estrelados pla, neámos o nosso dia. Eu numa maré de me deixar ir com a maré. Depois logo se via, tinha dito a Clara na noite anterior. Ou na madrugada anterior. Ou num troço qualquer do indistinto rio das horas que fluíam sem contornos. Servia-me perfeitamente. Logo se vê. Era um desses dias. Depois paguei a conta na caixa à saída. Na rua, uma massa humana numa absurda peregrinação em direcção à Broadway. Dezenas de pessoas tendo como unifor, me um boné com as cores americanas, listas vermelhas e bran, cas, e T-shirts com a inscrição Official Walker. Tomámos um 216

autocarro. Saímos a meio do Central Park. Perdemos algum tempo antes de encontrar o Guggenheim. Quando entrámos, faltava apenas meia hora para fechar. Elevador até ao topo. Daí iniciá, mos a rota circular descendente. Ver museus a correr. E mais tarde voltar a vê-los. Era essa a teoria. Mas antes, tínhamos olhado para baixo, o imenso espaço vazio ao centro. Disse à Clara que fazia lembrar um pouco o Hotel Bahia em Albufeira. Que ela não conhecia. Além disso, detestava o Algarve. Aquela gente toda. A Clara que tinha manifestado uma centelha de entusiasmo pela ideia de ir ao museu. Que se aplicava agora à tarefa de ver quadros. Mas que não estava interessada em falar deles. Nem em ouvir as minhas opiniões. Não sei como foi. Mas deixei-me resvalar para um insensato exercício de Pigmalião. A resposta nula. Depois calei-me. À saída perguntei-lhe se tinha gostado. Respondeu que sim. Que tinha sido muito giro. Que tudo aquilo lhe dava imensas ideias para o seu trabalho. Esta visão utilitária da arte. Ars gratia artis, dizia in illo tempore o leão que ruge no momento em que desfaleciam as luzes no Tivoli. Ou seria no Império? In illo tempore. Tempos em que a descoberta de sítios como o Guggenheim me dava a certeza de que havia coisas pelas quais valia a pena estar vivo. E a Clara? A Clara, diria eu, a perder isso tudo. Mas, no fundo, não sei. Não sei, por exemplo, se não estará a ganhar em cada instante coisas com as quais eu, como Horácio, jamais sonhei. Ela que seja como mais lhe apetece. Quero lá saber. Chegámos ao teatro ainda a tempo de assistir a uma meia hora de ensaio. Da Stella, apenas uma breve

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aparição sem diálogo. A peça era vagamente inspirada na Peste do Camus. A peste, neste caso a SIDA, apresentada como alegoria do estado de espírito persecutório contra a comunidade gay. Os actores trajando trapos de sarapilheira. Atirando-se estrondosamente para as tábuas do palco. Arrastando-se corno modo habitual de locomoção. Longos silêncios, suponho que plenos de significado, entrecortados por falas vibrantes como uivos ou por erupções estridentes de música gravada. O Martin, sentado ao nosso lado na plateia, disse que se tratava de coreografia dramática. Quer dizer, o significado da peça era transmitido ao público não tanto nas palavras, frequentemente ininteligíveis, como na movimentação conjunta do corpo de actores. Era uma tentativa do Joriathan para encontrar um meio-caminho entre o teatro de vanguarda e teatro convencional. Tentei imaginar o que seria nas 217

-@,- /, %;111 mãos do Jonathan uma encenação puramente de vanguarda' Tentei, mas desisti. O Martin perguntou à Clara o que é que ela achava dos cenários. Variações de cinzento que a iluminação inundaria de vermelho nos momentos de explosão dramática. Até que no final o palco se transformasse - disse ele - numa autêntica fogueira de paixão pontuada por música ao ritmo dum coração descontrolado. Com o que se pretendia veicular uma identificação simbólica entre o inferno e a substituição da razão e da fratemidade pelo irracional e pela intolerância. Tanta subtileza. Depois falou no guarda-roupa, o Martin. Criação sua. O espartano minimalismo da indumentária destinava-se a evitar que entre os actores e o público se interpusessem perturbações decorativas susceptíveis de insinuar, como parasitas, elementos que sobrecarregariam a peça de significados que lhe eram estranhos. Tanta, tanta subtileza. A Clara não me pareceu particularmente impressionada com o guarda-roupa do Martin. Não sei. Difícil perceber. O Martin levantou-se. Deixei-me deslizar um pouco pela cadeira abaixo. Preparando-me para não sei quanto tempo mais de padecimento. Nenhuma interrupção ou paragem. Nem sequer, como nos filmes sobre teatro feitos em Hollywood, um encenador histérico irrompendo aos gritos de: no, no, no. E ninguém disse take five. Virei-me para a Clara e protestei: que chumbada, não tenho a menor paciência para este gênero de teatro. A Clara não gostou. Não disse nada. Mas senti-o na atmosfera, uma nuvem negra momentos antes de se manifestar em tempestade. Mesmo assim, continuei: o mal destas coisas é serem eternas vanguardas sem ninguém que as siga; de tal maneira à frente de tudo que perdem de vista o resto da raça humana. Foi então que a Clara falou. Achou que eu estava a ficar velho e ultrapassado; havia hoje coisas que eu não podia entender. Respondi que não era nada disso. Tinha sempre abominado aquele gênero de teatro. A Clara achou que era também a minha irracional embirração com os amigos dela. Era tão infantil: até lhe dava vontade de rir. Se eu pudesse ver-me nesses momentos; ver como me tomava ridículo. Respondi que era totalmente absurdo o que ela estava a dizer; como é que se podia levar a sério aquela farsa mascarada de arte? São um bando de tontos, os teus amigos. São um bando de tontos os meus amigos - repetiu a Clara. Mas disse-o mecanicamente, sem emoção, sem irritação. Talvez com um implícito sorriso. Foi isso que me magoou: a distância, a indiferença, o desdém. Levantei-me. Movimento brusco. Gesto 218

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deliberado. Subi pela coxia, rumo à saída. Parei no átrio. Hesitei. Fazer o quê agora? Para já, acender um cigarro. Alguns passos indecisos para trás e para a frente. Mas depois apareceu a Clara. Que me perguntou: o que é que se passa? Como se nada se tivesse na realidade passado. Respondi-lhe: então, estás satisfeita? A Clara disse que tudo aquilo era absurdo. Perguntei-lhe porque é que então se entretinha a provocar-me. A Clara disse: provocar-te? E disse ainda: ouve, é-me perfeitamente indiferente o que tu pensas da peça ou dos meus amigos. Eu disse: quais teus amigos? São tão teus amigos como, como. Gaguejei. O porteiro ao fundo. Como o porteiro - disse eu. A Clara repetiu: não gostas da peça, não gostas deles; tanto me faz; estou-me rigorosamente nas tintas. Ficámos a olhar um para o outro. Até a Clara dizer: bom, acabamos com isto, vou lá para dentro; vens ou ficas? Lá dentro, o ensaio tinha aparentemente terminado. Shakespeare podia voltar em paz ao sono eterno. A Stella veio à beira do palco dizer que ia vestir-se e voltava já. Ficámos à espera, com o Jonathan e o Martin. Mais um tipo de uma magreza quase patológica que não era capaz de estar quieto. O Jonathan perguntou-me o que é que eu tinha achado. Respondi-lhe ao lado. Referindo apenas pequenos pormenores que declarei serem sobremaneira interessantes. Percebeu. Paciência. Mas a Clara disse: a true lover of the arts, on a clear day he can see all the way to Broadway. E eu que a julgava incapaz de sarcasmo. O Martin deu uma gargalhada. O Jonathan disse: Broadway? Never heard of the place. Plastic shit - disse o tipo magrinho. Magrinho e sincopante. Saltou logo a seguir para o palco e desapareceu no meio dos cenários, como se precisasse de verificar qualquer coisa. Ficámos a olhar para ele. Em silêncio. Depois veio de novo juntar-se a nós. Disse ao Jonathan que estava tudo o.k. Fazendo um pequeno círculo com o polegar e o indicador da mão direita. Apareceu a Stella. O Jonathan disse-lhe: you were wonderful, baby, just wonderful. A Stella disse que no segundo acto ainda não tinha conseguido meter-se inteiramente na pele da personagem. Saímos. Começaram a andar rumo ao carro. Eu disse à Clara que queria ir ao hotel. A Clara encolheu os ombros. Perguntei-lhe se não queria ir comigo. Disse que tinha combinado com o Peter uma nova sessão de gravação. Ia com a Stella, também, que tinha ficado de passar por lá e receber as cassettes para a festa. A propósito - disse ainda a Clara - a Stella disse para te convidar para a festa. Repeti: para a festa? A Clara disse: é uma festa 219

anos 5O; as pessoas são supostas ir vestidas à anos 5O; música da época; coisas do teu tempo. Eu disse: queres que eu vá? A Clara disse: a Stella convidou-te. Eu disse: não foi por isso que eu perguntei. Ela disse: se quiseres; eu vou, apetece-me divertir-me esta noite. Perguntei: e o nosso jantar? Qual jantar? - disse a Clara. Lembrei~lhe que na noite anterior tínhamos combinado ir jantar a um restaurante bom. A Clara achou que podia ficar para outro dia, porque naquela noite - repetiu - queria divertir-se. Abstive-me de lhe perguntar se não se divertia também indo jantar comigo. Em vez disso, respondi: o.k., vou ver. E a conversa parou. Até a Clara dizer: então adeus. Eu disse: adeus. Separámo-nos. Encostado na cama a tentar ler. Sem conseguir concentrar-Me. Depois, pousado o livro, decidi descansar apenas, os olhos fechados. Desagradáveis imagens do dia de hoje poluindo-me o espírito. Mais tarde levantei-me. Tomei um duche. Vesti-me. Desci até à rua. Comi num restaurante chinês. E avancei para casa da Stella. Não era coragem. Apenas: paciência, tem de ser. Dez e meia. Música e ruído de gente chegando ao rés-do-chão. Os vizinhos candidatos certamente à Ordem da Resignação Civil. Subi as escadas. Devagar, como se ganhasse alguma coisa com aquela demora. A sala a

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explodir de gente, de cor, de movimento, de vibração. Um baile de máscaras, sem as ditas. Saias de roda imensa, blusas justas, sapatos de salto raso e meias brancas, cabelo em rabo de cavalo. Blue jeans justos, T-shirts brancas, blusões de couro preto à James Dean, poupas enormes de brilhantina decalcadas do Elvis. Assim se apresentavam os puristas. Mas havia um pouco de tudo. Fiquei parado à porta. Ver as pessoas dançar. l'm all shook up hum, hum, hum. Descobrir a Clara no meio daquela desordem trepidante. Weli, bless my soul what's wrong with me. Pessoas esquecidas de tudo que não fosse a tradução pelo corpo da sensual vibração do ritmo. A agonia da noite que à minha frente se erguia. Coragem rapaz. Que a vida me tem sido demasiado fácil. Um leve ajuste de contas, apenas. To know know know him is to love love love him and 1 do. Comecei a cortar caminho entre a multidão. And 1 do, and 1 do, and 1 do. E a Clara nada. Cheguei ao outro lado da sala. Encos, tei-me à parede, junto à janela. Espectador desconfortável. The thing from another world. Foi então que a vi. Uma nesga apenas de cabelo. O suficiente, no entanto, para a reconhecer. Movi-me um pouco para a esquerda. Ei-la de novo, metade dela. Três 2 2O

quartos dela. Os braços à volta de um tipo qualquer. A intimidade que aquele slow exigia. Chamavam-se slows. No tempo em que toda a metafisica se reduzia a saber se poderia ou não encostar a cara. O que não é inteiramente exacto; mas que fique a frase, pela gota de verdade que, não obstante, contém. Um tempo em que faltava ainda algum tempo para a maior parte daquela gente nascer. Que fiz eu desse tempo? Tantos calendários usados. Gaveta a transbordar de pequenas agendas de bolso cheias de rabiscos registando os meus passos inúteis. Instantes apenas de memória. E o ritmo voltou a mudar. Keep a knocking but you caint' come in. Esbocei gestos para chamar a atenção da Clara. Sem resultado. Transportada pela violência do Little Richard. Apliquei-me então à resignada faina de assistir. Que havia ali quem executasse rock'n'roll com perícias de arte. Com o corpo e sobretudo com alma. Depois fui ao longo da parede, único espa, ço sem gente, até chegar ao canto onde me parecia que estavam as bebidas. Yoti can knock me down, step on my face, slander my name. Cruzei,me com o Martin, que disse, num tom de troça deliberadamente teatral: Fin a real cool cat. E para exemplificar, executou dois pequenos saltos ao ritmo da música. Após o que ficou imóvel a olhar para mim num sorriso total. Satisfeito consigo. Ou satisfeito por não ser eu. And do anything that you wanna do, but hon hon honey, lay off of my shoes, don't you step on my blue suede shoes. O Martin fechou o sorriso e cantou-me na cara: you're so square, baby 1 don't care. Repetiu: you're so square, baby 1 don't care. Virei-lhe as costas. Acendi outro cigarro. Mesa com bebidas já à vista. We're going to rock around the clock tonight, rock rock rock till broad day1ight. Bill Halley acolhido com aplausos. Antes de eu conseguir pegar num copo, surgida não sei de onde, a Clara. À minha frente, à minha volta, o seu corpo todo em movimento, como se estivesse possuída por um incontrolável ritmo interior. Pegou-me na mão. Nem uma palavra. Arrastou-me para o centro da sala. Sem fazer caso da minha relutância. E, como se eu fosse um peão de corda, lançou- -me a dançar. Improvisei. Inventei. Tentei passos que nunca tinham existido. Tornei-me ridículo. Se alguém estivesse a olhar para mim. Que não estava: apenas eu a olhar-me pelos olhos de todos. Depois a cassette atirou-nos The great pretender. Segurei- -a nos meus braços. À espera não sei bem de quê. Disse-lhe ao ouvido: fazemos as pazes? Ela disse: o que tu quiseres, eu quero divertir-me. Tinha-a afastado um pouco. Para poder ler-lhe a cara. 221

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'7,---, akW@- E pude. A Clara olhando em volta. Para tudo. Para toda a gente. Para além de mim. Eu disse: Clara, importas-te de olhar para mim um momento, estou a falar a sério. Ela disse: e eu não quero falar a sério, quero divertir-me; não me chateies, quero divertir-me. Oh oh Susie, Darling, Pm so in love with you. Com a nova música, a Clara trocou-me por um tipo que estava ao nosso lado. Retirei,me. Sofri ainda alguns encontrões antes de conseguir refugiar-me no canto das bebidas. Só havia gin. Gin foi. 1 got a wornan, as mean as she can be. Ali, de pé, sitiado por música e pessoas. Qualquer coisa de irreal em tudo aquilo. Ou então era eu, esvaído, insensível, como se o sangue se me tivesse drenado do corpo. Sometimes 1 think that she's almost as mean as me. Bebi o gin com a pressa de um copo de água. Tornando-me, nos tempos que correm, fluente na linguagem do álcool. Arranjei outro copo. Fazer qualquer coisa. O importante é não estar parado. Johnny is a joker, like a bird, bird dog. Uma rapariga ao meu lado atirou-me: hi there! Respondi: hi! Olhando para mim com o sorriso de quem continua à espera de uma resposta. Patética a minha sofreguidão por uma alma que me pegasse. Vestida, a rapariga, à anos oitenta. Cabelo curto, espetado como um pêlo de arame, loiro, ruivo e azul em três faixas. Perguntou-me se eu tinha. Não percebi o quê. Baixei um pouco a cabeça e disse: o quê? Queria saber se eu tinha any coke. Oh Carol, Pm so in love with you. Disse-lhe que não. O sorriso volveu-se em mais do que indiferença. Desprezo seria a palavra. E lançou a sua busca para outro lado. Passei para o corredor. Fazer batota. Sentar-me du, rante um bocado no quarto. Sonhei com um pouco de paz. Po, deria mesmo, talvez, folhear umas revistas. Da pilha que há dois dias tinha visto no chão. E poderia até acontecer que, dando pela minha ausência, a Clara viesse ter comigo. Não era sequer uma esperança. Apenas uma ficção de esperança, como se pudesse existir dentro da minha cabeça um segundo enredo da realidade. Milo Venus was a beautifui lass, she lost both her arms in a wrestling match to meet a brown eyed handsome man. A realidade e a ficção. Eu sei, eu sei. E, não obstante, havia em mim um minúsculo canto que continuava a acreditar. Ou que precisava de acreditar. No quarto, um rapaz e uma rapariga, aí quinze anos cada um, cumpriam sobre a cama rituais de paixão. Vestidos. Mas também a noite era ainda jovem, como eles. All my love, all my kissing, you don't know what you've been missing, oh boy. Voltei para a sala. No corredor cruzei-me com o Jona- 222

than. Disse-me que detestava festas. Detestava dançar. Mas fascinava-o observar. Aprender os movimentos dos corpos humanos em liberdade. WelI, be bop a lulla, she's my baby, be bop a lulla 1 don't mean maybe. No palco - disse o Jonathari - as pessoas comportam-se como animais aprisionados. Como se tivessem à sua volta uma invisível jaula. E depois sorriu. Divertido. Sabia - disse o Jonathan - que eu não gostava do teatro que ele fazia. Disse ainda que não se importava. Nem toda a gente podia gostar. Fve been to Nagasaki, Hiroshima too, the same 1 did to them, baby, 1 can do to you. Uma pena, mas infelizmente verdade - disse o Jonathan - imagina como serias infinitivamente feliz se fosses capaz de aceitar com alegria e sem fazer perguntas tudo o que o mundo tem para te oferecer. Poético. 'Cause Firi. a Fujiama mamma, and Pm just about to blow my top. E eu disse: infinitamente feliz e infinitamente idiota. O Jonathan soltou uma gargalhada que me pareceu inteiramente extemporânea. A seguir perguntou porque é que eu não tentava dívertir-me um pouco. Sem mais uma palavra,

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deu meia volta e começou a andar para a cozinha. Mas logo detido, saudado, festejado por duas mulheres vestidas de igual. Uma loira, a outra morena. Exibindo ambas deliberados excessos de maquillage. Rock rock rocking around the world. Um êxito entre as senhoras, o Jonathan. In gay Pari' they rock all day long, fifty million frenchmen can't be wrong. E eu ali parado. Insultado. Vexado. Nas tintas para insultos e vexames. Voltei para a sala, Com a ideia única de encontrar a Clara. De falar com ela. Possuído da certeza absurda de que haveria algures uma palavra secreta ou um gesto mágico para me Salvar, para me redimir a noite, para me recuperar a Clara. No ponto em que o optimismo irracional é a única resposta para a mais irredutível e lúcida falta de esperança, In Moscou too they rock around the clock. Decidi que tinha de falar com a Clara. Para lhe dizer não sei bem o quê. Mas tudo se resolveria. A certeza absoluta, categórica. A clarividência de um cego. They even do a dance called the Sputnik rock. Mas estava onde, a Clara? Outro gin. Gin, gin, trazes novas da minha amiga? Morno. Já não havia gelo. O degelo em casa da Stella. Passou, aliás, por mim, a Stella. Que me disse: glad you could make it. Mais do que eu diria, certamente. Perguntou-me porque é que eu não dançava, porque é que eu não participava, ali num canto como um refugiado. Roll over Beethoven, teli Tchaikowsky the news. Disse ainda que eu lhe fazia lembrar o 223

avô. 1 got rockin' pneumonia, 1 need a shot of rhythm and blues. O médico proibiu-lhe todas as bebidas alcoólicas. Agora passa os dias com um copo cheio de bourbon que leva ao nariz, cheira e volta a pousar. Não respondi. Com os copos, como de costume, a Stella. Depois disse-me: see you - e afastou-se. She said no daddy could lead her floor. Stella, numa sala escura, recortada no écran. She wore a dress that fit so tight that she couln't sit down, so she danced all night. Sala escura onde provavelmente conheci a maior parte das coisas que conheço deste mundo. E algumas de outros mundos. Uma Stella intensa e melodramática. Servida cortesia de King Vidor. O seu apelido Dallas. No relation, como dizem os americanos. Amáveis anfitriões dos pequenos tormentos que hoje me sulcam a existência. Que hão-de passar. Como passam todas as coisas. Mas, enquanto não passam, eis-me exposto a este doloroso vendaval, irremediavelmente dividido entre uma agitação de pânico e uma indiferença de enfado. Ah little darling, ah for you, ah-hu, ah-hu, ah-hu. Avancei então, como um carro de combate, para o meio das pessoas. Distribuí encontrões sem-número. Anestesiado já por três generosos gins. Acabei por encontrar a Clara. No mesmo tropel. Num ritmo sem trégua. Alagada de suor. Arranquei-a, com violência quase, ao tipo com quem estava nesse momento a dançar. O tipo que era o Peter. Mero acaso. Sem dúvida. A música virando de novo para slow. Young emotions. Durante uns momentos dançámos sem falar. Nada de anormal para ela. Aparentemente. Depois eu disse: Clara, vou-me embora. Ela não disse nada. Eu dis- se: vens comigo? Ela disse: eu fico. Eu disse: bom, então adeus. E a Clara disse adeus. Parámos de dançar. Dei-lhe um beijo. Que ela recebeu com a emoção de uma estátua. Comecei a afastar-me rumo à porta. A Clara imóvel durante uns segundos. Mas logo a seguir recomeçou a dançar. No patamar das escadas parei. Puxei pelo maço de cigarros. Acendi um cigarro. Sentei-me no último degrau a fumar. Rubber ball you come bouricing back to me, rubber ball. Um rapaz e uma rapariga vinham a subir. Quando passaram por mim, o tipo disse: hey man, the partys inside. Ela riu. Esmaguei o cigarro no chão. Levantei-me. Desci as escadas e saí. 224

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XX11 A pé até Washington Square. Parei na esquina que me parecia ter mais trânsito. Dez minutos à espera. Por fim um táxi dignou-se parar. Entrei. O rádio ligado. Sinal horário. Meia-noite. The news on top of the hour. Deslizando pela janela, o vazio escuro das ruas de Manhattan, corredores imensos para sítio nenhum. Como cenários de um sonho. Volumes e formas de um universo deserto em que eu estivesse condenado a errar, suspenso num abismo por toda a eternidade. Cheiro a suor. Ou seria lixo em decomposição, ou óleo queimado dos carros - o hálito da cidade. Marcos de vida vivida. Odores de pessoas e coisas que passaram já. Deixando-me para trás. Perplexa e redundante testemunha na noite. E de todos os lados, o eco da minha presença. Como um bombardeamento. Cercado por um mundo de ausentes. Que me feriam com insidioso cuidado, para me manterem vivo. Os sinais luminosos abrindo-se em alas de pontos verdes à nossa frente. Depois, um instante apenas, o relâmpago da minha imagem no vidro da janela. A serenidade das réplicas. Contornos de um perfil como qualquer outro. Sem qualidades. Sem defeitos. Diferente apenas para quem tem o encargo de o habitar. Um número. Um nome. Ou mesmo uma identidade. Ou mesmo ainda uma vida completa e imperfeita. Corno as vidas devem ser. Tanto faz. Seja qual for a estridência colocada em actos de afirmação, o saldo é nada. O inevitável resultado de todas as contabilidades bem feitas. Não obstante, como se me coubesse equilibrar um qualquer passivo, eu, este táxi, tudo isto, numa luta desesperada e cega para poder continuar. Sempre. Até o sempre, também ele, se volver em nada. Até ao silêncio sem fim. Pagar a corrida. Apear-me. Entrar. Dirigir-me à recepção. Receber a chave. Chamar o elevador. Subir. Entrar no meu quarto como um beco no termo da fuga. Momento para a per- 225

gunta: e agora? Agora, Luís, o ponto de partida. Uma vez mais. Excepto que o ponto se moveu. Excepto que consumi entretanto oportunidades. Tempo. Lugares dentro de mim a que jamais regressarei. A perda. Não poder renovar-me. No activo, a recordação apenas de ter estado, de ter visto, de ter sentido. De ter vivido. Fantasmas a transportar. Máculas que hão,de manchar o recomeço. Agora é o moniento de me servir um prosaico whisky no copo dos dentes. Agora é o momento de pressentir que não vou aguentar este quarto de hotel, cravado na noite como um espinho. Agora é o momento de me sentar na cama à espera de coisa nenhuma. Nem revelação, nem esquecimento, nem tão-pouco indiferença. Ficar apenas à mercê do primeiro impulso que tenha força para me mover, como um sonâmbulo ignóbil. Volto a encher o copo. Três comprimidos de Valium. Aguardar o resultado desta dose nova, dissolvida no álcool que me circula livre no sangue, Estendo a mão para o maço de cigarros. Coloco um cigarro nos lábios. Chego-lhe a chama do isqueiro. A minha mão a tremer. Suspeita deste descontrolo. Agora tenho a cerreza. Prova de quê? De nada, se não de que a mão me treme. E o corpo, como se quisesse sacudir o que lhe vai por dentro. Levanto-me. O equilíbrio claudicando também. Apoio a mão no televisor. Caixa de sonhos electrónicos. Ideia que me arranca o simulacro de um sorriso. Um sorriso grosso, estático. Uma paralisia alvar de impotência. Carrego no botão. Deixo ficar onde está. O som, um sussurro distante. Um talk show nas insólitas horas da noite. Volto a sentar-me na cama. As imagens, as vozes, como se me chegassem filtradas pela irrealidade de uma narrativa fantástica. O coração batendo-me num frenético galope obsessivo. O corpo pulsando-me em contagem decrescente para uma indeterminada explosão. Levanto-me. O quarto torna-se definitivamente insuportável. Insuportáveis os seus móveis. Insuportável o espaço. Dou um pontapé violento na cadeira. A

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cadeira cai e ao cair desfere-me uma aresta brutal na canela. A dor que sinto é difusa. Como se fosse outra a pessoa a quem estivesse a doer. Apago o cigarro. Acendo outro. Quer dizer, tento. Mas a mão incapaz de acertar. A tremer de uma febre que não é clínica. No centro de uma tempestade. Mas a tempestade sou eu. Abro a porta do quarto. Saio. Desço. Vou até à rua. Nova tentativa. O vento apaga-me o isqueiro. Abrigo-me num vão de porta. A ponta vermelha do cigarro. Fumo morno e macio deslizando-me nos lábios. Depois começo a andar pela rua. Andar por 226

andar. Como se pudesse esvair-me, anular-me, apagar-me em esgotamento físico. Caminho para lado nenhum. Andar apenas. Os assaltos, a criminalidade, essa merda toda. Quero que se lixem. Quero que vão. Tomo um táxi. Desço dois ou três quarteirões antes de Times Square. Porquê ali? Porque não? E tentar perceber se estou andando bem a direito? Preocupação dum Pavlov social dentro de mim, Que as aparências deixaram de pesar já na minha contabilidade pessoal. Páro num cruzamento. Olho para a direita. Ao fundo a Broadway. Ao fundo locais recentes de pequenas angústias controladas. Domesticadas. Praticamente inofensivas. Nada que pudesse comparar-se ao turbilhão em que me deixei agora envolver. Sim. Que deve haver, tem de haver aqui culpa daquele que se exibe como vítima. Entro num bar. Peço um scotch. Talvez fique hoje pelo menos a saber o que é percorrer o caminho todo desta degradação a sós. Somos vários, ali dobrados sobre o balcão. Não nos olhamos. Não prestamos atenção uns aos outros. Absorvidos pela tarefa exclusiva de con- viver com o copo à nossa frente. Peço outro. Duplo. Fico à espera de ouvir a frase: don't you think you've had enough, buddy? Mas, em vez disso, o empregado retoma os gestos da sua arte. Volta a encher-me o copo. De cujo conteúdo disponho em dois tragos. Que a noite não me vai para gestos plácidos, para ócios de subtileza. Ou para movimentos suaves e bem medidos. Pade- cer num ápice de sofreguidão, para mais depressa franquear as portas ao padecimento seguinte. Meto a mão no bolso. Sinto as notas amarfanhadas. Deixo duas ou três em cima do balcão. Depois de ter desistido de perceber quanto somavam. Suponho que chegam. Mas não tenho a certeza. Levanto-me. Saio. O milagre de me manter em pé. Cordéis de hábito que me guiam como uma marionette. Na rua esbarro contra um homem e uma mulher de braço dado, O tipo grita-me: hey, why don't you watch where you're goin'? Mando parar vários carros. Acabo por acertar num táxi. Entro. Dou a morada. Encosto-me para trás. Fecho os olhos. O mundo deixa de andar às voltas. Sou eu agora que ando às voltas. Um carrossel de fulgurante vertigem em torno do ponto fixo que são os meus olhos fechados. Dei a morada? Que morada é que dei? Mas durante um momento sinto-me bem. Desumanamente bem. Segurança sem interrogações, como uma criança pela mão da mãe. O táxi pára. Estendo uma nota ao motorista. Saio. O tipo grita que me esqueci do troco. Recebo duas notas e várias moedas. Tento dar-lhe moedas. Caem no chão. O 227

tipo diz: goddamned stinking drunks. Toco à campainha. Nada. Insisto. Nada ainda. Sento-me no degrau. Mas logo a seguir sai um grupo de gente. Aproveito a porta aberta. Subo as escadas. E o som rock, rock, rockabilly boogie vai crescendo de degrau em degrau. Lá em cima dei logo com a Stella. Copo na mão. Mais correctamente, com os copos. Um começo de fratemidade entre nós. Mas toda ela alegria. Para chegar ao meu desolado paraíso faltava-lhe

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ainda um bocado. Eu diria quase vinte anos. Perguntei pela Clara. Respondeu: shes around, somewhere. E depois rompeu a cantar: somewhere over the rainbow. Um filme musical. Mas, de repente, parou e disse, a despropósito, pareceu-me: you're welcome to anything you find. Riu-se. Riu-se muito. Escapava-me, mas a frase devia conter dissimulados requintes de humor. Em volta, as pessoas eram já poucas. Meia dúzia de pares arrastando-se em conjugações que teriam qualquer coisa a ver com amor e muito pouco com música. A sala transformada numa lixeira. Copos de papel em destroços, restos de comida, beatas e outros dejectos da noite. Da Clara, nada. Atravessei o corredor. Espreitei para a cozinha. Voltei para trás. Parei à entrada do quarto onde tínhamos dormido há duas noites. O rumor abafado de gente. Com a mão encontrei o interruptor. Acendi a luz. Deram um salto na cama. A Clara calada e imóvel a olhar para mim. Um olhar de surpresa, de susto. Mas não de culpa. Inteiramente vestidos. Roupa, no entanto, deslocada, revolvida, como se um vendaval os tivesse destroçado. O Peter virou-se para o lado. A sua expressão era de profundo enfado. A Clara paralisada na indignidade daquele instantâneo. Repetindo-se-me obsessiva a frase: como em Esparta. Foi, de facto, um instante apenas. Porque eu disse sorry e voltei a apagar a luz. Passos rápidos até à porta. Como em Esparta. O meu mal-estar era absoluto, era total - preenchendo-me de febris, repetitivas, incontroláveis imagens, palavras, fragmentos de ideias sem nexo. O mal-estar era todo ele físico. Desci as escadas. Fiquei parado no passeio. Hesitei durante alguns segundos. Por fim, virei à direita e comecei a caminhar sem destino. Como em Esparta. Depois ouvi a voz da Clara. O crime é ser-se apanhado, como em Esparta. Continuei a andar. Mas ela correu até me alcançar. Parei. Voltei-me para ela. A luz do candeeiro ao lado manchando-lhe a cara de pesadas sombras. As beautiful as he11. Da blusa reparei que apenas dois botões estavam abotoados. Ela disse: o que é que queres que eu diga? A voz da Clara atingindo-me, tocan- 228

do-me, numa vibração de tortura, como um instrumento desafinado. Senti-me subitamente sóbrio e lúcido e frio. Frio, lúcido e sóbrio como nunca na minha vida me tinha sentido. A seguir, uma vertigem. Náusea. Virei-lhe as costas. Afastei-me dois ou três passos. Corri até à esquina. Incontroláveis contracções. O equilíbrio a dissolver-se-me como fumo. Encostei-me ao prédio. Depois senti a Clara ao meu lado. Tentei articular: vai-te embora. Mas saíram apenas fragmentos afogados de sílabas incoerentes. Suor frio. Limpei a testa com o lenço. Mas estava melhor. Levantei os olhos. Ela sempre ao meu lado. Luís, ouve uma coisa - disse a Clara - eu acho que não tem importância. Repeti: não tem importância. Martelando as palavras. Espanto. Indignação. Ira. Não sei porque é que estás assim - disse a Clara - havia algum compromisso entre nós? Havia? Nesse momento, apareceu o Peter: what the hell's goin' on? A Clara respondeu que nada. O tipo insistiu. E queria que a Clara voltasse com ele. Imediatamente. A Clara gritou-lhe que a deixasse em paz, que se fosse embora. E o tipo foi. Eu disse: não, não havia nenhum compromisso entre nós. Ficámos parados a olhar um para o outro. Depois eu disse: e como é que era um compromisso? Por escrito, assinaturas reconhecidas pelo notário? A Clara achou que eu estava a ser ridículo. Eu disse: e como não havia nenhum compromisso foste direita para a cama com outro tipo, a cama onde fizemos amor há menos de 48 horas. Repeti: há menos de 48 horas. Que compromisso é que é preciso? Andamos juntos há não sei quantos dias; fazemos amor; isso não significa nada para ti? A Clara disse: o Peter não tem importância; mas se queres transformar isto numa grande coisa, muito bem. De novo em silêncio a olhar um para o outro. Depois a Clara disse: não consegues

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perceber, pois não? No passeio oposto, um bêbado parou e virou-se para nós. Logo seguindo o seu caminho. Excessivamente banal aquela cena canalha de amores em estilhaços. Algures numas traseiras vizinhas miava-se um diálogo de gatos. E nós trocando olhares de raiva. A Clara disse: eu acho que tu não percebes, mas vou explicar-te de qualquer maneira. Primeiro recitava-lhe grandes discursos a explicar que aquilo entre nós era im~ possível. Depois fazia-lhe cenas sem pretexto. Depois abandonava-a na festa numa fúria absurda de ciúmes. E ela, o que é que havia de fazer? Não, Luís - disse a Clara - o Peter não tem importância; o que tem importância é o que tu me an- das a fazer desde que chegámos a Nova lorque. Respondi que 229

quem não percebia era ela. E o que é que queria dizer o Peter não tem importância? Então é isso - disse a Clara - o problema passou a ser o Peter. O Peter tocou-me, fiquei impura. Respondi--lhe: o que ela estava a dizer era idiota; irracional. Detesto pessoas irracionais. A Clara disse: vai à merda. Não valia a pena falar comigo. Olhou para mim. Com uma dureza, um ódio que eu não lhe conhecia. Olhou longamente. E disse, como quem recita uma escritura sagrada: não pertenço a ninguém; não pertenço ao Peter, não pertenço a ti, não pertenço a ninguém. Eu disse: pronto, não pertences a ninguém; parabéns; e constatado isso, o que é que fazemos? Não fazemos coisa nenhuma - disse a Clara - estas coisas acontecem. Aquilo entre nós. Outra vez a expressão - aquilo. Aquilo entre nós durava enquanto durasse; mas não podia durar comigo a fazer cenas a propósito de tudo e de nada, a provocar crises ridículas, a rornar-lhe a vida um inferno. Eu disse: il n'y a pas d'amour heureux. A Clara respondeu: histórias; se deixa de nos dar prazer é porque chegou o momento de acabar. A sua voz era monocórdica, como se estivesse a recitar um papel. Num gesto distraído, abotoou dois botões da blusa. Depois disse: estás a ver, já me estragaste a noite. E emitiu um suspiro de desalento, de quem renunciou a que i .amais a entendam. Um suave vento morno batendo as sombras de mais uma noite sem fim. Como se tudo aquilo se estivesse a passar com um estranho eu ali ao lado. Reduzido à passiva função de espectador atónito. Fascinado, quase, pela insólita e fria distância que a Clara tinha conseguido colocar entre ela e o que tinha sucedido. Pelo ambíguo privilégio de me encontrar submerso naquela indigna cena. Foi nesse momento que renunciei. Renunciei à minha lógica, ao meu discurso, à minha razão. Não tendo conseguido que a Clara se prestasse a lutar com as armas que eu propunha. E com que raio de armas estávamos nós a lutar? Se é que estávamos a lutar. Renunciei. Disse-lhe apenas: e agora, o que é que fazemos? Entregando-me, vencido, manietado. Tudo o que ela quisesse. A Clara respondeu: e agora, nada. Os segundos a passarem como uma eternidade. Depois avancei um pouco e dei-lhe um beijo. Que ela recebeu numa indiferença de gelo. Afastei-me. E ainda disse: esquecemos, faz de conta que não aconteceu nada. A Clara, toda ela silêncio. Vários segundos de silêncio e tensão. Senti vontade de chorar. Mas não fui capaz. Apenas alguns incontroláveis espasmos, o suficiente para me tolher a voz se tivesse en- 23O

tão tentado falar. Em vez do que tentei beijá-la de novo. Mas dessa vez a Clara evitou-me. Virou-se um pouco para o lado: não. Palavra seca, categórica, definitiva. Olhou para mim e disse: acabou, Luís. Eu não disse nada. Ela ainda hesitou um instante; mas depois repetiu:

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estou farta, acabou. Virou-me as costas. Eu incapaz de articular uma palavra que fosse. Não era possível; nada daquilo estava a acontecer. A Clara afastouse. Caminhou até à porta e entrou em casa. Sem se voltar para trás. Uma só vez que fosse. Eu, parado no passeio a olhar para ela. Quase quatro da manhã. Perdido numa rua deserta. Praticamente. Passando a intervalos largos apenas camiões enormes de fornecimentos. Fui andando devagar. Para o outro lado. Não suportava a ideia de voltar a passar àquela porta. Acendi um cigarro. Que me soube mal. Extremamente mal. A garganta agora acre e arranhada. Senti-me desconfortável na minha pele. Familiar sensação. Os erros cometidos erguendo-se à minha volta como gigantescos marcos. Um estremecimento íntimo, a certeza sentida da minha estrutural inadequação. Inadequado para lidar com as ciladas da vida; mas inadequado também para cumprir as leis que a mim mesmo me havia ditado. A chave, a palavra, era fracasso. E o espanto de descobrir que são infinitos os caminhos que actualmente se me vão abrindo para a cada passo cometer insuspeitados erros. Desconfortável na minha pele e naquela roupa. Como se andasse há uma semana sem me lavar, perdido no respirar húmido, quente, opressivo da noite. Passou um carro cheio de gente ruidosa. Restos talvez de uma festa que teimaria em não amainar. Do banco de trás um jovem debruçou-se para fora da janela e berrou-me uma barragem de obscenidades. Depois o carro desapareceu numa esquina. De novo a sós com o silêncio da noite. A conviver com as sombras. Tendo por companhia o eco dos meus passos no asfalto. Mais à frente, encontrei refúgio no café em que duas madrugadas atrás tinha tomado o pequeno-almoço com a Clara. O mesmo chei- ro a gordura frita da véspera. As mesmas mesas vazias. Sentei-me. Pedi um café. Estava com fome. Um prato de ovos. Era da hora. Ou do cansaço. Ou não sei de quê. Mas, da agitação, do tropel de há pouco, restava-me agora apenas uma reminiscência distante. Uma melancolia grave, uma patética resignação de derrota. Derrota que eventualmente me autorizaria a aceitar. A perceber. A justificar. Mas esse momento não tinha chegado 231

ainda. Mergulhado por enquanto numa movimentada encruzilhada de contradições. Olhei para o candeeiro sobre o balcão com um abat-jour da Coca-Cola. Tal como há dois dias o tinha fixado nos momentos em que me claudicava a coragem para enfrentar os olhos desapontados da Clara. Culpa de ambos, ela tinha dito. Culpa, culpa. Para quê as leis, se existe a culpa para nos tiranizar? O que não resolve nada. E nada explica. Palavras apenas, no momento em que as palavras não servem já. Os actos, as omissões. Falem-me desses, sim, falem-me desses. Falem-me de pequenos gestos cometidos. De silêncios que consenti. De palavras atiradas com hipocrisias de inocência. Falem-me da multidão de coisas que ao longo dos dias me recusei a entender. Embora as palavras regressem depois, numa vã caligrafia de autópsia, para dar gramática aos momentos que apenas conheceram a regra de não ter regra nenhuma. Coisas por onde an- dou o Fernando Pessoa, com a lucidez de que apenas é capaz quem nunca verdadeiramente cedeu à tentação de jogar o jogo fútil da vida. E no meio de tudo isto, sentia-me arrasado por uma estranha paz. Não ser já possível fazer nada. Não restarem opções. Não poder cometer erros. Não voltar a ter culpa. Não e não tanta coisa. Segunda chávena de café. E o raio da noite que não há meio de acabar. O movimento que nunca mais recomeça. A multidão que não se forma ainda, para que eu possa neta dissolver-me. Deixei o ponteiro do relógio ultrapassar a marca das seis. Peguei na conta. Levantei-me. Paguei na caixa sobre o balcão. Passei para a rua. O desabrigo de uma metafórica tempestade. Um quarto de hora

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para aparecer um táxi. Entrei. O motorista fresco como o dia novo. E uma vez mais subir Manhattan. A ilha. The Big Apple. Seis e meia. A luz do dia ameaçando acen, der-se algures para lá dos prédios. No rio, a faina de pequenos barcos ao longe. O porteiro tinha-me perguntado se a Maria José estava à minha espera. Menti-lhe que sim. O homem do elevador não perguntou coisa nenhuma. Limitou-se a olhar para mim. A examinar-me dos pés à cabeça. Senti que não me aprovava. Toquei à campainha. Nada. Carreguei de novo no botão. Que diabo, ela levanta-se sempre cedo. Por fim, a voz da Maria José a perguntar quem era. Abriu a porta. Em camisa de dormir. A dar ainda a última volta ao cinto do roupão. Os olhos parados. A voz pastosa. Perguntou-me que horas eram. Disse-me que lhe tinha pregado um destes sustos. Mas aos poucos 232

acordou. Pelo menos quando me disse: vejo que já aconteceu. Não respondi. Os dois ali parados a olhar um para o outro. A Maria José disse: bom, já que estou acordada, aproveito para ver o nascer do Sol. Fomos até à varanda. Perguntou-me se eu queria um sumo de laranja. Disse-lhe que sim. Pareces um desenterrado; senta-te enquanto vou buscar. Sentei-me. Virado para a cidade. Como costumava fazer. Há muito muito tempo. Há uma eternidade. A Maria José pousou o copo na mesa à minha frente. Reanimando-me um pouco o tacto gelado do copo. E o sumo que bebi quase de um trago só. Os dois ali sentados, numa conversa fácil e preguiçosa e cheia de silêncios. Um oásis, um paraíso artificial depois dos tumultos íntimos que naquela noite me tinham destroçado. E ela sem pressa, como quem estende a mão tolerante a um amigo necessitado. As coisas a que me sujeito nos tempos que correm. Recordo-me de palavras como orgulho. Como aguentar a pé firme. Como guardar em vertical silêncio o que me passa nos corredores da alma. Recordo-me. Contei-lhe o que tinha acontecido. Mas muito por alto. Não que me apetecesse a contenção. Apenas que ela não fez perguntas. Nem quis saber pormenores. Mas agradava-me, no fundo, poder simplesmente estar ali, a minha vibração contida pela intransponível barreira de uma pessoa que não parecia excessivamente comovida pela minha hecatombe pessoal. Não obstante, no fim ainda comentou: prometo pelo menos que não vou dizer eu bem te tinha dito. Eu disse: não sei, mas acho que, mesmo conhecendo o desfecho, voltava a fazer a mesma coisa. A Maria José não respondeu. Em vez do que, disse: já viste o céu, que maravilha. E assim estivemos, palavras soltas, até ela me declarar que tinha de ir arranjar-se. Um longo dia à frente - uma das frases favoritas da Maria José. Não sei, pareceu-me detectar nela uma agitação controlada. Uma imagem de um ca- valo refreando a tensão no momento em que se prepara para disparar em corrida. Com ela, e não com a Clara, que me tinha sido possível passar momentos, horas, em que tudo se processava como se uma porta de passagem estivesse permanentemente aberta entre nós. Mas também isso se tinha agora irremediavelmente dissipado. Esperei na varanda enquanto a Maria José se arranjava. Depois deu-me boleia até ao hotel. Despedimo-nos com algum afecto. Mas sem emoção. Cada um trancado no seu universo estanque e intransmissível. Do quarto telefonei para a TWA. Colocaram-me em lista de espera. Arrumei a mala. Des- 233

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ci até ao lobby. Apanhei o minibus do hotel até Kermedy. Comprei um jornal e uma revista. Sentei,me na sala de espera. Tanto me fazia. Ali como noutro sítio qualquer. Em Manhattan ou no aeroporto. Na América ou em Portugal. Em lista de espera. 234

XX111 ulguei que fosse o telefone. Olhei para o relógio. Os números luminosos recortados na escuridão do quartzo diziam-me seis horas e trinta e três minutos A. M. O som da campainha tinha dado lugar a um silêncio total. Provavelmente um sonho, um pesadelo. Mas depois voltou a tocar. Levantei-me. Dei com o roupão, a tactear. O coração acelerando-se de aflição. Perguntei quem era. Apenas o Luís. Abri a porta da rua. Senti-me uma ruína. Apertei o roupão. Passei os dedos pelo cabelo. Mas não adiantava. O Luís. Extraordinário, tinha-me quase esquecido de que ele existia. Creio que não voltei a pensar nele durante os úl~ rimos dias, Instalámo-nos na varanda. Arranjei sumos de laran~ ja. Ele tinha pedido um whisky. Como uma criança, apenas para eu dizer que não devia. Entrei no jogo; respondi-lhe: toma juízo, vais mas é beber um sumo de laranja; quando muito um café. Ainda dei um salto à casa de banho para passar a escova pelo ca- belo. O Luís regressava obviamente da ponta final do drama que há muito lhe estava destinado. Drama chamado Clara, como não podia deixar de ser. Escrito desde o primeiro dia. Eu diria mesmo, desde o dia em que ele nasceu. O Luís traz dentro de si uma amargura e um pessimismo que nunca se deixam desmentir. Em minha opinião, na base de tudo está um infernal narcisismo. O Luís feito Sol, à volta do qual todo o Universo roda. É ver o cuidado com que ele se veste; a atenção a pequenos pormenores: gravatas, lenços, meias; preciosismos com os quais tenta deixar nas roupas um subtil toque pessoal; um toque como se fosse o seu ex libris. Quem lho aponte deparará com uma recusa acompanhada de um sorriso de inconfundível satisfação. O narcisismo. É ver a desordem íntima que lhe causa o menor reparo às suas palavras ou aos seus actos. A obsessão de um mundo perfeito, em que insiste apenas para no fim se desesperar em irremediável 235

frustração. Um psicanalista diria talvez que o Luís percorre a vida tentando mostrar-se à altura da imagem impossível que de si mesmo inventou. Suspeito que para conquistar a aprovação de um secreto interlocutor. A mãe, o pai, uma mulher, um fantasma indeterminado. E, caso a aprovação falhe, restar-lhe-á sempre a esperança de uma compaixão que perdoe. Depois apareceu a Clara. A belíssima Clara, que o Luís seria incapaz de se deixar mover por um objecto imperfeito. Não será apenas isso, a Clara. Mas cabe tambér-n, como um arquétipo, naquilo que nos meus tempos se costumava designar por mulher-objecto. Simboliza, nessa medida, tudo o que eu mais odeio. Não consigo, mesmo as- sim-j .a o disse - deixar de sentir por ela alguma simpatia. Contraditória como sou nos meus amores e nos meus ódios. A belíssima Clara. Mas nada de comparável ao que havia de fulgurante na beleza etérea, quase divina, da Marta. Por quem eu, incorrigível pato desajeitado, nutri em tempos a mais profunda admiração e, simultaneamente, os mais secretos ciúmes. Minada, já então, de irredutíveis contradições. Mas o Luís? O Luís mergulhou na relação com a Clara agrilhoado por aquilo a que eu chamaria um preconceito de tragédia. Concedo que os dados não seriam à partida dos mais favoráveis. Mas a verdade é que manteve sempre uma doentia preocupação com tudo o que os separava. Numa vertigem masoquista, andou inconscientemente à procura de razões para

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alimentar os preconceitos que tão cuidadosamente tinha montado. E pelo menos nisso teve êxito: encontrou as razões todas. Depois, o processo auto-alimenta-se: tudo serve para confirmar a justeza da postura mental de que se partiu. Ao princípio recorreu a mim para verter as erupções do seu mal-estar íntimo. Fui eu a escolhida, substituindo sem dúvida o interlocutor secreto ao espelho do qual o Luís procura rever-se em cada passo da sua vida. Não me importei particularmente; nem tão-pouco lhe prestei demasiada atenção, absorvida como estava pelos meus próprios problemas. Mas fui a bengala disponível a que ele pôde encostar-se. Em N.Y., a sós com a Clara, presumo que tenha voltado a encontrar-se frente a frente com os seus exigentes fantasmas. Não creio que nesta fase o Luís seja capaz de coexistir com quem quer qye seja. Veja-se aquela obsessão de não parar em lado nenhum. E a tradução primitiva, mas inútil, da compulsão de fugir. Fugir de tudo, incluindo daquilo de que se não pode fugir. Deambular pelas ruas, entrar e sair de bares. A pressa, durante a viagem, de seguir para o destino seguinte. An- 236

tes quase de olhar em volta. A bebida, os calmantes e os estimulantes. A necessidade de não se demorar nos lugares físicos e mentais em que está. A ideia porventura de que existe um outro canto na alma em que encontrará a paz. E não era a Clara quem lhe daria o safanão de que ele precisava. já o disse. Mas repito: a Clara não deve ser subestimada. Há ali material para qualquer coisa. Mas não certamente ainda para se dedicar a um minucioso trabalho de ourives de almas delicadas. Está na idade de descobrir. Na fase da quantidade, em que não é preciso escolher porque tudo parece ainda possível. Na fase em que se não pensa: vou demorar-me por aqui, vou tratar de moldar neste ponto o meu futuro. Seja como for, naquela manhã, naquela madrugada, os padecimentos do Luís apanharam-me num estado de espírito de quase total indiferença. Não sei se estaria a retribuir-lhe pela forma como me tratou no fim da viagem. Creio que não. Foi an- tes a incapacidade de absorver os dramas dos outros. Estou, eu própria, emocionalmente esgotada. Como um computador em overload. Não fui propriamente desagradável, nessa madrugada. Antes fria e longínqua. E dissimulei mal o alívio que senti quan, do o Luís me falou em regressar a Portugal nesse mesmo dia. A partir daquele momento tornei-me mais expansiva. Bem-disposta. Prestável. Saber que dali nada mais me seria pedido. Dei-lhe boleia até ao Chelsea. E quando o vi sair do carro, despedir-se e virar-me as costas, tive a sensação de que aquele era o primeiro dos meus problemas a desaparecer. Sexta-feira, nove e meia da manhã. Só por volta da uma se saberia o resultado da reunião dos parmers da firma. Não estava propriamente nervosa. Talvez uma certa agitação. Arrumei o carro num parque de estacionamento. E continuei as minhas voltas na Quinta Avenida. Muitas montras. Riding High, Fiorucci, Dianne B. As coisas maravilhosas que jamais terei dinheiro para comprar. As poucas que de facto comprei foram funcionais. Preparando-me para tomar de assalto, com um mínimo de estilo, o novo ano de trabalho. Também vi jóias. Experimentei algumas. Prometi que me compraria o anel de esmeraldas e rubis se saísse vencedora naquela tarde. Uma espécie de promessa pagã. Um sacrifício ao deus do sucesso. Uma forma supersticiosa de tentar influenciar o destino. Absurdo. Sorri. Pelo menos para dentro. Esta inexplicável sensação de liberdade de que nunca deixa de me encher a fuga para comportamentos sem lógica. Talvez por tão poucas vezes me autorizar a tê-los. Depois estive a re- 237

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fazer o meu stock de livros. Sei, de experiência dolorosamente vivida, que, ao recomeçar a trabalhar, não conseguirei já criar-me tempo e disponibilidade para me demorar em livrarias. Não ser capaz da paz de espírito suficiente para me concentrar nos livros espalhados pelas estantes. Limitar-me-ei a comprar paperbacks nos supermercados, juntamente com cassettes de vídeo, leite, pão, fruta e detergentes. Mas hoje vinguei-me. Scribner's, Dalton's e Barnes and Noble. Depois tive uma ideia. Fui ao Gotham Book Mart e comprei uma edição antiga do Edgar Allan Poe ilustrada com gravuras. Para oferecer ao Luís. Sim, ao Luís. Tinha ficado com um pequeno espinho cravado na consciência. É claro que a oferta não resolvia nada. Não apagava o que se tinha passado. Nem era esse o meu objectivo. O livro seria antes um sinal. Um ponto de alguma interrogação. Ao recebê-lo em Lisboa, o Luís teria pelo menos de se perguntar se a impressão que consigo tinha levado da minha atitude para com ele corresponderia inteiramente à verdade. Ao meio-dia e um quarto tirei o carro do parque. Depois de uma ríspida troca de impressões com o guarda acerca do tempo que o carro tinha efectivamente estado na garagem. Na base da disputa, o facto de ele me ter contado os cerca de dez minutos que demorou a extrair-me o carro do fundo do parque superlotado. Quando entrei em casa faltavam dez minutos para a uma. Preparei uma sandwich. Abri uma cerveja. Fui para a varanda. Pelo caminho certifiquei-me de que o telefone estava efectivamente bem pousado. Duas trincadelas no pão. Mas o organismo rejeitava-me o resto. Bebi lentamente a cerveja até ao fim. Encostei-me para trás. Tentando convencer-me de que não ganhava nada em enervar-me. Raciocínio inútil. Levantei-me. Da carteira retirei o envelope com as fotografias da viagem que, acabadas de revelar, tinha recolhido no drugstore. Fui buscar o álbum à estante. Nele enfiei as fotografias. Tratava-se de ocupar as mãos. E a parte possível do espírito. Censurei duas fotografias. Tinha ficado demasiado mal. Numa delas, exibia um sorriso alvar em que não me reconhecia. Na outra, dir-se-ia que tinha dez anos a mais. Rasguei-as. Retiradas ao escrutínio da posteridade. Por fim, tocou o telefone. Três quartos de hora mais tarde. Deixei a campainha repetir quatro vezes o seu zumbido abafado. Para não denunciar a ansiedade em que me encontrava. Para não me imaginarem, ridícula, sentada ao lado do telefone. A voz do Tim surgiu clara, jovial. Disse: parabéns, pequena, conseguis- 238

te. Perguntei o que é que se tinha passado. Quer dizer, ouvi-me a perguntar; que o meu estado era de choque; perdido o domínio sobre o meu corpo; coração numa cavalgada. O Tim disse que não se tinha passado quase nada. A minha - como lhe havemos de chamar? - proposta - passou sem oposição. O problema, o assunto - emendou o Tim - tinha sido por ele exposto em meia dúzia de palavras. Quando parou de falar, fez-se silêncio. Como ninguém quis debater a questão, passaram a ayes and nayes. Após o que o Tim constatou: 1 think the ayes have ir. E houve sorrisos a sublinhar o understatement do Tim; é que ninguém tinha votado contra. Como é que ninguém votou contra? - disse eu - e o Jack Witney? O Tim respondeu que era típico do Jack, sabendo, à partida, que estava derrotado, Explicou-me que durante a semana tinha feito algum trabalho de bastidores. Na realidade havia cinco a favor, um hesitante e dois contra. There was no doubt about the outcome - disse o Tim - and Jack didn't have the guts to stand up and be counted. Agradeci-lhe. Ia, aliás, continuar a agradecer-lhe durante muito tempo. A minha pequena vitória. A grande vitória do Tim. Mas depois ele disse que havia

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apenas um pequeno senão. Tinha sido decidido que eu passaria a ser a responsável pelo pessoal. Reagi como uma mola. Odiava o pessoal. O Tim disse que tinha sido esse o preço. Ainda insisti: mas o pessoal é do Johnson. O Tim respondeu que o Johnson se tinha oferecido para Chicago. Como vês, foi uma autêntica obra de arte, as peças a caírem todas nos sítios certos. E depois disse: segunda-feira entras como um conquering hero. Até lá, tens o fim-de-semana para celebrar. Trocámos mais algumas frases deste tipo. Quando pousei o telefone, não sentia absolutamente nada. Como o momento logo após uma pancada violenta. Tive de começar a repetir-me mentalmente: ganhei, ganhei, ganhaste, Maria José. Levantei-me. Pus-me a andar dum lado para o outro, A minha agitação tornou-se então quase incontrolável. Apetecia-me chegar à janela e gritar: ganhei. Apetecia-me telefonar a alguém e contar. Ouvir felicitações, parabéns, frases de admiração, de reconhecimento, de confirmação das minhas qualidades. Sei lá. Ainda pousei a mão direita no te- lefone. Mas depois parei. A verdade era simples e desagradável: não tinha ninguém a quem telefonar. Mesmo o David. Se lhe contasse, provavelmente perguntar-me-ia: isso é bom? E deixar-me-ia perceber o seu categórico desprezo por mais uma das minhas pírricas vitórias no mundo de plástico. Plastic people e os 239

Mothers of Invention, que o David me cita sempre nestes casos. O Tim tinha-me dito que celebrasse durante o fim-de-semana. Mas celebrar com quem? Tenho até logo à noite para decidir se me apetece apanhar uma bebedeira a sós. Não obstante, acabei por tentar o David. Telefonei-lhe várias vezes. Consegui apanhá-lo por volta das cinco e meia. Perguntei-lhe se queria vir jantar a minha casa; e podíamos passar a noite in a nice, quiet talk; or whatever. A dangling conversation. Um engodo não inteiramente inocente. Se lhe apetecesse, podíamos até continuar a conversa da noite anterior. Mas só se ele quisesse. Por mim, o que me apetecia naquela noite era apenas um pouco de companhia. Toda eu compromisso. Abjectamente. O David disse que sim. Mas senti que o fazia com alguma reticência. Seria o receio de reabrir a discussão? Desastrada, ao voltar a mexer na ferida. Falou em trabalho que precisava de completar durante aquele dia. Mas sim, estava bem, aparecia; não para jantar; mais tarde, por volta das dez ou onze. Não, não seria certamente receio da conversa o que o tinha feito titubear um pouco; apenas, como tantas vezes, tenho a certeza, a perturbação que lhe introduzo nos planos por ele tão meticulosamente preparados. Nunca hesita, o David, em colocar a sua poesia à frente de tudo o resto. À frente de mim. E nunca hesita também em mo declarar. Depois saí. Fui ao supermercado comprar os ingredientes para fazer uma ceia. Cuj a preparação me ocupou até à hora de jantar. Com o rádio pousado no parapeito da janela da cozinha, saciei-me de música clássica. Mas perdi completamente o apetite. jantei uma omolete e um pêssego. Depois mudei de roupa. Arranjei-me um pouco. Cinco minutos apenas em frente ao espelho. Após o que me sentei no sofá a ver televisão. Só encontrei programas idiotas ou filmes que já tinha visto. Pus a correr uma cassette com episódios antigos do Cheers. Eram quase onze quando o David tocou à campainha, Vinha fresco e rejuvenescido, sem nenhum do abatirriento em que o tinha deixado na noite anterior. No fundo, no fundo, regressava como um vencedor. E trazia vestida a sua espantosa farda à Chairman Mao. Uma relíquia dos tempos em que aquela indumentária seria a última ousadia da antimoda. Mas nesse dia deu-me apenas para rir. O David, tal como o Luís, muito meticuloso sempre quanto à sua aparência, ainda tentou discutir com a minha gargalhada. Mas depressa mudei de tom.

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Depressa. Sentámo-nos. Antes, passãmos pela cozinha e preparámos bebidas. O David tinha trazido 24O

um saquinho de plástico com hortelã-pimenta. Porque, inexplicavelmente, o desejo de um mint jullep não o havia largado o dia todo. Agora só falta o Kentucky Derby - disse eu, no momento em que peguei no copo. Sentámo-nos. O David disse: bom, cá estamos outra vez. Disse-lhe que era suposta passar a noite a celebrar. Tinha sido promovida no emprego. Estava muito satisfeita. Referi tudo isto num tom entre o ligeiro e o monocórdico; sem empenho ou entusiasmo. One of those things. E referi-o sobretudo muito depressa. O David comentou: então suponho que isso é bom; congratulations to you. A insuportável distância que ele teima em manter; a implícita desaprovação de toda uma parte de mim. Desaprovação que, nos momentos melhores, se queda em complacente indiferença. Factores de fricção não faltam entre nós. Fricções presentes e futuras. Mas pelo menos está tudo identificado, inventariado quase. Será que está mesmo? E haverá alguma vantagem em que esteja? Levantei-me e pus um disco de jazz a tocar muito baixo. Entretanto, disse que sim, que era muito bom para mim, mas que não valia a pena falarmos no assunto. Só o tinha mencionado para ele não se admirar se eu apanhasse uma bebedeira. Respondeu que detestava ver mulheres bêbadas. E homens também. Simplesmente, com homens era fácil um tipo levantar-se e sair. Voltei a sentar-me. Descalcei-me. Dobrei as pernas debaixo do corpo. Preparando-me para uma longa noite. E então perguntei pela Cathy. Não consigo imaginar o que é que me levou a fazer a pergunta. O David disse que ela estava mais ou menos o.k. Não só perguntei como ainda lhe pedi desculpa pela maneira rude como na noite anterior tinha reagido à história da Cathy. Depois falámos um pouco da música que estava a tocar. A noite a transformar-se num desfiar suave de pequenos temas de conversa que serviam para acentuar o conforto de estarmos juntos. A dangling conversation. Sim, conforto, era essa a palavra que o David me invocava. E uma coisa era certa: ia deixar o grande tema (com letras maiúsculas) para outro dia. É que naquele momento tudo me parecia um sonho na véspera de se realizar. E não tencionava tocar nessa ilusão. Possível era também já falar da Cathy. O que o David pressentiu. A intervalos quase regulares voltava ao assunto. Tinha estado a pensar, depois da conversa de ontem à noite. E chegado à conclusão, não podia deixar de mo dizer, que a Cathy preenchia na vida dele um espaço que eu não podia ocupar. A disponibilidade total, mesmo quando estava ausente. Uma maneira de ir ao en- 241

contro daquilo que nele se sentia atraído por uma mulher irredutivelmente passiva. Disse ainda que eu ocupava, no entanto, a parte do leão, com a minha natureza afirmativa, um pouco dominadora até por vezes. E era uma parte de que ele precisava também. Sorri e disse que ele era uma criança. Perguntei-lhe se não tinha ainda chegado ao ponto da vida em que se é confrontado com o facto de não se poder ter tudo, de ser preciso escolher umas coisas e renunciar a outras. O David sorriu também - tudo sorrisos - e disse que não, mas pressentia que eu iria em breve fazê-lo chegar a esse ponto. Respondi-lhe que pressentia bem. E depois disse: mas deixemos andar, por hoje. Ele repetiu: isso, deixemos andar por hoje. Levantei-me e fui buscar a ceia. Que coloquei na mesa da varanda. O David acendeu a vela. Sentámo-nos

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frente a frente. Eu tinha comprado três queijos franceses, caviar Beluga e bolachas de água e sal. O Dom Perignon tinha sido oferta do David. Quando protestei - ele não devia delapidar o dinheiro daquela maneira - o David respondeu que o pai estava cada vez mais generoso. Ao fim de tantos anos, tinha-se finalmente convencido de que nada neste mundo faria com que o filho se resignasse à vida pacata dum homem de negócios em Pittsburgh. Assim sendo, que ao menos não andasse por N.Y. a desgraçar com a sua indigência o nome da família. Mas depois o David explicou que a sua relativa prosperidade actual era devida sobretudo à influência da mãe. Nessa frente, portanto, as coisas a melhorarem. Duvidava, porém, que se encontrassem já preparados para a notícia de que estava envolvido com uma mulher mais velha. O que lhe saiu com a inocente naturalidade que tão bem sabe dar às frases verdadeiramente contundentes. Mesmo assim, gaguejou um pouco no fim da frase. E achou necessário pedir-me desculpa pelo que tinha acabado de dizer. Respondi: sei perfeitamente que idade tenho e também sei a tua idade; e alguma vez pedi para ser apresentada aos teus pais? Não pude evitar um pouco de amargura nas palavras que me saíam. O David optou por ignorar a minha tirada e, com a boca ainda cheia, disse: sugar mamma, spoiling me with french cheese; how can 1 ever go back to cheddar? Bonomia. Disse-lhe que podia brincar o que quisesse; mas o facto era que, precisamente por ser mais velha, eu lhe dava uma sensação de segurança de que ele precisava. O David não respondeu. Eu disse ainda: é que, no fundo, no fundo, tu achas que comigo não precisas de te preocupar. You take me for granted, and 1 hate that. Estou a con- 242

vencer-me de que, no fundo, no fundo, devo à Cathy o facto de te ter. Disse-o meio a sério, meio a brincar. Mas, ao dizer aquela frase, caiu sobre mim a certeza de que o David me mantinha como uma espécie de antídoto para a Cathy. Éramos duas faces de uma mesma moeda. O herói e o vilão de que um bom melodrama precisa em doses iguais. E o vilão era eu, sem sombra de dúvida. Depois pensei: ridículo. E sorri. O David perguntou porque é que eu me estava a rir sozinha. Respondi que me estava a lembrar dum filme. A noite a tornar-se fresca. Uma brisa leve. Voltámos para a sala. Pus a tocar uma cassette gravada exclusivamente com cantigas de amor. O volume baixo, o som atingindo-me como o eco dum mundo distante. Encostei-me ao David e disse-lhe: be nice to me. Fez-me festas. Na cabeça. Nos braços. Os dedos passando-me nos lábios. Disse-lhe que me apetecia ficar assim a noite toda. Ele disse: só assim? Eu repeti: só assim. Encostei-me um pouco mais para sentir o corpo dele. Depois o David começou, de forma quase imperceptível, a dar às suas carícias o sentido inconfundível do desejo físico. Afastei-me um pouco. Disse-lhe que não, hoje não. Parou. Disse-me que estava bem. Desculpei-me: desculpa, não te importas muito? O David disse que não, que não tinha importância. Até fez humor: aceitava tudo, desde que não me desculpasse com dores de cabeça. Depois levantou-se e foi até à estante. Como se estivesse a estudar os títulos. Eu disse: David, ficaste chateado. Em vez de responder, o David disse: suponho que isto tem alguma coisa a ver com a conversa de ontem. Eu disse que não. E depois disse: talvez; mas não era o que ele estava a pensar. Apenas que precisava de um pouco de tempo para tentar perceber o que estava a passar-se comigo. O David retirou da estante os Quatro Quartetos do T S. Elliot e começou a ler alto. 1 said to my soul, be stilI, and wait without hope / For hope would be hope for the wrong thing; there is yet faith. Adora recitar. Ouvir-se. E tem razão, porque fá-lo com força, com ritmo, com melodia, com música, acariciando as palavras com a sua voz quente e

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cheia. Plena de profundidade, mesmo quando diz as coisas mais triviais. Parou bruscamente, no meio de um verso. Começou a folhear o livro. Foi então que eu lhe atirei à queima-roupa: David, há uma coisa que tenho de te dizer; no outro dia fiz amor com outro homem. O David fechou o livro. Pousou-o na estante sem se dar ao trabalho de o arrumar e disse: és livre de fazer o que quiseres, sabes perfeitamente. Foi isso que as palavras disseram. Mas todo ele dizia o 243

contrário. Expliquei que tinha sido há três ou quatro semanas. Num período em que ele estava praticamente incomunicável por causa da Cathy. Olhando para trás, tinha chegado à conclusão de que foi uma espécie de desafio, de aposta comigo mesma. Quis provar-me que não me encontrava emocionalmente dependente do David; que, se havia dentro de mim um compromisso para com ele, esse compromisso não era total. Quer dizer, não era total ao ponto de não me restar uma pequena reserva que permanecesse livre. Fez-se silêncio. Um longo silêncio. Tive um instante de pânico que me levou a dizer: ou talvez tenha sido apenas uma forma tortuosa de vingança. O David disse que eu não precisava de lhe dar explicações. Eu disse: importas-te de deixar de repetir isso? Se eu estava a falar no assunto, era porque queria explicar. O David disse: porquê? Porque talvez o objectivo tenha sido precisamente vires depois contar-me? Confessei que não sabia. Que na altura não tinha pensado nisso. Mas, de qualquer maneira, foi uma coisa traumatizante. Deixou-me esfrangalhada. O David continuava sério, grave, a sua expressão completamente fechada. Reacção que acabou por me encher de alguma satisfação. As pessoas têm maneiras diferentes de mostrar que gostam de nós, que precisam de nós, que não querem partilhar-nos com mais ninguém. A maneira do David era aparentemente aquela. Depois disse-lhe: sabes, David, quando quero estar contigo e não posso, sinto-me infinitamente mais sozinha do que se tu não existisses de todo, mais sozinha do que se não houvesse ninguém no mundo que gostasse de mim. O David sentou-se ao meu lado. Virou-se para mim. Beijou-me. Disse: perdoo-te. Sorriu. Eu sorri também; mas disse: sabes, David, o drama disto tudo é que tu não estás sequer em posição de me perdoar. E ele disse: o.k., não te perdoo; mas queres saber um segredo? Tenho ciúmes. Eu disse: ciumezinhos, quando muito. Ele disse: ciúmes enormes. Eu disse: de que tamanho? Ele abriu os braços e disse: deste tamanho. 244

XX1V D omingo. Meio-dia. Acordo com uma tira de sol atravessando-me a cama. E uma leveza como há muito tempo não sentia. Viro-me para o outro lado. Apetecia,me dizer que o bem,estar se vira comigo. Estou definitivamente acordada. Só me falta abrir os olhos. Mas antes de o fazer, tento recordar-me, perceber por que razão me sinto tão bem e em paz comigo e com o mundo. Depois, num só instante, como peças de um puzzle, encaixam-se dentro de mim as respostas todas. Dormi dez horas. Um pouco mais. Também hoje me vou dar ao luxo de deixar as horas fluir sem me ocupar de as preencher num frenesim com as mil e uma coisas que na minha vida reclamam atenção. Sobretudo sem que sinta a necessidade, a obrigação de o fazer. Levanto-me. Na cozinha preparo um brunch insensato. Coloco tudo num tabuleiro e depois sento-me na varanda com o rádio sintonizado em música clássica. Penso no

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meu sábado da véspera e penso no David e nas intermináveis pequenas atenções com que ele me estraga desde que começou a recear que eu possa fugir-lhe. É curioso como as coisas acabam por desenrolar-se sempre no sentido que não estava planeado. A conversa, entre aspas, com o David foi, na realidade, outra coisa. Deslocou a nossa relação para um território novo. E tornou-se sobejamente evidente que não lhe vou apresentar ultimato nenhum. Nenhum ultimato a que esteja ligada a penalidade de o abandonar se ele não descartar a Cathy. Em vez disso, ficou bem claro que me é extremamente penoso suportar a situação presente. E ficou também claro que recai sobre o David o encargo de encontrar uma saída. Quererá ele encontrá-la ou não? The 64 OOO dollar question. A ver vamos. Entretanto, continuarei tocando de ouvido a sinuosa partitura da minha vida sentimental. O que estou, no fundo, a fazer é a manter sobre o David uma pressão que ele não poderá 245

indefinidamente ignorar. Eu pró @pria me encarregarei disso. Custa-me fazê-lo; mas tem de ser. E um acto impuro. Um gesto de cálculo; o que eu nunca tinha feito em relação ao David. Apesar das circunstâncias. É que tenho tentado manter-me à altura da romântica noção que eu mesma criei, segundo a qual o amor, para ser absoluto, para ser quase abstracto na sua perfeição, não deve ser contaminado pelas sórdidas contingências da realidade. Fascina-me descobrir ainda dentro de mim um recanto que deseja, que suporta, que alimenta essa planta exótica a que chamarei amour fou. E eu sempre tão pragmática e positiva em todas os trâmites da vida. E do amor. Até aparecer o David. Que me enche de atenções. Que agora tem gestos que nunca teve. Por exemplo, ternuras banais como segurar-me a mão no cinema. Cheap thrills, diria o Frank Zappa. Mas a verdade é que me souberam bem os cheap thrills. Regressei um pouco ao tempo remoto em que frequentava drive-ins. Ou a preocupação de falar comigo, de conhecer a minha opinião, de me inventar desejos para depois os poder satisfazer. Foi assim o meu sábado. Uma sucessão de coisas simples. Coisas como as que preenchem a vida das pessoas que não precisam de a cada passo se perguntar se são felizes. Também ontem me levantei tarde. Tomei um prolongado banho de espuma. Deixei-me estar na banheira a ler, renovando várias vezes a água quente. Depois meti-me no carro e fui buscar o David. Tínhamos combinado um pic-nic. O dia azul. Uma aragem indecisa como um baloiço abandonado. O Sol limpo, não demasiado quente. Deixámos o carro na orla da mata e transportámos o cesto e o cobertor durante cem ou duzentos metros até um sítio totalmente isolado. Comemos. Bebemos uma garrafa de vinho branco. O David dormiu um pouco. Estendi-me no cobertor a fazer coisa nenhuma. A não ser olhar para o céu e acompanhar com os olhos o lânguido movimento das árvores. E nem sequer pensar. Mais tarde jogámos às cartas e conversámos. Depois camuflámos o cobertor e o cesto do pic-nic dentro de um arbustro espesso e demos uma volta pela mata. O ar puro, o silêncio, o ruído solitário dos nossos pés a pisarem as folhas secas no chão. O David tinha levado a máquina fotográfica, Gastou quase dois rolos só comigo. Primeiros planos, todos da minha cara, do meu perfil, do meu cabelo. O corpo humano. As únicas imagens de que ele gosta. A cara revela tudo - costuma dizer o David - o resto são disfarces e cosmética. Ao fim da tarde, de regresso à cidade. No horizonte, o esplendor de fogo do pôr do Sol. Fomos 246

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para minha casa. E gastámos o tempo em entretenimentos igualmente simples. Ver os meus velhos álbuns de fotografias. Quando eu tinha vinte anos e acreditava em causas. Vinte anos e usava flores no cabelo. Ligeiramente gorda e, sobretudo, extremamente nova. As feições lisas, quase sem expressão, como se hesitasse ainda sobre qual a máscara com que um dia, finalmente, me decidiria a entrar na vida. Coisas simples que fizemos, o David e eu. jogar jogos no computador. Falar de livros e de filmes. Ouvir música. Mais tarde, retirámos hamburgers do congelador, que grelhámos no fogão e que depois comemos com pães, salada e muito ketchup e mostarda. Uma lata de Budweiser para cada um. Foi um pouco como se nos estivéssemos a conhecer de novo. Achei-me com direito de, pelo menos nestes dias, recolher a felicidade que estivesse ao meu alcance. Depois da conversa da outra noite, sentia-me paradoxalmente liberta. O ar purificado após a tempestade. Um enigmático equilíbrio interior. Um raro equilíbrio interior. Que nada, por enquanto, mo pusesse em causa. Ainda em minha casa, já noite avançada, expliquei-lhe, porém, quanto me contrariava ser tratada como se fosse uma mulher forte. Que não sou. O David não pegou no tema. Mas pegou na mensagem. Redobrando as atenções, o carinho, o afecto. Em doses generosas e ridículas. No fundo, como o carinho e o afecto devem ser. A arte do doce exagero. Tentando lerme nos gestos, nos olhares, nas palavras. Percebendo-me sem que eu tivesse de lhe falar. E ainda como se o sexo nada tivesse a ver com tudo aquilo. O equilíbrio, a paz, que o sexo pulverizaria em estilhaços de desejo, de intensidade, de prazer. Não, nestes dias, a quietude apenas. Uma espécie de Primavera da alma. Duas da manhã quando o David chamou um táxi. E despedimo-nos à porta trocando beijos serenos. Domingo. Sinto-me bem entre estas paredes que são minhas. Olho para a sala, para os móveis, para os quadros; já com um toque de saudade. Objectos que são eu tanto como a minha voz, o meu cabelo. O meu corpo, quase. Com saudade, porque nos últimos dias tenho tentado habituar-me à ideia -de que terei de mudar de casa. Chegado o momento em que não posso já adiar um encontro cara a cara com o futuro. A renda que aqui pago deixa-me financeiramente de rastos. Não sei bem o que vou fazer. Repugna-me a estagnada sensatez de um recanto suburbano. Mas tenho de investir numa casa que seja minha. Surpreendentemente, como uma doença que se declara sem aviso, parece-me 247

hoje natural pensar nestas coisas. Em todo o caso, a ideia de me mudar para os subúrbios dá-me calafrios. Recuando mais uma trincheira. Cada vez mais afastada da pequena ligeiramente gorda, desajeitada e ridícula que em fotografias desbotadas exibe as suas flores e o seu sorriso como se fossem ambos um projecto de vida. Mas é domingo. último dia de férias e estou na disposição firme de censurar tudo o que de menos agradável me passe pelo espírito. Fazer umas arrumações na casa. Apenas algumas: os objectos que gosto de reencontrar e de periodicamente ordenar. Ouvir música. Sentar-me a ler. Dar uma volta pelo parque. Não pensar em amanhã. Convencer-me de que é preferível enfrentar de improviso o embate com o meu novo estatuto profissional. Regressando do parque, passarei pelo Zabar's para escolher um jantar digno de uma comemoração a sós. A comemoração do reencontro, da reconciliação, com a pessoa que sou. Tal qual. E não a pessoa que em vão insisto em querer impor-me. Pareço o Luís; mas supynho que todos trazemos dentro de nós duas ou mais pessoas. A noite sentar-me-ei, num abandono consentido, ou, mais do que isso, desejado, em frente à televisão, deslizando no prazer de me entregar às imagens e às palavras que, sem eu ter de escolher, me são oferecidas. Talvez telefone ao David. Um telefonema breve, para lhe dizer

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muito simplesmente que gosto dele e tenho saudades dele. E nada fazer para saciar as saudades. Regressei do passeio mais cedo do que tinha previsto. Apesar do tempo que despendi na deli, mesmerizada pelos mil e um requintes inventados em todo o mundo para um acto tão simples como comer. Quando abri a porta do apartamento, os olhos detiveram-se-me no telefone. Não sei porquê. Mas detiveram-se. E pensei na mãe. Achei que devia telefonar para Lisboa. Sabia, no entanto, que não me apetecia. Mas o dever. Ocorreu-me que era, em última análise, uma q9estão de força de vontade. Essa minha nova palavra de ordem. E muito simples. É assim: obrigo-me ao acto material; neste caso, pegar no telefone e marcar os números. O facto consumado. Perante o qual me coloquei. E desse modo me forço a ter coragem. Mas repara, Maria José, como estás no fundo a praticar já os exercícios mentais que hão-de preparar-te para os embates de amanhã. Atendem do lado de lá. Troco palavras breves com o meu irmão. A família reunida. Ou não fosse domingo. Com a mulher e as três crianças. São, eles sim, uma alegria para a mãe. O Carlos passa o telefone à mãe. E sou confrontada com a voz irreconhecível duma lutadora venci- 248

da. A voz desfalecida de quem sabe que à vida já nada mais pode pedir. Entabulamos o simulacro de um diálogo. Meto numa pequena cápsula as minhas últimas semanas. Digo-lhe também que fui promovida no emprego. A mãe diz-me apenas: ah sim, Misto de descrença e de indiferença. E depois diz-me que está só, extremamente só. Que os seus dias são feitos de nada. Que os dias passam e não lhe resta senão esperar pela morte. E depois diz ainda: nunca imaginei que chegaria a isto. Trata-me por filha, repetidamente, enquanto se lamenta de que a vida lhe passou tão depressa; que tudo se passou como se tivesse sido um instante apenas. E eu, porque é que nunca aparecia? Depois despedimo-nos; desligámos o telefone. Sentei-me no sofá. A mãe. Lembro-me, acima de tudo, da força imensa de que eu a imaginava investida. E também do medo, do pânico que uma só frase, um simples olhar da mãe me provocavam. Mas, ao mesmo tempo, a segurança. Como se reconhecesse nela a barreira intransponível que me separava da minha própria mortalidade. Ter quem tomasse conta de mim. Me desse uma metafórica mão. Me salvasse no último momento. A ideia de que havia um derradeiro refúgio onde poderia sempre abrigar-me. Mesmo com vinte anos de separação quase contínua, a sensação sobrevive. Ainda agora, ao espelho, de manhã, a arranjar-me, ou sozinha a guiar o carro, sucede-me por vezes ficcionar diálogos em que me abro à mãe e obtenho aquilo que na realidade nunca obtive. A aprovação dela. A sua imagem, a sua voz, no entanto, cada vez mais distantes. Como as palavras que me chegam cansadas e sumidas quando falo com a mãe ao telefone. Esvaída de uma penosa viagem que a leva cada vez para mais longe. E à minha volta apenas as palavras que eu invento. As minhas palavras sem resposta. À minha volta o silêncio. Eu, irremediavelmente só. Forçada por fim a olhar a minha morte nos olhos. Levanto-me. Do armário tiro um dos álbuns. Não o que ontem folheei com o David. Recuo muitos anos atrás. Fotografias a preto e branco. Quase todas mínimas, desfocadas, desbotadas. Pequenos ícones. Miniaturas distantes do passado. Uma menina que esforça um desconfortável sorriso para a câmara. Grupos de crianças surpreendidas, as suas expressões atónitas, como se não tivessem percebido ainda por que razão se encontram neste mundo. As roupas nunca bem no sítio. O carro. A praia. Os primos. As férias. O cão, que não tinha outro nome que não fosse cão. Os meus pais, de braço dado, com o outro braço, o braço livre, a acenarem um sorriso 249

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numa fotografia mal enquadrada. E a mãe, a tapar a cara com as mãos (porquê?) - dir-se-ia que não queria ser fotografada. Depois um postal. Dirigido directamente a mim - senti-me importante e crescida - da vez que foram a Madrid. Desencaixo o postal. A letra do pai. Nossa querida Zezinha. Depois a avó. Sentada numa cadeira de lona. Vestido escuro, uma grande gola bordada. Linha e agulhas de tricot nas mãos, E eu outra vez. A ter uma birra. A chorar. A rejeitar qualquer coisa com um gesto de irredutível desespero. A mãe, inexplicavelmente num canto da fotografia, a olhar para mim e a sorrir. Fecho o álbum. Imagens irreais. Pedaços de um sonho. Será que tudo aquilo alguma vez existiu? Será que tudo aquilo vive ainda em mim como mais do que a sucessão dos ambíguos fragmentos que sou capaz de recordar? Não, não creio que me seja possível conviver no presente com o que esses momentos terão verdadeiramente representado. Com o que neles houve de essencial. O que eu sentia. Como eu me sentia. O próprio tempo que ocuparam. Não, o tempo é apenas o presente. As recordações são pontos unidimensionais, prisioneiros de um firmamento longínquo, que se afasta e que se esbate com cada instante que passa. Reparo que estou a chorar. A chorar, mas sem sobressalto. Como se as lágrimas se destinassem a limpar-me a alma. Eu tinha a certeza. E mesmo assim fui buscar o álbum. Acho que fui buscã-lo porque me apetecia chorar. E acho que me fez bem. Mas estou exausta. Levanto-me. Seis da tarde. Não me apetece ler. Ou ouvir música. Ocorre-me ir visitar o David. Mas ocorre-me ao mesmo tempo que não seria boa ideia. Ando na sala de um lado para o outro. Nada me fixa. Nada me retém. Nada me prende a atenção. Mas, paradoxalmente, sinto-me bem. Apetecía-me fazer coisas. Cortar esta agitação sem rumo. Produzir. A minha dispersão é total. Tentar talvez tarefas conhecidas. Que possam ser executadas num esforço apenas mecânico. Dedicar-me a coisas conhecidas. Vou buscar o ficheiro. Papel e caneta. Começo a elaborar a lista de convidados para a festa que não posso deixar de dar em breve. Logo no princípio de Setembro. Retribuir convites. Sobretudo, na minha nova situação profissional, relembrar que eu existo às pessoas que contam. Recordar-lhes que pertenço. Que circulo no meio delas; como se fosse uma delas. E se calhar sou. Embora disso não me sinta ainda em condições de me convencer. É com frenesim, com tensão, com irresoláveis dúvidas que elaboro uma lista de setenta pessoas. O 25O

número ideal para esta casa, sabendo já que apenas umas cinquenta virão. Experiência destas coisas. O número adequado também para que uma função social deste tipo tenha o suficiente de impessoal. Arrumo a lista na pasta. Para amanhã a entregar à Vivian. Que fará os convites. Endereçará os envelopes. Se for ela ainda a minha secretária. Desejaria que não fosse. Mas falta-me a coragem para ser eu a tomar a iniciativa. Porque, no fundo, nada tenho de palpável contra ela. Restam-me apenas as razões sem razão, que são sempre as mais fortes. Um perfil psicológico demasiado saliente para o meu gosto. A perturbante segurança fria da Vivian. Um inato orgulho de si mesma. Mas nada disso são defeitos. Objectivamente. A partir de amanhã, às nove da manhã, voltarei a ser, também eu, objectiva, racional, fria. No meu curriculum não ficariam deslocadas as palavras premeditada e calculista. Tudo isso eu aceito sem ansiedade. Parte das certezas artificiais com que aprendi a conviver. Fecho a pasta. Pouso- ,a junto à porta. Como faço todos os dias há tantos anos que perdi a conta deles. Há uma eternidade, no fundo, porque para trás desses anos parece,me agora que nada pode ter existido. Ou que nada

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terei retido, o que é a mesma coisa. Depois preparo o meu jantar. Caviar, seguido de abacate com Madeira. E uma garrafa de Borgonha branco. Decido, aliás, que embebedar-me um pouco será uma das soluções para acompanhar a maré que dentro de mim continua a subir. Mas páro a um quarto da garrafa. O vinho a actuar como um estimulante. Como uma droga que me transforma esta difusa agitação em ansiedade e desequilíbrio. Ocorre-Me fumar um pouco de hash. Mas, que diabo, tem de haver limites. E, no fundo, sinto-me bem. Vou aguentar a pé firme, A televisão, no entanto, a incomodar-me um pouco: desde o princípio do jantar a agredir-me com imagens e sons a que não me apetece estar exposta. Mesmo assim, tento prestar atenção. Descobrir na comédia que estão a passar virtudes que ela não contém. Mas não consigo seguir o enredo. Os diálogos. As gargalhadas enlatadas do público como se fosse de mim que estivessem a rir-se. O meu espírito está noutro lado. No dia de amanhã. A hostilidade do Jack Witney. E de quem mais? Todos, no fundo, convencidos de que vou falhar. A necessidade de começar a provar, desde o primeiro momento, que sou capaz. Que hei-de eu fazer entretanto a esta visceral insegurança? Viver com ela, como sempre tenho vivido. Permanece, contudo, a certeza de que não vou ser capaz. Como se estivesse erigida num anúncio luminoso 251

em Times Square. Mas o pior não é bem isso. O pior é que sei que vou ser capaz. E sei também o preço que vou pagar para ser capaz. Factura a saldar com o meu desgaste quotidiano. Depois toca o telefone. O David. O seu tom é de pressa. Poucas palavras. Não queria obviamente abrir caminho para uma conversa prolongada em que pudéssemos trocar afectos verbais. Absurdas coisas de nada. Maravilhosamente absurdas. Não. É para me falar da Cathy. Que teve alta. Que regressou a casa. A casa dele. A casa deles. Diz que tiveram uma longa conversa. E que ela aceitou tentar, pelo menos tentar, regressar a casa dos pais. Com duas condições. A primeira, que o David a acompanhe e fique num motel próximo, à mão, para o caso de a Cathy precisar dele. A segunda, que o David a volte a trazer consigo se ela não aguentar o ambiente em casa. Observei que o esquema não me parecia muito prometedor. O David disse que era melhor do que nada. E, que diabo, o que é que ele podia fazer? Nas presentes circunstâncias - disse o David - era o melhor que eu podia conseguir. E eu disse: tu é que sabes. O meu desapontamento enorme. Mas ainda lhe disse para me telefonar sempre que pudesse. O David quis que eu não me preocupasse: ia fazer tudo o que pudesse para resolver rapidamente o problema. Depois despede-se com um intenso: 1 love you very much. E volta a telefonar-me em breve. Desliga. Pouso o aparelho no descanso. Parali- sada durante alguns instantes. Não retiro logo a mão. Resolver o problema da Cathy, Tudo o que puder. O problema dele? Ou o meu problema? Ambíguas palavras, pensando bem. Isto não pode continuar assim - é a frase que se me repete como um refrão sem fim. A conversa com o David. Pensada e repensada e ensaiada dentro de mim durante um continente inteiro, ida e volta. E acabei por tê-la daquela maneira fragmentada e írivia. Não pode pura e simplesmente abandonar a Cathy. Razões éticas. Receio que encostado ao conforto da sua própria servidão. Insuportável esta situação. Mas receio também que o David a tenha já aceitado como um simples incómodo na sua vida. Assusta-me o facto de haver dentro dele uma parcela que eu não entendo; a parcela que lhe tem permitido viver em aparente paz no vértice deste triângulo. Ocorreu-me forçar-lhe a mão.

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Um gesto deliberado, estudado, espectacular para fazer explodir o problema da Cathy. Um gesto que o colocasse perante a inadiável necessidade de escolher. Foi só uma ideia- Não desci ainda a esse nível. Odeio os caminhos sinuosos. As dificuldades atacam-se de 252

frente. As pessoas olham-se nos olhos. Quanta hipocrisia não passa por subtileza? Repito-me. Estou possivelmente obcecada com isto. Mas não posso deixar de perguntar-me, uma vez mais, se a existência da Cathy na vida do David não corresponde ao preenchimento de uma qualquer necessidade. A presença de uma mulher who can't help herself. O que, suponho, se enquadra, para um homem, nos contornos de um ideal feminino. Em particular para um homem essencialmente fraco. Como o David. Sentirá porventura a sua vulnerabilidade ameaçada por aquilo que ele considera ser a minha força. Soubesse ele de que fraquezas é feita essa força. Mas é certo que assim não posso continuar. Acabar? E o traumatismo que o acto de acabar não deixaria de me infligir? Uma coisa é pensar, aceitar racionalmente que assim não poderei continuar indefinidamente. Outra será passar ao acto de cirurgia por meio do qual teria de consumar essa certeza. Sem que tenha verdadeiramente dado pelos meus próprios movimentos, reparo que me desloquei até à varanda. Que estou encostada ao parapeito. Que olho com um olhar desfocado para o movimento das luzes na tira negra do rio. E que faria eu então? Um período de incontrolável instabilidade. De irremediável carência afectiva. Um vazio que se instalaria em todos os instantes dos meus dias. Sei bem como é esse vazio. Sei dolorosamente como é. já por lá passei. Várias vezes. Mais vezes, pelo menos, do que me apetece recordar. Ou então persistir. Ter paciência. Aguentar. Humilhar-me de vez em quando. Para quê? Sim, qual é, na verdade, o meu objectivo último? Habituei-me a viver sozinha. Gosto de estar comigo mesma. Sou a minha companhia preferida. Um vício, que nunca chega bem a ser saciado. Seria, porventura, capaz, neste momento, de partilhar a minha vida? E com o David? Suponho que deveria parecer-me natural, como o "e depois" de uma história. Mas a verdade é que não consigo imaginar-me, a mim ou ao David, numa relação total, sujeita ao inevitável desgaste do quotidiano. À repetição de gestos banais, de hábitos a dois, de pequenas cedências, de tolerância recíproca diariamente posta à prova. No fundo, a minha relação com o David não deixou ainda de ser um jogo de sedução mútua. Como se de cada vez tivéssemos de voltar a conquistar o outro. É esse o seu encanto máximo. Não conheço com ele outro modo. Colocar a nossa relação noutra base será, seria, no fundo, um salto de olhos fechados para o desconhecido. Viver com um estranho. Aconteceu-me com o Tim. O homem com quem casei não 253

foi o homem de quem me divorciei. Duvido que me apeteça repetir a experiência. E no fim, quando o fim chegou, os meses de agonia. But just for the sake of argument. Como seria, com o David? Eu a sair todas as manhãs de casa rumo à minha diária luta pela sobrevivência na selva em que estou mergulhada. Ele, em casa, à minha espera, cultivando entretanto a doce brandura da sua arte. Odiando os valores que eu implicitamente represento. Mas precisaríamos de viver juntos? Por mim, não. Suspeito, no entanto, que o David... Não sei. Estou exausta. Apesar do cansaço, ou talvez por causa dele, não consigo dormir. Voltas sem fim na cama. Os lençóis amarfanhados, massacrados. Manchas de calor no colchão. Acendo a

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luz. Levanto-me. Arranjo a cama. Encosto as almofadas à cabeceira para ler. Mas não consigo ler. As frases não fazem sentido. Pensamentos e imagens sem regra, transportando-me para pontos remotos dentro de mim. Levanto-me. Visto o roupão. Procuro a chave da casa. Guardo-a no bolso do roupão. Abro a porta do apartamento. Vou pelo corredor até à escada de serviço. Subo dois andares e estou no terraço. A noite apenas ligeiramente fresca. Encosto, -me ao muro que circunda o terraço. Depois ergo-me um pouco e sento-me no muro. É largo e seguro. De qualquer maneira, não tenho vertigens. Pelo menos destas. À esquerda, o perfil a perder de vista de outros prédios. Mas em frente, a vista para o rio é aberta. O meu dia de amanhã. Devia dormir. Devia apresentar-me ao trabalho na posse das minhas forças todas. Serve de exemplo esta noite: suspeito que vou continuar a fazer frequentemente o que não devia fazer. O que não tem mal. Mal tem preocupar-me com isso. Mas sei também que a minha preocupação se confunde com o momento que corre e com outros momentos como este. Amanhã, nos dias seguintes, quando entrar no meu gabinete, me sentar na minha cadeira e engrenar no infernal paraíso de fazer dinheiro, não pensarei em nada disto. Como numa cadeia de montagem, não poderei deter-me para fa, zer perguntas. Outras coisas, outras dúvidas. Absorventes. Totalitárias. Deíxar-me-ei de novo tragar pela servidão por mim e para mim montada. E mais tarde, olhando para trás, hei-de cons- tatar que passei esses momentos, se não com alegria, pelo menos numa espécie de embriaguês suave, numa anestesia de abandono e esquecimento. Vou receber, vou aceitar, vou agradecer, a préfabricada colecção de dificuldades, de ansiedades, de angústias, que transformo em minhas durante as horas em que me limito a 254

ser mais uma peça da engrenagem. Durante oito horas hei-de conviver com elas na mais íntima comunhão. As que são verdadeiramente minhas ficarão recalcadas, obliteradas. E depois hei, -de transportar também um pouco de tudo isso para casa. Como uma droga cujo efeito persiste. Amanhã o meu ritmo não será já propriamente o meu. Amanhã. A trepidação. Os telefones todos a tocarem em coro. A falta de tempo. Cumprir prazos. Executar tarefas. Não ter tempo para mim. Não ter tempo, não ter espaço para me interrogar. Para falar comigo mesma, Amanhã terei as desculpas todas. E os dias, as semanas, os meses, os anos irão passando. Como sempre, no seu jeito de fatalidade. No fundo, no fundo, há certamente aqui alguém que escreve direito por linhas tortas. Amanhã. Viro a cabeça. Olho sobre o ombro para o hori- zonte. O clarão da cidade que nunca se apaga. Ou então é já o dia a anunciar, uma vez mais, a sua chegada. Não sei. Tantas coisas que eu não sei. 255