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Sociedade em rede, inclusão digital e cidadania cultural Bruno Fuser 1 Faculdade de Comunicação Social - UFJF Introdução De que forma as tecnologias digitais podem ser utilizadas em processos criativos, em ações de cidadania cultural, de afirmação de identidades em uma perspectiva autêntica, afastando-se da reprodução de padrões hegemônicos no uso de tais meios? É de fato a internet instrumento de democratização, de igualdade no campo da informação, como tantas vezes apregoado? De que maneira a inclusão digital se torna abrangente, e se transforma em inclusão social? Essas questões, essenciais para quem defende uma sociedade mais igualitária, têm movido minhas atividades de pesquisa nos últimos anos. Após uma discussão estritamente teórica, voltei a atenção e análise para experiências diversas, que, em alguns momentos, se deram na perspectiva da pesquisa participante, ou seja, intervindo no campo social em que se dava o fenômeno a ser estudado, ou mesmo sendo (um dos) protagonista(s) do mesmo. Aqui apresentarei de maneira sintética as reflexões que tenho procurado desenvolver desde 2001, quando voltei as atenções para a intersecção entre um campo de estudos no qual já estava inserido, o da comunicação alternativa, popular e comunitária, e o das então chamadas novas tecnologias da comunicação e da informação. As perspectivas de poder no espaço virtual Em um primeiro momento tratava-se de reconhecer o que saltava 1 Jornalista, doutor em Comunicação pela Universidade de São Paulo, com estágio pós-doutoral na Universidade Autônoma de Barcelona (2005-2006) com bolsa PDE do CNPq. Professor na graduação em Comunicação Social (Jornalismo) e no mestrado em Comunicação e Sociedade na UFJF – Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: [email protected] . Parte deste texto foi produzida a partir do projeto Comunicação, memória e ação cultural, com apoio da Fapemig para o período 2008-2010.

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Sociedade em rede, inclusão digital e cidadania culturalBruno Fuser1

Faculdade de Comunicação Social - UFJFIntrodução

De que forma as tecnologias digitais podem ser utilizadas em processos criativos, em ações

de cidadania cultural, de afirmação de identidades em uma perspectiva autêntica, afastando-se da

reprodução de padrões hegemônicos no uso de tais meios? É de fato a internet instrumento de

democratização, de igualdade no campo da informação, como tantas vezes apregoado? De que

maneira a inclusão digital se torna abrangente, e se transforma em inclusão social?

Essas questões, essenciais para quem defende uma sociedade mais igualitária, têm movido

minhas atividades de pesquisa nos últimos anos. Após uma discussão estritamente teórica, voltei a

atenção e análise para experiências diversas, que, em alguns momentos, se deram na perspectiva da

pesquisa participante, ou seja, intervindo no campo social em que se dava o fenômeno a ser

estudado, ou mesmo sendo (um dos) protagonista(s) do mesmo.

Aqui apresentarei de maneira sintética as reflexões que tenho procurado desenvolver desde

2001, quando voltei as atenções para a intersecção entre um campo de estudos no qual já estava

inserido, o da comunicação alternativa, popular e comunitária, e o das então chamadas novas

tecnologias da comunicação e da informação.

As perspectivas de poder no espaço virtual

Em um primeiro momento tratava-se de reconhecer o que saltava aos olhos: a intensificação

das tecnologias digitais trazia consequências diversas no nível do cotidiano das pessoas, em todas as

esferas, de maneira diferenciada mas ampla. Na prática cotidiana da disseminação de informações

isso era perceptível de múltiplas formas, a ponto de ser tornar difícil a tarefa de se desenvolver

qualquer atividade que não estivesse total ou parcialmente inserida nos novos aparatos tecnológicos

de informação.

Mas, além de reconhecer tais fenômenos, buscava-se o afastamento de uma visão que, por

um lado, dissociava essas questões de determinado contexto histórico, e, de outro, confundia a

potencialidade de tais tecnologias digitais com aquilo que efetivamente se observava no campo

empírico como relacionado a tais tecnologias.

Para refutar o “efeito deslumbramento” com as tecnologias digitais era importante nos

remetermos a outros momentos da história em que as inovações tecnológicas já haviam estabelecido

1 Jornalista, doutor em Comunicação pela Universidade de São Paulo, com estágio pós-doutoral na Universidade Autônoma de Barcelona (2005-2006) com bolsa PDE do CNPq. Professor na graduação em Comunicação Social (Jornalismo) e no mestrado em Comunicação e Sociedade na UFJF – Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: [email protected]. Parte deste texto foi produzida a partir do projeto Comunicação, memória e ação cultural, com apoio da Fapemig para o período 2008-2010.

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rupturas com padrões de sociabilidade e de produção de riquezas. Tivemos a modernização dos

transportes, a eletricidade, o telefone, associados a uma primeira modernidade, uma cultura

tipográfica, diacrônica e linear, fundamentada na escrita; em seguida, . Em seguida, uma segunda

modernidade, a da era da cultura eletrônica, sincrônica e com multiperspectivas, baseada num

sistema técnico (automóvel, avião, eletricidade, telecomunicações) (ORTIZ, 1991). Finalmente,

uma terceira modernidade, com a disseminação das tecnologias digitais da comunicação e da

informação, caracterizada pela criação de sociedade em rede (CASTELLS, 2003),

interconectividade generalizada (PARENTE, 2000), produção colaborativa de conhecimento, novas

dimensões de tempo e espaço, possibilidades de interatividade.

A perspectiva de contextualização histórica é assegurada pela compreensão de que a

disseminação das tecnologias digitais é parte de outro fenômeno, a globalização.

Diante da globalização do mercado, da fragmentação da produção, da deslocalização do trabalho, da flexibilidade das tecnologias, as instituições econômicas se rearticulam, determinando “centros” de comando de suas atividades planetárias (ORTIZ, 1999, p. 56)

Em que pesem as diversas formas de organizar a vida e o trabalho, continuam a ser

produzidas contradições.

Os impactos das TIC’s atingem o mundo do trabalho, as formas de coordenação inter e intra-empresariais e institucionais e os modos de consumo e de vida de milhões de pessoas por todo o globo, constituindo-se em fator de importância crucial para as grandes transformações por que o mundo vem passando nesta virada de século (BOLAÑO, 2001, p.13-14).

As novas identidades, fragmentadas – ou, como dizia Ianni (1997), múltiplas – não excluem

as diferenças, os conflitos, embora muitas vezes se deixe de ver o evidente. O desemprego

estrutural, a terceiromundização do 1.º mundo, a precarização da mão-de-obra são alguns dos

exemplos de problemas que a globalização traz, na medida em que globaliza o mercado de trabalho

e as forças econômicas e sociais.

Numa ótica histórica e política, dá para dizer que a questão social é global, hoje, e que as

lutas sociais se desenvolvem no Oriente Médio, na África do Sul, como em Londres, Paris, Nova

Iorque... e isso tudo está fertilizando o cenário mundial como um vasto palco da história, tanto de

criações culturais, artísticas, econômicas, como de lutas sociais. Acho que não é exagero dizer que

estamos entrando num novo ciclo de lutas sociais (IANNI, 1997).

Esse novo cenário de lutas passa por diferentes perspectivas. Michael Hardt (2003, p.342)

considera que há duas tendências que buscam se contrapor à forma como se implementa a

globalização: uma, antiglobalização, de cunho nacionalista, que opera através das organizações

tradicionais, como partidos políticos; e outra, que opõe-se a qualquer solução nacional, defende uma

globalização democrática, e que opera através dos movimentos em rede. As ações representadas,

por exemplo, pelo Fórum Mundial Social, apontam nessa segunda perspectiva.

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A inserção das TICs na sociedade contemporânea seria, para alguns pesquisadores, a origem

de uma reestruturação da esfera pública.

É essa revolução que está na raiz do desenvolvimento das novas TIC’s, elemento central, por sua vez, na reestruturação da esfera pública, com o surgimento da televisão segmentada, da internet e todas as inovações ligadas ao conjunto dos processos de comunicação, que modificam a estrutura das indústrias culturais, criando inclusive novas, e alteram as formas de interação e de reprodução simbólica do mundo da vida. (BOLAÑO, 2001, p.14)

No entanto, as tecnologias digitais, que são constitutivas dessa nova esfera pública, não

significam necessariamente novas formas de participação cidadã. As mesmas contradições inerentes

à globalização – a manutenção de estruturas de poder político, econômico e cultural – se

manifestam nas formas de uso de tais tecnologias pelos governos, de maneira geral:

Em princípio, a Internet poderia ser um instrumento de participação cidadã extraordinário; de informação da classe política, dos governos e dos partidos aos cidadãos em seu conjunto, e de relação interativa. Poderia ser uma ágora política e sobre isso têm escrito todos os futuristas. (…) mas, em geral, o que se observa é que os governos, as administrações, os partidos políticos confundiram a Internet com um quadro de anúncios. Em geral, limitam-se a expor dados: aqui está a nossa informação para que vocês fiquem sabendo o que fazemos, isso nos poupa trabalho e, se desejarem, podem nos dar a sua opinião. O que acontece é que não sabemos o que se passa com essa opinião. (CASTELLS, 2003:279)

O desafio de transformar o governo eletrônico em espaços públicos de participação direta

significa trazer a política para um campo o campo da comunidade, uma comunidade que possa se

expressar através da produção de informação eletrônica. Castells lembra, contudo, que

(...) todos os Parlamentos têm websites, todos os partidos têm Internet em todos os países desenvolvidos. No entanto, são vias, repito, unidirecionais de informação, para captar a opinião, simplesmente para converter os cidadãos em eleitores potenciais e poara que os partidos obtenham informações para ajustar a sua publicidade. Nesse sentido, o problema não é a Internet, e sim o sistema político. (...) É preciso mudar a política para mudar a Internet e, então, o uso político da Internet pode converter-se em uma mudança da política em si mesma (idem, p. 280).

No campo da política, uma questão de pesquisa que se impõe é a de estudar de que maneira

se dá a relação entre tecnologias de comunicação e informação e política.

Em geral, temos escassíssimos exemplos de prática interativa cotidiana do sistema político com os cidadãos. Portanto, as fronteiras de pesquisa que gostaria de desenvolver sobre a Internet são as seguintes: de que maneira ela pode permitir a desburocratização da política e superar a crise de identidade dos governos que se verifica no mundo todo, a partir de uma maior participação permanente, interativa, dos cidadãos e de uma informação constante em mão dupla? Na realidade, isso não se produz (idem, p. 279-80).

No debate sobre as possibilidades de as tecnologias digitais estimularem, ou significarem

nova dimensão da cidadania, Rousiley Maia (2002) adverte:

(...) a Internet pode proporcionar um ambiente informativo rico (...) plataformas de diálogo (...). [Contudo] O alto custo dessa tecnologia (e das ligações telefônicas) e o elevado índice de analfabetismo barram o acesso de muitos ao espaço cibernético (...) as barreiras digitais tendem a reforçar os eixos de exclusão socioeconômicos e culturais quando as instituições políticas decidem utilizar as novas tecnologias para implementar políticas públicas (MAIA, 2002, p.51).

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A mesma pesquisadora diz ser “equivocado” ater-se à questão do acesso individual, pois “Os

cidadãos necessitam, para exercer uma cidadania ativa, de um sistema de mídia diversificado”

(idem, p. 59). Ela recupera Habermas, para quem “a democracia, num contexto pluralista, depende,

de um lado, da interpenetração entre tomada de decisão institucionalizada e a opinião pública

constituída de modo informal, mas, ainda assim, racionalizada” (HABERMAS, 1997, p. 248, apud

MAIA, 2002, p. 49). Assim, “(...) o sistema dos mídia – como fórum público – deve refletir a

diversidade política e cultural da sociedade, proporcionando um balanço justo e imparcial das

vozes, de tal modo que todos os pontos de vista possam ser considerados na deliberação política”

(idem, p. 50-1).

Portanto, não basta a Internet potencialmente poder propiciar um ambiente de debate e

participação. “Debate é mais que pluralidade de vozes, requer um entendimento partilhado sobre

um tema, devem ouvir e responder às questões e objeções, o que demanda “uma atitude de respeito

mútuo” (idem, p. 55). Estudos sobre grupos virtuais de discussão política mostram um quadro

desanimador em termos de criação de um ambiente de deliberação em tais grupos. “Se todos falam

e ninguém ouve, temos o resultado semelhante ao de uma torre de Babel” (idem, p. 56). Os

participantes de listas e chats “expressam a própria opinião, buscam e disponibilizam informação,

sem que se vinculem a um debate propriamente dito” (ibidem). As NTCI “não determinam o

procedimento da interação comunicativa e nem garantem a reflexão crítico-racional” (idem, p. 56).

Outras daquelas características da chamada sociedade em rede também se dão mais no

campo das possibilidades do que se encontra na prática social verificada empiricamente. Em 2003,

destacava-se, em análise comparativa de versões impressas e edições on-line de jornais da região de

Campinas:

A propalada interatividade surge mais como ferramenta de segmentação, de detecção de tendências de consumo, do que propriamente como espaço à participação na produção de conteúdo (...) Assim, pode-se concluir que, embora haja possibilidades técnicas com a nova mídia de maneira inigualável para se estabelecer uma comunicação horizontal, interativa – que, através de outras estratégias, seria possível igualmente nas mídias como rádio, TV e impresso -, o que se vê nos casos estudados é a repetição de uma estrutura vertical, em que o usuário é levado a consumir informações, não a produzi-las, muito menos com a possibilidade de disponibilizá-las nos sites em questão. (FUSER, 2003, p.61-62)

Mesmo no que se refere à produção de conteúdo, é importante assinalar que a possibilidade

de se publicar material na Internet, embora seja vasta, não foi suficiente para trazer de fato uma

democratização nesse sentido. A produção de informação permanece nesse meio, como nos demais,

bastante concentrada:

Supunha-se que, em princípio, as tecnologias da informação e de telecomunicação permitiriam que qualquer um pudesse localizar-se em qualquer lugar e prover, a partir dali, o mundo inteiro. O que se observa empiricamente é o contrário. Verifica-se uma concentração maior na indústria provedora de conteúdos de Internet, assim como de tecnologia de Internet,

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do que em qualquer outro tipo de indústria e concentra-se fundamentalmente nas grandes áreas metropolitanas dos principais países do mundo. (CASTELLS, 2003, p. 263)

A produção colaborativa de conhecimento também esbarra em obstáculos que transcendem o

acesso às tecnologias digitais:

O que se observa, contudo, naquelas pessoas, sobretudo estudantes, crianças, que estão conectadas é que aparece um segundo elemento de divisão social mais importante que a conectividade técnica: a capacidade educativa e cultural de utilizar a Internet. Uma vez que toda a informação está na rede – ou seja, o conhecimento codificado, mas não aquele de que se necessita -, trata-se antes de saber onde está a informação, como buscá-la, como transformá-la em conhecimento específico para fazer aquilo que se quer fazer. Essa capacidade de aprender a aprender; essa capacidade de saber o que fazer com o que se aprende; essa capacidade é socialmente desigual e está ligada à origem social, à origem familiar, ao nível cultural, ao nível de educação. É aí que está, empiricamente falando, a divisória digital neste momento (CASTELLS, 2003, p. 266-7)

Essa dimensão cultural, a capacidade desigual de apropriação das tecnologias digitais,

conduziu-me em um momento seguinte à discussão sobre diferentes experiências de inclusão

digital, em especial em uma perspectiva de ruptura com as formas hegemônicas de produção de

comunicação.

Inclusão digital

A questão acima levantada por Castells – a de que, além do acesso à informação, trata-se de

discutir como transformá-la em conhecimento para aquilo que se quer fazer -, suscita o debate sobre

as diferentes políticas ou alternativas de inclusão digital. É difícil distinguir os limites entre

exclusão digital e social. No entanto, “a exclusão digital amplia a miséria e dificulta o

desenvolvimento humano, local e nacional. A exclusão digital não representa apenas uma mera

conseqüência da pobreza crônica. Torna-se fator de congelamento da condição de miséria”

(SILVEIRA, 2003, p.29).

Uma primeira dimensão, e a mais disseminada, é a oferta pura e simples de equipamento de

informática e conexão à internet, além dos conhecimento básicos para utilizá-los. Ou seja, uma

perspectiva de universalização de acesso ao maquinário, através de gastos vultosos em

equipamentos a serem instalados em escolas públicas e em telecentros, pontos de acesso gratuito à

internet. O governo brasileiro tem se empenhado nesse sentido, em diversas iniciativas. Mas tais

iniciativas têm limites muito claros:

A luta pela inclusão digital pode ser uma luta pela globalização contra-hegemônica se dela resultar a apropriação pelas comunidades e pelos grupos socialmente excluídos da tecnologia da informação. (...) [caso contrário] pode acabar se resumindo a mais uma forma de utilizar um esforço público de sociedades pobres para consumir produtos dos países centrais ou ainda para reforçar o domínio oligopolista de grandes grupos transnacionais (SILVEIRA, 2003, p.29).

André Lemos (2005) apresenta algumas questões importantes de retomar. Ele reconhece que

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“estar inserido digitalmente passa a ser considerado um direito dos cidadãos (...) uma obrigação

para os poderes públicos já que comumente associa-se inclusão digital como uma forma de inclusão

social” (LEMOS, 2005, p.2). Mas faz um primeiro alerta, justamente sobre as tendências

majoritárias na “ênfase ao aprendizado técnico”, o que “não parece ser o melhor caminho para que a

inclusão digital se transforme efetivamente em uma inclusão social” (idem, p.3).

(...) O discurso da inclusão digital feito dessa forma parece contentar apenas algumas empresas, ONGs e tecnoutópicos que vão nos vender, sob essa ideologia, mais e mais “novidades” tecnológicas. Incluir significa, na maioria dos casos, oferecer condições materiais (destreza técnica e acesso à Internet) para o manuseio das TICs. Trata-se, não de reforçar processos cognitivos questionadores, mas de adaptar procedimentos às técnicas correntes. Será mesmo incluir formar alguém em Word, Excel e Windows? (idem, p.6)

No entender do pesquisador, a inclusão deve abranger “os capitais social, cultural, técnico e

intelectual (...) em sinergia para o enriquecimento técnico, cultural, social e intelectual do indivíduo

ou de um grupo” (idem, p.6).

Barbosa Filho e Castro (2005, p. 142) reforçam tal perspectiva:

Pensar em inclusão digital vai muito mais além de saber utilizar as novas tecnologias. A inclusão passa pela capacitação dos atores sociais para o exercício ativo da cidadania, através do aprendizado tecnológico, do uso dos equipamentos, assim como pela produção de conteúdo e conhecimento gerados dentro da realidade de cada grupo envolvido para ser disponibilizados na rede.

Sabbatini (2006) destaca que “as relações de domínio não ocorrem mais sobre os territórios

físicos ou mercados nacionais, mas sim no controle de satélites, das redes informáticas e dos fluxos

de informação associados” (SABBATINI, 2006, p. 222) e considera “algo romântica” a idéia de que

“a tecnologia informática aliada às redes de computador é essencialmente democrática e

libertadora” (ibidem). E ressalta: “Para que a inclusão social passe pela inclusão digital é necessário

criar, desde o primeiro momento, os conteúdos com os quais a cidadania deve interagir e sobre os

quais deve ser construída” (idem, p.227). Trata-se, diz ele, de se ter como horizonte “a mudança

cultural” (idem, p. 226). “Devem ser pensados os impactos sociais, a sua utilização e geração de

conteúdo, os mecanismos e infra-estruturas sociais de sua utilização e o entendimento pleno do quê

significa a tecnologia, para quê se quer utilizar e quem se beneficiará dela” (idem, p.228).

A construção na perspectiva cidadã do acesso às tecnologias digitais está bastante clara na

Carta de São Bernardo – produzida em 2005, em encontro de pesquisadores e ativistas, pela Cátedra

Unesco/Metodista de Comunicação e pela WACC – World Association for Christian Comunication

–, em que se assinala: “Na sociedade midiática, a cidadania inclui não só o acesso à informação,

mas a sua compreensão, assumindo também o protagonismo como agente nos processos de

comunicação” (MELO, GOBBI e SATHLER, 2006, p. 243).

Moraes (2007) apresenta outros argumentos em favor da necessidade de políticas públicas

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de inclusão digital:

A universalização dos acessos depende, entre outras coisas, de políticas socioeconômicas inclusivas, do desenvolvimento de infra-estruturas de rede, do barateamento de custos teleinformáticos e de formação educacional condizente. É essencial combater a infoexclusão de populações de baixa renda e adotar políticas públicas que intensifiquem os usos sociais, culturais, educativos e políticos das tecnologias (MORAES, 2007, on line).

Para ele, “A consolidação de webmídias e redes ativistas depende da convergência de uma

série de fatores, entre os quais (...) projetos públicos de inclusão digital, conciliando soluções

tecnológicas com programas educativos e de formação cultural”. Outra assertiva de Moraes (2006)

nos apresenta a perspectiva de que “a inculcação do prazer da efemeridade [implementada pelas

tecnologias digitais] está no cerne do disciplinamento do consumidor” (MORAES, 2006, p. 36).

Essa efemeridade acentua o ethos do consumo, presente em inúmeras práticas de relacionamento

com as tecnologias digitais.

Da mesma forma como Moraes (2007, on line), opto pela análise a partir da concepção

gramsciana de hegemonia e contra-hegemonia, de conquista de consenso de classes ou bloco de

classes, de combate ao sistema hegemônico, buscando evitar a atitude quem, com receio de tomar

atitudes que sejam consideradas autoritárias, acaba por incorrer em uma paralisia política ou na

apologia a ações dispersas e voluntaristas. Importante ainda a observação de Moraes:

Diversidade nada tem a ver com os prazeres sensoriais proporcionados pela Disney ou com o gáudio da Sony ao anunciar o lançamento de cinco mil itens por ano. Muito menos com a busca de identidade e status em compras compulsivas. Diversidade pressupõe revitalizar manifestações do contraditório, confrontar pontos de vista, debater intersecções entre progresso, técnicas e tecnologias. Diversidade se assegura (...) com políticas públicas que valorizem o direito da cidadania e contribuam para deter a oligopolização da produção cultural, a começar por medidas de regulação, concessão e fiscalização, de universalização de acessos, de proteção do patrimônio cultural intangível e de apoio a usos comunitários e educativos das tecnologias (MORAES, 2006, p. 46).

A alternativa dos telecentros

No entanto, como fazer com que essas iniciativas de inclusão digital sejam, também, de

inclusão social, ou seja, apontem em uma perspectiva contra-hegemônica, criativa, produtora de

cultura (e não apenas consumidora)?

Uma alternativa estaria na gestão dos telecentros, equipamentos públicos de acesso à

internet (e às tecnologias digitais), a partir de reflexões acumuladas a partir de práticas da

comunicação comunitária, em uma perspectiva contra-hegemônica, conforme assinala Miani:

Considerando a comunicação comunitária como o processo de produção de experiências comunicativas, portanto uma prática social, desenvolvido no âmbito de uma comunidade com vistas à conquista da cidadania, através de práticas participativas, e possibilitando aos indivíduos interagentes o resgate da sociabilidade perdida, admitimos que essa modalidade de prática comunicativa participa de maneira significativa no processo de disputa pela hegemonia no campo da comunicação. (MIANI, 2006, p. 7)

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Os telecentros possuem formatação muito diversificada. De qualquer maneira, é importante

assinalar que significativa parte da literatura diferencia telecentros de cibercafés, ou lan houses.

Elisabeth Gomes (2002), por exemplo, define telecentro como “um lugar físico, de fácil acesso

público, que oferece gratuitamente serviços de informática e telecomunicações, num contexto de

desenvolvimento social, econômico, educacional e pessoal” (GOMES, 2002, p.7).

No estudo Estado del Arte de los Telecentros em América Latina y el Caribe, a Fundação

ChasquiNet sistematizou dados de 16 países, obtidos a partir de relatórios governamentais, sites e

projetos de telecentros e de organizações não governamentais, entrevistas por internet ou

informações fornecidas diretamente por pessoas que participam de telecentros. A definição geral de

telecentro nesse estudo também identifica telecentro como espaço em que pessoas que não têm

recursos para uso de equipamento próprio acessam as tecnologias da comunicação e da informação

“como medios para influir en el desarrollo de sus comunidades, mejorando su calidad de vida e

influyendo en las políticas de acceso a las telecomunicaciones” (FUNDACIÓN CHASQUINET,

2002, on line).

Uma diferença básica entre os telecentros e os cibercafés é que, ainda que os primeiros

possam gerar renda, esta é uma ferramenta de desenvolvimento local e de auto-sustentabilidade do

projeto, enquanto, no segundo caso, trata-se essencialmente de um empreendimento comercial

tradicional. Em Telecentros comunitários para o desenvolvimento humano: lições sobre telecentros

comunitários na América Latina e Caribe, a Fundación ChasquiNet dedica-se define telecentros

comunitários.

Os telecentros comunitários são iniciativas que utilizam as tecnologias digitais como instrumentos para o desenvolvimento humano em uma comunidade. Sua ênfase é o uso social e a apropriação das ferramentas tecnológicas em função de um projeto de transformação social para melhorar as condições de vida das pessoas. (...) Nos telecentros comunitários formam-se facilitadores/as e promotores/as comunitários/as não só em aspectos técnicos de informação e comunicação como também em usos estratégicos das tecnologias digitais para a mudança social. Os telecentros comunitários são locais de encontros e intercâmbio, espaços de aprendizagem, crescimento pessoal e mobilização para resolver problemas e necessidades da comunidade (DELGADILLO e outros, 2002, págs. 8 e 9).

A Fundación ChasquiNet traz exemplos de telecentros comunitários, na Colômbia,

Argentina, Equador, Cuba, México, Venezuela, República Dominicana, cujas características são:

- participação da comunidade (“Promover a participação da comunidade na implantação,

montagem e melhora contínua do telecentro é um processo mais lento, mas decisivo para que a

comunidade se apodere e se comprometa com o bom funcionamento do telecentro comunitário.”)

- consolidação de uma visão social (“O ponto de partida não é a instalação de equipamentos e

conexões e sim a organização comunitária para a solução de seus problemas específicos, os quais

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podem mudar de um contexto a outro.”)

- gestão e utilização de tecnologias apropriadas (“A gestão de um telecentro comunitário

responde à missão social de suas atividades e faz uso dos instrumentos técnicos que sejam mais

apropriados para ajudar a resolver seus problemas.”)

- formação e capacitação permanentes (“Sem capacitação o telecentro comunitário morre pela

inércia de operadores/as que não conseguem ajudar os usuários/as, ou pela ausência de usuários/as

capazes de tirar o máximo da tecnologia disponível.”).

Entre as finalidades do telecentro comunitário estão o apoio à criação de emprego e

empreendimento locais, fortalecimento da auto-estima, apoio e desenvolvimento de ações de saúde,

educação, organização comunitária, planificação urbana, descentralização e ação política,

fortalecimento de grupos marginalizados, acesso a novas fontes de informação e conhecimento,

apoio à criação de diferentes formas de expressão artística e cultural.

A experiência do projeto Òmnia

Nesse sentido, a experiência de inclusão digital desenvolvida pelo governo da Catalunha, na

Espanha, denominada Projeto Òmnia, que estudei durante pós-doutoramento na Universidade

Autônoma de Barcelona, em 2005, também se constitui numa iniciativa de inclusão digital em que

estão presentes características de uma comunicação comunitária, democrática, participativa.

Caracterizado por sua ligação estreita com o entorno local, com o bairro, o telecentro Òmnia

busca adaptar suas dinâmicas e objetivos a esse contexto. Cada ponto volta-se para os problemas do

bairro, tenta construir seus conhecimentos, suas estratégias, suas ações próprias. A participação

comunitária, a principal linha de ação do projeto, ao lado da formação e da inserção sociolaboral,

assume junto aos bairros das grandes cidades o papel de ampliação da cidadania, permitindo à

população o acesso às novas tecnologias da comunicação e da informação e, também, sua inserção

em propostas amplas de inclusão social.

Desde sua criação, em 1999, a partir do trabalho de uma ONG, o TEB, com jovens que

haviam abandonado o sistema escolar formal e que viviam em situação de risco de exclusão social,

o Projeto Òmnia se volta para sua inserção em projetos amplos denominados planos de

desenvolvimento comunitário. Tais planos foram e são desenvolvidos principalmente em bairros

degradados das periferias das grandes cidades catalãs, com o objetivo de criação de um sistema

público coordenado em várias áreas, como saúde, trabalho, educação. São bairros formados por

conjuntos habitacionais populares implantados durante o franquismo, com graves problemas de

construção, nos quais não havia pavimentação, transporte, infra-estrutura de equipamentos públicos,

quase sempre com moradores provenientes de outras regiões da Espanha ou de outros países. Em

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quase todos os cerca de 60 planos de desenvolvimento comunitário da Catalunha há um ponto

Òmnia, e por vezes o telecentro foi o fator propulsor e catalizador do próprio plano.

Tais bairros possuem associações de moradores fortemente organizadas, que tiveram

destacado papel na luta contra a ditadura franquista, pela redemocratização do país e na

reivindicação por melhores condições de moradia e de vida. Os planos começaram a serem

implantados por volta de 1995, buscando unificar e planificar uma ação que até então se dava de

forma fragmentada. Desenvolveram-se metodologias de trabalho comunitário, e o curso superior de

educação social é uma das formações mais presentes entre os dinamizadores (monitores) de cada

telecentro Òmnia. À medida que se criam novos planos de desenvolvimento comunitário,

geralmente em conjuntos habitacionais de proteção oficial (blocos de apartamentos gratuitos ou

subsidiados pela Generalitat), habitualmente se inclui um ponto Òmnia no seu planejamento.

Um dos fatores fundamentais para que os telecentros comunitários da Catalunha caminhem

nessa direção é o fato de serem responsabilidade conjunta dos departamentos de Bem-Estar e

Família (especificamente, da Diretoria de Atuações Comunitárias e Cívicas) e de Universidades,

Pesquisa e Sociedade da Informação. Assim, evita-se que a preocupação na implantação desses

telecentros comunitários deixe de ser essencialmente de cunho social. Esse é um dos aspectos – a

participação de equipes multidisciplinares na implantação desses equipamentos públicos de

comunicação, com destaque na gestão para as áreas de desenvolvimento social - que considero

essencial na implantação de telecentros comunitários, evitando-se que se tornem cibercafés ou

apenas pontos de jogos em rede.

Comunicação e cidadania cultural

A partir dessas reflexões, busquei verificar que ações – acompanhadas, evidentemente, de

pesquisa sobre as mesmas – poderia desenvolver no sentido de propiciar a segmentos empobrecidos

da população de onde moro e trabalho a apropriação das tecnologias digitais na perspectiva de

construção da cidadania, de produção de conhecimento e de processos cognitivos questionadores,

diversificados, de uma comunicação comunitária ou popular contra-hegemônica.

A elaboração e execução do projeto Comunicação, Memória e Ação Cultural2 foi (e está

sendo) uma das alternativas encontradas. O projeto, de forma geral, está centrado na produção

cultural – entendida aqui de forma ampla, além das artes e do entretenimento – a partir de oficinas

2 Projeto elaborado pelo autor deste texto e pelas professoras da Faculdade de Serviço Social da UFJF Josimara Delgado, doutora em Serviço Social pela UFRJ, e Estela Cunha, doutoranda em Serviço Social na mesma instituição. O projeto conta com apoio da Fapemig, para Extensão em Interface com Pesquisa, de dezembro de 2008 a dezembro de 2010. Esse apoio destina-se ao pagamento de bolsista de nível superior (o jornalista Marcos Antonio de Oliveira Santos) e à compra de equipamentos: cinco computadores, data-show, tela de projeção, duas handycams, quatro câmeras fotográficas digitais, tripés, microfones direcionais, quatro gravadores digitais, impressora multifuncional, no-break, além de material de consumo.

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em que assume importância central a construção de histórias de vida dos velhos e a de narrativas

sobre a vida do bairro, com participação de integrantes de outras gerações. Em torno da coleta e

produção dessas narrativas, como documentos sobre a história da coletividade, estão sendo

envolvidas outras instâncias do bairro, como escolas, posto de saúde, ONGs e igrejas, com

participação, assim, de velhos, adultos e jovens na produção de vídeos, história das famílias, do

próprio bairro, das perspectivas de futuro e análise de presente e passado das diversas gerações.

A necessidade de desenvolver atividades de produção cultural na perspectiva da apropriação

criativa de tecnologias digitais nos conduziu à discussão sobre a cidadania no campo da cultura. A

principal referência, aqui, foi a filósofa Marilena Chauí, para quem cultura é "uma ordem simbólica

que exprime o modo pelo qual homens determinados estabelecem relações determinadas com a

natureza e entre si e o modo pelo qual interpretam e representam essas relações" (CHAUÍ, em

VALLE e QUEIROZ, 1979, p. 123).

Em texto mais recente, Chauí destaca que, ao passar a significar o campo das formas

simbólicas, “cultura passa a ser entendida como criação coletiva da linguagem, da religião, dos

instrumentos de trabalho, das formas de habitação, vestuário e culinária, das manifestações do lazer,

da música, da dança, da pintura e da escultura, dos valores e das regras de conduta, do sistema de

relações sociais, particularmente os sistemas de parentesco e as relações de poder” (CHAUÍ, 2006,

p. 131).

Chauí deixa claro como o conceito de hegemonia e de cultura são indissociáveis:

A hegemonia não é forma de controle sociopolítico nem de manipulação ou doutrinação, mas uma direção geral (política e cultural) da sociedade, um conjunto articulado de práticas, idéias, significações e valores (...) sentido experimentado como absoluto, único e irrefutável (...) hegemonia é sinônimo de cultura em sentido amplo e sobretudo de cultura em sociedade de classes (...) ela propicia o surgimento de uma contra-hegemonia (outra visão de mundo) por parte daqueles que resistem à interiorização da cultura dominante” (CHAUÍ, 2006, p. 22-23).

A filósofa propõe “mudar o foco da questão”:

(...) sabemos que o lugar da cultura dominante é bastante claro: é o lugar a partir do qual se legitima o exercício da exploração econômica, da dominação política e da exclusão social. Mas esse lugar também torna mais nítida a cultura popular como aquilo que é elaborado pelas classes populares (...) segundo o que se faz no pólo da dominação, ou seja, como repetição ou como contestação, dependendo das condições históricas e das formas de organização populares” (idem, p. 133-134).

Assim, fica clara a concepção de Chauí de que é cultura popular aquilo que se produz seja

como contestação mas seja também como repetição, quando tem como origem o pólo da

dominação; retira assim o caráter necessariamente contestatório da cultura popular. O que remete à

discussão das políticas ou ações que estimulam essas perspectivas criativas ou, ao contrário,

referem-se essencialmente ao reforço do paradigma do mercado. A própria filósofa indaga: “O que

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seriam uma cultura da democracia e uma cultura democrática?” (idem, p. 135).

Ela rejeita a possibilidade de que o campo da criação cultural possa ser definido pelo prisma

do mercado,

não só porque este opera com o consumo, a moda e a consagração do consagrado, mas também porque reduz essa forma da cultura à condição de entretenimento e passatempo, avesso ao significado criador e crítico das obras culturais. Não que a cultura não tenha um lado lúdico e de lazer que lhe é essencial e constitutivo, mas uma coisa é perceber o lúdico e o lazer no interior da cultura, e outra é instrumentalizá-la para que se reduza a isso, supérflua, uma sobremesa, um luxo num país onde os direitos básicos não estão atendidos” (ibidem).

A alternativa, defende Marilena Chauí, é ver a cultura como um campo específico da criação

que busque “ultrapassar criticamente o estabelecido”: criação da imaginação, da sensibilidade e da

inteligência que se exprime em obras de arte e obras de pensamento (ibidem).

As pessoas comuns, que estão no pólo da subalternidade, normalmente não são identificadas

como “artistas” na acepção mais comum da palavra, mas “também são produtoras de cultura, no

sentido antropológico da palavra: são, por exemplo, sujeitos, agentes, autores da sua própria

memória”. E, indaga a filósofa:

Por que não oferecer condições para que possam criar formas de registro e preservação da sua memória, da qual são sujeitos? Por que não oferecer condições teóricas e técnicas para que, conhecendo as várias modalidades de suportes da memória (documentos, escritos, fotografias, filmes, objetos etc.) possam preservar sua própria criação como memória social? Não se trata, portanto, de excluir as pessoas da produção cultural e sim de, alargando o conceito de cultura para além do campo restrito das belas-artes, garantir a elas que, naquilo em que são sujeitos da sua obra, tenham direito de produzi-la da melhor forma possível (idem, 137-138).

Chauí defende que o Estado conceba a cultura como um direito do cidadão e, assim,

assegure o direito de acesso às obras culturais e o direito de criá-las, produzi-las, fruí-las, além de

participar das decisões sobre políticas culturais.

Trata-se, pois, de uma política cultural definida pela idéia de cidadania cultural, em que a cultura não se reduz ao supérfluo, ao entretenimento, aos padrões de mercado, à oficialidade doutrinária (que é ideologia), mas se realiza como direito de todos os cidadãos, direito a partir do qual a divisão social das classes ou a luta de classes possa manifestar-se e ser trabalhada porque, no exercício do direito à cultura, os cidadãos, como sujeitos sociais e políticos, se diferenciam, entram em conflito, comunicam e trocam suas experiências, recusam formas de cultura, criam outras e movem todo o processo cultural (idem, p.138).

Muniz Sodré (1996) também analisa a relação entre democracia e cultura. Para ele, vivemos

hoje em uma sociedade midiatizada, com a aliança entre três fatores: comunicação, tecnologia e

economia de mercado. Diz o pesquisador que esses fatores configuram uma tecnocultura, cultura da

comunicação ou cultura mediatizada, "campo comunicacional enquanto instância de produção de

bens simbólicos ou culturais", numa sociedade impregnada pelos “dispositivos maquínicos de

estetização ou culturalização da realidade" (SODRÉ, 1996, p. 7).

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O autor considera uma "ilusão supor que o poder dessa avançada esfera tecnológica esteja

acima das diferenças reais de classe ou de apropriação da renda nacional". Também ele, como

Marilena Chauí, a partir dessa constatação remete-se à questão da democracia. Democracia, "além

da técnica universalista de governo, [é] prática de construção e reelaboração do sujeito social em

sua cotidianeidade", diz Sodré. "Tornar 'social' uma democracia equivale hoje a afetar todos os

equipamentos da cultura por esse poder grupal das diferenças sociais implicado na experiência

democrática" (SODRÉ, 1996, p. 84-85).

Em outro texto Sodré discute mais a fundo a tecnocultura, na qual, de acordo com a análise

do autor, se constroem normas de conduta individuais e próprias, porém, baseadas em um retorno

positivo e afirmativo por intermédio da mídia e dos meios de comunicação – o reconhecimento

narcísico no espelho.

Nesta atmosfera doutrinária e emocional, predomina um universalismo democratizante baseado em critérios de prazer ou de felicidade individual, que estimula o autocentramento egóico, típico do individualismo moderno, e a reconfirmação da identidade pessoal pelos múltiplos “espelhos” (as telas, as vitrines, as imagens de consumo) armados pela tecnocultura. Uma “boa” ação individual tende aí a depender muito mais da repercussão midiática (portanto, o reconhecimento narcísico no espelho) do que de motivações solidaristas avaliáveis por princípios de comunidade (SODRÉ, 2002, p.75)

Considero ser importante, ainda, discutir as iniciativas em defesa da cidadania cultural,

inclusive em relação à inclusão digital, no contexto de ações culturais. Teixeira Coelho (1997)

define ação cultural como parte de uma política cultural, conjunto de intervenções realizadas pelo

Estado, instituições públicas ou privadas, grupos comunitários ou ainda organizações não-

governamentais com o objetivo de satisfazer “as necessidades culturais da população e promover o

desenvolvimento de suas representações simbólicas” (TEIXEIRA COELHO, 1997, p. 293).

O bairro Dom Bosco

O projeto busca interagir com os moradores das micro-áreas urbanas do Dom Bosco e Alto

Dom Bosco, que, segundo o Atlas Social de Juiz de Fora, de 2006, possuem condição

socioeconômica baixa e muito baixa (PREFEITURA DE JUIZ DE FORA, 2006). De acordo com a

mesma fonte, o Dom Bosco possui aproximadamente 300 domicílios, e o Alto Dom Bosco, 30

domicílios. O projeto se desenvolve com a parceria institucional do Grupo Espírita Semente,

associação espírita localizada no bairro, que realiza há mais de 20 anos trabalho assistencial, em

especial com atividades socioeducativas junto a cerca de 60 famílias de baixo poder aquisitivo,

oferecendo apoio escolar, refeições, cestas básicas, atividades profissionalizantes e de cunho

espiritual (ver www.grupoespiritasemente.com.br)

O trabalho foi iniciado com os idosos, mas se estende a outras gerações. Atualmente,

participam do projeto – que se integrou com antigo projeto da Faculdade de Serviço Social da

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UFJF, o Nucleação, realizado no Grupo Espírita Semente - pessoas idosas com idades

especialmente concentradas na faixa dos 60 a 80, mas com expressivo número de pessoas com mais

de 85 anos (cerca de 20% dos idosos). São, sobretudo, mulheres (cerca de 86% dos participantes);

possuem baixa renda (45% deles ganham até um salário e 36%, de um a dois), proveniente, em sua

maioria, de aposentadorias (53%) e pensões (36%); e também baixa escolaridade (22% desses

idosos não estudaram e 62% têm o primeiro grau incompleto).

Os idosos que participam do Nucleação são, na maioria, trabalhadores que desenvolveram

variadas atividades enquanto mão-de-obra pouco qualificada: há muitas antigas empregadas

domésticas, alguns operários de fábricas, lavadeiras, costureiras, faxineiras, pedreiros. Atualmente,

poucas dessas pessoas desenvolvem alguma atividade remunerada (2,30%), havendo um grande

número de mulheres “do lar” (36,40%). Essas pessoas vivem, em sua maioria, em casas próprias

(67%), acompanhadas de familiares (70%), havendo também alguns idosos que moram sozinhos

(27%) ou com amigos (3%). Há uma grande porcentagem de viúvas/os no universo (60%), várias

pessoas solteiras (15%) e algumas casadas (13%).

A oficina de fotografia com as jovens

O envolvimento da população na coleta de informações e na elaboração de produtos

audiovisuais, assim como a aproximação com entidades locais, pretende ao mesmo tempo realizar

experiência de cidadania cultural e contribuir para a formação / fortalecimento de um movimento

social em rede, que facilite a conquista de melhores condições de vida dos moradores do bairro

Dom Bosco, onde o projeto se desenvolve. São várias as atividades desenvolvidas neste ano

(iniciamos em dezembro de 2008), como elaboração e aplicação de questionário de perfil sócio-

econômico entre idosos, cuja análise permitiu a escolha daquelas/es idosas/os que participaram, em

outro momento, de entrevistas de histórias de vida; oficinas de audiovisual (fotografia e vídeo) com

jovens; de tecnologia digital com idosos e adultos; exposição fotográfica em vários locais do bairro,

com fotos da oficina e produzidas pelo bolsista de apoio técnico do projeto, produção, edição e

apresentação de vídeos sobre temas relativos ao bairro.

Uma das primeiras atividades foi a oficina de audiovisual (essencialmente fotografia, mas

também, com menor ênfase, produção de vídeo) com oito meninas adolescentes moradoras do

bairro Dom Bosco, de Juiz de Fora (MG). A seleção das jovens foi feita pelo Grupo Espírita

Semente, onde a oficina se realizou, nas tardes de quinta-feira. As atividades começaram no dia 12

de março e se encerraram em 25 de junho. Foram selecionadas pelo Semente oito jovens, de 13 a 16

anos: Andreska, Karolayne, Eliziane, Angélica, Evelyn, Regiane, Geisilane e Graziela. Ao total

foram 14 encontros, durante os quais se explicou e praticou o funcionamento básico de máquinas

fotográficas digitais, a edição de fotos digitais, a realização de vídeo com tais máquinas, a edição de

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vídeo, inclusive a realização de vídeo a partir de fotografias.

A realização de fotografias pelas jovens foi feita com a preocupação de captar a realidade do

bairro e dos moradores a partir do olhar das adolescentes, e para isso alguns temas foram

escolhidos, em discussões prévias com as meninas, para a realização de saídas no bairro para

compor as fotos: o próprio entorno (as pessoas e atividades do Semente); a rua em que se localiza o

Semente, os moradores dali; a escola do bairro (possui apenas até o 5º ano do ensino fundamental e

havia sido frequentada por muitas delas), os alunos, as atividades; o Chapadão, ponto mais alto do

bairro, seus moradores; fotos que mostrassem relação de afetividade; ser mãe no bairro;

homenagem a uma colaboradora do Semente; questões sobre moda e comportamento no bairro.

O aprendizado do uso das máquina foi fácil, mas muitas vezes os temas discutidos com as

jovens eram abandonados por elas, que compunham permanentemente fotos autocentradas. Em

conversa preliminar, todas, ou quase todas, disseram ter orkut e que costumam postar fotos nesse

site de relacionamento. Em outras atividades nos computadores isso se confirmou, pois algumas

delas deixavam em certos momentos de desenvolver o que era proposto para fazer uso dos

computadores como se estivessem numa lan house.

Durante a oficina, percebeu-se que elas tendiam a fazer fotos com teor narcisista, e

especialmente de cunho erótico, mais ou menos explícito. Há muitas fotos com destaque às pernas,

aos seios, à bunda, à boca e à língua. Igualmente fotos delas junto a carros e motos estacionados nas

ruas. Este comportamento pôde ser interpretado como uma busca permanente por autoafirmação.

Seja como menina-mulher sexualmente atraente – admirada, desejada e disputada – seja, por outro

lado, através do fetiche pela mercadoria. Isto se apresenta nítido nas fotografias delas diante de

produtos de elevado valor financeiro e que não condizem com a realidade cotidiana e nem com o

poder aquisitivo da família destas garotas.

Mas também realizaram fotos de mulheres, amigos, crianças, rapazes, em situações do dia-a-

dia do bairro, mostrando a falta de infra-estrutura do entorno, e situações de manifestação de

afetividade. As jovens possuem e demonstraram forte sentimento de pertencimento ao bairro e à

comunidade e, mesmo que de forma não expressa verbalmente, valorizaram e destacaram – nas

imagens – lugares e pontos específicos do Dom Bosco. Os diversos pontos do bairro eram buscados

como referência para o posicionamento das jovens no registro fotográfico – elas como

protagonistas, e o local como elemento em segundo plano, mas essencial.

Assim, foram fotografadas casas, moradores, jovens, crianças, velhos, paisagens, ruas,

problemas urbanos – como lixo e transporte público – enfim, aquilo que as garotas veem

diariamente e que faz parte do cotidiano do bairro Dom Bosco. Pode ter contribuído para essa

percepção a discussão realizada durante a oficina, de que elas buscassem manifestar a sua

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sensibilidade visual, e que dividissem o “foco” das fotografias da própria imagem para as coisas e

pessoas do bairro. Para isso, além das conversas, foi apresentado um vídeo com fotos de

profissionais como Sebastião Salgado, mostrando inúmeras possibilidades da fotografia.

Houve no decorrer da atividade uma oscilação entre interesse e desinteresse. Propostas

muito semelhantes – por exemplo, interagir com pessoas do bairro, fotografá-las - às vezes

encontrou adesão, às vezes forte resistência. De qualquer maneira, a postura da equipe de

coordenação foi, o tempo todo, de aceitação e diálogo com as jovens, sem excluir aquela(s) que, ao

invés de desenvolver(em) a atividade acertada, ficava(m) conversando sobre uma festa ou qualquer

outro assunto. Ao contrário, percebeu-se que importante elemento que permitiu desenvolver a

atividade foi o respeito a esse comportamento disperso, “indisciplinado”, heterogêneo, que elas

manifestavam a todo momento. A afetividade e companheirismo também pareciam ser elementos

em alguns momentos mais importantes do que as próprias atividades da oficina. Ou seja, a atividade

se transformou em parte numa brincadeira, numa forma de passar o tempo e ver as amigas e os

integrantes do projeto.

Na visita à Escola Municipal Álvaro Braga de Araújo, a interação entre as jovens e as

pessoas que fazem parte da rotina escolar foi intensa. Crianças, professoras, funcionárias

representaram uma demanda para que as adolescentes estendessem o olhar para algo além da

própria imagem. Fotografias as mais variadas ajudaram a contar o cotidiano daquela escola, e

estabelecer um elo entre o local e seus integrantes com as histórias das garotas e de outras pessoas

do Dom Bosco. Elas é que sugeriram fazer fotos na escola, que possui papel importante no bairro,

uma referência citada por todas as garotas. Segundo elas, era um lugar onde gostariam e teriam

coisas boas e bonitas para fotografar. Assim, a escola, que na dimensão e nas dinâmicas

propriamente formais (excessivamente formais e controladoras) do ensino muitas vezes é

desvalorizada, ainda assim alcança grande valor como equipamento de sociabilidade e referência

afetiva entre essas jovens.

Outro espaço sugerido por elas foi o Chapadão, parte mais alta do bairro, conhecida por ser

mais violenta, mais pobre e pelo tráfico de drogas. Os rapazes, ali, fizeram poses num estilo bem

caracterizado da periferia, um gesto com as mãos que simboliza “vida loka”, o nome de uma música

do grupo de rappers Racionais Mc, expressão popular nas periferias e que simboliza a vida na

favela, de medo opressão, violência e ao mesmo tempo de luta e sacrifício.

Uma atividade foi proposta pela equipe do Grupo Espírita Semente, a produção de um vídeo

a partir de fotos a serem feitas pelas jovens no bairro, sobre “ser mãe no Dom Bosco”. Para isso, a

psicóloga do Semente conduziu previamente um debate sobre o tema com as jovens, a partir de três

indagações: O que é ser mãe? E o que é ser mãe no bairro? Como você seria mãe?

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Na discussão sobre a primeira pergunta, as respostas foram aquelas de senso comum: dar

carinho, proteção, atenção. Na segunda questão, o contraste: a discussão sobre ser mãe na

comunidade levou a inúmeras respostas em que aparecia intensamente a questão da violência.

Deixar o filho na rua, ou trancado em casa, bater no filho, não dar atenção, deixar com fome, foram

algumas das respostas. Na terceira e última questão, retornava-se às respostas de senso comum:

serei mãe carinhosa, protetora. Ou seja, não serei uma mãe como elas mesmas caracterizaram a

relação mãe / filhos/as no bairro.

Fotografar situações que ilustrassem a discussão realizada anteriormente não foi fácil,

especialmente no que diz respeito à violência doméstica e infantil, mas foram compostas muitas

fotos sobre a relação mãe-filho/a. Verificou-se que há no bairro muitas mulheres que, além de

cuidarem de seus filhos/netos, cuidam também de várias outras crianças, filhos/as de vizinhos. Isso

é especialmente importante porque no bairro não há nenhuma creche – uma das principais

reivindicações dos moradores do bairro, ao lado de transporte público na parte alta, escola pública

após o 5º ano e melhorias no posto de saúde e na segurança. O vídeo foi produzido pela equipe

coordenadora do projeto com as falas e fotos das próprias jovens (que participaram da seleção e

edição das fotos, alterando contraste, fazendo cortes, inserindo molduras), e apresentado em festa

do Dia das Mães promovida pelo Semente.

A presença do tecnonarcisismo

A autoafirmação e a tendência narcísica das jovens pode ser associada a duas questões: em

primeiro lugar, à própria adolescência, à formação de personalidade, à configuração de gostos muito

fortes nesse momento de vida; ao mesmo tempo, contudo, os elementos da tecnocultura aos quais se

refere Muniz Sodré parecem ali se manifestar com extrema intensidade, em especial o que o autor

denomina tecnonarcisismo, a apropriação midiática do narcisismo em que a identidade se dilui, ou

se desfaz em detrimento de uma construção imagética de outro-de-si no espelho.

Na publicidade, na televisão, no espetáculo em geral – esferas de uma nova socialidade globalmente construída por efeitos imaginários e individualmente caracterizada pela auto-referência narcísica –, importam mais como base identitária a performance das mensagens e os posicionamento estético dos sujeitos-receptores do que definições de natureza conceitual. A mídia não é instrumento ou veículo (conceitual) de normas reproduzidas de algum lugar da vida social: ela própria, enquanto jogo infinito de reflexos de seu código, é moralidade público/privada, que se impõe por um indiciamento estético das situações (SODRÉ, 2002, p.190).

As jovens parecem manifestar essa auto-referência narcísica na elaboração das fotos, a todo

momento. Mesmo quando já com domínio da máquina, e passada a excitação ou deslumbramento

do início das atividades, o retorno a si mesmas era algo presente. Não havia, na discussão a respeito

das fotos – ou seja, o que elas significam, o que elas representam – algo muito além do que as

próprias fotos. Dificilmente se obtinha a expressão de um conceito, de uma abstração a partir da

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imagem: é como se a imagem bastasse a si mesma, e não tivesse nenhum significado que a

transcendesse.

O interesse em compor fotos de si mesmas mostrou-se em certa medida ser decorrente da

possibilidade de postá-las posteriormente no orkut. A visibilidade – e o tipo de visibilidade –

proporcionada em grande medida por esse site de relacionamentos parece conduzir a forma de

compor as fotos, de si e dos outros. Essa nova forma de socialidade – baseada em determinada

forma de apropriação das tecnologias digitais – mostrou-se também de maneira intensa.

A superação dessa dimensão narcísica se deu na medida em que a oficina parece ter

conseguido fazer despertar a sensibilidade para o entorno das jovens, para outra dimensão, de

relacionamento humano presente também no seu cotidiano. Desta maneira, embora elas se

mostrassem resistentes em alguns momentos a desenvolver certas atividades (que, por sua vez,

devem ser submetidas a crítica, pois talvez buscassem fazer relação estritamente mecânica entre um

conceito e a sua representação em fotografias) -, houve em várias outras ocasiões não apenas

adesão, participação, mas mesmo entusiasmo pela atividade, sem faltar sensibilidade na composição

de fotos.

Perspectivas de trabalho

Considero que seria precipitado inferir que a relação que as jovens estabeleceram com a

atividade de produzir fotografias se deu exclusivamente a partir de um comportamento narcísico,

pautado, principalmente, pelos meios de comunicação e pela sociedade de mercado e de consumo,

ou seja, segundo valores hegemônicos. Verificou-se também a presença da valorização do bairro, de

seus moradores, da denúncia das condições precárias em que elas mesmas vivem – implicando a

aceitação mas também a recusa. Aquilo que poderia ser visto como “indisciplina” me parece

claramente a rejeição de sistemas de imposição de normas, vistas (ou, melhor, sentidas) como

formas de controle, realizado por parte de “outros” “contra” elas.

Entendo que o comportamento e os valores expressos pelas jovens e suas fotografias são

mostra de uma cultura popular. Que, como diz Marilena Chauí (2006), não se caracteriza

necessariamente nem pelo seu caráter contestador nem de aceitação de valores hegemônicos. Talvez

– ao menos me pareceu assim na análise dessa oficina – os dois aspectos ao mesmo tempo, de

forma contraditória, dialética.

Na medida em que forneceu equipamento e outros elementos para que as jovens

produzissem fotografias e vídeos, com temas que tiveram participação ou mesmo foram definidos

por elas próprias, vejo essa experiência como prática de cidadania cultural. Aliás, isso se aplica em

relação a todos os participantes das atividades, as jovens, o professor, o bolsista de apoio técnico e a

bolsista de extensão. Foi atividade de produção cultural atravessada pelos padrões de mercado – e

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não poderia ser de outra forma – mas que representou uma possibilidade de expressão daquele

grupo de jovens, como forma de comunicação, de produção e troca de experiências marcadas pelo

exercício do direito à cultura.

Experiências como essa nos têm parecido mais efetivas na construção de uma inclusão não

apenas digital, mas social: a transformação de um espaço tradicional de acesso à internet (salas com

computadores conectados à rede) em um núcleo de produção cultural que, a partir de propostas que

incorporem reflexão crítica (em níveis e temas e dinâmicas que podem ser os mais variados), realize

atividades em que os participantes sejam autores (ou co-autores) daquela produção.

Hoje, parece-me que nessa perspectiva seria possível responder àquelas perguntas feitas

inicialmente, procurando atender aquelas características apresentadas como de um telecentro

comunitário: participação; visão social, ou seja, sensibilidade para planejar e desenvolver as

atividades levando em conta a realidade específica do próprio local ou bairro; utilização e gestão

de tecnologias adequadas - e a fotografia, o vídeo e a música operam linguagens extremamente

importantes entre segmentos da população de baixa renda, que dominam com dificuldade, quando o

fazem, a leitura e a escrita; e capacitação permanente, na perspectiva de que tais jovens (ou adultos)

adquiram autonomia para realização de todas as atividades inerentes a tal produção.

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