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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Edinéia Pereira da Silva Betta A institucionalização da indumentária gaúcha: imagens que (re)vestem o tradicionalista gaúcho (1947 - 1989) DOUTORADO EM HISTÓRIA Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Doutora em História, sob a orientação da Profa. Dra. Estefânia Knotz Canguçú Fraga. São Paulo 2018

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Edinéia Pereira da Silva Betta

A institucionalização da indumentária gaúcha: imagens que (re)vestem o tradicionalista gaúcho (1947 - 1989)

DOUTORADO EM HISTÓRIA

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Doutora em História, sob a orientação da Profa. Dra. Estefânia Knotz Canguçú Fraga.

São Paulo

2018

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1

Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos a reprodução total ou parcial desta Tese de Doutorado por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos. Assinatura______________________________________ Data:________________ E-mail ___________________________________________

Ficha catalográfica elaborada por Angela Sikorski Santos – CRB 14-836

391.0098165 B565i

Betta, Edinéia Pereira da Silva

A institucionalização da indumentária gaúcha: imagens que (re)vestem o tradicionalista gaúcho (1947-1989) / Edinéia Pereira da Silva Betta – São Paulo, 2018.

217 f. : il. Orientadora: Estefânia Canguçu Fraga Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós- Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

1. Gaúcho. 2. Indumentária gaúcha. 3. Movimento tradicionalista

gaúcho I. Fraga, Estefânia Canguçu. II. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de Pós-Graduação em História. III. Título.

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2

Banca Examinadora

__________________________________________________

__________________________________________________

__________________________________________________

__________________________________________________

__________________________________________________

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3

Àquele que permite que minhas realizações

sejam até maiores que os meu sonhos...

...Deus!

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Bolsista parcial CAPES

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AGRADECIMENTOS

À Estefânia Knotz Canguçú Fraga, a mais paciente e centrada das professoras!

Confederação Internacional da Tradição Gaúcha

Em especial à Loiva Lopes Calderan, secretária (2012/2014), por reunir e

disponibilizar os documentos oficiais da instituição.

Sociedad Criolla Dr. Elias Regules

Todo o meu agradecimento à Cecília Assunção, filha do maior pesquisador de

Pilchas Criollas do Uruguai - Fernando Assunção (in memoriam), pela receptividade,

orientação e disponibilização dos preciosos materiais.

Museo del Gaucho

À Alicia Brassesco pelas valiosas orientações sobre o maior acervo do gaúcho

uruguaio.

Confederacion Gaucha Argentina

Ao presidente Adolfo Caballero, pelas informações.

Confederação Brasileira da Tradição Gaúcha

Ao presidente Sr. João Ermelino de Mello, por permitir o acesso aos filiados. E ao

Sr. Jabob Momm Filho (in memoriam), um dos grandes incentivadores e primeiro

presidente da instituição, que com saúde debilitada me presenteou com longas

conversas e disponibilizou inéditos documentos.

Movimento Tradicionalista Gaúcho

Aos MTGs de todo o Brasil, que estiveram disponíveis para os inúmeros

questionamentos. À Sra. Vera Rejane Freitas Fernandes, responsável pela

biblioteca do MTG/RS, por localizar e enviar a mais rica das atas desta pesquisa.

À UNIFEBE, minha instituição!

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Mulher Pampeana

[...] Nestes serões solitários

Entre agulhas de costura E velhos livros que li

Fui alinhando as ideias Alinhavando verdades

Até que um dia entendi

Sou a história repetida Eu já vivi outras vidas

Eu já fui outras mulheres Antes de ser a que sou

[...] Fui das páginas da historia

Aos sonhos de faz de conta Na guerra, fui Cabo Toco

Uma mulher que peleou

Fui Anita e Ana Terra [...]

Quem percorrer a querência Pelos caminhos da historia

Decerto me encontrará [...]

Eu já dancei a tirana Já bailei nas amadas

Já fui prenda cortejada Nos fandangos de galpão

[...] Eu, já vivi tantas vidas

Eu já fui tantas mulheres E outras que por certo serei

[...] Muda o tempo, muda a gente...

[...] Mas no fundo sou a mesma

(Odilon Ramos, s/d)

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RESUMO

Esta investigação tece reflexões acerca do Movimento Tradicionalista Gaúcho e

analisa o repertório imagético selecionado na composição da indumentária gaúcha

institucionalizada. O vestuário constituiu-se como elemento central do conjunto de

referências selecionadas pelo movimento a partir de 1947, a partir dele as pessoas

se apropriam da identidade constituída, criam personas e se afirmam como gaúcho.

Em razão da intensa utilização de referências históricas nas práticas do movimento,

o imaginário se fortalece e resulta na conexão do presente com o passado, criando

sentidos, evocando-o como o diferente e evidenciando o “eu” e o outro”. Desse

modo, a pesquisa tem como objetivo verificar as fontes textuais e imagéticas

utilizadas na obra Indumentária Gaúcha de Antonio Augusto Fagundes, identificando

e analisando as referências históricas e aspectos da moda que reverberam na

composição proposta pelo autor e aprovada pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho

a partir da segunda metade do século XX.

Palavras-chave: Gaúcho, Indumentária gaúcha, Movimento tradicionalista.

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ABSTRACT

This research set reflections about the Gaucho Traditionalist Movement and

analyses the selected imagery repertoire on the composition of the institutionalized

Gaucha clothing. Clothing became the main element of the set of references selected

by the movement from 1947, from it people embrace the constituted identity, create

personas and declare themselves as Gauchos. Due to the intense use of historical

references on the movement practices, the imaginary is reinforced and results in the

connection of the present with the past, creating meanings, evoking it as the different

and emphasizing "me" and "the other". Therefore, the aim of this research was to

verify the textual and imagery sources used in the book "Indumentária Gaucha" of

the writer Antonio Augusto Fagundes, identifying and analyzing the historical

references and the fashion aspects that rebound on the composition proposed by the

author, and approved by the Gaucho Traditionalist Movement from the second half of

the twentieth century.

Key words: Gaúcho, Gaucha clothing, Traditionalist Movement.

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LISTA DE FIGURAS E QUADRO

Figura 1 - Paseo Criollo, 24 de maio de 1894 - Montevidéu.................................... 43

Figura 2 - Grupo de oito jovens em trajes gaúchos, denominado “Piquete

da Tradição”............................................................................................. 51

Figura 3 - Apresentação do 35 CTG na III Semana Nacional de Folclore, em 1950,

em Porto Alegre, no Instituto de Belas Artes do Rio Grande do Sul........ 62

Figura 4 - Getúlio Vargas e os fundadores do Movimento Tradicionalista Gaúcho

no 1º Congresso Brasileiro de Folclore, em 1951, no Rio de Janeiro.... 63

Figura 5 - João Carlos Paixão Côrtes e Juliano José Laerte Simch no baile

gauchesco do Colégio Júlio de Castilhos, em 1947............................... 70

Figura 6 - Vestimenta do Gaúcho, Paixão Côrtes.................................................... 74

Figura 7 - Descrição dos trajes................................................................................ 75

Figura 8 - Chiripá primitivo, braga, chiripá farroupilha e bombacha........................ 81

Figura 9 - Trajes gaúchos, 1750-1820 - primeira época.......................................... 82

Figura 10 - Traje gaúcho, 1820-1865 - segundo época........................................... 82

Figura 11 - Traje gaúcho, 1865-1976 - terceira época............................................. 83

Figura 12 - Charruas Civilisé (Pions), Jean Baptiste Debret, 1834..........................97

Figura 13 - Chiripá - Charruas Civilisé (Pions), Jean Baptiste Debret..................... 100

Figura 14 - Camisa, jaleco, jaqueta e ponxe - Charruas Civilisé (Pions), Jean

Baptiste Debret..................................................................................... 101

Figura 15 - Chapéus - Charruas Civilisé (Pions), Jean Baptiste Debret.................. 103

Figura 16 - Botas - Charruas Civilisé (Pions), Jean Baptiste Debret....................... 104

Figura 17 - Botas Garrão de Potro, Jorge Ubiratan Lopes...................................... 106

Figura 18 - Processo de fabricação da bota de garrão de potro.............................. 107

Figura 19 - Armas - Charruas Civilisé (Pions), Jean Baptiste Debret...................... 108

Figura 20 - Homem do Rio Grande do Sul. Gaúcho. Jean-Baptiste Debret………. 110

Figura 21 - The Horse Race, Emeric Essex Vidal, 1817…………………………….. 114

Figura 22 - The Horse Race, Emeric Essex Vidal, 1817…………………………….. 116

Figura 23 - Atardecer, Juan Manuel Blanes, óleo sobre tela (48x40cm), s/d.......... 121

Figura 24 - Amanecer, Juan Manuel Blanes, óleo sobre tela (48x40cm), s/d......... 121

Figura 25 - Crepusculo, Juan Manuel Blanes, óleo sobre cartão (24x28cm), s/d... 121

Figura 26 - La Aurora, Juan Manuel Blanes, óleo sobre cartão (28x23cm), s/d...... 121

Figura 27 - Chiripá farroupilha................................................................................. 123

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Figura 28 - Los tres Chiripás, Juan Manuel Blanes, óleo sobre tela

(40x50cm), 1881.................................................................................... 125

Figura 29 - José Podestá representando Juan Moreira........................................... 129

Figura 30 - Reportagem “Churrasco nos Pampas”.................................................. 132

Figura 31 - Pedro Raimundo, 1960.......................................................................... 135

Figura 32 - Maria Zulema Paixão Côrtes, no primeiro baile organizado em razão

do nascimento do Movimento Gaúcho, em 1947...................................140

Figura 33 - Capa do disco Gauchos Hi-Fi, Conjunto Farroupilha, 1957.................. 142

Figura 34 - Idilio criollo, óleo sobre tela (100x140cm), 1861................................... 149

Figura 35 - Bailando el gato, aquarela sobre papel (17x33,3cm), 1860.................. 150

Figura 36 - Tienda, aquarela sobre papel (34,7cm), 1860....................................... 151

Figura 37 - Organograma das instituições gaúchas filiadas à Confederação

Brasileira da Tradição Gaúcha - CBTG, com seus respectivos CTGs.. 162

Figura 38 - Localização dos CTGs fundados por brasileiros no exterior................. 163

Figura 39 - Organograma da estrutura do movimento gaúcho e quantidade

de Centros de Tradições Gaúchas por confederação........................... 164

Quadro 1 - Vestuário gaúcho proposto por Antonio Augusto Fagundes................. 87

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CATG Confederação Argentina de Tradição Gaúcha

MTO Movimento Tradicionalista Oriental (Uruguai)

CBTG Confederação Brasileira da Tradição Gaúcha

CITG Confederação Internacional da Tradição Gaúcha

CNATGB Confederação Norte-Americana do Tradicionalismo Gaúcho Brasileiro

CTG Centro de Tradições Gaúchas

MTG Movimento Tradicionalista Gaúcho

ONU Organização das Nações Unidas

UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

IBECC Instituto Brasileiro de Educação, Cultura e Ciências

CNFL Comissão Nacional do Folclore

CGF Comissão Gaúcha de Folclore

BN Biblioteca Nacional

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 13

CAPÍTULO I – DO GAÚCHO HISTÓRICO ÀS PRIMEIRAS INSTITUIÇÕES: IDENTIDADE, MEMÓRIA E REPRESENTAÇÃO....................................... 23

1.1 TROPEANDO E POUSANDO: TEORIAS QUE ASSENTAM........................................ 23

1.2 DO GAÚCHO ÀS PRIMEIRAS INSTITUIÇÕES: PRODUZINDO IDENTIDADES............................................................................................................... 28

CAPÍTULO II – O MOVIMENTO TRADICIONALISTA E O VESTIR GAÚCHO................. 49

2.1 TRADIÇÃO "ELETIVA" GAÚCHA E FOLCLORE: A CONSOLIDAÇÃO DA IDENTIDADE IDEAL................................................................................................ 49

2.2 VESTINDO O GAÚCHO TRADICIONALISTA: PRIMEIRAS REPRESENTAÇÕES DO VESTUÁRIO........................................................................ 68

CAPÍTULO III – A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA INDUMENTÁRIA GAÚCHA: IMAGENS QUE (RE)VESTEM E REVERBERAM NO TRADICIONALISTA GAÚCHO................................................................. 78

3.1 IMAGENS NARRADAS E NARRATIVAS TRADUZIDAS EM IMAGENS: RELATOS E AQUARELAS NA INDUMENTÁRIA DE FAGUNDES.............................. 86

3.2 IMAGENS ENCENADAS QUE ANUNCIAM UM VESTIR GAÚCHO: DOS CIRCOS CRIOLLOS A PEDRO RAIMUNDO....................................................... 127

CAPÍTULO IV – E A INDUMENTÁRIA DA "PRENDA" GAÚCHA?................................... 139

4.1 ENTRE RELATOS, AQUARELA E MODA, O VESTIDO IDEAL DA PRENDA TRADICIONALISTA....................................................................................................... 139

4.2 DOS BABADOS "FORA DE MODA" ÀS LEIS QUE NORMATIZAM: REFLEXOS DO MOVIMENTO EM EXPANSÃO........................................................... 154

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................ 167

REFERÊNCIAS................................................................................................................... 172

GLOSSÁRIO....................................................................................................................... 189

APÊNDICE.......................................................................................................................... 198

ANEXOS.............................................................................................................................. 201

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INTRODUÇÃO

Gaúcho. Palavra que me acompanha desde a infância. Enquanto os

dicionários conceituavam como o “habitante do Rio Grande do Sul”1, inquietações,

dúvidas e desconfianças permeavam meus pensamentos (ver Apêndice I). Ao iniciar

minhas pesquisas, percebi que a situação era ainda mais complexa, visto que a

cada livro, imagem ou documento surgiam novos significados. Pois bem, após uma

imersão em obras de outrora, uma nota de rodapé de um relatório de viagem de

1787 se tornou o ponto de partida para a resolução das minhas questões:

Gauches, palavra Hespanhola usada neste paiz para expressar aos Vagabundos ou ladroens do Campo, quais Vaqueiros, costumados a matar os Touros chimarroens a sacar-lhe os Couros [...].2

Esse conceito foi por muito tempo a força propulsora das minhas pesquisas.

Considerado a primeira prova documental em que aparece a palavra “Gauches”, os

registros de 1787, do viajante português José de Saldanha, trazem um conceito que

muito se difere daquele observado nos dias atuais. O gaúcho, presente em diversas

obras como gentílico, honesto, herói de guerras, sujeito de inúmeros predicados, já

foi detentor de características negativas. Quais os fatores que contribuíram para tal

alteração? Ou seja, para cada descoberta, novos questionamentos.

Durante o processo de investigação, iniciado na Especialização e no

Mestrado, percebi que os fatores responsáveis pelas transformações ocorridas do

conceito inicial atribuído ao gaúcho aos dias atuais incidiram em dois momentos. O

primeiro, durante o século XIX, quando a literatura permeia a história e recria o

personagem de forma lúdica, possivelmente como resultado da necessidade

emergente de definir a identidade em uma terra recém-colonizada por meio de

disputas de fronteiras. E o segundo (e mais intrigante) momento, na segunda

metade do século XX, quando surge um movimento cultural, institucionalmente

organizado, com o objetivo de (re)criar e preservar a figura do gaúcho tal qual foi

idealizada no século anterior. Duas iniciativas que alcançaram proporções

1 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Aurélio Júnior - Dicionário escolar da língua portuguesa.

Curitiba: Positivo, 2011, p. 458 e 777. AVOLIO, Jelssa Ciardi. Michaelis - Dicionário escolar francês. São Paulo: Melhoramentos, 2009, p. 487. 2 SALDANHA, José de. Diário resumido. Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, v. 51, 1938,

p. 181.

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inimagináveis, fazendo com que essa figura se tornasse conhecida e abordada em

diferentes lugares do mundo numa época em que a mídia eletrônica era pouco

explorada.

O primeiro processo, resultado do trabalho da literatura, deixa explícito que

são estórias, ainda que elaboradas com elementos da história. Porém, o segundo,

criado pelo movimento cultural gaúcho, trata-se de um conjunto intenso de práticas

representativas, repletas de imagens selecionadas e organizadas pelo grupo, com

base também em elementos da história, porém com o objetivo de instituí-las como

verdades históricas. Tais práticas com referências imagéticas, constituídas pelo

movimento a partir do ano de 1947, foram apreendidas e são defendidas como

verdades por aqueles que as seguem.

Provendo essa rede de práticas com elementos de representação estão a

música, a poesia, a literatura, a dança e atividades de recreação que lembram a vida

no campo do antigo gaúcho. Entre as diversas práticas se sobressai a indumentária,

que está entre os principais elementos selecionados para representar o gaúcho na

atualidade. Ela é destaque nos relatos e nas aquarelas dos viajantes dos séculos

XVIIII e XIX, reaparece com ênfase na literatura nos séculos XIX e XX e é elemento

obrigatório na construção e disseminação do gaúcho ideal da segunda metade do

século XX, quando inicia o movimento gaúcho institucionalizado.

Tais práticas revestem os sujeitos, atuando como formas de se reconhecer e

de se fazer reconhecer. Nesse contexto, a imagem se configura como ferramenta

estratégica de representação, sendo a vestimenta recurso escolhido para legitimar

as práticas, atribuindo efeitos de verdade ao personagem identitário.

Nesse sentido, o estudo procura de modo breve historicizar a gênese do

gaúcho, a fim de compreender as transformações ocorridas, e apresentar a

arquitetura constituída a partir da organização desse movimento institucionalizado,

que atualmente é composto por quase quatro mil instituições, distribuídas no Brasil e

no exterior, com aproximadamente meio milhão de associados que as seguem

rigorosamente. Dessa forma, esta investigação tece reflexões acerca do repertório

imagético reunido, considerando a indumentária como elemento central do conjunto

de referências históricas selecionadas pelo movimento gaúcho após 1947, que fez

com que um grande contingente de pessoas se apropriasse da identidade gaúcha e

criasse personas por meio de vestimenta específica.

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15

Assim, esta pesquisa tem como objetivo verificar a institucionalização da

indumentária gaúcha, analisando as referências históricas que reverberam na

vestimenta selecionada pelo movimento gaúcho a partir da segunda metade do

século XX.

O recorte temporal

A pesquisa tem como recorte temporal o período de 1947 a 1989. Ocasião em

que foi institucionalizada a indumentária do gaúcho pelo movimento organizado

iniciado em 1947, aprovado em congresso em 1961 e oficializado por lei estadual

em 1989.

A partir de 1947 começaram a ser criados espaços exclusivos para a difusão

desse personagem em todo o país. Espaços que, no ano seguinte, foram

denominados Centros de Tradições Gaúchas, popularmente conhecidos por CTGs,

nos quais hábitos e costumes do personagem são apreendidos e seguidos por

gerações. Logo, foi necessária a realização de encontros oficiais, a fim de organizar

o movimento conforme idealizado. Nesse sentido, o Congresso Tradicionalista se

constituiu no mais importante evento, onde os temas de interesse são discutidos,

decididos e seguidos.

Dessa forma, a vestimenta tem sido citada desde os primeiros congressos.

Foi pauta no I Congresso Tradicionalista, em 1954, na tese “O sentido e o valor do

tradicionalismo”, de Barbosa Lessa, revelando a importância da temática. Já no V

Congresso Tradicionalista, em 1958, foram apresentadas pesquisas específicas

sobre a bombacha, definida na ocasião como indumentária do gaúcho. No entanto,

foi no VIII Congresso Tradicionalista, em 1961, que uma das maiores pesquisas

sobre o vestuário do gaúcho até o momento surgiu na pauta principal em formato de

tese, defendida por Antonio Augusto Fagundes, sendo aprovada pela assembleia,

ficando assim institucionalizada a indumentária do gaúcho.

Em razão da quantidade de instituições sendo fundadas em diferentes

lugares, foi necessária a criação do Movimento Tradicionalista Gaúcho, ou MTG,

como é conhecido, com o objetivo de congregar todas as instituições denominadas

CTGs. A instituição seguiu com a realização dos congressos, e no XXIII Congresso,

em 1978, a tese sobre indumentária gaúcha de Antonio Augusto Fagundes, agora

ampliada e publicada, foi novamente aprovada.

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16

Em 1989, o governo do Estado do Rio Grande do Sul oficializou, por meio da

Lei nº 8.813, como traje de honra e de uso preferencial no Rio Grande do Sul, para

ambos os sexos, a indumentária denominada “Pilcha Gaúcha”. A lei registra ainda

que será considerada somente a vestimenta que reproduza com autenticidade as

diretrizes traçadas pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho. Ou seja, compete ao

movimento definir a indumentária do gaúcho. Cabe, no entanto, destacar a

importância da instituição perante o Estado já na década de 1980.

Ainda sobre o espaço de tempo selecionado para o estudo, cabe dizer que,

entre as pesquisas que discutem o gaúcho, poucas se debruçam sobre esse

período. Parte dos estudos identificados examina o gaúcho pelo viés da literatura,

com recorte temporal anterior ao proposto nesta tese. Não foram identificadas

pesquisas que se dedicam a discutir o gaúcho institucionalizado, tampouco a sua

vestimenta.

Embora o objeto desta pesquisa seja a vestimenta institucionalizada pelo

movimento gaúcho, ela não existiria sem os sujeitos que se revestem e colocam os

elementos em movimento. Dessa forma, a pesquisa considera a atuação desses

sujeitos revestidos, que ajudam a compor o universo das tradições gaúchas, parte

das investigações, verificando o que há de indícios históricos nessa arquitetura

construída que vive em constante movimento.

Investigar as práticas dessas instituições em todos os seus níveis de

organização administrativa após 1947 traz a necessidade de entender o contexto

histórico em que o gaúcho estava inserido, ou seja, o cenário da região do atual

Uruguai, Argentina e Sul do Brasil, a fim de compreender os vestígios históricos que

permeiam a atuação das instituições no recorte temporal selecionado, bem como as

referências que ainda reverberam na indumentária institucionalizada. Tais

investigações são possíveis em razão do acesso privilegiado aos documentos

oficiais.

A reunião das fontes foi iniciada antes mesmo do Mestrado. Como integrante

do movimento gaúcho, participei de diferentes eventos desde a infância, ocupando

inclusive cargos de liderança no Movimento Tradicionalista Gaúcho do Estado de

Santa Catarina - MTGSC e, posteriormente, na Confederação Brasileira da Tradição

Gaúcha - CBTG. Neste último tive a oportunidade de viajar por todos os Estados do

Brasil.

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O envolvimento com lideranças e adeptos do movimento, o acesso a

documentos oficiais e a formação em História levaram-me a questionar a

organização e problematizar as práticas definidas pelas instituições gaúchas.

Durante os dez anos em que estive à frente de alguns departamentos, pude reunir

fontes de diferentes tipologias, as quais, com o consentimento dos envolvidos, tenho

o privilégio de utilizar nesta pesquisa, algumas inclusive inéditas.

Fontes e abordagens

As abordagens foram delineadas privilegiando quatro tipos de fontes. São

elas: os relatórios de viagem de pesquisadores que passaram pelo Sul do Brasil,

pelo Uruguai e pela Argentina nos séculos XVIII e XIX; aquarelas e fotografias;

artefatos que fizeram parte do vestuário do gaúcho, pertencentes ao Museo del

Gaucho, em Montevidéu; bem como documentos oficiais das instituições gaúchas,

como atas, teses, estatutos, regimentos, cartas e moções resultantes de congressos

organizados. A variedade do corpus documental, somada ao recorte temporal já

citado, contribui para uma análise diversificada do objeto, permitindo realizar

abordagens pouco exploradas.

Para análise do termo “gaúcho”, bem como de relatos sobre sua vestimenta e

aquarelas, são priorizados os registros dos viajantes dos séculos XVIII e XIX, por ser

um período escasso em publicações, e pelo fato de constar nesses documentos a

primeira referência ao termo. Embora apresentem considerações simplificadas

acerca do que viam e uma visão eurocêntrica sobre aqueles que aqui habitavam,

essas fontes trazem elementos indispensáveis para esta pesquisa.

Para analisar tais fontes, no que se refere à classificação da escrita dos

viajantes, a pesquisa utiliza como referencial teórico os estudos de Flora Süssekind

e Mary Louise Pratt.3 As autoras classificam os relatos de viagem como científicos

ou sentimentais. Mary Louise Pratt descreve que a informação é prioridade na

narrativa científica, tal qual orienta o sistema de conhecimento institucionalizado,

limitando-se a relatar de maneira objetiva o que se vê, ao passo que os relatos de

viagem sentimentais se baseiam na experiência sensorial, ou seja, a autoridade da

3 SÜSSEKIND, F. O Brasil não é longe daqui - O narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das

Letras, 1990. PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: EDUSC, 1999.

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narrativa reside na autenticidade das sensações, e o pronome “eu” permeia o

discurso, narrando a interação com o espaço e os sujeitos encontrados.4

Flora Süssekind estende suas análises e afirma que nos relatos científicos

cabe ao viajante narrar, fixar tipos, classificar, ordenar e organizar em mapas, ou

seja, apresenta uma estrutura organizacional. Nessas expedições o narrador se

apaga e passa a figurar ora num plural impessoal, ora numa imagem genérica. Já as

narrativas sentimentais sofrem interferência do narrador, que algumas vezes

compara as regiões exploradas com paisagens europeias.5

Valendo-se de tais abordagens, foi possível selecionar e classificar os relatos

dos viajantes dos séculos XVIII e XIX. Como critério de seleção, os viajantes teriam

de relatar passagens pela América do Sul e mencionar o gaúcho, ou características

deste. São eles: José de Saldanha, matemático e astrônomo português, 1787; Jean

Baptiste Debret, pintor e desenhista francês, 1816-1831; Nicolau Dreys, militar,

comerciante e naturalista amador francês, 1817-1825; Auguste de Saint-Hilaire,

naturalista francês, 1816-1822; Arsène Isabelle, comerciante, naturalista amador

francês, 1833-1834; Alexandre Baguet, comerciante belga, 1845; Thomas Jefferson

Page, oficial da Marinha de Guerra Norte-americana, 1859; Emeric Essex Vidal,

membro da marinha inglesa e pintor, 1916-1918; e Conde d‟Eu, nobre francês e

príncipe imperial consorte do Brasil, 18656.

No decorrer do século XIX, com a constante chegada de imigrantes europeus

ao Sul do Brasil, emergiu a necessidade de afirmar uma identidade. Nesse sentido,

o gaúcho foi o escolhido pela literatura para servir de modelo, tendo como fontes os

relatos de alguns viajantes, sobretudo aqueles que o descreveram com atributos

positivos. Nesse sentido, ele deixava a história aqui registrada por meio dos relatos

de viagem para entrar no campo da literatura, que recria a imagem do sujeito,

transformando-o em herói. Nesse processo de recriação, o gaúcho torna-se o

protagonista identitário, outra representação que passou por uma série de

transformações intencionais.

4 PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: EDUSC,

1999, p. 138-141. 5 SÜSSEKIND, F. O Brasil não é longe daqui - O narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das

Letras, 1990, p. 45- 58, 110-111. 6 Dom Luís Filipe Maria Fernando Gastão de Orléans e Saxe-coburgo-Gota.

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19

A representação do gaúcho na literatura foi impulsionada pelos uruguaios, na

segunda metade do século XIX, que, ao perceberem a chegada maciça de

imigrantes europeus, organizaram um movimento, assumindo para si uma

identidade com referências na história, mais especificamente em hábitos e costumes

do gaúcho – movimento esse que posteriormente seria replicado no Brasil. É

possível identificar tal preocupação nos registros oficiais, como nas atas de

fundação das primeiras instituições7 criadas com o objetivo de recuperar e valorizar

a cultura do Sul.

É possível verificar que, no Brasil, essas primeiras instituições, fundadas entre

o século XIX e início do século XX, não prosseguiram tal como idealizadas, por

diferentes fatores, delineados nesta pesquisa. No entanto, em 1947 o movimento

ressurgiria com uma nova roupagem. Guiado pelos objetivos das instituições criadas

no século anterior, o novo movimento intensificou suas práticas e tomou um grande

impulso, desta vez se autointitulando “tradicionalismo gaúcho”.

Para análise dessa fase do movimento, recorte temporal prioritário deste

estudo, a pesquisa aborda o objeto a partir da História Cultural. Nesse sentido,

Sandra Jatahy Pesavendo e Roger Chartier são por vezes visitados. Segundo a

autora, os conceitos de cultura, representação, imaginário, sensibilidade, memória e

subjetividade foram reapropriados pelos investigadores do passado no terreno da

cultura nos últimos anos, e estão consolidados. Igualmente, são conceitos que

permeiam esta pesquisa e que, portanto, serão abordados sob essa ótica.

A criação e organização do denominado Movimento Tradicionalista Gaúcho

são abordadas sob a perspectiva de Benedict Anderson, em sua obra “Comunidades

Imaginadas”, e questões relacionadas à identidade, latentes no processo de criação,

a partir de Stuart Hall e Zygmunt Baumann.

Pela análise dos documentos oficiais das instituições, verifica-se uma

necessidade constante de afirmação de uma identidade por meio de discursos e

práticas culturais, que remetem aos hábitos e costumes do gaúcho, tendo como

referência aqueles descritos pelos viajantes dos séculos XVIII e XIX. Percebe-se

ainda que as imagens se configuram como principal ferramenta de assimilação

visual daquilo que se quer como cultura gaúcha. Com base nessa constatação,

passou-se então a pesquisar as tipologias de imagens utilizadas e possíveis

7 Em 1894 foi fundada em Montevidéu, no Uruguai, a Sociedad La Criolla. E quatro anos depois, em

1898, essa iniciativa seria replicada no Brasil, por mais de 15 instituições.

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20

abordagens teórico-metodológicas. Verificou-se que os relatos e aquarelas foram

ferramentas estratégicas para a elaboração da indumentária gaúcha, constituindo

uma representação ideal.

A esse respeito, Sandra Jatahy Pesanvento e Roger Chartier dizem que as

representações dotam o presente de sentidos e estabelecem relações de poder.

Embora o representante não seja o representado, mas uma imagem, ele traz

semelhanças e significados dele, ficando no lugar da realidade.8 A utilização das

imagens como formas de representação é constantemente projetada, servindo como

referência da identidade escolhida, a fim de tornar presente o ausente, tal como

descreve Peter Burke em sua obra “A fabricação do Rei”9. Tais imagens são

replicadas constantemente pelas instituições, para construir e consolidar uma

identidade tal qual idealizada nas leituras sobre vestígios históricos do gaúcho.

Tendo em vista as diferentes tipologias de imagens adotadas pelas

instituições gaúchas, o estudo leva em conta os trabalhos de Alberto Manguel,

Martine Joly, Peter Burke e, principalmente, Erwin Panofsky quanto à análise

iconográfica e iconológica das imagens dos pintores. Quanto às imagens elaboradas

pelo movimento gaúcho, embora queiram representar um tempo específico, são

permeadas de memórias e tempos distintos. A construção da imagem idealizada

perpassou dois séculos e, nessa constante construção e reconstrução, foi

preenchida por muitos “agoras” de diferentes tempos. E que se reconfiguram por

meio dos novos olhares e memórias.

Quanto à indumentária instituída pelo movimento como item obrigatório para

aqueles que seguem as normas da cultura considerada como gaúcha, é entendida

como elemento central, capaz de revestir o sujeito de gaúcho. A indumentária é tida

como um meio que proporciona ao sujeito experimentar a imagem idealizada, ao

estabelecer relações entre o sujeito espectador e a imagem. O mesmo sujeito que

se “reveste” de gaúcho consegue imaginar como será observado por outros

espectadores, já que se sente o próprio gaúcho, por estar vestido como tal. O

sujeito, literalmente, experimenta da imagem.

8 PESAVENTO, Sandra J. Representações. Revista Brasileira de História. São Paulo, ANPUH/

Contexto, v. 15, nº 29, 1995. 9 BURKE, Peter. A fabricação do Rei. A construção da imagem pública de Luís XIV. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 1994.

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21

Nesse sentido, o vestuário é analisado sob a ótica de alguns pensadores,

como Diana Crane, Daniel Roche e Roland Barthes, que entendem a vestimenta

como instrumento de representação social e cultural e, enquanto indumentária, um

importante veículo de significação. Por fim, a pesquisa identifica e analisa o quanto

a indumentária gaúcha institucionalizada a partir de 1947 e, principalmente, em 1961

estava impregnada pela moda.

Capítulos

O primeiro capítulo apresenta a gênese do gaúcho, a partir dos relatos do

viajante português José de Saldanha em 1787, que fez o reconhecimento e

demarcações da costa no Sul. Seus documentos trazem o primeiro registro do termo

gaúcho e sua definição. Descrito em nota de rodapé do diário de viagem, o autor

apresenta um conceito a partir de um contexto histórico de dominação europeia,

pouco aceito posteriormente.

Dessa forma, o texto se dedica às transformações históricas sofridas pelo

gaúcho no decorrer do século XIX, quando se verificam deslocamentos na sua

representação, à medida que outros viajantes percorrem o mesmo espaço de

Saldanha e descrevem as suas alterações. Os relatos são analisados a partir do

contexto histórico do Sul, envolto em instabilidade política e social que, instaurando

uma nova dinâmica social e cultural no espaço, impulsionou a literatura e outras

ações na busca por uma identidade, fazendo com que surgissem instituições

dedicadas ao tema.

O segundo capítulo expõe o início do movimento gaúcho em 1947, quando da

organização em instituições intituladas CTGs, bem como a seleção das práticas que

fariam parte dessa rede identitária. Verifica-se a relação do chamado Movimento

Tradicionalista Gaúcho que estava nascendo com o movimento folclórico que estava

sendo impulsionado, já que juntos contribuíram para a eleição de elementos tidos

como folclóricos e outros “tradicionais”. Em meio a essa organização política do

movimento, o capítulo apresenta a forte relação e preocupação em selecionar o

vestuário ideal.

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22

O terceiro capítulo centra-se na institucionalização da indumentária gaúcha

selecionada, vestuário ideal aprovado e recomendado pelo movimento gaúcho a

partir de 1961, proposto por Antonio Augusto Fagundes. Tema central desta

pesquisa. Dessa forma, são identificadas as práticas vestimentares anteriores à

institucionalização do traje gaúcho por parte dos adeptos do movimento

tradicionalista, bem como as publicações, os relatos de viagem e as aquarelas

platinas que circularam pelo Sul do Brasil, que permearam o imaginário dos

tradicionalistas e possivelmente foram fontes ou influenciaram Antonio Augusto

Fagundes.

Por meio do vestuário o gaúcho é conhecido e reconhecido. Aquarelas,

fotografias, relatos e artefatos foram cuidadosamente selecionados pelo movimento,

suas imagens foram apreendidas e cristalizadas nesse tempo, representando

passados gloriosos. Dessa forma, discute-se aqui a representação das imagens, e

os referenciais que reverberam na indumentária institucionalizada, estabelecendo

um diálogo.

No quarto e último capítulo a pesquisa traz à tona a indumentária da mulher

gaúcha, tendo em vista que são poucos os registros sobre o tema. Cabe, pois, dizer

que para o movimento gaúcho a mulher não se configura como personagem

principal. Aparece como coadjuvante em diversos momentos. Dessa forma, o

capítulo analisa, principalmente, a origem dos referenciais presentes na composição

da vestimenta da mulher na primeira década do movimento gaúcho, bem como a

influência da moda no conjunto do traje feminino selecionado.

O vestuário feminino foi instituído em 1989, quando definidas e aprovadas as

primeiras normativas do Movimento Tradicionalista Gaúcho, sendo no mesmo ano

ratificadas por lei estadual, resultado de uma expansão desenfreada do movimento,

com iniciativas de brasileiros no Brasil e no exterior, demonstrada principalmente na

criação de leis voltadas ao vestuário gaúcho em outros estados do Brasil. Dessa

forma, o último texto apresenta a expansão do movimento gaúcho, sua organização

e os reflexos da sua atuação diante do Estado sobre a utilização da indumentária

gaúcha em eventos oficiais dos estados brasileiros, como métodos de manutenção e

permanência da cultura, reforçando a dimensão política da iniciativa.

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CAPÍTULO I – DO GAÚCHO HISTÓRICO ÀS PRIMEIRAS INSTITUIÇÕES:

IDENTIDADE, MEMÓRIA E REPRESENTAÇÃO

1.1 TROPEANDO E POUSANDO: TEORIAS QUE ASSENTAM

Gauches, palavra Hespanhola usada neste paiz para expressar aos Vagabundos ou ladroens do Campo [...]. (José de Saldanha, 1787) Tradicionalismo é um movimento cívico-cultural. É a tradição em marcha, resgatando valores [...] que trouxeram o Rio Grande e o gaúcho do passado para o presente, projetando-os no futuro. (Antonio Augusto Fagundes, 1994)10 [...] o maior movimento popular de cultura em todo o mundo ocidental [...]. (Luiz Carlos Barbosa Lessa, 1979)11 Assim sendo, toda a vez que vestimos as sagradas vestes da tradição, nos transformamos em soldados, à causa maior. (Rubens Luiz Sartori, 1991)12

A epígrafe apresenta um conjunto de citações e expõe o percurso dos temas

que serão aqui abordados. Questões que permeiam esta pesquisa e que este

primeiro capítulo se propõe a discutir, a fim contextualizar o objeto para, em seguida,

entrar no tema central da tese: a indumentária institucionalizada pelo Movimento

Tradicionalista Gaúcho.

Ao exame das citações percebe-se que, inicialmente, o gaúcho não era

detentor de bons atributos, como conceitua José de Saldanha. Contudo, quase dois

séculos depois, o mesmo sujeito torna-se referência identitária para o maior

movimento popular de cultura do mundo ocidental. Porém, dever-se-ia dizer que, se

é o maior, como expõe Barbosa Lessa, não há certezas, no entanto, é “reconhecido

pela ONU como um dos maiores movimentos socioculturais do mundo”13. Desse

10

FAGUNDES, Antonio Augusto. Curso de Tradicionalismo Gaúcho. Porto Alegre: Martin Livreiro, 1994, p. 38. 11

LESSA, Luiz Carlos Barbosa. Introdução. In: Idem. O sentido e o valor do Tradicionalismo. Porto Alegre: S.A. Moinhos Rio Grandenses, 1979, p.03. 12

Ata de abertura do 3º Congresso Brasileiro da Tradição Gaúcha, realizado em 15 nov. 1991, em Balneário Camboriú. Acervo do Movimento Tradicionalista Gaúcho - RS. Rubens Luiz Sartori era na ocasião Presidente do Movimento Tradicionalista Gaúcho do Estado do Paraná. 13

FIGUERA, Francisco Carlos. Contribuição para o processo de aperfeiçoamento da informação para a decisão e avaliação do desempenho patrimonial, econômico e financeiro dos Centros de Tradições Gaúchas do Estado de São Paulo. Dissertação (Mestrado em Ciências Contábeis e Atuariais), PUC-SP, São Paulo, 2005, p. 13.

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modo, parece acertado revelar as circunstâncias que levaram o gaúcho,

historicamente conhecido como vagabundo, a se transformar em modelo de uma

cultura, buscando compreender as palavras de Antonio Augusto Fagundes quando

afirma que a tradição resgatou valores e trouxe o gaúcho do passado para o

presente. O ladrão do campo passa se consagrar como importante representação.

Como se deu essa transformação?

As primeiras representações sobre o gaúcho, contribuíram para a criação de

instituições dedicadas ao seu culto. Os relatos dos viajantes dos séculos XVIII e XIX

e a literatura o transformou em personagem repleto de valores, desta forma busca-

se subsídios para compreender o percurso até o surgimento do movimento, para

então se examinar o vestuário do gaúcho.

A última citação exibida na epígrafe se refere à indumentária

institucionalizada pelo movimento gaúcho e apresenta de forma sintetizada o objeto

desta tese. A partir dela é possível perceber quão instigante e plena de sentidos ela

se apresenta – retrata sobretudo a autoridade que tem o vestuário para aqueles que

seguem o movimento. Cabe notar que “tradição” é o termo principal da citação, a ela

são dedicadas vestimentas diferenciadas capazes de transformar quem as veste em

prol da sua defesa. No entanto, a que tradição o autor se refere? E que vestimentas

são essas que revestem sujeitos e os transformam em soldados?

O termo tradição gaúcha foi institucionalizado na segunda metade do século

XX, pelo já citado Movimento Tradicionalista Gaúcho, que, no Brasil, teve origem no

Rio Grande do Sul, objetivando eleger uma identidade com elementos que

representassem os habitantes daquele estado. Dessa forma, impulsionado pelo

contexto político do período, o pós-Estado Novo, em 1947 surgiu um evento

denominado Ronda Gaúcha, que deu origem no ano seguinte aos Centros de

Tradições Gaúchas, popularmente conhecidos como CTGs, tendo o gaúcho como

personagem representante. A esse respeito, Barbosa Lessa e Paixão Côrtes,

fundadores do movimento, registram ainda o termo “tradicionalismo”, que seria

utilizado com frequência e se tornaria um conceito quase que exclusivo do

movimento gaúcho. Segundo os autores, o “tradicionalismo é um movimento”, e

acrescentam: “Sua dinâmica realiza-se por intermédio dos Centros de Tradições

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Gaúchas, agremiações de cunho popular que têm por fim estudar, divulgar e fazer

com que o povo viva as tradições rio-grandenses.”14

Sobre a fundação dessas instituições dedicadas a contribuir para a criação de

uma identidade cultural regional, registros dão conta de que as primeiras datam do

século XIX, porém o ápice do movimento de busca por uma identidade se deu com a

fundação dos CTGs, a partir de 1948. Nessa mesma perspectiva, Pesavento afirma

que o século XX ficou marcado pela forte cultura regional, consolidada como

homogênea, ou seja, considerando que todos os habitantes do Rio Grande do Sul

são iguais, todos seriam herdeiros de tradições gloriosas e corresponderiam à figura

idealizada do gaúcho.15

O movimento se propõe a selecionar elementos do passado histórico da

região para compor-se, sendo responsável por realizar o “processo de identificação,

seleção, montagem e composição de elementos que formam o padrão identitário de

referência”16. Nesse processo de composição, foram resgatados vestígios do

passado histórico do gaúcho. Ou seja, trata-se da identidade cultural, tendo como

referência um sujeito que fez parte da história em um determinado espaço e tempo.

A esse propósito, Stuart Hall cita que “as identidades culturais provêm de alguma

parte, têm histórias, refletem experiências históricas em comum”17.

Tais referências do passado histórico do gaúcho munem a identidade de

sentidos. A esse respeito, Stuart Hall, Sandra Jatahy Pesavento e Benetict Anderson

compartilham da mesma teoria no que refere à identidade, ou seja, “constrói-se uma

comunidade simbólica de sentido que cria a sensação de pertencimento”18. Essa

comunidade é tida como uma nação, não apenas política, mas algo que produz

sentidos, “uma comunidade simbólica”19, que tem poder de gerar um sentimento de

identidade e lealdade. Uma “comunidade imaginada”20 atua por meio dos CTGs e

faz sentido para a alma. De acordo com Sandra Jatahy Pesavento, “a identidade é

14

LESSA, Barbosa; CÔRTES, Paixão. Danças e Andanças da Tradição Gaúcha. Porto Alegre: Garatuja, 1975, p. 98. 15

PESAVENTO, Sandra J. Gaúcho: mito e história. Letras de Hoje. Porto Alegre, v. 24, nº 3, 1989, p. 18. 16

Idem. A cor da alma: ambivalências e ambiguidades da identidade nacional. Ensaios FEE. Porto Alegre, v. 20, n.1, p. 123-133, 1999, p. 123. 17

HALL, Stuart. Identidade Cultural e Diáspora. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, n. 24, p. 68-75, 1996, p. 69. 18

PESAVENTO, op. cit., 1999, p. 123. 19

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006, p. 49. 20

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 10-34.

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26

uma construção datada, e ela surge a partir do momento em que um grupo afirma

que a nação existe”21.

Dessa forma, as instituições gaúchas denominadas CTGs, também

conhecidas como entidades singulares do movimento gaúcho, são por esta pesquisa

entendidas como “comunidade imaginada” responsável pelo processo de construção

e preservação da identidade, garantindo a permanência por meio de práticas. Locais

onde se vê o presente ligado ao passado, criando efeitos de realidade. Na formação

desse imaginário, as danças, a indumentária, a poesia, os monumentos, as

cerimônias, os festivais, entre outros, são incluídos e conferem permanente

legitimidade à celebração da imagem do gaúcho histórico que permeia a

comunidade imaginada na atualidade. Esse esforço é dedicado a garantir a

identidade do gaúcho a todos aqueles que desejam ser identificados como tal.

Esse amplo sistema com elementos de representação, variedades de

significantes organizados pela comunidade, constrói sentidos, com os quais seus

seguidores podem se identificar através da memória, que conecta o presente com o

passado.22 Ou seja, “tem suas histórias - e as histórias, por sua vez, têm seus

efeitos reais, materiais e simbólicos”23. Essas comunidades imaginadas instituíram

um modo de vida por meio de práticas com referências do passado, formando uma

rede de significados que os indivíduos e grupos usam para dar sentido ao

cotidiano.24

A preservação dessa memória, conforme Le Goff, é entendida “como

propriedade de conservar certas informações”25, importante para manter a conexão

estabelecida pela comunidade entre passado e presente, pois, ainda de acordo com

o autor, a memória é essencial para a identidade, individual ou coletiva, já que

procura recuperar o passado para servir ao presente e ao futuro. A esse propósito,

conforme exposto na epígrafe, Fagundes afirma que a tradição resgata valores que

“trouxeram o Rio Grande e o gaúcho do passado para o presente, projetando-os no

futuro”. Porém, cabe ainda ressaltar que essa memória gaúcha foi selecionada e

exilada na história idealizada pela comunidade, ou seja, trata-se de uma memória

21

PESAVENTO, Sandra Jatahy. A cor da alma: ambivalências e ambiguidades da identidade nacional. Ensaios FEE. Porto Alegre, v. 20, n. 1, p. 123-133, 1999, p. 123. 22

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006, p. 51. 23

Idem. Identidade Cultural e Diáspora. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, n. 24, p. 68-75, 1996, p. 70. 24

Idem. Raça, cultura e comunicações: olhando para trás e para frente dos Estudos Culturais. Projeto História. São Paulo, v. 31, 2005, p. 1. 25

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003, p. 419.

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27

historicizada26, em razão da necessidade de conservar o que foi selecionado pela

comunidade como elementos da tradição.

Considera-se como norteador de todo o movimento gaúcho pós-1947 a

tradição, compreendida pela comunidade como o caminho inverso à modernidade,

uma vez que o período em questão (1947) era de inovações nos diferentes setores

da sociedade, com o fim do Estado Novo e da Segunda Grande Guerra. Nesse

sentido, esta investigação pretende trabalhar a tradição à luz das teorias dos

historiadores Jörn Rüsen e Javier Fernández Sebastián, em que tradição e

inovação, ou tradição e modernidade, relacionam-se de maneira contrastante, sendo

que, em razão da não aceitação da segunda, busca-se a primeira, que Sebastián

denomina de “tradições eletivas”. Ainda segundo o autor, por meio delas as

comunidades se autoconstituem, dotando-se de diferentes passados, com seleção

de personagens e acontecimentos históricos, fazendo relação com a identidade

selecionada, de modo que passam a se reconhecer a partir deles, com vistas a

legitimar seus projetos futuros.27

O conceito de tradição entendido pelo movimento gaúcho à época vem ao

encontro do conceito de “tradição eletiva” proposto por Fernández Sebastián. Em

seu livro “Manual do Tradicionalismo”, Glaucus Saraiva, historiador, professor

universitário e importante líder do movimento tradicionalista gaúcho do período, faz

uma analogia, tratando os elementos selecionados como sementes escolhidas. Cita

o autor:

Tradição, a nosso ver, é o todo que reúne em seu bojo a história política, cultural, social e demais ciências e artes nativas, que nos caracterizam e definem como região e povo. Não é o passado, fixação e psicose dos saudosistas. É o presente, como fruto sazonado de sementes escolhidas. É o futuro, como árvore frondosa que seguirá dando frutos e sombra amiga às gerações do porvir.28

Do mesmo modo, Jörn Rüsen, historiador alemão, refere-se à tradição como

um exercício da consciência histórica, de modo a gerar sentido para a vida prática,

26

SEIXAS, Jacy Alves. Percursos de memórias em terras de História: problemáticas atuais. In: BRESCIANI, Maria Stella; NAXARA, Márcia (Org.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. 2ª ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2004, p. 41. 27

SEBASTIÁN, Javier Fernández. Tradiciones electivas. Cambio, continuidade y ruptura em historia intelectual. Almanack. São Paulo, n. 7, p. 5-26, 2014. 28

SARAIVA, Glaucus. Manual do Tradicionalismo: Orientação geral para tradicionalistas e Centros de Tradições Gaúchas. Porto Alegre: Livraria Sulina, 1968, p. 14.

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28

uma forma de permanência em meio às mudanças provocadas pelo tempo,

retornando ao passado a fim de garantir uma continuidade fundamentada, sendo a

identidade moldada pelo passado.29 Ou seja, instrumentaliza-se o passado a seu

favor, objetivando a continuidade de elementos selecionados desse passado, que

fazem sentido para a comunidade na sociedade contemporânea.

Por meio dessas abordagens teóricas, o texto trilhará a origem do gaúcho,

tecendo reflexões acerca das transformações conceituais, buscando compreender

tais mudanças e os principais fatos que antecederam a criação do movimento

gaúcho em 1947. Procura-se fazer alguns apontamentos acerca dos motivos que

fizeram com que a representação do gaúcho, instituída pela “comunidade

imaginada”, fosse prioridade e, dentro desse contexto, a vestimenta do gaúcho se

configurasse como elemento indispensável, a ponto de garantir legitimidade ao

representante.

1.2 DO GAÚCHO ÀS PRIMEIRAS INSTITUIÇÕES: PRODUZINDO IDENTIDADES

As constantes disputas entre Portugal e Espanha, a partir do século XVI,

marcaram o início da história do Uruguai, da Argentina e do Brasil. Seja pela

destacada posição geográfica, pela demarcação de fronteiras, possibilidade de

exploração indígena ou, mais tarde, pela situação econômica, o Sul foi cenário de

intensas lutas. Entretanto, a disputa por terras foi a mais longa. A cada tratado30 os

territórios ganhavam novas configurações. Do século XVI ao século XIX, os limites

territoriais foram por vezes deslocados.

Entre os conflitos por terras, durante a colonização e exploração pelos

europeus, as ordens religiosas acompanhavam as expedições e se estabeleciam no

novo espaço, com o objetivo de reunir e organizar aqueles que aqui viviam, a fim de

formar uma nova comunidade cristã, ou seja, catequizá-los na fé católica, segundo

ordens espanholas ou seguindo as portuguesas. A partir de 1610 foram fundadas

mais de 30 comunidades, chamadas de reduções. A iniciativa cristã chegou a reunir

em comunidades organizadas mais de 40 mil índios. Com constituições próprias,

29

RUSEN, Jorn. Tradition: a principle of historical sense-generation and its logic and effect in historical culture. History and Theory. Middletown, Theme Issue 51, dez. 2012. 30

Tratado de Tordesilhas - 1494, Tratado de Madrid - 1750, Tratado de El Pardo - 1761, Tratado de Santo Ildefonso - 1777, Tratado de Badajós - 1801. Ver mais em: PESAVENTO, Sandra J. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1984.

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29

autoridades, chefes militares, igreja, escolas, agricultura e pecuária, eles se

organizavam como cidades. Os nativos viam nas reduções uma possibilidade de

proteção, já que os caçadores, conhecidos como bandeirantes, para aprisionar os

índios atacavam as reduções, disputando a mão de obra aborígine.31

As comunidades indígenas eram orientadas e preparadas pelos padres

católicos, e travavam grandes batalhas com os invasores. Algumas vezes venciam,

mas outras eram vencidas, e por vezes abandonavam a comunidade. Nesse

abandono, deixavam para trás muitos cavalos e gados que criavam nas reduções.

Em meio a terras pouco colonizadas, os rebanhos reproduziam-se, formando

imensas reservas de gado livre em terras que ora eram da Espanha, ora de

Portugal, ora consideradas terras de ninguém. Dentro de uma sequência de fatos

que favoreceram tal economia e contexto, “estava lançado o fundamento econômico

básico de apropriação das terras do Sul, que seria a caça do gado xucro”32.

O gado se multiplicava e era tratado como uma caça maior e menos arisca.

Os rebanhos expandiam-se enormemente, chegando a constituir um manancial

aparentemente inesgotável nas Vacarias del Mar33, do qual tanto índios como

europeus procuraram se valer, objetivando o comércio. A existência de um rebanho

de ninguém numa terra de ninguém atraiu também ingleses, que estabeleceram na

área um entreposto ligado à South Sea Company34 para lucrar com o negócio da

courama. Logo se estabeleceria uma intensa atividade de caça a esse gado xucro,

com a finalidade de extrair o couro, cuja comercialização movimentou o extremo sul.

Os habitantes do Sul e aqueles que lá estavam para negociar dispunham de cavalos

e gados em abundância em uma terra vulnerável. Essa situação despertou o

interesse pela região para exploração, surgindo nesse embate indivíduos vindos de

toda parte.35

As intervenções europeias, que iniciaram no século XVI, a partir de

expedições litorâneas de exploração objetivando demarcar fronteiras, somadas a

uma intensa movimentação da pecuária, atraíram e intensificaram a chegada de

31

Ver mais em: COSTA, Elmar Bones da; FONSECA, Ricardo; SCHMITT, Ricardo. História Ilustrada do Rio Grande do Sul. Porto alegre: RBS Publicações, 2004. 32

PESAVENTO, Sandra J. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1984, p. 8-9. 33

Vacaria vem do castelhano baquería, quer significa grandes extensões de campos com significativa quantidade de gado vacum solto e livre. 34

Companhia do Mar do Sul ou Companhia dos Mares do Sul (tradução nossa). 35

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 414-415.

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30

outros europeus, de variadas nacionalidades. Entre os diferentes objetivos que

tinham em relação ao novo espaço, alguns faziam o reconhecimento do território,

outros estudavam a região e anotavam cada área visitada, resultando nos primeiros

registros oficiais.

São esses os registros que serão utilizados nesta pesquisa para analisar a

presença do gaúcho nesse espaço. Embora apresentem considerações

tendenciosas daqueles que aqui habitavam, essas fontes são ricas em detalhes no

que se refere à definição de conceitos e aos costumes e hábitos de vestimenta.

Elementos que foram utilizados como base para a elaboração das práticas do

movimento gaúcho, sendo os conceitos tratados neste capítulo e as vestimentas e

os costumes, no capítulo seguinte.

Há uma variedade de narrativas sobre o extremo Sul do Brasil dos séculos

XVIII e XIX, revelando diferentes visões de viajantes ansiosos pelo novo. Sem a

pretensão de apreender na sua totalidade a figura do gaúcho a partir dos registros

dos viajantes, a pesquisa procura identificar resquícios desse personagem, com o

intuito de compreender a imagem que se tem no presente, já que a sua

representação atual, construída ou recuperada, traz elementos que convidam para

uma imersão na sua história. Nesse sentido, foram selecionados os viajantes que

transitaram pela região e que em seus relatos citaram a presença do gaúcho.

Cada relato traz especificidades de contexto e de métodos. Quase sempre

acompanham imagens, sejam pictóricas ou textuais. Textos e imagens se articulam.

Tentativas de se fazer entender, de retratar com exatidão talvez não o real, mas o

que se gostaria de passar como real. Relatos de retratos que contribuíram para a

produção historiográfica brasileira. Concepções europeizadas de um novo espaço,

reflexo de uma trajetória de conquistas expansionistas.

Observou-se que a origem e o objetivo das viagens refletiam formas

diferentes de escrita, e foram classificadas nesta pesquisa como científicas ou

sentimentais. Na viagem científica, ou com fins científicos, tal qual cita Flora

Süssekind, os viajantes iniciam suas expedições como autoridades científicas, em

sua maioria já formados, com sólido repertório, de modo que a experiência vai

apenas testar e ampliar seus conhecimentos frente ao novo. Esses viajantes

procuram centrar sua narrativa num plural impessoal, com base nos pressupostos

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31

da história natural, de modo a não excluir o homem.36 Conforme Mary Louise Pratt, e

segundo a autora, a narrativa científica é objetiva e prioriza a informação, na medida

em que se liga a metas e sistemas de conhecimento institucionalizados externos ao

texto.37 Mas, ainda assim, uma narrativa escrita sob uma visão europeia. Um olhar

europeu sobre o não europeu.

No entanto, os viajantes em análise, em sua maioria, seguem a linha da

narrativa sentimental. Embora tenham objetivos científicos, é possível classificar os

textos como escrita sentimental em razão da forma como descrevem o visível.

Tomando como referência a proposta de Pratt, “o relato sentimental se baseia

explicitamente naquilo que está sendo expresso na experiência sensorial, juízo,

agência ou desejos dos sujeitos humanos”38, sendo o pronome “eu” o elemento

presente na escrita, ou seja, o viajante adentra o texto.

O primeiro registro em que aparece o termo “gaúcho” encontra-se no Diário

Resumido de José de Saldanha.39 Embora seus escritos tivessem como objetivo a

demarcação do território entre Portugal e Espanha, Saldanha descrevia a

paisagem.40 Os escritos principais do seu diário se limitam a descrever a paisagem

de forma objetiva, porém as notas de rodapé trazem uma riqueza de detalhes sobre

os usos e costumes, por vezes seguindo a formatação de glossário e outras vezes,

uma descrição alongada de impressões curiosas para o autor. Com isso, nota-se a

preocupação do viajante em seguir seu objetivo, embora o que estivesse ao seu

redor em termos de cultura fosse considerado por ele também importante.

36

SÜSSEKIND, F. O Brasil não é longe daqui - O narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 110-111. 37

PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: EDUSC, 1999, p. 141. 38

Ibidem, p. 140-141. 39

José de Saldanha nasceu em Lisboa em 1758. Bacharel em Filosofia pela Universidade de Coimbra, formado em Matemática, Geógrafo e Astrônomo. Recém-formado, veio para o Brasil, diretamente para o Rio Grande do Sul, ocupou o posto de tenente-coronel de engenheiros. Foi um dos oficiais encarregados, em 1784, da demarcação de limites meridionais entre os territórios de Portugal e da Espanha, para a execução do tratado de 1777. Empregado nas comissões demarcadoras como geógrafo e astrônomo, atuou de 1786 a 1788, nas duas primeiras Partidas Demarcadoras. José de Saldanha faleceu em Porto Alegre, como Major do Real Corpo de Engenheiros, a 28 de maio de 1808. 40

SPALDING. Walter. Dicionário do “Diário Resumido e Histórico” de José de Saldanha. Revista de História. São Paulo, v. 38, nº 77, 1969.

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32

Ao relatar o dia primeiro de janeiro de 1787, Saldanha registra que em seu

caminho encontrou “destroçados ranchinhos e vestígios de coureadores e Gauches

do Campo”, e explica em nota de rodapé:

Gauches, palavra Hespanhola uzada neste Paiz para expressar aos Vagabundos ou ladroens do Campo, quaes Vaqueiros, costumados a matar os Touros chimarroens a sacar-lhe os Couros, e a levalos occultam.te as Povoaçoens, para a sua venda ou troca por outros generos.41

Esse relato é a primeira prova documental em que aparece o termo “gaúcho”

no Brasil42, registrando em nota explicativa quem é o gaúcho, o que demonstra que

“o papel do observador não é apenas coletar o visível, mas o de interpretá-lo em

termos do invisível”43. Nesse caso, José de Saldanha situa o leitor acerca do

conceito que se tem de “gaúcho” no país.

Naquele texto Saldanha relata que um determinado local era “intitulado pelos

gauches, ou Vagabundos do Campo, de Arroyo das Pedras”44. A escrita denota o

conhecimento do gaúcho frente ao espaço em que vivia, reforçando a tese de que

ele naturalmente era o sujeito que conhecia aquele lugar. No entanto, no que se

refere ao autor do relato, este faz questão de reforçar o seu conceito de vagabundos

do campo. Seriam os povos “subjugados” descritos por Mary Louise Pratt, que são

definidos a partir da chamada “zona de contato”,

[...] espaço de encontros coloniais, no qual as pessoas geográfica e historicamente separadas entram em contato umas com as outras e estabelecem relações contínuas, geralmente associadas a circunstâncias de coerção, desigualdade radical e obstinada.45

Nesses relatos há indícios ainda de uma relação entre Saldanha e os

chamados “vagabundos do campo”, ou gaúchos, quando cita “Jozé Minuano”. Nesse

41

SALDANHA, José de. Diário resumido. Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, v. 51, 1938, p. 181. 42

Algumas obras dizem haver uma comunicação entre o comandante de Maldonado, no Uruguai, Don Pablo Carbonell e Juan José Vértiz, na Argentina, em 1771, dessa forma considera-se o primeiro registro oficial em que aparece a palavra gaúcho e a presença deste na região platina. Ver: ASSUNÇÃO, Fernando O. História del gaúcho - El Gaucho: Ser y Quehacer. Buenos Aires: Claridad, 2007, p. 220. 43

PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: EDUSC, 1999, p. 113. 44

SALDANHA, op. cit., p. 205. 45

PRATT, op. cit., p. 30-31.

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33

caso, em nota explicativa no rodapé, o autor faz questão de esclarecer que “José

Minuano é um antigo Vaqueano, ou Vagabundo do Campo”46. Ou seja, o viajante o

conhece, há uma relação próxima, mas justifica que esse seu conhecido é um

“antigo” vagabundo do campo. Esclarecimentos desse tipo Mary Louise Pratt chama

de “estratégias de afirmação de inocência”, muito utilizadas nos relatos dos

viajantes, recurso considerado pela autora como “anticonquista”47. É possível

visualizar tais estratégias ainda nos relatos de Saint-Hilaire.

Outro viajante foi Augustin François César Prouvençal de Saint-Hilaire,

conhecido como Auguste de Saint-Hilaire, cientista francês, especializado em

Botânica. Chegou ao Brasil em 1816, na qualidade de membro da Embaixada da

França para uma importante pesquisa científica. Viajou pelo interior, percorrendo

especialmente o Sudeste e o Sul do país, classificando e organizando uma vasta

coleção de plantas, animais e minerais. Foi referência para muito pesquisadores, e

suas coletas fazem parte de importantes coleções de museus e arquivos europeus.

Embora sua viagem tivesse propósito científico, e os relatos incluíssem

minuciosas informações dessa natureza, seus escritos podem também ser

classificados, segundo Flora Süssekind e Mary Louise Pratt, como sentimentais, já

que o pronome J’ ou Je permeia a descrição de sua experiência pessoal diária com

o meio.48 “O espaço/tempo textual correspondente ao espaço/tempo da viagem é

preenchido (ou constituído) por atitude humana”49, ou seja, a interação com as

pessoas que encontra não é desconsiderada. Não que a natureza seja relatada

apenas à medida que atua no meio social, mas essa interação se apresenta como

importante componente nos relatos.

Suas expedições incluíram incursões pelo Rio Grande do Sul e pelo Uruguai,

resultando em diversas publicações, em diferentes idiomas. Para esta tese foi

selecionada a publicação em francês de 1887, por apresentar termos ainda não

traduzidos por outras obras posteriores e importantes para esta pesquisa, e por

incluir os registros realizados no Uruguai. Saint-Hilaire descreve os gaúchos com a

mesma conotação vista nos escritos do português José de Saldanha, porém

esclarece que é um conceito estipulado pelos portugueses: “Estes homens sem

46

SALDANHA, José de. Diário resumido. Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, v. 51, 1938, p. 187. 47

PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: EDUSC, 1999, p. 33. 48

J’ ou Je – pronome eu em francês (tradução nossa). 49

PRATT, op. cit., p. 138-139.

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34

religião e sem moral, a maioria índios ou mestiços, que os portugueses designavam

sobre o nome de Garruchos ou Gahuchos [...].”50 O viajante segue seus relatos

usando a terminologia Gauchos. Nesse ponto, vale recorrer novamente a Mary

Louise Pratt, que chama de expressões “auto-etnográficas” termos nos quais “os

europeus representam para si os (usualmente subjugados) outros”51.

Francês, Saint-Hilaire tinha o cuidado de descrever em seus relatos a

nacionalidade dos europeus e outros que estavam de passagem, ou que ali tinham

se fixado, porém se ateve principalmente aos povos autóctones. Embora fizesse

comparações com os costumes europeus, relatava suas experiências com pouca

preocupação em utilizar de estratégias de representação para assegurar a inocência

do europeu. No entanto, descrevia os habitats como algo a ser aperfeiçoado. Em

passagem por Rio Grande, em 27 de outubro de 1820, registrou:

Depois da personalidade bem conhecida dos gaúchos, é permitido acreditar que quando a independência foi proclamada eles aproveitavam os primeiros momentos de desordem para roubar animais nas estâncias portuguesas, e os portugueses nas estâncias espanholas.52

O viajante, ao se referir à independência53, descreve o comportamento do

gaúcho tal qual delineado pelo português José de Saldanha, porém denuncia

também a conduta dos portugueses diante dos espanhóis, quando diz que utilizam

dos mesmos artifícios dos gaúchos para roubar animais. Ou seja, Saint-Hilaire usa o

conceito de ladrão e o aplica aos próprios portugueses. Porém, uma situação pouco

anunciada, em razão da utópica autoridade mundial portuguesa no período. Nesse

caso, “Quem seriam os Bárbaros, quem seriam os civilizados?”54 Assim,

estereótipos de gaúcho criados pelos portugueses iam se desfazendo ao longo do

século XIX.

O terceiro relato de viagem analisado é o do militar francês Nicolau Dreys. Por

razões políticas, emigrou para o Brasil em 1817, e logo seguiu viagem para o Rio

50

SAINT-HILAIRE, Auguste de. Voyage a Rio-Grande do Sul (Brésil). Orléans: H. Herluison, Libraire-Éditeur, 1887, p. 160 (tradução nossa). 51

PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: EDUSC, 1999, p. 33. 52

SAINT-HILAIRE, op. cit., p. 82 (tradução nossa). 53

Independência aqui nominada não se trata do episódio ocorrido no Brasil em 22 de abril de 1822, diante de Portugal, mas dos constantes embates resultantes dos tratados entre Portugal e Espanha, frente ao Uruguai, Argentina e Extremo Sul do Brasil. 54

PRATT, op. cit., p. 86.

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35

Grande Sul, permanecendo por dez anos, onde se dedicou ao comércio. Nesse

período registrou observações sobre a região, divulgando em 1839 uma das poucas

publicações em língua portuguesa da época. Em seus relatos, Dreys descreve o

gaúcho com mais detalhamento que outros. O viajante menciona os “Hábitos

aventurosos do gaúcho”55, e segue afirmando que são nômades, característica que

tinha conotação desfavorável, mas ia ganhando novo sentido com o passar do

tempo: “Do homem da natureza ao gaúcho, [...] cujos membros são designados no

Sul por essa denominação, a qual, todavia, perdeu n‟essa aplicação alguma cousa

do significado desfavorável que lhes era primitivamente inerente.” 56

O autor segue explicando os gaúchos e os compara, por vezes, com outros

povos nômades, apontando entre as principais diferenças o fato de estes não serem

vistos com mulheres. Dreys diz ainda que os gaúchos pertencem a uma sociedade

originária do contato de brancos com índios, nascem sem ordem e sem destino e

gostam de uma vida fácil e de perfeita liberdade.57 Vivem às margens do Rio da

Prata, entre Montevidéu e todo o território banhado – Paraguai, Paraná e Uruguai –,

servindo de peões em algumas charqueadas. O viajante ainda descreve que,

embora não tenham moral social, respeitam “a propriedade de quem lhes faz

benefício ou de quem os emprega, ou neles deposita confiança”58.

Em razão de ter permanecido no Rio Grande do Sul por dez anos, é possível

perceber que Dreys demonstra maior conhecimento sobre o gaúcho, já que o

descreve em longos trechos de sua publicação, narrando suas características, seus

hábitos e costumes. Há indícios de que teve maior proximidade com os habitantes

locais, embora culturalmente se distanciassem. Com base em seus escritos se pode

perceber que o gaúcho estava aos poucos se integrando na sociedade, passando a

trabalhar nas estâncias. Por consequência, perdia paulatinamente a conotação

negativa.

Arsène Isabelle, naturalista francês que viajou pelo Rio Grande do Sul, pela

Argentina e pelo Uruguai entre 1830 e 1834, relata que “os habitantes do campo ou

gaúchos [...], em muitos aspectos, podem ser classificados entre os beduínos de

55

DREYS, Nicolao. Noticia Descriptiva da Provincia do Rio-Grande de S. Pedro do Sul. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e Comp., 1839, p. 148. 56

Ibidem, p. 191. 57

Ibidem, p. 192. Sobre aspectos da genética dos gaúchos, ver tese doutoral de Andréa Rita Marrero. A pesquisadora reforça descrição de Nicolao Dreys. MARRERO, A. R. História genética dos gaúchos: dinâmica populacional do sul do Brasil. Tese (Doutorado em Genética e Biologia Molecular), Instituto de Biociências, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006. 58

DREYS, op. cit., p. 191-192.

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36

Argel, os sertanejos e mamelucos do Brasil e, mesmo, entre os zambos da

Colômbia”59. A “paixão classificatória” dos viajantes, como explica Flora Sussekind60,

acaba resultando em comparações e reafirmando o distanciamento cultural. Porém,

nesses mesmos relatos é possível verificar que o autor lhes atribui valores ao relatar

características específicas: “[...] os homens do campo, chamados gaúchos, são tão

audaciosos, intrépidos, infatigáveis a cavalo.”61 Ou seja, aos poucos, as

considerações acerca do gaúcho vão se transformando.

Em 1845, o comerciante belga Alexandre Baguet, em passagem pelo Sul do

Brasil, declarou que, diante do que os viajantes tinham relatado sobre aqueles que lá

habitavam, pensou que talvez nunca mais fosse rever seus amigos, pois haviam

descrito os campos do Rio Grande, erroneamente, como refúgio de bandidos dos

quais raramente se escapa. Entretanto, segundo o autor, “por ali se podia viajar com

certa segurança”62.

Nesse mesmo período, em 1850, Thomas Jéferson Page, oficial da marinha

norte-americana que dirigiu uma expedição enviada para explorar o Rio da Prata e

seus afluentes, descreveu o gaúcho como um habitante natural do Sul, experiente

com cavalos e com o laço, um homem livre e independente. Thomas Jerferson

registra que, em sua estada, estava gostando da independência selvagem da vida

gaúcha.63 Corrobora sua declaração Luís Filipe Maria Fernando Gastão, conhecido

como Conde d‟Eu64, que esteve no Rio Grande do Sul em 1865, por ocasião da

Guerra do Paraguai, onde deixou registrado em seu diário de viagem que os

gaúchos eram os habitantes comuns do Sul, da mesma forma como cita Page.

59

ISABELLE, Arsène. Viagem ao Rio da Prata e ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2006, p 111. 60

SÜSSEKIND, F. O Brasil não é longe daqui - O narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 112. 61

ISABELLE, op. cit., p. 84. 62

BAGUET, Alexandre. Viagem ao Rio Grande do Sul. Florianópolis/Santa Cruz do Sul: Paraula/ Edunisc, 1997, p. 23. 63

PAGE, Thomas Jefferson. La Plata, the Argentine Confederation and Paraguay. London: Trubiner & Co., 1859, p. 44-46. 64

Dom Luís Filipe Maria Fernando Gastão de Orléans e Saxe-coburgo-Gota, o Conde d‟Eu, tornou-se príncipe imperial consorte do Brasil por seu casamento com D. Isabel Cristina Leopoldina de Bragança. Em 1865 estava em viagem de núpcias quando, por ocasião da Guerra do Paraguai, tropas paraguaias invadiram a Argentina e, logo depois, a Província do Rio Grande do Sul. Após a partida do imperador para a região invadida, Conde d‟Eu, recém-chegado da Europa, também seguiu para o sul e, em sua viagem, fez anotações do seu dia a dia, que posteriormente seriam publicadas com o título Viagem Militar ao Rio Grande do Sul.

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37

As ocupações rio-grandenses por meio de fazendas se efetivaram durante

todo o século XIX, principalmente após a definição das fronteiras.65 Logo, muitos

gaúchos foram contratados, convertendo-se em peões ocasionais ou permanentes

das estâncias, por sua experiência com o campo.66 O gaúcho se transformava em

reserva de mão de obra, e o proprietário podia recrutar os homens de que

necessitasse.67 Dreys descreve que “a estância é servida ordinariamente por um

capataz, e por peões, debaixo da direção daquele; às vezes os peões são negros

escravos, outras vezes, e mais comumente, são índios ou gaúchos assalariados

[...]”68. Ou seja, os nômades, descritos inicialmente como gaúchos ladrões do

campo, adequaram-se à realidade imposta pelos europeus, da mesma forma que

haviam se adaptado à realidade anterior.

Com o passar do tempo, os relatos apresentaram alterações no significado do

termo gaúcho. Entre os diferentes motivos, é possível constatar que o próprio

contexto histórico proporcionou esse deslocamento. O choque cultural dos primeiros

viajantes portugueses que, ao chegarem a um espaço que tinham como seu,

depararam-se com povos já ali estabelecidos lhes despertou a necessidade de se

autorrepresentarem diante do contexto de subordinação69, refletindo na classificação

inferior do outro.

No entanto, houve outras condicionantes que contribuíram para que o gaúcho

gradativamente se transformasse no personagem-herói, representante de uma

identidade regional. Fatos para além dos relatos dos viajantes, que escreveram sob

a perspectiva de contextos históricos específicos de cada época e cultura. A

participação dos gaúchos em diferentes guerras e revoluções, a necessidade de

identidade após a independência do Brasil e a definição da fronteira trouxeram à

tona o personagem que melhor representava o Sul do Brasil. Nesse sentido,

principalmente durante o século XIX, a literatura iniciou a sua projeção no universo

da representação identitária.

65

LUCCAS, Luís Henrique Haas. Arquitetura das estâncias e fazendas do Rio Grande do Sul: distribuição interior e gênese. Arqtexto. Revista do Departamento de Arquitetura e do Propar. Porto Alegre, nº 3-4, 2003, p. 111. 66

DUTRA, Cláudia Pereira. A prenda no imaginário tradicionalista. Dissertação (Mestrado em História), Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2002, p. 26. 67

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 423. 68

DREYS, Nicolau. Notícia descritiva do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Nova Dimensão EDIPUCRS, 1990, p. 94. 69

PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: EDUSC, 1999, p. 30.

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38

Enquanto os viajantes dos séculos XVIII e XIX retratavam o que viam, a figura

de um gaúcho estereotipado era cuidadosamente construída, especialmente a partir

da segunda metade do século XIX, quando já havia participado de guerras e

revoluções e estava, aos poucos, integrando-se na “civilização” imposta pelos

europeus. Ou seja, ocorre um amplo processo de resgate da sua figura, agora como

representação identitária, sobretudo por meio da literatura, trazendo um gaúcho

idealizado como herói.

Com as fronteiras demarcadas, teve início um intenso movimento imigratório,

e novamente os colonizadores europeus, imbuídos de uma cultura letrada,

chegariam para compor um mosaico de culturas. Era necessário empoderar aqueles

que aqui estavam, criar uma identidade cultural que fosse percebida como nativa,

mas apreciada e valorizada pelo outro. Reunir um conjunto de características

culturais específicas da região, o regionalismo, e não ficar à margem da cultura do

colonizador. Nesse sentido, a construção identitária se valeu dos fatos históricos

para construir uma identidade.

O gaúcho deixa o campo da história para entrar na literatura, passando por

uma série de transformações intencionais propostas pelos literatos. Adquire

conotação de homem forte e virtuoso, possuidor de inúmeros conceitos e valores

simbólicos. Sobre essa relação entre História e Literatura, José de Barros

d‟Assunção diz que, embora a literatura não siga o rigor histórico, está diretamente

mergulhada na História, é dela que extrai boa parte de seus materiais para elaborar

suas narrativas.70 Essa narrativa apoiada no passado tem o intuito de legitimar a

origem, o destino e a configuração de uma realidade. Logo, essa representação de

gaúcho proposta pela literatura apresenta indícios históricos.

O romantismo brasileiro, gênero literário que unia o gosto pela natureza e

pela pátria, um projeto de independência cultural para o país, para além da cultura

portuguesa, buscando contribuir para a grandeza da nação, favoreceu o

fortalecimento dessa literatura romantizada e característica do Sul, apoiando a

elaboração de uma identidade por meio da representação. A literatura regional

iniciava o processo de mitificação e exaltação do gaúcho. Moacyr Flores, ao tratar

dessa questão, trabalha com o conceito de mito. Segundo autor: “O mito não é uma

mentira, nem uma falsidade, é a interpretação de uma realidade. Refere-se a uma

70

BARROS, José d‟Assunção. História e Literatura – novas relações para os novos tempos. Contemporâneos - Revista de Artes e Humanidades. Santo André, nº 6, maio-out. 2010.

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39

existência histórica, pois ninguém consegue falar ou escrever sobre uma coisa que

não existiu.”71 Ou seja, a representação do gaúcho parte de indícios históricos.

Dessa forma, o gaúcho se tornou o modelo histórico em torno do qual os sulinos

passariam a construir a sua identidade.

O desejo desses indivíduos de se sentirem diferentes dos demais, por sua

luta pela independência, fez com que a literatura se utilizasse das batalhas vencidas

para criar essa representação, pois a necessidade de compor uma identidade

inspirada em elementos do passado supostamente heroico surge quando o ego

necessita fortificar-se.72 É uma representação construída pela memória histórica, e

nesse processo, sobretudo na literatura, a representação do gaúcho constitui

elemento formador de identidade.

Uma das características dos textos literários, e posteriormente intensificada

pelo movimento, era a utilização de vocábulos e frases específicas do universo

gaúcho, uma espécie de glossário. Desse modo, essas obras se tornavam próprias

da identidade daquele espaço, incluindo palavras específicas do universo do

gaúcho, em razão da diversidade de dialetos e idiomas, entre eles o indígena,

espanhol, português, inglês, francês, entre outros. Era necessário fixar o idioma

português e trazer à tona termos já consolidados para o universo letrado. Destacam-

se as obras de Antonio Alvares Pereira Coruja, “Colleção de Vocabulos e frases

usados na Provincia de S. Pedro do Rio Grande do Sul no Brasil”, elaborada em

1852, e “Popularium sulriograndense e o dialecto nacional”, de Appolinario Porto

Alegre, em 1870. A primeira define o gaúcho como “índio do campo, sem domicílio

certo”73, tal como fizeram os viajantes que percorreram a região.

Em 1956 surgiria a primeira revista de caráter literário, O Guayba, que se

preocupava com a construção dessa literatura.74 Porém, havia a necessidade de

promover o universo cultural e literário – em um período marcado por guerras, era

preciso intensificar essa área. Assim, “a carência de livrarias e editoras” somada à

“presença de pessoas com instrução, pessoas que tinham domínio do código da

71

FLORES, Moacyr. Gaúcho: História e Mito. Porto Alegre: EST Edições, 2007, p. 7. 72

JUNG, Carl G. (Org.). O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964, p. 123. 73

CORUJA, Antonio Alvares Pereira. Colleção de Vocabulos e frases usados na Provincia de S. Pedro do Rio Grande do Sul no Brasil. Londres: Trubner Comp - Typographia de Thomas Harrild, 1856, p. 16. 74

SILVEIRA, Cássia Daiane Macedo. Dois pra lá, dois pra cá: o Parthenon Litterario e as trocas entre literatura e política na Porto Alegre do século XIX. Dissertação (Mestrado em História), UFRGS, Porto Alegre, 2008, p. 39.

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40

cultura letrada, incluindo docentes”75, resultaram na fundação da Sociedade

Parthenon Litterario em 1868, que tinha como propósito reunir literatos e contribuir

com publicações, formações, divulgação da cultura regional, entre outros.

Fundado por Appolinário Porto Alegre e José Antonio do Vale Caldre e Fião,

entre outros jovens letrados, o Parthenon Litterario se ocupava de pequenos

projetos, de jogos de influência e de lutas por legitimidade, tratava de uma série

diversificada de assuntos que iam muito além de seus limites.76 A sociedade

estimulava um pensar intelectualizado e utilizava dos registros dos viajantes e

vestígios do gaúcho para amparar a literatura, seja por meio de sua revista mensal

ou outras obras, discursos, cursos e teatro. Segundo Guilhermino Cesar, “a nova

corrente se deixou atrair, acima de tudo, pelo passado gaúcho, procurando reviver o

guasca largado, o homem livre dos primeiros tempos da conquista, os rebeldes de

1835”77. De acordo com os líderes do movimento gaúcho de 1947, essa foi uma

entidade decisiva para o regionalismo gauchesco.78

A partir de então, muitas obras literárias surgiram tendo o gaúcho como

personagem central. Em 1870, José de Alencar, que em suas obras abordava

retratos do país, em uma tentativa de fortalecer o nacionalismo, mesmo não estando

no Rio Grande do Sul, publicou o romance O gaúcho, que apresenta um guerreiro

que luta por justiça e tem como companheiro fiel um cavalo. Embora seja

“considerada uma obra menor na literatura de Alencar integrando a fase regionalista

do autor”79, foi referência para a figura do gaúcho que se consolidou a partir de

então como representação. Outra obra de destaque dessa época foi Os Farrapos,

de Luis Alves de Oliveira Belo, publicada em 1877, que assim descreve o gaúcho:

“[...] o herói revolucionário é bom, franco, honesto e corajoso, lutando contra o vilão

castelhano, covarde e mentiroso.”80 Além de outras obras de romancistas não

menos importantes.

75

SILVEIRA, Cássia Daiane Macedo. Dois pra lá, dois pra cá: o Parthenon Litterario e as trocas entre literatura e política na Porto Alegre do século XIX. Dissertação (Mestrado em História), UFRGS, Porto Alegre, 2008. 76

Ibidem, p. 27. 77

CESAR, Guilhermino. História da literatura do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1971, p. 173. 78

FAGUNDES, Antonio Augusto. Curso de tradicionalismo gaúcho. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1994, p. 15. 79

MELO, Eduardo Silveira Cabral de. A figura histórica e ficcional do gaúcho: O Gaúcho, de José de Alencar, e Perseguição e cerco a Juvêncio Gutierrez, de Tabajara Ruas. Dissertação (Mestrado em Letras), PUC-RS, Porto Alegre, 2008, p. 77. 80

FLORES, Moacyr. Gaúcho: História e Mito. Porto Alegre: EST Edições, 2007, p. 8.

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41

Nesse processo de retomada dos valores históricos do passado do gaúcho,

Simões Lopes Neto, considerado um dos maiores escritores regionalistas do Rio

Grande do Sul, publicou apenas quatro livros em sua vida, porém de grandes

proporções para a disseminação do chamado gaúcho. São eles: Cancioneiro

Guasca (1910), Contos Gauchescos (1912), Lendas do Sul (1913) e Casos do

Romualdo (1914), obras que despertaram a admiração dos críticos e foram por

vezes reeditadas.

Em 1916, já após a morte de Simões Lopes Neto, Olavo Bilac fez um

comentário sobre uma de suas obras em uma conferência, atestando o prestígio que

o escritor Lopes Neto havia alcançado, e em 1918 seu nome apareceria citado na

obra “Conto Brasileiro”, editada pela Biblioteca Nacional. Além de edições em jornais

e revistas, a Editora Globo reeditou, em 1926, Contos Gauchescos e Lendas do Sul,

fazendo com que o reconhecimento ao trabalho de Simões aumentasse81, e

disseminando esse personagem local por todo o Brasil.

Nas obras de Simões Lopes Neto é possível visualizar a imagem de um

gaúcho que procura demonstrar honestidade, solidariedade e fidelidade. Todos os

personagens compartilham a mesma nobreza de sentimentos e as mesmas

características, indicando uma identidade que os iguala entre si e, ao mesmo tempo,

distingue-os dos demais. No entanto, a introdução do “outro” é vista de modo

negativo. No caso, o personagem Bonifácio, um negro, abala a harmonia da

sociedade gaúcha. É preciso que o gaúcho arremesse suas boleadeiras para salvar

a sociedade. Novamente se constrói a imagem do gaúcho ordeiro, valente, enquanto

o negro é visto como desordeiro.82

Como se pode notar, as iniciativas de retomada da cultura autóctone,

incluindo a figura do gaúcho, intensificaram-se na segunda metade do século XIX,

sobretudo por meio da literatura. Historiadores, sociólogos, escritores e intelectuais

brasileiros procuravam, por meio da literatura, relacionar a cultura popular à

81

ANTUNES, Cláudia R. D. A poética do conto de Simões Lopes: o exemplo de O negro Bonifácio. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003, p. 185-186. 82

Sobre a presença do negro no Rio Grande do Sul ver: MAESTRI, Mário (Org.). O negro e o gaúcho: estâncias e fazendas no Rio Grande do Sul, Uruguai e Brasil. Passo Fundo: UPF Editora, 2008. No entanto, são poucas as produções sobre o negro no Rio Grande do Sul, principalmente em meio ao movimento gaúcho. Que bom seria se surgissem pesquisas sobre o tema, certamente seriam incursões excepcionais, já que é clara a ausência do negro no meio, e infelizmente não será tratado nesta pesquisa, pois, por não se tratar do objeto central desta investigação, o tema não receberia a atenção devida.

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nacionalidade, como foi o caso de Silvio Romero83. Porém, cabe dizer que esse

movimento não era exclusividade do Rio Grande do Sul, o país buscava uma

identidade própria, almejava definir um caráter nacional, da mesma forma que os

países do Prata.

O Uruguai e a Argentina viviam um movimento semelhante e, da mesma

forma, procuravam por meio da literatura, da pintura e de outras atividades como

teatro, dança e música colocar em movimento seus temas definidos como

folclóricos, conferindo mais vivacidade às iniciativas. Dessa forma, surgiram

instituições dedicadas à organização de tais fins, a primeira delas no Uruguai, em

1894, dando início às instituições dedicadas à preservação da identidade gaúcha

idealizada na capital, Montevidéu.

Elías Regules84, jovem militante, deu início ao movimento gaúcho naquele

país, fundando a primeira instituição voltada para a representação do gaúcho por

meio de práticas institucionalizadas, a Sociedad La Criolla, de Montevidéu, em 1894,

considerada a pioneira das instituições gaúchas. Sua criação se deu em razão da

preocupação da sociedade de Montevidéu em relação à chegada massiva de

imigrantes de diversos países europeus. Sobre os motivos que impulsionaram a

criação dessa primeira instituição gaúcha, Fernando Assunção, pesquisador do

tema, em um artigo lançado em 2004 e posteriormente republicado na obra “120

años Sociedad Criolla Dr. Elias Regules”, de 2014, regista:

Corria a última década do século passado. A influência do Velho Mundo se fazia sentir de forma imperativa sobre os costumes, a ponto de se aceitar sem análise tudo o que vinha com etiqueta europeia. O ambiente urbano vestia a última moda de Paris, acompanhavam os modismos, francês, comentavam sobre literatura, música, pintura e tudo o que se referia as manifestações de arte europeia. As coisas próprias da terra, as mais puras tradições nativas, as recordações dos homens do passado, se olhavam com indiferença e com desprezo, as sombras da influência estrangeira

83

SCHNEIDER, Alberto Luiz. Silvio Romero - Hermeneuta do Brasil. São Paulo: Annablume, 2005, p. 181. 84

Elías Regules nasceu em março de 1861 e viveu sua infância no campo, compartilhou da vida rural com gaúchos e, segundo Raúl Iturria, “aprendeu com eles a liberdade embriagadora do campo, o valor que o cavalo agrega ao cavaleiro e realizou todos os trabalhos rurais, próprios de um menino do campo, por isso se tornou um defensor do tradicionalismo gaúcho. Jovem foi morar em Montevidéu e, em 1879, ingressou na Universidad de la Republica, se formando em medicina em 1893, onde posteriormente foi secretário, professor, Vice Decano, Decano, chegando em 1922 a Reitor da instituição. Além de muitos projetos dedicados à população, que projetou Elias Régules, inclusive internacionalmente”. ITURRIA, Raúl. Elías Regules: de La Tapera a La Criolla. San Martin: Ediciones de La Plata, 2014.

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chegavam a obscurecer as próprias glórias do nosso passado heroico.85

O autor ainda acrescenta que os jovens da cidade não tinham uma autêntica

personalidade, aceitavam as maiores extravagâncias estrangeiras e renegavam com

ódio tudo o que fosse local, que ganhava ares de inferioridade e depreciação. Nesse

sentido, os circos criollos, uma espécie de teatro onde se encenavam temas

literários protagonizados pelo gaúcho, estavam em ascensão na Argentina e no

Uruguai. Reunindo simpatizantes, sob a coordenação de Elías Regules, iniciaram

uma campanha de reinvindicação pelas coisas da terra e, no dia 24 de maio de

1894, programaram uma festa campestre. A programação contou com um desfile a

cavalo que teve como ponto de partida o centro de Montevidéu, com destino a uma

chácara. Participaram do evento simpatizantes que, usando vestimentas específicas,

montaram em seus cavalos, a fim de representar o gaúcho.86

Figura 1 - Paseo Criollo, 24 de maio de 1894 - Montevidéu.87

85

ASSUNÇÃO, Fernando. Dr. Elías Regules: prócer de la civilidad oriental. In: SOCIEDAD LA CRIOLLA. 120 años Sociedad Criolla Dr. Elias Regules. Montevideo: Sociedad La Criolla, 2014, p. 5 (tradução nossa). 86

SOCIEDAD LA CRIOLLA, op. cit., p. 9. 87

Arquivo Sociedad La Criolla, Montevidéu, Uruguai.

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44

A imagem, além de representar homens vestidos de gaúcho, com palas,

botas e bombachas, reunião de pessoas com objetivos afins, apresenta a

preocupação desses sujeitos em deixar registrado esse momento. Ao pararem a

atividade para congelar a imagem por meio de uma fotografia, fica clara a intenção

de cristalizar uma memória, que reside nas aparências. Ocorre que essas imagens

pouco ou nada informam àqueles que nada sabem do contexto em que se origina tal

ato.88 Dessa forma, vê-se a preocupação em registrar o que foi o evento, bem como

a data, na própria imagem fotográfica. O olhar dos retratados somado à descrição

conversam com o receptor da imagem, conferindo informações mais vívidas sobre o

que foi o evento.

Durante a festa foi proposta a fundação da primeira instituição já citada, que

teria como “finalidade o culto dos costumes nacionais e tudo o que tivesse relação

com as origens da pátria. A ideia foi acolhida com aplausos, e todos foram

convidados para que no dia seguinte, 25 de maio, se reunissem no Circo Podestá”89,

a fim de oficializar tal fato. Os documentos ainda registram que o local foi escolhido

levando em conta que era nesse lugar que o gaúcho estava sendo mais aplaudido,

por conta dos constantes espetáculos com esse tema nos circos criollos, que

encenavam cenas do gaúcho.

Dessa forma, no dia 25 de maio de 1894, foi registrada a ata de fundação da

entidade proposta, ou seja, foi criada oficialmente a primeira instituição gaúcha.

Sobre a iniciativa, afirma Pablo Lacasagne que o gaúcho foi a “figura representativa

do campo que se transformou nos olhos da juventude do país, [...] impedindo que o

país se transformasse em uma campanha no estilo europeu, de acordo com os

projetos da classe dirigente do país”90.

No mesmo ano, o primeiro ato público, após o registro da instituição, consistiu

em um desfile equestre, no dia 2 de setembro de 1894, contando com a participação

de 250 pessoas91, entre cavaleiros e prendas92. No entanto, a iniciativa foi polêmica,

88

KOSSOY, Boris. Fotografia & História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2012, p. 164. 89

SOCIEDAD LA CRIOLLA. 120 años Sociedad Criolla Dr. Elias Regules. Montevideo: Sociedad La Criolla, 2014, p. 10. 90

LACASAGNE, Pablo. El gaucho en Uruguay y su contribución a la literatura. Revista Interamericana de Bibliotecología. Medellín, v. 32, nº 1, june 2009 (tradução nossa). 91

BARREIRO, Margarita Carámbula de. Elias Regules: 1861 - 1929. Montevideo: Hospital Maciel, 1988, p. 10 (tradução nossa). 92

Prenda: Jóia, relíquia, presente de valor. Em sentido figurado, moça gaúcha. Ver: NUNES, Zeno Cardoso; NUNES, Rui Cardoso. Dicionário de regionalismos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1993, p. 395.

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os jornais criticaram o desfile com ironia, e Elías Regules defendia o ato com

publicações. O jornal La Razón afirmava “que el gaúcho a muerto”, enquanto

Regules defendia “la presencia palpitante del gaúcho”, em texto intitulado

“Intoxicación Exótica”, referindo-se à cultura europeia que permeava a sociedade

uruguaia da época. Com o passar dos anos, a iniciativa foi sendo consolidada, e

outras instituições foram surgindo.

No Brasil, em 1898, foi fundado em Porto Alegre o Grêmio Gaúcho, entidade

voltada a semelhantes práticas com referências gaúchas. Por meio de festas,

desfiles de cavaleiros, dança, música, palestras e cursos, trazia à tona a figura do

gaúcho, já constituída pela literatura. Fundada por João Cezimbra Jacques, essa

agremiação foi o ponto de partida para as próximas instituições, sobretudo após

1947, sendo inclusive seu fundador considerado patrono do movimento gaúcho.93

O Grêmio Gaúcho de Porto Alegre disseminava referências do gaúcho a fim

de relembrar e elogiar acontecimentos, ou seja, havia a intenção de buscar um

passado idealizado como forma de identidade, sempre selecionando o melhor desse

passado, o qual podemos chamar de atemporal, com espaço de tempo variável. Ao

escrever ou ler, seja história ou literatura, vê-se uma tentativa de penetrar nesse

mundo, buscando um “efeito de real” que, por meio do imaginário, procura

representar outro contexto que se viabiliza segundo distintas hierarquias de

verdade.94

No período posterior à fundação dessa primeira instituição, entre 1898 e

1943, surgiram outras com objetivos semelhantes, respeitadas por escritores do

movimento gaúcho e tidas como iniciativas isoladas, consideradas antecedentes

históricos do Movimento Tradicionalista Gaúcho, entre elas: a União Gaúcha de

Pelotas, fundada em 1899, tendo como líder o escritor regionalista e literato Simões

Lopes Neto; a Sociedade Gaúcha Lomba-Grandense; e o Clube Farroupilha de

Ijuí.95 Essas últimas fundadas em áreas de colonização alemã e italiana, em 1938 e

1943.96

93

FAGUNDES, Antonio Augusto. Curso de tradicionalismo gaúcho. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1994, p. 17. 94

PESAVENTO, Sandra J. Fronteiras da ficção: diálogos da história com literatura. Anais do XX Simpósio da Associação Nacional de História. Florianópolis, 8 jul. 1999, p. 821. 95

SAVARIS, Manoelito Carlos. Rio Grande do Sul: história e identidade. Porto Alegre: Fundação Cultural Gaúcha - MTG, 2008, p. 179. 96

OLIVEN, Ruben George. A parte e o todo: a diversidade cultural no Brasil - Nação. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 103.

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Cabe, pois, registrar que os fatores que contribuíram para a criação das

instituições gaúchas nesse período, em especial as duas últimas, eram revestidos

de intenções individuais, e não coletivas, conforme objetivavam os literatos com

suas obras que evocavam um Brasil com características específicas, porém próprias

e unas. Parece acertado dizer que o Estado Novo e a Segunda Guerra Mundial

foram grandes motivadores para o nascimento das referidas instituições.

Diferentemente dos períodos anteriores, dessa vez os imigrantes tentavam,

forçadamente, enquadrar-se nesse estereótipo. Nesse período o país vivia um

momento singular no que se refere às culturas e identidades regionais, o Estado

Novo decidira acabar com as iniciativas regionalistas, proibindo todos os símbolos

que não fossem os federais.97 A fundação da Sociedade Gaúcha Lomba-Grandense,

em 1938, em pleno Estado Novo, em região de colonização alemã (Novo

Hamburgo), foi uma iniciativa de 22 amigos de origem alemã que, de acordo com a

ata de fundação, tinham como objetivo fazer exercícios a cavalo e simbolizar o

gaúcho primitivo, entre outros. Ao contrário das demais instituições, essa vivia as

tensões socioculturais emergentes, acentuadas com o início da campanha de

nacionalização, pois possuía uma ideologia e um discurso do “perigo alemão” em

razão da Segunda Grande Guerra98, o que justificou a sua fundação.

Segundo o escritor e seguidor do movimento gaúcho Antônio Augusto

Fagundes, a criação da Sociedade Gaúcha Lomba-Grandense foi uma tentativa de

defesa no contexto da Segunda Guerra Mundial:

Na quarta década do século XX, no bairro de Lomba Grande, em São Leopoldo, um grupo de moços de sobrenome alemão via com preocupação o sucesso da pregação nazista entre a população local. [...] Era a doutrina nazista pregada pelos seus diplomatas em Porto Alegre o jus-sanguinis, o direito do sangue, sustentando que todo cidadão com sangue alemão nas veias eram alemães de fato e de direito. Com isso, a Alemanha chegou a levar para Berlim e integrar ao exército nazista jovens nascidos no Vale do Rio dos Sinos. Mas os moços teuto-gaúchos de Lomba Grande disseram não: nós somos brasileiros, nós somos gaúchos, nós não somos alemães. Com forte sotaque colonial e sem conhecer muito bem as tradições gaúchas, deram ao Rio Grande uma das mais lindas lições de gauchismo, fundando a Sociedade Gaúcha Lomba-grandense em 31 de janeiro

97

GERTZ, René E. O Estado Novo no Rio Grande do Sul. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2005, p. 135. 98

Ibidem, p. 145-155.

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47

de 1938, que existe até hoje, linda e forte e plenamente integrada ao tradicionalismo que o 35 CTG só irá iniciar dez anos mais tarde.99

O medo dos imigrantes alemães diante da guerra fez com que abdicassem da

sua nacionalidade, já que o momento era de tensão, “a preocupação dos imigrantes

era garantir a sua sobrevivência econômica, social, cultural e física diante do

processo de nacionalização que os pôs em perigo”100. O objetivo dessas entidades

era o culto à tradição gaúcha, à cultura do Rio Grande do Sul e a um passado

idealizado por eles, que iria, de certa forma, proteger aqueles que o seguissem. E

assim outras surgiram, posteriormente, fundadas por europeus com os mesmos

objetivos, como foi o caso do Clube Farroupilha, em 1943.

O que aconteceu no período da nacionalização, a partir dos anos de 1930 e

especialmente durante a Segunda Guerra, quando se intensificou a perseguição aos

imigrantes, sobretudo os de origem alemã, foi a necessidade de renegociar a

identidade étnica e as suas práticas socioculturais de forma imediata, em nome da

construção de uma memória pública nacional, pois precisariam se adequar às ideias

e circunstâncias impostas pelo governo e pela opinião pública nacional.101 Segundo

René Gertz, a região colonial alemã abandonaria aos poucos sua hegemonia

conservadora, como forma de buscar soluções para seus problemas fora do seu

antigo habitat.102 Ou seja, principalmente os filhos desses imigrantes sentiram

necessidade de se adequar à nova pátria, integrando-se na nova cultura, e as

instituições gaúchas naquele momento seriam a solução, pois os incluiria no cenário

nacional. Assim, pode-se afirmar que as instituições gaúchas, impulsionadas pela

Segunda Grande Guerra, contribuíram para o enfraquecimento do

Deutschbrasilianertum – expressão alemã que designa o duplo pertencimento, à

nação alemã e ao Estado brasileiro.103

Sobre as iniciativas de reviver o gaúcho nesse período, René Gertz registra:

“A fundação da revista Província de São Pedro, em 1945, mostrou que o

tradicionalismo gaúcho estava bastante arraigado e que nesse campo o Estado

99

FAGUNDES, Antonio Augusto. Tradicionalismo. Caderno de História. Porto Alegre, nº 22, 2005. 100

NODARI, Eunice Sueli. Etnicidades renegociadas: práticas socioculturais no oeste de Santa Catarina. Florianópolis: UFSC, 2009, p. 20. 101

Ibidem, p. 20. Ver ainda sobre os italianos: WEBER, Regina. O avanço dos “italianos”. História em Revista. Pelotas, v. 10, n. 10, 2017. 102

GERTZ, René E. Os cidadãos teuto-gaúchos. In: FISCHER, Luís A.; GERTZ, René E. (Orgs.). Nós os teuto-gaúchos. Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS, 1998, p. 180. 103

SCHNEIDER, Alberto Luiz. Silvio Romero - Hermeneuta do Brasil. São Paulo: Annablume, 2005, p. 175.

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Novo não conseguira realizar grandes modificações.”104 Embora algumas das

instituições tenham desaparecido, três delas permaneceram e continuam em

funcionamento e integradas ao atual movimento gaúcho. São elas: União Gaúcha de

Pelotas, Sociedade Gaúcha Lomba-Grandense em Novo Hamburgo e Clube

Farroupilha de Ijuí, todas no Estado do Rio Grande do Sul.105

104

GERTZ, René E. O Estado Novo no Rio Grande do Sul. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2005, p. 136-137. 105

SAVARIS, Manoelito Carlos. Rio Grande do Sul: história e identidade. Porto Alegre: Fundação Cultural Gaúcha - MTG, 2008, p. 179.

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CAPÍTULO II – O MOVIMENTO TRADICIONALISTA E O VESTIR GAÚCHO

2.1 TRADIÇÃO "ELETIVA" GAÚCHA E FOLCLORE: A CONSOLIDAÇÃO DA

IDENTIDADE IDEAL

Em 1947, passada a fase das proibições regionalistas dos estados, um grupo

reinicia o culto ao gauchismo no Rio Grande do Sul, trazendo à tona práticas que

evocam o gaúcho. O movimento emergia de forma ainda mais intensa, já que dessa

vez, além do apoio do estado, foi impulsionado por jovens ativos e influentes

politicamente. Essa nova fase inicia-se com a criação de um departamento

destinado ao culto das tradições gaúchas, vinculado ao grêmio estudantil do Colégio

Estadual Júlio de Castilhos, uma importante escola da cidade de Porto Alegre, no

Rio Grande do Sul. Nesse contexto, desponta João Carlos Paixão Côrtes, jovem

estudante, como idealizador do movimento nesse período.106

Sobre a criação desse departamento, Côrtes relata, no livro intitulado “Origem

da Semana Farroupilha: Primórdios do Movimento Tradicionalista”, que os jornais de

1947 noticiaram a iniciativa dizendo:

O Grêmio Estudantil Júlio de Castilhos, sentindo a necessidade da perpetuação das tradições gaúchas, fundou, aliando aos seus já numerosos departamentos o das “Tradições Gaúchas”, procurando assim preservar esse legado dos nossos antepassados [...].107

De acordo com Antônio Augusto Fagundes, tradicionalista gaúcho108,

integrante do movimento e autor de diversos livros sobre essa fase, nesse período

“O Rio Grande do Sul, como o Brasil inteiro, está sob intensa influência cultural

estrangeira. O gaúcho é ignorado e até desprezado”109, justificando a retomada

dessa figura como referência identitária para a cultura do Sul do Brasil. Vê-se que os

sinais de modernidade, tidos pelo grupo como “bombardeio cultural estrangeiro”,

impulsionaram o retorno ao passado na busca por elementos considerados

tradicionais.

106

CÔRTES, João Carlos Paixão. O Rio Grande do Sul canta e dança com Paixão Côrtes. Notas curriculares. Caxias do Sul: Lorigraf, 2005, p. 188-190. 107

Ibidem, p. 188-190. 108

O seguidor e/ou adepto do movimento gaúcho, nessa fase, é intitulado pela instituição como “Tradicionalista gaúcho”. 109

FAGUNDES, Antonio Augusto. Curso de Tradicionalismo Gaúcho. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1994, p. 19.

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Nesse sentido, é possível visualizar a relação de conflitos que há entre

tradição e modernidade. A esse propósito, Jacques Le Goff denomina de

“modernização conflitual, que, atingindo apenas uma parte da sociedade, ao tender

para o „moderno‟, criou conflitos graves com as tradições antigas”110, refletindo na

mobilização para a organização em comunidades. Zygmunt Bauman, seguindo a

teoria de Benedict Anderson, concorda que “a modernidade é também uma era de

totalidades supralocais, de „comunidades imaginadas‟ orientadas ou aspiradas de

construção de nações – e de identidades culturais compostas, postuladas ou

construídas”111, nesse caso eletivas. Ainda segundo Antônio Augusto Fagundes, “foi

o primeiro grito de revolta da mocidade gaúcha em defesa das nossas tradições e

que tem larga repercussão”112.

O primeiro ato oficial do grupo à frente do Departamento das Tradições

Gaúchas do colégio foi a organização de um evento denominado Ronda Gaúcha113.

O evento estava programado para acontecer entre os dias 8 e 20 de setembro de

1947, porém foi antecipado para o dia 5. Com a intenção de transformá-lo em um

ato cívico, os jovens desejavam retirar uma centelha do fogo simbólico da Pira da

Pátria para iluminar um candeeiro típico durante a Ronda, sendo que, na ocasião da

autorização pelo presidente da Liga da Defesa Nacional, foram convidados para

escoltar a chegada dos restos mortais de David José Martins Canabarro, que

estavam sendo transportados do interior para o Panteão Rio-grandense do

Cemitério da Santa Casa de Misericórdia, na capital do estado, Porto Alegre. As

solenidades foram então antecipadas para esse dia.

Após a chegada da urna funerária a Porto Alegre, conduzida pelo avião da

Força Aérea Brasileira - FAB, um grupo de oito jovens, denominado “Piquete da

Tradição”, com cavalos cedidos pelo comando do Regimento Osório do Exército

Nacional, acompanhou o cortejo até o cemitério. Esse foi o primeiro evento oficial

dos jovens, e viria a ser oficialmente considerado o início do movimento em 1947.

Registros permitem verificar que os participantes exibiam vestuário característico de

110

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003, p. 191. 111

BAUMAN, Zygmunt. Ensaios sobre o conceito de Cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p. 44. 112

FAGUNDES, Antonio Augusto. Curso de tradicionalismo gaúcho. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1994, p. 41-42. 113

Nome que remete a cuidados com o fogo simbólico retirado da pira da pátria pelos jovens. Ou no sentido literal da palavra refere-se a ao serviço de vigilância a que se submete a tropa de gado nos pousos ou sesteadas. Vigília, pastoreio. Lugar onde pasta ou pernouta a tropa de gado a vigilância dos tropeiros. NUNES, Zeno Cardoso; NUNES, Rui Cardoso. Dicionário de regionalismo do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1993, p. 436.

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gaúcho114, um dos principais elementos das tradições gaúchas tal como

conhecemos atualmente, propagadas pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho.

Figura 2 - Grupo de oito jovens em trajes gaúchos,

denominado “Piquete da Tradição”.115

Esse evento marcou o início do movimento, e sua programação se estenderia

por doze dias ininterruptamente, com músicas, poesias, fandango, concursos e

discursos. Cabe destacar a preocupação com a vestimenta logo no primeiro evento.

Paixão Côrtes descreve em sua obra que o jornal Correio do Povo publicou

naqueles dias a seguinte notícia:

[...] antes de ser extinto o fogo da Pátria, os cavaleiros deste Departamento transportaram até o velho casarão do Colégio estadual Júlio de Castilhos, uma centelha do fogo que foi inflamar o “candeeiro” armado no saguão do prédio. O fogo da Pátria ficará, desta maneira, presente no Júlio de Castilho até o dia 20 de setembro vindouro, de onde será transportado também a “pata de cavalo” até o local onde se realizará um grande baile das Tradições Gaúchas, devendo ser extinto às 24 horas do dia mencionado. [...] Ainda no baile de 20 de setembro serão oferecidos finos prêmios aos

114

CÔRTES, João Carlos Paixão. Origem da Semana Farroupilha e primórdios do Movimento Tradicionalista. Porto Alegre: Evangraf, 1994, p. 49-68. 115

Ibidem, p. 65.

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52

tipos mais sugestivos que se apresentarem em trajes característicos do nosso pampa.116

No ano seguinte, 1948, com o início do ano letivo, os jovens voltaram às aulas

com mais um objetivo em mente, fundar uma associação. Segundo o escritor,

historiador e advogado Barbosa Lessa, que passou a integrar o grupo nesse mesmo

ano, “não nos animavam preocupações literárias, mas sim o empenho

associativo”117. A partir dessa iniciativa, teve início a formação de novas entidades,

sendo a primeira delas o “35 CTG” Centro de Tradições Gaúchas, fundado em 24 de

abril de 1948. A entidade tinha por objetivo não só organizar festas e bailes, mas

ser, segundo Cyro Dutra Ferreira, um dos jovens do grupo, “uma sociedade onde

também se estudasse e se divulgasse, de todas as formas ao nosso alcance, as

tradições gaúchas”118.

É possível compreender a “tradição gaúcha” a que se refere o grupo a partir

da teoria do historiador Javier Fernández Sebastián, que a nomeia como “tradição

eletiva”, principalmente quando surgem os estatutos das instituições, onde ficam

registrados os elementos da história que foram selecionados como tradicionais. O

termo é reforçado por Fernando Nicolazzi, que, ao citar Sebástian, define tradição

“menos como uma herança recebida dos seus antepassados e mais como um

legado histórico imaginado e elaborado pelo próprio legatário”. Nicolazzi ainda expõe

que há uma inversão, e exemplifica da seguinte forma: “[...] aqui é o filho quem gera

o pai, já não se trata apenas de um determinado presente sendo afetado por um

determinado passado, mas sim, e, sobretudo, da forma pela qual este pode ser

afetado por aquele presente.”119 Utilizando de exemplo semelhante, Gérard Lenclud

descreve que, “ao contrário dos pais engendrarem os filhos, os pais nascem dos

filhos”120.

A esse respeito, Gérard Lenclud aponta a tradição como um itinerário

constituído pelo grupo humano que vai do presente ao passado, sendo uma

“retroprojeção” que institui uma “filiação inversa”. Ou seja, “não é o passado que

116

CÔRTES, João Carlos Paixão. Origem da Semana Farroupilha e primórdios do Movimento Tradicionalista. Porto Alegre: Evangraf, 1994, p. 50. 117

LESSA, Luiz Carlos Barbosa. Nativismo. Porto Alegre: L&PM Editores, 1985, p. 57. 118

FERREIRA, Cyro Dutra. 35 CTG: o pioneiro do Movimento Tradicionalista Gaúcho - MTG. 4ª ed. Porto Alegre: Edições Renascença, 2005, p. 46. 119

NICOLAZZI, Fernando. História da historiografia e temporalidades: notas sobre tradição e inovação na história intelectual. Almanack. São Paulo, nº 7, p. 27-32, 2014, p. 31. 120

LENCLUD, Gérard. A tradição não é mais o que era... Sobre as noções de tradição e de sociedade tradicional em etnologia. História, Histórias. Brasília, v. 1, nº 1, 2013, p. 158.

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produz o presente, mas o presente que molda o passado. A tradição é um processo

de reconhecimento de paternidade”121.

Segundo Lessa, o estatuto dessa primeira instituição gaúcha consignava

entre suas finalidades a de “zelar pelas tradições do Rio Grande do Sul, sua história,

suas lendas, canções, costumes, etc. [...]”122. Ou seja, foram eleitos os elementos do

passado que fariam parte dessa “tradição”. Sobre os mecanismos de eleição,

seleção ou apropriação, são justificados como aqueles elementos que fizeram parte

do passado do gaúcho, que podem ser extraídos dos diários de viagem, das

aquarelas, da literatura e da memória. É possível verificar que há uma seleção de

elementos de diferentes períodos da história, reinterpretados e utilizados no

presente como tradição.

A questão fica mais clara nas palavras de Paixão Côrtes, quando afirma que o

grupo seguiu estudando e selecionando as práticas que iriam fazer parte desse

movimento pela tradição gaúcha:

Procurávamos assim mentalizar a figura ideal do homem do campo rio-grandense, acima de nossas reduzidas vivências municipais e além dos limites de nossa própria época: buscávamos aquela síntese, se possível, aquele ponto de encontro entre passado e presente, em dimensão estadual.123

Com o objetivo de rememorar os usos e costumes do gaúcho, foram sendo

incorporados com o passar do tempo inúmeros elementos do passado, como a

indumentária, a poesia, a literatura, monumentos, danças, músicas, entre outros,

como elementos tradicionais, a fim de estruturar e legitimar a instituição gaúcha. De

acordo com Sandra Pesavento,

[...] um estereótipo sobre o Rio Grande e seu povo é extremamente significativo para que se possa apreciar o espaço de atuação de um grupo na sociedade, instrumentalizando ideologicamente uma noção de história para legitimar sua posição de predomínio e hegemonia na sociedade.124

121

LENCLUD, Gérard. A tradição não é mais o que era... Sobre as noções de tradição e de sociedade tradicional em etnologia. História, Histórias. Brasília, v. 1, nº 1, 2013, p. 158. 122

LESSA, Luiz Carlos Barbosa. Nativismo. Porto Alegre: L&PM Editores, 1985, p. 58. 123

Idem; CÔRTES, Paixão. Danças e andanças da tradição gaúcha. Porto Alegre: Garatuja, 1975, p. 101. 124

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Gaúcho: mito e história. Letras de Hoje. Porto Alegre, v. 24, nº 3, 1989, p. 55.

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54

O fortalecimento desse processo de recriação era importante no sentido de

incluir o grupo em uma sociedade urbana que vivia as novidades do pós-guerra,

quando a propaganda da cultura norte-americana chegava à cidade, com revistas

em quadrinhos, o cinema, o cowboy e uma quantidade de heróis estrangeiros.125 Os

Centros de Tradições Gaúchas transformavam-se no melhor ambiente de lazer para

os mais conservadores e regionalistas. As pessoas eram atraídas principalmente

pelo imaginário em relação aos elementos que compõem tal tradição, como a

indumentária, a música, a poesia, a dança, a literatura e demais práticas culturais

institucionalizadas pelo movimento.

Tais elementos apresentam ao indivíduo características culturais de outras

gerações perdidas no tempo. Por meio de simbologias com referências do passado

histórico do gaúcho, os adeptos revivem outros tempos, por meio do imaginário. A

própria instituição, denominada Centro de Tradição Gaúcha, foi definida por seus

fundadores como uma “Estância Simbólica”126, simulando uma hierarquia em que os

cargos foram recebendo nomes pouco convencionais, como Galpão para designar a

sede da instituição, Patrão para chamar o presidente do CTG, Capataz para o vice-

presidente, entre outras nomenclaturas.127

Dessa forma, a instituição gaúcha representa a organização de uma Estância,

na qual, em situações reais, o gaúcho era um simples peão empregado, conforme

descreve Nicolau Dreys.128 Essa aproximação com a Estância por meio de

nomenclaturas dentro dos Centros de Tradições Gaúchas, ainda que pelo

imaginário, permite aos associados se colocarem no mesmo grau de igualdade. O

objetivo das simbologias era aproximar-se de um passado, que poderia ter sido

diferente, não fosse a intervenção do colonizador. Nas instituições o gaúcho, ainda

que apenas uma representação, pode ocupar o cargo que deseja dentro da

“Estância”, mesmo que somente no imaginário criado pelo movimento gaúcho.

Da mesma maneira, a poesia e a música trazem elementos históricos

selecionados de um gaúcho representativo, ideal. As danças incluem coreografias

com sapateios, algumas dançadas exclusivamente por homens reproduzindo

125

FAGUNDES, Antonio Augusto. Curso de tradicionalismo gaúcho. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1994, p. 42. 126

Estância é um termo utilizado desde o século XIX no Rio Grande do Sul para designar fazendas. 127

SARAIVA, Glaucus. Manual do Tradicionalismo: Orientação geral para tradicionalistas e Centros de Tradições Gaúchas. Porto Alegre: Livraria Sulina, 1968, p. 115-116. 128

DREYS, Nicolau. Notícia descritiva do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Nova Dimensão/ EDIPUCRS, 1990, p. 94.

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55

disputas, incluindo facões, representando o herói corajoso. Porém, em sua maioria,

quando incluem mulheres, o respeito ao par se sobrepõe à coreografia.

E, continuando a saga em busca da preservação dessa tradição, os Centros

de Tradições Gaúchas bem vistos e começaram a se proliferar. Entre abril de 1948 e

junho de 1954 foram criadas 38 instituições em todo o estado do Rio Grande do Sul

e, como consequência, surgiram divergências quanto aos seus objetivos, seus

discursos e suas práticas. Ou seja, era necessário discutir o caminho que iriam

seguir, definindo diretrizes ideológicas, já que dessa vez a sociedade estava

aderindo ao movimento gaúcho, e a tendência era expandir o número de Centros de

Tradições Gaúchas.

Na tentativa de reestruturar as instituições, em 1954, organizou-se o I

Congresso Tradicionalista, considerado a maior assembleia do movimento gaúcho,

evento que passou a ser realizado anualmente, em que são discutidos e decididos

os mais importantes temas.129 Entre os assuntos abordados merece destaque um

documento, o qual designaram de tese, intitulado “O Sentido e o Valor do

Tradicionalismo”, que norteou a atuação das instituições gaúchas, elaborado e

apresentado por Barbosa Lessa, integrante que contribuiu desde a fundação das

primeiras instituições. Sobre o documento (ver Anexo I), Manoelito Carlos Savaris130

diz:

Barbosa Lessa apresentou ao plenário daquele primeiro Congresso a tese “O Sentido e o Valor do Tradicionalismo”. Esse documento é considerado até os dias atuais, a base ideológica mais clara, simples e profunda do Movimento Tradicionalista.131

O documento atenta para a importância de viver coletivamente preservando

as culturas locais, evitando-se a desintegração cultural, termo utilizado para designar

a aculturação promovida pela influência de outras culturas, o que se tornaria danoso

para a tradição recém-organizada. O texto apresenta teorias de sociólogos como

129

LIMA, Jarbas. Tradicionalismo... Responsabilidade Social - Reflexões. Porto Alegre: MTG, 2004, p. 182. 130

Manoelito Carlos Savaris foi presidente do Movimento Tradicionalista Gaúcho do Rio Grande do Sul, presidente do Instituto gaúcho de Tradição e Folclore e presidente da Confederação Brasileira da Tradição Gaúcha. 131

SAVARIS, Manoelito Carlos. Rio Grande do Sul: história e identidade. Porto Alegre: Fundação Cultural Gaúcha - MTG , 2008, p. 190.

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56

Donald Pierson e Ralph Linton132, da Escola de Chicago, possivelmente a fim de

produzir legitimidade e conferir cientificidade ao movimento gaúcho, já que pouco

fundamentava suas publicações, valendo-se principalmente de pesquisas de campo,

e começava a ser visto como “carnavalesco”.

Quanto a Ralph Linton, este foi um dos primeiros sociólogos a iniciar uma

tentativa sistemática de utilizar teorias e técnicas psicodinâmicas na análise de

dados etnográficos. Vivenciou a recíproca atração entre antropologia e psicologia na

primeira metade do século XX133, demonstrada no citado documento quando expõe

sobre a necessidade psicológica das pessoas de se integrarem a um grupo local,

afirmando ainda que o tradicionalismo age dentro da psicologia coletiva, envolvendo

as pessoas.

Ao citar Donald Pierson134, o texto vai ao encontro das tradições eletivas

propostas por Javier Fernández Sebastián e, ao mesmo tempo, remete à última

citação da epígrafe deste capítulo, em que Rubens Luiz Sartori se autodenomina

“soldados, à causa maior”. Traz o texto:

Quando a cultura de determinado povo é invadida por novos hábitos e novas ideias, duas coisas podem ocorrer. Se o patrimônio tradicional dessa cultura é coerente e forte, a sociedade só tem a lucrar com o referido contato, pois sabe analisar, escolher e integrar em seio aqueles traços culturais novos que, dentre muitos, realmente sejam benéficos à coletividade. Se, porém, a cultura invadida não é predominante e forte, a confusão social é inevitável: idéias e hábitos incoerentes sufocam o núcleo cultural, desnorteando os indivíduos, e fazendo-os titubear entre as crenças e valores mais antagônicos.135

Ou seja, se o patrimônio tradicional invadido for suficientemente forte, ele

poderá inclusive se beneficiar da cultura externa, integrando novos elementos à sua.

Dessa forma, é lícito supor que a tradição é construída a partir de elementos

selecionados do passado, e também do presente. No entanto, se o grupo não estiver

coeso e forte, a invasão cultural externa poderá pôr em risco a cultura organizada.

132

LESSA, Luiz Carlos Barbosa. O Sentido e o Valor do Tradicionalismo. Porto Alegre: Publicação da Comissão Estadual do Folclore do Rio grande do Sul, 1954, p. 2. 133

GAUER, Ruth M. Chittó. A fundação da norma para além da racionalidade histórica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009, p. 116. 134

Ver em: GUIMARÃES, Rafael Estevão Marão. Os estudos de comunidade e urbanos coordenados por Donald Pierson na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo. Cadernos CERU. São Paulo, v. 22, nº 1, p. 221-238, jun. 2011. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/ceru/article/view/ 29473>. Acesso em: 26/11/2017. 135

LESSA, op. cit., p. 3.

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57

Nesse caso, são necessários “soldados” para defender o conjunto de elementos

organizados da tradição. O que justifica a necessidade da organização institucional,

realização de congressos, regulamentos, estatutos, textos orientadores e dirigentes.

Ao descrever algumas funções do movimento tradicionalista e a forte relação

com o regionalismo, o texto “O Sentido e o Valor do Tradicionalismo”, defendido por

Luis Carlos Barbosa Lessa, ainda deixa explícita a dimensão política do movimento.

Registra o texto:

Cada Centro de Tradições Gaúchas, em si, é um novo "Grupo Local". E à medida que surgem novos Centros, em todos os municípios do Rio Grande do Sul, vai o Tradicionalismo confundindo-se com o Regionalismo, pois opera para que todos os indivíduos que compõem a Região sintam os mesmos interesses, os mesmos afetos, e desta forma reintegrem a unidade psicológica da sociedade regional. E com isso o Tradicionalismo pode se transformar na maior força política do Rio Grande do Sul. Para evitar confusão de "política" com "política partidária", expressemo-nos assim: O Tradicionalismo pode constituir-se na maior força a auxiliar o Estado na resolução dos problemas cruciais da coletividade.136

Na sequência, o mesmo documento ainda complementa que o

“Tradicionalismo é o movimento popular que visa auxiliar o Estado na consecução

do bem coletivo [...]”137. Há uma nítida preocupação com o Estado, conforme

demonstrado também em documentos posteriores. Cabe, pois, dizer que o

tradicionalismo gaúcho se caracteriza como um movimento de elite, embora se dirija

e se esforce para ser popular. A esse respeito, Paixão Côrtes registra em sua obra

que Glaucus Saraiva, patrão, fundador do primeiro CTG e professor universitário,

quando da fundação do “35 CTG”, defendia que a instituição deveria se constituir em

uma associação fechada, “algo maçônica na sua simbologia, de alto valor cívico-

místico, limitada a 35 sócios iniciais”138. No entanto, os registros apontam que se

optou por um movimento aberto e popular.

Parece acertado dizer que o movimento foi idealizado e liderado por pessoas

atuantes socialmente e politicamente. Dentre os pioneiros, cabe destacar que todos

estavam, de certa forma, estrategicamente bem posicionados no quesito emprego à

136

LESSA, Luiz Carlos Barbosa. O Sentido e o Valor do Tradicionalismo. Porto Alegre: Publicação da Comissão Estadual do Folclore do Rio Grande do Sul, 1954, p. 6. 137

Ibidem, p. 7. 138

CÔRTES, João Carlos Paixão. Origem da Semana Farroupilha e primórdios do Movimento Tradicionalista. Porto Alegre: Evangraf, 1994, p. 135.

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58

época da fundação dos primeiros CTGs. João Carlos Paixão Côrtes, que logo se

formou em agronomia, era funcionário da Secretaria de Agricultura do Rio Grande

do Sul, onde trabalhou durante toda a sua vida, conciliando o trabalho com

pesquisas sobre as danças gaúchas; Luiz Carlos Barbosa Lessa, autor da primeira

tese e um dos fundadores do primeiro CTG, atuava na Revista do Globo, era

produtor de cinema e, entre outras atuações, formou-se em Direito e também se

dedicou às pesquisas sobre o tradicionalismo.

Com o passar dos anos, outros congressos aconteceram e outras teses foram

sendo apresentadas. No VIII Congresso Tradicionalista Gaúcho, em 1961, foi

aprovada a “Carta de Princípios”139 (ver Anexo II), de autoria de Glaucus Saraiva da

Fonseca, no intuito de instituir diretrizes oficiais a todas as entidades, objetivando a

padronização dos discursos e práticas. De acordo com o Movimento Tradicionalista

Gaúcho do Rio Grande do Sul, a “Carta de Princípios” está atualmente em vigor e

fixa os objetivos do MTG desde 1961140, considerada “cláusula pétrea” do atual

Estatuto141 que deve ser seguida por todas as instituições. Desde então, cada

instituição tem a Carta de Princípios exposta em sua sede, a fim de lembrar aos

tradicionalistas suas obrigações e seus princípios. Esse documento apresenta, logo

no primeiro artigo, novamente sua relação com o poder público, conforme já

mencionado. Registra o documento que uma de suas funções é “Auxiliar o Estado

na solução dos seus problemas fundamentais e na conquista do bem coletivo”142, o

que demonstra, mais uma vez, a dimensão política.

Por fim, deve-se dizer que o movimento gaúcho conseguiu, nos primeiros dez

anos de existência, ir além dos seus objetivos. Conseguiu reunir um contingente de

pessoas no meio urbano em torno de práticas rurais até então conhecidas somente

pela literatura. Logo no início atingiu um patamar, talvez, nem sequer imaginado por

seus idealizadores. Cabe, pois, reiterar que eram estudantes secundaristas iniciando

um movimento gaúcho junto a um grêmio escolar. No entanto, souberam aproveitar

o contexto histórico para divulgar suas práticas, publicações, seus projetos, seus

anseios.

139

LAMBERTY, Salvador Ferrando. ABC do tradicionalismo gaúcho. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1989, p. 31-32. 140

MOVIMENTO TRADICIONALISTA GAÚCHO. Carta de Princípios. 1961. Disponível em: <http://www.mtg.org.br/historico/219>. Acesso em: 28/05/2017. 141

Idem. Estatuto do MTG. 2014. Disponível em: <http://www.mtg.org.br/public/libs/kcfinder/upload/ files/ESTATUTO/1_0_ESTATUTO_MTG.pdf>. Acesso em: 28/05/2017. 142

SARAIVA, Glaucus. Manual do Tradicionalismo: Orientação geral para tradicionalistas e Centros de Tradições Gaúchas. Porto Alegre: Livraria Sulina, 1968, p. 17.

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59

Contudo, importa dizer que, embora os discursos e publicações do grupo

procurassem conferir exclusividade à iniciativa, essa preocupação em trazer à tona

uma identidade regional era reivindicada por diferentes grupos em todo o país,

incluindo o poder público. Parece acertado afirmar que, justamente por ser uma

preocupação nacional, muitas das ações realizadas pelos jovens obtiveram apoio e

projeção, inclusive internacional, tanto da iniciativa privada como da pública.

Em razão do pós-guerra, o período foi de iniciativas pelo reconhecimento e

valorização da diversidade cultural, a fim de promover boas relações, o que

impulsionou os estudos sobre cultura, regionalismo, folclore, entre outros. A esse

respeito, a Organização das Nações Unidas - ONU criou em 1946 uma agência

especializada, intitulada Organização das Nações Unidas para a Educação, a

Ciência e a Cultura - UNESCO143, que por sua vez previa a formação de organismos

e comissões nos países que aderissem à iniciativa. Esta, em suma, visava uma

sociedade mais justa e segura por meio da educação, ciência, cultura e

comunicação, assegurando o respeito entre os povos, independentemente da raça,

do sexo, do idioma ou da religião.144

No mesmo ano o Brasil aderiu à UNESCO145, e criou o Instituto Brasileiro de

Educação, Ciência e Cultura - IBECC, um organismo interministerial, de execução,

vinculado ao Ministério das Relações Exteriores, que logo criou comissões146 a fim

de cuidar de temas pertinentes à iniciativa, envolvendo importantes intelectuais do

período. Nesse contexto o folclore, visto como um instrumento de compreensão

entre os povos, ganhou especial atenção, resultando na criação da Comissão

Nacional de Folclore - CNFL, que por sua vez criou subcomissões representantes

nos estados, com a proposta de trazer à tona as tradições populares. Dessa forma,

foi instituída no Rio Grande do Sul uma Comissão Gaúcha de Folclore.

Logo, surgiu um movimento folclorista que atuou em todo o país. Embora o

tema já estivesse em evidência em governos e fosse objeto de estudo de

importantes intelectuais em períodos anteriores, como Sílvio Romero, Amadeu

Amaral e Mário de Andrade, incluindo a criação mais tarde do Instituto Brasileiro de

143

NUNES, Rosiane da Silva. UNESCO: Patrimônio Cultural Imaterial e Sociomuseologia. Dissertação (Mestrado em Museologia), Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Lisboa, 2011, p. 18. 144

UNESCO. Qu'est-ce que l'UNESCO? s/d. Disponível em: <http://www.unesco.org/education/ asp/pdf/handbk_f.pdf/unesco24.pdf>. Acesso em: 20/11/2017. 145

NUNES, op. cit., 2011. 146

VARGAS, José Israel; MORENO Márcio Quintão. Ciência em tempo de crise - 1974-2007. Belo Horizonte: UFMG, 2007, p. 326-329.

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60

Folclore, em 1942, e a Sociedade Brasileira do Folclore, as iniciativas estavam

desarticuladas, talvez reflexo de governos pouco democráticos, entre outras razões.

Dessa vez as comissões estavam seguindo em uma mesma direção, pelo menos no

seu início, já que os debates acerca da identidade nacional se renovavam e se

intensificavam.147 Além disso, a Constituição de 1946 traria em seu art. 174 o

amparo à cultura como sendo um dever do Estado, o que não garantiu a sua

efetividade, mas contribuiu para as ações no período. Ou seja, os temas em torno da

cultura nacional borbulhavam num regime um pouco mais democrático que o

anterior.

Com a criação de uma comissão específica de folclore, o Brasil orgulhava-se

de ser o primeiro país a atender à recomendação da UNESCO. Em 1948 realizou-se

a Primeira Semana Nacional do Folclore no Rio de Janeiro e em 1951, o Primeiro

Congresso Brasileiro de Folclore, inclusive com a participação do presidente Getúlio

Vargas, incluindo apresentações folclóricas na Quinta da Boa Vista. Desse evento

resultou a Carta do Folclore Brasileiro, que traçava um Plano Nacional de Pesquisa

Folclórica, o qual previa a realização de um mapa folclórico do país148, que resultaria

na edição de inúmeras obras sobre o tema no Brasil.

Nesse contexto, o Rio Grande do Sul adentrou com afinco o movimento,

instituindo em 1948 a Comissão Gaúcha de Folclore, filiada à comissão nacional. O

primeiro passo foi reunir nomes que expressassem o pensamento científico e

literário do Rio Grande do Sul. Como presidente assumiu Dante de Laytano, nome

com forte influência política149, seguido de importantes intelectuais, como Athos

Damasceno Ferreira, Manoelito de Ornellas, Othelo Rosa, Ênio Freitas e Castro,

Darcy Azambuja, Walter Spalding, Moysés Valinho, Érico Veríssimo, entre outros.

Trata-se de intelectuais de uma nova geração de escrita da história regional que,

assim como a nova geração de escritores de todo o país, procuravam valorizar os

aspectos culturais populares.

Com a institucionalização do saber histórico por meio da criação do Instituto

Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul - IHGRS, em décadas anteriores, por

147

ABRANTES, Antônio Carlos Souza de (et al.). Ciência, educação e sociedade: o caso do Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC) e da Fundação Brasileira de Ensino de Ciências (FUNBEC). Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde), Casa de Oswaldo Cruz - FIOCRUZ, Rio de Janeiro, 2008. 148

Ibidem, p. 96. 149

BARCELLOS, Daisy Macedo de. Dante de Laytano e o folclore no Rio Grande do Sul. Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, v. 3, nº 7, p. 252-275, 1997.

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razões políticas, o discurso histórico do Rio Grande do Sul se aproximava da região

do Prata. Agora chegava a hora de a história “oficial documental, elitista e militar” dar

lugar à história popular. Eram necessárias novas formas de buscar e se integrar ao

nacional. E o movimento folclorista pensava o Brasil a partir do regional e da cultura

popular.

A esse respeito, Manoelito de Ornellas apresentava uma nova forma de

escrita da história. Em sua obra “A gênese do Gaúcho Brasileiro”, ao citar Gilberto

Freyre, o autor expressa seu posicionamento sobre o assunto: “[...] para o estudo de

uma região, de uma época, de um movimento ou de uma instituição, não se poderia

guardar, da primeira à última página, rigidez ou exclusividade de método”150, o que

chamou ainda de “pureza científica”. Ressalta que o autor deve valer-se de estudos

de ciências vizinhas. Ou seja, a década de 1940 trouxe novas maneiras de escrever

e registrar a História e a identidade nacional, nesse caso, evidenciando suas

potencialidades identitárias regionais e objetivando a integração à cultural nacional.

Desse modo, o movimento folclórico, formado por importantes intelectuais, e o

movimento gaúcho, composto pelos jovens do período, aproximaram-se logo nos

primeiros anos de atuação. Muito embora Paixão Côrtes e Barbosa Lessa afirmem

que esses dois movimentos não sabiam um do outro, os jovens diziam buscar

orientação nas obras dos intelectuais do movimento folclórico, como Otelo Rosa,

Dante de Laytano e Walter Spading. Contam ainda que Otelo Rosa e Manoelito de

Ornellas haviam participado como convidados especiais de um dos eventos de

1947.151 E, em 1949, “iniciaram um trabalho no sentido de atrair para o 35 CTG os

intelectuais de renome, desejosos que estávamos de uma orientação cultural

bastante séria”152. Assim, organizaram três conferências com Moysés Vellino,

Coelho de Souza e Manoelito de Ornellas, mas destes apenas Ornellas continuaria

acompanhando e frequentando o CTG.

Dante de Laytano, por sua vez, manteve um contato maior com o grupo de

jovens e com o 35 CTG, convidando-os para se apresentarem no evento nacional

que seria realizado em Porto Alegre em 1950, a III Semana Nacional de Folclore.

Laytano emprestou gravador de som para que iniciassem algumas pesquisas e

150

ORNELLAS, Manoelito. A gênese do gaúcho brasileiro. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1956, p. 7. 151

CÔRTES, Paixão. Origem da Semana Farroupilha e primórdios do Movimento Tradicionalista. Porto Alegre: Evangraf, 1994, p. 96. 152

LESSA, Barbosa; CÔRTES, Paixão. Danças e andanças da tradição gaúcha. Porto Alegre: Garatuja, 1975, p. 91 e 109.

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pudessem elaborar o que chamaram de “festival gauchesco”. Para completar, em

1949, a convite do governo estadual, embarcaram para uma imersão cultural na

cidade de Montevidéu, onde visitaram, entre outras instituições, a primeira dedicada

ao culto do gauchismo, fundada em 1894, a Sociedad La Criolla, e participaram de

algumas festividades naquele país. No retorno se prepararam e realizaram, no ano

seguinte, o “festival gauchesco”, sendo considerado a primeira apresentação oficial

de danças tradicionalistas.153 Segue imagem do evento:

Figura 3 - Apresentação do 35 CTG na III Semana Nacional de Folclore, em 1950,

em Porto Alegre, no Instituto de Belas Artes do Rio Grande do Sul.154

O sucesso desse primeiro evento projetou o movimento tradicionalista gaúcho

e o movimento folclórico. Vê-se na imagem a composição do grupo e distribuição

dos personagens no palco, objetivando apresentar de forma espontânea uma cena

gaúcha. Cenas retratadas nas obras de artistas do século XIX, e que serão

apresentadas no capítulo 4. No ano seguinte, em 1951, por ocasião do Primeiro

Congresso Brasileiro de Folclore, realizado na cidade do Rio de Janeiro, que

contaria também com uma exposição sobre o gaúcho com ilustrações de Isolde

Brans, no Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, o grupo de jovens tradicionalistas

foi novamente convidado a se apresentar, e dessa vez entre os espectadores estava

o presidente da república Getúlio Vargas.

153

LESSA, Barbosa; CÔRTES, Paixão. Danças e Andanças da Tradição Gaúcha. Porto Alegre: Editora Garatuja Ltda, 1975, p. 109. 154

IBECC. Anais da III Semana Nacional de Folclore. São Paulo, 1951.

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63

Figura 4 - Getúlio Vargas e os fundadores do Movimento Tradicionalista Gaúcho no

Primeiro Congresso Brasileiro de Folclore, em 1951, no Rio de Janeiro.155

A Comissão Gaúcha de Folclore apoiou o grupo de jovens tradicionalistas de

diferentes formas. Entre elas, contribuiu para as pesquisas sobre danças de Paixão

Côrtes e Barbosa Lessa, por meio da edição do livro “Manual de Danças Gaúchas”,

em 1956, pela Imprensa Oficial do Estado, e da tese de Barbosa Lessa, “O Sentido

e Valor do Tradicionalismo”, em 1957, entre outras obras.156

No entanto, essa aproximação entre a Comissão Gaúcha de Folclore e o

movimento tradicionalista gaúcho ocorreu somente nos primeiros anos. Ainda

durante a década de 1950, com a criação de inúmeros Centros de Tradições

Gaúchas, o grupo alcançou notoriedade. Parece acertado dizer que, por meio do

movimento tradicionalista gaúcho, a identidade do estado alcançava maior

notoriedade, inclusive se destacando mais que as atividades da Comissão Gaúcha

de Folclore. Contudo, cabe notar que eram formas de atuação distintas. Enquanto a

Comissão Gaúcha de Folclore se destacava por um trabalho científico157, o

movimento tradicionalista gaúcho priorizava as práticas, embora alguns

tradicionalistas estivessem se dedicando a estudar e pesquisar seus campos de

155

IBECC. Anais do Primeiro Congresso Brasileiro de Folclore. São Paulo, 1951. 156

LAYTANO, Dante de. Folclore do Rio Grande do Sul: levantamento dos costumes e tradições gaúchas. Caxias do Sul: EDUCS/Nova Dimensão, 1987, p. 151-152. 157

Sobre folclore recomenda-se a leitura da seguinte obra: FERNANDES, Florestan. O folclore em questão. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

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64

atuação.158 As pesquisas dos intelectuais do folclore serviam de base para as

atividades do movimento tradicionalista gaúcho, porém, aos poucos, tais atividades

deixaram de fazer parte dos eventos da Comissão Gaúcha de Folclore.

A esse respeito, Letícia Borges Nedel expõe que os intelectuais não

concordavam com a ênfase dada ao gaúcho pelos jovens tradicionalistas, chamava-

os de “gaúchos postiços”, alertavam para os exageros, imprecisões e excessos

carnavalescos nas representações. Entre os intelectuais, Darcy Azambuja não foi

simpático às iniciativas dos jovens tradicionalistas gaúchos desde o início do

movimento, em 1947. Dante de Laytano oscilava, ora os defendia, dizendo que o

tradicionalismo e o trabalho da Comissão Gaúcha de Folclore se complementavam,

ora os desconsiderava. Manoelito de Ornellas e Walter Spalding chegaram a dizer

que o alinhamento de ambos os movimentos era a única forma de manter as rédeas

morais e o rigor cultural do tradicionalismo.159

No entanto, a divergência por parte da Comissão Gaúcha de Folclore pouco

ofuscou os jovens tradicionalistas gaúchos, tamanha a projeção que o movimento

havia alcançado, principalmente na segunda metade da década de 1950. Vale

observar que nesse período os jovens, além de continuarem ativos em suas práticas

nos Centros de Tradições Gaúchos, que ultrapassavam as fronteiras do Estado do

Rio Grande do Sul160, já estavam graduados e se destacando profissionalmente.

É preciso considerar ainda o espaço que os jovens, principalmente Paixão

Côrtes e Barbosa Lessa, haviam conquistado nos diferentes meios de

comunicação.161 No rádio foram destaque no programa “Grande Rodeio Coringa”, na

Rádio Farroupilha, no Rio Grande do Sul; na televisão realizaram apresentações em

programas semanais da Record, em São Paulo162; no cinema, participaram como

atores, com seus grupos de dança, em filmes nacionais como “Paixão de Gaúcho” e

158

Entre os tradicionalistas com obras publicadas no período em estudo, cabe destacar Paixão Côrtes, Barbosa Lessa e Antonio Augusto Fagundes. 159

NEDEL, Letícia Borges. Um passado novo para uma história em crise: regionalismo e folcloristas no Rio Grande do Sul (1948-1965). Tese (Doutorado em História), Universidade de Brasília, Brasília, 2005. Vale destacar a excelência do trabalho de investigação realizado por Letícia Borges Nedel sobre o tema. 160

Os primeiros Centros de Tradições Gaúchas do Estado de Santa Catarina foram fundados nos anos de1957 e 1959. Ver: BETTA, Edinéia Pereira da Silva; HOLZ, Celívio. História e Memória Gaúcha. Blumenau: Nova Letra, 2013, p. 59-60. 161

LESSA, Barbosa; CÔRTES, Paixão. Danças e andanças da tradição gaúcha. Porto Alegre: Garatuja, 1975, p.123. 162

Em 1953 Barbosa Lessa mudou-se para São Paulo, constituiu um grupo de danças gaúchas e participou de programas de televisão. No Rio Grande do Sul, Paixão Côrtes formou, no mesmo ano, em Porto Alegre, outro grupo de dança independente do 35 CTG, o “Tropeiro da Tradição”.

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65

“As aventuras de Pedro Malasartes”, e também ofereceram consultoria quanto aos

costumes dos gaúchos a importantes diretores, como o diretor Adolfo Celi, em

1953163; e na música, o “Conjunto Farroupilha” gravou o primeiro disco, intitulado

“Gaúcho”, em 1953 e Inezita Barroso, em 1955, lançaria o disco “Danças Gaúchas”,

ambos com músicas fruto das pesquisas sobre danças tradicionais gaúchas de

Barbosa Lessa e Paixão Côrtes.

O movimento tradicionalista gaúcho tornou-se popular por meio do vestuário,

das músicas, das danças e das demais práticas que retratavam os costumes do

gaúcho, conquistando um contingente de pessoas e ganhando espaço. A identidade

gaúcha, considerada “ideal” pelos intelectuais, definitivamente recebia “vida”, e o

espaço por muito tempo aguardado pelos membros da Comissão Gaúcha de

Folclore era concedido aos tradicionalistas.

Em 1954, por meio da Lei 2.345 de 29 de janeiro, foi criada no Rio Grande do

Sul a Divisão de Cultura, órgão vinculado à Secretaria de Educação e Cultura, que

passava por reestruturação, instituindo por meio da Diretoria de Ciências o Instituto

de Tradições e Folclore, órgão oficial do Estado164, que daria especial atenção ao

ensino do tema na região. Foi convidado para dirigir o instituto o folclorista e também

tradicionalista Carlos Galvão Krebs, surpreendendo a Comissão Gaúcha de Folclore.

No entanto, a lei previa a vinculação do Museu Júlio de Castilhos também à Diretoria

de Ciência, junto à Divisão de Cultura165, e esse ficou sob a responsabilidade de

Dante de Laytano. No entanto, o fato de ter um tradicionalista responsável pelo

Instituto de Tradição e Folclore causou desconforto.166

Tal iniciativa fortaleceu ainda mais a atuação dos Centros de Tradições

Gaúchas. Durante o período em que esteve à frente do instituto, Krebs participou

assiduamente dos congressos tradicionalistas, apoiando suas práticas, porém se

dedicou também ao folclore no estado, realizando pesquisas pelo interior,

163

REVISTA DO GLOBO. Porto Alegre, ano XXIV, nº 595, 19 set. 1953, p.39. Acervo da Biblioteca Central Irmão José Otão - PUC-RS. 164

DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Porto Alegre, ano XII, nº 164, 1º fev. 1954. 165

De acordo com a Lei 2.345 de 29 de janeiro de 1954, subordinados à Diretoria de Ciências ficaram os seguintes órgãos: Instituto de Estudos Científicos e Filosóficos, Instituto de Tradição e Folclore, Museu Júlio de Castilhos, Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul e Museu Histórico Farroupilha. 166

A obra mais popular de Dante de Laytano sobre Folclore do Rio Grande do Sul, publicada na década de 1980, menciona tal órgão de forma discreta, quando registra a realização de cursos que Krebs viria a organizar posteriormente. O autor faz menção ao Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore, criado por meio da Lei 6.736, de 29 de setembro de 1974. Sendo que os próprios documentos dessa instituição reconhecem ser a continuidade da primeira, que por sua vez foi extinta em 2016.

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66

representando oficialmente o Rio Grande do Sul em congressos sobre folclore,

nacionais e internacionais, proferindo palestras e realizando exposições sobre o

folclore gaúcho pelos diferentes Estados do país.167

Durante todo o período de atuação do órgão, os diretores do Instituto de

Tradição e Folclore foram tradicionalistas, que, com o apoio da Secretaria de

Educação e Cultura, formaram um patrimônio incalculável, incluindo um importante

museu e uma biblioteca168, porém nada havia em 1954. Carlos Galvão Krebs afirma:

Quando me convidaram para dirigir o Instituto recém fundado, não tínhamos máquina nem cadeiras mas aos poucos fomos conseguindo o que era de primeira necessidade e conseguimos até uma pequena biblioteca. Minha preocupação foi formar assistentes. Estudando uma hora por dia formei assistentes folcloristas onde se destaca Antonio Augusto Fagundes e um fotógrafo documentarista – Léo Guerreiro. Naquela época, Antonio Augusto Fagundes, que hoje é um professor e pesquisador de nível internacional – era apenas um estudante secundário que se interessava por folclore.169

Em 1958 o Ministério da Educação e Cultura lançou a Campanha de Defesa

do Folclore, resultando na criação do Instituto Nacional de Folclore, vinculado à

Fundação Nacional da Arte - FUNARTE. Logo, o folclore, que já vinha recebendo

especial atenção no ensino, seria projetado a patamares ainda maiores no estado do

Rio Grande do Sul. E, em 1959, Krebs iniciaria o primeiro curso de Folclore e

tradicionalismo. Por ocasião da aula inaugural, no salão nobre do Instituto de Belas

Artes, que contou com a presença do Secretário de Educação e outras autoridades,

a imprensa noticiou a inscrição de mais de 400 alunos no curso de curta duração,

que seria ministrado por Carlos Galvão Krebs, Isolde Brans, Antonio Augusto

Fagundes e Leo Guerreiro.170 O referido curso visava atender às solicitações de

pessoas ligadas ao magistério, “que há muito tempo apreciaria um pronunciamento

167

A TARDE. Tecelagem popular gaúcha numa exposição na Bahia. Salvador, 11 jul. 1957. Acervo da Biblioteca Nacional - RJ. 168

De acordo com o jornal Diário de Notícias, de Porto Alegre, de 14 de maio de 1972, Antonieta Barone, que havia assumido o Departamento de Ciência e Cultura da Secretaria de Educação e Cultura do Estado do Rio Grande do Sul, afirmou que o patrimônio material do instituto poderia ser orçado facilmente em vários milhões, tendo ainda patrimônio cultural com valor incalculável. 169

ZERO HORA. Porto Alegre, 11 set. 1977. 170

JORNAL DO DIA. Instalado o Curso de Tradicionalismo e Folclore. Porto Alegre, 21 ago. 1959. Acervo da Biblioteca Nacional - RJ.

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67

da divisão de Cultura sobre folclore e tradicionalismo”171, segundo divulgava o jornal

Correio do Povo de Porto Alegre.

O curso foi um sucesso, e o Instituto de Tradição e Folclore criou a Escola de

Folclore, com o primeiro Curso Superior gratuito de Folclore, fato inédito no país172,

formando a primeira turma em 1969.173 Dante de Laytano inclui em sua obra sobre

folclore do Rio Grande do Sul apenas um parágrafo sobre o tema, porém afirma a

sua importância: “Foi uma escola de fato pioneira com resultados de mérito

inigualáveis, prestando um serviço dos mais dignos à valorização do folclore.”174 O

autor dá especial atenção a pós-graduações com a mesma temática sob a sua

coordenação oferecidas posteriormente. O fato é que o folclore e o tradicionalismo

gaúcho se propagaram por todo o Estado.

Nesse embate, parece acertado dizer que os tradicionalistas atingiram seus

objetivos e propagaram por todo o Estado uma cultura, de modo a produzir e

consolidar a identidade do gaúcho idealizado, inspirado em fatos selecionados do

passado, atribuindo efeito de “verdade” por meio de práticas, levando as pessoas a

acreditarem que todos são herdeiros do gaúcho antigo. A esse respeito, Homi

Bhabha esclarece que “[...] a cultura não é apenas uma viagem de redescoberta [...]

a cultura é uma produção [...] que esta produção, faz nos capacitar, através da

cultura, a nos produzir a nós mesmos de novo, como novos tipos de sujeitos”175.

Portanto, foi sobretudo por meio de práticas que os tradicionalistas

produziram novos sujeitos e se autoproduziram. Entre as práticas instituídas pelo

movimento tradicionalista gaúcho, o uso da vestimenta esteve em evidência desde a

formação, em 1947, quando no primeiro baile os convidados foram incentivados a

adotá-la. O elemento permeia a publicação de obras literárias, seja pelos intelectuais

do folclore, seja pelos tradicionalistas, além de exposições e matérias jornalistas do

período. Também os cursos de folclore oferecidos incluíam em sua grade curricular

a disciplina Indumentária Gaúcha.

171

CORREIO DO POVO. Pela primeira vez no Brasil, um curso sobre Tradicionalismo. Porto Alegre, 5 jul. 1959. Acervo da Biblioteca Nacional - RJ. 172

DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Folclore é curso superior. Porto Alegre, 11 abril 1965. Acervo da Biblioteca Nacional - RJ. 173

CORREIO DO POVO. Primeira turma de Folclore receberá diplomas amanhã. Porto Alegre, 9 jan. 1969. 174

LAYTANO, Dante de. Folclore do Rio Grande do Sul: levantamento dos costumes e tradições gaúchas. Caxias do Sul: EDUCS/Nova Dimensão, 1987, p. 158-162. 175

BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998, p. 49.

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68

2.2 VESTINDO O GAÚCHO TRADICIONALISTA: PRIMEIRAS REPRESENTAÇÕES

DO VESTUÁRIO

Embora a indumentária tenha sido institucionalizada somente no ano de 1961,

os participantes do movimento tradicionalista não deixaram de utilizar o vestuário

considerado “típico” do gaúcho de outrora entre 1947 e 1961. Nessa corrida entre

Comissão Gaúcha de Folclore e Instituto de Tradição e Folclore, o vestuário foi um

dos temas abordados por ambos os grupos, resultando em algumas publicações que

serviram de referência para legitimar o traje, trazendo “indícios do passado no

presente”176. Embora sem pesquisa específica, já que o próprio movimento

tradicionalista estava no seu início, o vestuário do gaúcho era necessário. Era uma

forma de “representação no sentido de presentificação do ausente”177. O gaúcho já

não mais existia, mas tinha de estar presente.

Apesar das poucas leituras e pesquisas178 disponíveis em 1947, os jovens do

movimento tradicionalista tinham o mínimo de referências para iniciar os trabalhos já

vestidos de gaúchos, e não deixaram de representar-se como tal. Os livros de

história estavam repletos de pistas que poderiam contribuir para a representação do

vestuário. A vasta história do Rio Grande do Sul, marcada por guerras e revoluções

de dimensão nacional e internacional, seguramente em algum momento fizera parte

do conteúdo escolar dos jovens.

Paralelamente à história registrada nos livros, o homem do campo ainda vivia

naturalmente seus usos e costumes. Os jovens pioneiros, embora residissem na

cidade, tinham sua origem no campo, logo as referências sobre o trajar do gaúcho

vinham do dia a dia desse campeiro. Dessa forma, na primeira aparição pública e

oficial do “Piquete da Tradição” do Colégio Júlio de Castilhos, por ocasião do

translado dos restos mortais de David Canabarro, em 5 de setembro de 1947, como

mostra a Figura 2 deste estudo, todos se “trajaram sobriamente à moda

campeira”179.

176

BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru: EDUSC, 2004, p. 16 177

CHARTIER, Roger. Poderes e limites da representação. Porto Alegre: UFRGS, 2002, p. 165. 178

Paixão Côrtes e Barbosa Lessa registram que intensificaram as leituras no primeiro ano e estavam aptos para discutir sobre o ideal de homem do campo apenas no fim do ano de 1948. Ver: LESSA, Barbosa; CÔRTES, Paixão. Danças e andanças da tradição gaúcha. Porto Alegre: Garatuja, 1975, p. 101. 179

CÔRTES, João Carlos Paixão. Origem da Semana Farroupilha e primórdios do Movimento Tradicionalista. Porto Alegre: Evangraf, 1994, p. 65-71.

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69

Para o encerramento das atividades que o grupo denominou como Ronda

Gaúcha, foi escolhido o dia 20 de setembro, data de início da Guerra dos Farrapos

ou Revolução Farroupilha180, quando se realizou um “Baile Gauchesco”, conforme

cartaz de divulgação (ver Anexo 3). Segundo Paixão Côrtes, para o evento foi

produzido um ambiente decorado com diversos acessórios que lembravam a vida no

campo, como “real fogo-de-chão para servir café de chaleira e chimarrão. Via-se

ainda uma ramada, casa de João-de-barro, pelego estaqueado, bancos de cortiça,

guampa de boi Franqueiro, arreios pendurados, pastel-de-carreira”,

complementando com música regional, dança, trovas e verso. Côrtes conta que todo

o contexto da ambientação do local incentivou as pessoas a participarem trajadas

com vestuário gaúcho.

A esse respeito, Roger Chartier assegura que “as representações possuem

uma energia própria, e tentam convencer que o mundo, a sociedade ou o passado é

exatamente o que elas dizem que é”181. Portanto, é necessário estar alerta para o

que ele chama de “meios e procedimentos da representação”182, o conjunto de

dispositivos e materiais que constituem o aparato formal dessa anunciação.

O resultado foi satisfatório, o evento atraiu jovens trajados de gaúcho,

devidamente representado, e o concurso com premiações “aos mais tipicamente

vestidos” contribuiu para a disseminação daquela que seria, mais tarde,

institucionalizada como indumentária gaúcha. Côrtes descreve:

A promoção incentivou àqueles que, ainda receosos de serem ridicularizados por trajarem roupas campesinas, as vestissem e fossem divulgar as autênticas vestes da vida rural, participando dos “prêmios valiosos aos mais tipicamente vestidos”, conforme constava nos cartazes e propagandas desse evento. Na foto [...], vemos Juliano José Larte Simch (que era canhoto), um dos vencedores, simbolizando o gaúcho atual (bombacha, bota, tirador, guaiaca, pala atirado às costas, chapéu de aba larga, atc.) e eu, vestindo cheripá e ceroula de crivo, guaiaca com moeda, bota com espora de prata encabrestada, boleadeira à cintura, vincha, chapéu de aba curta, pala ao ombro, lenço, faca prateada, etc., considerado gaúcho à moda antiga, segundo a comissão julgadora, composta pelo

180

Guerra dos Farrapos ou Revolução Farroupilha foi um conflito que eclodiu no Rio Grande do Sul em 20 de setembro de 1835, perdurando por dez anos entre o governo imperial e fazendeiros produtores de charque, que exigiam liberdade política e econômica no sul do país. Do acordo final entre fazendeiros e império resultou uma narrativa histórica que privilegiou os fazendeiros, em razão da produção historiográfica que buscava uma identidade gaúcha a partir da segunda metade do século XIX. 181

CHARTIER, Roger. Defesa e ilustração da noção de representação. Fronteiras: Revista de História. Dourados - MS, v. 13, nº 24, p. 15-29, 2012, p. 23. 182

Ibidem, p. 20.

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70

historiador Manoelito de Ornellas e pelo poeta-desenhista Amandio Bica.183

O convite para atuar como avaliador do vestuário a Manoelito de Ornellas

legitimava não só o concurso, mas também o próprio evento, pois já era considerado

um importante escritor sobre os costumes no Rio Grande do Sul. Além de Manoelito,

fez parte como avaliador o uruguaio Amandio Bicca Quintana, poeta e desenhista de

temas gaúchos, que pode ter contribuído com referências identitárias platinas, já que

desde o final do século XIX a identidade gaúcha estava em evidência no Uruguai,

com a fundação da Sociedad La Criolla em Montevidéu. Segue imagem citada por

Côrtes de um dos vencedores do concurso, posando com o próprio autor e

idealizador do evento, Paixão Côrtes:

Figura 5 - João Carlos Paixão Côrtes e Juliano José Laerte Simch no baile

gauchesco do Colégio Júlio de Castilhos, em 1947.184

183

CÔRTES, João Carlos Paixão. Origem da Semana Farroupilha e primórdios do Movimento Tradicionalista. Porto Alegre: Evangraf, 1994, p. 104. 184

Ibidem, p. 104.

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71

A foto faz parte de uma sequência de 11 imagens do evento, publicadas na

obra “Origem da Semana Farroupilha”, de Paixão Côrtes, apresentando as

atividades realizadas na noite. É possível perceber que “as autênticas vestes da vida

rural”, citadas por Côrtes, refletem na indumentária proposta mais tarde por Antonio

Augusto Fagundes, uma vez que os trajes selecionados pelos jovens retratados na

imagem trazem elementos semelhantes aos observados nas vestimentas propostas

por Fagundes e descritos na obra do autor.185 No entanto, a comissão avaliadora

classificou os trajes da Figura 5 entre “gaúcho à moda antiga” e “gaúcho atual”,

conforme sinalizou Côrtes, enquanto Fagundes indica as datas em que foram

utilizadas pelos gaúchos.

Manoelito de Ornellas, que também realizava pesquisas sobre o gaúcho em

1947 para o seu livro “Gaúcho e Beduínos: a origem étnica e a formação social do

Rio Grande do Sul”, publicado no ano seguinte, assinava uma coluna semanal do

jornal Correio do Povo sobre o Rio Grande do Sul e os costumes dos gaúchos.

Paixão Côrtes, após o evento, escreveu um artigo em que dizia estar satisfeito com

a iniciativa dos jovens, os moços rio-grandenses se vestiram de gaúcho, usaram

bombachas e chiripás e as mulheres, vestidos simples, com tranças e laços de fita

nos cabelos, um alvoroço de gaúchos com trajes típicos.186

As referências gaúchas circulavam de diferentes formas entre os jovens. Os

elementos para a produção do vestuário do “gaúcho atual” estavam em evidência,

pois a bombacha ainda era utilizada pelo homem do campo daquele período. E para

a elaboração do vestuário de Paixão Côrtes, jovem à esquerda na Figura 5, o qual

denominaram “gaúcho à moda antiga”, as referências derivavam da Revolução

Farroupilha. Nesse contexto, a peça principal do vestuário masculino era o chiripá, e

por essa razão foi chamado por Fagundes de “chiripá farroupilha”, termos que serão

analisados no capítulo seguinte.

185

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 19-30. 186

CÔRTES, João Carlos Paixão. Origem da Semana Farroupilha e primórdios do Movimento Tradicionalista. Porto Alegre: Evangraf, 1994, p. 99.

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Após esse primeiro ano, os jovens passaram a se dedicar à leitura. Côrtes e

Lessa afirmam que “aí por fins de 1948 nós dois já estávamos doidamente

mergulhados na leitura da bibliografia de História, Folclore, etc”187. O movimento

estava se disseminando pelo estado do Rio Grande do Sul, era necessário criar um

repertório de elementos representativos, porém fundamentados na literatura. Em

1952 consta que foi realizada na cidade de Pelotas uma Assembleia Tradicionalista

que reuniu sete Centros de Tradições Gaúchas e, em 1954, quando do I Congresso

Tradicionalista, foram 36 CTGs.188 Dessa forma, com o advento do movimento,

seguiram buscando referências para compor os elementos da tradição gaúcha, entre

eles a indumentária.

Cabe ressaltar que são três as principais obras dedicadas exclusivamente à

indumentária gaúcha publicadas no Rio Grande do Sul entre 1947 e 1961, período

anterior à aprovação da tese de Antonio Augusto Fagundes que institucionalizou a

indumentária gaúcha tradicionalista. São elas: “Vestimenta do Gaúcho”, de autoria

de Paixão Côrtes, publicada pela Revista do Globo em 1953 e em formato de livro

em 1961; “História do Traje do Gaúcho Brasileiro”, de 1955, com ilustrações de

Isolde Brans, coleção do Museu Júlio de Castilhos, em Porto Alegre; e

“Apontamentos para o estudo da indumentária no Rio Grande do Sul”, publicada em

1957 por Athos Damasceno, integrante da Comissão Gaúcha de Folclore. Dentre as

obras citadas, apenas a última, de Damasceno, foi citada por Antonio Augusto

Fagundes.

A pesquisa realizada por Paixão Côrtes e publicada na Revista do Globo em

1953 serviria como guia para os adeptos do movimento gaúcho naquele período,

primeiro em razão da falta de fontes imagéticas sobre a indumentária gaúcha, ou

pelo menos do acesso a elas, e segundo pela popularidade da Revista do Globo,

periódico que mais circulava no período. A Revista do Globo pertencia à Livraria do

187

LESSA, Barbosa; CÔRTES, Paixão. Danças e andanças da tradição gaúcha. Porto Alegre: Garatuja, 1975, p. 101. 188

GARCIA, Maria Arita Madruga. Breve retrospectiva dos Primeiros Congressos Tradicionalistas. Eco da Tradição. Caderno Piá do Sul. Porto Alegre, nº 149, jan. 2014, p. 1. Acervo do Movimento Tradicionalista Gaúcho - RS.

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73

Globo, a maior casa editorial do Sul do Brasil, fundada em 1883, responsável pela

publicação dos principais editoriais do período. A revista foi lançada em 1929 e

circulou até 1967, quinzenalmente, de forma interrupta. Composta em sistema

tipográfico, variava entre 48 e 70 páginas, com tamanho aproximado de 20,5 x 27

cm.

A revista surgiu num momento político e cultural crítico, com escassos

periódicos no estado do Rio Grande do Sul, sendo inclusive apoiada pelo

governador Getúlio Dornelles Vargas. Constituída por textos e imagens, configurou-

se como um dos mais importantes títulos do país, incluindo correspondentes no

exterior. Entre os editores a revista contou com personalidades como Érico

Veríssimo e Henrique Bertaso, além de ilustradores como Tarsila do Amaral e Di

Cavalcanti, entre outros. Publicava textos de importantes escritores dedicados à

temática regional gaúcha, como Manoelito de Ornellas, Athos Damasceno Ferreira,

Augusto Meyer, Érico Veríssimo, Paixão Côrtes e Barbosa Lessa, que também foi

funcionário da revista. Divulgou obras de Lauro Rodrigues, Darci Azambuja, Simões

Lopes Neto, Moysés Vellinho e Barbosa Lessa. Todos contribuíram para a

disseminação da representação do gaúcho.189

A Revista do Globo de número 595, de 19 de setembro de 1953, trazia

pesquisas de Paixão Côrtes sobre a vestimenta do gaúcho sob o título “Revivendo a

Querência”. Além desse artigo, a edição era composta de mais três textos dedicados

à temática gaúcha190, valorizando os apontamentos de Côrtes. Segue imagem

central do artigo:

189

PUC-RS. DELFOS - Espaço de Documentação e Memória Cultural. Revista do Globo. s/d. Disponível em: <http://www.pucrs.br/delfos/?p=globo>. Acesso em: 10/12/2017. KARAWEJCZYK, Mônica. “O Voto de saias”: breve análise das imagens veiculadas na Revista do Globo (1930-1934). História, Imagem e Narrativas. Rio de Janeiro, nº 3, ano 2, set. 2006. 190

São eles: Barbosa Lessa, com “A heroína desprevenida no rastro de Ana Terra”, reportagem que descrevia a experiência de viagem pelo interior do Estado do Rio Grande do Sul de Adolfo Celi, diretor do filme “Ana Terra”, inspirado em “O tempo e o Vento”, onde Lessa atuou como consultor de costumes; Gustavo Renó, jornalista que atualizou os leitores sobre o filme “Ana Terra” que viria a ser gravado no Rio Grande do Sul; e a edição ainda trazia o conto “Duelo de Farrapos”, de Simões Lopes Neto.

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Figura 6 - Vestimenta do Gaúcho, Paixão Côrtes.191

Em suas pesquisas Paixão Côrtes dividiu em dois modelos o vestuário do

gaúcho, cada um representando uma época distinta: gaúcho antigo e gaúcho atual,

conforme denominação citada por Manoelito de Ornellas em 1947. Porém, de

acordo com o autor, suas pesquisas foram elaboradas tendo como fontes três

importantes viajantes europeus que passaram pelo Sul do Brasil e relataram em

seus diários de viagem os usos e costumes dos homens que lá viviam. Conta o

autor:

As investigações e estudos feitos, baseiam-se em observações e depoimentos deixados por viajantes estrangeiros que outrora cruzaram o pago rio-grandense. As mais antigas gravuras conhecidas são de autoria de Debret e datam do princípio do século XIX. As descrições deixadas pelo inglês Nycolau Dreys e as do francês Auguste de Saint-Hilaire, publicadas nos meados do século XIX, são os elementos obrigatórios de consulta, embora contenham

191

CÔRTES, Paixão. Revivendo a Querência. Revista do Globo. Porto Alegre, ano XXIV, nº 595, 19 set. 1953, p. 44. Acervo da Biblioteca Central Irmão José Otão - PUC-RS.

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nestas obras, nada mais nada menos, do que impressões de seus diários de viagem.192

Ao exame das demais partes do texto, percebe-se que Côrtes opta por

apresentar tais modelos de maneira didática: enumera as peças dos trajes e

relaciona com descrição em formato de glossário. Entretanto, o autor não indica a

localização das suas referências nos referidos diários de viagem.

Figura 7 - Descrição dos trajes.193

Omitir a localização das referidas fontes não era exclusividade de Côrtes,

publicações posteriores usam da mesma metodologia de escrita, incluindo as dos

intelectuais e historiadores do período. Entretanto, o fato de indicar as obras

consultadas de maneira geral na introdução, de certa forma, legitimava a pesquisa,

novamente publicada em 1961 nesse mesmo formato de glossário.194

A segunda obra sobre a indumentária gaúcha entre as principais escritas no

período anterior à aprovação da tese de Antonio Augusto Fagundes foi publicada em

1955, intitulada “História do Traje do Gaúcho Brasileiro”, com ilustrações de Isolde

Brans e texto de Dante de Laytano, em formato de livreto, fazendo parte da coleção

do Museu Júlio de Castilhos, em Porto Alegre. No texto o autor também utiliza como

192

CÔRTES, Paixão. Revivendo a Querência. Revista do Globo. Porto Alegre, ano XXIV, nº 595, 19 set. 1953, p. 44. Acervo da Biblioteca Central Irmão José Otão - PUC-RS. 193

Ibidem, p. 45. 194

Idem. Vestimenta do Gaúcho. Porto Alegre: Edição TRADISUL, 1961.

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referência os relatórios dos viajantes, porém acrescenta outros historiadores do final

do século XIX e início do século XX, indicando suas fontes ao longo de todo o texto,

apontando inclusive as páginas das mesmas.

Na introdução do trabalho fica claro o posicionamento do autor diante da

identidade gaúcha quando diz: “E por suas tradições gloriosas, através de inúmeros

e meritórios atos que o imortalizaram nas páginas refulgentes da nossa História,

soube o gaúcho da velha estirpe manter-se nobremente no cumprimento de seus

deveres [...].” E segue afirmando o objetivo da publicação: “Daí o propósito de salvar

do esquecimento as nossas mais caras tradições, cultuando, ao mesmo tempo, o

passado em seus feitos memoráveis, revivendo também usos e hábitos tipicamente

gauchescos.”195 No entanto, no texto, acompanhado das ilustrações de Brans196,

Laytano discorre sobre os homens do Rio Grande do Sul e seus respectivos

vestuários ao longo do tempo, e se mantêm as descrições de suas fontes.

A terceira, e mais extensa, publicação foi “Apontamentos para o estudo da

indumentária no Rio Grande do Sul”, publicada em 1957 por Athos Damasceno.

Diferentemente das obras anteriores, o autor não enfatiza o gaúcho, talvez porque

estava entre os intelectuais que tinham restrições em relação ao movimento

tradicionalista gaúcho.

Sua obra faz alguns apontamentos principalmente sobre os açorianos, os

alemães, os índios e os negros, as poucas vezes que cita a palavra gaúcho o faz

nas entrelinhas, como ao abordar as diferentes formas de uso do “xiripá”197,

observando que “entre os gaúchos era a indumentária masculina que brilhava”198,

quando explica que no caso dos negros eram as mulheres que se destacavam com

a vestimenta. Contudo, muitos dos elementos descritos sobre os trajes no decorrer

do texto iriam reverberar na indumentária do gaúcho, como ponchos, bragas, botas,

jalecos, boleadeiras, entre outros.199 Embora Damasceno dedique atenção ao

vestuário feminino dos grupos citados, nas poucas vezes que cita o gaúcho segue a

mesma linha de Laytano e Côrtes, exila-o em um universo masculino apenas.

195

LAYTANO, Dante. História do Traje do Gaúcho Brasileiro - Ilustrações de Isolde Brans. Porto Alegre: Museu Júlio de Castilhos, 1955. Acervo da Biblioteca Central Irmão José Otão - PUC-RS. 196

As ilustrações de Isolde Brans são releituras de aquarelas de Jean Baptiste Debret. 197

FERREIRA, Athos Damasceno. Apontamentos para o estudo da indumentária no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Faculdade de Filosofia/UFRGS, 1957, p. 77. 198

Ibidem, p. 81. 199

Ibidem, p. 75.

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77

No que se refere às fontes, Damasceno adota a mesma metodologia de

Laytano, utiliza como fontes principalmente os relatos de viajantes dos séculos XVIII

e XIX, além de historiadores, sociólogos e outros escritores. Porém, faz uso de

testemunhos orais, cuja veracidade, todavia, gera dúvida, visto que sua pesquisa

tem como recorte temporal a primeira metade do século XIX.

Apesar das poucas pesquisas sobre o vestuário do gaúcho, o movimento

tradicionalista estava tomando grandes proporções em termos de número de

adeptos. Logo, o vestuário precisava ser institucionalizado oficialmente para que,

assim como as demais práticas, essa também fosse selecionada e definida como

gaúcha. Para tanto, seriam necessárias pesquisas. Nesse contexto, Antonio Augusto

Fagundes, que passou a fazer parte do movimento e já tinha iniciado pesquisas

sobre o tema para a sua disciplina História da Indumentária no Curso de Folclore200,

intensificou seu trabalho e institucionalizou o vestuário do gaúcho junto ao

movimento tradicionalista, em 1961.

200

DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Os quatro trajes masculinos fundamentais do RGS. Porto Alegre, 7 fev. 1971. DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Folclore é curso superior. Porto Alegre, 11 abril 1965. Acervo da Biblioteca Nacional - RJ.

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78

CAPÍTULO III – A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA INDUMENTÁRIA GAÚCHA:

IMAGENS QUE (RE)VESTEM E REVERBERAM

NO TRADICIONALISTA GAÚCHO

O Dr. Antonio Augusto Fagundes [...] é, indubitavelmente, o maior pesquisador, dentro do Brasil, da indumentária gauchesca, trabalho a que se dedica por mais de dezessete anos sobre o assunto, vem sendo considerado a respeito, autoridade inconteste. Mas não parou aí. Recuou no tempo, buscando as mais remotas origens universais que possam ter influído direta ou indiretamente nas formas e funcionalidades das vestes do nosso gaúcho desde o seu aparecimento. Para tanto, além de pesquisas de campo, reuniu e detém, talvez, a mais robusta biblioteca específica, apoiada por farta iconografia e hemeroteca afins. (Glaucus Saraiva, 1976)201

A epígrafe é parte do prefácio escrito por Glaucus Saraiva na obra

“Indumentária Gaúcha”, de Antonio Augusto Fagundes, conhecido pesquisador do

tema que institucionalizou oficialmente o vestuário do gaúcho junto ao movimento

tradicionalista, por meio de pesquisas realizadas. A obra, que teve oito edições,

afirma no prefácio que o autor era considerado o maior pesquisador brasileiro sobre

o tema, uma “autoridade inconteste”. Confesso que essas palavras me

acompanharam nos últimos anos e impulsionaram naturalmente esta pretensa tese

doutoral. Todavia, sem a pretensão de desconstruir, esta pesquisa se dedica a

analisar as referências históricas que reverberam na vestimenta proposta por

Antonio Augusto Fagundes.

Após a efetivação do movimento tradicionalista gaúcho no Brasil em 1947, as

instituições iniciaram um amplo processo de seleção das atividades e ações que,

inspiradas no passado histórico do gaúcho, fariam ou não parte do repertório das

práticas do movimento. Dessa forma, a cada Congresso Tradicionalista realizado,

eram apresentadas teses de diferentes assuntos, tendo por objetivo legitimar a

atuação do referido movimento. Entre elas, em 1961, no VIII Congresso

Tradicionalista, foi apresentada e aprovada a tese “O Vestuário do Gaúcho”, que

instituía o traje gaúcho202, um estudo realizado por Antônio Augusto Fagundes e

apresentado na ocasião por este e por Ary Gonçalves, representantes do CTG

201

Cf.: FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Editora IGTF, 1977, p. 3. 202

Ata do VIII Congresso Tradicionalista, realizado entre 20 e 23 de julho de 1961, em Taquara, Rio Grande do Sul. Acervo do Movimento Tradicionalista Gaúcho - RS.

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79

Galpão Universitário.203 Em 1977 a obra foi editada e ampliada, dessa vez com

ilustrações de Jorge Ibiratan Lopes, e novamente apresentada e aprovada no 23º

Congresso Tradicionalista, no ano seguinte.204

Verifica-se que, para apresentar o conjunto de elementos selecionados, o

movimento tradicionalista optou sobretudo por práticas imagéticas, como

apresentações de dança, declamações de poesias, exposições e, principalmente, a

indumentária. Ou seja, imagens são frequentemente utilizadas para divulgar os

elementos selecionados, tendo como finalidade mantê-los no imaginário daqueles

que os seguem. A esse respeito, Alberto Manguel confirma que “As imagens, assim

como as histórias, nos informam, porém só podemos ver as coisas para as quais já

possuímos imagens identificáveis”205. Portanto, só é possível identificar as imagens

porque foram criadas e registradas pela literatura, já produzidas pelos intelectuais,

que, segundo Côrtes e Lessa, eram tomados como referência.

A vestimenta tornou-se obrigatória a todos aqueles que seguem o movimento

tradicionalista, foi o elemento primordial na construção da representação, e se

configura como reafirmação da identidade gaúcha, revestindo os sujeitos e

permitindo serem reconhecidos como gaúchos. Nesse sentido, o vestuário é

analisado sob a ótica de alguns pensadores, como Diana Crane, Daniel Roche e

Roland Barthes, que entendem a vestimenta como instrumento de representação

social e cultural e, como indumentária, um importante veículo de significação.

Sabe-se que a vestimenta está além da funcionalidade ligada à proteção, ela

indica a identidade de quem a veste, pois o vestir pode representar um ato de

significação. A esse respeito, Diana Crane, importante socióloga americana,

apresenta o papel desempenhado pelo vestuário na construção social da identidade.

Segundo a autora, “As roupas, como artefatos, criam comportamentos por sua

capacidade de impor identidades sociais”206. Ainda a esse respeito, Stuart Hall

afirma que o complemento da identidade é preenchido a partir do exterior, pela

203

O Centro de Tradições Gaúchas “Galpão Universitário” era uma instituição fundada junto à Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, e tinha como Patrão (presidente) Antonio Augusto Fagundes. Em 1962, sediou o II Congresso Internacional de Tradições Gaúchas, evento que recebeu adeptos dos Estados Unidos, do Brasil e da Argentina e que teve a indumentária como um dos principais temas discutidos, segundo notícias veiculadas no Jornal do Dia de 1º de julho de 1962 e na Folha da Tarde de 1º de outubro de 1962. 204

PAIXÃO, Darcy. Prenda Tradicionalista. Santa Maria: Palloti, 1995, p.112. 205

MANGUEL, Alberto. Lendo imagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 21. 206

CRANE, Diana. A Moda e seu papel social: classe, gênero e identidade das roupas. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2006, p. 22.

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80

forma como o indivíduo imagina ser visto por outros, criando formas de

representação. Ou seja, a vestimenta é escolhida para ser um dos elementos que o

complementam.

Dessa forma, o vestuário gaúcho se configura como um importante aliado na

construção, preservação e identificação dessa identidade. Nessa mesma

perspectiva, Diane Crane observa que, como nos séculos anteriores, quando as

roupas constituíam o principal meio de identificação do indivíduo no espaço público,

neste continuam sendo um meio de identificação, por isso a necessidade de

institucionalizá-las.

A pesquisa apresentada por Antonio Augusto Fagundes, por ocasião do VIII

Congresso Tradicionalista, teve parecer favorável “devido a importância do assunto

e o interesse dos congressistas pelo mesmo, a tese foi lida na íntegra”207, como

registra a ata. Contudo, houveram alguns questionamentos por parte dos

congressistas sobre certos elementos do gaúcho que, já publicados pela literatura,

não constavam no texto. Além disso, fizeram objeção quanto à utilização de palavras

como fantasiar e gringalhada, e um deles discordou da padronização dos trajes que

estava sendo proposta, dizendo não serem militares. Por fim, o autor defendeu sua

pesquisa, respondendo a todos os questionamentos, procedeu-se à votação e a tese

foi aprovada.

No texto, publicado em formato de livro, Antonio Augusto Fagundes utiliza-se

da introdução para alertar o movimento tradicionalista dos erros cometidos por seus

seguidores quanto ao vestuário. Cabe dizer que foi uma forma de justificar sua tese.

Seguem as palavras do autor:

Parece incrível que parte dos tradicionalistas do Rio Grande do Sul, guardiães por definição da pureza do folclore e defensores de seus cânones tradicionais, são exatamente os maiores responsáveis pela deturpação da indumentária gaúcha [...]. Não são os artistas, nem os turistas, mas simplesmente aqueles que se consideram os sacerdotes do culto da tradição os que fantasiam a indumentária [...].208

São muitas as expressões utilizadas pelo autor que demonstram como eles

se viam diante do movimento tradicionalista, chegando ao extremo de se intitular

207

Ata do VIII Congresso Tradicionalista, realizado entre 20 e 23 de julho de 1961, em Taquara, Rio Grande do Sul. Acervo do Movimento Tradicionalista Gaúcho - RS. 208

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 5.

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81

“Sacerdotes do culto da tradição” e assumir o papel de “guardiães” dos elementos

do passado que estão “fantasiando”, palavra que foi questionada quando da

apresentação da tese no VII Congresso, que denominou “cânones tradicionais”

selecionados por eles. Com um discurso carregado de significados, Fagundes

encerra dizendo que o movimento precisa se conscientizar e “fazer seus seguidores

se corrigirem”.

O autor, ao entrar no tema, logo no primeiro parágrafo, deixa explícita sua

tese, afirmando que são quatro os trajes principais do gaúcho ao longo da história:

São quatro os complexos da indumentária gauchesca masculina no Rio Grande do Sul, se atentarmos para a peça que domina o conjunto: 1º) do chiripá primitivo; 2º) das bragas; 3º) do chiripá farroupilha e 4º) das bombachas. A cada um desses complexos corresponde, naturalmente – e também a grosso modo – uma indumentária feminina.209

Os complexos da indumentária a que se refere o autor são as peças inferiores

do vestuário masculino que dominam ou se destacam no conjunto. Segue ilustração

de cada um dos trajes:

Figura 8 - Chiripá primitivo, braga, chiripá farroupilha e bombacha.210

209

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 6. 210

As imagens foram extraídas da obra de Fagundes, conforme citação, porém foi realizada alteração de tonalidade pela autora, a fim de destacar cada uma das peças que domina o conjunto, conforme cita o autor. Ibidem, p. 33, 35, 37 e 39 (grifo nosso).

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82

Apesar de mencionar o vestuário da mulher, Fagundes prioriza na sua

pesquisa o traje masculino. Das 66 imagens constantes no interior do livro, apenas

quatro se referem à indumentária da mulher gaúcha – no entanto, para cada uma

apresenta um modelo feminino. E, além da divisão dos trajes masculinos por

modelos específicos, o autor indica o período em que foi utilizada cada uma das

peças do vestuário e sua composição, de acordo com a História do Rio Grande do

Sul. A primeira imagem apresentada corresponde ao período entre 1750 e 1820,

incluindo dois trajes masculinos e dois trajes femininos. A segunda corresponde aos

anos de 1820 a 1865, com um traje masculino e um traje feminino. E a terceira exibe

trajes que surgiram em 1865 e seguem até os dias atuais. A seguir observam-se os

trajes gaúchos masculinos propostos pelo autor, de acordo com o período:

Figura 9 - Trajes gaúchos, 1750-1820 - primeira época.211

Figura 10 - Traje gaúcho, 1820-1865 - segundo época.212

211

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 33-36. 212

Ibidem, p. 37-38.

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83

Figura 11 - Traje gaúcho, 1865-1976 - terceira época.213

Alguns Centros de Tradições Gaúchas mantêm as imagens apresentadas

anteriormente expostas a fim de decorar os ambientes, outros fazem releituras

aplicando cores com o objetivo de rememorar a indumentária institucionalizada, uma

forma lúdica de orientar seus associados a utilizar o vestuário. As instituições

procuram aproveitar-se da fabricação de imagens para trazer à tona o que foi

selecionado como práticas representativas do gaúcho, criando um patrimônio de

imagens à disposição, formando, segundo Alberto Manguel, um “museu

imaginário”214. Dessa forma, despertam o imaginário daqueles que as seguem. Tal

ação é possível perceber por meio da epígrafe do primeiro capítulo, quando o autor

afirma que as “sagradas vestes da tradição” seriam capazes de transformar sujeitos

em soldados. A esse respeito, Roland Barthes aponta que “o vestuário é sempre

implicitamente concebido como o significante particular de um significado geral que

lhe é exterior”215, ou seja, as vestes “sagradas” (significante) estão à disposição do

significado maior, que é o Gaúcho – o vestuário é o significante que o complementa.

Por meio do vestuário, chamado de indumentária gaúcha, cria-se uma

imagem do que se quer representar, aflorando a imaginação num retorno ao

passado. Segundo Peter Burke, “imagens nos permitem imaginar o passado de

forma mais vívida”216. Esse conjunto de referências históricas incorporadas às

imagens cria uma forte relação com a memória, instiga o imaginário, resultando na

representação identitária do gaúcho ideal, que faz com que as pessoas se

213

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 39-40. 214

MANGUEL, Alberto. Lendo imagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 28. 215

BARTHES, Roland. Imagem e Moda. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 262. 216

BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru: EDUSC, 2004, p. 16.

Page 85: 0 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Edinéia

84

reconheçam e se instituam como tal. De modo que, ao se vestirem, adquirem um

intenso poder de representação, sentem-se transformadas no próprio personagem.

Sandra Jatahy Pesavento e Roger Chartier defendem que as representações

dotam o presente de sentidos e estabelecem relações de poder. Embora o

representante não seja o representado, mas uma imagem, ele traz semelhanças,

ficando no lugar da realidade.217

Ao conceituar a representação, Roger Chartier faz um percurso por definições

anteriores e, entre elas, cita o dicionário de língua francesa publicado por Furetère

em 1690. Assim, atesta que representação é a imagem que remete a uma ideia e

que permite ver o objeto, pessoas, coisa ou pessoa ausente. Ou seja, a

representação nos permite ver o ausente, substituindo por uma imagem capaz de

representá-lo adequadamente. Representar, portanto, é fazer conhecer as coisas

mediatamente a imagem, é a exibição de algo, a demonstração de uma presença,

ou seja, fazer presente alguma coisa.218 Seguindo esse conceito, pode-se dizer que,

ao se vestirem com a indumentária proposta por Antonio Augusto Fagundes, os

sujeitos tornam-se representantes “adequados” do gaúcho de outrora.

Ainda segundo Chartier, o conceito de representação foi e é um precioso

apoio para que se possa assinalar e articular as diversas relações que os indivíduos

ou grupos mantêm com o mundo social, como “as práticas e signos que visam fazer

reconhecer uma identidade social, a exibir uma maneira própria de ser no mundo”219.

Como por exemplo “as formas institucionalizadas pelas quais uns „representantes‟

encarnam de maneira visível, „presentificam‟ a coerência de uma comunidade, a

força da identidade ou a permanência de um poder”220.

A institucionalização da indumentária gaúcha contribuiu para garantir a

“presentificação” do ausente, a partir dela os sujeitos encarnam o gaúcho,

contribuindo para o fortalecimento da identidade. Nesse sentido, Diane Crane afirma

que o vestuário desempenha um importante papel, “pois as roupas, como artefatos,

„criam‟ comportamentos por sua capacidade de impor identidades sociais e permitir

217

PESAVENTO, Sandra J. Representações. Revista Brasileira de História. São Paulo, ANPUH/ Contexto, v. 15, nº 29, 1995. 218

CHARTIER, Roger. Defesa e ilustração da noção de representação. Fronteiras: Revista de história. Dourados - MS, v. 13, nº 24, jul./dez. 2011, p. 16-17. 219

Ibidem, p. 20. 220

Ibidem, p. 20.

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85

que as pessoas afirmem identidades”221. Por sua vez, Pesavento diz que a

presentificação de uma ausência é atributo de toda representação, que em essência

é um “estar no lugar de”. Da mesma forma como construções imaginárias, que

podem ser tanto substituição da coisa ou ser ausente, como uma evocação mimética

daquilo que representa222, que se dedica à afirmação da identidade proposta.

Dessa forma, as análises sobre representação que permeiam este trabalho

seguem a ótica de Chartier e Pesavento. No entanto, há de se ter cuidado, pois,

ainda de acordo com Roger Chartier, “as representações possuem uma energia

própria, e tentam convencer que o mundo, a sociedade ou o passado é exatamente

o que elas dizem que é”223.

No que se refere ao imaginário, entende-se como “um sistema de ideias e

imagens de representação coletiva que os homens constroem através da história

para dar significado às coisas”224. E, a esse respeito, “todos nós temos um museu

imaginário de imagens, transmissoras de uma herança do passado, veiculadas pela

memória individual, forjada de acordo com a memória social”225. Dessa forma, é lícito

supor que a indumentária proposta e institucionalizada evoca um sistema de

imagens de representação construídas para dar significado àquele que se

condicionou chamar de gaúcho.

Essa seleção e organização dos elementos de representação por parte das

instituições gaúchas é dotada de um imaginário social permeado de bens

simbólicos. Segundo Bronislaw Baczko, “cada sociedade produz um sistema de

representações e entre estas ocupam um lugar a parte os símbolos e as

imagens”226. O autor ainda ressalta que “o imaginário social é uma das forças

reguladoras da vida coletiva”227, sendo que “os sistemas simbólicos em que assenta

e através do qual opera o imaginário social são construídos a partir da experiência

dos agentes sociais, mas também a partir dos seus desejos, aspirações e

221

CRANE, Diana. A moda e seu papel social: classe, gênero e identidade das roupas. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2006, p. 22. 222

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Palavras para crer: imaginários de sentido que falam do passado. Nuevo Mundo Mundos Nuevos. Paris, v. 6, 2006. 223

CHARTIER, Roger. Defesa e ilustração da noção de representação. Fronteiras: Revista de história. Dourados - MS, v. 13, nº 24, jul./dez. 2011, p. 23. 224

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cultura e representações, uma trajetória. Revista Anos 90. Porto Alegre, v. 13, nº 23/24, p. 45-58, jan./dez. 2006, p. 50. 225

Ibidem, p. 50. 226

BACZKO, Bronislaw. Imaginação social. In: ROMANO, Ruggiero (Dir.). Enciclopedia Einaudi. Vol. 5. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, p. 296-332, 1985, p. 332. 227

Ibidem, p. 311.

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86

motivações”228. Ou seja, as referências presentes na indumentária gaúcha decorrem

dos elementos selecionados da história do gaúcho, porém são resultado de

pesquisas de agentes sociais integrantes das instituições gaúchas e, portanto,

influenciados por seus desejos e aspirações.

3.1 IMAGENS NARRADAS E NARRATIVAS TRADUZIDAS EM IMAGENS:

RELATOS E AQUARELAS NA INDUMENTÁRIA DE FAGUNDES

Examinando as pesquisas já citadas sobre o vestuário do gaúcho realizadas

na década de 1950, assim como a obra de Antonio Augusto Fagundes, observa-se

que as principais fontes históricas utilizadas são os relatos dos viajantes, bem como

as aquarelas produzidas no mesmo período. Imagens permeiam o processo,

pictóricas ou textuais, foram capturadas e narradas pelos viajantes em períodos

históricos específicos, depois selecionadas pelos pesquisadores tradicionalistas

como ideais, e essas, por sua vez, agora são novamente traduzidas em imagens e

palavras.

Sobre essa dinâmica em relação às imagens, Alberto Manguel observa que

as imagens são:

[...] capturadas pela visão e realçadas ou moderadas pelos outros sentidos, imagens cujo significado (ou suposição de significados) varia constantemente, configurando uma linguagem feita de imagens traduzidas em palavras e de palavras traduzidas em imagens.229

Nesse caso, as imagens foram realçadas em relatos e aquarelas, supondo

significados sobre o vestir do gaúcho, pois, conforme já delineado no primeiro

capítulo, esses viajantes as descreveram com um olhar de outro tempo e contexto.

E, portanto, configuram-se como impressões sobre o vestuário. Contudo,

importantes impressões. São fontes balizadoras para construção de novas imagens.

Novas imagens carregadas de sentidos, que se constituem em imagens identitárias

deste tempo.

Essas imagens do vestuário com referenciais gaúchos propostas por

Fagundes foram elaboradas e classificadas como chiripá primitivo, braga, chiripá

228

BACZKO, Bronislaw. Imaginação social. In: ROMANO, Ruggiero (Dir.). Enciclopedia Einaudi. Vol. 5. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, p. 296-332, 1985, p. 311. 229

MANGUEL, Alberto. Lendo imagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

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87

farroupilha e bombacha. Elementos que, por sua vez, foram organizados em

períodos históricos, evocando a época em que o gaúcho utilizava as peças, fazendo

relação com a data do registro pelos viajantes. A seguir estão relacionados os

vestuários do gaúcho, seus respectivos períodos e suas descrições, discriminados

ainda conforme o usuário:

Quadro 1 - Vestuário gaúcho proposto por Antonio Augusto Fagundes.230

1750/1820

Peão das vacarias ­ Chiripá primitivo ­ Palas ou poncho ­ Botas de garrão de potro ­ Esporas nazarenas e chilenas ­ Ceroulas de crivos ­ Faixa larga negra ou cinturão de bolsas, tipo guaiaca ­ Boleadeiras ­ Faca flamenga, adaga e mais raramente facão ­ Lança ­ Camisa ­ Lenço como touca atado à nuca ­ Chapéu, de palha, de feltro ou pança de burro (couro cru) ­ Barbicacho de tentos ou de fita sob o queixo ou nariz ­ Tirador

Patrão das vacarias - Braga/calça ­ Botas de garrão de potro ou preta industrializada ­ Lenço de pescoço ­ Pala ou poncho ­ Tira de pano prendendo os cabelos ­ Chapéu pança de burro (couro cru)

1820/1865

­ Chiripá Farroupilha ­ Botas russilhona (industrializada) ­ Jaleco ­ Jaqueta ­ Pala bichará ou poncho ­ Cabelos compridos trançados

1865/1976

­ Bombachas ­ Botas lajeanas (industrializada) ­ Camisa com colete ­ Chapéu de abas largas e copa baixa ­ Pala-poncho

Ao exame do texto, verifica-se que elementos do vestuário foram surgindo em

cada período, conforme revela o Quadro 1, porém continuavam a ser utilizados nos

períodos subsequentes, exceto no último, quando se excluiu o uso da bota de

garrão, do chapéu pança de burro e do lenço à cabeça na composição com a

bombacha. No entanto, continuam usando, embora em menor número, as

230

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Editora IGTF,1977, p. 9-40.

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88

composições anteriores. A lista de Fagundes aponta o período em que se iniciou o

uso, não se limitando somente a ele.

Embora o texto tenha problemas com a escrita, no sentido de não indicar a

localização das suas fontes, alguns viajantes e artistas são mencionados ao longo

da obra, porém outros constam apenas na bibliografia. Entende-se como problema,

pois “o texto histórico serve-se, em profusão, de notas porque ele não recorre ao

argumento de autoridade”231. Foram citadas em sua bibliografia as seguintes obras:

CERQUEIRA, Dionísio: “Reminiscência da Campanha do Paraguai”: 1865/1870. Edição da Biblioteca Militar - Vols. CXXV e CXXVI Gráfica Laemmert Ltda. - Rio de Janeiro - s/data. DAMASCENO, Athos: “Apontamentos para o estudo da indumentária no Rio Grande do Sul” Separata do Volume FUNDAMENTOS DA CULTURA RIO-GRANDENSE, segunda série, Faculdade Filosofia - UFRGS - s/data. D‟EU, Conde: “Viagem militar ao Rio Grande do Sul (agosto a novembro de 1865)” Coleção Brasiliana, série 5ª, Volume 61, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1936. DOURADO, D. Ângelo: “Os voluntários do martírio” Liv. Echenique - Pelotas - 1896. DREYS, Nicolau: “Notícia Descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul” Instituto Estadual do Livro - Porto Alegre - 1961. [...] GRANADA, Daniel: “Reseña histórico-descritiva de antigas y modernas supersticiones del Rio de la Plata” Editorial Guilhermo Kraft Ltda., Buenos Aires, Argentina, 1947. SALDANHA, Dr. José de: “Diário Resumido e Histórico (Campanha 4ª de 1786 para 1787)” “in” Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1929, volume LI, M.E.S. - Serviço Gráfico, Rio de Janeiro, 1938.232

Além das obras listadas anteriormente, Fagundes cita sete textos jornalísticos

de sua autoria, incluídos na sessão Bibliografia em sua obra Indumentária Gaúcha,

aqui em estudo. Contudo, verificou-se que ao longo do texto o autor menciona ainda

algumas obras e entrevistas orais as quais não constam na bibliografia, e cujas

referências não são assinaladas, mas que serão abordadas ao longo desta análise.

Para definir a composição da indumentária gaúcha do primeiro e segundo

período, Fagundes se baseia nos relatos de José de Saldanha, Auguste de Saint-

Hilaire, Nicolau Dreys e aquarelas de Jean Baptiste Debret, Emeric Essex Vidal e

Juan Manuel Blanes. Logo, a análise inicia com as referidas fontes.

231

PROST, Antoine. Doze lições sobre a história. Belo Horizonte: Autêntica, 2012, p. 235. 232

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Editora IGTF, 1977, p. 29-30.

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89

José de Saldanha – entre os citados, o primeiro a visitar o Rio Grande do Sul,

em 1787, conforme verificado em capítulo anterior – registra algumas palavras, fatos

e impressões que considera importantes para a compreensão do seu texto principal,

discorrendo sob notas explicativas no rodapé do seu diário. Após receber uma visita

de índios minuanos, Saldanha faz um amplo registro, com impressões sobre a

fisionomia, usos e costumes dos referidos índios. O autor justifica seu registro

dizendo: “Eu não me posso dispensar de ajuntar neste lugar tão rezumido, o que

tinha rezervado para hum Suplemento, porem a importância da matéria me

desculpará o excesso.”233

A relevância do tema para o autor fica ainda mais explícita na introdução

elaborada para a nota, quando Saldanha utiliza da teoria de um dos mais

importantes naturalistas, o sueco Caroli Linnaei, que publicou no século XVIII a obra

Systema Naturae, dividindo a natureza em três reinos: animal, vegetal e mineral.234

Saldanha discorre sobre a teoria dizendo que o homem é parte dos primatas no

reino animal, que por sua vez está dividido em Monstruozo, Europeu, Asiático,

Americano e Africano. Contudo, apenas a categoria Monstruozo, Linnaei divide em

três subvariedades. No entanto, em razão da diversidade de índios que encontrou,

Saldanha se diz obrigado a dividir a categoria Americanos também em quatro

subvariedades: Patagoens, Pampas, Minuanos e Tapes. E segue afirmando que o

número seria maior se presenciasse todos os diferentes índios da América.235

Dessa forma, José de Saldanha descreve usos e costumes dos referidos

índios. Cita o autor sobre a composição do vestuário dos minuanos:

Os cabelos soltos e enriçados de que procede não cresceram muito, cobertos pelas costas até os calcanhares, com os cayapis – ou grandes mantas de couro descarnado e sovado com o pelo para o corpo e o carnal para a parte de fora atados com hua tira do mesmo couro, por cima dos hombros, e por diante do pescoço: envolvidos desde a cintura até o joelho com volta e meya de panno de algodão, são estas as suas vestimentas. [...] As suas lanças são humas varas compridas, e direitas que acabam em huma das extremidades com hum palmo ou dois de punhal [...] as bolas e laço, instrumentos comuns e necessarios aos campeiros [...] a faca flamenga com uma

233

SALDANHA, José de. Diário resumido. Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, v. 51, 1938, p. 231. (sic) 234

LINNAEUS, Caroli. Systema naturae. Holmiae: Impesis Direct, Laurentii Salvii, 1758, p. 06 e 20. 235

SALDANHA, op. cit., p. 231-232.

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90

bainha de couro cru, sempre a trazem entalada entre a Tanga de algodão e a cintura pela parte das costas.236

Sobre os visitantes minuanos, Saldanha afirma serem caciques, aqueles que

tomam para si seus bandos, e cita seus nomes, dizendo ainda que um deles, de

nome D. Miguel, havia trabalhado em uma estância como peão, porém retornou para

os seus. Vivem livres com os demais, criando e vendendo alguns produtos criados

por eles, pois circulam livremente entre portugueses e espanhóis. O autor segue

explicando:

A sua vestimenta é hua camisa sobre a Tanga de Algodão e as vezes um ponche Bichará (os ponches de que tanto uso se faz neste continente, tem a figura rectangular como de um cobertor, com huma abertura no centro, pela qual os enfião na cabeça assentando sobre os hombros, e cahindo a metade para diante, e a metade para traz: há-os de differente cores, na cidade de Buenos Ayres, outros mais finos e bem fabricados, a que os Hespanhoes chamão de Palla vendem por seis, ou oito pezos fortes. Também fabricão outros em Missões de algodão, com diversas cores, mais finas e que dão pelo valor de doze a dezesseis pezos dos ditos, e estes são a similhança de huns ricos de tecido de algudão finissimo e Listras de cores delicadas, que se apronptão na cidade de Paraguay, e vizinhas Povoações, e de custo desde noventa a cem pezos fortes. Destes se servem as Pessoas, mais ricas, também para cobertas de cama). [...] outros dos Minuanos trazem os cabelos, e cabeça atados com hum pequeno e sujo lenço [...].237

Os registros de Saldanha se referem sobretudo aos índios e, com base em

suas impressões, percebe-se que o poncho, as armas e o pano de algodão que os

envolvem da cintura até o joelho vêm ao encontro de parte dos elementos do

vestuário do Peão e do Patrão das vacarias propostos por Antonio Augusto

Fagundes, como o denominado chiripá. Além desse, percebe-se ainda nos registros

de viajantes posteriores o uso dessas vestimentas, ou de alguns elementos, por

homens de outros grupos culturais, incluindo europeus, que circularam pelo Rio

Grande do Sul e pela região platina. Auguste de Saint-Hilaire registrou vestimentas

no mesmo espaço, porém de outros grupos, 30 anos após Saldanha e verificou

elementos semelhantes. Tais observações reforçam a afirmação de Fagundes

236

SALDANHA, José de. Diário resumido. Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, v. 51, 1938, p. 233-234. (sic) 237

Ibidem, p. 234. (sic)

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91

quando diz que o gaúcho, bem como sua indumentária, é resultado de uma

composição de culturas.238

Auguste de Saint-Hilaire, naturalista francês, que esteve no Brasil entre 1816

e 1822, registra o vestuário daqueles que lá viviam ou circulavam em diversas

passagens. Porém, diferentemente de Saldanha, não o faz em notas de rodapé, mas

dentro do próprio texto, já que seus objetivos de trabalho eram diferentes. Tal qual

mencionado no primeiro capítulo, seus relatos se apresentam em primeira pessoa, o

que demostra interação com a população, principalmente com os povos autóctones.

Dessa forma, seu relato pode ser classificado, segundo Flora Süssekind e Mary

Louise Pratt, como sentimental.

A obra intitulada “Voyage a Rio-Grande do Sul (Brésil)”, publicada na França

em 1887, é resultado de pesquisas realizadas entre junho de 1820 e maio de 1821.

Nesse espaço de tempo, Saint-Hilaire percorreu o atual estado do Rio Grande do

Sul e o Uruguai. No entanto, no Brasil, até 2002, a obra não tinha sido publicada na

íntegra, sendo excluída sua passagem pelo Uruguai.

Para esta pesquisa será considerado o registro como um todo, pois no

período em questão as terras do atual Uruguai estavam sendo requeridas por

Portugal. Desde 1811, Dom João VI vinha invadindo a chamada Banda Oriental e,

entre idas e vindas e alguns embates, em 1820, uma das batalhas vencidas239

concedia o domínio definitivo a Portugal, sendo assinado um tratado no ano seguinte

oficializando e anexando a Banda Oriental a Portugal sob a denominação de

Província Cisplatina. Pelo menos até a Guerra Cisplatina alguns anos depois, que

fez surgir entre a Argentina e o Brasil, o Uruguai.240 Dessa forma, os estancieiros do

Rio Grande do Sul, que haviam intensificado suas entradas em terras uruguaias

objetivando a pilhagem do gado, promoviam um trânsito frequente entre terras

brasileiras e orientais, chegando a estabelecer estâncias na região.241 Com índios e

brancos atuando nas estâncias, bem como nas guerras, e todos transitando pela

chamada região platina, seus usos e costumes se entrelaçavam.

238

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Editora IGTF, 1977, p. 9. 239

Batalha de Taquarembó. 240

BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. A expansão do Brasil e a formação dos estados na Bacia do Prata: Argentina, Uruguai e Paraguai. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. 241

PESAVENTO, Sandra. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1984, p. 18.

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Sendo o gaúcho resultante dessa miscigenação de homens em circulação por

toda essa região, tornou-se personagem representante também da identidade

argentina e da uruguaia. O movimento de guerras por demarcações de fronteiras,

seja atuando nelas ou fugindo delas, o trabalho nas estâncias, entre outros ensejos,

contribuíram para a semelhança dos hábitos vestimentares. A esse respeito, é

possível verificar comparações feitas por Saint-Hilaire entre as populações por onde

passava. Registra o autor:

Além disso, os homens de Entre-Rios que vi em São Borja são notáveis por sua avantajada estatura [...]. As roupas deles e as dos habitantes do campo de Montevidéu fazem com que eles pareçam bandidos de teatro; eles têm cabelos trançados e um lenço ao redor da cabeça; um outro lenço ligado muito frouxo lhes serve de gravata; para as armas eles usam uma grande faca, comprida pendurada no cinto. Eles usam o chiripá com calça branca com franja. O chiripá é frequentemente listrado em vermelho; em geral eles não usam casaco e as mangas de suas camisas são dobradas como as mangas dos nossos açougueiros.242 (grifo nosso)

A comparação realizada pelo autor se dá entre habitantes do campo de

Montevidéu, no Uruguai, e homens de Entre Rios, na Argentina243, encontrados em

São Borja244, no Rio Grande do Sul, em março de 1821, o que demonstra a

circulação entre regiões. Vê-se que a descrição que faz do vestuário vem ao

encontro do Peão das vacarias nomeado por Fagundes, que usava, segundo o

autor, “Lenço como touca atado à nuca, na cintura o facão, o chiripá e as ceroulas

de crivo”, aqui descrito por Saint-Hilaire como “lenço ao redor da cabeça, grande

faca pendurada no cinto e o chiripá com calça branca de franja”. Sendo que

semelhantes mangas dobradas, que o autor compara com as dos açougueiros,

podem ser vistas na camisa utilizada por Paixão Côrtes na foto exposta na Figura 5.

Quanto ao modelo de chiripá, Auguste de Saint-Hilaire explica o formato e sua

usabilidade: “Vários enrolam ao redor da cintura uma coberta listrada que parece um

saiote (saia, chiripá).”245 E segue detalhando em outro registro o tamanho e o tecido

utilizado: “Eles usam o chiripá, um tipo de cinto que se estende até os joelhos, como

242

SAINT-HILAIRE, Auguste de. Voyage a Rio-Grande do Sul (Brésil). Orléans: H. Herluison, Libraire-Éditeur, 1887, p. 361 (tradução nossa). 243

Província do nordeste da Argentina. 244

São Borja é uma cidade situada a Oeste do estado do Rio Grande do Sul. 245

SAINT-HILAIRE, op. cit., p. 28 (tradução nossa).

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uma saia e que é feito desse tecido grosseiro usado para fazer ponchos.”246 E, por

fim, o autor reitera: “[...] chiripá, um pedaço de lã que é feito um cinto e que cobre as

coxas até os joelhos como um pequeno saiote.”247 Vale destacar que nessas

citações o autor se refere a espanhóis e uruguaios, mas estavam no Rio Grande do

Sul na ocasião do seu registro. Nota-se que o chiripá de Saint-Hilaire vem ao

encontro do vestuário indígena registrado por Saldanha como pano que se estende

da cintura até os joelhos.

Sobre as calças de algodão com franjas, não fica claro nos registros se eram

utilizadas como complemento do chiripá, ou se poderiam ser utilizadas

individualmente, conforme afirma Fagundes. O fato é que o registro das calças com

franjas vem seguido da descrição do chiripá. Complementando a citação anterior, o

viajante diz: “Usam calças largas de um pano de algodão feito em casa e a

extremidade de cada perna termina com franjas sobre as quais muitas vezes são

feitos pontos de arremate.”248 Em outra descrição chama-os de “homens com roupas

de camponeses, com chiripá, as calças de franjas e as botas de couro de perna de

novilha”249.

Quanto aos estancieiros, Saint-Hilaire discorre sobre um homem e seus

amigos de uma estância onde ficou hospedado, nos campos de Viamão, no

nordeste do atual estado do Rio Grande do Sul. Registra o autor que o proprietário e

seus amigos “eram todos brancos e tinham hábitos parecidos com os camponeses

franceses, trajavam calças de pano de algodão, botas e esporas de prata, um

casaco de pano e em cima um pocho”250.

Quanto ao poncho, Saint-Hilaire registrou em Mostardas, próximo a Porto

Alegre, uma estância onde se criava ovelha, cuja lã as mulheres utilizavam para

tecer ponchos, que, porém, não tinham qualidade, mas eram vendidos em locais

como Porto Alegre. Em tom depreciativo cita o autor que “Esses ponchos são

brancos com listras marrom ou preta e são usados apenas pelos índios e negros”251.

O autor ainda atribui aos jesuítas o conhecimento da tecelagem, diz ele que, ao

ensinar os índios, contribuíram para a disseminação da técnica no Rio Grande do

246

SAINT-HILAIRE, Auguste de. Voyage a Rio-Grande do Sul (Brésil). Orléans: H. Herluison, Libraire-Éditeur, 1887, p. 131 (tradução nossa). 247

Ibidem, p. 131 (tradução nossa). 248

Ibidem, p. 151 (tradução nossa). 249

Ibidem, p. 240 (tradução nossa). 250

Ibidem, p. 13-14 (tradução nossa). 251

Ibidem, p. 59 (tradução nossa).

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Sul e na Banda Oriental.252 Comenta o viajante que presenciou usos distintos do

poncho, inclusive atravessado ao peito, semelhante ao vestuário romano.253

O hábito de atribuir diferentes usos para uma mesma peça de vestuário foi

registrado por outros viajantes, entre eles Nicolau Dreys, que, por ter residido na

região durante dez anos, de 1817 a 1827, descreve em detalhes o homem do Rio

Grande do Sul. Quanto ao ponche, Dreys registra que “he o vestido de obrigação

para o Rio Grandense; he quasi vestido característico, bem que se ache igualmente

introduzido nos outros povos do Sul do Brazil [...]”254, além do uso para defender do

frio e da chuva, utilizado como “barraca” em acampamentos.

Em seus registros, Nicolau Dreys afirma que a posição social e a riqueza do

habitante do Sul não são demonstradas pelo seu vestuário, mas pelos acessórios de

luxo utilizados em seu cavalo.

[...] o cavaleiro, dizemos, apparece modestamente coberto de seu ponche de panno azul, forrado ordinariamente de baeta vermelha, e por baixo delle levando humas calças e jaqueta do mesmo panno ou fazenda de algodão, segundo a estação.255

Da mesma forma que Saldanha e Saint-Hilaire, Dreys conceituou o gaúcho,

conforme exposto no primeiro capítulo, porém demonstrou maior conhecimento

sobre ele, possivelmente em razão do tempo de permanência no Rio Grande do Sul.

O autor afirma serem nômades, e por isso vivem no Sul entre os três países, do

oeste até o oceano. Sobre seus hábitos vestimentares, menciona:

O gaúcho he optimo cavalleiro: identificado apparentemente com o cavalo, nasce, vive e morre com elle [...]. A faca he arma particularmente usada nas questões que sobrevem entr‟elles [...]. Certo de seus mantimentos, enquanto o laço não lhe faltar, e não tendo vestido senão o estricto necessa‟rio, isto he, o chiripá, pedaço de baeta amarrado em redor do corpo, da cintura para baixo; e por cima do chiripá, o cingidor, especie de avental de couro crú, destinado a receber a fricção do laço, quando um animal faz força sobre elle; huma camisa, se a tem; huma jaqueta sem mangas; hum par de ceroulas com franjas compridas nas extremidades inferiores; as vezes um par de calças por cima; hum lenço, quasi sempre, amarrado na cabeça; hum chapéo roto; raras vezes hum ponxe

252

SAINT-HILAIRE, Auguste de. Voyage a Rio-Grande do Sul (Brésil). Orléans: H. Herluison, Libraire-Éditeur, 1887, p. 276 (tradução nossa). 253

Ibidem, p. 297 (tradução nossa). 254

DREYS, Nicolao. Noticia Descriptiva da Provincia do Rio-Grande de S. Pedro do Sul. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e Comp., 1839, p. 170. (sic) 255

Ibidem, p. 170.

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completo, e em lugar d‟este, hum pedaço de baeta vermelha [...]. O barbicacho é uma guasca [...]. Suas botas são, de ordinário, fabricadas da pelle crua tirada inteira da perna de hum cavalo ou de hum boi, seccada depois sobre huma fórma grosseira e amarrada fortemente na extremidade inferior para formar a ponta do pé.256

Ao exame dos registros textuais de José de Saldanha, Auguste de Saint-

Hilaire e Nicolau Dreys, é possível notar que os elementos de vestuário destacados

por eles reverberam na indumentária tradicionalista gaúcha, nesse caso, nos trajes

do Peão e do Patrão das vacarias. Cabe ainda salientar que o vestuário gaúcho

desse primeiro período elaborado por Fagundes é um espelho das produções

textuais de tais viajantes. Todavia, há elementos na composição pontuada por

Antonio Augusto Fagundes não encontrados nos relatos. Nesse sentido, passar-se-á

para a verificação das aquarelas de Jean Baptiste Debret, Emeric Vidal e Juan

Manuel Blanes, para que averiguar e analisar.

Nesse sentido, o texto se dedica a investigar o vestuário nas imagens

registradas em aquarelas, tecendo relações com o conjunto de referências

selecionadas por Fagundes para compor a vestimenta do gaúcho, com o objetivo de

verificar os elementos que reverberam na indumentária dos tradicionalistas gaúchos.

As imagens serão analisadas à luz de Erwin Panofsky, no que se refere à teoria da

iconografia e iconologia proposta pelo autor, ou seja, constituindo inicialmente uma

descrição pré-iconográfica, procurando apreender as formas, as linhas e as cores,

porém ampliando o olhar, buscando sobretudo os significados intrínsecos e

convencionais, e atentando para o aporte cultural que envolve tais registros.257

Serão consideradas ainda observações levantadas por Peter Burke quanto à teoria

de Panofsky no que se refere ao significado em diferentes espectadores.258

O primeiro citado por Fagundes é Jean Baptiste Debret. Pintor e desenhista

francês, integrou a Missão Artística Francesa ao Brasil e aportou na colônia com

outros artistas em 1816. Aqui retratou, principalmente, cenas do cotidiano do Rio de

Janeiro, incluindo a Família Real Portuguesa. Contudo, faz parte das produções

brasileiras cenas de lugares para além do Rio de Janeiro, entre eles o Rio Grande

do Sul.

256

DREYS, Nicolao. Noticia Descriptiva da Provincia do Rio-Grande de S. Pedro do Sul. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e Comp., 1839, p. 197. 257

PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 50-52. 258

BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru: EDUSC, 2004, p. 51.

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Após seu retorno à França em 1831, ainda na mesma década, Debret se

dedicou à publicação de suas produções, com ampla obra de três volumes intitulada

“Voyage pittoresque et historique au Brèsil”. Porém, a primeira edição brasileira foi

traduzida e publicada somente em 1940. No entanto, quatorze anos depois, em

1954, foi publicada no Brasil, pelo empresário e colecionador de arte Raymundo

Ottoni de Castro Maya, outra obra com inéditas aquarelas do artista, adquiridas pelo

colecionador Castro Maya, atualmente parte do acervo do museu de mesmo nome

no Rio de Janeiro. Entre elas, aquarelas que retratavam a paisagem e os homens do

Rio Grande do Sul.259

Suas produções circularam entre os folcloristas da década de 1950, tornaram-

se fontes obrigatórias para aqueles que se dedicavam à pesquisa dos costumes no

Brasil.260 Essa última obra, com aquarelas inéditas, foi citada inclusive por

tradicionalistas como Barbosa Lessa em publicações posteriores.261 No entanto, não

se sabe a quais aquarelas Antonio Augusto Fagundes se refere ao citar Debret, já

que o autor não inclui a obra entre as suas referências, apenas cita o artista no

texto. Contudo, serão analisadas duas obras do pintor francês, uma inserida na

primeira publicação, “Voyage pittoresque et historique au Brésil”, nomeada Charruas

Civilisés (Pions), de 1834, escolhida em razão da palavra Pions incluída entre

parênteses, designando a ocupação dos indígenas. A outra imagem selecionada faz

parte da coleção de Castro Maya, e a escolha nesse caso se justifica por ser a única

em que o autor enfatiza a palavra “gaúcho”, intitulada “Homem do Rio Grande.

Gaúcho”. Não há nos registros a data da obra, tampouco a data da sua estada no

Sul.

259

OLIVEIRA, Luciana da Costa. Da imagem nascente à imagem consagrada: a construção da imagem do gaúcho pelos pincéis de Cesáreo Bernaldo de Quirós, Pedro Figari e Pedro Weingärtner. Tese (Doutorado em História), PUC-RS, 2017, p. 160. 260

Nos Anais do I Congresso no Rio de Janeiro, em 1951, vê-se Debret, Saint-Hilaire, entre outros viajantes citados nas conferências realizadas. Ver: IBECC. Anais do Primeiro Congresso Brasileiro de Folclore. São Paulo, 1951. 261

LESSA, Barbosa. O Rio Grande do Sul através de Debret. Porto Alegre: SAMRIG, 1978, p. 03.

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97

Dessa forma, sem a pretensão de apreender toda a obra, aplicando a

“retórica da certeza”, ou considerando esta como um espelho exato ou um vidro

transparente capaz de traduzir todos os conceitos em imagens e todas as imagens

em conceitos, conforme discorre Didi-Huberman262, o texto pousa o olhar nas

referidas imagens no sentido de identificar os referenciais do vestuário, porém

atentando para além do visível, procurando os significados que permeiam a obra em

diferentes tempos.

Figura 12 - Charruas Civilisé (Pions), Jean Baptiste Debret, 1834.263

A imagem apresenta em primeiro plano dois indivíduos, os quais Debret

descreve como índios charruas civilizados atuando como peões. O artista os insere

em uma paisagem composta por relevos, tal qual a geografia característica do sul, e

ao fundo outros peões aparecem tocando uma tropa de animais. Segundo Saint-

Hilaire, os índios charruas e minuanos se uniram, de forma que não é possível

identificá-los como um ou como outro. Quando integrados são chamados de peões,

trabalhavam em estâncias ou como muleiros, ou tropeiros, e tinham como função

acompanhar grupos ou tropas de animais em longas jornadas. Quanto à fisionomia,

262

DIDI-HUBERMAN, George. Diante da imagem. São Paulo: Editora 34, 2013, p. 11. 263

DEBRET, Jean Baptiste. Voyage pittoresque et historique au Brésil. Tome Premier. Paris: Imprimeurs de L‟Institut de France, 1834, p. 15. Acervo da Biblioteca Nacional - RJ.

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chegou a mencionar que havia brancos e mulatos, de rosto estreito e alongado.264 A

representação mostra consonância com o relato de Nicolau Dreys, cujos registros

apontam que os peões acompanham manadas, ou trabalham em estâncias, “são

negros escravos, outras vezes e mais comumente são índios ou gauchos

assalariados; sua ocupação consiste em velar sobre os animais, contê-los nos

limites da estancia, reuni-los, guarda-los e aparta-los [...]”265.

Ao lado, porém em segundo plano, o cavalo aguarda por seus arreios, a fim

de continuarem os trabalhos, tendo em vista que os peões podem ter parado para

um descanso, em razão da fogueira à esquerda na imagem. A esse respeito, Dreys

registra que os tigres266 eram numerosos e perigosos naquela província, dessa

forma, era comum visualizar cabanas espalhadas pelas passagens, com o objetivo

de proteger os peões da invasão desses animais em seus momentos de descanso

ou pernoites no campo. Porém, na ausência das cabanas, os peões se valiam de

fogueiras em suas paradas para afugentar os tigres, que atacavam tanto os peões

como os animais conduzidos.267 Saint-Hilaire também registra a presença de um

tigre em volta de seu acampamento, em uma das pernoites ao ar livre, afirmando

terem percebido o animal próximo do lugar onde haviam feito fogo, momento antes

de acabar a brasa. Tiveram então de fazer uso da arma a fim de afastar o animal.268

A obra coaduna com os registros de Saint-Hilaire e Dreys, que por sua vez

repercutem na composição proposta por Fagundes. Este define que, pelo viés da

indumentária, o gaúcho é o índio que aos poucos se integrou ao meio e miscigenou-

se; no entanto, não descreve sua fisionomia. Embora não seja objetivo desta

pesquisa analisar a origem dos referenciais de Debret, e sim de Fagundes, em razão

da ausência de registro sobre a data da viagem de Jean Baptiste Debret ao Rio

Grande do Sul, é importante mencionar a possibilidade de este não ter viajado para

264

SAINT-HILAIRE, Auguste de. Voyage a Rio-Grande do Sul (Brésil). Orléans: H. Herluison, Libraire-Éditeur, 1887, p. 277, 502 e 605. 265

DREYS, Nicolao. Noticia Descriptiva da Provincia do Rio-Grande de S. Pedro do Sul. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e Comp., 1839, p. 142 e 179. 266

Os tigres registrados pelos viajantes possivelmente dizem respeito ao gato-do-mato ou jaguatirica. 267

DREYS, op. cit., p. 82-85. 268

SAINT-HILAIRE, Auguste de. Voyage a Rio-Grande do Sul (Brésil). Orléans: H. Herluison, Libraire-Éditeur, 1887, p. 299.

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a região, e sim produzido suas obras ancorado nos registros textuais dos viajantes

aqui citados.269 Ou ainda, de acordo com Burke, pode o artista ter recebido apoio de

“conselheiros humanistas”, conforme teoria de Warburg e Panofsky, configurando

um apoio aos viajantes para formular um programa iconográfico de imagens.270

Porém, a possibilidade de Debret ter recorrido aos registros de outros

viajantes para representar o homem do Rio Grande do Sul, o Gaúcho ou o Charrua,

não reduz o seu talento, sua autoridade como artista e sua importante contribuição

para a história brasileira. Ao mesmo tempo, não há dúvida de que a experiência em

campo ampliaria e qualificaria ainda mais o repertório imagético do artista sobre o

representado. No entanto, se por um lado poderia ter alcançado uma quantidade e

diversidade maior de elementos do vestuário, por outro, a representação imagética

de Debret seria entendida como uma tradução de imagens narradas e

testemunhadas pelos viajantes que talvez os tradicionalistas desse tempo não

fizessem com tamanha precisão, já que são representações de intelectuais de um

mesmo tempo e espaço cultural e, portanto, com ideias e referenciais que

convergiam.

Nesse sentido, caso sejam realmente releituras dos registros, são também

consideradas importantes para esta análise, que objetiva verificar os elementos que

reverberam na proposta de Fagundes. Mas são apenas suposições, não há certeza

de que o artista não tenha vindo. O fato é que são imagens que reforçam os

registros dos viajantes e foram importantes fontes para Fagundes.

O testemunho de imagens é valioso para a cultura material, segundo Peter

Burke, por revelarem não apenas os artefatos em si, mas a sua organização. E uma

das vantagens é que elas comunicam rápida e claramente os detalhes de um

processo complexo, muito mais rápido que um texto. No que se refere aos trajes,

reitera o autor que “O valor de imagens como evidência para a história do vestuário

é inquestionável [...]”271. Dessa forma, examinado o contexto da paisagem em que

os peões estão inseridos, seguimos para a análise do vestuário.

269

Sobre a possibilidade de Debret não ter estado no Rio Grande do Sul, há várias discussões a respeito, entre elas ver: LIMA, Valéria. Uma viagem com Debret. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. 270

BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru: EDUSC, 2004, p. 50. 271

Ibidem, p. 99.

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100

Figura 13 - Chiripá - Charruas Civilisé (Pions), Jean Baptiste Debret.272

O chiripá primitivo, conforme nomeia Fagundes, é por ele considerado a peça

principal do traje gaúcho do primeiro período, por isso o nomeia como primitivo.

Registra o autor, citando Saldanha, que tal peça consiste em um retângulo enrolado

da cintura até os joelhos; também foi registrado por Saint-Hilaire, como um tipo de

cinto que se estende até os joelhos. A mesma peça do vestuário é retratada por

Debret com tamanho inferior ao citado, refletindo a descrição de Nicolau Dreys, que

não cita o comprimento. O chiripá vem acompanhado de ceroula com barra franjada

e calças azuis, sendo que todos os elementos estão dispostos sob o cingidor,

também citado por Fagundes sob a denominação tirador.

Contudo, Fagundes mantém o registro do chiripá até os joelhos, demonstra a

usabilidade de parte das peças individualmente ou formando outras composições, e

a calça ou calções intitula braga, registrando ainda a tipologia dos tecidos utilizados

nessa peça: “[...] justo nas coxas, terminando logo abaixo dos joelhos. Os

portugueses chamavam a esses calções „bragas‟ [...]. O material das bragas era o

veludo, a lã e o algodão, conforme as posses do homem.”273 As ceroulas e as braies

são também mencionadas como roupas ordinárias dos homens brancos no espaço

rural, bem como os bordados, crivo, rendas e outros enfeites em roupas brancas,

tanto para homens como para mulheres, no estudo de Mara Rúbia Sant‟Anna sobre

“sociabilidades coloniais”274.

272

DEBRET, Jean Baptiste. Voyage pittoresque et historique au Brésil. Tome Premier. Paris: Imprimeurs de L‟Institut de France, 1834, p. 15 (grifo nosso). Acervo da Biblioteca Nacional - RJ. 273

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 7. 274

SANT‟ANNA, Mara Rúbia. O Brasil por suas aparências: sociabilidades coloniais: entre o ver e o ser visto. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2016, p. 65-66.

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101

Cabe destacar que o veludo das calças não foi encontrado nos registros de

Saldanha, Saint-Hilaire e Dreys, viajantes citados por Fagundes. Afora a textura

aveludada das calças retratadas na aquarela de Debret, o registro aparece na

publicação do francês Arsène Isabelle, como calça de veludo azul-celeste e jaqueta

de pano também azul. Embora o viajante não tenha sido citado na obra sobre o

vestuário gaúcho de Antonio Augusto Fagundes, pode também ter sido utilizado por

este como referência.

Figura 14 - Camisa, jaleco, jaqueta e ponxe - Charruas Civilisé (Pions),

Jean Baptiste Debret.275

No que refere à parte superior do vestuário, Fagundes descreve a camisa

“sem botões, apertada aos punhos por cadarços, com gola ampla e mangas fofas

[...]”276, elementos retratados no vestuário do peão da esquerda na aquarela de

Debret. A peça em tom ferroso sobre a camisa branca retratada na obra é registrada

por Fagundes como jaleco, que exemplifica dizendo ser uma “espécie de colete”,

também chamada por Nicolau Dreys de “jaqueta sem mangas”277.

275

DEBRET, Jean Baptiste. Voyage pittoresque et historique au Brésil. Tome Premier. Paris: Imprimeurs de L‟Institut de France, 1834, p. 15 (grifo nosso). Acervo Biblioteca Nacional - RJ. 276

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 7. 277

DREYS, Nicolao. Noticia Descriptiva da Provincia do Rio-Grande de S. Pedro do Sul. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e Comp., 1839, p. 196.

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102

Sobre o jaleco, algumas vezes é utilizado “une veste court”278, conforme

descreve Saint-Hilaire. A peça é chamada por Fagundes de jaqueta, e explica ser

um “casaquinho curto, terminado na cintura, fechado à frente por moedas ou

grandes botões de metal”279. Observa-se que, mais uma vez, os elementos que

compõem o vestuário na aquarela de Debret reverberam na composição proposta

por Fagundes e reafirmam os registros dos viajantes. Cabe dizer ainda que os

botões de metal, citados pelo autor, constam em vestuários retratados em outras

pinturas de Debret.

O ponche ou pala-bichará repercute na aquarela, sendo utilizado de duas

formas, conforme descrito por outros viajantes: amarrado na cintura do peão à

esquerda, e atravessado no peito no peão da direita. As duas formas de uso

retratadas na aquarela não são registradas na obra de Fagundes. Porém, conforme

citado, constam nas descrições de Saint-Hilaire, que compara inclusive com o

vestuário romano. Dreys escreve que nem sempre o gaúcho utiliza “ponxe completo,

em lugar d‟este, hum pedaço de baeta vermelha”280, que seria um tecido pesado de

lã.

Fagundes o chama de pala-bichará e descreve como “um grande retângulo

formado de dois tecidos de lã, incompletamente costurados deixando uma abertura

no centro, por onde o homem enfiava a cabeça”281, sendo que houve também

produção em outros tecidos, em razão da disseminação da tecelagem por parte dos

jesuítas no Rio Grande do Sul. No que se refere ao ponxe, ponche bichará, pala-

bichará ou poncho, vê-se que Fagundes teve como referência o registro de José de

Saldanha.

Conforme peças de roupa utilizadas para a definição do vestuário gaúcho da

primeira época e de parte do vestuário da segunda época, verifica-se que os

retratados na aquarela de Debret exibem também acessórios que se destacam em

Fagundes. A imagem apresenta dois diferentes modelos de chapéu, que podem ter

sido referência para os chapéus de feltro e de couro registrados pelo tradicionalista.

278

SAINT-HILAIRE, Auguste de. Voyage a Rio-Grande do Sul (Brésil). Orléans: H. Herluison, Libraire-Éditeur, 1887, p. 152. 279

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 8. 280

DREYS, Nicolao. Noticia Descriptiva da Provincia do Rio-Grande de S. Pedro do Sul. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e Comp., 1839, p. 196. 281

FAGUNDES, op. cit., p. 8.

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103

Figura 15 - Chapéus - Charruas Civilisé (Pions), Jean Baptiste Debret.282

Antonio Augusto Fagundes cita o uso do chapéu pelos gaúchos em todas as

fases, ou períodos, em que dividiu o vestuário. Segundo o autor, na primeira fase

eram usados chapéus de copa alta e abas estreitas e de palha de abas largas. O

primeiro, conhecido como chapéu “pança de burro”, de couro cru ou de feltro.283

Além da imagem examinada, que os apresenta visualmente, Saint-Hilaire descreve

os citados chapéus como peças de “abas estreitas e forma muito alta e

arredondada”284, enquanto Nicolau Dreys chama de chapéu “roto” ou envelhecido.

Os chapéus de feltro não são descritos pelos viajantes citados por Fagundes, porém

constam nos relatos de outros que passaram pelo Rio Grande do Sul.285

Embora não haja registro nos citados diários sobre o chapéu “pança de

burro”, Fagundes descreve sua fabricação artesanal, afirmando ser “feito com um

retalho circular de couro da barriga do muar, moldado na cabeça de um

palanque”286. E justifica a ausência de documentos comprobatórios dizendo: “Não se

conhecem, ainda, documentos a respeito do uso do chapéu de pança-de-burro entre

os gaúchos rio-grandenses, mas é presumível tenha sido usado tanto na Banda

Oriental como no Rio Grande, face os costumes comuns à época.”287 Ou seja,

282

DEBRET, Jean Baptiste. Voyage pittoresque et historique au Brésil. Tome Premier. Paris: Imprimeurs de L‟Institut de France, 1834, p. 15 (grifo nosso). Acervo da Biblioteca Nacional - RJ. 283

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 8, 14 e 16. 284

SAINT-HILAIRE, Auguste de. Voyage a Rio-Grande do Sul (Brésil). Orléans: H. Herluison, Libraire-Éditeur, 1887, p. 502. 285

LOCCOCK, John. Aspectos sul-riograndenses. São Paulo: Record, 1935, p. 54. 286

FAGUNDES, p. cit., p. 14. 287

Ibidem, p. 14.

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104

segundo o autor, são hipóteses, no entanto, incluiu o referido chapéu entre os

elementos do vestuário do gaúcho estancieiro.288

O lenço “como touca, atado à nuca”, ou “amarrado à pirata” foi incluído por

Fagundes desde as primeiras épocas, e só desaparece a partir de 1865, quando

inicia a última época citada pelo autor. Tal elemento compõe o vestuário retratado

por Debret, bem como consta nos registros de Saint-Hilaire, Dreys e Saldanha,

alguns sujeitos inclusive foram registrados com um lenço na cabeça e outro no

pescoço. Quanto à coloração, não é especificada pelos viajantes, apenas Saldanha

sinalizou que eram sujos os lenços que os minuanos traziam atados à cabeça. No

entanto, Fagundes cita como sendo o branco e o vermelho os mais populares, mas

acrescenta que outras cores, e a padronagem enxadrezada, também eram

utilizadas.289 Informação que se equipara com os lenços retratados por Debret e que

irão compor pinturas de outros artistas.

Figura 16 - Botas - Charruas Civilisé (Pions), Jean Baptiste Debret.290

288

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 10. 289

Ibidem, p. 16. 290

DEBRET, Jean Baptiste. Voyage pittoresque et historique au Brésil. Tome Premier. Paris: Imprimeurs de L‟Institut de France, 1834, p. 15 (grifo nosso). Acervo da Biblioteca Nacional - RJ.

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105

As botas retratadas por Debret e descritas pelos viajantes, Nicolau Dreys e

Auguste de Saint-Hilaire, apresentam algumas peculiaridades. Segundo eles, são

fabricadas artesanalmente a partir do couro da perna de animais, fato que deu

origem ao nome “bota de garrão de potro”. Fagundes afirma que a referida bota é

“invenção gauchesca típica”291, lembrando que a indumentária tem forte influência

ecológica em razão do contexto vivido pelo gaúcho. Sobre as botas, discorre o autor:

As botas mais comuns eram as de garrão, que o próprio gaúcho sacava de vacas, burros e éguas: raramente do potro que lhes deu o nome. Essas botas eram lonqueadas, ou perdiam o pelo com o uso. Mas às vezes o pêlo era resguardado e até mesmo se matavam mais de um animal para conseguir um par de botas manchadas, iguais. Em uso, as botas de garrão não duravam mais de dois meses. Normalmente, eram feitas com o couro das pernas traseiras do animal, que dão botas maiores. Aquelas tiradas das patas dianteiras – mãos – muitas vezes eram cortadas na ponta e no calcanhar de fora. Acima da barriga da perna, o homem ajustava essas botas por meio de tentos, ou trança.292

Fagundes complementa a obra com ilustrações de Jorge Ubiratan Lopes,

apresentando algumas tipologias de botas de garrão de potro. As imagens mostram

a “bota garrão de potro inteira, bota garrão de potro com dedos e calcanhar de fora e

bota de meio pé”. A primeira delas traz semelhanças com as botas retratadas por

Debret.

291

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 10. 292

Ibidem, p. 11.

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106

Figura 17 - Botas Garrão de Potro, Jorge Ubiratan Lopes.293

Roberto Lehmann Nitsche, renomado pesquisador alemão, residiu na

Argentina entre os anos de 1897 e 1930 e se dedicou a pesquisar sobre o folclore e

a etnologia daquele país, publicando em 1916 uma obra em que discorre sobre a

origem da bota de potro. De acordo com o autor, a bota faz parte do traje popular da

Argentina, porém tem origem no mundo antigo, chegando à América do Sul pelos

espanhóis. Na obra Nitsche descreve o processo de fabricação com imagens e

fotografias do início do século XX.294

Algumas obras publicadas recentemente trazem registros do seu uso por

diferentes índios da América do Sul. Patrícia Rieff Anawalt, importante pesquisadora

sobre indumentária da América e especialista em Cultura Asteca, publicou

recentemente imagens de índios utilizando botas de garrão de potro, chiripá e

cayapis295 na Patagônia.296 No Brasil, Edison Acri lançou uma obra com diversas

ilustrações com notas explicativas sobre o universo gaúcho, incluindo o processo de

fabricação da bota de garrão de potro.

293

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 47-48 e 53. 294

LEHMANN-NITSCHE, Robert. Folklore Argentino. La Bota de Potro. Boletín de la Academia Nacional de Ciencias en Córdoba. Buenos Aires, v. XXI, 1916, p. 185. 295

Os cayapis, como registrou José de Saldanha, foram publicados por Patrícia Rieff Anawalt como quillangos. 296

ANAWALT, Patrícia Rieff. A História mundial da roupa. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2011, p. 501.

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107

Figura 18 - Processo de fabricação da bota de garrão de potro.297

Ainda ao exame da imagem de Debret, observa-se nas costas do peão

retratado à esquerda um couro de gato-do-mato, ou tigre, conforme se referiam os

viajantes. De acordo com Antonio Augusto Fagundes, “houveram também umas

chamadas „botas-de-gato‟, mais raras, feitas com o couro do gato-do-mato”298, que

apareceriam nas descrições de Eric Essex Vidal.

297

ACRI, Edison. O Gaúcho: usos e costumes. Porto Alegre: Grafosul, 1985, p. 69. 298

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 11.

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108

Quanto às esporas, Debret representa na aquarela um modelo pontiagudo,

presente no vestuário gaúcho proposto por Fagundes sob o nome “eporas

nazarenas”. Registra o autor que “as nazarenas devem o nome aos seus espinhos

ponteagudos, que lembram os cravos que martirizaram Nosso Senhor”. Quanto às

esporas chilenas, também presentes nos trajes propostos pelo autor, têm sua

origem no Chile, sendo esse modelo hipertrofiado. Estas aparecem entre os

comentários do Conde d‟Eu quando da sua passagem pelo Rio Grande do Sul em

período posterior.299 Já Nicolau Dreys apenas menciona que “As esporas do gaúcho

tem mais de huma polegada de diâmetro”300.

Figura 19 - Armas - Charruas Civilisé (Pions), Jean Baptiste Debret.301

Jean-Baptiste Debret expõe na imagem as principais armas do gaúcho,

corroborando as descriçoes de Nicolau Dreys: “[...] a faca, a espada, a pistola,

quando póde comprar, e, sobre tudo, o laço e as bolas; estas duas ultimas armas

299

ORLÉANS, Luís Filipi Maria Fernando Gastão de (Conde d‟Eu). Viagem militar ao Rio Grande do Sul. São Paulo: Itatiaia/ USP, 1981, p. 43. 300

DREYS, Nicolao. Noticia Descriptiva da Provincia do Rio-Grande de S. Pedro do Sul. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e Comp., 1839, p. 197. 301

DEBRET, Jean Baptiste. Voyage pittoresque et historique au Brésil. Tome Premier. Paris: Imprimeurs de L‟Institut de France, 1834, p. 15 (grifo nosso). Acervo da Biblioteca Nacional - RJ.

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109

são, ás vezes, as unicas que tem, e nunca o gaúcho hé visto sem ellas.”302 As armas

são também citadas por Saldanha e Saint-Hilaire. Antonio Augusto Fagundes

discorre sobre a composição e usabilidade:

Ainda à cintura, as infaltáveis armas desse homem: as boleadeiras, a faca flamenga ou a adaga e, mais raramente, o facão. Este era tão usado nos arreios que ganhou, por vezes, o nome de “facão caroneiro”. E sempre à mão a lança - de peleia ou de trabalho. Esta última ostentava uma lâmina em forma de meia-lua [...].303

A “faca flamenga” é mencionada por José de Saldanha, que cita o uso pelos

minuanos na cintura pela parte das costas. Tem esse nome em razão da origem do

aço, de exelente qualidade, e chegou à América pelos espanhóis. Com estrutura

inteiriça, e apenas um lado de corte, o modelo se diferencia principalmente pelo

cabo, elaborado com resistentes materiais, pode ser de prata, osso, chifre, entre

outros, a fim de proporcionar apoio, sendo preso com pinos.304 Visualmente

assemelha-se com o cabo retratado por Debret, na bota direita do peão à esquerda

na imagem. Esse hábito foi registrado também por Dreys, para quem seria mantido

principalmente pelos homens mais abastados do Rio Grande305, porém sabe-se que

os costumes foram permeando todos os habitantes do Rio Grande do Sul. As

adagas são facas com cortes para os dois lados, sendo o facão uma variação da

adaga.306

A espada, chamada por Fagundes de lança com lâmica em curva, é retratada

por Debret no ombro do peão da esquerda, enquanto que o outro traz um laço, arma

utilizada para capturar o gado no campo, uma espécie de “corda comprida de couro

entrançado”307, demonstrado na obra de Fagundes por meio de imagens. A

disposição dos acessórios faz alusão às habilidades de cada peão retratado por

Debret. No entanto, a boleadeira, arma comum na região, faz parte da composição

dos dois peões. José de Saldanha descreveu as bollas e o laço como instrumentos

302

DREYS, Nicolao. Noticia Descriptiva da Provincia do Rio-Grande de S. Pedro do Sul. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e Comp., 1839, p. 197. (sic) 303

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 12. 304

Sobre facas, ver: ARANHA, Frederico; SELAIMEN, Cassio. A faca gaúcha: uma abordagem histórica. Porto Alegre: Edigal, Renascença, 2013, p. 94-100. 305

DREYS, op. cit., p. 171. 306

ASSUNÇÃO, Fernando O. Pilchas Criollas. Buenos Aires: Emecé, 1991, p. 184-185. 307

DREYS, op. cit., p. 171.

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110

comuns e necessários para os campeiros, utilizados para apanhar animais no

campo.308

A segunda aquarela selecionada, de Jean-Baptiste Debret, retrata o Homem

do Rio Grande do Sul e o Gaúcho. Um dos homens retratados se apresenta com

vestuário diferente daqueles observados na aquarela anterior, e está na presença de

um peão, o qual Debret denominou nesta aquarela de gaúcho.

Figura 20 - Homem do Rio Grande do Sul. Gaúcho. Jean-Baptiste Debret.309

Antonio Augusto Fagundes definiu o gaúcho como resultado natural do meio

em que vivia. Esse índio que passou a ser peão, conforme descrição na aquarela

anterior, agora é designado gaúcho, retratado por Debret no início do século XIX, é

resultado desse contexto, apresentado no primeiro capítulo, marcado pela

exploração do gado nas vacarias, que deu início às estâncias. A necessidade do

recrutamento de homens para arrebanhar o gado deu origem aos peões, que são

brancos, índios, negros e mestiços, revestidos com uma indumentária acessível à

época e cobertos por acessórios funcionais, conforme examinado.

308

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 170, 233. 309

Aquarela sobre papel (16,5x21,5cm), 1825. Acervo do Museu Castro Maya - Rio de Janeiro.

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111

Os peões que optavam por trabalhar nas estâncias respondiam aos

proprietários, chamados de estancieiros, registrados por Nicolau Dreys como

homens do Rio Grande. Segundo o autor, eram homens geralmente altos, robustos

e bem-apessoados.310 Tal explanação corrobora a representação proposta na

aquarela de Debret, no que se refere ao homem retratado à esquerda. Contudo, se

atentarmos para a postura de ambos, o estancieiro parece que não inferioriza o

peão. No entanto, a discrepância entre eles fica evidente no vestuário, considerando

os elementos que compõem o traje do peão, bem como a relação do traje com as

práticas desempenhadas. Ou seja, o vestuário é revelador, tem poder de

comunicação, a cultura indumentária e a aparência revelam o status e o ser, como

afirma Daniel Roche.311

Nicolau Dreys afirma que o luxo fez progressos no Rio Grande do Sul, mais

do que em outras partes do Brasil. O homem do Rio Grande tem inclusive cavalos

ornados com ricos arreios, facas com cabos e bainhas de prata, que levam dentro

da bota, enquanto que na cintura, um par de pistolas. Não sai de casa sem o seu

ponche, pois debaixo dele as armas estão seguras. Dreys descreve seu vestuário

afirmando que utiliza “[...] ponche de panno azul, forrado ordinariamente de baeta

vermelha, e por baixo d‟elle levando humas calças e jaqueta do mesmo panno ou

fazenda de algodão, segundo a estação"312. Observa-se que os elementos citados

são corroborados na aquarela de Debret, no entanto, dentre as peças do vestuário,

o poncho ganhou destaque. Como a se impor diante dos outros elementos.

Do mesmo modo, Antonio Augusto Fagundes dedica em sua obra maior

atenção ao poncho, incluindo detalhamentos citados pelos viajantes. Em sua

explanação, afirma que a cor “quase sempre é azul escuro, forrado de baeta

colorada”313, mas que existem de outras colorações, inclusive com padronagens. Tal

afirmação pode visualizada no peão que está tocando os animais, retratado ao fundo

da aquarela, vestido com um pala de outras cores. O autor ainda acrescenta que “a

gola é alta, abotoada e há um peitilho na frente do poncho”, como visto no poncho

desenhado por Debret.

310

DREYS, Nicolao. Noticia Descriptiva da Provincia do Rio-Grande de S. Pedro do Sul. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e Comp., 1839, p. 173. 311

ROCHE, Daniel. A cultura das aparências: uma história da indumentária. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2007, p. 506. 312

DREYS, op. cit., p. 170-173. (sic) 313

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 13.

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112

Ao exame dos registros em torno do vestuário nas obras dos viajantes que

retrataram o Rio Grande do Sul na primeira metade do século XIX, como José de

Saldanha, Auguste de Saint-Hilaire, Nicolau Dreys e Jean-Baptiste Debret, verifica-

se o quanto tais informações permeiam as composições propostas por Antonio

Augusto Fagundes, demonstrando o esforço empreendido pelo autor em reunir as

peças representadas pelos viajantes. As referências se entrelaçam, formando uma

teia de informações e, acima de tudo, de significações importantes para a

elaboração do vestuário ideal buscado pelo autor.

No entanto, diante da obra de Fagundes, observa-se que houve lacunas

preenchidas com informações que não constavam nos documentos dos viajantes

citados, possivelmente buscadas nas fontes platinas, conforme mencionou em um

dos textos. O autor cita Emeric Essex Vidal (1791-1861) e Juan Manuel Blanes,

afirmando terem deixado belas “aquarelas e óleos” que documentam a época, ou as

épocas.

Entre os muitos artistas que imprimiram suas impressões sobre os costumes

platinos, evidenciando a presença do gaúcho, certamente Vidal e Blanes foram os

que mais tiveram obras em circulação no meio tradicionalista gaúcho. Emeric Essex

Vidal desenhou cenas do gaúcho em situações tradicionais do seu trabalho e lazer.

Os relatos que acompanham as aquarelas apontam que o autor visualizou tais

cenas no início do século XIX. Enquanto Blanes trouxe à tona um gaúcho já

romantizado do final do mesmo século, tranquilo e sem compromissos, mas que

chama a atenção pelo vestuário repleto de cores, sombras e luzes, retratado a óleo.

Emeric Essex Vidal foi oficial da marinha britânica, veio pela primeira vez ao

Brasil em 1808, em um dos navios ingleses que acompanharam a vinda da família

real portuguesa. Marinheiro, circulou entre o Rio de Janeiro, Bueno Aires e

Montevidéu. Chegou a Buenos Aires em 1816 e permaneceu até 1818, quando

retornou ao seu país.314 Embora não se dedicasse exclusivamente à produção de

aquarelas, em pouco tempo retratou inúmeras cenas platinas, e no seu retorno à

Inglaterra selecionou as 25 aquarelas que, acompanhadas de textos explicativos,

compõem o álbum “Picturesque Illustrations of Buenos Ayres and Monte Video”,

314

SEIF, Sebastián Senlle. El gaucho como sujeto social aportes desde la pintura y la literatura. Cuadernos de Filosofía Latinoamericana. Bogotá, v. 31, nº 102, p. 63-76, 2010, p. 66.

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113

publicado em 1820.315 Suas aquarelas estão entre as primeiras a retratar os

costumes gaúchos.

As imagens de Vidal ilustram cenas do cotidiano platino. O autor organizou

suas obras atentando para as tipologias culturais que permeavam a região no

período, de modo que cada aquarela vem acompanhada de um texto sobre o

espaço, os costumes e o vestuário da população retratada. Imagens que, aos olhos

do autor ou do editor, tinham a responsabilidade de ilustrar a narrativa tão bem

construída e detalhada. Vidal não tinha a pintura como principal ofício, mas também

não era escritor, no entanto, realizou as duas atividades com muita destreza. Poucos

viajantes registraram em palavras detalhes de suas experiências. E suas imagens

não só ilustraram, mas dialogaram vivências. Entretanto, as produções imagéticas

publicadas separadas das produções textuais em questão permitiriam outras

leituras. A esse respeito, Peter Burke adverte sobre a utilização de imagens como

meras ilustrações ou para reafirmar conclusões.316

Pensando nos elementos do vestuário do gaúcho representados nas

aquarelas e nos textos de Vidal que podem ter contribuído para a proposta de

indumentária de Fagundes, verifica-se que as 25 aquarelas publicadas no álbum

apresentam de alguma forma usos e costumes dos gaúchos. Cada aquarela retrata

uma cena diferente, capaz de suscitar outras. Porém, uma em especial reúne um

expressivo número de homens retratados também nas demais aquarelas,

apresentando um momento de sociabilidade. Cada qual com seu vestuário

específico e acompanhado de um cavalo. Dessa forma, foi selecionada para análise

a citada imagem, intitulada “The Horse Race”, bem como as narrativas textuais que

acompanham as demais obras, até porque representa uma das práticas instituídas

como tradicionais pelos Centros de Tradições Gaúchas: as corridas de cavalos,

também conhecidas como “carreiras de cancha reta”317.

315

OLIVEIRA, Luciana da Costa. Da imagem nascente à imagem consagrada: a construção da imagem do gaúcho pelos pincéis de Cesáreo Bernaldo de Quirós, Pedro Figari e Pedro Weingärtner. Tese (Doutorado em História), PUC-RS, 2017, p. 92. 316

BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauri: EDUSC, 2004, p. 12. 317

GOLIN, Tau. O povo do pampa: uma história de 12 mil anos do Rio Grande do Sul para adolescentes e outras idades. Passo Fundo: EDIUPF, 1999, p. 80.

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114

Figura 21 - The Horse Race, Emeric Essex Vidal, 1817.318

As imagens de Emeric Essex Vidal são carregadas de significados. As

aquarelas publicadas no álbum “Picturesque Illustrations of Buenos Ayres and Monte

Video” seguem uma ordem que permite ao leitor realizar a experiência de conhecer

a cidade, seus usos e costumes com os olhos do autor, talvez não a rota que ele fez,

mas aquela que por algum motivo ele gostaria que os leitores fizessem. A obra

oferece um enredo que inicia com o sujeito, ainda sobre as águas do Rio da Prata,

avistando a recente urbanização de longe e enfrentando a dificuldade da chegada.

Em seguida se embrenha pelas imagens da cidade, passeando e visualizando os

diferentes grupos sociais e culturais, percebendo que há interação eles. Depois,

visita os espaços de convivência de cada um, dedicando especial atenção ao

ambiente de trabalho. E, ao final, um grande encontro de sociabilidades, em que se

reúnem a maioria dos agora “conhecidos” – The Horse Race, última imagem do

álbum.

Cabe notar que, em nosso imaginário, “construímos nossa narrativa por meio

de ecos de outras narrativas”319, como afirma Alberto Manguel. Contudo,

complementa o autor, como que a acalmar o leitor, “nenhuma narrativa suscitada por

318

VIDAL, Emeric Essex. Picturesque illustrations of Buenos Ayres and Monte Video. London: Published by R. Ackermann, 1820, p. 112. 319

MANGUEL, Alberto. Lendo imagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 28.

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115

imagens é definitiva ou exclusiva”320. Portanto, a seguir apresenta-se outro olhar e,

consequentemente, outra narrativa. Trata-se agora de um olhar para além do enredo

proposto. Com o conhecimento do conjunto das aquarelas que compõem o álbum,

mas focalizando o vestuário dos retratados nesse grande encontro de

sociabilidades, será analisado o diálogo e o comportamento da roupa com e no

evento.

Pensando na questão central, que é analisar a imagem de indumentária

gaúcha criada por Antonio Augusto Fagundes – desafio que suscitou a necessidade

de interpretar outras imagens e textos que poderiam oferecer subsídios para a

compreensão da imagem de Fagundes, ou seja, o terceiro ponto quanto ao método

exemplificado, conforme discorre Peter Burke321 –, pode-se dizer que as aquarelas

de Vidal dentro do corpus documental, que são as fontes utilizadas por Fagundes,

configuram-se, junto com as imagens de Juan Manoel Blanes, como importantes

ferramentas de análise, que contribuíram principalmente para o último nível de

interpretação proposto por Panofsky. Embora ao exame de cada imagem,

individualmente, tenha-se atentado também para a metodologia em seus três níveis.

Entretanto, a localização dos elementos do vestuário que refletem na imagem

de indumentária gaúcha proposta por Antonio Augusto Fagundes, identificados pelo

exame realizado nas aquarelas de Debret, bem como nas descrições dos viajantes,

permaneceu principalmente entre a primeira e a segunda etapa da metodologia de

análise de imagens selecionada, que consiste na descrição pré-iconográfica – ou

seja, a identificação dos objetos e formas e a compreensão do significado

convencional dos elementos do vestuário, atentando para a mensagem que cada

qual reverbera, como propõe Panofsky. No entanto, para a obra de Vidal a análise

irá centrar-se principalmente no terceiro nível de interpretação – a iconológica, que

para Peter Burke configura-se como a principal fase da teoria de Panofsky.322

Posto isso, ainda numa análise pré-iconográfica breve, vê-se que a imagem

apresenta 16 homens com diferentes tipos de vestuário reunidos em um mesmo

evento, uma corrida de cavalo. Porém, buscando os significados dos elementos

dispostos na imagem, importa recorrer aos textos do autor que acompanham as

320

MANGUEL, Alberto. Lendo imagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 28. 321

BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru: EDUSC, 2004, p. 49. 322

Ibidem, p. 45.

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116

aquarelas, uma espécie de rótulo, inscrição ou “iconotexto”323, a fim de contribuir

para a interpretação.

Figura 22 - The Horse Race, Emeric Essex Vidal, 1817.324

No texto Emeric Essex Vidal explica o que é uma corrida de cavalos em

Buenos Aires, tece relação com eventos da mesma natureza na Europa, define

como amador o evento, porém frequente na região e discorre sobre a função dos

cinco homens retratados em primeiro plano. Um frade e um fazendeiro ou

estancieiro, representados no primeiro plano à esquerda na imagem, e do lado

oposto, também em primeiro plano na pintura, um carreteiro proprietário de estância

no interior, um gaúcho com pequena propriedade e uma pessoa de classe mais

baixa, possivelmente um peão trabalhador.325 O autor revela como um importante

espaço de sociabilidade, onde se reuniam homens de diferentes classes sociais, no

entorno de Buenos Aires, já no início do século XIX.

A indumentária eclesiástica do frade se sobressai, ainda que entre uma

população com trajes peculiares, distantes da moda europeia, denotando como a

igreja segue as tradições religiosas. A imagem traz uma larga veste com capuz,

possivelmente uma capa, sendo composta por amplo chapéu, elemento também

utilizado pelos religiosos.326 A relação da igreja com os mais abastados, comum no

período, é também demonstrada por Vidal no diálogo com o estancieiro. Este, por

sua vez, expõe uma combinação de elementos dos trajes dos peões e dos

estancieiros retratados por Debret, o que repercute na proposta de Fagundes,

323

BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru: EDUSC, 2004, p. 49. 324

VIDAL, Emeric Essex. Picturesque illustrations of Buenos Ayres and Monte Video. London: Published by R. Ackermann, 1820, p. 112 (grifo nosso). 325

Ibidem, p. 113-114. 326

RACINET, Auguste. The Costumes History. Koln: Taschen, 2003, p. 430-431.

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117

quando diz que os Patrões das vacarias, portanto os estancieiros, foram aos poucos

mesclando seu vestuário.327

Emeric Essex Vidal, no texto que acompanha a aquarela Estância de São

Pedro, integrante da obra “Picturesque illustrations of Buenos Ayres and Monte

Video”, ao discorrer sobre a organização do espaço, descreve os usos e costumes,

bem como o vestuário das pessoas que se dedicam ao trabalho naquele local. Cita o

autor328:

Os trabalhadores, capatazes e estancieiros, em geral todos que podem comprar, usam um gibão, um colete e calções, ceroulas brancas, um chapéu, sapatos e poncho. Seus peões, em contrapartida, não usam nada além de chiripá, que é um pedaço de tecido de lã grossa, preso em volta da cintura. Muitos deles não usam camisas, porém usam chapéu, ceroulas brancas, um poncho e botas curtas, produzidas com o couro das pernas de um potro ou bezerro, outros usam couro de gato selvagem.329

Observa-se que os elementos do vestuário aqui citados, do ponto de vista

iconográfico, assemelham-se àqueles descritos pelos viajantes já citados, porém

acrescidos de duas peças que fazem parte do conjunto elaborado por Fagundes,

que aparecem pela primeira vez na aquarela de Vidal: as faixas à cintura para

prender a faca330 e as botas de tigre ou gato-do-mato, nominado aqui gato

selvagem.

Porém, o principal ponto a ser considerado na aquarela de Vidal são as

diferentes possibilidades de uso do vestuário, descrito ora como traje do peão, ora

como traje do estancieiro, ou seja, os elementos foram pulverizados na aquarela nos

diferentes sujeitos retratados. Embora o autor tenha reservado uma das obras para

apresentar o gaúcho, nominada Gaúchos of Tucumam, as características descritas

em relação ao vestuário reverberam em outros sujeitos. Posto isso, importa registrar

que o autor, no texto que acompanha a obra, afirma que “todos os compatriotas são

chamados pelos habitantes de Buenos Aires de gaúchos”331. Ou seja, percebe-se o

entrelaçamento de diferentes tipologias ecoando para um único indivíduo, o gaúcho,

que por sua vez fora constituído de múltiplos sujeitos.

327

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 10. 328

VIDAL, Emeric Essex. Picturesque illustrations of Buenos Ayres and Monte Video. London: Published by R. Ackermann, 1820, p. 71-84. 329

Ibidem, p. 76 (tradução nossa). 330

Ibidem, p. 115. 331

Ibidem, p. 89 (tradução nossa).

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118

Situando o olhar no terceiro nível de interpretação proposto por Panofsky, no

que se refere à iconologia, é possível verificar que Vidal retratou em uma mesma

aquarela múltiplos sujeitos, passando a mensagem de um Prata integrado,

fortalecendo a ideia de províncias unidas pela independência da coroa espanhola. E,

ao mesmo tempo, uma diversidade entrelaçada pelo capital. Os compatriotas, como

designou o autor, estavam convivendo, de certa forma, em harmonia no mesmo

espaço com os “conquistadores” europeus, porém importa registrar que essa

harmonia estava diretamente relacionada com a economia, já que todos os citados

descritos pelo autor tinham relação com o comércio e, portanto, mantinham uma

suposta reciprocidade. Pelo menos na imagem sugerida pela aquarela.

É importante considerar a posição do autor, que oficialmente representava os

interesses ingleses. A Inglaterra se destacava como grande potência do período e

tinha intenso interesse na região do Prata. Seus produtos, em especial o couro,

eram valorizados pela indústria inglesa, em contrapartida os produtos

manufaturados ingleses eram bem-vindos no Prata, e com esses fatores somados à

competência marítima da Inglaterra e à facilidade da navegação no Rio da Prata, as

relações comerciais tornaram-se atrativas e evidentes. Dessa forma, todos os

habitantes do Prata faziam parte da rede de interesses dos ingleses, uma vez que

poderiam contribuir para seus objetivos comerciais. Tais observações podem ter

concorrido para a publicação das aquarelas de Vidal em 1820 na Inglaterra, a fim de

apresentar uma região rústica, mas em desenvolvimento.

Os homens de Vidal, de diferentes classes sociais, embora rústicos,

misturavam elementos da moda inglesa, que imperava no período, com a variedade

de peças do vestuário gaúcho, combinação que contribuía para a aproximação dos

sujeitos. A imagem apresenta combinações coloridas entre os diferentes trajes, uma

característica da moda inglesa chamada de dandismo, com “coletes e calções de

cores diferentes; por exemplo, um colete vermelho e calções amarelos poderiam ser

usados com casaco azul [...]”332. Além das cores, as aquarelas de Vidal e Debret

retratam peças de formas que muito se aproximavam do vestuário do cavaleiro

inglês, com seus uniformes rurais funcionais. Esse sujeito na Inglaterra se vestia

com “casaco de lã com botões de metal, colete, calça de montaria bege usada para

332

LEVER, James. A roupa e a moda: uma história concisa. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 160.

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119

dentro das botas e chapéu de aba estreita e copa alta”333, referências que

contribuíram para a composição do traje proposto por Fagundes.

A técnica pictórica de Vidal de colocar os personagens em movimento seduz

o espectador ao mesmo tempo que esclarece, em razão do comportamento dos

tecidos ao vento. Os trajes retratados no centro da imagem corroboram a proposta

de Fagundes quando credita a usabilidade de palas finos, camisas com mangas

fofas e o lenço à pirata nos tons vermelho e branco.

Diferentemente dos homens de Debret, que pareciam estar posando para

uma cena cuidadosamente produzida, com todos os referenciais atribuídos como

seus, emitindo autoridade aos retratados, os homens de Vidal parecem não ter

tempo para posar. O movimento trava um diálogo vívido com o leitor, os retratados

quase ultrapassam a moldura, como a convidar a fazer parte da cena. A imagem

não se esgota no visível. Ou talvez essa percepção seja resultado do caminho

percorrido por esta investigação, pois “aquilo que lemos em um quadro varia

conforme a pessoa que somos e conforme aquilo que aprendemos”334.

Seguindo com as fontes de Antonio Augusto Fagundes, outro artista é citado

na obra, o pintor uruguaio Juan Manuel Blanes, conhecido por contribuir para a

produção histórica do Uruguai por meio de suas pinturas a óleo. Nascido em 1830,

filho de pai espanhol e mãe argentina, autodidata no ofício da pintura, Blanes

buscou se aperfeiçoar em Florença e se dedicou a pintar o nacional, tornando-se

conhecido como o primeiro pintor daquele país, e o fato de seguir o caminho da

pintura histórica acarretou mais status ao artista. Porém, diferentemente de Emeric

Essex Vidal, Blanes não esteve pessoalmente nas cenas retratadas em suas

pinturas, ele viveu em outro tempo. Tempo de busca pela identidade nacional.

333

FOGG, Marnie Tudo sobre moda. Rio de Janeiro: Sextante, 2013, p. 116. 334

MANGUEL, Alberto. Lendo imagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 90.

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120

Dessa forma, Blanes coloca as suas produções a serviço da afirmação da

identidade nacional, cria símbolos pictóricos da nacionalidade uruguaia, produz as

primeiras imagens da história da iconografia rio-platense, ocupando um lugar

privilegiado na representação imagética daquele país.335 Nas cenas produzidas

alguns personagens são evidenciados, entre eles os gaúchos. De acordo com

Emma Sanguinetti, o pintor “tinha simpatia por aqueles que estavam desaparecendo

diante das mudanças sociais e econômicas do país: os gaúchos e os índios”336.

Dessa forma, Blanes produz uma série intitulada Gauchitos, com personagens

mesclando ideal, fantasia e realidade. Embora não se tenha registro das datas

exatas das citadas produções, Sanguinetti assegura que as primeiras pinturas da

série iniciaram em 1868. Suas obras tornaram-se referência e “foram repetidas

infinitamente em capas de livros”337.

Na década de 1950, o Uruguai produziu uma coleção de livretos comentados

em três idiomas – espanhol, inglês e francês – sob o título “Arte de Las Americas”,

em que foram reproduzidas importantes obras de seus principais pintores, entre elas

uma série intitulada Los gauchitos de Blanes. A coleção, que contou com reedições,

continha seis reproduções de Blanes e alcançou uma ampla circulação no Sul do

Brasil, chegando aos tradicionalistas gaúchos e aos acervos de Centros de

Tradições Gaúchas, que ansiavam por referências. Dessa forma, das seis

reproduções, foram selecionadas para análise quatro obras que retratam

individualmente o gaúcho, cada uma mostrando o personagem por um ângulo.

E, entre outras obras de Blanes que ilustram o dia a dia e os costumes dos

gaúchos, uma em especial atenta para a história do vestuário, obra de 1881,

intitulada Los tres Chiripás. Mostra o chiripá primitivo, o chiripá farroupilha e a

bombacha, três das principais peças do traje gaúcho proposto por Antonio Augusto

Fagundes. Dessa forma, foram selecionadas cinco produções de Juan Manuel

Blanes para análise.

335

SOUZA, Susana Bleil de. A palheta e o pincel na construção de um mito fundador. Esboços. Florianópolis, nº 20, p. 155-168, 2008, p. 161 e 164. 336

SANGUINETTI Emma. Juan Manuel Blanes. Montevideo: Altea, 2014, p. 16 (tradução nossa). 337

VARAS, Alberto. Buenos Aires: una trilogia metropolitan. Arquitetura, paisage y espacios urbanos en transición. Buenos Aires: Nobuko, 2006, p. 417.

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121

Figura 23 - Atardecer, Juan Manuel Blanes, óleo sobre tela (48x40cm), s/d.338

Figura 24 - Amanecer, Juan Manuel Blanes, óleo sobre tela (48x40cm), s/d.339

Figura 25 - Crepusculo, Juan Manuel Blanes, óleo sobre cartão

(24x28cm), s/d.340

Figura 26 - La Aurora, Juan Manuel Blanes, óleo sobre cartão

(28x23cm), s/d.341

338

ARGUL, José Pedro. Arte de Las Americas: Los Gauchos de Blanes. Montevideo: Editorial Mosca Hnos., 1953. 339

Ibidem. 340

Ibidem. 341

Ibidem.

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122

Nas obras Atardecer e Amanecer, Blanes retrata o personagem com chiripá

primitivo na altura dos joelhos, conforme descrição dos viajantes, já as ceroulas com

franjas, ou ceroulas de crivos, aparecem por dentro das botas, enquanto o chapéu

da obra Atardecer apresenta indícios de que seja de palha. O artista complementa

os trajes com o cinturão de bolsas ou guaiaca, que não havia sido registrado pelas

fontes anteriores. Tais elementos conversam com o vestuário da obra de Fagundes,

disposto nas Figuras 9, 10 e 11, corroborando a declaração desse autor quando

afirma sobre os diferentes usos do vestuário gaúcho tradicionalista.

Juan Manuel Blanes ilustra na composição dos vestuários de Crepusculo e La

Aurora o chiripá farroupilha, peça que ainda não havia aparecido entre as fontes

anteriores, possivelmente por ter surgido mais tarde. Fagundes o inclui na

composição do traje gaúcho que afirma ter sido usado entre 1820 e 1865.342 Conde

d‟Eu, em “Viagem militar ao Rio Grande do Sul (agosto a novembro de 1865)”,

comentou que o chiripá estava sendo utilizado na Guerra do Paraguai de forma

errada:

[...] em vez de enrolarem o chiripá nas pernas, como fazem os soldados orientais e brasileiros, de modo a fazer dele uma espécie de calças, acham mais simples enrolá-lo ao mesmo tempo à roda das duas pernas, formam assim como que uma saia perfeitamente cilíndrica.343

Ou seja, havia diferentes formas de uso, fato confirmado também por Athos

Damasceno quando discorre sobre a usabilidade dos tecidos grosseiros urdidos nas

estâncias: “[...] os gaúchos usavam, quer enfiadas pela cabeça à guisa de poncho,

quer passadas entorno da cintura, como tanga ou tirador, ou ainda por entre as

pernas, como xeripá.”344 Segue desenho do chiripá farroupilha a fim de ilustrar o

tamanho aproximado, a possível modelagem e a forma de uso mais comum:

342

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 15. 343

ORLÉANS, Luís Filipi Maria Fernando Gastão de (Conde d‟Eu). Viagem militar ao Rio Grande do Sul. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936, p. 155. 344

FERREIRA, Athos Damasceno. Apontamentos para o estudo da indumentária no Rio Grande do Sul. In: FERREIRA, Athos Damasceno (et al.). Fundamentos da Cultura Rio-grandense. Porto Alegre: Faculdade de Filosofia/UFRGS, 1957, p. 77.

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123

Figura 27 - Chiripá farroupilha.345

De acordo com Antonio Augusto Fagundes, o “novo chiripá, em forma de

grande fralda passada por entre as pernas, adapta-se bem ao ato de cavalgar e

essa é certamente a explicação para o seu aparecimento entre os gaúchos das três

pátrias”. O autor justifica ainda o nome atribuído à peça afirmando que o “chiripá que

denominamos de „farroupilha‟, não só para diferenciá-lo do anterior mas porque foi a

peça mais usada pelos farrapos (1835/1845)”. No entanto, são poucas as descrições

sobre a peça nas obras citadas pelo autor.

O mesmo acontece com a bombacha – traje utilizado pelos gaúchos entre os

períodos de 1865 e 1976 –, porém Blanes a traz para o dialógo imagético, a última

peça das quatro citadas como “complexos da indumentária masculina no Rio Grande

do Sul, que domina o vestuário do gaúcho”, segundo Fagundes.346 Todavia, a

referência para o vestuário tradicionalista gaúcho que inclui a bombacha é militar – o

item fez parte do traje oficial em algumas guerras nos países do Sul. A primeira

descrição consta nos registros de Saint-Hilaire, ainda no início do século XIX, que,

ao se referir aos soldados guaranis sob a guarda do Conde de Figueira, menciona

345

ACRI, Edison. O Gaúcho: usos e costumes. Porto Alegre: Grafosul, 1985, p. 111. 346

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 6.

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124

seus uniformes, dizendo seguirem “mais ou menos a modelagem do feitio dos

uniformes dos Cossacos”, referindo-se aos soldados russos, que utilizavam amplas

bombachas. No entanto, a referência de bombacha para Fagundes vem de Ângelo

Dourado em “Os voluntários do Martírio”, que apenas cita e não descreve, e do

militar brasileiro Dionísio Cerqueira, que descreve em seu diário sobre a Guerra do

Paraguai, evento de que participou, a utilização do vestuário por diferentes grupos

de soldados, entre eles a cavalaria da guarda nacional de Rio Grande. Descreve

Cerqueira:

Alguns tinhambarbas longas que lhes desciam até o peito, e cabelos trançados que chegavam quase a cintura. Seu guisamento era digno de nota: longas adagas de fortes punhos com virotes em cruz e bainhas de prata lavrada; pesadas chilenas também de prata, [...] chepéu de feltro de abas estreitas, cobertos de ganga vermelha e presos por barbicachos de borla à ponta do natiz; bombachas vermelhas ou negras e ponches de bicunha de cores vivas ou de outros estofos bordados a seda e agaloados; [...] um par de pistolas à cintura, na pistoleira, que era a larga guaiaca, espécie de balteo coberto de chaparias e moedas, onde guardavam onças e libras de ouro, patacões e bolivianos de prata. Os cavalos tinham as crinas tosadas em cogotilho e as colas atadas. Cada um tinha em cima um montão de prataria lavrada.[...] Todos tinham boleadeiras, umas de marfim, outras de ferro retovadas de couro, presas debaixo dos pelegos do lado da garupa. Em muitos, viam-se laços bem trançados presos a cinchador, [...] era um quadro pitoresco. Haviam altos e robustos, claros, de olhos azuis e cabelos alourados; outros morenos, musculosos, de cabeleiras negras e lisas [...], um ou outro negro. Parecia uma cabila de guerreiros da Mauritânia.347

A bombacha de fato fazia parte de uniformes militares em diferentes partes do

mundo, não era exclusividade do gaúcho. A introdução de uniformes militares a fim

de identificar os soldados em guerra surgiu na segunda metade do século XVII na

França, e se espalhou por todos os países europeus, chegando à América pelos

colonizadores348, vestindo os homens nas guerras e revoluções ocorridas na

América do Sul.

347

CERQUEIRA, Dionísio: “Reminiscência da Campanha do Paraguai” - 1865/1870. Edição da Biblioteca Militar – Vols. CXXV e CXXVI. Rio de Janeiro: Gráfica Laemmert, s/d, p. 302-304. 348

BOUCHER, François. História do Vestuário no Ocidente: das origens aos nossos dias. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 254.

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125

Figura 28 - Los tres Chiripás, Juan Manuel Blanes,

óleo sobre tela (40x50cm), 1881.349

A bombacha é retratada na obra Los tres Chiripás, compondo o vestuário do

primeiro homem à esquerda na imagem, enquanto que os outros dois homens

apresentam chiripá farroupilha e chiripá primitivo. A imagem com característica

atemporal apresenta a intenção do autor em reunir as principais peças do vestuário

do gaúcho utilizadas ao longo da história em uma mesma obra. Dessa forma,

corroborando a cronologia do vestuário, são retratados homens com fisionomias que

acompanham a idade das peças.

A imagem expõe vastos campos, paisagem característica do Uruguai, da

Argentina e do Sul do Brasil, com o personagem central, o gaúcho, em suas

diferentes formas e conceitos retratados pelos viajantes de outrora. Uma imagem

romantizada de um gaúcho idealizado pelo autor e influenciado pelo contexto, que

teve excelente receptividade, visto que, conforme citado, as obras de Blanes se

caracterizam como pintura histórica, que à época era considerado o “gênero artístico

mais nobre e completo, não só por incluir em sua constituição todos os gêneros da 349

SANGUINETTI, Emma. Juan Manuel Blanes. Mondevideo: ALTEA, 2014, p. 16.

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126

pintura, mas também por abordar em suas telas as cenas mais virtuosas da ação

humana”350.

Blanes acreditava que com o “conhecimento científico da história, aliado às

perspectivas sobre a arte, poder-se-ia chegar a uma representação verossímil da

realidade”351. No entanto, vê-se na série Gauchitos um gaúcho solitário, melancólico,

rodeado por campos vazios, enquanto que Los Tres Chiripás apresenta três

gaúchos reunidos em família, quando no curso da história, desde o século XVIII, o

gaúcho fora registrado em intensas atividades com gado e cavalos e sem mulheres.

Talvez a representação verossímel da realidade a que o autor se refere esteja

ligada ao contexto que o gaúcho estava vivendo no final do século XIX, período em

que as obras foram produzidas. Uma realidade em que o gaúcho já não tinha

espaço para permanecer em liberdade, vivendo dos campos com gados livres em

abundância. O gaúcho, que era o sujeito principal dos campos, conhecedor das

atividades campeiras, continua como sujeito central na obra, mas no centro do

campo vazio, tanto que nem é preciso usar esporas e boleadeiras. E o laço, na

espera para ser usado. Tal observação talvez esteja subtendida nos próprios nomes

das telas – Amanecer, atardecer, Crepusculo e La aurora. Não importa a fase do dia,

ele ainda estará ali, sozinho em meio a um campo imenso, porém vazio. Pois essa

nação que se formara, resultado de batalhas pela independência em que o próprio

gaúcho lutou, estava permeada de leis, com o gado cercado legalmente pelas

estâncias. Não havia mais espaço para “aquele” gaúcho.

Com efeito, o lugar do gaúcho passou a ser no imaginário de uma nação,

como um pesonagem identitário de um país em ascensão. E o que se conseguia

expor desse personagem nas pinturas com maestria talvez fosse o vestuário, visto

que o gaúcho não tinha em sua trajetória um epísódio épico que pudesse ser

registrado, ainda que eles, os gaúchos, tivessem sido determinantes nas lutas pela

independência e pela organização do gado nas estâncias, entre outras ações.

Porém, poucos foram os episódios históricos apreendidos nas telas tidas como

representantes da “história oficial” em que ele se fez presente como protagonista.

350

DE CASTRO, Isis Pimentel. Pintura, memória e história: a pintura histórica e a construção de uma memória nacional. Revista de Ciências Humanas. Rio de Janeiro, nº 38, p. 335-352, 2005, p. 340. 351

PRADO, Maria Ligia C. Política e nação na pintura histórica de Pedro Américo e Juan Manuel Blanes. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v. 39, p. 20-25, 2007.

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127

Logo, pode-se afirmar que o protagonista das cinco obras em análise é o

vestuário masculino. A série Gauchitos está menos para pintura histórica e mais

para produção fotográfica de uma coleção de moda, para demonstrar como era a

roupa. A atenção do autor se volta para a posição do “modelo”, a composição dos

trajes, o caimento dos tecidos, a distribuição e combinação de cores, a modelagem

das peças do vestuário, distribuição hamônica dos acessórios, ponto focal, entre

outros aspectos desse tipo. Era sim uma coleção! Uma coleção de vestuário ideal de

um personagem que estava sendo introduzido como identidade, que permaneceria

na “moda” por inúmeras estações. Uma coleção que segue sendo copiada

constantemente, ainda que seja uma coleção criada fora do seu tempo, uma coleção

não de moda, mas de indumentária.

3.2 IMAGENS ENCENADAS QUE ANUNCIAM UM VESTIR GAÚCHO: DOS

CIRCOS CRIOLLOS A PEDRO RAIMUNDO

Embora esta investigação seja sobre o gaúcho brasileiro, a gênese histórica

desse personagem perpassa os três países: Uruguai, Argentina e Brasil. Como visto,

a preocupação com o “registro” da figura desse personagem emergiu nos três

países, com o intuito de fortalecer suas identidades. Juan Manuel Blanes, retratando

o nacional, Elias Régules e João Cezimbra Jacques, dando início às instituições

gaúchas, e correndo os três países os Circos Criollos, um teatro itinerante que

circulava apresentando um suposto “morto”, que estava sendo forçado a ressuscitar,

por meio de imagens. De acordo com Martine Joly, no sentido de “imago”, do latim,

que se refere a “máscara mortuária usada nos funerais na Antiguidade romana”,

uma acepção que vincula a imagem, que pode ser o espectro ou a alma do morto,

não só à morte, como instrumento de comunicação, assemelhando-se ou

confundindo-se com o que represente352, a imagem traria à tona um suposto real por

meio de imagens escolhidas.

Na Argentina, a “mitologia gauchista”, como é chamada, repleta de

representações rurais, passou por diferentes modelos de representação ao longo da

história. Desde a aparição do personagem numa visão pejorativa, passando também

pela literatura no final do século XIX, a partir da publicação de textos e novelas,

352

JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Campinas, SP: Papirus, 2012, p. 18-19.

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128

como forma de introduzir no imaginário a identidade nacional353, tal qual acontece no

Brasil. Porém, o destaque fica para o pioneiro Bartolomeu José Hidalgo, que se

destacou no início do século XIX com poesias com temas gaúchos.

Entre as obras que foram destaque na Argentina, registra-se “El gaucho

Martín Fierro”, do argentino José Hernández, de 1872 e 1879, poesia que enaltece a

figura do gaúcho, que resistiu o quanto pôde à dominação.354 Outra obra foi “Juan

Moreira”, de Eduardo Gutiérrez, de 1879, romance-novela que retrata, além dos

costumes do gaúcho, a vida política na Argentina. Por fim, mas não menos

importante, “Don Segundo Sombra”, de Ricardo Güiraldes, obra de 1926, que

apresenta o gaúcho e se transformou em patrimônio da cultura nacional. De acordo

com Liliana Morini, “Don Segundo Sombra e Juan Moreira são personagens que

ficaram gravados na memória do povo e no imaginário popular”. Ainda segundo a

pesquisadora, os escritores tinham “o objetivo de mostrar o modelo do gaúcho de

uma época que estava prestes a terminar [...] e de resgatar a história de um gaúcho

que existiu realmente e romanceá-la para entreter o público leitor”355.

Além das poesias e dos romances na Argentina, e também no Uruguai,

sobressaíram-se os Circos Criollos. Considerados como o berço da teatralidade

argentina, os Circos Criollos eram companhias de teatro itinerantes que faziam

apresentações representando a vida do gaúcho, incluindo cavalos em suas peças

teatrais. Em 1884, o renomado ator uruguaio José Podestá, do Circo Irmãos Carlo,

estreou o personagem Juan Moreira, um espetáculo que teve como supervisor

Eduardo Gutiérrez, autor de novela e romance argentino que tem o gaúcho como

protagonista.356 O espetáculo pantomímico aconteceu em Paraná y Corrientes,

Buenos Aires. Em 1886, na cidade de Chivilcoy, Argentina, o espetáculo foi

aprimorado com danças e cantos de artistas locais e, pela primeira vez, com

diálogos. Nesse período, Buenos Aires era conhecida pela qualidade e quantidade

de espetáculos teatrais, principalmente estrangeiros. O sucesso do Circo Criollo

353

RIERA, Elena López. Memoria, relato e identidad nacional en el cine argentino contemporáneo: la mirada subversiva de Albertina Carri. Tesis (Doctoral), Facultad de Filologia, Traducció i Comunicaciói, València, 2013, p. 62 (Tradução nossa). 354

FALCÃO, Luiz Felipe. Entre o ontem e o amanhã: diferença cultural, tensões sociais e separatismo em Santa Catarina no século XX. Itajaí: UNIVALI, 2000, p. 211. 355

MORINI, Liliana. Juan Moreira - Don Segundo Sombra: duas histórias, dois gaúchos diferentes. Dissertação (Mestrado em Literatura), Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008, p. 89. 356

CARREIRA, André. Circo e Teatro: a construção da cena nacional argentina. Sala Preta. São Paulo, v. 6, p. 27-34, 2006.

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129

marcou uma nova fase na Argentina, sendo a apresentação teatral Juan Moreira,

interpretado por José Podestá, em 1886, considerada o marco de nascimento do

teatro nacional argentino357, logo o vestuário do gaúcho “morto” foi sendo

recuperado e passou a circular pelo Sul.

Nesse período de corrida por uma identidade nos três países – Argentina,

Brasil e Uruguai –, além das obras de arte, o gaúcho ganhou mais uma ferramenta

de disseminação da sua figura, as fotografias, assumindo o papel de “testemunho

segundo um filtro cultural”358, ou representando a criação de um testemunho.

Figura 29 - José Podestá representando Juan Moreira.359

357

Sobre circos criollos ver: SEIBEL, Beatriz. Historia del Circo. 1ª ed. Buenos Aires: Del Sol, 2005. PELLETTIERI, Osvaldo. Historia del teatro argentino en Buenos Aires: La emancipación cultural – 1884/1930. Buenos Aires; Galerna: Universidad de Buenos Aires; Faculdad de Filosofía y Letras, 2002. 358

KOSSOY, Boris. Fotografia & História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2012, p. 52. 359

PODESTÁ, José. Medio Siglo de Farandula. Córdoba: Ed. Rio de La Plata, 1930.

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130

A imagem retrata a representação do suposto gaúcho, que dialoga com os

Gauchitos de Juan Manuel Blanes, que por sua vez tecem relações com imagens

pintadas e descritas pelos viajantes. As imagens não cessam. Suas encenações

dominam o período e o vestuário segue como elemento indispensável do

protagonista, vestindo de sentidos o gaúcho ideal.

Na Argentina a chamada “ideologia criolla foi um dos pilares fundamentais no

processo de reconstrução da identidade nacional, entre o final o século XIX e início

do XX”360. A Figura 29 exibe a representação do gaúcho idealizado pelo teatro

mencionado361, que se tornou o personagem principal da identidade argentina. O

ator José Podestá era um dos principais artistas do período, reconhecido na

Argentina, no Uruguai e no Brasil, e contribuiu para o processo de disseminação da

cultura gaúcha, popularmente conhecida como cultura criolla. Segundo Hermínia

Silva, além de ator, José Podestá “se tornou um cantor e divulgador das canções

criollas, e os estribilhos das suas canções eram cantados por toda parte, lançando a

novidade das cançonetas sobre temas do momento”362.

Em 1884, após 13 apresentações do espetáculo Juan Moreira pela Argentina,

o Circo Irmãos Carlo seguiu em turnê para o Brasil. A equipe se instalou no

Politheama Fluminense, no Rio de Janeiro, onde permaneceu por quatro meses.

Durante sua estada no Brasil, José Podestá apresentou o “Clown criollo”363. Nelson

de Araújo ressalta que José Podestá, ao encenar Juan Moreira, daria início ao

chamado teatro gauchesco, calcado em temas criollos364, “cuja criação sobre a obra

de Gutiérrez o Imperador D. Pedro II veria no Rio de Janeiro quando ali estiveram,

ainda em 1884”365. Ou seja, além do show intitulado “Clown criollo”, Podestá

apresentou o espetáculo Juan Moreira também no Brasil. Entre os espetáculos com

representação do gaúcho apresentados no Brasil, esse é o primeiro registro

encontrado.

360

RIERA, Elena López. Memoria, relato e identidad nacional en el cine argentino contemporâneo: la mirada subversiva de Albertina Carri. Tesis (Doctoral), Facultad de Filologia, Traducció i Comunicaciói, València, 2013, p. 66 (tradução nossa). 361

A indumentária exibida por José Podestá retratada na Figura 29 apresenta o gaúcho do romance Juan Moreira de Eduardo Gutiérrez. O traje é uma apropriação das descrições das obras dos viajantes que passaram pela argentina no início do século XIX e dos artistas que retrataram por meio de pinturas gaúchos no período. Esse tema será discutido no capítulo seguinte. 362

SILVA, Hermínia. Circo-teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil. São Paulo: Altana, 2007, p. 124. 363

Ibidem, p. 125. 364

Na Argentina e no Uruguai a palavra criollo remete ao estilo gaúcho de viver. 365

ARAÚJO, Nelson de. História do Teatro. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1978, p. 209.

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131

Ao retornar à Argentina, José Podestá intensificou os espetáculos com

representações do gaúcho e transitou com sua equipe entre a Argentina e o

Uruguai. Logo constituiu sua própria companhia de teatro, que se tornou uma das

mais importantes. Formada por sua família e conhecidos artistas circenses, os

irmãos Podestá ficaram conhecidos no Uruguai, na Argentina e no Brasil,

interpretando obras literárias e poesias que tinham o gaúcho como personagem

principal366, reproduzindo cenários gauchescos.

Foram muitas as obras com viés gaúcho interpretadas pelos Irmãos Podestá

além de Juan Moreira, de Eduardo Gutiérrez. Entre elas, Martín Fierro, de José

Hernandes, com texto adaptado por Elías Regules em 1890367, no Uruguai, este que

foi um estudioso do tema, considerado o primeiro intelectual a apoiar o circo criollo

dos irmãos Podestá, onde criou e adaptou outras obras.368 Entre elas, contribuiu

para o aprimoramento do espetáculo Juan Moreira, indicando a inclusão da música e

dança El Pericon369, uma adaptação americana de Isa Canaria que se tornou

característica do Uruguai, da Argentina e também do Paraguai.370 Dança que

inspirou os tradicionalistas a fazer inclusões em suas práticas gaúchas.

No Brasil, as encenações (por brasileiros) circulavam entre o palco e as

revistas, apresentando por meio da imprensa escrita as cenas cuidadosamente

criadas de um suposto real, como no caso do fotojornalismo. Na década de 1940,

Porto Alegre era referência no mercado editorial. Entre as empresas que mais

editavam obras estava a Editora Globo, antiga Livraria Globo, uma das mais bem

sucedidas empresas do Sul com destaque no cenário editorial, principalmente na

primeira metade do século XX, responsável pela edição da Revista do Globo, do

Província de São Pedro e inúmeras outras obras que davam especial atenção à

cultura gaúcha.

Além disso, o governo de Getúlio Vargas havia projetado o Rio Grande do Sul

para todo o país e, consequentemente, aproximado o estado da sua capital federal,

o Rio de Janeiro. Dessa forma, notícias nacionais de temas diversos eram de

366

PODESTÁ, José J. Medio siglo de farándula: memórias de José J. Podestá. Buenos Aires: Galerna, 2003, p. 53. 367

SEIBEL, Beatriz. Historia del Circo. Buenos Aires: Del Sol, 2005, p. 57 e 62. 368

GUIDO, Clara Rey de; GUIDO, Walter. Cancioneiro Rioplatense - 1880-1925. Caracas: Biblioteca Atacucho, 1989, p. 126. 369

El Pericon é uma dança que foi adaptada da americana de Isa Canaria, que se tornou característica do Uruguai, Argentina e também do Paraguai. 370

ITURRIA, Raúl. Elías Regules: de La tapera a La Criolla. San Martin: Ediciones de La Plata, 2014, p. 129.

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132

interesse do estado. Logo, além dos jornais e revistas de âmbito estadual,

circulavam entre um número significativo de pessoas do estado periódicos nacionais

editados na capital do Brasil.

Dessa forma, embora o Estado Novo tivesse impedido o regionalismo em

nome de uma identidade única para o país, em 1944, a revista O Cruzeiro,

importante periódico semanal ilustrado de circulação nacional, lançado no Rio de

Janeiro, publicava uma ampla reportagem intitulada “Churrasco nos Pampas”, do

conhecido jornalista David Nasser, com fotografias do francês Jean Manzon, onde

apresentavam impressões da cultura do Sul.

Figura 30 - Reportagem “Churrasco nos Pampas”.371

O artigo, permeado de fotos, conhecido como fotorreportagem, tinha como

tema o churrasco, porém apresentava quase que em sua totalidade o dia a dia do

homem rio-grandense, trazendo à tona seus usos e costumes. Talvez uma forma de

371

O CRUZEIRO. Churrasco nos Pampas. Texto David Nasser. Foto de Jean Manzon. Rio de Janeiro, ano XVI, nº 49, 30 set. 1944. Acervo da Biblioteca Nacional - RJ.

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133

desviar-se da censura da ditadura de Getúlio Vargas, apresentando as

especificidades que representariam o estado, muito comum no período. No que se

refere à foto, é possível que tenha sido encenada, assim como as outras 19 que

fazem parte da matéria, visto que nesse período Nasser e Manzon introduziram

inovações ao jornalismo brasileiro, entre elas a foto posada.372 Porém, há indícios de

que os entrevistados sejam reais, em razão das histórias espontâneas por eles

contadas, indicando onde estavam, onde moravam, o que faziam e como atuavam

nas estâncias.

O fato é que a fotorreportagem circulou pelo país, mostrando como se

vestiam os campeiros ou gaúchos do Rio Grande do Sul. A Figura 30 apresenta três

peças de vestuário semelhantes aos itens do traje utilizado pelo gaúcho entre 1865

e 1976, conforme sugerido por Fagundes. A bombacha, peça que domina o conjunto

do vestuário, está presente nos três retratados, de cores lisas ou, no máximo, com

listras, como é o caso da bombacha do homem posicionado à direita, que

diferentemente dos demais traz um pala de seda. Os três homens ainda apresentam

botas pretas industrializadas, acompanhadas de esporas, guaiaca, chapéu tapeado

de abas largas e camisa de mangas longas. O que os diferencia são alguns

acessórios, descritos por Fagundes ao se referir a essa mesma época, como é o

caso da faca atravessada às costas em dois deles, sendo que um ainda traz um

relho pendurado. Porém, há uma peça que se sobrepõe, e que está sobre a

bombacha do homem do centro da imagem, a qual Fagundes chama de “tirador de

bagé”, um pedaço de couro amarrado à cintura, que se configura como peça

indispensável para o trabalho no campo.

Ao exame dos elementos que compõem a imagem, fica claro que houve

preocupação em atentar para os detalhes ao elaborar a fotografia. Registra-se que

havia mais de oito pessoas participando da fotorreportagem, e que aparecem nas

demais fotografias, porém houve uma seleção para que em uma imagem fossem

expostos diferentes elementos do vestuário do gaúcho. Contudo, a peça que domina

o conjunto do traje gaúcho no período, a bombacha, está presente em todos os

retratados.

372

TAVARES, Frederico de Mello; SCHWAAB, Reges (Orgs.). A revista e seu jornalismo. Porto Alegre: Penso Editora, 2013, p. 238. Ainda sobre David Nasser ver: CARVALHO, Luíz Maklouf. Cobras criadas: David Nasser e O Cruzeiro. São Paulo: Senac, 2001.

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134

A imagem foi produzida a fim de apresentar os costumes do homem campeiro

do Rio Grande do Sul aos leitores da revista O Cruzeiro de todo o país. Nesse caso,

essa análise se baseia nas teorias de Martine Joly, cabendo ressaltar que em

nenhum momento o texto narra o vestuário, porém a imagem foi utilizada como

ferramenta de expressão e de comunicação, constituindo “uma mensagem para o

outro” com critérios, como a contextualização da imagem, pois “qualquer mensagem

exige, em primeiro lugar, um contexto, também chamado de referente, ao qual

remete”373. Nesse caso a imagem transmitiu, por meio do vestuário, os costumes do

Rio Grande do Sul.

Quanto aos referenciais presentes na composição da imagem, tema central

desta investigação, cabe, pois, concluir que todos os elementos repercutem na

indumentária gaúcha proposta por Fagundes, embora reportagens dessa natureza

não estejam na bibliografia registrada na publicação do autor. Certamente haviam

outras manifestações ou obras em circulação no período apresentando os mesmos

elementos que fizeram parte da produção fotográfica de Jean Manzon e David

Nasser, que fundamentaram a proposta de Fagundes e foram referência para os

jovens tradicionalistas gaúchos se vestirem de gaúcho em 1947.

Ainda na década de 1940, circulava pelo Rio Grande do Sul um jovem cantor

que, embora tivesse nascido em Santa Catarina, fazia sucesso utilizando vestuário

gaúcho em suas apresentações. O “gaúcho alegre do rádio” ou “Cancioneiro dos

pampas”, como ficou conhecido, era Pedro Raimundo, que se tornou na década

seguinte um instrumentista, cantor e compositor famoso nacionalmente374.

Pedro, nascido na cidade de Imaruí, mudou-se para cidades como Laguna,

Blumenau e, em 1929, para Porto Alegre. Sua estada na capital gaúcha foi um

importante passo para o sucesso. Porém, no início de sua carreira teve de enfrentar

uma difícil situação financeira, quando decidiu tocar acordeom às voltas do mercado

público da capital gaúcha. Porém, logo formaria uma banda de músicos intitulada

“Quarteto dos Tauras”, e seguiria se apresentando por todo o estado do Rio Grande

do Sul, incluindo rádios gaúchas. No interior, o cantor reuniu referências para

373

JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Campinas, SP: Papirus, 2012, p. 55-56. 374

Sobre Pedro Raimundo, registra-se a excelente obra: LOPES, Israel. Pedro Raymundo e o canto monarca: uma história da música regionalista, nativista e missioneira. Porto Alegre: Letra&Vida Suliani, 2013.

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135

compor seu figurino e decidiu utilizar vestimentas gaúchas em suas apresentações,

tornando-se popularmente conhecido.375

Em 1943, seguiu para o Rio de Janeiro e iniciou sua carreira nacional, sendo

contratado por importantes rádios, que o projetaram nacionalmente. E, por continuar

a usar trajes e cantar músicas que retratavam o gaúcho, Pedro Raimundo foi

inspiração para outros cantores no que se refere à utilização de figurinos em

apresentações musicais, como Luiz Gonzaga.376

Figura 31 - Pedro Raimundo, 1960.377

Embora não fosse rio-grandense, o vestuário utilizado, bem como as letras de

suas músicas garantiram uma identidade a Pedro Raimundo.378 Cabe observar que

375

RAIMUNDO, Pedro. Minha vida contada por mim mesmo: Pedro Raimundo. Revista do Rádio. Rio de Janeiro, ano III, nº 26, 11 mar. 1950. 376

SPINDOLA, Elaine Miguél. Santa Catarina nos versos e na sanfona: análise de canções de Pedro Raymundo em uma perspectiva nativista. Dissertação (Mestrado em Ciências da Linguagem), Universidade do Sul de Santa Catarina, 2014, p. 63. 377

SOUZA, André Pinto de. Brasil - ritmos. São Paulo: Souza, 1960, capa. Acervo Israel Lopes. 378

Quanto ao sobrenome do cantor, não há consenso se seria Raimundo ou Raymundo. Os discos divulgavam Pedro Raymundo, porém seus familiares têm como sobrenome Raimundo. Acredita-se

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136

o cantor não vivia no campo e, portanto, o vestuário não tinha relação com

atividades campeiras, como no caso dos entrevistados de David Nasser. O propósito

do vestuário para Pedro Raimundo era contribuir para a representação de artista

imbuído de referências gaúchas. Desse modo, o vestuário tinha função de figurino,

que significa o traje usado por um personagem a fim de compor uma produção

artística, ou ainda pode ser designado como o guarda-roupa do artista, que nesse

caso tinha como função complementar as mensagens passadas pelo cantor em

suas apresentações.

As letras das músicas do cantor e compositor retratavam passagens da sua

vida e, principalmente, os costumes dos campeiros e gaúchos do Rio Grande do Sul.

A primeira canção que conferiu sucesso ao cantor no Rio de Janeiro e o projetou

nacionalmente foi “Adeus Mariana”379. A letra da música, de composição do próprio

cantor, contava um caso amoroso complicado com a personagem Mariana, e fazia

menção ao vestuário gaúcho com a seguinte frase: “É gaúcha de verdade dos

quatro costados, que usa chapéu grande, bombacha e esporas”. No ano seguinte,

fez sucesso com outra composição sua, intitulada “Gaúcho Largado”380, e a letra

novamente evidenciava o vestuário: “Quando eu ponho minhas botas, bombacha e

lenço encarnado toda gente logo grita: - Eta gaúcho largado”.

Ou seja, as letras das músicas e o figurino formavam o conjunto que

contribuiu para que Pedro Raimundo se tornasse conhecido como cantor gaúcho. É

sobre essa afirmação que se assenta a teoria de Roland Barthes, confirmada por

Martine Joly, no que se refere às mensagens que as imagens transmitem por meio

de certos elementos. Barthes chama de mensagem ou signo. O autor faz o seguinte

esclarecimento: “Do ponto de vista estrutural, um signo é constituído pela junção de

um significante (ou forma) com um significado (ou conceito, na linguagem de

Saussure).”381 O significado tem caráter conceitual, é uma ideia, enquanto que o

significante apenas atualiza. Os suportes do significante são o cenário, a música e o

guarda-roupa do artista. No caso de Pedro Raimundo, são alguns signos

transmitidos pelo autor, entre eles os costumes do gaúcho, e, dentro desse contexto,

que a alteração da vogal tenha sido uma opção do cantor, adotando assim como nome artístico. Uma opção que também pode ser verificada no nome do filho: Joecy Hedy Raymundo. 379

A música foi gravada em 1943 pela gravadora Colúmbia, sob o nº 55.462, e também pela Continental, com o nº 15.054. 380

Música gravada em 1944 pela Continental, projeto nº 15.178. 381

BARTHES, Roland. Imagem e Moda. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 37.

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137

o vestuário e a música são significantes que, associados ao significado, contribuem

para a formação do signo.

Segundo esclarece Barthes, ao emitir o signo é importante atentar para os

limites do inteligível, pois o valor estético está entre a forma do signo e seu

conteúdo, sem sair dos limites do inteligível. Ou seja, a mensagem é emitida pelo

autor, que imprime um estilo pessoal à narrativa dentro de um limite inteligível para

que seja bem compreendido pelo receptor do espetáculo.382 Dessa forma, sem

exageros na exposição dos significantes, para que o conjunto seja harmônico.

Sobre o figurino ou guarda-roupa do artista, reitera Gerard Betton, ele não é

um elemento isolado, ele faz parte de um conjunto criado para valorizar os gestos e

a atitude do personagem. Os trajes ainda podem ser classificados como “realistas”,

quando se tem cuidado com a reconstituição histórica, ou intemporal, quando

pertence a qualquer tempo, ou seja, quando a exatidão histórica cede a uma

preocupação maior: a de sugerir ou traduzir simbolicamente caracteres, estados de

alma, ou ainda criar efeitos dramáticos ou psicológicos.383

Diante do figurino proposto por Pedro Raimundo, parece acertado classificá-lo

como “realista”, já que indica uma temporalidade, reconstitui um tempo histórico, a

“história do tempo presente”384. Ele era vida e voz daquele tempo e, portanto, capaz

de alterar os referenciais. Muito embora não fosse um campeiro, no sentido de

executar as atividades do campo ele, em algum momento foi parte do dia a dia

deste, já que fez shows pelo interior do estado do Rio Grande do Sul, foi parte e

testemunho daquela história.

Entre as décadas de 1940 e 1950, Pedro Raimundo era tema frequente de

publicações da Revista do Rádio, chegando a compor a capa da edição de número

49, de 15 de agosto de 1950 (ver Anexo 4). Em 5 de setembro de 1950 a revista

publicou uma reportagem de duas páginas contando sobre a vida do cantor,

apresentando cinco fotografias, três delas parte uma produção fotográfica que,

segundo o texto, foi realizada em algum lugar do Sul do país, na segunda metade da

década de 1940.385 Entretanto, as fotografias foram utilizadas por um longo período

em diferentes publicações, a fim de divulgar o trabalho do cantor nos anos

382

BARTHES, Roland. Imagem e Moda. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 35-36. 383

BETTON, Gerard. A Estética do Cinema. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 57. 384

DELGADO, Lucilia de Almeida; FERREIRA, Marieta de Moraes (Orgs.). História do tempo presente. Rio de Janeiro: FGV, 2014. 385

A Revista não informava o fotógrafo nesse período.

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138

seguintes. Há indícios de que, embora algumas fotografias tenham sido produzidas

em ambiente externo, a imagem utilizada para compor a capa da revista em 15 de

agosto de 1950 e a exposta na Figura 31, que foi posteriormente colorida a fim de

compor a capa do livreto Brasil Ritmos, em 1960, façam parte da mesma produção

fotográfica citada. A interpretação se dá em razão do cenário das fotografias

produzidas internamente, e dos pormenores que compõem o figurino, como

padronagem dos tecidos, caimento e tamanho da bombacha, forma de unir o lenço

no pescoço – por meio de anel – e o penteado (ver Anexo 4).

Nas imagens o cantor utiliza como figurino a bombacha, bota industrializada,

lenço branco, porém realçado posteriormente com a cor vermelha, e um cenário que

traz uma cerca produzida com troncos, fazendo alusão ao ambiente do campeiro. No

entanto, o cantor faz uso de camisa xadrez, uma padronagem de tecido que,

estranhamente, constaria nas pesquisas de Antonio Augusto Fagundes como uso

em caso de luto.386 Uso que se repetiria em outros figurinos do cantor.

Em junho de 1949, a Revista do Rádio publicou uma matéria sobre Pedro

Raimundo em que consta uma foto com Getúlio Vargas. A legenda registra a recente

visita do cantor ao ex-presidente em sua fazenda no Rio Grande do Sul. Na imagem,

Vargas é retratado usando bombachas387, como fez muitas outras vezes,

principalmente quando estava em sua fazenda. Fato que seguramente contribuía

para a divulgação da referida peça do vestuário gaúcho no período.

Vê-se que os referenciais, independentemente da sua tipologia, seja em

âmbito local, estadual ou nacional, possivelmente alcançaram em algum momento

Antonio Augusto Fagundes. Imagens textuais, pictóricas ou encenadas permeavam

o período, e contribuíram para a formação do vestuário do gaúcho tradicionalista de

Fagundes.

386

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 23. 387

REVISTA DO RÁDIO. Rio de Janeiro, ano II, nº 16, 1º jun. 1949, p. 19. Acervo Biblioteca Nacional - RJ.

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139

CAPÍTULO IV – E A INDUMENTÁRIA DA "PRENDA" GAÚCHA?

4.1 ENTRE RELATOS, AQUARELA E MODA, O VESTIDO IDEAL DA PRENDA

TRADICIONALISTA

Desde as primeiras tentativas de elaboração da vestimenta da mulher

tradicionalista gaúcha, o grupo se mostrou confuso quanto ao seu modelo. As

pesquisas sobre os costumes e, consequentemente, o vestuário privilegiavam o

gaúcho como personagem principal do enredo, e o grupo de jovens precursores era

formado em sua totalidade por homens. Logo, a mulher ficou à sombra de um

protagonista que se apresentava com uma diversidade de roupas, categorizadas por

período.

Paixão Côrtes, líder do grupo de jovens tradicionalistas, registra em sua obra

sobre os “primórdios do movimento” que, no primeiro baile gaúcho, em 20 de

setembro de 1947, “poucas foram as prendas que se atreveram a vir com vestidos

de chita ao Baile Gauchesco [...], por falta de conhecimento, à época, das

características de como se vestia, outrora em festa, a mulher campesina”388. Essa

mesma preocupação é demonstrada na escolha do vestuário das prendas na

ocasião da III Semana Nacional do Folclore, quando apresentaram o “Festival

Gauchesco”, em 22 de agosto de 1950. Lessa e Côrtes afirmam:

Com referência às “prendas”, tivemos de improvisar algum figurino que nos parecesse lógico, enquanto tomávamos consciência de um novo item a acrescentar aos próximos formulários de pesquisa-de-campo: a indumentária gauchesca nas festas do passado. [...] No fim as “prendas” entraram em cena, com seus vistosos vestidos floreados. E o auditório quase veio abaixo, de tanta palma e entusiasmo, com a primeira apresentação, em palco, de danças tradicionalistas.389

Observa-se que desde as primeiras apresentações havia pesquisas sobre o

tema, já que estavam iniciando o movimento, mas as poucas referências

encontradas eram de vestidos de chita vistosos e floreados. Ainda de acordo com os

autores, o tema seria inserido nas investigações que estavam realizando sobre as

388

CÔRTES, João Carlos Paixão. Origem da Semana Farroupilha e primórdios do Movimento Tradicionalista. Porto Alegre: Evangraf, 1994, p. 112. 389

LESSA, Barbosa; CÔRTES, Paixão. Danças e andanças da tradição gaúcha. Porto Alegre: Garatuja, 1975, p. 110-111.

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140

festas do passado. No entanto, não há registros de pesquisas realizadas e

publicadas pelo grupo especificamente sobre o vestuário da prenda, ou

apresentadas em congresso, até a publicação de Antônio Augusto Fagundes.

As primeiras representações do vestuário da mulher tradicionalista gaúcha, a

prenda, deram-se na ocasião do primeiro baile em 1947. Sobre os registros

fotográficos do evento, Paixão Côrtes descreve na legenda da imagem: “Na foto,

apareço ao lado de minha irmã – Maria Zulema – que, com seus 12 anos, pela

primeira vez ia a um baile noturno e, justamente, com um „vestido de prenda‟, que

minha mãe lhe criara.”

Figura 32 - Maria Zulema Paixão Côrtes, no primeiro baile organizado em razão do

nascimento do Movimento Gaúcho, em 1947.390

Na imagem Paixão Côrtes se apresenta acompanhado de uma prenda com

vestido florido, que o autor chama de chita. Sobre a imagem fotográfica, “a imagem

contém em si um inventário de informações acerca de um determinado passado, ela

390

CÔRTES, João Carlos Paixão. Origem da Semana Farroupilha e primórdios do Movimento Tradicionalista. Porto Alegre: Evangraf, 1994.

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141

sintetiza no documento um fragmento do real visível”391. O vestuário, a pose e as

aparências estão congeladas, demonstrando que o vestuário masculino de fato é

reflexo dos trajes usados pelos gaúchos de outrora. No entanto, o vestido da mulher

(ou menina) retratada apresenta características da moda do período em que foi

captada a imagem – 1947.392 Vestido floral com cintura justa ao corpo, ou cintura

marcada, saia em corte godê franzido, decote e mangas bufantes, composição

complementada com as sandálias peep-toe. O tom de simplicidade do vestido se dá

em função da suavidade das características citadas, da quantidade de tecido

utilizado na feitura da saia, do uso de passa-fitas no decote e fitas nos cabelos,

tornando o conjunto mais simples em relação à moda do período.393

Tais observações nos levam a supor que a suavidade do vestido foi priorizada

em razão da imagem que se queria passar, fazendo alusão à simplicidade dos

modos campesinos, mas também em razão da idade da menina retratada, que, aos

12 anos, estava participando do seu primeiro baile. O fato é que não foram

encontradas referências dos vestidos do século anterior para a criação do traje

feminino, como se buscou fundamentar o vestuário masculino. Ou seja, a prenda

retratada estava representando costumes historicamente e intencionalmente

cristalizados, porém fazendo uso do vestuário da moda do período atual – 1947.

A mulher tradicionalista gaúcha que optava por participar das práticas do

movimento passou a utilizar semelhantes vestidos. Na década de 1950, o grupo

musical Conjunto Farroupilha, que ficou conhecido internacionalmente, fazendo

shows em diversos países com músicas tipicamente gaúchas, trazia duas cantoras

mulheres com trajes de prenda. E, mais uma vez, veem-se vestidos seguindo os

modelos em voga no citado período.

O modelo apresentava formas de feminilidade, importantes para a

consolidação de um movimento gaúcho que pregava valores e princípios tradicionais

cuidadosamente selecionados, em que os referenciais masculinos predominavam. O

vestido da moda na década de 1950 “exibia um retorno a uma estética mais

391

KOSSOY, Boris. Fotografia & História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2012, p. 113. 392

Para esta pesquisa a moda será entendida como mudança, um fenômeno social de considerável oscilação e que não pertence a todas as épocas, que nasceu como um processo excepcional, inseparável do nascimento e do desenvolvimento do mundo moderno. Ver: LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 24-26. 393

HERNNESSY, Kathryn. Fashion: the definitive history of costume and style. New York: Smithsonin, 2012, p. 322-323.

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142

„burguesa‟, que refletia conceitos mais tradicionais de gênero. O estilo parecia ser

uma inovação radical, mas em certo sentido aquela era uma inovação retrô”394.

Figura 33 - Capa do disco Gauchos Hi-Fi, Conjunto Farroupilha, 1957.395

O disco retrata a proposta de traje atual de Antônio Augusto Fagundes,

destoando apenas no comprimento do vestido, que para Fagundes encerra no peito

do pé, enquanto que na capa do disco as cantoras do Conjunto Farroupilha vestem

peças um pouco mais curtas. Mais uma vez um retrato da moda dos anos 50. A

pose dos retratados apresenta diferentes elementos característicos gaúchos, como a

dança, o vestuário, o violão e o campo, convidando o receptor a vivenciar aquele

universo de significantes. Ou seja, para apresentar-se como conjunto gaúcho, a

pose e os elementos da composição são importantes. A esse respeito, Annateresa

Fabris afirma que “colocar-se em pose significa inscrever-se num sistema simbólico

para o qual são igualmente importantes o partido compositivo, a gestualidade

corporal e a vestimenta usada para a ocasião”396.

394

SVENDSEN, Lars. Moda: uma filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p. 32. 395

HERENCIO, Diego. Conjunto Farroupilha: análise histórica e investigação de suas influências para a música do Rio Grande do Sul. Revista da Fundarte. Montenegro, ano 17, nº 33, p. 114-136, jan./jul. 2017, p. 127. Disponível em: <http://seer.fundarte.rs.gov.br/index.php/RevistadaFundarte/ article/view/439>. Acesso em: 14/07/2017. 396

FABRIS, Annateresa. Identidades virtuais. Belo Horizonte: UFMG, 2004, p. 36

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143

As imagens foram constantemente utilizadas como referência para apresentar

os elementos propostos como indumentária ideal pelo movimento gaúcho, pois, sem

um texto norteador, faziam a função de comunicar o vestuário que se pretendia.

Nesse sentido, Olga Simson diz que a cultura permeia cada vez mais o registro

imagético e passa a ser o texto orientador na construção de memórias.397

Logo, o vestido apresentado, com indícios de moda, ajudou a construir uma

imagem de vestuário tradicional da mulher gaúcha, tornando-se conhecido

principalmente no Rio Grande do Sul. No entanto, fora do Estado, em razão da

quantidade de enfeites e das estampas do tecido, o vestuário era confundido com o

traje das festas de São João e não tinha conquistado o reconhecimento como

vestido de prenda. Maria José Cardoso, Miss Brasil do Rio Grande do Sul, no ano de

1956, ao participar do concurso Miss Universo, na cidade de New York, optou por se

apresentar com trajes típicos do seu estado. No entanto, os jornalistas brasileiros

sinalizaram que a candidata não obteve sucesso em virtude do seu vestuário:

“Infelizmente, o traje de Miss Brasil não fez sucesso, pois, pretendendo ser de

gaúcha, mais parecia o de uma de nossas festas de São João.”398

As pesquisas de Antonio Augusto Fagundes indicam que a indumentária

feminina atual da gaúcha era reflexo da moda, somada à intervenção dos jovens

pioneiros do movimento, que, sentindo a necessidade de criar o traje para a mulher,

reuniram um apanhado de referências que consideravam adequadas para o

vestuário. Descreve o autor sobre a indumentária que acompanharia o homem no

Traje Atual do Gaúcho:

Sobre o vestido da mulher, de 1865 para cá, há fartas ilustrações: pinturas, daguerreotipo e fotografias. Sensível à moda, a mulher vestiu de acordo as suas posses. Mas, quando se iniciou o Movimento Tradicionalista, com a fundação do “35” Centro de Tradições Gaúchas, em Porto Alegre, a 24 de abril de 1948, os rapazes quando, algum tempo depois, filiou-se a primeira moça – sentiram a necessidade de criar um traje feminino que fizesse “pendant” com a brilhante indumentária masculina. E assim, consultando fotos antigas das próprias famílias e também inspirados no “traje de china” das tradicionalistas uruguaias e até mesmo – forçoso é reconhecer – no vestido “caipira”, que eles combatiam, criaram o hoje famoso “vestido de prenda”, dentro dos pressupostos válidos da indumentária feminina mais simples do Rio Grande – a de

397

SAMAIN, Etienne (Org.). O Fotográfico. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2005. 398

O CRUZEIRO. Rio de Janeiro, ano XXVIII, nº 42, 4 ago. 1956, p. 11. Acervo da Biblioteca Nacional - RJ.

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144

chita – ao fim do século passado e começos deste. Apesar de ser uma criação tradicionalista, o vestido de prenda conservou a padronagem e a sobriedade do vestido padrão da mulher gaúcha.399

Ou seja, o vestuário conhecido como vestido de prenda foi uma invenção dos

jovens tradicionalistas a fim de criarem um traje para acompanhar o vestuário

masculino, considerado por Fagundes como “brilhantes indumentárias masculinas”.

Dessa forma, o autor seguiu a indumentária utilizada pelas mulheres no primeiro

baile em 1947, acrescentando babados ao vestido a fim de chegar ao peito do pé e,

de igual modo, fazendo crescerem as mangas e o decote. Tudo complementado

com o fichu, peça que permeou o vestuário da mulher em diferentes países do

ocidente.

Vê-se que, dentro do movimento tradicionalista, faltavam referenciais que

justificassem a presença da mulher, o feminino apenas complementava um universo

que priorizava o gênero masculino, em que a prenda foi introduzida a fim de

complementar suas práticas. De acordo com os viajantes, o gaúcho era um homem

que vivia livre nos campos. Como visto, Nicolau Dreys descreve que na maioria das

vezes os homens eram vistos sozinhos.

No entanto, Fagundes afirma em sua obra que, a cada complexo da

indumentária histórica masculina, correspondia uma feminina400, desde as épocas

anteriores ao início das divisões periodizadas dos trajes gaúchos. O mesmo autor

registra o uso do vestuário indígena feminino, intitulado tipoy, “longo vestido formado

por dois panos costurados entre si, deixando apenas sem costurar duas aberturas

para os braços e uma para o pescoço. Na cintura, era apertado por uma espécie de

cordão, chamado „chumbé‟”401.

Já o traje usado pela mulher do estancieiro gaúcho ou patrão das vacarias,

segundo as pesquisas apresentadas sobre o Traje Gaúcho utilizado entre 1750 e

1820, era formado por “botinas fechadas, meias brancas ou de cor, longos vestidos

de seda ou veludo, mantilha, xale ou sobrepeliz, grande travessa prendendo os

cabelos enrolados e o infaltável leque”402. A respeito da mulher do peão das

vacarias, o autor registra que suas vestes refletiam suas condições financeiras:

399

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 24. 400

Ibidem, p. 06. 401

Ibidem, p. 09. 402

Ibidem, p. 10.

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145

A mulher desse homem, como é natural supor, vestia pobremente: nada mais que uma saia comprida, rodada e uma blusa. A saia era sempre de cor pesada, tendendo para o escuro, e a blusa ou era branca ou esbranquiçava com o uso. Pés e pernas descobertas403.

E, sobre o traje feminino no período subsequente, Fagundes descreve:

A mulher, nesta época (1820/1870) popularizou um tipo de indumentária na base da saia e do casaquinho, este com discretos enfeites de rendas. As pernas femininas sempre cobertas por meias salvo na intimidade do lar – e o cabelo solto ou trançado para as moças, e preso, em coque, para as senhoras. Sapatos fechados e discretos. Joias? Um simples camafeu, ou broche, fechando a gola do casaquinho. Ao pescoço, muitas vezes, o fichú, pequeno triângulo de seda, crochê, etc., com as pontas cruzadas fechadas por um broche. Mais rico ou miais pobre, esse foi o traje dá da mulher do Rio Grande do Sul nessa época. Simples, não é?404

Em toda a obra, suas pesquisas sobre o vestuário da mulher se limitam às

descrições supracitadas, bem como as pesquisas publicadas pelo movimento

tradicionalista em épocas posteriores. No entanto, os viajantes mencionavam a

presença da mulher.

Saint-Hilaire faz apontamentos acerca do vestuário das diferentes classes

sociais que presenciou no início do século XIX e, em todos os registros, destaca que

as mulheres eram bem vestidas. Em seu primeiro registro, o viajante expõe as

fragilidades das casas de família em se hospeda, mas ressalta que “a mulher do

proprietário da casa é certamente muito melhor vestida que as camponesas

francesas”405. Em outra experiência cita o autor que a “dona da casa estava vestida

como uma dama, semelhante a mulher da casa anterior [...], usava um vestido de

cor nakin, manga longa e um fichu de musseline; seus cabelos são presos com uma

travessa”406. Já no Uruguai, o viajante registra episódios semelhantes:

403

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: IGTF, 1977, p. 15. 404

Ibidem, p. 17. 405

SAINT-HILAIRE, Auguste de. Voyage a Rio-Grande do Sul (Brésil). Orléans: H. Herluison, Libraire-Éditeur, 1887, p. 5 (tradução nossa). 406

Ibidem, p. 5 (tradução nossa).

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146

Eu parei numa casa muito pobre, pequena, muito baixa, sem móveis e habitada por pessoas que pareciam ser extremamente pobres. O dono da casa e sua mulher são cobertos por trapos, mas a filha deles é vestida como uma dama, em nenhum lugar da Europa achamos tal diferença entre a casa das pessoas e suas roupas. [...] As mulheres são vestidas como damas [...].407

Contudo, a respeito das índias e mestiças, o autor as descreve com pés e

pernas despidas, camisa de algodão, saias do mesmo tecido e, em seus ombros,

uma peça de tecido azul, além de um chapéu de feltro na cabeça, ou então vestidos

indígenas, cabelos presos por travessas e fichu.408

Como já mencionado, embora não tenha sido citado por Fagundes, as

descrições de Arsène Isabelle condizem com o vestuário gaúcho proposto pelo

autor. Segundo Arsène, as mulheres do Rio Grande do Sul montavam a cavalo

como homens e se vestiam com “bombachas debaixo do vestido; além disso,

vestem uma longa sobrecasaca, espécie de amazona, às vezes de fazenda azul,

mas, ordinariamente, de chita florida ou listrada”409. Da mesma forma que Saint-

Hilaire, Arsène Isabelle as compara com as mulheres francesas: “Ataviadas dessa

maneira, parecem-se bastante às nossas altas e poderosas damas da nobreza

campestre.”410

Discorrendo sobre Buenos Aires e Montevidéu, o viajante descreve a

circulação de publicações de moda e a relação das mulheres com esta:

Com exceção do uso do pente, as mulheres de Buenos Aires e de Montevidéu seguem as modas francesas. Há um grande número de modistas e de costureiras dessa nacionalidade, e os jornais de modas de Paris circulam em todos os boudoirs (ou o que faz as vezes de boudoirs) das portenhas. Elas, porém, adotaram cores e desenhos especiais que se harmonizam com seus gostos e com seu caráter.411

407

SAINT-HILAIRE, Auguste de. Voyage a Rio-Grande do Sul (Brésil). Orléans: H. Herluison, Libraire-Éditeur, 1887, p. 213. 408

Ibidem, p. 271, 444, 518 e 567. 409

ISABELLE, Arsène. Viagem ao Rio da Prata e ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2006, p. 244. 410

Ibidem, p. 244. 411

Ibidem, p. 130.

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147

O autor cita que em Porto Alegre, embora em número reduzido, também

havia casas destinadas ao comércio de produtos franceses, porém em sua maioria

os produtos chegavam a Buenos Aires e Montevidéu, e posteriormente se dirigiam

para o Rio Grande do Sul, já que havia uma relação tanto comercial como política e

social entre os países platinos. Os poucos navios de comércio vindos da França que

chegavam à cidade de Porto Alegre eram oriundos de Marselha ou de Bordeaux,

mas traziam produtos com pouco qualidade.

Além da moda, os navios vindos de Marselha certamente traziam mais que

produtos de pouca qualidade, como cita o autor. Os navios transportavam culturas.

Marselha fica no sul da França e é a cidade mais antiga do país, em sua região

conservam-se antigas tradições, entre elas destacam-se os Gardians de Camargue,

exímios cavaleiros que, como o gaúcho, tornaram-se personagem identitário do

local. Camargue é uma região de planície de Arles, com um considerável parque de

vida selvagem, os gardians que ali viviam com seus inseparáveis cavalos trazem

elementos do vestuário semelhantes aos dos gaúchos e, sobretudo, a mulher, que

acompanha as tradições da região, correspondendo às camponesas descritas por

Saint-Hilaire, às quais nossas mulheres foram por vezes comparadas.

O vestuário feminino que encontrou no Rio Grande do Sul, descrito pelo autor

como vestido de cor nakin, manga longa com fichu de musseline, trazendo nos

cabelos uma travessa, é também a descrição do vestuário das tradicionais mulheres

de Arles.412 Não há dúvidas de que os navios que circulavam carregavam produtos,

artefatos de moda, mas criados por pessoas e, portanto, permeados de histórias,

memórias e culturas.

É consenso entre os historiadores dedicados ao tema que a moda tem origem

na França do século XIV. Contudo, impulsionada pela Revolução Industrial e pela

Revolução Francesa, no início do século XIX, a Inglaterra conquistou prestígio e

imprimiu uma nova concepção de moda, tornando-se referência. No entanto, a

França, que fora por muitos considerada o epicentro da moda ocidental, continuava

influenciando a região do Prata. Em especial, Paris, que era a menina dos olhos das

mulheres.

412

NIEL, Nicole. L’art du costume d’Arle. Traité theorique et pratique de coiffure et d‟habillage. Arles: Publication à compte d‟auteur, 1989.

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148

Jean Leon Pallière Grandjean Ferreira, filho e neto de artistas franceses, foi

um destacado pintor, nascido no Rio de Janeiro em 1823 e registrado como cidadão

francês ainda criança. Estudou em Paris e na Itália, entre os diferentes países por

onde passou, circulou entre a França e a América do Sul, e permaneceu em Buenos

Aires entre 1855 e 1866, período em que retratou o gaúcho e os costumes.

Dedicado ao pitoresco, Pallière constituiu uma ampla produção a respeito da

diversidade, referente aos usos e costumes de diferentes povos. Retratando o que

Marta Penhos designou de “tipos”413, ou seja, representando e classificando os

diferentes habitantes, seus costumes e vestimentas. A partir de uma observação

direta e pinturas que retratavam a cultura de povos distantes, suas produções

alimentaram a curiosidade europeia.

Pallière, que se dedicava inicialmente às temáticas religiosas, passou a

retratar o “tipo” gaúcho. Suas obras alcançaram ampla circulação, tornando-se

conhecido na região platina, e também na Europa. Com incontáveis obras sobre os

costumes dos habitantes da América do Sul, o gaúcho se configurou como tema

central, e foi personagem de uma série publicada em 1864 no Album Pallière -

Escenas Americanas.414

Entretanto, em oposição aos distintos viajantes que retrataram o gaúcho no

século XIX, Pallière se destaca por trazer para a cena das suas representações a

mulher. O gaúcho livre que vivia sozinho pelos campos surge de repente nas telas

do autor em cenas enamoradas. Com suas companheiras de retrato, bailam e

namoram, com seus trajes pitorescos que marcam os períodos do vestuário do

gaúcho.

Dessa forma, a seguir passa-se a examinar três imagens que retratam casais,

em que as mulheres se apresentam com três diferentes composições de vestuário.

413

PENHOS, Marta. Modelos globales frente a espacios locales: tensiones en la obra de dos artistas europeos en la Argentina del siglo XIX. Studi latinoamericani. Udine, v. 4, n. 4, 2008, p. 6. 414

OLIVEIRA, Luciana da Costa. Da imagem nascente à imagem consagrada: a construção da imagem do gaúcho pelos pincéis de Cesáreo Bernaldo de Quirós, Pedro Figari e Pedro Weingärtner. Tese (Doutorado em História), PUC-RS, Porto Alegre, 2017, p. 105.

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149

Figura 34 - Idilio criollo, óleo sobre tela (100x140cm), 1861.415

Na primeira imagem a mulher exibe vestuário rústico e simples, conforme

descrito pelos viajantes. As edificações rústicas do campo e a família são citadas por

diversas vezes nos registros de Saint-Hilaire, e retratadas em Los tres Chiripás, de

Juan Manuel Blanes. A mulher apresenta uma simples saia, com blusa de algodão

clara sob um fichu azul, está com os pés descobertos, parece sair do retrato e

transportar-se para a obra de Antonio Augusto Fagundes. Contudo, o gaúcho

retratado na tela teria de sair de cena e deixar a jovem de Pallière, já que chiripá

farroupilha não faz parte da composição do traje gaúcho de 1750 a 1820 proposto

por Fagundes, e que veste a mulher retratada. Ou será que Fagundes é que deveria

incluir o traje da mulher representada no vestuário do período de 1820 a 1870, já

que a obra de Pallière data de 1861?

Parece acertado dizer que se trata do vestuário da mulher que acompanha o

peão das vacarias, que, em razão das dificuldades no período, não tinha condições

de trocar frequentemente de roupa. A moda permeava a região e o período, porém

dependia das condições financeiras do interessado, logo as mesmas silhuetas

permaneciam por anos na população sul-americana.

415

Acervo do Museo Nacional de Bellas Artes, Buenos Aires, Argentina.

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150

Figura 35 - Bailando el gato, aquarela sobre papel (17x33,3cm), 1860.416

A segunda obra faz uma incursão pelas fortes cores dos vestuários,

retratadas também por Emeric Essex Vidal, aqui distribuídas harmoniosamente entre

os presentes no baile que ocorre em um galpão. O autor, mais uma vez, privilegia o

gaúcho com a presença de mulheres vestidas com suas saias, casaquinhos e fichu.

Ao centro, o casal baila El gato, uma dança de interior, a mais tradicional das danças

na região platina e em países próximos.417 O casal ao centro é assistido por uma

plateia, que admira a cena. Uma dança que apresenta indícios de autoridade, visto

que a atenção se volta para o corpo e os pés dos dançarinos.

Contudo, a concentração dos retratados na aquarela não convida o leitor a

adentrar a cena, mas para assistir do lado outro lado da imagem. Mesmo do lado de

fora, consegue vê-la para além da tela, limitada por uma moldura que registra,

sobretudo, os costumes de uma sociedade que mantém fortes relações de

sociabilidade. O ambiente recebe pessoas de diferentes idades, visto que há uma

criança no lado direito, um ambiente onde as pessoas sentem-se à vontade, tendo

em vista a posição do homem que está sentado próximo ao dançarino, que por sua

vez está ao lado de uma pessoa negra. O baile é para todos da “campanha”. Os

cabelos das mulheres apresentam uma diversidade, como sugere Fagundes.

Trançados para moças e presos para as senhoras. Talvez não destinados dessa

416

Acervo do Museo Nacional de Bellas Artes, Buenos Aires, Argentina. 417

VEGA, Carlos. Danzas y canciones argentinas: teorías e investigaciones - un ensayo sobre el tango. Buenos Aires: G. Ricordi, 1936.

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151

forma, por idade, porém há indícios de que diferentes mulheres usavam das duas

maneiras.

Figura 36 - Tienda, aquarela sobre papel (34,7cm), 1860.418

A terceira imagem, intitulada Tienda, se refere a um comércio de tecidos ou

de ponchos em Buenos Aires. A aquarela retrata o local de trabalho de uma mulher

que foi colocada propositalmente em fundo preto, a fim de destacar os personagens

centrais da trama – o gaúcho e a mulher. A imagem expõe a intenção do autor de

destacar o vestuário dos retratados, já que joga luz sobre os trajes, evidenciando os

modelos, tecidos e a moda propriamente dita que reverberava no período.

A imagem surpreende, em razão da data da sua criação. A aquarela, criada

em 1860, retrata o vestuário feminino que passou a ser usado na Europa, de fato, na

segunda metade do século XIX. Cabe, portanto, afirmar que a moda não demorava

a chegar. Dos elementos que faziam parte, podem-se destacar os chapéus muito

pequenos, caídos sobre a testa, ou amplos laços de fita prendendo os cabelos em

418

PALLIERE, Leon. Diario de viaje por la América del Sud - 1856 a 1866. Buenos Aires: Ediciones Peuser, 1945, p. 109.

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152

tranças ou cachos. A crinolina começou a se deslocar para a parte detrás e logo foi

eliminada, com a frente da saia mais ou menos reta e uma concentração de tecido

atrás, aparado pela anquinha.

O vestido da imagem apresenta modelagem utilizada entre 1860 e 1870.419

Os ornamentos franjados, os rufos do traje da vendedora, os tecidos listrados,

brocados e veludos apresentavam o avanço da indústria têxtil, possivelmente

chegando ao Sul do Brasil e à região platina pelos navios italianos, ingleses e

franceses que desde a primeira metade do século XIX atracavam com frequência na

América do Sul, levando e trazendo produtos. Uma troca para além dos produtos.

Um intercâmbio de culturas.

Os tecidos ilustrados na imagem trazem o caimento do vestuário, que

contribui para a produção de identidade. A leveza retratada pelo autor no traje do

gaúcho se contrapõe aos tecidos estruturados do vestuário da mulher, que, impostos

pela moda do período, dificultavam inclusive o deslocamento, em razão da

quantidade de tecido, mas sobretudo pela estrutura pesada das suas tramas. Ao

mesmo tempo que apresenta um homem livre e, portanto, com roupas que

acompanham suas atividades, como visto ao vento nas corridas de cavalos de

Emeric Essex Vidal, aparecendo anos depois na aquarela de Pallière. Também as

destacadas cores do vestuário do gaúcho continuam repercutido nos diferentes

elementos que compõem o vestuário na imagem anterior.

Tendo em vista a especialidade de Pallière, no período em que estava na

região do Prata, em retratar cenas do cotidiano do diferentes “tipos” que viviam em

Buenos Aires e interior, cabe, pois, dizer que as imagens apresentadas nas

aquarelas configuram como cenas do cotidiano do gaúcho. Ao mesmo tempo que é

retratado bailando uma das danças tradicionais do interior platino, e enamorado por

uma mulher do campo, é visto na companhia de outras em cenário urbano. Os

espaços de sociabilidade eram múltiplos. O gaúcho era o habitante comum da

região e, portanto, circulava por todos os ambientes, fazendo-se presente e

acompanhando a dinâmica dos lugares.

Logo, vê-se que as mulheres acompanhavam a moda, como registrou Arsène

já na primeira metade do século XIX. Os jornais e as costureiras locais eram

ferramentas dessa “cadeia ininterrupta e homogênea de variações, marcada a

419

ITALIANO, Isabel; VIANA, Fausto. Para vestir a cena contemporânea: moldes e moda no Brasil do século XIX. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2015, p.182-190.

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153

intervalos mais ou menos regulares por inovações de maior ou menor alcance”420,

que é a moda, como conceitua Lipovetsky. E foram essas variações que impediram

os folcloristas de pesquisar com mais afinco os elementos que poderiam constituir o

vestuário da prenda.

Ainda segundo Lipovetsky, “por ser um fenômeno social de considerável

oscilação nem por isso a moda escapa, de um ponto de vista histórico

abrangente”421. No entanto, a metodologia de investigação e registro da história teria

de seguir por outros caminhos, que não aquele escolhido por Antonio Augusto

Fagundes. “Pensar a moda exige que se saia da história positivista e da

periodização clássica em séculos e decênios, cara aos historiadores do

vestuário.”422 Porém, não que esse formato não tenha legitimidade, é o ponto de

partida, mas ele só irá reforçar as variações, e historicizar a moda é realizar um

trabalho que adentre o invisível, que dialogue e descreva para além do visível.

Na ânsia por retratar uma história do traje da prenda, viu-se que se realizou

uma seleção de elementos recortados de poucas imagens pictóricas e textuais, sem

observar os diálogos que as congelaram no tempo, por meio das descrições e

imagens dos viajantes, acarretando problemas que refletiram por anos no

movimento tradicionalista. Não há pesquisas dedicadas ao tema que deem conta da

indumentária da mulher gaúcha. Há questões que merecem ser buscadas. Porém,

por um viés tal qual sugere Gilles Lipovetsky: “Para além da transcrição pontilhista

das novidades de moda, é preciso tentar reconstruir as grandes vias de sua história,

compreender seu funcionamento, destacar as lógicas que a organizam e os elos que

unem ao todo coletivo”423.

Não que a investigação e periodização de Fagundes não tenham sido

importantes. Como afirmou Lipovetsky, o formato tem legitimidade, e a investigação

realizada e publicada sobre a indumentária gaúcha pode ser o ponto de partida para

uma história do vestuário gaúcho. Já que o autor “exilou” elementos do vestuário

constantes nas representações históricas do personagem registradas ao longo dos

séculos XVIII e XIX. No entanto, a composição foi produzida com base no que

parecia lógico na visão de Fagundes, que selecionou o que era de interesse do

420

LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 26. 421

Ibidem, p. 26. 422

Ibidem, p. 26. 423

Ibidem ,p. 26.

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154

movimento para a composição da identidade gaúcha. Mas viu-se ainda que essa

seleção não foi produzida exclusivamente pelo autor, foi uma construção emergente

para a fixação de uma nacionalidade que se buscava, principalmente na segunda

metade do século XIX, por escritores de diferentes áreas, incluindo folcloristas.

Por fim, pode-se afirmar que a indumentária de Fagundes, por dialogar com

diferentes viajantes, traz indícios do vestuário histórico. No entanto, as peças podem

não ter sido alocadas em locais e tempos distintos, bem como a usabilidade pode ter

sido diferente dessa apresentada. E, no que se refere à indumentária da mulher, a

problemática se amplia em razão da moda. Tal percepção foi revidada pelos

próprios pesquisadores do movimento tradicionalista, que instituíram normativas sem

referenciais para o vestuário da prenda. Tais questões serão discutidas no

derradeiro subcapítulo, a fim de se perceber a importância do vestuário e seus

problemas advindos da falta de investigação adequada, que refletiram ao longo do

tempo em um movimento que se expandiu para além do que foi imaginado pelos

jovens de 1947.

4.2 DOS BABADOS "FORA DE MODA" ÀS LEIS QUE NORMATIZAM: REFLEXOS

DO MOVIMENTO EM EXPANSÃO

Ao longo da história do movimento tradicionalista, algumas pesquisas foram

realizadas e apresentadas em congressos objetivando trazer à tona novas seleções

de vestuário gaúcho, haja vista os problemas com a indumentária principalmente da

mulher. De acordo com o tradicionalista Darcy Pereira da Paixão, na obra “A Prenda

Tradicionalista”, “O traje usado pelo gaúcho foi, ao longo dos anos, a temática mais

controvertida dos Congressos e Convenções tradicionalistas”424.

Entre as obras publicadas, registra-se uma importante investigação realizada

por Paixão Côrtes em 1978, intitulada “O Gaúcho: danças, trajes, artesanato”, de

1978, com versão em inglês. Entre os temas abordados na obra,, o autor faz uma

incursão pelos aspectos do artesanato têxtil, porém não apresenta investigações a

respeito do vestuário feminino.425 Importa registrar ainda outros textos diversos

sobre o vestuário da mulher, em pequenos livretos que circulam pelas instituições

424

PAIXÃO, Darcy Pereira da. A prenda tradicionalista. Santa Maria: Gráfica e Editora Pallotti, 1995, p. 111. 425

CÔRTES, J. C. Paixão. O Gaúcho: danças, trajes, artesanato. Porto Alegre: Garatuja, 1978.

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155

tradicionalistas, de autoria de Paixão Côrtes e Marina Paixão Côrtes. Entre as

principais obras que circulam está ainda a “Indumentária Gaúcha” organizada pelo

MTG do Rio Grande do Sul em 2003, muito utilizada pelo movimento. Consideram-

se importantes obras, que abordam temas fazendo uso de destacados teóricos, com

investigações importantes acerca da história da moda e do vestuário, contudo,

distante do que afirmou Lipovetsky. Certamente, poderiam ser classificadas como

importantes obras com possibilidade de ampliação nos moldes sugeridos pelo citado

autor.

Entretanto, uma iniciativa se destaca entre as demais, e demonstra uma

seleção por convenção. Em 1989, o pesquisador de costumes do Rio Grande do Sul

Luiz Celso Hyarup, conhecido por suas pesquisas acerca dos costumes e

especialista em figurinos, elaborou uma proposta de normativas para a confecção do

vestido de prenda, apresentada no XXXIV Congresso Tradicionalista Gaúcho, no Rio

Grande do Sul. A sugestão era composta por dois módulos que indicavam

elementos de um modelo de vestuário ideal para a mulher tradicionalista, e tinha

como justificativa a ausência de pesquisas a respeito da indumentária histórica da

mulher gaúcha. Ausência essa que, segundo o autor, somada ao “surto” do

movimento tradicionalista gaúcho, estava levando à disseminação de uma roupa

feminina com poucos elementos dos costumes gaúchos, voltada apenas a

encenações teatrais de danças gaúchas, com o intuito de abrilhantar apresentações.

Módulo I 1- O vestido deve ser de uma peça, com a barra da saia à altura do peito do pé. 2- A quantidade de passa-fitas, apliques, babados e rendas, é de livre criação. 3- O vestido deve ser de chita estampada ou lisa, sendo facultado o uso de tecidos sintéticos com estamparia miúda, ou peti-pois. 4- Vedado o degote. 5- Saia de armar, quantidade livre. 6- Obrigatório o uso de bombachinhas rendadas ou não, cujo comprimento deverá atingir a altura do joelho. 7- Mangas até os cotovelos, ¾, ou até os pulsos. 8- Lenço com pontas cruzadas sobre o peito, ou fichu (de seda com franjas ou crochê) uma ou outra peça, presa por broche ou camafeu. Facultativo o uso do chalé. 9- Meias longas, brancas ou coloridas, não transplantes. 10- Sapato de salto grosso, tipo escolar, que abotoa do lado de fora por uma tira que passa sobre o peito do pé. 11- Cabelo solto ou em trança (única ou dupla), enfeitado com flores ou fitas. Vedado o uso de coque, para solteiras.

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156

12- Facultado o uso de brincos de argola inteira, de metal. Vedados os de fantasias ou plástico. 13- Permitido o uso de pulseiras de aro de qualquer metal. Não aceitas as pulseiras de plástico. 14- Vedado o uso de colares. 15- Permitido o uso de um anel de metal em cada mão. Vedados os de fantasias. 16- É permitido o discreto uso de maquiagem facial, sendo vedados as sombras e batons brilhantes, lilases ou roxos. 17- Vedado o uso de relógio de pulso. 18- Livre criação, quanto à cores, padrões é silhueta, dentro dos parâmetros acima enumerados.426

Conforme descrito, a proposta indicava parâmetros a serem seguidos, porém

não fundamentava os elementos sugeridos, apenas afirmava-se que estavam

ancorados nas primeiras apresentações das mulheres tradicionalistas gaúchas da

década de 1950. Logo, um regulamento impediria as contínuas inovações que as

prendas estavam fazendo no período.

O texto foi concluído com um alerta por parte do autor, para que não fosse

questionado em razão da ausência de pesquisas a respeito, o que corrobora nossa

afirmação. Cita o autor proponente:

Para encerrar a presente tese concluímos que, do consubstanciado nos itens dos módulos acima apresentados nada poderá ser considerado discrepante ou inadequado no sentido de uma abstrata concepção do naqueles tempos não havia isso ou aquilo porque estamos tratando de um traje que não possui nenhum embasamento quer histórico ou folclórico [...].427

Em 1989, o movimento tradicionalista gaúcho havia conquistado um amplo

espaço, tanto político como geográfico. Os Centros de Tradições Gaúchas estavam

presentes em diversos estados do Brasil, principalmente, em razão da migração de

rio-grandenses, catarinenses e paranaenses para os demais estados do país,

sobretudo à fronteira oeste, e viam no movimento gaúcho uma forma de ocupar o

vazio deixado pela mudança. Além da expansão territorial, ampliou sua atuação

política e conquistou espaços. Dessa forma, o tradicionalista gaúcho tornou-se

conhecido em todo o Brasil, atuando em diversos segmentos, e os CTGs operando

com suas práticas “gaúchas”, conquistando cada vez mais espaços. Como reflexo

426

Luiz Celso Hyarup, 1989. Apud: ZATTERA, Véra Beatriz Stedile. Pilchas do Gaúcho – Vestuário Tradicional, Arreios e Avios de Mate. Porto Alegre: Gráfica e Editora Pallotti, 1998, p. 176. 427

Luiz Celso Hyarup, 1989. Apud: Ibidem, p. 178.

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157

dessa expansão, diferentes cidades e Estado instituem leis que oficializam a

indumentária gaúcha como traje oficial.

A primeira delas aconteceu no mesmo ano em que foram definidas as normas

para o vestido da mulher tradicionalista, em 1989, a partir da Lei Estadual n° 8.813

de 10 de janeiro, quando o Rio Grande do Sul oficializou como traje de honra e de

uso preferencial no Estado a indumentária denominada pilcha gaúcha. Em seguida,

em 1991, Santa Catarina criou lei semelhante, entre outras cidades em âmbito

municipal. No Rio Grande do Sul, a lei conferia autonomia ao Movimento

Tradicionalista Gaúcho para definir qual seria o vestuário oficial do gaúcho e,

consequentemente, da mulher tradicionalista, denominada prenda.

Dessa forma, os regulamentos foram necessários, a fim de cristalizar as

práticas e os conceitos criados, garantindo a continuidade da maneira como foi

imaginada nos primeiros anos de atuação, conforme citado pelo autor da tese que

sugeriu as normativas para o vestuário da prenda. Tal preocupação havia sido

sinalizada pelo tradicionalista Barbosa Lessa em 1954, quando afirmou que, se a

cultura invadida não for predominantemente forte, a confusão social é inevitável e

poderá “desnortear” os indivíduos428, conforme discutido no segundo capítulo deste

estudo. Ou seja, a preocupação em preservar as práticas instituídas foi demonstrada

desde a organização das primeiras instituições, e assegurada por regimentos, o que

demonstra as fragilidades das suas práticas que afirmam ser gaúchas.

Essa corrida pela institucionalização da indumentária da mulher gaúcha, por

meio da normatização do seu vestuário, pode ser compreendida como reflexo da

expansão do movimento tradicionalista. Dessa forma, esta investigação encerra

seus textos apresentando uma continuidade do primeiro capítulo, como forma de

favorecer o entendimento sobre a organização diante da extensão que alcançou.

Com o amplo crescimento do movimento gaúcho e o uso contínuo que se faz

do vestuário, a pilcha tornou-se um dos principais meios de identificação do gaúcho

tradicionalista, contribuindo para o fortalecimento da identidade. Logo, a

indumentária gaúcha tornou-se traje oficial do Rio Grande do Sul, sendo instituída

pela Lei Estadual nº 8.813, de 10 de janeiro de 1989, proposta pelo deputado

Joaquim Moncks, que trazia o seguinte registro:

428

LESSA, Luiz Carlos Barbosa. O Sentido e o Valor do Tradicionalismo. Porto Alegre: Publicação da Comissão Estadual do Folclore do Rio grande do Sul, 1954, p. 3.

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158

Art. 1º. - É oficializado como traje de honra e de uso preferencial no Rio Grande do Sul, para ambos os sexos, a indumentária denominada "Pilcha Gaúcha". Parágrafo Único - Será considerada "Pilcha Gaúcha" somente aquela que, com autenticidade, reproduza com elegância, a sobriedade da nossa indumentária histórica, conforme os ditames e as diretrizes traçadas pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho. Art. 2º. - A "Pilcha Gaúcha" poderá substituir o traje convencional em todos os atos oficiais públicos ou privados realizados no Rio Grande do Sul. Art. 3º. - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação. Art. 4º. - Revogam-se as disposições em contrário. Assembleia Legislativa do Estado, em Porto Alegre, 10 de janeiro de 1989.

A partir do texto é possível verificar a autoridade que o movimento gaúcho

adquiriu, ao ponto de o Estado instituir uma lei afirmando que as especificidades

serão traçadas pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho. Vejamos a autoridade

adquirida pelo movimento gaúcho ao longo do tempo e a sua organização após o

VIII Congresso Tradicionalista, em 1961.

O movimento de retomada da identidade do gaúcho se transforma em um

grande movimento cultural a partir da segunda metade do século XX, agora sob a

denominação Movimento Tradicionalista Gaúcho, congregando mais de 2.813429

instituições, registradas como ente jurídico, no Brasil e no exterior, com o objetivo de

preservar a cultura gaúcha430, sob a nomenclatura de Centro de Tradições Gaúchas

e afins. Em razão da quantidade de instituições tradicionalistas, verificou-se que

seria necessário um órgão com o objetivo de congregar, orientar, disciplinar e

garantir a preservação do todo instituído até então.

Dessa forma, durante o XII Congresso Tradicionalista Gaúcho, em 1966, foi

fundado o Movimento Tradicionalista Gaúcho - MTG, para melhor organização

daquele que já se configurava como um grande movimento. Embora a identidade

gaúcha houvesse se consolidado, era necessária a sua manutenção, assim como

uma instituição, hierarquicamente superior, para garantir a permanência do modo

429

Este número inclui apenas instituições fundadas por brasileiros, no Brasil e no exterior. 430

Por cultura levar-se-ão em conta as definições de Stuart Hall. Segundo o autor, “no sentido antropológico, cultura é um „modo de vida‟ de um povo, de uma comunidade, de uma nação ou de um grupo social. [...] de uma forma tradicional, cultura é vista como algo que engloba „o que de melhor foi pensando e dito‟ numa sociedade. [...] Basicamente, a cultura diz respeito à produção e ao intercâmbio de sentidos – o „compartilhamento de significados‟ – entre os membros de um grupo ou sociedade. [...] Além disso, a cultura se relaciona a sentimentos, a emoções, a um senso de pertencimento”. HALL, Stuart. Cultura e Representação. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, APICURI, 2016, p. 19-20.

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159

como foi idealizada. Pois identidade se configura como uma “produção” que nunca

se completa, está sempre em processo.431

O movimento gaúcho tomou grandes proporções e, visando crescer de forma

organizada, no que se refere à sua estrutura, em 1968, Glaucus Saraiva da Fonseca

publicou o “Manual do Tradicionalista”. Entre os documentos que compunham o

manual a ser seguido pelas instituições, orientações sobre a elaboração de

documentos institucionais à luz do que regula a instituição maior, como forma de

orientara criação de novas instituições.

No entanto, a proliferação de instituições gaúchas não se restringiu somente

aos limites geográficos do Rio Grande do Sul. A partir da década de 1970 foi

possível verificar a fundação de instituições, denominadas Centro de Tradições

Gaúchas, em outros Estados brasileiros. Dessa forma, viu-se a necessidade de

organizar também o movimento em âmbito nacional.

No início do século XX, inicia-se um amplo processo migratório sul-rio-

grandense para os demais estados do Brasil. Sabe-se que o Rio Grande do Sul,

durante o século XIX, recebeu uma forte imigração europeia. No entanto, ao chegar

o fim do citado século, as terras ficaram escassas, em virtude da ocupação das

áreas, somada à multiplicação das famílias. Os descendentes de imigrantes

esgotaram os núcleos coloniais, e as novas gerações migraram para outras regiões

do próprio Estado, e depois para outros. Desse modo, os excedentes dos imigrantes

cruzaram a fronteira do estado do Rio Grande do Sul, para colonizar os estados de

Santa Catarina e do Paraná. E, posteriormente, o Mato Grosso, Goiás, oeste baiano,

Maranhão, Acre, Pará, Rondônia, Roraima, e por todo o Brasil.432

A partir da segunda metade do século XX, o sul-rio-grandense vai

conquistando grandes extensões de terras, nos estados da fronteira oeste do país,

em razão da política de ocupação instituída pelo governo federal no século XX para

ocupar o interior do país. Dessa forma, o sul-rio-grandense deixa de ser pequeno

proprietário rural, passando a grande fazendeiro. Eles se veem como grandes

pioneiros que estão desbravando novas terras com trabalho e coragem.433

431

HALL, Stuart. Identidade Cultural e Diáspora. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, nº 24, p. 68-75, 1996, p. 68. 432

FACCIONI, Victor. Mais gaúchos-brasileiros que “gringos”. In: MAESTRI, Mário (Org.). Nós, os Ítalos-gaúchos. 2ª ed. Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS, 1998, p. 204. 433

OLIVEN, Ruben George. A parte e o todo: a diversidade cultural no Brasil Nação. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 141.

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160

E as propagandas fortalecem a imagem do sul-rio-grandense como gaúcho.

Fortalecem o imaginário, conectam o presente com o passado, criam sentidos. O

que contribuía para que eles pudessem se identificar como tal. Essa reafirmação de

coragem em desbravar o chão desconhecido, de valentia, liberdade e luta por um

ideal vem legitimar a identidade do gaúcho, evocando-o como o diferente,

evidenciando o “eu” e o outro”.

O migrante sul-rio-grandense vive em uma “fronteira” quando deixa o Rio

Grande do Sul por não haver condições econômicas de permanência, porém não se

sente incluído culturalmente no novo espaço que o recebe e que fornece as

condições financeiras que procura. Motivo que o leva a optar por viver em uma

“comunidade imaginada”. Ele é reconhecido como gaúcho e como sul-rio-grandense,

e os seus filhos que nascem no novo estado, da mesma forma, são considerados

gaúchos.434

Com o objetivo de fortalecer a cultura, os usos e os costumes do gaúcho

histórico eram retomados e colocados em prática no novo espaço. Dessa forma, as

instituições gaúchas entravam em cena, iniciando um universo gaúcho longe do Rio

Grande do Sul, pois eram vistas como formas de garantir a cultura. Contudo, quando

residiam em suas cidades de origem, talvez não buscassem essa identidade em

particular, pois não havia o “outro”, o “diferente”. A esse propósito, cita Zygmunt

Bauman:

[...] não se pensa em identidade quando o “pertencimento” vem naturalmente, quando é algo pelo qual não se precisa lutar, ganhar, reivindicar e defender; quando se “pertence” seguindo apenas os movimentos que parecem óbvios simplesmente pela ausência de competidores.435

Ou seja, a necessidade de pertencimento e identidade é impulsionada pelo

distanciamento e pela presença do “outro”. Nesse sentido, o conjunto de práticas

instituídas pelas comunidades é forma de afirmação dessa identidade cultural na

diferença. É uma maneira de classificar aqueles que fazem parte dessa cultura em

relação ao “outro”. A esse respeito, Stuart Hall diz que toda essa energia e trabalho

simbólico e narrativo destinam-se a nos segurar “aqui” e a eles “lá”, a fixar cada um

434

SILVA, Edinéia Pereira da. A construção de uma memória Gaúcha em Santa Catarina. Dissertação (Mestrado em História), PUC-RS, Porto Alegre, 2010. 435

BAUMAN, Zygmunt. Ensaios sobre o conceito de Cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p. 43.

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161

no lugar que lhe é designado. Sendo que o “outro” é necessário para o nosso próprio

senso de identidade, esse “outro” não está fora de nós, mas dentro, já que ele

fornece o sentido da própria identidade.436 Esse novo espaço “provoca de modo tão

profundo uma certa plenitude imaginária, recriando o desejo infinito de retornar às

origens perdidas”437. E as instituições, os chamados Centros de Tradições Gaúchas,

serão o núcleo de fortalecimento da identidade na diferença.

Com o crescente número de Centros de Tradições Gaúchas distribuídos pelo

Brasil, os Estados foram estabelecendo seus próprios MTGs, a fim de congregar

todos os Centros de Tradições Gaúchas. Assim, em 1973 foi fundado em Santa

Catarina o Movimento Tradicionalista Catarinense, posteriormente alterado para

Movimento Tradicionalista Gaúcho de Santa Catarina; em 1975, o Movimento

Tradicionalista Gaúcho no Paraná, entre outros. Fazendo com que surgisse, em 24

de maio de 1987, a Confederação Brasileira da Tradição Gaúcha438, um órgão

regulador e organizador que tem como objetivo maior agregar todas as instituições

gaúchas fundadas por brasileiros.

Atualmente, são mais de 2.800 Centros de Tradições Gaúchas por todo o

Brasil que, seguindo o modelo do Rio Grande do Sul, estão reunidos e organizados

sob a competência de um Movimento Tradicionalista Gaúcho em seu estado,

quando este possuir mais de dez instituições devidamente registradas.439 Segue

organograma com a organização administrativa do movimento gaúcho no Brasil e

número de CTGs filiados:

436

HALL, Stuart. Raça, Cultura e Comunicações: olhando para trás e para frente dos Estudos Culturais. Tradução de Helen Hughes. Projeto História. São Paulo, v. 31, 2005, p. 8. 437

Idem. Identidade Cultural e Diáspora. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, nº 24, p. 68-75, 1996, p. 75. 438

CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA DA TRADIÇÃO GAÚCHA. Ata da reunião de fundação da CBTG. Ponta Grossa, 23 mai. 1987. Embora a instituição tenha oficializado o dia 24 de maio como data de sua fundação. 439

Em cada estado em que haja um Centro de Tradições Gaúchas deve também haver uma instituição organizadora, denominada de Movimento Tradicionalista Gaúcho. Porém, de acordo com suas diretrizes atuais, o estado só poderá constituir um Movimento Tradicionalista Gaúcho quando atingir o número de dez Centros de Tradições Gaúchas - CTGs filiados dentro do seu Estado. Caso não atinja, esses CTGs deverão se unir a órgãos do estado mais próximo. Nessas condições encontram-se os estados de Roraima, Acre, Pará, Amapá e Amazonas, que se filiaram ao Movimento Tradicionalista Gaúcho de Rondônia, que já estava consolidado com 33 entidades federadas, pois não atingiram o número de dez CTGs em seus estados. E, de acordo com o Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica, em 1995 foi fundada a União dos Tradicionalistas Gaúchos do Nordeste e em 2000 a União Tradicionalista Gaúcha do Rio de Janeiro, a fim de congregar as entidades singulares de estados vizinhos, já que não atingiam o número mínimo de dez exigido. Essas uniões ou federações são, genericamente, tratadas como MTG, pois possuem as mesmas funções e objetivos deste. Segue gráfico com o número de entidades singulares – Centro de Tradições Gaúchas –, por entidade federativa – Movimento Tradicionalista Gaúcho ou União Tradicionalista Gaúcha.

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162

Figura 37 - Organograma das instituições gaúchas filiadas à Confederação Brasileira

da Tradição Gaúcha - CBTG, com seus respectivos CTGs.440

As entidades federativas, assim distribuídas, são organizadas de forma que

suas práticas sejam permanentemente fiscalizadas, a fim de garantir a permanência

da comunidade nos moldes em que foi imaginada. Nesse sentido, a sua organização

e fiscalização acontecem de forma hierarquizada. Cada qual com seus estatutos,

regulamentos, registros jurídicos e outros documentos próprios. Porém, todos em

consonância com a instituição maior, a Confederação Brasileira da Tradição

Gaúcha.

A intensa migração ocorrida no século XX atingiu não somente o oeste do

Brasil, mas também o exterior. Nesse caso, vão em busca da inserção no mercado

de trabalho, com o intuito de ganhar dinheiro e voltar para suas origens. Todavia, os

que alcançam o objetivo, acabam por não mais voltar. Outros, com objetivos

distintos, aventuram-se e retornam, porém no curto espaço de tempo distante de

suas origens optam por práticas que lembram sua cultura. Atualmente são 20

Centros de Tradições Gaúchas fundados por brasileiros distribuídos por diversos

países.441 Segue mapa de localização das unidades:

440

Figura elaborada pela autora a partir das Atas da Confederação Brasileira da Tradição Gaúcha e de documentos enviados pelas instituições estaduais, 2017. 441

CTG Saudade da Minha Terra - Newark, EUA; CTG Amigos do Rio Grande - Danbury, EUA; Centro Cultural Gaúcho General Bento Gonçalves - Los Angeles, EUA; CTG 100 Fronteiras - Boston, EUA; Centro de Tradições Nova Querência - Harbor Island, EUA; CTG Brasil Tchê - Bernadesville, EUA; CTG Além Fronteira - Acton, EUA; CTG Patrão Velho Internacional - Framingham, EUA; CTG Recuerdos del Pago - Málaga; CTG Nova Querência - Fort Lauderdale, EUA; CTG Distante do Pago - Broadway Everett, EUA; CTG Rancho Rio Grande - Perris, EUA; CTG Indio José - Santa Rita, Paraguai; CTG Deserto da Saudade - Israel; Piquete China Veia - Dongguan, China; CTG Pedro Álvares Cabral - Lisboa, Portugal; CTG Querência do Norte - Toronto, Canadá; CTG Estância Celeste Brasil - Wroclaw, Polônia; CTG União de Ideais - Paris, França; e Association Sol do Sul - Paris, França. Esta última se configura como uma associação que reúne não só a cultura do Rio Grande do Sul, mas dos três estados do Sul.

CBTG

Confederação Brasileira da Tradição Gaúcha

MTG RS

1.736 CTGs

MTG SC

562 CTGs

MTG PR

350 CTGs

MTG SP

28 CTGs

MTG MS

19 CTGs

MTG MT

43 CTGS

UTG RJ

8 CTGs

UTG N

10 CTGs

MTG PC

19 CTGs

MTG AO

38 CTGs

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163

Figura 38 - Localização dos CTGs fundados por brasileiros no exterior.442

Os Centros de Tradições Gaúchas organizados fora do território nacional por

iniciativa de brasileiros podem filiar-se à entidade federativa – Movimento

Tradicionalista Gaúcho do estado de sua escolha –, devendo essas filiações ser

comunicadas à entidade confederativa.443 Entretanto, em virtude do número de

entidades singulares fundadas nos Estados Unidos, no ano de 2005, por ocasião do

I Encontro Nacional do Tradicionalismo Gaúcho Brasileiro na cidade de Framingham

- EUA, foi instituída a Confederação Norte-Americana do Tradicionalismo Gaúcho

Brasileiro, abarcando os Estados Unidos, Canadá e México.444

No entanto, embora o Brasil tenha organizado um amplo movimento cultural

em torno dos usos e costumes do gaúcho, instituindo uma identidade para o Sul do

Brasil, a iniciativa é reflexo da organização em nível maior, e os países vizinhos,

Uruguai e Argentina, desde o século XIX, têm servido de modelo organizacional de

cultura gaúcha. Apesar das tentativas de organização do movimento gaúcho em

nível internacional na década de 50, em 1984, antes de ser criada a CBTG, foi dado

início à proposta de fundação de um órgão máximo do movimento gaúcho em

442

Figura elaborada pela autora a partir de dados coletados em pesquisa de campo, arquivo da CBTG e arquivo da CITG, 2017. 443

CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA DA TRADIÇÃO GAÚCHA. Coletânea da Legislação Tradicionalista. Brasília: CBTG, 2011, p. 43. 444

BETTA, Edinéia Pereira da Silva; HOLZ, Celívio. História e memória gaúcha: MTGSC. Blumenau: Nova Letra, 2013, p. 224.

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164

âmbito internacional, e em 1991 foi fundado sob a denominação Confederação

Internacional da Tradição Gaúcha.

Dessa forma, desde 1985, foram realizadas reuniões e congressos nos três

países com o objetivo de instituir tal órgão e organizar o movimento gaúcho, que a

cada ano tomava proporções maiores. Desse modo, no VI Congresso Internacional

da Tradição Gaúcha, realizado na cidade de Florianópolis, em Santa Catarina -

Brasil, entre os dias 3 e 5 de maio de 1991, foi aprovado o primeiro documento

oficial da entidade, a “Carta Constitutiva” que oficializou a sua fundação. Com efeito,

tal documento é utilizado como diretriz internacional para o movimento gaúcho nos

diferentes países. Ainda de acordo com a Carta Constitutiva, a Confederação

Internacional da Tradição Gaúcha “é uma instituição internacional, de caráter

tradicionalista-cívica-cultural, com duração indeterminada, constituindo-a as

intuições maiores destes países, sem fins políticos, lucrativos nem religiosos”445.

Segue organograma da estrutura administrativa do movimento gaúcho atual:

Figura 39 - Organograma da estrutura do movimento gaúcho e quantidade de

Centros de Tradições Gaúchas por confederação.446

O movimento gaúcho é uma alternativa para aqueles que desejam aderir ou

preservar referências culturais. O indivíduo da sociedade moderna sente falta do

“pertencer” e de ser identificado pelo outro por boas qualidades. Nesse sentido, as

práticas, o discurso e a organização do movimento gaúcho, seja no Brasil ou no

445

CONFEDERAÇÃO INTERNACIONAL DA TRADIÇÃO GAÚCHA. Carta Constitutiva. Florianópolis: CITG, 1991. 446

Figura elaborada pela autora, a partir de documentos da CITG, CBTG e MTGs. Cf.: TRADICIÓN GAUCHA. Listado de Centros Tradicionalistas. s/d. Disponível em: <http://www.tradiciongaucha. com.ar/Centros.asp>. Acesso em 2017. EL PAIS. Buscan reconocimiento internacional al "gaucho". 18 jul. 2015. Disponível em: <http://www.elpais.com.uy/informacion/buscan-reconocimiento-internacional-gaucho.html>. Acesso em 2017.

CITG

Confederação Internacional da Tradição Gaúcha

CNATGB

Confederação Norte-Americana da Tradição Gaúcha Brasileira

(EUA)

12

CATG

Confederação Argentina da Tradição Gaúcha

245

CBTG

Confederação Brasileira da Tradição Gaúcha

2.813

MTO

Movimento Tradicionalista Oriental (Uruguai)

700

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165

exterior, permitem que seus adeptos sejam reconhecidos. No entanto, é a

indumentária que visualmente permite o mais rápido reconhecimento.

Dessa forma, a indumentária foi sendo institucionalizada e oficializada por

Leis em diferentes cidades e estados. Em 9 de dezembro de 1991, Santa Catarina

promulgou a Lei nº 1.124, que dispõe sobre o uso de Traje Tradicional.

Diferentemente do Rio Grande do Sul, o Estado de Santa Catarina prevê a inclusão

das demais culturas que contribuíram para a formação da identidade cultural do

estado e não cita o Movimento Tradicionalista Gaúcho. Destaca a referida lei:

Assembléia Legislativa de Santa Catarina Decreta: Art. 1º Fica oficialmente na condição de traje de honra ou social no Estado de Santa Catarina, a indumentária tradicional da Cultura Gaúcha e de todas as outras formas étnico culturais no Estado, de ambos os sexos. Parágrafo único. A vestimenta a que se refere o “caput”, deverá necessariamente observar o feitio, as diretivas, as orientações e os preceitos das respectivas tradições culturais. Art. 2º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação. Art. 3º Revogam-se as disposições em contrário. Palácio Barriga Verde, em Florianópolis, 09 de dezembro de 1991.447

Da mesma forma, a cidade de Foz do Iguaçu, no Paraná, em dezembro de

1997, instituiu uma lei municipal oficializando a pilcha gaúcha. Em seu artigo

primeiro, registra que “Fica oficializado no Município de Foz do Iguaçu, como traje de

honra e de uso preferencial dos integrantes e simpatizantes do Movimento

Tradicionalista Gaúcho, para ambos os sexos, a indumentária denominada Pilcha

Gaúcha”448. A referida lei ainda traz de forma idêntica a redação do parágrafo único

da lei da Pilcha do Rio Grande do Sul, dizendo que: “Será considerada "Pilcha

Gaúcha" somente aquele traje que com autenticidade, reproduza com elegância, a

sobriedade da indumentária histórica, conforme os ditames e as diretrizes traçadas

pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho.” Ou seja, fazendo menção ao Movimento

Tradicionalista Gaúcho.

Em 2007, o então deputado federal Pompeo de Mattos propôs em nível

nacional o Projeto de Lei - PL nº 806/2007, que visava oficializar como traje de honra

e de uso facultativo em solenidades públicas, para ambos os sexos, a indumentária

denominada "Pilcha Gaúcha". Em seu artigo terceiro o texto expunha que a "Pilcha

447

Lei nº 1.124, de 09 de dezembro de 1991, de procedência do Dep. Luiz Basso, publicada no DO 14.340 de 12/12/1991. 448

Lei nº 2110, de 8 de dezembro de 1997.

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166

Gaúcha poderá substituir o traje convencional em todos os atos oficiais públicos,

realizados no país”449. O projeto cita em seu artigo segundo o que denomina como

Pilcha para a proposta “no traje masculino, [...] botas, bombacha, guaiaca, com ou

sem faixa, camisa, colete, casaco ou jaqueta, e lenço. II - No traje feminino, [...] saia

e blusa ou saia e casaquinho ou vestido comprido, saia de armação, bombachinha,

meias e sapatos”. O autor complementa com um breve histórico da vestimenta, que

aponta o uso das pesquisas de Fagundes: “A origem da indumentária gaúcha data

dos primórdios da colonização dos pampas e é resultado da união de influências

históricas. [...] pode ser dividida em quatro fases, existindo para cada uma a peça

feminina correspondente.”450 No entanto, a iniciativa não teve êxito.451

Pode-se observar que a pesquisa de Antonio Augusto Fagundes, embora seja

sucinta, iniciada na década de 50 do século passado, publicada em 1977, é a

pesquisa sobre indumentária gaúcha que mais circula, sendo frequentemente

tomada como referência quando o assunto é vestuário do gaúcho, em razão da falta

de obras sobre o tema, mas também pela autoridade adquirida pelo autor ao longo

dos anos.

449

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei de 2007 (Dep. Pompeo de Mattos). Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=454156>. 450

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 806-B, de 2007 (Do Sr. Pompeo de Mattos). Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=6FBD4 CB2C758BE1786C9703ACB1D279D.node2?codteor=750424&filename=Avulso+-PL+806/2007>. 451

Seguindo a tramitação, em 25 de novembro de 2009, a Comissão de Educação e de Cultura opta também pela rejeição do projeto, seguindo a justificativa da Comissão de Direitos Humanos e Minorias. Em 2010, o autor do Projeto de Lei recorre, reiterando a justificativa do projeto. Porém, em 2012 o projeto de lei foi arquivado.

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167

CONSIDERAÇOES FINAIS

O Dr. Antonio Augusto Fagundes [...] é, indubitavelmente, o maior pesquisador, dentro do Brasil, da indumentária gauchesca, trabalho [...], vem sendo considerado a respeito, autoridade inconteste. Mas não parou aí. Recuou no tempo, buscando as mais remotas origens universais que possam ter influído direta ou indiretamente nas formas e funcionalidades das vestes do nosso gaúcho desde o seu aparecimento. (Glaucus Saraiva, 1976)452

Instigante. A epígrafe que impulsionou este trabalho foi esclarecida. Aqui teço

realmente considerações finais e me despeço de Fagundes. Mas ilusão minha ter

imaginado que minhas curiosidades e ansiedades findariam com este trabalho. Uma

descoberta me levou a outras. E mais outras! Os elementos do vestuário que fui

buscar, ou talvez conferir para verificar se realmente o maior pesquisador era

inconteste, me pegaram de surpresa! Durante todo o tempo senti que conversaram

comigo. Um sentimento impulsionou a dar continuidade... Mas, voltando à epígrafe,

posso afirmar que no período pesquisado Fagundes foi o maior pesquisador acerca

da indumentária gaúcha no Brasil, levando em conta que a palavra maior será aqui

entendida como o que mais investigou na poucas fontes que selecionou.

O termo autoridade inconteste talvez não tenha sido apropriado, mas pode-se

afirmar que, nas fontes que se propôs a pesquisar, Fagundes alcançou os

elementos e soube traduzir em suas composições. Quanto a ter buscado nas fontes

mais remotas, não se aplica. Apesar de ter iniciado também com José de Saldanha,

ponto de partida para os investigadores do tema, o autor se limitou a poucas fontes,

já que o intuito era a composição de um vestuário histórico. E verificou-se ainda que

usou outras que não citou.

Contudo, sobre as incursões acerca do movimento tradicionalista, verificou-se

que o repertório imagético formado se configura como amplo inventário de

elementos históricos possíveis, com o intuito de constituir uma identidade tradicional,

que elege os fatos que agregam valores à identidade ideal. Contudo, importa dizer

que os elementos selecionados não foram iniciativas exclusivas do movimento

tradicionalista gaúcho, mas de escritores que, dedicados a formar o nacional,

elaboraram, já a partir da metade do século XIX, espectros de um país com olhos

452

FAGUNDES. Antonio Augusto. Cadernos Gaúchos 2: Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Editora IGTF, 1977, p. 3.

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168

para o local. Em razão das questões políticas, o movimento gaúcho foi interrompido

no Estado Novo, porém reiniciado no final da década de 1940. Dessa vez

impulsionado pela retomada do movimento pelo Folclore, afirmando serem

complementares. Afirma-se, portanto, que os jovens de 1947 foram pioneiros do

movimento de retomada, que dessa vez atingiu proporções certamente não

imaginadas.

Em razão de se constituir como uma comunidade imaginada, o movimento se

vale também das memórias e documentos para continuar a construção dessa

identidade, já que não cessa. Produzido no século XIX, o gaúcho enquanto

personagem é continuamente posto em manutenção, de modo que os elementos

apreendidos sejam constantemente renovados. E viu-se que, dentro dessa

dinâmica, o vestuário se constituiu no eixo central das representações visuais do

movimento. Uma espécie de garantia de que o gaúcho vive naqueles que desejam

constituir uma identidade a partir do visual.

Essa corrida por constituir um repertório de elementos do vestuário gaúcho

nos primeiros anos do movimento fez com que Antonio Augusto Fagundes se

configurasse como referência indispensável para (re)vestir do gaúcho. Já que eram

poucas as publicações sobre o tema. A investigação do autor apresentou

fundamentos em relação aos elementos identificados, porém a composição foi

exilada em períodos, não permitindo o diálogo entre os elementos. Embora a

periodização tivesse relação com as datas em que os viajantes registraram seus

relatos, o vestuário do gaúcho histórico não se configura de forma cristalizada como

apontado por Fagundes. Deixo registrado posicionamento e defesa pela

representação da disposição do vestuário apresentada por Emeric Essex Vidal, em

que o autor retrata uma composição possível sem periodizar. Em uma mesma

imagem faz com que o vestuário posto aflore o imaginário do leitor, mas atinge a

compreensão sobre o possível vestuário, reverberando na proposta de Fagundes,

sem, no entanto, ter a necessidade de exilar em períodos.

Vê-se que Fagundes coloca as imagens diante das suas pesquisas como

testemunho. Observou-se que o autor apreendeu fielmente as informações das suas

fontes, limitando-se às margens impostas pelo olhar dos viajantes.453 No entanto,

sabe-se que os relatos são também representações. Dessa forma, registra-se a

453

MANGUEL, Alberto. Lendo imagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 92.

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169

necessidade do crítico diálogo com as fontes, no sentido de ver para além do

sugerido, a fim de tecer relações com o contexto que envolve os fatos e/ou as

imagens.

No entanto, compreendemos que os relatos de viagem em diálogo com as

imagens pictóricas de viajantes artistas se configuram como um possível caminho

para os estudos do vestuário, apontado também, nesta investigação, pelos teóricos

de imagens. Observou-se ainda que, na tentativa de compreender uma imagem,

outras devem vir à tona, sejam textuais ou visuais, é preciso despertar a leitura para

além do visual, e fazer a interpretação não se limitando apenas ao iconográfico,

como aponta Panofsky.

No que se refere à indumentária da mulher gaúcha, o autor não realiza

investigações significativas, no entanto, percebe que esta é reflexo da moda. Sabe-

se que, em razão das constantes mudanças impostas por esta, a oscilação dificulta

o trabalho do pesquisador, mas nem por isso a moda escapa de uma possível

investigação. Eis porque poucos pesquisadores se debruçaram no tema, causando,

inclusive, uma ausência de elementos capazes de legitimar tal vestuário, que

acarreta dificuldades de compreensão sobre a moda que permeia o vestuário da

mulher gaúcha.

Cabe dizer que o vestuário do gaúcho passou por interferências da moda,

principalmente da moda inglesa, porém não inferiu de forma significativa na

usabilidade do vestuário gaúcho, conseguiu consolidar inúmeros elementos. A esse

respeito, Gilda de Mello e Souza diz que a moda se encontra em oposição aos

costumes, sendo estes últimos relativamente permanentes454, enquanto que a moda

vive a mudança, o novo, o efêmero. Dessa forma, a indumentária está relacionada

com os costumes, pode sofrer mudanças, mas procura manter as regras impostas

pela tradição. Enquanto que a moda não consegue manter-se fixa.

Vale registrar que o fato de ter sido composto por elementos da moda não

reduz a importância nem a autoridade do vestuário da mulher gaúcha. Porém,

considera-se importante ter a clareza da distinção do que pode ser entendido como

indumentária e, da mesma forma, compreender a moda. Pode ser classificada como

indumentária o traje do gaúcho, atentando para a compreensão dos elementos que

o envolvem, e como moda o traje da mulher. Vale destacar que esta pode ainda

454

SOUZA, Gilda de Mello. O espírito das roupas: a moda no século dezenove. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 20.

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170

retornar, igual ou com novas roupagens, aumentando as chances de conflito, no que

se refere à compreensão dos referenciais que compõem o traje da mulher.

Voltando ao objetivo desta investigação, observou-se que os referenciais

contidos nos relatos de viagem repercutem na obra de Fagundes. Porém, a forma

como compôs os trajes foi que criou certa dúvida quanto ao tempo e às formas de

uso. No entanto, as questões a serem destacadas sobre a obra estão na forma

como Fagundes se dirige ao leitor. Observa-se um autoritarismo, como que a impor

as regras. Sentia-se proprietário das usabilidades históricas do vestuário.

Os erros mais comuns, cometidos pelos tradicionalistas contra essa indumentária, dizem respeito, como sempre, às cores aberrantes, sobretudo no chiripa, que foi a essa época uma sofrida peça destinada a mal cobrir as vergonhas do homem e que agora aparece em verde-exorcista, grená-hemoptise e quejandos. Ademais, esse chiripa, que era uma saia enrolada da cintura aos joelhos, com abertura de cima abaixo, bem na frente, começa agora a ser usado com a abertura ao lado, o que lhe dá uma aparência “hippie”. E seu tamanho foi reduzido em um mínimo, transformado em autêntico tapa-rabo de luxo.455

Afora a linguagem, não adequada e desnecessária para a obra, o autor tece

comentários dessa natureza sempre após descrever os elementos retirados dos

relatos de viagem. Desse modo, cabe afirmar que a pesquisa realizada pelo autor

tem legitimidade histórica, porém os comentários feitos após a descrição da

composição do vestuário não se fundamentam. Excede-se na autoridade que

conquistara como professor de indumentária no curso de Folclore e como

investigador respeitado sobre o tema.

Levando em conta especificamente as obras citadas pelo autor, nota-se que

as cores aberrantes afirmadas por Fagundes como não usuais não se aplicam,

tendo em vista a diversidade das cores por vezes demonstrada nas obras. Do

mesmo modo, o tamanho e a abertura do chiripá. Verificou-se nos relatos afirmação

sobre o chiripá alcançar o joelho, porém as obras de Debret apresentam a peça com

comprimento inferior ao estipulado pelos viajantes. Porém, embora não se saiba de

fato se o artista esteve no Rio Grande do Sul ou se presenciou um personagem, não

é possível afirmar que não foi utilizado mais curto, e de igual maneira a abertura.

455

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Editora IGTF, 1977, p. 15.

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171

Contudo, afora alguns elementos que não constavam em sua obra, seus

comentários, as poucas fontes e sua forma de escrita periodizada e cristalizada, de

modo a exilar elementos em tempo determinado, Antonio Augusto Fagundes

realizou de importante investigação, coletou informações, organizou e conseguiu

ampla circulação.

A partir dos dados coletados e organizados pelo autor, as pessoas se

apropriaram da identidade constituída, criaram personas e se afirmaram gaúchos. O

imaginário se fortalece, resultando em conexão entre o passado e o presente,

criando sentidos e constituindo uma identidade selecionada. Como resultado do

conjunto de práticas instituídas, entre elas o vestuário, o movimento se expandiu e

conquistou outros espaços, outras pessoas. Criando sentidos para um viver que se

completa com o imaginário.

Despeço-me de Fagundes agradecendo pelas possibilidades de continuidade

de pesquisa que ele deixou. Percorrer o caminho já trilhado pelo autor me

proporcionou viver as ansiedades, angústias, surpresas e inúmeras realizações

quando dos encontros. Em meus serões solitários fiz amigos no século XIX que se

apresentaram como Gardians de Camargue. Me encantei! Tenho a impressão de

que são primos dos gaúchos. Será?

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GLOSSÁRIO

A

Alpargatas: Sapatinhas de tecido ou couro com solado trançado em corda. 456

Aramado: Cerca de Arame.457

Arreio: Conjunto de peças com que se encilha um cavalo.

458

B

Barbicacho: Peça de seda torcida, de trança de couro crú ou mesmo de sola, que o gaúcho usa pra prender, geralmente por baixo do queixo, o chapéu à cabeça.459

Boleadeiras: Conjunto composto por três pedras ligadas entre si por tentos torcidos. Duas pedras têm o mesmo tamanho e a terceira que é menor tem o nome de manicla, por ser empunhada pelo homem. Entre os gaúchos, as pedras são retovadas de couro. Entre os índios, não.460

461

Bota lageana:

462

Bota Samborjense:

463

456

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Editora IGTF, 1977, p.48. 457

Ibidem, p.19. 458

ACRI, Edson. O Gaúcho. Porto Alegre: Grafosul, 1985, p. 72. 459

FAGUNDES, op. cit., p. 14. 460

Ibidem, p. 12. 461

ACRI, op. cit., p. 70. 462

FAGUNDES, op. cit., p. 54. 463

Ibidem, p. 51.

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190

Bota Serrana:

464

Bota Russilhona:

465

Boleadeiras: As bolas, compostas de tres pedras ligadas separadamente no escroto de algum quadrupede, e amarradas cada huma na ponta de huma guasca de certo comprimento, são mais proprias dos povos americanos, e parecem também herdadas dos indígenas: he arma mais destruidora que o laço. O cavaleiro que, depois de ter enroscado as guascas, segurando huma das bolas na mão, imprime ás outras hum movimento de rotação por cima da cabeça e larga-as repentinamente pela tangente, póde á sua vontade lanças a morte ou o captiveiro, segundo se dirigir á cabeça ou aos pés da presa.466

Boi Franqueiro: Raça de gado vacun de grande corpulência, com longos aspas abertas.

C

Cabresto: Peça trançada ou torcida com tentos de couro crú. Uma extremidade se apresilha à argola do buçal. A outra fica na mão do cavaleiro, em caso de doma, ou então sobre os pelegos, e mais raramente contornando o pescoço do animal e se apresilhando a si mesmo. É de boa tradição do campeiro sair com cabresto na mão quando o cavalo roda, isto é, o bom gaúcho mantém o animal preso mesmo quando cai.467

Campanha: Zona de campo apropriada à criação de gado. Local distante da cidade. Parte baixa do Estado.468

Capincho: Capivara, grande roedor que vive nas lagoas e remansos de rios, em brandos.469

Cebola: Popularmente, relógio de bolso. Os primitivos relógios de bolso tinham a forma de uma cebola, com cascas e tudo.470

464

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Editora IGTF, 1977, p. 49. 465

Ibidem, p. 45. 466

DREYS, Nicolao. Noticia Descriptiva da Provincia do Rio-Grande de S. Pedro do Sul. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e Comp., 1839, p. 172. 467

FAGUNDES, op. cit., p. 20. 468

NUNES, Zeno Cardoso; NUNES, Rui Cardoso. Dicionário de regionalismos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1993, p. 83. 469

FAGUNDES, op. cit., p. 26. 470

Ibidem, p. 22.

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191

Chapéu clássico aba larga:

471

Chapéu de tapeado:

472

Chapéu de filtro com barbicacho de seda:

473

Chapéu com barbicacho de sola:

474

Chapéu de palha:

475

Chapéu de copa pontuda:

476

Chapéu pança de Burro:

477

Chapéu serrano:

478

471

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Editora IGTF, 1977, p. 64. 472

Ibidem, p. 58. 473

Ibidem, p. 57. 474

Ibidem, p. 63. 475

Ibidem, p. 57. 476

Ibidem, p. 64. 477

ACRI, Edson. O Gaúcho. Porto Alegre: Grafosul, 1985, p. 89. 478

FAGUNDES, op. cit., p. 67.

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192

Chapéu pança de burro: Chapéu confeccionado de forma artesanal.

Chapéu pança de couro: Chapéu confeccionado com couro.

Charque: Carne gado bovina, salgada e seca em mantas.479

China: Descendente ou mulher de índio, ou pessoa do sexo feminino que apresenta alguns dos característicos étnicos das mulheres indígenas. || Cabocla, mulher morena. || Mulher de vida fácil. || (Parece provir do quíchua, xina, que significa aia).480

Chinas: China é a mulher de baixa categoria social. Atualmente, aparece como sinônimo de prostituta.481

Cincha: Cilha, peça dos arreios destinada a apertar, como uma cinta, o lombilho, o serigote ou bastos no lombo do animal.482

Cola-fina: Fatiota, roupa de gente da cidade; gente da cidade.483

Cuia: Porongo, cabeça de ponrongo que se usa para preparar o mate.484

Cusquinho: Cachorrinho. Diminutivo de cusco, cachorro, cão.485

D

Desenfrenou: Desenfrenar é tirar o freio. Desentrna-se o cavalo para soltá-lo, ou para que paste, encilhado.486

Despilchados: Mal vestidos, sem dinheiro ou bens.487

E

Estância: Fazenda de gado

Estancieiro: Proprietário de estância. Fazendeiro.488

479

NUNES, Zeno Cardoso; NUNES, Rui Cardoso. Dicionário de regionalismos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1993, p. 107. 480

NUNES, NUNES, op. cit., p. 114. 481

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Editora IGTF, 1977, p. 16. 482

Ibidem, p. 20. 483

Ibidem, p. 19. 484

NUNES, NUNES, op. cit., p.136. 485

FAGUNDES, op. cit., p. 20. 486

Ibidem, p. 20. 487

Ibidem, p. 21. 488

NUNES, NUNES, op. cit., p. 176.

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193

F

Farrapos: Ou “farroupilhas”, apelido que os conservadores (portugueses ou filhos de portugueses que pregavam a volta de D. Pedro I ao Brasil) davam aos liberais no Rio Grande do Sul, antes mesmo de eclodir a revolução farroupilha, a 20 de setembro de 1835. Com a Revolução Farroupilha (20/09/35 a 11/09/36) e a Guerra dos Farrapos (11/09/36 a 28/02/45) o apelido de farrapos e farroupilhas foi dado depreciativamente pelos imperialistas aos soldados rio-grandenses republicanos. Os gaúchos, porém, transformaram o insulto em título de honra.489

G

Garfos: O garfo é a armação da espora, em forma de “U”, abraçando o calcanhar e a parte traseira do pé do homem. “Juntas nos garfos” quer dizer cravar as esporas.490

Gaudério: Gaudério era chamado, no Rio Grande antigo, o pré-gaúcho por volta de 1750. Hoje gaudério quer dizer andarengo, vagamundo, desaquerenciado, o que não para em lugar nenhum.491

Guaiaca: Cinto largo de couro macio, às vezes de couro de lontra ou de camurça, ordinariamente enfeitado com bordados ou com moedas de prata ou de ouro, que serve para o porte de armas e para guardar dinheiro e pequenos objetos. Var: Goiaca (Etim.: Vem do quíchua, huayaca, que significa bolsa).492

493

Guasca: corda de couro cru não curtido.

Guampa: chifre de boi para ser usado como objeto.

H

Huaso: Ou “guazo”, homem cavaleiro do Chile, o equivalente chileno do gaúcho, com o qual tem muitos pontos comuns.494

489

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Editora IGTF, 1977, p. 16. 490

Ibidem, p. 12. 491

Ibidem, p. 19. 492

NUNES, Zeno Cardoso; NUNES, Rui Cardoso. Dicionário de regionalismos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1993, p. 234. 493

FAGUNDES, op. cit., p. 71. 494

Ibidem, p. 12.

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194

I

Indiada: Gauchada. Os próprios gaúchos, quando se referem amistosamente a outros gaúchos, dizem “os índios”, ou “a indiada”.495

Indumentária: Vestuário usado em determinada época ou por determinado grupo de indivíduos com características comuns.

L

Lobunos: Cavalo lobuno é o que tem pelo de cor aproximada à cor do lobo, acinzentado.496

Lonca: Pele de animal, de onde os pêlos foram raspados. Os tentos de lonca são usados para trabalhos mais delicados de trança.497

Lonqueadas: Peles de onde o pelo foi raspado.498

M

Manada: magotes de éguas ou burras, acompanhadas por um garanhão ou um burro.

Maneou: Manear o cavalo significa colocar-lhe a maneia, espécie de algemas de couro crú nas patas dianteiras – mãos - a fim de que não caminhe, ou caminhe pouco.499

Maragatos: Revolucionários que enfrentaram o governo rio-grandense em 1893 e 1923, em duas grandes e sangrentas revoluções, sem conseguir a vitória final pelas armas. A cor vermelha, sobretudo no lenço no pescoço, era símbolo dos maragatos, cujo nome evoca uma lendária confraria do vale do Nilo, antes da invasão berberisca da Espanha.500

Matungo: Cavalo de pouca categoria. Muitas vezes o gaúcho se refere assim a um cavalo que admira, unicamente em bem de conversa, para não valorizá-lo demais. Usa a expressão também no diminutivo.501

Moura: Diz-se da pelagem do cavalo que tem fios brancos misturados a fios escuros. Cor grisalha. 502

495

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Editora IGTF, 1977, p. 21. 496

Ibidem, p. 20. 497

Ibidem, p. 14. 498

Ibidem, p. 11. 499

Ibidem, p. 20. 500

Ibidem, p. 23. 501

Ibidem, p. 20. 502

Ibidem, p. 17.

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195

P

Pacholice: A alegria de ostentação.503

Pago: Lugar em que se nasceu, o lar, o rincão, a querência; o povoado, o município em que se nasceu ou onde se reside. Geralmente usa-se no plural. (Etim.: Para Roque Callage, parece ser uma corruptela de plaga; Para Luiz Carlos de Moraes, Romaguera Corrêa, Beaurepaire-Rohan, a palavra deriva-se do latim pagus, aldeia, lugar pequeno; na opinião de Propício da Silveira Machado “...provém do conhecido vocábulo do lat. Pagus, oriundo do gr. pagos, colina, outeiro;”).504

Pardo: Espécie de veado. O “pardo” é bem maior que o veado-virá.505

Patrão: Designação dada ao presidente do Centro de Tradições Gaúchas.506

Peão: Homem ajustado para o trabalho rural. Conchavado. Empregado para condução de tropa. ||Associado de Centro de Tradições Gaúchas.507

Plata: Termo espanhol para Prata. Dinheiro.

Pelegas: Cédulas de dinheiro, ao contrário de “nicle”, que é moeda.508

Pelego: Couro de ovelha.

Pilcha: Bem material. Pilcha tanto pode ser dinheiro, como roupas ou objetos de valor.509

Prenda: Jóia, relíquia, presente de valor. Em sentido figurado, moça gaúcha.510

Q

Quincha: Cobertura de capim dos ranchos e dos galpões da campanha gaúcha. Há vários tipos de quincha, onde o capim mais empregado é o santa-fé.511

503

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Editora IGTF, 1977, p. 12. 504

NUNES, Zeno Cardoso; NUNES, Rui Cardoso. Dicionário de regionalismos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1993, p. 340. 505

FAGUNDES, op. cit., p. 26. 506

NUNES, NUNES, op. cit., p. 354. 507

Ibidem, p. 357. 508

FAGUNDES, op. cit., p. 22. 509

Ibidem, p. 15. 510

NUNES, NUNES, op. cit., p. 395. 511

FAGUNDES, op. cit., p. 22.

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196

R

Rabo-de-tatu: Chicote curto, com menos de um metro, trançado desde o cabo, em tentos de couro crú, afilando para a extremidade oposta, onde termina em açoiteira curta.512

Rebenque: Chicote curto, com o cabo retovado, com uma palma de couro na extremidade. Pequeno relho.513

Regionalismo: Corrente artística voltada para os temas regionais, um dos ramos do romantismo, que pregava o abandono dos temas clássicos e a busca de temas nacionais.514

Ronda: serviço de vigilância a que se submete a tropa de gado nos pousos. Pastoreio, lugar onde pasta ou pernoite a tropa de gado sob a vigilância dos tropeiro.515

Ramada: Cobertura de ramas à frente dos ranchos, à sombra da qual descansam os campeiros nas horas de sol ardente.516

S

Sepé: José Tiarayu, Alferes Real e Corregedor do Povo de São Miguel, então o mais importante dos Sete Povos das Missões. Não se sabe onde nasceu. Morreu a 7 de fevereiro de 1756, à margem esquerda da Sanga da Bica, em São Gabriel. Foi o comandante missioneiro mais notável da resistência que os jesuítas opuseram aos exércitos de Espanha e Portugal, na execução do Tratado de Madri. A alcunha de “Sepé” foi atribuído anteriormente a outros índios. José Tiarayu falava guarani e espanhol e compreendia bem o latim.517

T

Tentos: Tiras ou fios de couro cru cortados a faca ao longo do couro, para trabalhos de trança.518

519

512

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Editora IGTF, 1977, p. 27. 513

NUNES, Zeno Cardoso; NUNES, Rui Cardoso. Dicionário de regionalismos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1993, p. 421. 514

FAGUNDES, op. cit., p. 19. 515

NUNES, NUNES, op. cit., p. 436. 516

Ibidem, 1993. 517

FAGUNDES, op. cit., p. 08. 518

Ibidem, p. 11. 519

ACRI, Edson. O Gaúcho. Porto Alegre: Grafosul, 1985, p. 95.

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197

Tirador: Espécie de avental de couro curtido que o homem normalmente usa sobre o lado esquerdo, preso à cintura e cobrindo a perna. É feito de couro de vaquilhona, capivara ou veado pardo.520

521

Tolderias: As aldeias dos índios pampas, com choças de couro cru e ramas.522

Trova: versos declamados em respostas.

Truco: Jogo de cartas de naipe espanhol, popularíssimo ainda hoje na fronteira castelhana do Rio Grande do Sul. O truco é irmão do truque jogado pelos caipiras do centro do Brasil.523

V

Vacaria: Grande número de vacas. Grande extensão de campo que os jesuítas reservaram para a criação de gado bovino.524

X

Xerenga: Faca tosca, de má qualidade. O gaúcho às vezes chama uma faca boa de xerenga apenas para não gabar o que é seu.525

520

FAGUNDES, Antonio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre: Editora IGTF, 1977, p. 14. 521

ACRI, Edson. O Gaúcho. Porto Alegre: Grafosul, 1985, p. 146. 522

FAGUNDES, op. cit., p. 11. 523

Ibidem, p. 19. 524

NUNES, Zeno Cardoso; NUNES, Rui Cardoso. Dicionário de regionalismos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1993, p. 521. 525

FAGUNDES, op. cit., p. 26.

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198

APÊNDICE

Vivências e convivências: motivações pessoais para desmontar e montar um

novo quebra-cabeça

Desde a infância, a tentativa de elaboração da famosa árvore genealógica da

minha família tem sido, no mínimo, curiosa. Às vezes uma confusão mesmo! Além

das famosas perguntas típicas de cidade do interior: De onde tu é? Qual é o teu

sobrenome? De quem tu és filha?

Mas curiosa mesmo eram as perguntas acompanhas de afirmações: “Tu é

neta do Antononofre? Báh, esse foi um domador!”, ou “Tu és bisneta do Chiquinho

serrano? Tais brincando? Dizem que ele era um gaúcho da serra, será que era

mesmo?”, ou ainda sobre minha mãe, “Tu é filha da Albertina costureira? Essa sabe

fazer bombacha com favo. Báh!”

Como se tudo isso fosse dar conta de responder quem eu sou!

Mas, enfim, o fato é que os parágrafos acima dizem muito sobre a razão

desta pesquisa. Posso afirmar que as problemáticas desta tese partiram dessas

questões. Inquietações, dúvidas e curiosidades que surgiram ainda na infância.

Natural de uma cidade chamada Armazém, a 40 minutos do litoral Sul do

Estado de Santa Catarina, venho de uma família excepcionalmente catarinense sem

relações com o estado vizinho - Rio Grande do Sul. Mas durante toda a minha vida o

gaúcho vestido de bombachas permeou minha história.

Ainda na infância lembro dos meus questionamentos que, sem respostas,

pairavam no ar. Enquanto meus colegas de classe davam conta das suas árvores

genealógicas, que aliás sempre tinham um europeu no meio, na minha era o gaúcho

o personagem principal do enredo.

Quando questionava em casa sobre meus bisavôs a resposta era: “Seu

bisavô paterno, „Chiquinho‟, era um gaúcho serrano. Alguém sem família, muito

valente, que veio dos campos de cima da serra de Lages.” Curioso é que a resposta

era unânime, todas as pessoas a quem eu perguntava falavam a mesma coisa, e

diziam com orgulho que era um gaúcho. A verdade é que nunca souberam me dizer

de onde ele veio.

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199

Já meu bisavô materno, diziam que tinha vindo da Alemanha, mas o que me

intrigava é que seu filho, meu avô, loiro de olhos verdes, dizia-se gaúcho domador

de cavalos e tropeiro. Usava bombacha, bota e chapéu todos os dias. Era conhecido

e reconhecido como um gaúcho, e, portanto, eu nunca incluí os alemães na minha

árvore. Pelo menos, não com a ênfase dada aos europeus das árvores dos meus

colegas de classe.

Aos domingos os homens da minha família se vestiam com botas,

bombachas, guaiacas, lenço vermelho, chapéu e iam para a “argolinha” (modalidade

de rodeios), participar de competições de cavalo. Todos da família acompanhavam

com seus trajes gaúchos, inclusive eu. Certo dia, meu avô materno caiu do cavalo e

ficou entre a vida e a morte, eu tinha apenas cinco anos, mas lembro que alguns

diziam “Ele vai sobreviver, pois é um gaúcho”.

Minhas inquietações borbulhavam e me acompanhavam...

O tempo passou e minha vivência se resume a participações nas práticas

instituídas pelo movimento gaúcho – rodeios, danças, poesias e concursos de

prenda. Fiz parte da diretoria de diversas instituições gaúchas, incluindo a

Confederação Brasileira da Tradição Gaúcha, o que me deu a oportunidade de

visitar todos os MTGs dos estados brasileiros e instituições do exterior. Sempre

aproveitei para questionar as pessoas, fazer entrevistas, comprar livros de história

das instituições de cada lugar onde passava.

Pois minhas inquietações nunca cessaram!

Até que um dia decidi interromper minha participação no movimento gaúcho

para buscar respostas.

Na especialização e no mestrado resolvi parte dos meus questionamentos

sobre o gaúcho, e a carga começou a ficar mais leve. O que estava cristalizado e

ofuscado se desfez, e uma palavra se destacou - identidade (ideal). Ou seja, o

mestrado me ajudou a desmontar um quebra-cabeça que eu tinha passado anos

montando.

No doutorado com o quebra-cabeça (de centenas de peças) desmontado,

com imagens perdidas no tempo e no espaço, busquei memórias, histórias, leituras

e amigos (teóricos) para remontar. Passei os últimos anos buscando compreender

cada uma das peças. Algumas busquei longe, outras eu tinha, mas que de tanto ver

não eram compreendidas como deveriam.

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200

Hoje, entrego meu quebra-cabeça remontado.

Mas formei ele com os olhos deste tempo.

Talvez tenham outras peças mais adequadas?

Talvez!

Mas não tem problema, pois continuarei predisposta a compreendê-las e

buscá-las. Pois, assim como a História, a graça do quebra-cabeça é montar e

desmontar de acordo com as leituras do agora, porém de diferentes tempos!

Que tenhamos tempo e oportunidade de desmontar e montar nossas histórias

com leituras de um tempo que ainda não chegou!

Ah!

E com imagens.

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201

ANEXOS

Anexo 1

Tese: O Sentido e o Valor do Tradicionalismo526

Na vida humana, a sociedade - mais que o indivíduo - constitui a principal

força na luta pela existência. Mas, para que o grupo social funcione como unidade, é

necessário que os indivíduos que o compõem possuam modos de agir e de pensar

coletivamente. Isto é conseguido através da "herança social" ou da "cultura". Graças

à cultura comum, os membros de uma sociedade possuem a unidade psicológica

que lhes permite viverem em conjunto, com um mínimo de confusão.

A cultura, assim, tem por finalidade adaptar o indivíduo não só ao seu

ambiente natural, mas também ao seu lugar na sociedade. Toda a cultura inclui uma

série de técnicas que ensinam ao indivíduo, desde a infância, a maneira como

comportar-se na vida grupal. E graças à Tradição, essa cultura se transmite de uma

geração a outra, capacitando sempre os novos indivíduos a uma pronta integração

na vida em sociedade.

I - A DESINTEGRAÇÃO DE NOSSA SOCIEDADE

A cultura e a sociedade ocidental estão sofrendo um assustador processo de

desintegração. Incluídas nesse panorama geral, a cultura e a sociedade de

quaisquer dos povos ocidentais, necessariamente, apresentam, com maior ou menor

intensidade, idêntica dissolução. É nos grandes centros urbanos que esse fenômeno

se desenha mais nítido, através das estatísticas sempre crescentes de crime,

divórcio, suicídio, adultério, delinqüência juvenil e outros índices de desintegração

social.

526

Este texto foi retirado da página do Movimento Tradicionalista Gaúcho do Estado do Rio grande do Sul e apresenta correções de grafias em relação ao texto original publicado em 1954. LESSA, Luiz Carlos Barbosa. O sentido e o valor do tradicionalismo. Porto Alegre: Publicação da Comissão Estadual do Folclore do Rio grande do Sul, 1954. Disponível em: <http://www.mtg.org.br/historico/ 240>. Acesso em: 26/11/2017.

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202

Analisando tais circunstâncias, mestres da moderna Sociologia chegaram à

conclusão de que problemas sociais cruciantes da atualidade são causados, ou

incentivados, pelo relaxamento do controle dos costumes e noções tradicionais de

cada cultura.

II - OS DOIS FATORES DE DESINTEGRAÇÃO

Sociólogos de renome afirmam que a desintegração social, característica de

nossa época, é devida a dois fatores:

Primeiro: o enfraquecimento das culturas locais.

Segundo: o desaparecimento gradativo dos "Grupos Locais" comunidades

transmissoras de cultura.

Analisemos, então, esses dois fatores.

A) O ENFRAQUECIMENTO DO NÚCLEO CULTURAL

A cultura de qualquer sociedade se compõe de duas partes.

Há um núcleo sólido, de certa forma estável, constituído pelo PATRIMÔNIO

TRADICIONAL. Nesse núcleo se concentram aqueles inúmeros hábitos, princípios

morais, valores, associações e reações emocionais partilhados por TODOS os

membros de determinada sociedade (como a linguagem, a indumentária típica, os

princípios fundamentais de moral, etc. ou ainda, por TODOS os membros de certas

categorias de indivíduos, dentro da sociedade (como as ocupações reservadas só

às mulheres ou só aos homens, as reações emocionais típicas de todos os velhos

ou de todas as crianças, bem como os conhecimentos técnicos reservados aos

ferreiros, aos médicos, aos agricultores, etc.). Tais elementos culturais contribuem

para o bem-estar da coletividade, pois o indivíduo fica sabendo como comportar-se

em grupo, e qual o comportamento que pode esperar dos outros("expectativas de

comportamento"). Em suma: o cerne cultural dá, aos indivíduos, a unidade

psicológica essencial ao funcionamento da sociedade.

Mas, cercando o núcleo, existe uma zona fluída e instável, constituída por

elementos culturais chamados, em sociologia, Alternativas, e que são traços

partilhados apenas por ALGUNS indivíduos, representando diferentes reações às

mesmas situações, ou diferentes técnicas para alcançar os mesmos fins. (Certa

pessoa viaja a cavalo, fazendo o mesmo percurso que outra prefere realizar em

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203

carroça; certa pessoa sente-se tremendamente ofendida se alguém faz "crítica" a um

defeito físico seu, enquanto outra se comporta resignadamente face a tais críticas;

etc.)

É esta zona de Alternativas que permite à cultura crescer e acomodar-se aos

avanços de uma civilização. Evidentemente, quanto maior for o entrechoque com

culturas diversas, maior será a possibilidade de adoção de novas Alternativas, por

parte dos membros de uma sociedade.

Quando a cultura de determinado povo é invadida por novos hábitos e novas

idéias, duas coisas podem ocorrer:

Se o patrimônio tradicional dessa cultura é coerente e forte, a sociedade só

tem a lucrar com o referido contato, pois sabe analisar, escolher e integrar em seio

aqueles traços culturais novos que, dentre muitos, realmente sejam benéficos à

coletividade.

Se , porém, a cultura invadida não é predominante e forte, a confusão social é

inevitável: idéias e hábitos incoerentes sufocam o núcleo cultural, desnorteando os

indivíduos, e fazendo-os titubear entre as crença e valores mais antagônicos. Quem

mais sofre com essa confusão social - acentua o sociólogo Donal Pierson - são as

crianças e os adolescentes, os responsáveis pela sociedade do porvir.

Crescendo nessas circunstâncias, a criança não sabe como agir, não é capaz

de assumir, em seu espírito, qualquer expectativa clara de comportamento. E assim

se originam, entre outros, os problemas da delinqüência juvenil, resultados de uma

desintegração social.

Pois bem. Devido ao surto surpreendente do maquinismo em nossos dias,

bem como da facilidade de intercâmbio cultural entre os mais diversos povos,

observa-se que o núcleo das culturas locais ou regionais vai se reduzindo

gradativamente, a ponto de se ver sufocado pela zona das Alternativas. E a fluidez

naturalmente se acentua, à medida que as sociedades mantêm novos contatos com

traços culturais diferentes ou antagônicos, introduzidos por viajantes ou imigrantes,

ou difundidos por livros, imprensa, cinema, etc. Nossa civilização, antes alicerçada

num núcleo sólido e coerente, transformou-se numa variedades de Alternativas,

entre as quais o indivíduo tem que escolher.. Sem ampla comunidade de hábitos e

de idéias, porém, os indivíduos não reagem com unidade a certos estímulos, nem

podem cooperar eficientemente. Daí os conflitos de ordem moral que afligem o

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204

indivíduo, fazendo atarantar-se sem saber quais as opiniões e os valores que

merecem acatamento.

Essa insegurança reflete-se imediatamente na sociedade como um todo e,

consequentemente no Estado, pois, conforme ensina Ralph Linton "embora os

problemas de organizar e governar Estados nunca tenham sido perfeitamente

resolvidos, uma coisa parece certa: se os cidadãos tiverem interesses e culturas

comuns, com a vontade unificada que daí advém, quase qualquer tipo de

organização formal de governo funcionará eficientemente; mas se isso não se

verificar, nenhuma elaboração e padrões formais de governo, nenhuma

multiplicação de lei, produzirá um Estado eficiente ou cidadãos satisfeitos".

B) O DESAPARECIMENTO DOS "GRUPOS LOCAIS"

As duas unidades mais sociais mais importantes, como transmissoras de

cultura, são a "família" e o "grupo local". Através dessas duas unidades, o indivíduo

recebe, com maior intensidade, a sua "herança social".

São exemplos de "grupo local", em nossa sociedade, o "vizindário" ou "pago"

das populações rurais, bem como as pequenas vilas do interior, ou ainda (um

exemplo do passado) os bairros com vida própria das cidades de há alguns anos

atrás.

Por "grupo local" entende-se o agregado de famílias e de indivíduos avulsos

que vivem juntos em certa área, compartilhando hábitos e noções comuns.

Embora não tenha organização formal (como o distrito ou o município), o

"grupo local" é a unidade social autêntica. O "pago", por exemplo, influencia a vida

dos seus membros, estabelece limites à vida social (quais as famílias que podem ser

convidadas para as festas) , mantém elevado grau de cooperação entre os

indivíduos, pois todos devem se auxiliar (antigos trabalhos de puxirão) e cada qual

tem consciência desse dever de auxílio mútuo. O Indivíduo conhece perfeitamente

os costumes e os princípios morais instituídos pelo seu "pago"; além disso, há um

conhecimento íntimo entre os membros de um mesmo "pago" (conhecem-se até os

animais objetos pertencentes aos vizinhos). Todas essas circunstâncias influem para

que o "grupo local" se constitua numa potente barragem para as transgressões à

ordem pública ou à moral (furto, sedução, adultério, etc.). Ademais, embora não

tenha um meio de reação formal(como a polícia), o "grupo local encerra grande força

punitiva, através de medidas como a perda de prestígio, o ridículo, o ostracismo.

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205

Certamente já depreendemos, então, a grande importância de que se reveste o

"grupo local" para assegurar a normalidade da vida comum, segundo os padrões

culturais instituídos pelo grupo.

Acresce notar o seguinte: o integrar-se a um "grupo local" constitui verdadeira

NECESSIDADE PSICOLÓGICA para o indivíduo normal. Este precisa de uma

unidade social coesa, maior que a família, dentro da qual sinta que outros indivíduos

são seus amigos, que compartilham suas ideias e hábitos. Tanto é verdade que o

indivíduo se sente inseguro quando se vê só entre estranhos.

Pois bem. O enfraquecimento da vida grupal - conforme acentuou Ralph

Linton - é outra característica de nossa época. As unidades sociais pequenas estão

gradativamente desaparecendo, e cedendo lugar às massas de indivíduos. Nas

zonas rurais, os "grupos locais" ainda conservam um pouco de sua função como

portadores de cultura; mas, em geral - devido ao afluxo de Alternativas - os jovens

discordam dos padrões culturais antigos; acontece, porém, que a sociedade mais

ampla - com a qual o jovem entra em contato por meio da imprensa, do rádio e

cinema - ainda não têm padrões coerentes de vida para oferecer-lhes. Daí a

insegurança que começa a notar-se em nossa sociedade rural.

Se nas zonas rurais se percebe apenas uma insegurança incipiente, apenas o

relaxamento das forças do "grupo local" , o que se percebe nas cidades é a

desintegração total dessas forças. A mudança de padrões culturais, em nossos dias,

tem sido tão rápida que, em geral, o adulto de hoje teve sua infância condicionada à

vida segundo as bases do "grupo local". Ensinaram-lhe a esperar dos seus vizinhos

encorajamento e apoio moral; e quando esses vizinhos se afastam, o indivíduo se

sente perdido. Ele escolhe entre muitas Alternativas, mas não dispõe de meios para

estabelecer contato com outros que tenham feito, escolha semelhante.

Sem o apoio de um grupo que pense do mesmo modo, é - lhe impossível

sentir-se seguro a respeito de qualquer assunto. E assim o indivíduo torna-se presa

fácil de qualquer propaganda insistente, (quer seja a má propaganda, quer seja a

boa propaganda).

Por isso, Ralph Linton escreveu "A cidade moderna, com sua multiplicidade

de organizações de toda a espécie, dá a imagem de uma massa de indivíduos que

perderam seus "grupos locais" e estão tentando, de maneira tateante, substituí-los

por alguma outra coisa. De todos os lados surgem novos tipos de agrupamentos,

mas até agora nada foi encontrado, que pareça capaz de assumir as principais

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206

funções do "grupo local". Ser membro do Rotary Club, por exemplo, não substitui

adequadamente a posse de vizinhos e amigos tal como se verifica nos grupos

locais".

O MOVIMENTO TRADICIONALISTA RIO-GRANDENSE

O movimento tradicionalista rio-grandense - que vem se desenvolvendo

desde 1947, com características especialíssimas - visa precisamente combater os

dois reconhecidos fatores de desintegração social. O fundamento científico deste

movimento encontra-se na seguinte afirmação sociológica: "Qualquer sociedade

poderá evitar a dissolução enquanto for capaz de manter a integridade de seu

núcleo cultural. Desajustamentos, nesse núcleo, produzem conflitos entre indivíduos

que compõem a sociedade, pois esses vêm a preferir valores diferentes, resultando,

então, a perda da unidade psicológica essencial ao funcionamento eficiente de

qualquer sociedade".

Através da atividade artística, literária, recreativa ou esportiva, que o

caracteriza - sempre realçando os motivos tradicionais do Rio Grande do Sul - o

Tradicionalismo procura, mais que tudo, reforçar o núcleo da cultura rio-grandense,

tendo em vista o indivíduo que tateia sem rumo e sem apoio dentro do caos de

nossa época.

E, através dos Centros de Tradições, o Tradicionalismo procura entregar ao

indivíduo uma agremiação com as mesmas características do "grupo local" que ele

perdeu ou teme perder: o " pago". Mais que o seu "pago", o pago das gerações que

o precederam.

Cada Centro de Tradições Gaúchas, em si, é um novo "Grupo Local". E à

medida que surgem novos Centros, em todos os municípios do Rio Grande do Sul,

vai o Tradicionalismo confundindo-se com o Regionalismo, pois opera para que

todos os indivíduos que compõem a Região sintam os mesmos interesses, os

mesmos afetos, e desta forma reintegrem a unidade psicológica da sociedade

regional. E com isso o Tradicionalismo pode se transformar na maior força política

do Rio Grande do Sul. Para evitar confusão de "política" com "política partidária",

expressemo-nos assim: O Tradicionalismo pode constituir-se na maior força a

auxiliar o Estado na resolução dos problemas cruciais da coletividade.

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207

Para compreendermos tal afirmativa, basta repetir a transcrição já feita: "Se

os cidadãos tiverem interesses e culturas comuns, com vontade unificada que daí

advém, quase qualquer tipo de organização formal de governo funcionará

eficientemente. Mas, se isso não se verificar, nenhuma elaboração de padrões

formais de governo, nenhuma multiplicação de lei, produzirá um Estado eficiente ou

cidadãos satisfeitos.

O SENTIDO DO TRADICIONALISMO

O Tradicionalismo consiste numa EXPERIÊNCIA do povo rio-grandense, no

sentido de auxiliar as forças que pugnam pelo melhor funcionamento da

engrenagem da sociedade. Como toda experiência social, não proporciona efeitos

imediatamente perceptíveis. O transcurso do tempo é que virá dizer do acerto ou

não desta campanha cultural. De qualquer forma, as gerações do futuro é que

poderão indicar, com intensidade, os efeitos desta nossa - por enquanto - pálida

experiência. E ao dizermos isso, estamos acentuando o erro daqueles que

acreditam ser o Tradicionalismo uma tentativa estéril de "retorno ao passado". A

realidade é justamente o oposto: o Tradicionalismo constrói para o futuro.

Feitas estas considerações preliminares, podemos tentar um conceito do

movimento tradicionalista. E então diremos:

"Tradicionalismo é o movimento popular que visa auxiliar o Estado na

consecução do bem coletivo, através de ações que o povo pratica (mesmo que não

se aperceba de tal finalidade) com o fim de reforçar o núcleo de sua cultura: graças

ao que a sociedade adquire maior tranqüilidade na vida comum".

CARACTERÍSTICAS DO TRADICIONALISMO

Mais do que uma teoria, o Tradicionalismo é um movimento. Age dentro da

psicologia coletiva. Sua dinâmica realiza-se por intermédio dos Centros de Tradições

Gaúchas, agremiações de cunho popular que têm por fim estudar, divulgar e fazer

com que o povo "viva" as tradições rio-grandenses.

O Tradicionalismo deve ser um movimento nitidamente POPULAR, não

simplesmente intelectual. É verdade que o tradicionalismo continuará sendo

compreendido, em sua finalidade última, apenas por uma minoria intelectual. Mas,

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208

para vencer, é fundamental que seja sentido e desenvolvido no seio das camadas

populares, isto é, nas canchas de carreiras, nos auditórios de radioemissoras, nos

festivais e bailes populares, na "Festas do Divino" e de "Navegantes", etc.

Para alcançar seus fins, o Tradicionalismo serve-se do Folclore, da

Sociologia, da Arte, da Literatura, do Esporte, da Recreação, etc. Tradicionalismo

não se confunde, pois, com Folclore, Literatura, Teatro, etc. Tudo isso constitui

MEIOS para que o Tradicionalismo alcance seus fins. Não se deve confundir o

Tradicionalismo, que é um movimento,, com o Folclore, a História, a Sociologia, etc.,

que são ciências. Não se deve confundir o folclorista, por exemplo, com o

tradicionalista: aquele é o estudioso de uma ciência, este é o soldado de um

movimento. Os Tradicionalistas não precisam tratar cientificamente o folclore;

estarão agindo eficientemente se servirem dos estudos dos folcloristas, como base

de ação, e assim reafirmarem as vivências folclóricas no próprio seio do povo.

AS DUAS GRANDES QUESTÕES DO TRADICIONALISMO

Existem duas questões importantíssimas, que de maneira nenhuma podem

ser descuidadas pelos tradicionalistas, sob pena deste esforço cultural se desenhar,

de antemão, como uma experiência fracassada.

A) ATENÇÃO ESPECIAL ÀS NOVAS GERAÇÕES

Deve, o Tradicionalismo, operar com intensidade no setor infantil ou

educacional, para que o movimento tradicionalista não desapareça com a nossa

geração. Porque nós - os tradicionalistas de primeira arrancada - entramos para os

Centros de Tradições Gaúchas movidos pela necessidade psicológica de encontrar

o "grupo local" que havíamos perdido ou que temíamos perder. Mas as gerações

novas não chegaram a conhecer o grupo local como unidade social autêntica, e

somente seguirão nossos passos por força de impulsos que a educação lhes

ministrar.

Por isso não temo afirmar que o dia mais glorioso para o movimento

tradicionalista será aquele em que a classe de Professores Primários do Rio Grande

do Sul - consciente do sentido profundo desse gesto, e não por simples atitude de

simpatia - oferecer seu decisivo apoio a esta campanha cultural.

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209

Aliás, não se concebe que as Escolas Primárias continuem por mais tempo

apartadas do movimento tradicionalista. Pois a maneira mais segura de garantir à

criança o seu ajustamento à sociedade é precisamente fazer com que ela receba, de

modo intensivo, aquela massa de hábitos, valores, associações e reações

emocionais - o patrimônio tradicional, em suma - imprescindíveis para que o

indivíduo se integre eficientemente na cultura comum.B) ASSISTÊNCIA AO HOMEM

DO CAMPO

A idéia nuclear das Tradições Gaúchas é a figura do campeiro das nossas

estâncias. Por isso, é sumamente necessário que o Tradicionalismo ampare social e

moralmente o homem do campo, para que um dia não se chegue à situação

paradoxal de manter-se uma Tradição de fantasia, em que se tecessem hinos de

louvor ao "Monarca das Coxilhas", ao "Centauro dos Pampas", e esse gaúcho fosse

um desajustado social, um pária lutando febrilmente pela própria subsistência. A

nossa cultura somente poderá se impor sobre as outras culturas, no entrechoque

inevitável, se for suficientemente prestigiosa. Daí a razão por que precisamos

mostrar às novas gerações - bem como àqueles que, vindos de terras distantes,

acorrerem à nossa querência - que as tradições gaúchas são REALMENTE belas, e

que o gaúcho merece realmente a nossa admiração.

O TRADICIONALISMO COMO FORÇA ECONÔMICA

Prestigiando as tradições gaúchas e prestando assistência moral e social ao

homem do campo, o Tradicionalismo estará contribuindo de maneira inestimável

para a solução do problema que ora sufoca a nossa vida econômica: o êxodo rural,

a crise agrícola. É que, dentre as principais causas do êxodo rural, encontramos

uma que foge ao âmbito dos fenômenos econômicos. Para proteger o homem do

campo, e fazer com que ele permaneça no meio rural, não basta que o Estado lhe

forneça meios econômicos mais seguros. Se o campesino acaso julgar que o lugar

que lhe está reservado na sociedade encontra-se nas cidades, ele será um

desajustado enquanto não realizar seu sonho de transferir-se para a cidade. Este

fenômeno prende-se ao conceito sociológico de "status", que é a posição social de

uma pessoa em relação a todas as outras com quem está em contato. Se "os

outros" demonstram que certo indivíduo ocupa um "status" digno, ele fica satisfeito;

mas se "os outros" demonstram o contrário, ele é, inconscientemente, levado a

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demonstrar habilidade, e, nesse afã, sempre deseja competir com os indivíduos que

considera superiores, jamais com aqueles que considera inferiores. Assim sendo, se

o campesino se considera inferior ao citadino, mais cedo ou mais tarde tentará

procurar a cidade, para ali competir com quem lhe rouba a posição social.

Prestigiando as tradições gaúchas, e prestando assistência moral e social ao

homem do campo, o Tradicionalismo estará convencendo o campesino da dignidade

e importância do seu "status". Estará, em suma, pondo em prática aquilo que o

sanitarista Belizário Penna um dia salientou, mais ou menos nestes termos: "O Brasil

é o país onde mais se fala em valorização. Valorização do café brasileiro, do

dinheiro brasileiro, do algodão brasileiro, do boi brasileiro. Somente não se pensa na

mais urgente e importante valorização: a do Homem brasileiro, a qual, por si só,

estaria conduzindo a todas as outras".

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Anexo 2

Carta de Princípios

A "Carta de Princípios" atualmente em vigor foi aprovada no VIII Congresso

Tradicionalista, levado a efeito no período de 20 a 23 de julho de 1961, no CTG "O

Fogão Gaúcho" em Taquara, e fixa os seguintes objetivos do Movimento

Tradicionalista Gaúcho:

I - Auxiliar o Estado na solução dos seus problemas fundamentais e na conquista do

bem coletivo.

II - Cultuar e difundir nossa História, nossa formação social, nosso folclore, enfim,

nossa Tradição, como substância basilar da nacionalidade.

III - Promover, no meio do nosso povo, uma retomada de consciência dos valores

morais do gaúcho.

IV - Facilitar e cooperar com a evolução e o progresso, buscando a harmonia social,

criando a consciência do valor coletivo, combatendo o enfraquecimento da cultura

comum e a desagregação que daí resulta.

V - Criar barreiras aos fatores e idéias que nos vem pelos veículos normais de

propaganda e que sejam diametralmente opostos ou antagônicos aos costumes e

pendores naturais do nosso povo.

VI - Preservar o nosso patrimônio sociológico representado, principalmente, pelo

linguajar, vestimenta, arte culinária, forma de lides e artes populares.

VII - Fazer de cada CTG um núcleo transmissor da herança social e através da

prática e divulgação dos hábitos locais, noção de valores, princípios morais, reações

emocionais, etc.; criar em nossos grupos sociais uma unidade psicológica, com

modos de agir e pensar coletivamente, valorizando e ajustando o homem ao meio,

para a reação em conjunto frente aos problemas comuns.

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VIII - Estimular e incentivar o processo aculturativo do elemento imigrante e seus

descendentes.

IX - Lutar pelos direitos humanos de Liberdade, Igualdade e Humanidade.

X - Respeitar e fazer respeitar seus postulados iniciais, que têm como característica

essencial a absoluta independência de sectarismos político, religioso e racial.

XI - Acatar e respeitar as leis e poderes públicos legalmente constituídos, enquanto

se mantiverem dentro dos princípios do regime democrático vigente.

XII - Evitar todas as formas de vaidade e personalismo que buscam no Movimento

Tradicionalista veículo para projeção em proveito próprio.

XIII - Evitar toda e qualquer manifestação individual ou coletiva, movida por

interesses subterrâneos de natureza política, religiosa ou financeira.

XIV - Evitar atitudes pessoais ou coletivas que deslustrem e venham em detrimento

dos princípios da formação moral do gaúcho.

XV - Evitar que núcleos tradicionalistas adotem nomes de pessoas vivas.

XVI - Repudiar todas as manifestações e formas negativas de exploração direta ou

indireta do Movimento Tradicionalista.

XVII - Prestigiar e estimular quaisquer iniciativas que, sincera e honestamente,

queiram perseguir objetivos correlatos com os do tradicionalismo.

XVIII - Incentivar, em todas as formas de divulgação e propaganda, o uso sadio dos

autênticos motivos regionais.

XIX - Influir na literatura, artes clássicas e populares e outras formas de expressão

espiritual de nossa gente, no sentido de que se voltem para os temas nativistas.

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XX - Zelar pela pureza e fidelidade dos nossos costumes autênticos, combatendo

todas as manifestações individuais ou coletivas, que artificializem ou

descaracterizem as nossas coisas tradicionais.

XXI - Estimular e amparar as células que fazem parte de seu organismo social.

XXII - Procurar penetrar e atuar nas instituições públicas e privadas, principalmente

nos colégios e no seio do povo, buscando conquistar para o Movimento

Tradicionalista Gaúcho a boa vontade e a participação dos representantes de todas

as classes e profissões dignas.

XXIII - Comemorar e respeitar as datas, efemérides e vultos nacionais e,

particularmente o dia 20 de setembro, como data máxima do Rio Grande do Sul.

XXIV - Lutar para que seja instituído, oficialmente, o Dia do Gaúcho, em paridade de

condições com o Dia do Colono e outros "Dias" respeitados publicamente.

XXV - Pugnar pela independência psicológica e ideológica do nosso povo.

XXVI - Revalidar e reafirmar os valores fundamentais da nossa formação, apontando

às novas gerações rumos definidos de cultura, civismo e nacionalidade.

XXVII - Procurar o despertamento da consciência para o espírito cívico de unidade e

amor à Pátria.

XXVIII - Pugnar pela fraternidade e maior aproximação dos povos americanos.

XXIX - Buscar, finalmente, a conquista de um estágio de força social que lhe dê

ressonância nos Poderes Públicos e nas Classes Rio-grandenses para atuar real,

poderosa e eficientemente, no levantamento dos padrões de moral e de vida do

nosso Estado, rumando, fortalecido, para o campo e homem rural, suas raízes

primordiais, cumprindo, assim, sua alta destinação histórica em nossa Pátria.

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Anexo 3

Cartaz para divulgação do baile gauchesco de 20 de setembro 1947

Fonte: CÔRTES, João Carlos Paixão. Origem da Semana Farroupilha e primórdios do Movimento

Tradicionalista. Porto Alegre: Evangraf, 1994, p. 103.

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Anexo 4

Capa da Revista do Rádio de 1950

Fonte: REVISTA DO RÁDIO. Rio de Janeiro, ano II, nº 49, 15 ago. 1950.

Acervo Israel Lopes.

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Anexo 5

Produção fotográfica de Pedro Raymundo

Fonte: REVISTA DO RÁDIO. Rio de Janeiro, Ano III, nº 52, 5 set.

1950, p. 22-23. Acervo Biblioteca Nacional – RJ.

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Fonte: REVISTA DO RÁDIO. Rio de Janeiro, ano III, nº 52, 5 set.

1950, p. 22-23. Acervo Biblioteca Nacional - RJ.

Fonte: REVISTA DO RÁDIO. Rio de Janeiro, ano III, nº 23, 1º jan.

1950, p. 42. . Acervo Biblioteca Nacional - RJ.