CONSTITUIÇÃO, DEMOCRACIA E JURISDIÇÃO
COORDENADORES
CONSTITUIÇÃO, DEMOCRACIA E JURISDIÇÃO
COORDENADORES
CONSTITUIÇÃO, DEMOCRACIA E JURISDIÇÃO
Rua Espírito Santo, 1204, Loja Térrea Centro - Belo Horizonte -
MG
CEP 30.160.031
Capa e Diagramação: Toque Digital Impressão: Toque Digital
Constituição, democracia e jurisdição um panorama dos últimos 30
anos / organização de Lucas Azevedo Paulino - Belo Horizonte: IDDE,
2018. 144p.; 15,5cm x 22,5cm.
ISBN: 978-85-67134-08-6
1. Direito Constitucional. 2. Constituição. I. Paulino, Lucas
Azevedo (org.). II. Título.
C758
APRESENTAÇÃO
......................................................................................................................
7
O LEVIATÃ TOGADO: OS 30 ANOS DE PROTAGONISMO JUDICIAL E O DEVIR
CONSTITUCIONAL Alexandre Melo Franco de Moraes Bahia Diogo Bacha e
Silva
..........................................................................................
11
DIREITOS SOCIAIS: CONSOLIDAÇÃO OU RISCO DE EXTINÇÃO? Álvaro Ricardo
de Souza Cruz Nicole Barbieri Marques
....................................................................................
33
A PARTICIPAÇÃO DAS IGREJAS NO PROCESSO ELEITORAL BRASILEIRO: A
LIBERDADE RELIGIOSA EM CONTRAPOSIÇÃO À MAXIMA IGUALDADE ENTRE OS
CANDIDATOS. Ana Claudia Santano Geovane Couto da
Silveira.................................................................................
51
REFLEXÕES SOBRE A TESE DO PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO DE SERGIO
ABRANCHES NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 Bernardo Gonçalves
Fernandes
.........................................................................
75
AVANÇOS E LIMITES DA TRANSIÇÃO BRASILEIRA ANTE O PROJETO
CONSTITUINTE DE 1988: 30 ANOS EM PERSPECTIVA Emilio Peluso Neder
Meyer Raquel Cristina Possolo Gonçalves
...................................................................
87
ENTRE O PROJETO CONSTITUINTE E A INTERVENÇÃO FEDERAL NO RIO DE
JANEIRO: O QUE ELA TEM REVELADO SOBRE NÓS? Ernane Salles da Costa
Junior
...........................................................................
117
A CONSTITUIÇÃO SOB A CORTE MENDES (2003-2013): A INSTITUCIONALI-
ZAÇÃO DO ABUSO JURISDICIONAL NA BUSCA POR PROPORCIONALIDADE? João
Andrade Neto
...........................................................................................
137
REFLEXÕES SOBRE ESTADO CONSTITUCIONAL, MODERNIDADE E PROCESSO: POR
UMA COMPREENSÃO DO MODELO CONSTITUCIONAL DE PROCESSO E DA
DEMOCRACIA A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 José Luiz
Quadros de Magalhães Maria Luisa Costa Magalhães
...........................................................................
169
OS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO: O PAPEL DO DIREITO E DA JURISDIÇÃO
CONSTITUCIONAL Lenio Luiz Streck
..............................................................................................
207
30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO DO TRABALHO: AVANÇOS E RETROCESSOS NA
PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS TRABALHISTAS Miriam Olivia
Knopik Ferraz Marco Antônio César Villatore Martinho Martins
Botelho
.................................................................................
231
TRINTA ANOS, UMA CONSTITUIÇÃO, TRÊS SUPREMOS: AUTORRESTRIÇÃO,
EXPANSÃO E AMBIVALÊNCIA NO EXERCÍCIO DA JURISDIÇÃO Patrícia Perrone
Campos Mello
.........................................................................
259
A CONSTITUIÇÃO ENTRE RECONHECIMENTO E ATORDOAMENTO Rodolfo Viana
Pereira
.......................................................................................
297
JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E 1988 OU SOBRE PORQUE PRECISAMOS DE UM
CONSTITUCIONALISMO TRANSICIONAL E POLÍTICAS DE JUSTA MEMÓRIA
PERMANENTES Tayara Talita Lemos
..........................................................................................
317
APRESENTAÇÃO
“A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa
ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim.
Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca.
Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho
maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento,
garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio
e o cemitério.
Quando após tantos anos de lutas e sacrifícios promul- gamos o
Estatuto do Homem da Liberdade e da Democracia bradamos por
imposição de sua honra.
Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo.”
Ulysses Guimarães
Há 30 anos, em 05 de outubro de 1988, Ulysses Guimarães realizava
discurso memorável, do qual o trecho acima foi retirado, para
anunciar a promulgação da nossa nova Constituição Democrática, que
representou o marco histórico da transição de uma ordem jurídica
autoritária, implementada no decorrer do regime militar, para uma
nova ordem jurídica democrática.
A Assembleia Constituinte que trabalhou no decorrer de 1987 e 1988,
além de contar com a participação de representantes eleitos de uma
pluralidade de partidos e correntes políticas, recebeu mais de uma
centena de emendas populares. Esse caldeirão de engajamento cívico
e democrático resultou em um documento consti- tucional extenso,
analítico, abrangente e compromissório, que estabelece os direitos
fundamentais dos cidadãos brasileiros e organiza nosso Estado
Democrático de Direito.
A Constituição de 1988 inaugurou um sistema jurídico em que os
cidadãos brasi- leiros são titulares de uma miríade de direitos
individuais, políticos, coletivos e difusos. Na organização do
Estado, mantivemos o federalismo, com a novidade de elevar os
municípios à categoria de ente político, junto com a União, os
Estados e o Distrito Federal. Na organização dos poderes, um
sistema presidencialista multipartidário, com um Poder Legislativo
bicameral e um Poder Judiciário com competência para, além de
dirimir conflitos em casos concretos, controlar a
constitucionalidade dos atos normativos nas modalidades difusa e
concentrada.
Como o próprio Ulysses Guimarães reconheceu no seu discurso de
promulgação, a Constituição não é perfeita e admite reformas.
Apenas os pilares centrais do cons- titucionalismo liberal e
democrático não podem ser modificados: democracia (voto direto,
universal, individual e secreto); estado de direito (separação de
poderes), direitos fundamentais, além da forma federativa de
estado, que se justifica pela extensão territorial e diversidade
existente no país. Apesar de existir formalmente um procedi- mento
mais rígido para alteração, nesses 30 anos de vigência já foram
promulgadas 99 emendas para modificar seu texto, aperfeiçoar nossas
instituições, sendo que os governos eleitos conseguiram,
geralmente, adotar sua agenda política.
No decorrer dessas três décadas, o Supremo Tribunal Federal
alcançou um maior protagonismo no cenário institucional brasileiro,
passando a atuar de forma mais ativa na aplicação das normas
constitucionais, com vistas a dar efetividade à Constituição,
sobretudo quanto à garantia e expansão de direitos. Esse fenômeno
de fortalecimento da autoridade do STF, deslocando-se para o centro
do arranjo político, muitas vezes em detrimento dos demais poderes,
é perceptível, sobretudo na decisão de temas contro- vertidos de
forte apelo político e moral–como nos casos sobre os
reconhecimentos de direitos LGBTs, da interrupção da gestação de
fetos anencéfalos, na demarcação de terras indígenas, nepotismo e
financiamento empresarial de campanhas eleitorais–e também nos
casos de alta voltagem política, como na antecipação do cumprimento
da sanção penal após esgotadas as instâncias ordinárias e no
julgamento criminal de autoridades políticas por crimes de
corrupção, especialmente associadas à operação Lava Jato. A
judicialização da política e o ativismo judicial não ocorreram sem
críticas e sem controvérsias. Questionamentos sobre ausência de
legitimidade democrática do Tribunal para decidir certos temas, o
extrapolamento hermenêutico em algumas decisões, decisões judiciais
pouco ortodoxas e até sobre a politização da justiça são alguns dos
desafios presentes no momento.
A difícil combinação do sistema presidencialista no Poder Executivo
com um sistema político multipartidário fragmentado no Poder
Legislativo representa outro desafio para o Brasil. De um lado,
parte da literatura considera que essa fórmula institucional
engendra conflitos entre poderes e agrava cenário de instabilidade
e de possível imobilismo político. De outro, há os que veem
possibilidade de coordenação na relação entre esses poderes, uma
vez que existem mecanismos que possibilitariam presidentes e
parlamentos cooperarem e tornarem o sistema estável, mesmo em
cenários adversos, por meios da construção de coalizões de governo.
Os últimos anos de crise e instabilidade política no Brasil, com o
segundo impeachment presidencial realizado nos 30 anos de vigência
da atual Constituição, merecem a devida reflexão.
A presente obra pretende ajudar nesse debate. Com artigos escritos
por profes- sores doutores de diversas origens acadêmicas, pretende
contribuir com visões distintas sobre temas fulcrais para o
constitucionalismo brasileiro.
Rodolfo Viana Pereira Bernardo Gonçalves Fernandes
coordenadores
Lucas Azevedo Paulino organizador
BAHIA, Alexandre Melo Franco de Moraes; SILVA, Diogo Bacha. O
Leviatã togado: os 30 anos de protagonismo judicial e o devir
constitucional. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo
Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo (org.). Constituição,
democracia e jurisdição: um panorama dos últimos 30 anos. Belo
Horizonte: IDDE, 2018. p. 11-32. Disponível em: https://doi.
org/10.32445/97885671340861
O Leviatã togado: os 30 anos de protagonismo judicial e o
devir
constitucional Alexandre Melo Franco de Moraes Bahia1
Diogo Bacha e Silva2
Resumo O artigo explora tema ainda pouco debatido sobre a
centralidade do
Poder Judiciário no processo de redemocratização. Enquanto a
maioria dos estudos têm como objeto de análise das decisões
jurisdicionais e seus impactos sociais, procuramos analisar e
refletir como o mecanismo insti- tucional do Poder Judiciário e,
sobretudo, do Supremo Tribunal Federal se mantém aferrado às
práticas autoritárias e a uma composição patrimonial que dificulta
o processo de democratização e as promessas de inclusão social.
Deve-se assumir a perspectiva de que a democracia é sempre um
processo devir e necessita do antagonismo social, inclusive das
instituições.
Introdução A história nos mostra que, assim como na França no
ancien régime, o Poder
Judiciário brasileiro, desde os tempos coloniais, mantinha
estreitos laços com a elite política e econômica. Na verdade, a
estrutura institucional do Poder Judiciário representava o
verdadeiro estamento burocrático e estava voltado para a
resolução
1 Doutor pela UFMG, Professor Adjunto na UFOP e IBMEC-BH,
Coordenador do Programa de Pós-Graduação Novos Direitos, Novos
Sujeitos – UFOP, Bolsista de Produtividade do CNPq, e-mail:
[email protected].
2 Doutorando em Direito pela UFRJ, Mestre em Direito pela FDSM,
Professor, Membro do OJB-FND-UFRJ, e-mail:
[email protected].
12 Alexandre Melo Franco de Moraes Bahia Diogo Bacha e Silva
dos conflitos entre as elites dominantes. Por isso, o perfil de
seus membros era de um velho bacharelismo liberal em que a maioria
de seus membros eram pertencentes à classe social da elite política
e econômica e seu ideário forjado na tradição europeia. Não há como
desvincular o Poder Judiciário brasileiro e o poder político
nacional3.
A carreira no Poder Judiciário, ocupada pelos bacharéis,
destinava-se a possibilitar uma ocupação profissional para a elite
política brasileira e um emprego com relativa segurança, além de um
crescimento no status social. Há um casamento, portanto, entre o
dinheiro e o poder que encontra seu ápice na figura do Poder
Judiciário no Brasil e na sua formação intelectual4.
O advento da República também pouco mudou o quadro de estreita
ligação do Poder Judiciário com as elites e o poder político.
Embora tenhamos vivido mais sob períodos de regimes políticos
autoritários do que democrático, os 30 (trinta) anos da
Constituição de 1988 seriam (deveriam ser) tempo suficiente para
que o Poder Judiciário abandonasse seu viés elitista e
corporativista e realizasse um papel institucional de inclusão
política e garantia da ordem constitucional. É importante o resgate
histórico sobre a subserviência – quando não, legitimação – do
Judiciário face a atos autoritários perpetrados no Brasil. Apenas
para citar alguns, vale lembrar da decisão do STF sobre o Caso Olga
Benário (contrariando normas internacionais de que o País era
signatário), a legitimação da tortura e condenação sem provas no
Caso dos Irmãos Naves, ou a atitude na maior parte das vezes
passiva e, no geral, legitimadora, do STF face ao Golpe Militar de
1964 e as torturas, desaparecimentos e mortes que se
seguiram.5
3 WOLKMER, Antônio Carlos. História do Direito no Brasil. 5ª ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 117 e ss.
4 SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: O
Tribunal Superior da Bahia e seus desembargadores, 1609-1751. São
Paulo: Companhia das letras, 2011.
5 “[O] STF legitimou explicitamente o golpe de estado através da
presença de seu Presidente na sessão do Congresso que determinou a
vacância do cargo de Presidente da República, atitude que possui um
fundo eminentemente político. A justiça, com sua estrutura
compartimentalizada em Tribunais e Juízes, legitimaria um novo
governo, mesmo que ilegal, desde que esse mantivesse intacta a
estrutura dos Tribunais e sua autonomia. Tanto é que foram mantidos
no cargo, em um primeiro momento, os Ministros do Supremo que
haviam sido nomeados por João Goulart. Os Ministros consideraram a
tomada de poder pelos militares como sendo legítima, sendo que em
nenhum momento o golpe teve sua legalidade ou legitimidade
questionada. Após a posse de Castelo Branco, os Ministros
reuniram-se com o recém- eleito militar-Presidente, sem
questionamentos ao golpe, aceitando a quebra da Constituição. O
medo dos Ministros era de uma cassação e qualquer movimento
contrário ao golpe poderia acarretá-la. O primeiro ato
institucional, elaborado por dois juristas de renome – Carlos
Medeiros e Francisco Campos -, ingressou na ordem jurídica nacional
como poder constituinte originário, mudando a Constituição no que
interessava ao militares, com investigações e suspensões de
direitos fundamentais. A legalidade do ato estaria também na sua
aceitação por parte do STF que, com seu discurso de imparcialidade
e autonomia, colocou-se como um intérprete para a aplicação dos
futuros atos institucionais” (TORRES,
13O LEVIATÃ TOGADO
Portanto, sob o pano de fundo da feição institucional de um Poder
Judiciário eminentemente patrimonialista e elitista, bem como assim
de uma composição social típica da Casa-grande, cabe refletir sobre
se a promessa de democratização da Constituição de 1988 atingiu
efetivamente a atuação do Poder Judiciário.
O núcleo central da Constituição de 1988 e o grande valor normativo
para a construção de um projeto político democrático reside
principalmente na capacidade transformadora/emancipadora de suas
instituições. Essa transformação/emancipação não se dá apenas na
dimensão social, mas sobretudo também na dimensão institu- cional.
Partindo de um método jurídico-descritivo de análise da atuação do
Poder Judiciário nesses 30 (trinta), em uma exploração de algumas
das principais decisões do Supremo Tribunal Federal, passamos a
realizar algumas projeções sobre o que se espera do Poder
Judiciário para o devir constitucional.
Em primeiro lugar, a escolha do Supremo Tribunal Federal como
objeto de análise deve-se ao papel de cúpula do Poder Judiciário,
guardião (último) da Constituição e, por conseguinte, a instituição
que tem como função principal a proteção da ordem
democrático-constitucional. Além do mais, o arranjo institucional
da Constituição de 1988, mediante o fortalecimento de ações de
controle concentrado, o papel político assumido pelo Supremo
Tribunal Federal ao longo desses anos, bem como a dotação de
eficácia vinculante de suas decisões, o colocam como objeto
principal de análise da atuação do Poder Judiciário, eis que suas
decisões servem de padrão de conduta, senão muitas vezes
obrigatórias, para os demais órgãos jurisdicionais, além do que
demarcam a história institucional do Poder Judiciário e também a
reputação internacional do próprio Poder Judiciário, bem assim
explicita, ao menos para um observador externo, como a Constituição
é aplicada/vivida em nosso projeto político.
Nunca é demais salientar que não podemos enxergar a atuação
jurisdicional sob o pálio da Constituição de 1988 afastada das
condições históricas, sociais e políticas de formação e
constituição de nossa nação. A própria Constituição deve ser vista
como lócus de disputa de narrativas e projetos políticos díspares e
que, deste modo, reflete a própria ambiguidade da atuação do Poder
Judiciário. A Constituição não é obra acabada, mas projeto que se
coloca como à venir (no sentido dado por MOUFFE),
Mateus Gamba. O Supremo Tribunal Federal e a ditadura militar:
discursos, processos e parcialidade. XXVIII Simpósio Nacional de
História, 27 a 28 de outubro de 2015, Florianópolis. Disponível em:
<https:// tinyurl.com/y7gjndw5). Vale a pena ver também:
RECONDO, Felipe. Tanques e togas: o STF e a ditadura militar.
São Paulo: Companhia das letras, 2018. Sempre é importante lembrar
– porque parece que não aprendemos a lição – que pura legalidade
não gera legitimidade.
14 Alexandre Melo Franco de Moraes Bahia Diogo Bacha e Silva
que se reconstrói a todo tempo, como possibilidade de inclusão de
novos direitos e de novos sujeitos de direito, projeto este não
imune a quedas/retrocessos e que coloca a questão de sua
legitimidade, então, para o futuro6.
Como marco teórico, e em especial por considerar que a democracia
não se realiza apenas normativamente como algo dado e acabado por
alguns que detêm a “vanguarda iluminista”, a concepção de
democracia agonística de Chantal Mouffe em que a construção de uma
democracia é sempre algo conflituoso e em permanente disputa por
agentes sociais e narrativas distintas. O espaço jurisdicional não
deve ser visto como um local em que alguns possam conduzir nossa
democracia e ditar quais os aspectos que farão de nossa comunidade
política uma união de membros livres e iguais.
No trintenário da Constituição cidadã de 1988 cabe-nos, então,
levantar o seguinte questionamento: qual o papel do Poder
Judiciário no processo de redemocratização iniciado pela
Constituição de 1988? Ademais, o que resta de democrático no Poder
Judiciário e qual o futuro para a consolidação do Estado
democrático de direito?
A transição da justiça e a justiça de transição: a contradição
institucional do Poder Judiciário brasileiro.
Ao longo das décadas de 1960 a 1980, grande parte da América
Latina, sob fortes influências norte-americanas, estava mergulhada
em regimes políticos ditatoriais. Sob a influência ideológica e
econômica do capitalismo, os regimes políticos ditatoriais alçaram
o poder ao argumento de combate ao “comunismo” que ameaçaria a
existência de toda a região a partir da experiência cubana – a
“luta contra o comunismo” foi a expressão-chave para justificar a
queda de regimes democráticos, cassação de partidos e de políticos,
desaparecimentos, torturas e mortes de dissidentes.
A participação e um canal aberto entre os militares e o setor
empresarial no regime político autoritário que se instalou no
Brasil a partir de 1964 até 1985 deu contornos específicos ao golpe
de estado7. Os contornos específicos da ditadura civil-militar
no
6 HABERMAS, Jürgen. Remarks on Erhard Denninger’s Triad of
Diversity, Security, and Solidarity. Constellations. Oxford: Oxford
University Press, v. 7, n. 4, p. 522-528, 2000, p. 524.
7 De forma pioneira, Heloisa Starling estabelece os meandros dessa
relação: STARLING, Heloisa Maria Murgel. Os senhores das gerais: os
novos inconfidentes e o golpe de 1964. 4ª ed. Petropólis: Ed.
Vozes,
15O LEVIATÃ TOGADO
Brasil trarão também, por óbvio, consequências não só no campo
social e político8 como no campo institucional. Assim como o regime
escravocrata dos séculos XVII, XVIII e XIX no Brasil mantém severas
raízes em nossa realidade social, os regimes ditatoriais (os
Marechais da República Velha, o Estado Novo de Getúlio e a ditadura
militar de 1964-1984) continuam tendo enormes influências em nossas
práticas institucionais. Nunca se passa impune a um golpe, civil ou
militar. Estes são eventos que criam narrativas e se entremeiam nas
instituições de forma a se perpetuar, mesmo após seu fim9,
principalmente em países como o Brasil, que não fizeram o devido
expurgo jurídico (e histórico, simbólico) via justiça de transição
– e também aí o STF tem papel fundamental, ao julgar a ADPF.
15310.
Há três importantes aspectos que, inter-relacionados, influenciarão
sobremaneira o modo como o Poder Judiciário exercerá suas
atribuições após a redemocratização. Na verdade, se bem
vislumbrarmos a história institucional do Poder Judiciário,
poderemos perceber uma certa docilidade do mesmo com regimes
autoritários e até mesmo complacência com a violação de direitos
individuais.
Basta lembrarmos, pois, que mesmo após a proclamação da República e
com um tecido institucional próprio da Suprema Corte
norte-americana, o STF, instalado em 1891, logo de início decidiu
questões importantes para o futuro e a construção não só de sua
reputação, mas também da nossa própria história constitucional. É
notório, portanto, no julgado do histórico HC 300 impetrado por Rui
Barbosa que ali já se apresentava um importante aspecto do Poder
Judiciário na nossa estrutura de
1986. Cf. SCHWARCZ, Lilian, STARLING, Heloisa. Brasil: uma
biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
8 Na ditadura civil-militar, o desenvolvimento econômico deveria
ser estimulado a partir de pressupostos claros: 1) a redução do
papel ativo do Estado; 2) o efetivo controle dos direitos sociais;
3) a facilitação do investimento estrangeiro. Para tanto, crucial
foi o papel exercido Ipes (instituto de Pesquisa e Estudos Sociais)
que organizava os interesses do capital multinacional e controlava
a nomeação do Ministro da Fazenda e do Planejamento (DREIFUS, René
Armand. 1964 – a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe
de classe. Petrópolis: Vozes, 1981). O Ministro da Fazenda sob o
regime da ditadura civil-militar tinha poderes imperiais. Dispunha
do controle total do orçamento e a possibilidade de autorização de
qualquer despesa e, pois, não haviam forças políticas capazes, nem
no Legislativo, nem no Judiciário, capazes de se contrapor ao
modelo econômico (SCHWARCZ, Lilian, STARLING, Heloisa. Brasil: uma
biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 451).
9 MEYER, Emílio Peluso Neder. Judges and Courts Destabilizing
Constitutionalism: The Brazilian Judiciary Branch’s Political and
Authoritarian Character. German Law Journal, vol. 19, n. 4, 2018,
p. 727- 768.
10 Sobre isso, por todos, ver: MEYER, Emilio P. N. Ditadura e
responsabilização: elementos para uma justiça de transição no
Brasil. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012.
16 Alexandre Melo Franco de Moraes Bahia Diogo Bacha e Silva
poder. O Supremo Tribunal Federal, na ocasião, denegou o pleito sob
a alegação de que o Tribunal era incompetente para lidar com
questões políticas, mesmo que envolvidos direitos individuais:
“Esta circunstância não habilita o Poder Judicial a intervir para
nulificar as medidas de segurança decretadas pelo Presidente da
República, visto ser impossível isolar esses direitos da questão
política que os envolve e compreende”11.
Extrai-se, portanto, que são raros os momentos que o Supremo
Tribunal Federal e o Poder Judiciário enfrentaram e resistiram às
arbitrariedades das elites econômicas e políticas. Muitas vezes
adotaram um papel de condescendência com o poder e com o
governo12.
Essa primeira característica histórica do Supremo Tribunal Federal
e do Poder Judiciário como um todo influenciará a forma de atuação
durante o regime civil-militar de 64. No Brasil, ao contrário de
outros países que conviveram com a ditadura, o Poder Judiciário
teve papel de buscar conferir um verniz de legitimidade aos atos de
supressão dos direitos individuais do regime político. A isso,
portanto, Anthony Pereira chamou de uma legalidade autoritária em
que a participação do Poder Judiciário na supressão dos direitos
individuais dar-se-ia aplicando um pseudo processo com a outorga de
garantias apenas formais13.
Outro aspecto está intimamente relacionado ao esvaziamento da ideia
de conflito como inerente à democratização. O processo de abertura
democrática realizada no final dos anos 1970 e início dos anos 1980
foi um processo gradual e lento, não se realizando um verdadeiro
golpe de força do poder constituinte. Na verdade, houve controle
do
11 Nesse HC. n. 300, Rui Barbosa defendeu ser competente o Supremo
Tribunal Federal para apreciar os atos cometidos em razão do estado
de sítio em virtude de que, se os atos que geraram a prisão eram
políticos, ao mesmo tempo envolviam direitos individuais, logo,
passíveis de serem apreciados judicialmente (cf. RODRIGUES, Lêda
Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1965. p. 20-21). O Supremo Tribunal
Federal, ao longo de sua existência, se valeu da doutrina das
political questions para deixar de apreciar certas questões
politicamente polêmicas. De fato, essa doutrina americana, a
despeito de nunca haver sido bem definida no Brasil, esteve
presente ao longo da história do STF. Cf. KIMMINICH, Otto.
Jurisdição constitucional e o princípio da divisão de poderes.
Revista de Direito Público, n. 92, p. 17-33, out./dez. 1989. p. 26;
SOUZA JR., Antônio Umberto. O Supremo Tribunal Federal e as
questões políticas. Porto Alegre: Síntese, 2004. p. 68 et seq.;
BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Recursos Extraordinários no
STF e no STJ–Conflito entre Interesses Público e Privado. 2a ed.
Curitiba: Juruá, 2016.
12 VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremo Tribunal Federal. Jurisprudência
Política. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 116-117.
13 PEREIRA, Anthony. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o
Estado de Direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo:
Paz e Terra, 2010.
17O LEVIATÃ TOGADO
regime civil-militar sobre a abertura política, inclusive com a
edição da Lei 6.683/79, que instituiu a anistia até mesmo para os
crimes contra humanidade praticados durante e em nome do regime
político vigente, através de cláusulas ambíguas (ou assim o foram
interpretadas, inclusive pelo STF na citada ADPF. 153) presentes no
texto legislativo.
De outro lado, há que se considerar também a necessidade da
instituição de uma justiça de transição – ou quais as consequências
institucionais pela ausência de uma efetiva justiça de transição. A
transição entre regimes políticos consiste no processo de tempo e
de resolução de questões políticas e sociais importantes entre a
aurora de um regime autoritário e a emergência de um regime
democrático14. É bem verdade, no entanto, que tais medidas não
ocorrem todas de uma só vez; é um processo contínuo de
enfrentamento de problemas advindos das práticas autoritárias de um
regime15.
Um dos problemas a serem enfrentados é exatamente o que um regime
democrá- tico deve fazer com os funcionários públicos que, de um
modo ou outro, participaram diretamente ou indiretamente do regime
autoritário. Uma das possíveis medidas polí- ticas a serem tomadas
pela justiça de transição consiste na análise da necessidade de
reformas institucionais e os expurgos na Administração Pública, o
que inclui o Poder Judiciário16.
A ausência de uma reforma institucional no Poder Judiciário
dificulta sobrema- neira a modificação nas práticas jurisdicionais
estritamente ligadas e complacentes com regimes autoritários.
Ademais, a ausência de expurgos dos membros do Poder Judiciário que
colocaram o poder jurisdicional a serviço do regime autoritário
impossibi- lita uma transição na própria forma e na concepção
acerca do papel do Poder Judiciário no Estado Democrático de
Direito. Dizendo claramente, a simples incorporação dos antigos
Ministros do STF à nova ordem constitucional – e é de incorporação
que se
14 O`DONNEL, Guillermo, SCHMITTER, Philippe. Transições de regime
autoritário: primeiras conclusões. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1988. p. 22.
15 Assim, por exemplo, são as conclusões da pesquisa de Renan
Quinalha sobre a justiça de transição e os enfrentamentos de novos
problemas surgidos após a consolidação democrática: “[...] ao
contrário do que comumente se supõe, as transições não são momentos
pontuais, mas processos que se arrastam no tempo e encadeiam
diversos acontecimentos diferentes e, muitas vezes, até
contraditórios entre si. São fenômenos complexos, que conjugam
questões de diversas ordens postas pela mudança política quando
desencadeadas” (QUINALHA, Renan. Justiça de Transição: contornos do
conceito. São Paulo: Outras expressões, 2013. p. 122).
16 Há, ademais, outras medidas a serem consideradas: a) os
critérios para a acusação dos perpetradores; b) a forma de punição
dos violadores; c) a possibilidade de sanções políticas; d) formas
de reparações às vítimas. Cf. MEYER, Emílio Peluso Neder Ditadura e
responsabilização. cit., p. 250.
18 Alexandre Melo Franco de Moraes Bahia Diogo Bacha e Silva
trata, uma vez que a nova Constituição faz tábula rasa da ordem
“constitucional” anterior – desafia aquela ordem, que coloca, como
já dito, aquele Tribunal como guardião da Constituição17.
Estes aspectos independentes, mas interligados, dão a tônica de uma
contradição entre o projeto democrático da Constituição e a própria
prática jurisdicional estabele- cida pelo Poder Judiciário. Vale
dizer, há uma contradição entre a pretensão normativa e a
facticidade do exercício de poder pelo Judiciário. Enquanto a
Constituição tem como premissa o exercício republicano do poder
estabelecido em bases democráticas, tendo como um dos fundamentos a
dignidade humana e, também, um extenso rol de direitos e garantias
fundamentais (arts. 1º a 5º da CF/88), a práxis jurisdicional se
mostra um tanto contrária a tais pretensões, até mesmo deixando de
estabelecer uma efetiva proteção às garantias
constitucionais.
O exemplo paradigmático que se pode citar é a promulgação da Lei
Complementar 35/79 no auge do regime civil-militar: Lei Orgânica da
Magistratura Nacional (LOMAN). No texto, por exemplo, encontram-se
vantagens e procedimentos que não encontram guarida no texto
constitucional de 1988, como a penalidade de aposentadoria compul-
sória (art. 42), que não encontra similar em nenhum outro
regramento constitucional; cite-se também as inúmeras vantagens
financeiras estabelecidas no art. 65 quando o texto constitucional
consagra o sistema remuneratório por meio de subsídio fixado em
parcela única; as férias anuais de 60 dias do art. 66, quando todo
o funcionalismo e mesmo os empregados têm apenas 30 dias anuais; a
convocação de juízes de primeira instância para atuar
temporariamente nos órgãos colegiados nos termos do art. 118,
etc.
Não obstante tais disposições normativas claramente contrárias não
só ao texto constitucional mas também aos fundamentos do Estado
Democrático de Direito, o Supremo Tribunal Federal vem chancelando
as práticas jurisdicionais corporativistas que são resquícios de um
regime autoritário.
Assim, pois, ainda que em obter dicta, no julgamento da ADI. 2580,
o STF afirmou a recepção da LOMAN pela atual Constituição18. Em um
país não acostumado a trabalhar
17 Questão similar ocorreu na Alemanha pós-2a Guerra, com a
incorporação dos antigos membros do Judiciário ao novo. Sobre isso:
MAUS, Ingeborg. O Judiciário como superego da sociedade: o papel da
atividade jurisprudencial na “sociedade órfã”. Revista Novos
Estudos CEBRAP, n. 58, novembro 2000, p. 183-202.
18 STF, ADI 2580, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 26/09/2002.
19O LEVIATÃ TOGADO
com precedentes, tal decisão aparece ao Poder Judiciário como uma
chancela para toda a legislação antirrepublicana que apareça como
vantagem destinada aos seus próprios membros, contrariando um
regime republicano e democrático.
Na mesma medida, o Supremo Tribunal Federal abranda a extensão das
garantias constitucionais com base nas medidas de exceção previstas
na legislação infraconsti- tucional destinada a regulamentar a
magistratura, acabando por interpretar as garantias constitucionais
à luz da legislação complementar, mormente o estipulado na LOMAN, e
não o contrário de que as disposições legislativas da judicatura
devem estar em consonância com as garantias constitucionais. Por
exemplo, o STF acaba por fenecer a garantia do juiz natural quando
considera que “não viola o postulado constitucional do juiz natural
o julgamento de apelação por órgão composto majoritariamente por
juízes convocados na forma de edital publicado na imprensa oficial”
(STF, Pleno, HC. 96.821 Rel. Min. Ricardo Lewandoski, j.
08/04/2010).
Em decisão monocrática liminar, de cognição limitada, e
contrariando mesmo as vedações legais de extensão de aumento
salarial e de vantagens remuneratórias de servidor público (art.
7º, §2º da Lei 12.016/09; art. 1º da Lei 8.437/92; art. 1º da Lei
9.494/97), o Min. Luiz Fux concedeu vantagem denominada de
auxílio-moradia para todos os juízes (STF, AO. 1773, Rel. Min. Luiz
Fux), inclusive retirando de pauta de julgamento19. Vale frisar que
tal vantagem não estava prevista nem mesmo na LOMAN – as normativas
do CNJ sobre “auxílio-moradia” e outras verbas colocadas como
“indenizatórias” (sem o serem) escapam ao teto constitucional do
subsídio dos Ministros do STF.
Estas características que demonstram uma contraposição à uma
consolidação democrática que somente poderia ter como consequência
a rejeição absoluta de uma justiça de transição que efetivamente
pudesse trazer à luz do dia os atos cometidos pelo regime
ditatorial. O julgamento da citada ADPF. 153 coloca por terra a
tentativa de trazer à luz a memória e a verdade e realizar uma
justiça de transição efetiva. Além de impossibilitar a punição dos
responsáveis pelos crimes de Estado cometidos durante
19 A liminar monocrática foi concedida em 2014; em seguida o
processo foi retirado de pauta com pedido de “vista” do Relator e
assim ficou até 2018, quando, ao invés de colocar o caso em
julgamento pelos pares, o Ministro inovou e, aceitando pedido das
partes, deferiu que aquela Ação e outras similares sobre o mesmo
tema fossem enviadas à “Câmara de Conciliação e Arbitragem da
Administração Federal, a fim de que as partes processuais
respectivas alcancem solução consensual para a lide nelas versada.
Em consequência, retirem-se temporariamente as referidas ações da
pauta de julgamentos do Plenário deste Supremo Tribunal Federal,
até ulterior deliberação nestes autos” (STF, AO. 1773, Rel. Min.
Luiz Fux, DJE. 03/04/2018).
20 Alexandre Melo Franco de Moraes Bahia Diogo Bacha e Silva
o regime ditatorial como um dos aspectos da justiça de transição, o
julgamento da ADPF. 153 também contrariou importante conquista da
Constituição de 1988 que é o respeito e à incorporação de direitos
humanos (art. 5º, §2º da CF/88) como norma de caráter fundamental
para a consolidação democrática. Nos termos do voto do Relator Eros
Grau que prevaleceu por maioria, a Lei de Anistia foi recepcionada
pela nova ordem constitucional e teria estendido “a conexão aos
crimes praticados pelos agentes do Estado contra os que lutavam
contra o Estado de exceção; daí o caráter bilateral da anistia,
ampla e geral, que somente não foi irrestrita porque não abrangia
os já condenados – e com sentença transitada em julgado, qual o
Supremo assentou – pela prática de crimes de terrorismo, assalto,
seqüestro e atentado pessoal” (STF, ADPF. 153, Rel. Min. Eros Grau,
j. 29.04.2010).
Com efeito, através de um esforço argumentativo, a decisão do STF
teria mencio- nado que a Emenda Constitucional 26/85 que seria a
norma-origem de convocação da Assembleia Constituinte20 também
integraria a Constituição e, logo, teria consagrado a anistia da
mencionada lei, além do que se aduz que as leis de efeitos
concretos que já exauriram eficácia tornariam despicienda a
discussão acerca da recepção ou não21. A decisão do STF contrariou
normativas internacionais de proteção dos Direitos Humanos sobre o
tema e também, especificamente, a decisão da Corte Interamericana
dos Direitos Humanos no caso Gomes Lund (e outros) vs. Brasil22. A
manutenção
20 Vale mesmo mencionar que a convocação de uma Constituinte por
meio do Poder Legislativo acaba colocando em suspeita a
democratização do processo Constituinte. Por isso que autores dizem
que o caráter constituinte da Assembleia de 1986-1987 adveio da
intensa participação popular quando já instalada (SAMPAIO, José
Adércio Leite. Teoria e prática do Poder Constituinte. Como
legitimar ou desconstruir 1998 15 anos depois. In: SAMPAIO, José
Adércio Leite (org.) Quinze anos de Constituição. Belo Horizonte:
Del Rey, 2004.p. 34).
21 Como ressalta Paulo Abrão e Marcelo D. Torelly, o processo de
Anistia no Brasil foi um movimento de luta da sociedade contra o
regime. Dois aspectos merecem ser mencionados que cuidará de
interpretar adequadamente a análise da Lei de Anistia. O primeiro
aspecto centra-se no fato de que a anistia devia se referir,
originalmente, aos presos políticos. A abrangência da lei da
Anistia para os crimes de tortura cometidos pelos Agentes de Estado
jamais foi objeto de consideração de possibilidade da sociedade
civil, já que os crimes de Tortura não eram objeto de conhecimento
da sociedade. O segundo aspecto está em que a classe trabalhadora
foi a principal oposicionista do regime militar, intensificando-se
as greves a partir do momento da “negociação” da Lei da Anistia
(ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição no Brasil:
a dimensão da reparação. Revista Anistia Política e Justiça de
Transição, Ministério da Justiça, n. 3, 2010. p. 113).
22 MEYER, Emílio P. N. Ditadura e responsabilização. cit.
21O LEVIATÃ TOGADO
dessa decisão agosta também desafia a decisão mais recentemente,
também da Corte Interamericana, do caso Vladimir Herzog vs.
Brasil23.
Além da contradição externa entre a práxis e o texto constitucional
e entre a práxis jurisdicional do STF e de Cortes de Direitos
Humanos, enxerga-se também uma contradição interna no seio da
própria concepção que o STF tem da transição da justiça. A
liberdade de manifestação de pensamento foi alçada a princípio
conformador de toda a ordem constitucional de 1988 (art. 220, §1º),
dadas as práticas de censura cometidas durante o regime ditatorial
de 64. A garantia de liberdade plena de manifestação jornalística é
uma garantia constitucional contra qualquer controle de conteúdo
por parte do Estado, já que a democracia deve conviver com a livre
circulação de ideias e pensamentos de diversas matizes. Deste modo,
o Supremo Tribunal Federal considerou, por meio da ADPF. 130, Rel.
Min. Ayres Britto, integralmente não recepcionada a Lei de Imprensa
(lei 5.250/67), editada durante o regime de exceção, com o
fundamento de incompatibilidade material de todo o arcabouço
legislativo da mencionada lei e a disciplina constitucional da
liberdade de imprensa.
Em verdade, a ausência de uma transição da justiça do regime
autoritário para o regime democrático de 1988 e a ideia de uma
abertura lenta, gradual e sem conflito, dificultou não só a
consolidação democrática, mas também deu margem à contradição
decisória no Supremo Tribunal Federal e uma disciplina de não
respeito aos Direitos Humanos: ora se mostra afinado com os
princípios constitucionais, como na última decisão citada, ora os
viola frontalmente, como no caso da ADPF. 153.
O protagonismo judicial, as promessas não cumpridas e a inclusão
social
A Constituição de 1988 adveio em um cenário econômico e social de
absoluta crença nas políticas neoliberais como meios aptos a
solucionarem o grande déficit de dívida pública e desigualdade
legados pelos regimes militares na América do Sul24.
23 Contra a decisão, dada em, 2010, foram opostos Embargos de
Declaração em 2011, que até 2018 ainda não foram julgados. Em 2014
foram juntados à ADPF. 320 e ambos estão pendentes de julgamento
desde então. Essa nova Ação pretende desconstituir a decisão dada
na anterior (ADPF. 153) em razão da decisão dada pela Corte
Interamericana no citado caso Gomes Lund.
24 Mencionando o lado obscuro dos anos 80 para a América Latina,
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. As políticas neoliberais e a crise na
América do Sul. Revista Brasileira Políticas Internacionais, 45
(2): 135- 146, 2002. p. 136.
22 Alexandre Melo Franco de Moraes Bahia Diogo Bacha e Silva
Na verdade, o receituário para os problemas econômicos e sociais da
América Latina era determinado pelo chamado de Consenso de
Washington25. Incorporado de forma acrítica e com o intuito de
obter a dominação do mercado dos países latino-americanos, o
Consenso de Washington intencionalmente não abordou o grave
problema histórico da desigualdade social na América Latina.
Há uma contradição no próprio texto constitucional de 1988. Ao
lado, portanto, de um campo repleto de promessas de redução das
desigualdades sociais, prevendo um corpo extenso de direitos
sociais aptos à satisfação de uma vida digna, um campo propício
para o desenvolvimento de uma política infensa a qualquer
redistribuição de riquezas e proteção da riqueza interna com uma
Constituição econômica absolutamente voltada para a política
econômica daquele “Consenso”.
Logo no início da vigência do texto constitucional, portanto, o
Supremo Tribunal Federal teve um papel importante na implementação
das políticas econômicas neoli- berais. Nos anos 90, o Supremo
Tribunal Federal exerceu papel político-ideológico de afirmação da
política liberal do Estado. Por esta visão, ao Estado cumpriria
apenas estabelecer as regras do jogo do livre-mercado, exercendo a
interpretação das regras de forma a permitir a livre competição
entre os agentes econômicos. Ao Estado cabia apenas exercer a
política monetária. Eventualmente, no entanto, cumpre-lhe assumir
as funções nas quais o mercado e os agentes privados não pudessem
ou conseguissem, nos casos em que envolvessem monopólio ou
imperfeições do mercado, assimetria de informações e externalidades
e nos casos de falhas do mercado26 – como no PROER (Programa de
Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro
Nacional), no qual o Governo Federal injetou bilhões de reais nos
sete maiores bancos
25 O consenso de Washington estabelecia algumas regras de políticas
econômicas a serem seguidas pelos países em desenvolvimento como
forma de oportunizar uma integração ao mercado mundial e
possibilitar o desenvolvimento. As medidas que estavam de pleno
acordo Washington (no caso, o termo se refere ao FMI – Fundo
Monetário Internacional, BM – Banco Mundial, o Congresso Nacional
Norte-americano, o Banco Central Norte-americano e também
especialistas dentro os quais se destacam Friedrich Hayek e John
Williamson) seriam as conhecidas dez medidas: 1) ajuste fiscal; 2)
redução do papel do Estado; 3) privatização; 4) abertura dos
comércios aos investimentos estrangeiros; 5) fim das restrições ao
capital internacional; 6) abertura do sistema financeiro; 7)
desregulamentação da economia; 8) reforma do sistema
previdenciário; 9) investimento em infraestrutura básica; 10)
fiscalização e redução dos gastos públicos (BATISTA, P. N. O
consenso de Washington: a visão neoliberal dos problemas
latinoamericanos. In: BATISTA, P. N. et al. Em defesa do interesse
nacional: desinformação e alienação do patrimônio público. 3ª ed.
São Paulo, Paz e Terra, 1995).
26 FRIEDMAN, Milton. Capitalism and Freedom. Chicago: Chicago
University Press, 2002.
23O LEVIATÃ TOGADO
privados do país, depois dividiu cada instituição em duas: os
ativos foram colocados à venda, a parte ruim, os passivos, foram
“absorvidos” pelo Estado27.
O Supremo Tribunal Federal teve papel determinante para que o
investimento estrangeiro, tão pregado pelo Consenso de Washington,
pudesse ter um campo de quase completa anomia, buscando altíssimos
lucros em decorrência de uma política de estabilização da economia
baseada em juros altos.
Tão logo promulgada a Constituição de 1988, o Poder Executivo
seguido pelo Banco Central buscou esvaziar a garantia de limitação
dos juros exposta na Constituição Federal. A Consultoria Geral da
República através da SR. nº 70, de 06.10.1988 utili- zando-se da
clássica distinção de José Afonso da Silva da eficácia das normas
constitucionais28 estabeleceu que o §3º do art. 192 não teria
eficácia até a edição da Lei Complementar a que se refere o
dispositivo, permitindo a adoção de juros reais acima dos limites
impostos pela Constituição. Aprovado pelo Presidente da República
e, por consequência, dotado de efeito vinculante perante os órgãos
públicos, tal ato teve sua constitucionalidade discutida perante o
Supremo Tribunal Federal. Este, por sua vez, ao julgar a ADI. n. 4
entendeu que a regra era coerente com a Constituição,
possibilitando se aplicasse a legislação anterior a 1988 que
permitia juros reais acima de 12% (doze por cento) anuais29.
27 Estes valores deveriam ser devolvidos ao Estado pelos bancos (ou
seus sucessores/controladores). No entanto, pesquisa feita em 2017
mostra que, três dos sete bancos ainda devem R$21 bilhões ao Banco
Central. Cf. VILLAVERDE, João. A batalha do Proer não acabou, 20
anos depois. Estadão, 29 Abril 2015. Disponível em:
<https://economia.estadao.com.br/blogs/joao-villaverde/a-batalha-do-proer-nao-acabou-
20-anos-depois>.
28 SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das Normas Constitucionais.
6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
29 O acórdão ficou assim ementado: “[...] 5. Como o parecer da
Consultoria Geral da República (SR. nº 70, de 06.10.1988, D.O. de
07.10.1988), aprovado pelo Presidente da República, assumiu caráter
normativo, por força dos artigos 22, parágrafo 2º, e 23 do Decreto
nº 92.889, de 07.07.1986, e, ademais, foi seguido de circular do
Banco Central, para o cumprimento da legislação anterior à
Constituição de 1988 (e não do parágrafo 3º do art. 192 desta
última), pode ele,(o parecer normativo) sofrer impugnação, mediante
ação direta de inconstitucionalidade, por se tratar de ato
normativo federal (art. 102, I, “a”, da C.F.). 6. Tendo a
Constituição Federal, no único artigo em que trata do Sistema
Financeiro Nacional (art. 192), estabelecido que este será regulado
por lei complementar, com observância do que determinou no “caput”,
nos seus incisos e parágrafos, não é de se admitir a eficácia
imediata e isolada do disposto em seu parágrafo 3º, sobre taxa de
juros reais (12% ao ano), até porque estes não foram conceituados.
Só o tratamento global do Sistema Financeiro Nacional, na futura
lei complementar, com a observância de todas as normas do “caput”,
dos incisos e parágrafos do art. 192, é que permitirá a incidência
da referida norma sobre juros reais e desde que estes também sejam
conceituados em tal diploma. 7. Em consequência, não são
inconstitucionais os atos normativos em questão (parecer da
Consultoria Geral da República, aprovado pela Presidência da
República e circular do Banco Central), o primeiro considerando não
auto-aplicável a norma do parágrafo 3º sobre juros reais de 12% ao
ano, e a segunda determinando a observância da
24 Alexandre Melo Franco de Moraes Bahia Diogo Bacha e Silva
Um outro exemplo: de forma um tanto quanto contraditória entre a
exploração econômica e os próprios princípios constitucionais
limitadores, o STF entendeu que a concessão de lavra de minério dá
direito ao proprietário de explorar até o final a jazida e a
prerrogativa jurídica de indenização quanto a atos de interesse
público30. A questão nuclear, pois, que envolvia diretamente as
políticas neoliberais implementadas no governo Fernando Henrique,
seria julgada de acordo com as pretensões do governo de então e dos
investidores estrangeiros. No julgamento da ADI. 3273, o STF
chancelou a política enérgica que possibilitava a outorga da
propriedade da exploração de gás, petróleo e outros
hidrocarbonetos31
Nos anos 2000, o Tribunal modificou sua visão acerca da ordem
econômica. Por exemplo, n julgamento da ADI. 1950 que julgou
constitucional a meia entrada para estudantes com a ideia de que é
possível ao Estado intervir na ordem econômica de forma a garantir
os fundamentos do Estado Democrático de Direito (art. 4º da
CF/88)32 e, por último, a manutenção do monopólio postal da Empresa
Brasileira de Correios e Telégrafos33.
As análises da atuação do STF sobre as disposições constitucionais
da ordem econômica levam à seguinte conclusão: regra geral, o
Tribunal tende a seguir e linha ideológica-política do governo
vigente. Se, de um lado, nos anos 90, o modelo seria de uma
política econômica liberal sem qualquer preocupação com a ordem
social, nos anos 2000, sob o governo Lula, ele adota uma linha de
intervenção no domínio econômico buscando proteger áreas sensíveis
de nossa economia.
Ainda que sob as vestes de uma autocontenção, o STF acabou por
escrever altas linhas de políticas econômicas e permitir até mesmo
o agravamento na desigualdade
legislação anterior à Constituição de 1988, até o advento da lei
complementar reguladora do Sistema Financeiro Nacional” (STF, ADI
4/DF, rel. Min. Sydney Sanches, j. 07.03.91, DJ 25.06.93).
(STF, ADI 4/DF, rel. Min. Sydney Sanches, j. 07.03.91, DJ
25.06.93). Ora, não bastasse tal julgamento, o Supremo Tribunal
Federal ainda editou enunciado de sua súmula vinculante buscando
garantir que os juros anuais não ficassem limitados a tal
percentual: “Súmula vinculante 7. A norma do § 3º do art. 192 da
Constituição, revogada pela EC 40/2003, que limitava a taxa de
juros reais a 12% ao ano, tinha sua aplicação condicionada à edição
de lei complementar”.
30 Eis a decisão proferida no Agravo Reg. no RE 140.254, rel. Min.
Celso de Melo, j. 05/12/1995.
31 STF, ADI 3273/DF, rel. p/ acórdão Min. Eros Grau, j.
16/03/2005.
32 STF, ADI 1950/SP, rel. Min. Eros Grau, j. 03/11/2005.
33 STF, ADPF 46/DF, rel. p/ acórdão Min. Eros Grau, j.
05/08/2009.
25O LEVIATÃ TOGADO
social. Enquanto na ordem econômica ele tem se valido dos
interesses governamen- tais, na ordem social a atuação do Poder
Judiciário tem sido ao mesmo, ainda que paradoxalmente, tímida e
ativista.
Em primeiro lugar, a discussão acerca de alguns direitos sociais
está inserta no debate da politização do Poder Judiciário. A
expansão dos direitos catalogados na Constituição e, com isso, das
próprias instituições do Judiciário, somada a um judiciário que
busca o protagonismo, leva a uma ideia de judicialização do Poder
Judiciário34, que tanto pode ser um fenômeno político positivo ou
negativo, a depender da efetiva atuação do Poder
Judiciário35.
Assim, pois, no campo do direito à saúde, o Supremo Tribunal
Federal vem assumindo protagonismo, inclusive ele próprio afirmando
sua competência para a implementação das políticas públicas36. Sem
considerar a forma com que as políticas públicas devam ser
implementadas e os custos financeiros de tal atuação37, o Tribunal
afirma constantemente que é responsabilidade solidária dos entes
federados propiciar o tratamento médico adequado38. Mesmo
medicamentos não fornecidos pela rede pública de saúde devem ser
fornecidos ao paciente, desde que, conforme determinou o STF, não
se tenha logrado eficácia no tratamento fornecido39.
Ainda no que toca aos direitos sociais, o STF julgou que o critério
objetivo da Lei 8.742/93 estabelecida para efeitos de
miserabilidade de renda mensal per capita de
34 HIRSCHL, Ran. Towards juristocracy: the origins and consequences
of the new constitutionalism. Cambridge: Harvard University Press,
2007.p. 170.
35 TATE, C. Neal e VALLINDER, Torbjon. The global expansion of
Judicial Power. New York: New York University Press, 1995. p. 5.
Como fenômeno positivo, basta lembrar da atuação da Corte Warren na
proteção e extensão dos civil rights. O fenômeno negativo,
entretanto, pode ser exemplificado como a atuação da mesma Corte no
New Deal.
36 Basta ver, pois, a ementa do seguinte julgado: “1. É firme o
entendimento deste Tribunal de que o Poder Judiciário pode, sem que
fique configurada violação ao princípio da separação dos Poderes,
determinar a implementação de políticas públicas nas questões
relativas ao direito constitucional à saúde.[...]” (STF, 2ª T., ARE
1049831 AgR / PE, rel. Min. Edson Fachin, j. 27/10/2017).
37 HOLMES, Stephen, SUNSTEIN, Cass. The cost of righst: why liberty
depends on taxes. London: W. M. Norton, 1999.
38 Tal julgamento foi realizado sob a sistemática da repercussão
geral: STF, RE 855178 RG / SE, rel. Min. Luiz Fux, j.
05.03.2015.
39 STF, STA 175 AgR / CE, rel. Min. Gilmar Mendes, j.
17/03/2010.
26 Alexandre Melo Franco de Moraes Bahia Diogo Bacha e Silva
¼ do salário mínimo não deve ser o único a ser levado em
consideração, já que houve um processo de inconstitucionalização
progressiva40.
Em importante questão social que tangencia temas relativos à
minorias estrutural- mente discriminadas, o STF considerou
constitucional a política de cotas étnico-raciais para o ingresso
no ensino superior, as chamadas discriminações reversas através de
ações afirmativas, conforme o julgado na ADPF. 186 (Rel. Min.
Ricardo Lewandoski, j. 26.04.2012). No mesmo sentido, também o
julgamento da ADC. 41(Rel. Min. Roberto Barroso, j. 08/06/2017) em
que o Tribunal reconheceu a constitucionalidade das cotas raciais
para negros em concurso públicos.
De certa maneira, o Supremo Tribunal Federal sinaliza nessas
últimas decisões que a igualdade a ser promovida depende de uma
visão substantiva, na qual se reconhece as injustiças do passado e
se projeta um futuro plural de concepções de vida, todas elas
marcadas pelo signo da desigualdade arraigada na sociedade
brasileira.
Portanto, se pode observar que, nos 30 anos de vigência do texto
constitucional, o STF tem, de um lado, atuado passivamente com
claros objetivos de permitir a conso- lidação de uma política
econômica neoliberal e, de outro lado, atuado ativamente para
permitir a redução da desigualdade social. Embora possa soar como
um paradoxo, as decisões do STF têm demonstrado uma atuação mesmo
contraditória de forma a não concretizar os fundamentos da
Constituição de 1988, mas ao mesmo tempo um sinal de que a mudança
depende tão só de uma hermenêutica plural para uma sociedade
desigual e heterogênea em sua composição41.
As questões fraturantes, a democracia e o STF: a construção de uma
democracia à venir
O desacordo moral razoável é parte constitutiva da ideia de
conflito na democracia. Não se pode, como ensina Chantal Mouffe,
evitarmos o político e adotarmos uma ideia universalista de fugir
do antagonismo como forma de salvarmos as instituições
democráticas. Pelo contrário, “sólo si se reconoce la
inevitabilidad intrínseca del antagonismo se puede captar la
amplitud de la tarea a la cual debe consagrarse toda
40 STF, RE 567985 RG, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 18/04/2013.
41 As contradições são muitas, como se pode lembrar que o mesmo
Tribunal que reconheceu a união estável homoafetiva também
relativizou a presunção de inocência.
27O LEVIATÃ TOGADO
política democrática”42. Deve-se transformar o inimigo em
adversário. Deste modo, o Supremo Tribunal Federal deve ser o
guardião da democracia encarando como o exercício de uma política
democrática plural em que há diversos projetos de vida boa em
disputa – e que tais projetos podem ser diferentes ou
diametralmente opostos e que é seu papel dar conta dessa
complexidade respeitando a Constituição.
A democracia exige um intenso e contínuo esforço de aprendizado, de
erros e acertos, de um espaço social permanente de inclusão de
sujeitos, de inclusão de minorias, em que se conciliam os espaços
públicos e privados e se garantem aos sujeitos a garantia da
autonomia privada e pública43. A democracia é um espaço aberto
sempre a ser construído, uma fábula a ser descoberta, um conceito a
ser construído, um projeto sempre à venir, nunca um produto acabado
e fechado44.
Duas questões são centrais para a consolidação do Estado
Democrático de Direito, aquilo que Habermas chama de soberania
popular e direitos humanos45, e que, volta e meia, o Supremo
Tribunal Federal deve decidir, não como conceitos estanques mas
inter- -relacionados e interdependentes, ou seja, só há garantia de
um Estado Democrático de Direito se houver o respeito às autonomias
públicas e privadas de maneira co-originária.
Nos 30 (trinta) anos da Constituição, vários foram os julgamentos
importantes que se, de um lado, chegavam à Corte questões que
demonstram uma sociedade de moral dividida, de outro, essas
questões dizem respeito às condições de possibilidade da construção
do Estado Democrático de Direito. Por exemplo, na ADPF. 187 (Rel.
Min. Celso de Mello, j. 15/06/2011) se considerou fato atípico a
chamada “Marcha da Maconha” por ser a concretização de duas
importantes liberdades fundamentais de uma democracia, a liberdade
de reunião e de manifestação do pensamento. O livre mercado de
ideias é uma condição para a consolidação democrática. Deste modo,
deve o STF considerar com muito cuidado os discursos divergentes de
interesses antagônicos de uma maioria ocasional.
42 MOUFFE, Chantal. El retorno del político: comunidad, ciudadanía,
pluralismo, democracia radical. Barcelona: Paidós, 1999. p. 13. Cf.
também MOUFFE, Chantal. Democracia, cidadania e a questão do
pluralismo, Política & Sociedade, n. 03, Outubro de 2003, p.
11-26.
43 HABERMAS. Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria
política. São Paulo: Loyola, 2002.
44 DERRIDA, Jacques. Canallas. Madri: Trotta, 2005.
45 HABERMAS, Jürgen. Soberania popular como procedimento: um
conceito normativo de espaço público. Novos Estudos Cebrap, n. 26,
março de 1990, p. 100-113.
28 Alexandre Melo Franco de Moraes Bahia Diogo Bacha e Silva
A Lei Complementar 135/10, denominada de “Lei da Ficha Limpa”, que
estabeleceu hipóteses de inelegibilidade como concretização da
moralidade administrativa, teve sua constitucionalidade contestada
perante o STF. No julgamento da ADI. 4578 (Rel. Min. Luiz Fux, j.
16.02.2012) o STF considerou constitucionais as inelegibilidades
previstas naquele ato normativo em obediência ao preceito
democrático. Considerou, pois, que o estabelecimento de restrição
da capacidade eleitoral passiva antes do trânsito em julgado não
ofenderia a presunção de inocência e daria concreção à moralidade
administrativa.
A respeito da disciplina do sistema eleitoral da Constituição de
1988, o STF também decidiu que, em se tratando de eleições
proporcionais, o mandato legislativo pertence ao partido e não ao
candidato, estabelecendo hipóteses de perda do mandado parlamentar
em caso de infidelidade partidária (STF, MS. 26.604/DF, Rel. Min.
Carmen Lúcia, j. 04/10/2007).
Além do mais, as decisões acerca do reconhecimento da união estável
das uniões homoafetivas, ADI 4277. e ADPF. 132, estabeleceram
premissas para uma interpretação constitucional que leva em
consideração a inclusão de minorias. Na ausência e inércia do Poder
Legislativo, o STF fez considerar o Estado Democrático de Direito
como um processo aberto à pluralidade e à igualdade substantiva.
Neste ponto, a decisão tocou não só no chamado direitos humanos,
mas também na soberania popular, ou seja, permitiu a inclusão no
projeto político-democráticos das uniões homoafetivas à margem do
direito e da justiça. Devemos lembrar que a Constituição e seu
texto têm um sentido performativo de inclusão de novos
sujeitos46.
46 BACHA E SILVA, Diogo, BAHIA, Alexandre. Reconhecimento da união
homoafetiva como entidade familiar: o horizonte de sentido e o
sentido do horizonte do Direito Constitucional pós- ADPF 132/ADI
4277. In: OMNATI, José Emílio Medauar (et. al.) (orgs.) Diferentes,
mas iguais: estudos sobre a decisão do STF sobre a União
Homoafetiva (ADPF 132 e ADI 4277). Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2017; BAHIA, Alexandre; BACHA E SILVA, Diogo. Necessidade de
Criminalizar a Homofobia no Brasil: porvir democrático e inclusão
das minorias. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 60, p.
177-207, 2015; BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco; VECCHIATTI,
Paulo R. Iotti. ADI N. 4.277–Constitucionalidade e relevância da
decisão sobre união homoafetiva: o STF como instituição
contramajoritária no reconhecimento de uma concepção plural de
família. Revista Direito GV, v. 9, p. 65-92, 2013.
29O LEVIATÃ TOGADO
Considerações Finais Certamente um dos atores mais ativos na
aplicação da Constituição e na defi-
nição, pois, de seu alcance nesses 30 anos tem sido o Judiciário em
geral e o STF em particular. O pequeno recorte histórico de algumas
de suas decisões mostra isso.
Ao mesmo tempo em que o Judiciário tem sido capaz de levar à frente
o projeto constitucional, com a inclusão de novos direitos e/ou de
novos sujeitos de direito, tem também protagonizado episódios de
retrocesso. A continuidade entre seus membros pré e
pós-Constituição, sua tradição elitista, a não renovação da LOMAN
aos parâmetros da nova ordem, a constituição/manutenção de novos
privilégios de classe, o abandono da Constituição para dar lugar a
ideais iluministas de vanguarda, tudo isso compromete o vigor da
Constituição.
Uma cultura oscilante de proteção das minorias é preocupante. Quais
serão, pois, os novos sujeitos esquecidos pela Constituição de
1988? As pessoas em situação de rua? Os povos originários? Os
quilombolas? Os negros? Os praticantes das religiões afro? Qual a
discriminação que precisaremos enfrentar? Eis a pergunta essencial
que devemos fazer para que tenhamos uma cultura verdadeiramente
democrática e um Poder Judiciário comprometido com a efetivação dos
direitos fundamentais.
O certo é ou os direitos fundamentais são trunfos contra o que a
maioria considera bom/justo ou não há Estado (Democrático) de
Direito – a tensão entre democracia e constitucionalismo sempre
estará presente em um Estado de Direito. Não há meio-termo: é
chegada a hora de termos de decidir se queremos uma Ordem
Jurídico-constitucional de Direito ou a barbárie. Políticas
populistas, messiânicas ou iluministas que afloram em todos os
poderes, inclusive o Judiciário, não podem minar os fundamentos de
uma Constituição construída sob o signo da proteção dos
cidadãos.
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Direitos Sociais: consolidação ou risco de
extinção? Álvaro Ricardo de Souza Cruz1
Nicole Barbieri Marques2
.
Resumo O presente artigo visa analisar a história dos direitos
sociais no Brasil,
sob uma perspectiva de como sua evolução se deu em um cenário de
instabi- lidades e de reivindicações populares, marcado por
progressos e retrocessos. Apesar das conquistas, mesmo que
precárias, o Brasil ainda passa por uma situação de tensão dos
direitos já alcançados, além de que a efetividade e aplicabilidade
dessas garantias está comprometida.
Introdução Historicamente, os direitos sociais representam um papel
relevante no desenvolvi-
mento da identidade do sujeito constitucional3 de qualquer
sociedade moderna. Logo,
1 Procurador de República em Minas Gerais. Mestre em Direito
Econômico e Doutor em Direito Constitucional. Professor da
Graduação e da Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais. Vice-Presidente do Instituto Mineiro de Direito
Constitucional. Membro do Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ).
Pós-Doutor em História. E-mail:
[email protected]
2 Estudante de Direito do 10º período na Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais. Bolsista do programa de iniciação
científica FAPEMIG. Coordenadora do Grupo de Estudos em Mediação
Empresarial. Estagiária na Procuradoria da República em Minas
Gerais. E-mail:
[email protected]
3 Como pontua Michel Rosenfeld, é difícil definir o sujeito
constitucional, na medida em que este está sempre em uma
reconstrução não definitiva ou completa, ou seja, é permeado por um
processo dinâmico
34 Álvaro Ricardo de Souza Cruz Nicole Barbieri Marques
dispensável a importância de discorrer sobre o assunto, com ênfase
na sua inserção no período histórico em que se desenvolveram, bem
como a influência que exerceram na vida dos brasileiros.
Insta pontuar que será exposto como esses direitos foram
construídos – e ainda estão em construção–a partir de
reivindicações populares e de pressão sobre os detentores de poder.
Ademais, será tratada a evolução das garantias sociais em um
cenário de retrocessos e progressos ao longo da história do Brasil,
em que não houve uma linha contínua de desenvolvimento, mas sim uma
descontinuidade no processo de constitucionalização e
positivação do social4
Prolegômenos Antes de discorrer sobre a evolução histórica dos
direitos sociais, é necessário
pontuar brevemente quais são esses direitos e quais as suas
características.
Normativamente, os direitos sociais encontram-se discriminados
expressamente no ordenamento jurídico brasileiro pela atual Carta
Constitucional. Nesse sentido, essas garantias são aquelas
relativas à educação, saúde5, alimentação, trabalho, moradia,
lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à
infância e assistência aos desamparados, como elencado no artigo 6º
da Constituição Federal de 1988. Existem ainda outros direitos
sociais inseridos na Magna Carta, como o direito ao transporte, à
habitação, ao saneamento básico, à cultura6, ao meio ambiente
sempre aberto a maiores elaborações. Contudo, explica que a
identidade do sujeito constitucional deve ser construída em
oposição a outras identidades – como a identidade religiosa – para
que se distancie destas. Todavia, é inevitavelmente forçada a
incorporá-las parcialmente, para que possa adquirir um sentido
suficientemente determinável e para que possa se tornar viável no
interior de seu próprio ambiente sociopolítico. O autor também
relata que o sujeito constitucional não deve ser personificado,
sendo que nem os constituintes, nem os intérpretes da Constituição
e nem os indivíduos que estão sujeito às prescrições
constitucionais são propriamente o sujeito constitucional.
4 BERCOVICI, Gilberto. Tentativa de Instituição da Democracia de
Massas no Brasil: Instabilidade Constitucional e Direitos Sociais
na Era Vargas (1930-1946). In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira
de; SARMENTO, Daniel (Coord.). Direitos Sociais: fundamentos,
judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2010. p.7
5 Sobre direito à saúde, Cf. DUARTE, Bernardo Augusto Ferreira.
Direito à Saúde e Teoria da Argumentação: Em burca da legitimidade
dos discursos jurisdicionais. Belo Horizonte: Arraes Editores,
2012.
6 MAGALHAES, Jose Luiz Quadros. Direito Constitucional. 2. ed. Belo
Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 222
35DIREITOS SOCIAIS
ecologicamente equilibrado, à liberdade de associação profissional
e sindical, à greve7, ao desenvolvimento intelectual e ao
desenvolvimento da família8.
Se historicamente sua juridicidade foi