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004 CARTAS, VODKA E CONTRABANDO – VIAGEM PELOS FUSOS HORáRIOS SIBERIANOS O COMBOIO EM PORTUGAL Departamento de Informática Universidade do Minho Campus de Gualtar 4710-057 BRAGA Telefone: 253.604457 Fax: 253.604471 http://ocomboio.net www.ocomboio.net 1|10 Há países onde o comboio continua a ser o meio de transporte por exce- lência. Para vencer distâncias. Para aproximar povos. Países onde a lonjura se mede em fusos horários, em dias de viagem ou em noites de sono a bordo de uma carruagem em marcha contínua sob carris. Filipe Morato Gomes (texto e fo- tos) andou pela Rússia, Mongólia e China e conta-nos as peripécias de uma viagem de comboio, de Mos- covo até Pequim, onde o tempo se passa a jogar cartas, a beber vodka e a contrabandear de tudo um pou- co. Mercado de rua no coração de Pequim, China.

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004 Cartas, vodka e Contrabando – viagem pelos fusos horários siberianos

O COmbOiO em POrtugal

Departamento de InformáticaUniversidade do MinhoCampus de Gualtar4710-057 BRAGATelefone: 253.604457Fax: 253.604471

http://ocomboio.net

www.ocomboio.net 1|10

há países onde o comboio continua a ser o meio de transporte por exce-lência. para vencer distâncias. para aproximar povos. países onde a lonjura se mede em fusos horários, em dias de viagem ou em noites de sono a bordo de uma carruagem em marcha contínua sob carris.

filipe morato gomes (texto e fo-tos) andou pela rússia, mongólia e China e conta-nos as peripécias de uma viagem de comboio, de mos-covo até pequim, onde o tempo se passa a jogar cartas, a beber vodka e a contrabandear de tudo um pou-co.

mercado de rua no coração de Pequim, China.

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www.ocomboio.net 2|12Serpenteando as margens do lago baikal, Sibéria, rússia.

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transiberiano. a palavra, carregada de misticismo, costuma ecoar nos tímpanos sempre que alguém a pronuncia, invariavelmente acom-panhada de um suspirado “quem me dera!”. Como se a mítica linha de caminho-de-ferro fosse uma afa-mada ilha tropical por onde, por algum motivo, todos anseiam um dia vaguear. numa época em que só falta pagar aos turistas para que entrem num avião, muitos sonham em passar dias a fio a bordo de um comboio, numa viagem rude e au-têntica, cansativa e fascinante, ab-sorvente. serão, seremos, todos malucos? não creio.

apesar daqueles carris não terem sido criados para os turistas – ou talvez por isso mesmo –, percorrê-los é imergir num mundo único e sedutor.

É um fascínio paradoxal. porque a linha transiberiana é apenas uma li-nha de caminho-de-ferro. sem água

tépida azul-turquesa nem palmei-ras na areia branca. os comboios que nela circulam transportam pes-soas que voltam à sua terra natal, depois de maiores ou menores pe-ríodos como imigrantes no seu pró-prio país. pessoas que partem, que fogem, que vão em busca de algo para as suas vidas. pessoas. gente simples com prazeres igualmente simples, como um trago de vodka e um jogo de cartas. e alguns turis-tas, não muitos, que vão coleccio-nando fusos horários à medida que se embrenham numa realidade tão distinta e cativante, através de pai-sagens quase sempre desoladoras. a linha transiberiana é apenas uma linha de caminho-de-ferro e eu pre-parava-me para ser apenas uma en-tre aquelas pessoas. estava feliz.

não há muito a aprontar para uma viagem como esta – sei-o agora. na altura, e já na posse do bilhete de comboio, julgava ser necessá-rio comprar mantimentos, muitos

víveres que reconfortassem o estô-mago durante os três dias e meio da primeira etapa da jornada transi-beriana, aquela que me haveria de levar de moscovo a irkutsk, no cora-ção gelado da remota sibéria.

por sugestão de irina – amiga re-cente de origem siberiana a viver na capital russa –, dirigi-me a um mercado de rua num bairro mos-covita. fruta, água, leite, iogurtes, pão, bolachas, sopas e massas ins-tantâneas, e ainda talheres e toalhe-tes para higiene pessoal, foram as sugestões de aprovisionamento de irina. Quando me dirigia para uma das estações de caminho-de-ferro de moscovo, estava demasiado car-regado, inutilmente carregado.

Primeira etaPa – de moscovo até irkutsk

era já noite escura quando o com-boio partiu à hora exacta, sem aviso nem alarme. partiu, simples-

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Mulheres vendendo víveres aos passageiros do comboio numa estação de

caminho-de-ferro já próximo de Irkutsk, Rússia

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Turistas durante uma curta paragem na viagem Moscovo - Irkutsk, Rússia

mente. rapidamente, os corredores e o bar tornaram-se nos pontos de encontro por excelência para os ocupantes das carruagens. eféme-ras amizades entre pessoas que se cruzavam sem uma língua comum, partilhando o prazer de um cigarro, de uma cerveja, de um olhar, de tro-cas de palavras ininteligíveis.

do lado de fora das janelas empoei-radas, à luz de um novo dia, avista-vam-se paisagens facilmente asso-ciáveis à união soviética de outros tempos. bairros bolcheviques, cin-zentos e indistintos; indústria pesa-da, muita indústria, desagradável à vista; aqui e ali, entre aglomerados urbanos e respectivas áreas indus-triais associadas viam-se bosques, florestas, um pouco de verde no cin-zentíssimo envolvente. tudo imutá-vel, durante horas de viagem.

talvez por isso – ou simplesmente porque para a maioria a viagem era um imperativo e não um passeio turístico – havia que arranjar for-mas de distracção. para os russos em trânsito, isso significava beber vodka e jogar cartas. durante vários dias e várias noites, grupos de qua-tro – quase sempre homens – joga-vam ininterruptamente. e bebiam, bebiam, bebiam. alguns turistas juntavam-se aos russos, aprendiam as regras do jogo... e bebiam. os momentos mais excitantes de toda a viagem aconteciam aquando das poucas paragens nas estações. sair era absolutamente desejável, are-jar, sentir o calor do sol siberiano no rosto e no corpo. havia sempre muita gente nas plataformas das estações e as paragens eram in-comparavelmente mais interessan-tes quando havia algo para com-prar, para negociar. era como que

um pretexto para interagir com as dezenas de vendedoras de idade avançada mas grande vigor que afluíam às estações de caminho-de-ferro à passagem do comboio. vendiam comida caseira saborosa e barata – pequenos pastéis de cou-ve, de batata ou de arroz e ovo –, legumes frescos, bebidas e iogur-tes, de tudo um pouco vendiam. foi quando me apercebi da inutilidade de muitos dos mantimentos que havia comprado em moscovo e que tantos quilogramas tinham adicio-nado à minha mochila.

três dias e meio após a partida, sem que o ansiasse desmesurada-mente pois usufruía já da sensação de que o tempo passava surpreen-dentemente depressa, o comboio parava por fim na gare ferroviária de irkutsk, com uma pontualidade estonteante. ao minuto.

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www.ocomboio.net 6|12Casa na remota aldeia de bulgan, mongólia

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a carruagem - restaurante de um dos comboios russos que percorrem a linha transiberiana

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segunda etaPa – de irkutsk até ulan Bator

dias depois, haveria de entrar em nova composição para prosseguir viagem pela linha transiberiana, com uma posterior viragem para a linha trans-mongol, em ulan ude. Consta que a parcela da viagem que une irkutsk até ulan ude é de uma beleza avassaladora. a linha serpenteia as margens do lago baikal - local classificado como património mundial pela unesCo - e dizem que, por entre a absurda sujidade dos vidros das janelas, é possível vislumbrar uma paisagem é deslumbrante. acredito. ouvi, por diversas vezes, semelhantes ex-pressões de entusiasmo e idênticos sorrisos quando o assunto em de-bate era aquele curto troço da linha transiberiana. deu-se o caso de, infelizmente, ter percorrido esse pedaço de trajecto já muito após o sol se ter escondido. estando escu-

ro como breu, restou-me o confor-to daqueles sorrisos e expressões de espanto para imaginar o que, lá fora, se me ofereceria observar fos-se a noite inexistente.

previsivelmente – fruto de um pu-nhado de leituras prévias e de conversas entretanto com outros viajantes –, já com o sol a iluminar todo o comboio mas ainda em ter-ritório russo, foi dado a presenciar a todos os ocupantes do comboio um outro espectáculo inesquecível. algo diferente das belezas naturais de um lago magnífico, algo mais humano, terráqueo, como que a relembrar que nos encontramos neste planeta e não num qualquer recanto celestial. um show de con-trabando, vulgar introdução clan-destina de mercadorias num dado país, ali efectuado completamente às claras.tudo começou quando uma súbi-

ta agitação invadiu os vagões do comboio, mal este efectuou a pre-vista paragem em naushki, posto de controlo fronteiriço em território russo. um frenesim de sacos reple-tos de t-shirts e calças de ganga, malas contendo um inacreditável número de volumes de tabaco e caixas semicerradas, de conteúdo desconhecido, invadiu o compar-timento. tudo se processava com a previsível naturalidade de uma linha de montagem, os mesmos procedimentos porventura mecani-camente repetidos sem hesitações, sem ponta de nervosismo, com des-concertante à-vontade. observava, sorria, tentava acompanhar com discrição o que se passava ao meu redor. era uma espécie de amigável jogo do gato e do rato entre oficiais impecavelmente trajados mas per-missíveis e pouco minuciosos no controlo das bagagens – obviamen-te suspeitas – e mulheres e homens

Caminhando ao longo dos carris numa estação siberiana, rússia.

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Pormenor do interior de um compartimento de segunda classe para apenas

duas pessoas

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www.ocomboio.net 11|12entardecer numa estação de caminho-de-ferro siberiana

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de negócios que fazem desta fron-teira o seu ganha-pão quotidiano. Com toda aquela azáfama, antes de sukhbator, posto de controlo fron-teiriço do lado mongol, já inúmeras caixas e sacos tinham voado pe-las janelas enquanto as restantes, contendo principalmente tabaco, aguardavam pacientemente.

os negociantes distribuíam um vo-lume de tabaco a cada passageiro – o limite máximo que cada pessoa pode fazer entrar na mongólia –, esperavam que o controlo policial passasse, para logo de seguira re-colherem novamente os volumes. tudo muito fácil. estávamos já na linha trans-mongol, que atravessa o país de norte a sul. É uma deri-vação da mítica linha transiberiana mas que permite alcançar pequim

sem passar por vladivostok, no extremo sudeste da rússia. no fi-nal da segunda etapa da odisseia siberiana, decidi parar em ulan bator com o intuito de explorar a mongólia rural. emergi num país fascinante e só três semanas mais tarde voltei a entrar num comboio. o destino era agora, em definitivo, pequim.

terceira etaPa – de ulan Bator até Pequim

Colei-me à janela assim que o de-serto de gobi deu sinais de estar próximo. a paisagem ia mudando lentamente, a vegetação começava a escassear à medida que a loco-motiva puxava as carruagens para o coração tórrido do deserto. pouca

gente, alguns camelos, raras para-gens. um lugar ermo, rude, difícil. a China estava cada vez mais pró-xima.

Já perto de pequim, avisaram-me que estava “quase”. Quem conhe-cia o trajecto, vezes sem conta para lá a para cá, deu o alarme: a grande muralha tornar-se-á visível em breve. os passageiros enca-valitaram-se nas janelas que não abriam, buscavam com o olhar si-nal da construção, impacientavam-se, avistaram-na finalmente. por muitas fotografias que se tenha visto da gigante edificação, não ha-via como reprimir uma sensação de espanto e pequenez. ali estava a grande muralha da China, bela, imponente, magnânime. haveria de lá ir, dias mais tarde, caminhar

quilómetros e quilómetros muralha fora seguindo a custo as curvaturas belas mas irregulares de montes e vales.

pouco faltava para pequim. ape-nas o tempo para os passageiros reorganizarem as malas e se des-pedirem das amizades efémeras efectuadas sobre carris. o sol não esquentava ainda o vagão, era ma-nhã bem cedo. sorviam-se os últi-mos tragos de vodka nos vagões do comboio russo. para aquecer o corpo e o espírito.

filipe morato gomesalma de viajantewww.fmgomes.com

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