00491 - Histórias de Gente que Ensina e Aprende

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    HISTRIAS DEGENTE QUE ENSINA

    E APRENDE

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    Coordenao Editorial

    Irm Jacinta Turolo Garcia

    Assessoria AdministrativaIrm Teresa Ana Sofiatti

    AssessoriaComercialIrm urea de Almeida Nascimento

    Coordenao da Coleo EducarLuiz Eugnio Vscio

    Editora da Universidade do Sagrado CoraoEDUSC

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    HISTRIAS DEGENTE QUE ENSINA

    E APRENDE

    Andrea Cecil ia Ramal

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    Editora da Universidade do Sagrado CoraoEDUSC

    EDITORA DA UNIVERSIDADE DO SAGRADO CORAORua Irm Arminda, 10-50

    CEP 17044-160 - Bauru - SPFone (014) 235-7111 - Fax (014) 235-7219

    e-mail: [email protected]

    Copyri ght 1999 EDUSC

    Ramal, Andrea Cecilia.

    Histrias de gente que ensina e aprende / Andrea,Cecilia Ramal. -- Bauru, SP: EDUSC, 1999.

    102 p.; 21 cm. -- (Educar)

    ISBN 85-86259-80-2

    1. Educao. I. Ttulo. II. Srie.

    CDD - 370

    R1656h

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    Apresentao 7

    procura do Santo Graal 11

    Era uma vez uma escola 23

    O Menino e a caixa 27

    O Arquivo de gavetinhas 29

    A Escola dos macacos e dos papagaios 31

    A Histria da avaliao 37

    A Professorinha e os especialistas 47

    A Caminho da escola 61

    A Aula de pesca 73

    O Perfil de um mestre 79

    Os pssaros 91

    A Aula de Leitura 93

    sumrio

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    Histrias de gente que ensina e aprende so nossashistrias, foi o que pensei quando terminei de ler o li-

    vro pela primeira vez.Nossas porque falam de coisas vivi-das por ns que,um dia,entramos devagarinho na esco-la como alunos e nela continuamos athoje (10,15,20anos depois, tantos!), como professores, coordenadores

    ou diretores:doces conquistas,momentos delicados,pro-

    blemas mais ou menos difcieis,desafios,encontros.E sohistrias contadas de um modo que convidamreflexo,

    partilham a crtica,propem a generosidade,exigem queum olhar sensvel e informado seja dirigido s mais dife-rentes situaes da escola.

    Escritas com suavidade, ironia e poesia, produzidas

    com a firmeza de quem,como Andrea,domina a teoria e

    no abre mo datica e da utopia,nessas histrias vocirencontrar,leitor,sobretudo lies que apostam no mo-vimento,na mudana,na tentativa de fazer de outro jeito.

    apresentao

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    Escritas com meiguice e bom humor,as histrias fa-lam para alm das palavras;o pensamento,a partir delas,voa, transita, se inquieta. Desde Procura do SantoGraal,a questo a procura de si,do outro e da espe-rana.Mas indoA Caminho da Escolaencontramos me-ninos,caixas,arquivos,gavetinhas,macacos e papagaios,

    histrias de avaliao,professores e especialistas.Nestetrajeto, Andrea surpreende a prpria escola com seusmodismos; denuncia o preconceito que se manifesta

    nos ntimos momentos da vida escolar, mas os com-preende,contesta o autoritarismo mas afirma quepos-svel super-lo.Assim,caminhando com a autora, temosAula de pesca, conhecemos oPerfil de um mestree nele nos reconhecemos,vemos pssaros (poema emprosa) e entramos naAula de Leitura. Ao longo do per-curso,as histrias se referem ao dia a dia mas,ao mes-

    mo tempo,nos transportam,puxam e empurram,provo-cam a emoo,o riso,a indignao e a vontade de en-tender, de debater, de refazer, desfazer, transformar.An-

    drea diz no poemaEra uma vez na escolaque ele uma homenagem a Paulo Freire;para mim,o livro intei-

    ro uma homenagem ao mestre, por nos oferecer apossibilidade de tecer uma leitura do mundo crtica e

    criativa, indignada e resistente,firme e suave.Walter Benjamim um filsofo com quem apren-

    do muito ensina que um acontecimento vivido fini-to, se esgota nele mesmo,na vivncia imediata,enquan-to um acontecimento contado se torna infinito por se

    entregar a muitas possibilidades de compreenso, porentrar numa corrente da histria para alm do cotidia-no, tornando-se verdadeira experincia. dessa forma

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    Por mais que se esforasse,seus alunos no gosta-vam de estudar.

    Preparava cuidadosamente as aulas,cumprindo to-

    dos os passos que haviam lhe ensinado,durante quatroanos de formao superior, acerca da elaborao deplanos de ensino e da escolha de caminhos metodol-gicos. A cada contedo a ser trabalhado, pensava e re-digia de modo muito preciso e completo os objetivos a

    serem alcanados;depois,calculava as melhores estra-tgias: aula expositiva, msica, filme, trabalho escrito,estudo dirigido,criao de textos... Tudo com o tempominuciosamente cronometrado e,claro,uma margemde flexibilidade que,devido sua experincia,raramen-te precisava ser utilizada.

    No entanto,seus alunos no gostavam de estudar.Nas aulas expositivas, mantinham-se apticos, to-

    talmente desinteressados,como que sem vontade de vi-

    ver.Nem pareciam as mesmas crianas que,no recreio,

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    procura do santo graal

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    ela via disputando a bola com a gana de quem daria o

    prprio sangue para alcanar a vitria naquele jogo dequinze minutos.

    Quando preparava uma aula com msica, o entu-siasmo durava apenas atsaber quem era o cantor ouqual era a cano proposta. Nem pareciam as mesmascrianas que ela contemplava, mais tarde, submersasnum mundo prprio,com o fone dowalkmannos ou-vidos, e s vezes, para seu estranhamento, ouvindo a

    mesma melodia que hinstantes haviam rejeitado.E assim por diante,qualquer que fosse a atividadeproposta para cada dia.

    Como a professora era muito preocupada com um

    ensino de qualidade,e rejeitava as velhas posturas tra-

    dicionais,de culpar apenas a falta de estudo dos alunos

    diante do fracasso da aprendizagem, e como tambmconsiderava jter esgotado todos os prprios recursos,pensou em procurar ajuda e recorrer aos conselhos de

    um sbio.Decidiu visitar um ancio que era famoso por ha-

    ver sido um excelente educador em outros tempos.

    Ele saberme ajudar,pensou,confiante.E foi ato lu-

    gar em que esperava poder encontr-lo.Para sua decepo,o velho jno tinha muita pa-

    cincia para conversar sobre as coisas que ela querialhe falar.Ouviu sem muito interesse a descrio de to-das as atividades que a professora costumava propor sua turma.Apenas folheou os planos de curso e de aula

    que ela levara, cuidadosamente encadernados para

    aquela ocasio.E chegou a bocejar enquanto ela falava

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    de sua frustrao por,apesar de cumprir risca todasas inovaes metodolgicas das teorias pedaggicasmais atualizadas,no conseguir motivar os alunos.

    O que o senhor me aconselha fazer?,inquiriu elafinalmente,vida pela resposta.

    O sbio,ento,falou:- Existe uma lenda que tu, como professora, de-

    ves conhecer: a lenda do Santo Graal. Lembras-te

    dela?

    - Sim, lembro-me muito bem - respondeu ela, cu-riosa pelo sentido desta referncia, e satisfeita peloancio lhe falar de modo enigmtico, como imagina-va que todo sbio devia fazer. E continuou - O SantoGraal era o clice sagrado, pelo qual muitos cavalei-ros medievais procuraram e que, para muitos, se

    constituiu na razo de ser e no sentido da sua exis-

    tncia.- Pois bem -, replicou o sbio,agora mais paciente

    - digo-te que em verdade, para cada profisso, humSanto Graal a ser buscado.Para muitos,como na lenda,

    ele sequer existe,e no vale a pena perder tempo comtal idia. Para outros, porm - e nesse momento olhoupara ela com cumplicidade e certo mistrio - ele existe

    e pode ser encontrado.O sbio prosseguiu:- Quando o profissional encontra esse Santo Graal,

    ele descobre que no so trabalho, mas a prpriavida,que ganha um novo sentido.

    A professora ouvia,atenta,sem desviar os olhos do

    mestre.

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    - Tudo acessrio,pouco essencial. Isso o queeu tenho a te dizer:busca onde deves buscar,e encon-

    tra,ento,o teu Santo Graal.Depois desta frase,apesar da perplexidade da pro-

    fessora, o sbio encaminhou logo a conversa para asdespedidas e os desejos de boa sorte.

    Nos dias que se seguiram a este encontro,a profes-

    sora se via taciturna e pensativa.Que Santo Graal esse?;Como e onde poderei encontr-lo?, pergunta-

    va a si mesma.E, enquanto isso, como no vislumbrava aindaqualquer outra possibilidade, continuava desenvolven-

    do as suas aulas com mtodos criativos e realizando ex-perincias didticas inovadoras, porm sem observarqualquer modificao no comportamento indiferentedos alunos.

    Assessorou-se com a coordenadora do setor de in-formtica e levou a turma para estudar nos microcom-putadores:novo insucesso,pois os alunos simplesmen-

    te se esqueceram de sua prpria presena na sala, toinebriados ficaram com as maravilhosas mquinas.Aoinvs de prestar ateno aos contedos, fascinavam-secom a forma como estes eram apresentados nos moni-

    tores.Foi difcil avis-los do avanado da hora e conse-guir que voltassem para sua sala,a fim de receberem o

    professor da matria seguinte.Obteve a aprovao da diretora da escola para

    uma excurso para o estudo da natureza da regio ser-rana; contratou nibus, solicitou autorizaes dos res-ponsveis, fez o passeio.Novo fracasso:os alunos con-versavam o tempo todo entre si mesmos,usando grias

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    e vocabulrios especficos do grupo,e raramente inter-rompiam a alegria do passeio para ouvir suas explica-

    es sobre a vegetao ou a fauna dos locais por ondepassavam.

    E assim ia crescendo a indagao que a professora fa-zia a si mesma,e a ansiedade por encontrar alguma sada.Buscava em livros de tericos renomados alguma chavepara o que podia vir a ser o seu Santo Graal,de que o s-bio lhe falara.A cada nova teoria pedaggica que lia, a

    cada experincia didtica diferente que ouvia contar, ti-nha a sensao de que aquela,exatamente aquela,daria adireo para o seu Santo Graal a ser alcanado.Mas tudoera em vo,bastava colocar as idias em prtica para queo velho cotidiano se repetisse e a professora voltasse para

    casa,mais uma vez,desestimulada e frustrada.

    Mesmo assim,a coisa no lhe saa da cabea:

    - Como chegarei ato Santo Graal?

    Muito tempo se passou, e sempre do mesmo

    modo,atque a professora teve,finalmente,a sensaode que sua busca no tinha mais razo de ser.

    Tentara de tudo:ningum mais do que ela,em suaescola, havia lido tanto e feito tantas experincias de

    transformao do ensino. Entretanto, o resultado espe-rado no chegara.

    Tenho que me conformar, pensou.Os temposmudaram, no devo mais estar preparada para lidarcom estas geraes. Embora fosse ainda bem jovem,reconhecia que a distncia entre as idades aumentavacada vez com maior rapidez,e sentia-se ela mesma uma

    vtima desse fenmeno.

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    No vou abrir mo dos meus mtodos moder-nos, assegurou a si mesma;mas vou tentar esqueceressa obsesso de querer que meus alunos gostem do es-tudo e da sala de aula.

    - Um dia,jquando adultos,eles lembraro das au-las e valorizaro o meu trabalho - consolou-se, triste-mente.

    E decidiu parar de se incomodar com a indiferen-

    a de seus estudantes.

    Sem que a professora se desse conta,porm,aqueladesistncia abalou profundamente o seu interior.Depoisdaquela deciso radical,medida que os dias iam passan-do,um estranho fenmeno comeou a acontecer:a vozda professora foi ficando mais fraca,e cada vez mais fra-

    ca,atque acabou por desaparecer definitivamente.

    Suspeitou de um calo nas cordas vocais,problemacomum entre seus colegas de profisso: os examesnada indicaram.

    O mdico receitou-lhe descanso de uma semana,ficando em casa e evitando emitir qualquer tipo de

    som. Depois dessa licena, voltou escola da mesmamaneira:sua voz no reaparecera.

    Agora a professora sentia-se envergonhada de ir sala de aula.Como explicarei as coisas aos alunos?,perguntou-se.Como apresentarei a matria?

    A direo acompanhava o caso com toda a bene-volncia. Aquela professora era das mais esforadasda escola,no era justo demiti-la ou afast-la do cargonum momento daqueles. Sua busca de renovaoconstante era um exemplo para todos, havia at

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    quem invejasse sua motivao, risse de seufuror pe-daggicoe se referisse a ela com escrnio quando avia, de lpara c, com gravador numa das mos, fitade vdeo na outra.

    Mas diante daquela situao, todos estavam mobi-lizados.O que estaria acontecendo?, perguntavam-seos colegas, com pena e,ao mesmo tempo,com receio

    de que aquele mal os atingisse em algum momento de

    suas carreiras.

    Sentindo que o impasse se prolongava,a professo-ra ofereceu,por escrito,seu pedido de demisso dire-toria.No tenho condio de dar aulas deste modo,alegava,e quero deixar a direo vontade para deci-dir sobre um substituto para meu trabalho.

    A direo chamou-a e negou veementementeaquela idia.De nenhuma maneira!, insistiu a dire-

    tora,tu s uma professora exemplar;estudiosa,moti-vada, preocupada com a qualidade do processo de

    ensino-aprendizagem. Garantiu que a escola noabriria mo de sua presena sem antes ter certeza so-bre a irreversibilidade daquele mal que a acometera.

    muito cedo para dizer algo sobre isso,assegurou.E terminou o encontro sugerindo que a professora

    voltasse sala,e continuasse as aulas durante mais al-gum perodo.

    - Afinal, - argumentou a diretora - tuas lies soto bem preparadas que a turma vai sempre ter o quefazer. Confia em mim - pediu-lhe, mas sem ter, inte-

    riormente,ela prpria,muita certeza sobre o que su-cederia.

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    Foi-se a professora, muito envergonhada, para sua

    sala de aula.Ao entrar, foi logo escrevendo no alto do

    quadro-negro, em letras grandes:Ainda continuo semvoz.Sob esta frase traou,depois,as orientaes para odia: fazer a ficha de estudos,pgina 4,exerccios 1 a 5.Era um trecho que se referia a um desenho animado a

    que os alunos haviam assistido.Como ela no podia ex-plicar,decidiu confiar na capacidade e na autonomia de

    cada um para pesquisar e se recordar do que havia visto.

    Como o tempo da aula seria longo e precisava ser todopreenchido,no podendo ela falar nada,teve a idia,ain-da,de escrever:Observao:discutir com o colega sem-pre que necessrio as respostas que sero colocadas.

    E, resignada, sentou em sua cadeira de professora

    e dedicou-se a observar a turma, enquanto folheava o

    prprio plano de curso para recalcular o tempo do bi-

    mestre.Naquele momento, sentada atrs da mesa, embai-

    xo do tablado,ouviu um som que lhe pareceu inslito,atento desconhecido.

    Aguou os ouvidos para escutar melhor:novamen-te veio o som - lindo,musical,enchendo a sala de aula,

    como que encantando o ambiente, e crescendo cada

    vez mais.Era um som com palavras? Sim, parece que sim...

    O que dizia? Procurou ouvir,colocando todos os senti-

    dos nessa escuta.

    Ento conseguiu distinguir de onde vinha aquelemurmrio fascinante: eram as vozes das crianas, quehaviam comeado a se pronunciar, primeiro timida-mente,depois com maior desenvoltura, mais leveza, e

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    agora jpreenchiam todo o espao da sala,como umaorquestra que chega,na sua harmonia encantadora,ao

    momento em que todos os instrumentos participam.

    Assim, calada, no mais por fora maior,mas porvontade prpria,como que por um encantamento,elaficou durante vrios minutos, ouvindo maravilhadaaquele som inebriante, que no era bem um rudo,eram quarenta vozes afinadas pronunciando, cada

    uma, pensamentos, opinies, criaes, sentimentos.

    No podia tirar os olhos das crianas,extasiada ao verque muitas das coisas que ela havia lhes ensinado es-tavam,agora,saindo nas palavras delas,transformadas,

    ditas em outra linguagem, mais simples mas tambmmais bonita,convertendo-se em argumentos prpriospara que o grupo optasse por uma ou outra resposta

    ao exerccio.

    Sorriu com uma satisfao que nunca sentira den-tro daquela sala.Sorriu pelo prazer que aquela msicafalada lhe proporcionava, aquela melodia que parecia

    tocar dentro dela mesma,ou que talvez fosse vinda do

    cu, mais linda que um coral de pssaros e sinos deigreja do entardecer das cidades do interior.

    A melodia era to doce, suave e contagiante queela no pde permanecer sentada - num mpeto,deci-diu andar pela sala,e sentar em meio aos grupos,para

    ouvir de perto o que diziam.De repente, lse viu elaprpria, sentada numa daquelas mesinhas especial-mente feitas para crianas,desequilibrada e ao mesmotempo segura numa das cadeirinhas bambas, amare-

    las,que havia na sala. Sentou junto com um grupo e,

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    entusiasmada com a discusso de uns e outros,no seconteve:falou tambm.

    Sua voz havia voltado.

    As crianas,no incio, se espantaram com o fato,jque a professora dissera que estava sem poder fa-lar.Mas logo reagiram naturalmente,esquecendo dis-

    so.No sabiam bem por qu, naquele dia ela no pa-recia a professora de sempre, no estava querendoexplicar como se respondia, o que tinha que ser es-

    crito, nem dizendo que palavras eram mais adequa-das para preencher aquelas linhas.Naquele dia,a pro-

    fessora parecia mais interessada em saber, para sur-

    presa deles, o que eles pensavam, como se expressa-

    vam, o que tinham a dizer.No incio, tiveram a tenta-o de perguntar-lhe logo:estcerto assim,professo-ra?; oupode responder assim, professora?. Porm,

    acabaram deixando de lado essa inteno.E comea-ram ento todos a discutir, como num sgrupo dealunos, o que seria colocado naquele exerccio, queidia era mais apropriada, e atquando um deles fezuma brincadeira,a professora riu,e chegou a comple-

    tar com um gracejo ainda mais divertido, que levou

    todos a rirem como nunca - muito embora, curiosa-

    mente,aquele fosse o trabalho mais srio que jamaishaviam realizado.

    Em meio quela inusitada sinfonia em que to-das as vozes soavam junto com a sua, numa harmo-

    nia que a ela parecia to bela, uma das crianasmais novas, muito pequenina, aproximou-se e lhe

    perguntou:

    - Posso ir beber gua?

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    A professora respondeu:Pode!,contendo-se parano gritar, sufocando a prpria euforia, aquela alegriaque lhe explodia no peito, com vontade de abraaraquela menininha e lhe dizer:Que voz bonita que tutens, que palavras lindas pronuncias, como que eununca conversei contigo antes para me contares tantas

    coisas sobre ti...E a menina saiu satisfeita, indo ato bebedouro

    que ficava logo na porta da sala.

    Na volta,trouxe um copo para a professora:- Eu trouxe gua para a senhora tambm - disse amenina,no que era seu primeiro movimento de aproxi-

    mao afetiva em tanto tempo de contedo trabalhadoe tantas pginas de plano de curso cumprido.

    A professora sorriu, agradeceu e bebeu aquela

    gua deliciosa e refrescante.

    No precisava mais desse sinal,e mesmo assim eleainda veio, pensou consigo mesma. Somente ela com-

    preendia que aquele copo dgua era a prpria mensa-gem,vinda no saberia jamais dizer de onde,de que elaencontrara, finalmente,o clice que podia saciar a suasede e outras tantas.

    Encontrara,por fim,o seu Santo Graal...

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    Ensinando o alfabeto

    no pediu,como jviprescreveruva,vov,asa,emaousiri:

    pediu prescrevertijolo,enxada,trabalhador,ensinou a escreversalrio,justia,direito,amor.

    Depois ele ento pediaprfalar nossa opiniopois essas belas palavras

    estavam nas nossas mos.

    Ns sentados sempre em rodaamos tendo conscinciade que toda a teoria

    de que toda a cincia

    stm valor para o mundose ajudam a transformar

    Se ajudam o homem pobre

    aos problemas superar.

    Naquela sala de aula

    se formava todo dia

    em nossa humilde cabeauma linda utopia

    Podemos mudar o mundo!

    Prisso serve aprender!

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    Prconstruir a sociedadenossa enxada o saber!

    Era assim como se dava

    cada aula deste mestre

    e no fim no tinha notanem tinha prova,nem teste:

    Cada um ia falando

    se se sentia aprovado

    porque percebia em si

    como ele tinha mudado.

    Tu tambm vais hoje escola?Tu tambm tens o teu mestre?E tu,como te avalias

    No fim de cada bimestre?

    Quanto que tu mudasteem razo e sentimento?O que deste tu ao mundo

    com o teu conhecimento?

    No te esqueas de uma coisa:se acaso o teu professor

    no te vcomo pessoa,no procura teu valor

    Se contigo nada aprende

    se no pode te escutare apenas nas suas provas

    que podes te expressar

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    Todos os dias ele sentava na mesma sala e, como

    de costume,abria a sua caixa.

    Quando o entregador de objetos chegava,cumpri-

    mentava-o e comeava a lanar-lhe as coisas preparadaspara aquele dia.medida que estas eram lanadas,eleas guardava, indiscriminadamente,dentro da caixa.

    No incio tentara dividir o espao em compartimen-tos,e cada objeto ia para seu lugar,de acordo com seu

    gnero e funo.Depois as coisas foram ficando confu-sas:havia objetos sem funo aparente, e era difcil en-tend-los ou catalog-los. Havia tambm compartimen-tos totalmente cheios, enquanto outros permaneciam

    quase vazios,e como os objetos se acumulavam teve que

    comear a sobrepor os elementos.Assim,com uns sobreos outros,e sobre estes os novos que chegavam a cada

    dia,quase no sobrava espao livre,e os objetos se amas-savam e se achatavam no fundo e pelos lados da caixa,

    inutilizados e esquecidos,deformando-a toda.

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    o menino e a caixa

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    No havia mais lugar,mas os objetos no paravamde ser jogados pelo entregador para dentro da caixa,que ficava aberta especialmente com esse fim.Alguns

    novos,outros muito parecidos com coisas que jhaviadentro dela. Mesmo que fossem totalmente idnticos,ele os guardava.

    Quando o entregador de objetos terminava sua ro-tineira tarefa,ele ento fechava mecanicamente sua cai-xa,amassava e espremia como podia os objetos sobre-postos,como numa mala em que no cabem as coisas

    de volta da viagem.Depois saa da sala,esquecendo-sedeles ato dia seguinte.

    Mas houve um dia em que os lados da caixa come-aram a ceder.O entregador de objetos ficou atento:pen-sou que de dentro dela,vazando pelos lados,talvez pudes-sem sair objetos novos,frutos de uma combinao criati-va de tudo o que jogara durante todo aquele tempo.

    Mas no:eram apenas peas soltas,desconexas,pe-daos das velhas coisas amassadas que haviam se que-brado,partidas dentro da caixa apertada.

    Os objetos vazavam e a caixa estremecia, comoum vulco que se preparasse para entrar em erupo.E assim aconteceu o inevitvel:depois de se sacudir emestranhos movimentos sem nenhum ritmo,a caixa sim-

    plesmente se rompeu numa exploso que lanou osobjetos em mltiplas direes, fragmentos de mil co-res,pela sala e pelo espao.

    Foi quando ele, olhando com expectativa para aprpria caixa esvaziada,viu de seu fundo nascendo,pe-quena, uma coisa nova, estranha e desengonada, massurpreendentemente linda.

    Era,muito tmida e despretensiosa,a sua primeiraidia.

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    Mas a maior parte das vezes quase nem usava es-

    sas gavetas,pediam-lhe que abrisse apenas as pastas da

    lgica,do clculo e do pensamento organizado.

    Um dia, preparando o material, decidiu no levarmais para a escola a chave das outras gavetinhas.

    No precisava...

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    Argumentando a favor da idia de que a linguagemarticulada seria uma capacidade exclusivamente huma-na, John Locke relata um caso bizarro, sobre o qual elemesmo levanta dvida.

    Diz o filsofo que,para alguns pensadores antigos,alm do homem, tambm os papagaios teriam a facul-dade do raciocnio associadolinguagem.A prova seriauma certa ave daquela espcie que, segundo conta opovo,quando inquirida sobre o lugar de onde vinha,te-ria respondido:Venho do Brasil.

    - E de onde,no Brasil? - continuara o dilogo.

    - De Fortaleza - situara melhor,por sua vez, a pr-pria ave.Locke no deixa de tratar o caso com a seriedade

    que lhe era peculiar e diz que no h,entretanto,dadosmais precisos que possam comprovar o referido fatoou a teoria que ele poderia vir a sustentar.

    Isso me lembra,de todo modo,o caso de um pas

    que conheci,onde se acreditava realmente numa teoriaparecida com a que Locke rebatia.Pensavam as pessoas

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    a escola dos macacos dos papagaios

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    daquele lugar que, na verdade, a primazia da naturezaera dos animais.Afinal, eles jnasciam sabendo as coi-sas fundamentais e no precisavam que algum lhes en-sinasse. J o homem, atrasado, deficitrio, no nasciacom essas qualidades, e por isso tinha que adquiri-las

    lenta e gradativamente,num processo que demandavamuito esforo para vencer sua preguia, nica condi-o inata da natureza humana.

    Em funo disso,naquele pas as crianas freqen-tavam a escola junto com macacos e papagaios - sendo

    os professores, evidentemente, representantes destas

    duas espcies animais.Com os macacos-guias,macaqui-nhos e crianas aprendiam a fazer os movimentos cor-porais.Gesto que o macaco-guia fizesse,gesto que era

    repetido exausto pelos aprendizes, atque a imita-o ficasse perfeita e fosse impossvel distinguir quemfora o modelo e quem era a rplica.

    Com os papagaios-mestres, todos aprendiam a fa-

    lar elegante e articuladamente. Frase enunciada pelo

    mestre,frase que devia ser aprendida,primeiro apenas

    balbuciando os sons,desconhecendo a fontica dos ter-mos,para depois ir ganhando forma,atficar idntica fala inicial.

    No final de cada perodo,havia uma avaliao ni-ca qual todos eram submetidos. Macaquinhos,papa-gaios-filhotes e crianas passavam por um teste que ti-nha o objetivo de verificar se eles haviam realmente es-

    tudado e aprendido todos aqueles contedos.A cadaaluno era atribudo um nmero,de acordo com uma es-cala estabelecida previamente, segundo o critrio de

    maior ou menor perfeio na repetio do que os guias

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    e os mestres haviam feito ou pronunciado.Em geral,as

    notas dos macaquinhos e dos papagaios-filhotes eram

    melhores do que as dos humanos,e em suas reuniesde avaliao os macacos-guias e os papagaios-mestrescomentavam que as crianas humanas eram realmentemuito preguiosas, tinham muitas limitaes e logoperdiam o interesse pelas atividades propostas.

    Embora algumas crianas abandonassem as esco-las dos macacos e dos papagaios,aquelas que se forma-

    vam garantiamsociedade a manuteno de sua cultu-ra,de suas estruturas bsicas e de seus valores funda-mentais.Estas,por sua vez,quando ficavam adultas e ti-

    nham filhos, tambm os enviavam s escolas em quehaviam estudado,para no deixar que a longa cadeia serompesse.

    E assim se fazia a tradio e a histria daquele pas.

    Ocorreu, porm, que certa vez apareceu umacriana diferente das que freqentavam as escolas dosmacacos e dos papagaios. Era tida como rebelde: noqueria fazer nada do que era pedido nas repeties.

    Gesto que o macaco-guia fazia,gesto que ele trans-

    formava, dizendo:assim ficaria mais bonito, ouesteoutro movimento me parece melhor, e fazia piruetas

    como num bal, mexendo com todo o corpo, de ummodo que parecia muito gracioso aos meninos e meni-

    nas da turma, mas totalmente desengonado para omacaco-guia e para os macaquinhos.

    O mesmo se dava na aula do papagaio-mestre.Ao

    som pronunciado na frente da sala,antes que os demais

    o repetissem,ele contrapunha uma nova possibilidade:

    s vezes cantando,s vezes em forma de poemas,com

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    Terminado seu domingo,

    de tanto ter estudado,o aluno se sentiatotalmente preparadopara realizar o testeque o respectivo mestre

    jhavia planejado.

    Entretanto,ao iniciaro exame programado,percebeu que se anunciava

    um vexame inesperado,

    pois a complexa questoexigia uma equaode grau muito elevado.

    Com a prova sua frenteo aluno,apavorado,

    constatava no captaro estranho enunciado,

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    a histria da avaliao

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    jque aquela operaonivelava a avaliaode um curso aprofundado.

    Entregando ele de volta

    o exame incompleto

    decidiu que no seriadesta vez jto discreto:conhecendo seu valor

    foi falar com o professor

    de um modo bem direto.

    O mestre compreendeu

    a veemente reaoe tambm lhe confirmouque era absurda tal questo.Mas bem se justificou:

    quem tudo isso estipulou

    foi a coordenao.

    O aluno procurou

    pelo coordenador

    e de novo ponderou

    como fez com o professor ;

    mas ouviu como argumento

    que todo o planejamento

    cabia ao supervisor.

    O aluno,obstinado,

    procurou a supervisoe apresentou o problema

    fazendo a indagao:

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    se era justo requerer

    o impossvel de entendersem qualquer explicao.

    Ao que o supervisor

    igualmente deu razo,pois nem ele desconfiava

    a resposta da equao.Mas falou que o diagrama

    do que estava no programavinha lda direo.

    Na curiosa via sacraque ele atsem perceber

    jhavia comeado,foi pedir o parecerda prpria diretoria:por que que se pediaesse complexo saber.

    A senhora diretorasem ver nisso muito mal

    respondeu-lhe calmamentecomo fosse natural:

    Quem envia tal programao organismo que se chamaSecretaria Estadual.

    Quase sem acreditar

    o aluno jangustiadoperguntava-se atondeele seria enviado

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    atque por fim chegassealgum que lhe explicasseo porquto perguntado.

    Naquela Secretaria

    qual fora encaminhadorecebeu nova resposta

    sobre a causa do estudado:

    Tu tens que considerarque ao fazer vestibular

    assim que isso cobrado.

    O aluno esperava

    ter alguma novidade

    quando questionou o grupo

    responsvel na cidadepor dirigir o processo

    determinante do ingresso

    a cada universidade.

    Disse o chefe do projeto:

    no me falta conscinciade que um contedo dessesvai alm da tua experincia.Quem quer tal complexidade

    a universidadeque pede nfase na cincia.

    O aluno foi entoprocurar a reitoria

    e pediu para saber

    qual a regra que dizia

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    que sem tal profundidade,numa universidadeo aluno no entraria.

    O reitor lhe explicouque o complexo se enfatizaquando sobre todo o restosa razo se valoriza.Mas quem diz se relevanteo saber do estudante

    o comitde pesquisa.Vai e pergunta o aluno atentopara o dito comitpor que eles antecipamum slado do saber- e um saber jto difcilque transforma em sacrifcio

    o que pode ser prazer.

    Ao que o comitlhe explicaque isso jpreparariaos alunos para as reasque o governo financiaPois o seu prprio sustentovirdo financiamentoque o Poder Pblico envia.

    O aluno,intrigado,dirige o requerimentopara o comitgestorque dita o financiamento.Um dos membros do recado:

    nada disso motivadopor nosso planejamento.

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    O fato de que a cinciaganhe sempre mais valor

    a ponto de numa prova

    daquele teu professor

    Tu teres que responder

    o complicado saber

    seja do modo que for

    tem um motivo social:

    no sna universidadeo modelo racionalo modelo da verdade.Isso apenas a expressodos valores da Razopara toda a sociedade.

    O aluno se inquietou:se o problema era social

    quem que lhe explicariao contexto estrutural?

    Que fenmeno geravaa importncia colocadasobre o mundo racional?

    Ento lhe veio a intuio:para ler o pensamento

    de toda a sociedade

    naquele exato momento

    Somente se poderia

    ir ata filosofiapara obter um argumento.

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    O aluno procurou

    um filsofo entendidoe a ele,ento,exps,o que havia ocorrido.

    Perguntou sua opinio:o que explica que a Razotenha no mundo vencido?

    O filsofo explicou

    que o problema era antigo;para no ir muito longe,nem entediar o amigo,

    explicou que hmuitos anoso modelo cartesiano

    neste mundo teve abrigo.

    Foi Descartes quem separoua razo da emoo?Mas no foi ele quem dissenuma certa ocasioque o seu tempo mais prezado

    era aquele dedicado

    a viver uma paixo?

    O filsofo assentiue deixou bem explicado

    que s vezes um pensamentoentendido todo errado:esse esquema cartesiano

    no senso comum mundano

    no foi bem interpretado.

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    O mesmo jaconteceucom o lema da igualdade

    colocado lna Franaao lado da liberdade

    numa bela trilogia

    que aos dois valores unia

    tambm a fraternidade.

    Liberdadeoriginou

    o sistema liberal,que trocou a igualdade

    por um mundo desigual.

    E a razo,que era o trofuque punha o homem no cugerou um mundo instrumental,

    onde mais valorizadonum frio materialismo

    o concreto e o objetivo.

    Por cair em tal abismo

    sem valer mais um centavo,

    o homem virou escravo

    de seu prprio pragmatismo.

    - A culpa no da idia,mas do uso que feito.Muita gente se apropriou

    do que se disse de um jeito,

    dando a interpretaoque justifica uma aodiferente do conceito.

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    Observe,pois,amigo,

    quanto ocorre deste engano:

    Plato no era platnicoe nem Kant era kantiano;

    So Toms no era tomista,como Marx no foi marxistanem Descartes,cartesiano.

    Depois dessa explicao

    vista da filosofiao aluno encerrou

    o caminho que empreendia

    sem querer seguir viagem

    mas feliz com a aprendizagem

    que obtivera nesse dia.

    Quer dizer que ao mal se lero iderio cartesianoe outros tantos pensamentos,

    deturpando-lhes o plano,

    uma das conseqnciasera o abuso das cinciasnas provas do fim do ano.

    Sque se o aluno entendeu,no pegou a explicaoquando ao pai foi entregar

    a nota da avaliao.Fim da histria:chineladae um corte de mesada

    prdeixar de vadiao.

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    desses lugarejos, sem conhecer bem o povo do in-

    terior.

    Num nico caderno que servia para dois anos - svezes attrs - Dona Ins fazia anotaes sobre o pro-cesso de aprendizagem dos seus meninos.A turma da

    manhera a mais cheia, tinha quarenta e sete alunos.Por isso todas as informaes eram anotadas a canetaazul,que era a mais fcil de conseguir por l.

    Os dados sobre os alunos da tarde iam em preto

    e,quando no dispunha desse tipo de caneta,usava olpis ou um resto de tinta do velho tinteiro, lembran-a da me.

    A me, sim, fora uma verdadeira educadora, naopinio de dona Ins. Organizada, limpa, clara nasidias.Toda a cidade a respeitava - era atconhecidado prefeito,e quando lse hospedava uma autoridade

    de um municpio ou cidade vizinha,logo ia ela organi-zar a festa de recepo e atfazer discurso de boas-vindas.

    Dona Ins pensava sempre na me com grandeadmirao, e propusera-se seguir seu exemplo na es-cola. Recebia hoje os filhos dos meninos que a meeducara.Pensava,com certa culpa,que no herdara a

    liderana da me.Na cidade,era querida,mas no re-cebia papel especial nas solenidades importantes.svezes reprovava-se por isso, reparava insatisfeita o

    quo pouco exigia dela mesma como forma de auto-superao.

    Mas isso terminava por no incomod-la mais doque alguns instantes: seja porque o trabalho de cor-

    reo dos cadernos no lhe deixava muito tempo

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    nem para pensar em si mesma, seja porque ela pr-pria se respondia que ela gostava mesmo era daque-

    le contato com as crianas na sala de aula: separaruma ou outra briga, ralhar com os mais velhos quan-

    do no respeitavam os pequenos,consolar um choroe comover-se com os olhares arrependidos suplican-

    do-lhe perdo, ir para casa com o rosto melado dosbeijos que,uma a uma,cada criana fazia questo delhe dar. E,claro, falar na sala sobre coisas de que a

    meninada sequer suspeitava, acompanhar comovidaos seus olhares fascinados com os primeiros conta-

    tos com o conhecimento, e construir diariamente

    uma busca que ela esperava que fosse a grande com-

    panheira da vida de cada um deles, pois para isso

    lhes acendia a curiosidade e lhes tentava despertar o

    gosto por saber e por descobrir as coisas novas e di-

    ferentes.Nas reunies de pais,as crianas apresentavam al-

    guns de seus trabalhos:uma pecinha teatral,uma msi-ca ensaiada em duas vozes,uma aula dada por eles mes-

    mos,explicando contedos estudados.Os pais ficavamencantados com o trabalho, sabiam que aquela escoli-

    nha,anica das redondezas,era boa e confivel.

    s vezes aparecia algum pai de aluno novo, que-rendo saber dos programas,pedindo uma cpia do cur-rculo.Dona Ins,na sua simplicidade,mas com toda afirmeza,respondia:

    - O ltimo currculo que essa escola recebeu dedez anos atrs.Se o senhor quiser,pode levar para a ci-dade vizinha e tirar cpia,mas desde jeu lhe aviso queno seguido risca.

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    E,como notasse o pai jmeio ressabiado,expli-cava:

    - Aqui o nosso currculo feito a partir da vida edas necessidades do dia-a-dia. Talvez isso no seja oideal - dizia Ins,e completava,decidida:- mas o me-lhor dentro do possvel.

    E,para sossegar o pai,garantia:

    - Pode esperar,que seus filhos vo se sentir beme vo aprender, tenha certeza. E o que mais impor-

    tante: vo sair daqui com vontade de continuaraprendendo.- Isso eu duvido! - respondeu-lhe certa vez uma

    das mes de dois irmos que acabavam de ser incor-porados ao grupo. - Esses dois no querem nada, foisempre assim.Se derem um valorzinho para o estudo,

    eu lhe confesso que fico atsatisfeita.Mas, a senhora

    sabe... Gostando ou no gostando, a gente tem queaprender.Principalmente quando se trata de homem,

    que vai sustentar casa. No nem aprender, enfiarmesmo,goela abaixo! - entusiasmou-se a me,como sefalasse de um cavalo que no quer entrar na cocheira,e svai no lao.

    Dona Ins sorriu,condescendente.Como se adi-

    vinhasse a comparao, discordou, com muito res-peito:

    - Criana no cavalo,e por isso no precisa de es-tribo e nem rdea curta.E conhecimento no pode serigual a alfafa seca... - completou, gracejando com bon-

    dade.

    Aproximando-se da me dos meninos, como sefosse contar um segredo muito divertido,disse:

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    - Aprender uma aventura...!E, ficando sria, continuou, para a me ainda sur-

    presa:

    - E alm de ser uma aventura,aprender com gos-to um direito.Tambm para as mulheres, lembre-sesempre disso,mesmo a senhora que stem filhos ho-mens.

    Assim falava dona Ins, misturando conforme ne-cessrio um pouco de firmeza e um pouco de doura,

    traduzida sempre num olhar muito tranqilo, que diri-gias crianas junto com um sorriso cheio daquela ter-nura pouco conhecida no mundo das salas de aula. E

    terminava as reunies assegurando,orgulhosa,como sefalasse dos prprios filhos:

    - Desta escola ssai rapaz e moa inteligente.

    Contaram-me que certa vez chegou cidadezinhaum grupo importante,causando grande alvoroo,rece-bido pelo prefeito com honras de parlamentar.Comen-

    tou-se que eram do governo.Mais tarde se soube:eram

    especialistas do Ministrio, do departamento ligado Educao Bsica,que vinham fazer uma pesquisa sobreo ensino justamente na escola de dona Ins, e propu-

    nham-se verificar a aplicao das chamadasteorias eprticas pedaggicas modernas.

    A professorinha adorou saber da proposta e atcomemorou:Atque enfim algum lembra de ns!No dia da visita ao estabelecimento,ela vestiu sua me-

    lhor roupa, que na verdade nem era muito diferente

    dos outros trs conjuntos que costumava usar,squemais nova,e saiu para sua caminhada sentindo aquele

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    esquecido nimo de seu tempo de aluna, tambm elana escola indo fazer prova com aquele nervoso bom,

    vindo da certeza de que saberia quase tudo na ponta

    da lngua.Controlando sua ansiedade,dona Ins esperou ain-

    da duas horas pelo grupo de especialistas, que se per-

    dera na viagem,por no saber que os quilmetros finaisdo trecho de acesso escola spodiam ser feitos a pou a cavalo.

    - Bom dia,professora - cumprimentou a que pare-cia ser a coordenadora da equipe,com a respirao ain-da entrecortada devido ao cansao da caminhada na-quele dia de calor.Em seguida, fez as apresentaes:

    - Meu nome Lcia Blanco, sou uma das repre-sentantes do CAREP, Comitde Avaliao e Reformado Ensino do Pas. Esta a professora doutora Cssia

    Benja, especialista em Informtica Educacional, eaquele o professor doutor Cipriano Mendona,ps-graduado na universidade de Harvard e doutor hono-

    ris causa de Oxford.A senhora sabe onde ficam Ox-

    ford e Harvard,no ?- claro que sim - respondeu prontamente

    dona Ins, com certo estranhamento, imaginando

    se aquela pergunta to fcil jseria a primeira daavaliao,e esperando que a qualquer momento umdeles pegasse um caderninho e anotasse:Disse quesabia.

    A representante do CAREP sorriu com cordiali-

    dade, e enquanto entravam na sala de aula (naquele

    dia sem os estudantes, que haviam sido dispensados

    a pedido dos avaliadores) continuou uma conversa

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    - Estou sua disposio - disse Ins,e temeu que afrase tivesse soado meio desafiadora -. Pergunte o que

    quiser.

    Somente a coordenadora falava, enquanto os dois

    faziam, agora sim, as anotaes em seus caderninhos -dois avanados notebooks de ltima gerao.

    - Primeiro, sobre sua experincia, digamos as-sim, de vida. Com que idade a senhora comeou adar aula?

    - Quando me formei, aqui na escola, estudandocom a minha me - respondeu ela,orgulhosa.- Ento a sua formao sde primeiro grau?- No, eu dava aula e fazia o curso normal de noi-

    te,ao mesmo tempo,em Vendinha Verde,aqui no muni-

    cpio vizinho.- Sua me professora.

    - Era.- E seu pai?

    - Meu pai trabalhou sempre na roa, no temmuito estudo formal, mas sabe das coisas, jleu bas-tante e um grande contador de histrias. Hoje emdia ele jno pode ir para o campo, mora comigo ecuida da casa para mim. Eu casei nova, mas meu ma-

    rido morreu cedo, de pneumonia.Agora somos sosdois,mesmo.

    - Por que a senhora escolheu essa profisso?- Nem sei se eu escolhi,acho que a vida me levou

    um pouco... Mas se tiver que colocar a uma razo,pode escrever que porque eu gosto.

    - Gosta de qu?- De ser professora,no disso que estamos falando?

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    Ins sorriu meio sem jeito, jentrando em deses-pero,mas sem demonstrar.

    - Tambm no,eu confesso que no conheo.A essa resposta seguiu-se uma pausa e um silncio

    ameaador.Os trs trocaram o mesmo olhar de cumpli-cidade indecifrvel do incio,e levantaram.

    - Muito bem,dona... Ins,no ? No se preocupe,ns compreendemos a situao, justamente por issoque estamos aqui.Agora vamos conhecer a escolinha.

    Mas antes,mostre-me o banheiro,por favor.- Professora Lcia,banheiro aqui na escola ns notemos,slfora,a uns cinqenta metros.

    - Mas como?? E cada vez que as crianas querem irao banheiro, tm que ir atl?

    - No tem outro jeito.- E para beber gua?

    - Ah, para beber gua so mais cento e cinqentametros,no poo da rua lde baixo.

    - A escola no tem gua potvel? - escandalizou-senovamente o ps-graduado de Harvard.

    - No senhor,professor doutor Mendona.- Lamentvel - concluiu ele secamente, como se a

    culpa fosse da prpria dona Ins.

    - Bem,ento vamos ver a sala de aula.A esta altura,jimagino que deve ser uma s,no ?

    - Exatamente! - assentiu dona Ins, feliz por, pelomenos desta vez, ter correspondido expectativa dogrupo.

    Abriu a portinha de madeira, construda apro-veitando uma porteira velha de uma fazenda aban-

    donada.

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    Nopreciso dizer que os examinadores do Minis-trio novamente se surpreenderam:com a falta de car-teiras,com a ausncia de uma mesa para a professora,e mesmo ao depararem com um tipo de quadro-negro

    que eles pensavam que jnem se usasse mais.Mas nodeixaram de registrar tambm,para consolo de Ins,omapa-mundi pregado na parede, que ela mesma havia

    comprado,cansada de esperar pela prefeitura,sentindo

    a necessidade de explicar s crianas os novos contor-nos do mundo no novo milnio.

    A equipe saiu, sempre ciceroneada pela professo-

    rinha,e jno gramado do lado de fora,exatamente nomesmo local em que se realizavam as reunies de pais,se despediram.

    - Vocs no vo voltar para ver as crianas traba-lhando? - indagou a professora.

    - No necessrio - respondeu Lcia Blanco -.Seusdados foram suficientes e sero de extrema relevnciapara nossa pesquisa.

    Ins no conseguia evitar o pensamento de que,ao ouvir esses elogios,os outros dois membros do Co-

    mitdessem uma risadinha.Mas isso no ocorreu.- E a que concluso vocs chegaram...Se que eu

    posso saber,claro.A coordenadora deu-se o direito de demorar al-

    guns instantes para responder, criando a expectativa

    necessria nessas ocasies.E finalmente disse:- No temos nada claro por enquanto, precisa-

    mos confrontar os dados com os de outros pesquisa-

    dores.Mas uma coisacerta - garantiu, impostando avoz - :a informtica chegaratvocs.No tarda mui-to, estaremos cumprindo o novo projeto do Minist-

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    rio, de dotar as salas de aula com computadores para

    seus alunos.

    - Que bom...- comentou dona Ins,no muito con-vencida -.E cadeiras,vocs tambm vo mandar?

    - Cadeiras eu no sei - respondeu a coordenadoracom ar bastante ctico -.No estno projeto.Mas comos computadores,a senhora jpode atcontar.

    E assim se despediram,meio apressados,temendo

    que escurecesse e eles a p,naquele mato.

    - Suma pergunta - gritou a professora, fazen-do com que se voltassem -. Desculpem perguntar,mas fiquei interessada...O que , afinal, o construti-vismo?

    - Mandaremos umas cartilhas para a senhora.Basi-

    camente,trata-se do aluno construir,ele prprio,o seucaminho para a aprendizagem. O ensino tem que ser

    personalizado,considerando a heterogeneidade de gos-tos e aptides.mais ou menos por a.

    - Ah... - Exclamou suavemente dona Ins,sentindouma suspeita de alvio.

    - Atbreve! - Despediu-se Lcia Blanco, sabendoque na verdade no se veriam novamente.

    - Atbreve! - imitou-a dona Ins,com a mesma cer-

    teza.

    Daquela visita jse passou algum tempo. No sesabe quando os equipamentos que foram enviados pela

    comisso do CAREP sero instalados na sala de aula dedona Ins,pois isso depende de alguns terminais eltri-cos que ainda no puderam ser colocados por falta deverbas.

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    O que agora, depois de alguns meses transcorri-

    dos,me veio como notcia que Juliana jestlendo eque Roberto organizou,com ajuda de outros dois cole-

    gas, um mutiro para construir um poo na parte detrs da escolinha.Contaram-me ainda que dona Ins es-pera com ansiedade pelas cartilhas do Ministrio.E nome lembro quem comentou que certa vez, depois de

    uma aula em que ela e as crianas haviam se sentidomuito felizes,e tinham aprendido muito uns com os ou-

    tros,enquanto arrumava seu material para a caminhadade volta para casa, dona Ins disse a si mesma, comoque pensando alto:

    - Serque eu jno aplico esse tal deconstrutivis-mo?

    Mas reprovou-se em seguida pela prpria arrogn-cia, e afastou logo da cabea aquele pensamento to

    ousado.

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    Era seu primeiro dia de aula.

    Atento,no pudera nem pensar em estudos,aju-dava a me e os irmos no sustento da casa.Por isso,amaioria das crianas daquela turma eram mais novas doque ele.Aliviava-o apenas o fato dele ser, fisicamente,

    menor do que o comum para sua idade, e realmente

    no seria possvel notar qualquer diferena, exceto sealgum visse sua certido de nascimento.

    Seus irmos jhaviam tentado freqentar aquelaescola,anica instituio pblica relativamente prxi-ma do morro em que viviam.Mas no haviam se sadobem, e em parte pelas notas fracas,em parte pela ne-

    cessidade de mais braos para trabalhar pela famlia,ha-viam terminado por abandonar o curso.

    Ele ouvira da me que seu caso seria diferente.OAparecido tem outra cabea,vivia repetindo,com vee-mncia,mesmo na frente dos outros filhos,o que o dei-xava um pouco encabulado.Esse vai conseguir com-

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    a caminho da escola

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    Poucos instantes depois dele entrar na sala, antes

    mesmo de que pudesse percorrer com a vista todos os

    seus colegas,chegou a professora.

    Era uma mulher alta,de meia idade,bonita.

    Ela branca, foi a primeira impresso que lheveio, confirmando uma hiptese que havia traado aoimaginar o mundo da escola.

    A professora deu bom dia, apresentou-se (chama-

    va-se Tia Cntia),e comeou a falar.

    Aparecido arregalou os olhos, sem acredi-tar no que estava acontecendo. Um arrepio cor-

    reu-lhe na espinha.No que o Toninho faloucerto, no d para entender nada do que elafala?

    A professora,sem atentar para o desespero do me-

    nino,explicava:

    A maioria das crianas assentava com a cabea,sorrindo,com sinal de entendimento.

    - continua ela.

    Aparecido ouvia aquilo atnito, cada vez maispreocupado.

    Se ela mandar fazer alguma coisa agora, o que que eu vou fazer!!??,apavorava-se.

    - continuava ainda sem interrupo a professora,comose todos falassem aquela lngua.

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    - O que ela estfalando? - perguntou Aparecido,emvoz bem baixa,a um menino que estava sentado a seu lado.

    - Ela falou que daqui a pouco cada um vai dizer o

    seu nome, e ela vai aprendendo. - O menino deu uma

    pausa, esperando que a professora olhasse para outro

    lado,para continuar - E falou tambm que para quan-do tiver dificuldade,chamar ela.

    - Que lngua essa que ela fala?-a nossa,vocno estentendendo no?

    Nossa?Nossalngua?,perguntou-se ele.- No...- Presta mais ateno que vocentende - assegu-

    rou o menino, jsem muita pacincia.Ele grudou os olhos na professora,sem perder um de

    seus movimentos.No entanto,mesmo assim,era imposs-vel compreender e,em decorrncia disso,era difcil no

    abstrair-se,ao menos momentaneamente,das explicaes.

    Enquanto ele pensava na sua tia Zica, de quem

    lembrara porque uma menina tinha alguns traos dorosto muito parecidos,o colega o cutucou:

    - Acorda,ela estte chamando!- H? O qu? H? Chamou,professora?

    - Desculpa, professora, eu estava tentando prestar

    ateno,sque eu no estava entendendo direito o quea senhora estava falando. Meu irmo jestudou aqui e

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    disse que era difcil mesmo, mas a gente estamos nosesforando.Quase ningum ldo morro onde eu moroconsegue entender o que as professoras fala.

    Sem jeito, percebendo que levava bronca,o meni-

    no se calou.Quando a professora tornou a se virar para

    escrever no quadro,perguntou ao colega:

    - Ela falou algo de mim?- No liga no,ela muito nervosa.- Pode falar,eu no fico chateado.- Ela disse que no sabe por que que tudo quan-

    to criana que mora no morro desatenta.Aparecido levou um golpe com a frase,parecia um

    banho de gua fria.Fingiu no ligar,atdeu um sorriso

    amarelo enquanto respondia:- Ela que fala estranho, como que eu vou ficar

    prestando ateno?Mas a voz saiu com gosto de choro.

    O quase amigo consolou:

    - No liga.Por dentro,a raiva era enorme.Vou fazer baguna

    a aula inteira,planejou.Hoje,amanh,e todos os diasdessa semana.Ela fala estranho e eu que levo a pior?

    Tem atgraa!E praguejava internamente,ansioso para que o si-

    nal tocasse e ele pudesse voltar para casa, para contar

    tudo ao irmo.- Voctem razo,mano - ia lhe falar -.No dpara

    entender nada mesmo, e a professora ainda por cima

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    no gosta da gente. Eu estava to animado prestu-dar, mas agora... agora eu odeio, quero mais voltarpara a rua.

    A nica razo que o segurava eram as falas da me,que tambm lhe vinham mente, como num dilogoentre bem e mal,entre anjo e diabo.Se comporta,me-nino;seja o que for que a professora falar,ela estsem-pre certa,entendeu bem?

    Danao.O que ia fazer?

    Ainda por cima, sentia-se jincmodo na mes-ma posio. No seu barraco no havia cadeiras da-quele estilo.Todos sentavam em caixotes para co-

    mer ou, na poca em que os irmos estudavam,para fazer as lies. Ele mesmo estava acostumadoa sentar no cho.

    Devia ter um treinamento prque a gente fosse

    se acostumando aos poucos, igual aos jogadores de fu-tebol quando voltam das frias, pensou, massageandoirrequieto a regio dos rins.

    Nova bronca.

    Eu vou deixar essa mulher de lado,ela estdemarcao- resignou-se.

    Um outro menino, do fundo da sala, olhava para

    ele sorridente,com ar de cumplicidade.

    Pelo menos algum estdo meu lado- consolou-se,mas ainda repleto de sentimentos maliciosos,esfor-

    ando-se por ter alguma idia sobre como atrapalharaquela aula confusa.

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    Finalmente,apesar do relgio parecer mais vagaro-so que nunca,ouviu-se a campainha da sada.A profes-sora anunciou algo e se despediu. Houve rumores. Jimaginando que ele no ouvira ou no entendera, oamigo avisou:

    - Olha,ela disse que amanhvai ter uma prova oralsobre a aula de hoje.

    - Prova!!!???

    E,antes que ele pudesse comentar qualquer coisa,

    o grupo de meninos e meninas se desfazia, correndoansiosos cada um para seu lado,como uma boiada que

    tivesse estado presa num cubculo e,de repente,abris-sem a porteira e lhes permitissem ganhar a imensidodo pasto todo verde e plano.

    Aparecido chega em casa num estado de espritototalmente diferente daquele com que sara. Desola-

    do, a raiva inicial substituda por uma preocupaoat ento desconhecida. No conseguia falar quasenada, respondia apenas monossilabicamente s per-guntas dos irmos sobre o seu dia. No fundo, sentiavergonha de confessar que com ele acontecera o mes-

    mo, era igual aos outros, tambm no tinha cabeapara o estudo, apesar de todas as expectativas sobre

    ele colocadas.- Vem almoar,menino.- No estou com fome no,me.Ao contrrio do que poderia ocorrer em outras fa-

    mlias, em que os pais se preocupam se o filho nocome, a me de Aparecido sentia alvio:Vai dar prtodo mundo, calculava,pois se todos almoavam isso

    jno era uma garantia.

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    Passou a tarde cabisbaixo e calado,o olhar perdido

    sem fixar qualquer ponto.Pensava:Isso injustia.Darprova sobre algo que ela no sabe se todo mundo enten-deu.Alis,ela sabe que nem todo mundo entendeu.

    A raiva voltava,e ele,remoendo,continuava:

    Ela sabe que eu no entendi, e pensa que por-que eu estava conversando.Ou porque no estava pres-tando ateno. Mentira! Eu tentei,mas como que euvou ficar ligado sem entender aquelas palavras de outra

    lngua?E o sentimento de injustia crescia.A me,vendo o garoto assim,ainda interpretou ao

    contrrio. Enquanto lavava roupa numa tina e conver-sava com a vizinha da janela,contou:

    - O Aparecido,vocprecisa ver,que gracinha.Vol-tou da escola todo pensativo. Jdeve estar estudando

    tudo o que aprendeu.Esse sim,dvalor ao estudo,esttodo srio, estlevando com seriedade.Que diferenados outros,que chegavam aqui, parece que nem tinha

    havido aula!

    Estou frito,concluiu Aparecido,ouvindo as pala-vras da me.Entre a cruz e a espada,como dizem.

    O fato de ter ficado scom o cafda manhat

    aquele fim de tarde jcausava os seus efeitos.Apareci-do comeou a sentir uma fraqueza, uma moleza s.Vou ficar doente, pensou,encontrando um motivode esperana.Quem sabe eu consigo passar mal e mi-nha me no deixa eu ir escola?

    Deitou na esteira que,noite,dividia com o irmomais velho.Assim, sem o companheiro, ela ficava bem

    mais espaosa,quase confortvel.Sem perceber que fu-

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    gia pela primeira vez da prpria sorte,foi-lhe chegandoaquela sonolncia branda,as plpebras pesando...

    Abstraiu-se de tudo e,naquele calor que vinha do

    teto de zinco, o sol ainda forte sobre ele, dormiu pro-

    fundamente...

    - Menino,vocvai perder a hora,quer fazer o favorde levantar AGORA?????

    Ele abriu os olhos,como emergindo aos poucos de

    um abismo.- Ja terceira vez que estou chamando!Olhou para fora. Pela cor do cu e pelos passari-

    nhos que cantavam, calculou que deviam ser cinco e

    pouco da manh.Espreguiou-se,ainda sem saber mui-to bem o que estava acontecendo.

    - Vocno vai querer chegar atrasado no seu pri-

    meiro dia de aula,vai? - inquiriu a me, jralhando.Primeiro dia? Primeiro?Depois de pensar alguns instantes,descobriu:tive-

    ra um sonho! Tudo no passara de um terrvel pesade-lo! Impressionado pelo que o irmo lhe contara,inven-tara dormindo toda aquela histria da estranha lnguafalada pela professora, do seu jeito rabugento e impa-

    ciente,da prova no dia seguinte.Levantou sentindo-se bem melhor do que no sonho,

    embora aquele gosto de angstia ainda permanecesse.Foi ata escola sem poder esquecer aquela histria.

    Pode ter sido um pressentimento, foi a idia queo aterrorizou.E se for?

    Criana,ainda encontrou pontos positivos na pos-sibilidade do sonho ter sido profecia:Posso ganhar a

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    vida como mgico - e se imaginava, adulto, vestidocom roupas exticas e com uma bola de cristal sobre amesa,dizendo a um grupo de meninos assustados e ad-

    mirados com seus poderes:Na prova vai cair essa ma-tria...Podem anotar as respostas que eu vou dizer...

    Mas ele mesmo no acreditava naquela possibilida-de.Tanto que,ao entrar na sala de aula, levou um gran-

    de susto ao perceber que no sa disposio das me-sas e cadeiras, como os prprios coleguinhas, eram os

    mesmos,literalmente iguais aos que ele vira no sonho.- Ou pelo menos muito parecidos - comparou,en-

    golindo em seco.

    No havia muita algazarra porque poucos se co-nheciam.Por isso,quando a professora entrou,foi qua-

    se que natural o silncio que se seguiu.O de Aparecido,no,era forado.O sangue lhe ge-

    lara nas veias.A professora era igual, exatamente idntica mu-

    lher de seu pesadelo.

    Estou perdido, concluiu para si mesmo, deso-lado.

    Entretanto,ao contrrio de suas previses,quando aprofessora comeou a falar,Aparecido ficou encantado.

    Era uma voz suave, branda,quase doce, mas ao mesmotempo firme, segura.As frases saam de sua boca comouma leve melodia.E o que era melhor,muito melhor:

    - Eu estou entendendo!!!

    Todos riram. Sem querer, Aparecido falara alto.

    Olhou assustado para a mestra:mas ela tambm sorria,atsatisfeita com a frase.Perguntou seu nome,ele res-pondeu.

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    Gostava de inovar em suas aulas. Fazer sempre

    algo diferente,para motivar os alunos.

    Quando ia falar da pesca como atividade comer-cial,por exemplo,teve a idia:vou lev-los para a beirade um rio,e ensinar-lhes a pescar.

    A excurso foi divertida,todos encantados com aspaisagens da serra, cantando msicas dos grupos damoda.

    Finalmente chegaram: a aula seria num crrego

    que atravessava um vale entre duas cidades.Parece queera cheio de traras, lambaris e tilpias.

    - Primeira parte da aula - disse a professora -:

    aprender a segurar a vara de pesca. Cada um pegue

    a sua.

    Os alunos,sem conter a ansiedade,correram atoporta-malas do nibus que os trouxera e comearam a

    disputar as varas.

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    a aula de pesca

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    - Hora de puxar! - exclamou, e lanou a vara paracima,com deciso.O bambu,agitando-se todo,trazia nofinal da linha uma boa trara de uns dois quilos.

    - Pegamos! Pegamos! - agitava-se a professora, en-

    quanto soltava a vara sobre o capim, e preparava-se

    para tirar o peixe do anzol.

    A trara custava a se render,pulou ainda vrias ve-zes dentro do balde antes de ficar definitivamente quie-

    ta.

    - Viram que beleza? Pescar muito bom! Que del-cia que a pescaria! - exclamava para si mesma, semperceber que alguns alunos sorriam com desdm, ou-tros sequer a ouviam.

    - Posso tentar agora,professora?

    - Eu tambm vou querer!- Vamos sortear de quem a vez! - inquietaram-se

    os meninos.- Agora no, pessoal - respondeu a professora -.

    Jest ficando tarde e, de qualquer forma, no dariamesmo para todos pescarem.

    UmAaaaah... prolongado, que parecia um coroensaiado, foi a expresso da decepo de todos.

    A viagem de volta pareceu mais rpida,no havia

    mais a expectativa nem a alegria do primeiro momen-to.A professora, satisfeita, levava o peixe para mostrar

    na escolao que os alunos pescaram. Lembrou-se deavisar:

    - Turma, no esqueam de que, como sempre,de-pois que houve um estudo de um contedo,teremos anossa provinha.

    - Ah,no... - mais uma expresso de desnimo.

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    - No reclamem! - pediu carinhosamente -.Serf-cil,svocs contarem o que sentiram na pescaria.

    - Mas eu no pesquei nada - comentou um dos alu-nos com um colega, sem que a professora ouvisse -.O

    que que eu vou colocar?- Inventa - aconselhou o outro,soluo que lhes pa-

    receu muito satisfatria e fez com que os dois se esque-cessem definitivamente do problema.

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    - Vamos traar o perfil do professor que quere-mos e, ao invs de entregar um documento escrito comunidade,procuraremos e traremos o prprio paratrabalhar aqui. Se a minha idia funcionar, ele saberir contagiando o trabalho de todos com a sua manei-

    ra de ser.

    Parecia uma possibilidade interessante.Josefina re-

    gistrou tudo em ata.Enquanto escrevia,outros jtoma-vam a palavra:

    - Bem,de qualquer forma temos que encontrar al-guns critrios que vo nos ajudar a distinguir esse pro-fessor. Proponho que comecemos a pensar numa lista

    de caractersticas.Todos concordaram e se dispuseram a trabalhar

    naquela primeira etapa do projeto.

    - Na minha opinio,deve ser uma pessoa muito hu-

    mana comeou o professor de Cincias,dando nfa-se palavrahumana. Quero dizer,uma pessoa queveja a vida com a razo, sim,mas tambm com a emo-o, que aprecie os sentimentos humanos, o sentidohumanitrio da vida,e no apenas um profissional com-petente,dotado somente de uma boa tcnica.

    Josefina gostou da explicao.Anotou tudo, subli-

    nhando as expresses emoo esentido humanit-rio.

    - Daeu penso que decorre outra coisa,ligada dire-tamente a isso continuou o professor de Histria - :que seja uma pessoa interessada no bom relacionamen-

    to com seus alunos. Que o aluno seja algum comquem ele realmente se importe, algum que ele vejacomo um parceiro de trabalho.

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    Jlio, professor de Literatura, muito interessadonas novas tecnologias,sorria para si mesmo e pensava:

    eu o encontrarei,com meu mtodo infalvel.Vou me co-nectar na Internet,nos sites debuscae,atravs das ca-ractersticas indicadas,encontrarei uma foto desse su-

    jeito. Em algum lugar do mundo ele se encontra. Ire-

    mos,ento,procur-lo.JSofia,professora de Portugus,pensou num ou-

    tro caminho possvel.Tenho cpia de muitas das reda-

    es que meus colegas fizeram no curso de formaode professores, lembrou.Quem sabe se naquele temaOs meus sonhos pedaggicosaparece uma redaoque revele esse perfil? Esse professor deve estar em al-

    gum lugar,hoje em dia,dando aula,assegurou a si mes-ma.

    Josefina tambm tinha a sua idia.Ia consultar uma

    antiga professora do Instituto de Educao e perguntar-lhe se,em toda a sua histria,havia conhecido uma pes-soa assim.Ela, ao contrrio dos outros,estava bastantectica quantoexistncia daquele que haviam denomi-nado de professor ideal. Na verdade, no sabia seaquele tipo era um ser perfeito ou um verdadeiro idio-

    ta, por continuar pensando daquela forma apesar das

    dificuldades do magistrio.Mas queria ficar bem com ogrupo e imaginava que, se ela o encontrasse, sua ima-

    gem no colgio seria valorizada.Marcou entrevista para aquela mesma semana

    com a professora Conceio,de quem tinha muito boaslembranas.

    Foi ao encontro com certo receio.Pensava que po-

    dia ficar chocada ao ver a antiga professora,assustar-se

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    com a passagem aparentemente repentina do tempo.

    Ela jno era nova quando eu assistia s suas aulas,noprimeiro ano do curso de formao de professores...Imagine agora,como estar,se hoje em dia meus alunosque me consideram uma senhora...

    A suspeita se confirmou de um outro modo.

    Dona Conceio envelhecera, mas no fisicamente.Faltava-lhe apenas, na maneira de falar e de andar,

    aquela jovialidade dinmica, aquela fora de persona-

    lidade que fazia outrora com que todos os estudantesa admirassem e alguns deles atprocurassem imitaros seus modos.

    Teria sido ela a professora ideal,a que reunisse to-das aquelas qualidades? perguntou-se Josefina. Maslogo voltou atrs na anlise.

    A antiga professora,a propsito da pergunta sobre

    um possvel professor ideal de que ela se lembrasse,jcomeava a falar-lhe das dificuldades do magistrio,desuas descrenas,suas desiluses.Tudo devido polticado pas,da qual,alis,jtinha desistido de participar. Aescola lhe parecia ultrapassada em seus mtodos parao mundo de hoje, mas... ningum conseguia mudar asexigncias das Secretarias, dos exames para o ensino

    superior... Isso fazia com que procurasse atalhos,comoum ensino mais objetivo, para dar conta dos progra-

    mas...

    - Eu acho que jno dou mais para isso, mesmo arrematou a velha professora.

    Como ela mudou,admirava-se cada vez mais a ex-aluna Josefina. No pela idade, pela perda de todasas suas crenas, de tudo o que animava seu trabalho.

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    Lembrava-se como se fosse hoje de algumas redaesque ela devolvia aos alunos com nota mxima e comum brilho no olhar:Parabns,como melhoraste teu tex-to!, dizia, e todos sentiam que ela prpria estava seemocionando com aquilo.Participava,muitas vezes,das

    excurses programadas pelo Instituto,abrindo mo atdos finais de semana.Depois eu me arrependo, corri-gindo as redaes na segunda-feira noite,mas... vale apena,contavas alunas,rindo de si mesma.

    Josefina percebia nas frases amargas de dona Con-ceio que tudo aquilo terminara, ficara perdido notempo,em algum lugar entre a sua turma de curso nor-

    mal e o dia de hoje.Onde seria...?

    - Mas talvez eu ainda possa ajudar-te,meninadis-se Conceio Josefina, num tom de professora paraaluna, como se no tivessem transcorrido trinta anos

    desde o ltimo encontro e no fossem, agora,duas se-nhoras adultas.E continuou:

    - Eu conheci uma mocinha que parecia pensar as-

    sim,como tu me descreveste.Eu lia seus textos e pensa-

    va sempre comigo mesma que aquela seria,ela sim,uma

    grande professora. Livre, sonhadora, parecia-lhe que ti-

    nha o mundo pela frente e que,uma vez entrando na sala

    de aula, iria conseguir mudar todas as coisas:as injusti-as,os problemas do mundo,a misria,a ignorncia...

    - Pois justamente essa pessoa que eu preciso en-contrar! interrompeu Josefina, com ansiedade. Con-ceio pareceu nem ouvir, mergulhada nas prpriaslembranas felizes.

    - Essa moa era bem nova,mas de muita maturida-de,nas suas idias.Ao mesmo tempo, idealista.Eu sen-

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    um pesadelo,uma espcie de brincadeira macabra dodestino.

    - Sim,a tua foto, Josefinadisse dona Conceio,condescendente,carinhosa, chamando-a pela primeira

    vez em tantos anos pelo nome,como nas suas aulas.stu esta menina que eu te conto que sonhava,que acre-

    ditava em outro mundo, que eu sabia que seria uma

    grande professora.

    - No pode ser... eu... eu... balbuciava Josefina,sem ter o que dizer.

    - Eu que te pergunto agora, Josefina. O mundotambm pde contra ti,assim como pde comigo? De-sististe de tudo ? Aceitaste a escola pronta,a aula fcil,o aluno distante,a matria pura?

    Josefina no dizia nada.- Mas quero te dizer que em algum lugar, entre a

    nossa aula de Portugus htrinta anos,e o dia de hoje,esses sonhos ficaram. Eles existem ainda, esto em al-gum outro espao que no uma sala de aula nem umcorredor de colgio, Josefina. Eles ficaram esquecidosem algum canto,dentro de ti.

    Josefina ouvia quieta, os olhos midos,a gargantadoendo.

    - Eu te entrego hoje esta foto,e te fao um desafio,Josefina, a ti que tanto gostavas dos difceis desafios.Por que tu no vais procurar essa professora? Por quetu no procuras a nossa J?

    Naquele final de tarde,ao se despedirem, Dona

    Conceio insistiu no pedido: faze isso que te disse,por ns duas. Se tu conseguires encontr-la, estarsnos resgatando, e estars redimindo atravs disso

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    muitas outras histrias que tentaram tambm serconstrudas e que o mundo, com suas penas, nodeixou.

    Josefina voltou ao colgio no dia marcado para areunio seguinte com sua foto no bolso. No sabiacomo fazer.O que diria? Sentia-se,de qualquer modo,

    incrivelmente leve,estranhamente outra.

    Na reunio,todos estavam muito bem humorados,

    apesar de no terem conseguido nada.Contaram pouco sobre suas buscas,pareciam maisentusiasmados com uma nova idia que algum trouxe-ra:fazer um grande encontro com todos os professores,

    para estudo e convivncia.Josefina novamente foi a relatora. Mas, desta vez,

    olhava para o papel de modo diferente,sem a descren-

    a conhecida. Parecia-lhe que as idias eram mais vi-veis. Mesmo quando algum da reunio comentou -como ela mesma em outro tempo teria tambm comen-tado - que pelo fato de tal encontro ser realizado num fi-

    nal de semana,poucos do colgio iriam participar.Eu vou, contrariou-a interiormente Josefina, sor-

    rindo sem que os outros soubessem por qu.

    Naquele dia,antes de entrar na sala de aula,ps-sea conversar no corredor com seus alunos.Ao ver que

    um ou dois estavam com ela, outros se aproximaram.

    Eram todos crianas de dez ou onze anos,na quinta s-rie. Josefina sorria sem parar,achando tudo to bonito:seus cabelos desalinhados, sua agitao, aquela vidatoda em torno dela.

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    - Ests feliz,hein,professora? - brincou um dos alu-nos,com um tom malicioso.

    - Estou, sim - respondeu ela. - E sabes por qu?- No...- Conta,professora!!

    -porque as provas foram boas???Josefina riu com o palpite e contou:

    -porque gosto de ser professora,e gosto de quesejam meus alunos.

    Os alunos se entreolharam e alguns sorriram tam-bm,meio sem entender.- Eu estou meio boba hoje,no?- Tno,professora.- A gente tambm gosta da senhora. - garantiu um

    deles,com aprovao dos demais.- Vai gostar mais ainda se no tiver mais prova!!! -

    arriscou JosMaurcio,um dos mais brincalhes da tur-ma.

    -,isso mesmo! Boa idia! - aprovaram outros,que-rendo dar corda na brincadeira.

    - E todo mundo tirar dez!!! - novo grito, com ainda

    maior apoio.

    Josefina ria,achando muita graa daquela infantili-

    dade ingnua, daquelas brincadeiras bobas e carinho-sas das crianas,ela que tantas vezes chegara to srianaquela mesma turma,sem tempo para conversas.

    Depois de entrar na sala, abriu o caderno de pro-

    gramao de aulas,retomou os contedos que planeja-ra para o dia.Era gramtica.Nada muito adequado paraseu propsito de encontrar a J, pensou.Mas garantiua si mesma:hoje,a partir desta mesma aula de gram-

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    tica, que vou comear a redimir esse passado, cons-truindo uma outra histria para ser narrada.

    Pegou no bolso,sem que ningum notasse,a velhafoto amarelada, para dar mais uma pequena olhadela,

    lembrando das palavras de dona Conceio. Olhoubem nos olhos da moa do retrato e sorriu-lhe comcumplicidade.

    Naquele momento, todas as outras salas estavam

    em aula.

    O que Josefina no sabia que,por uma estranhacoincidncia,uma dessas ironias que sao destino po-dem se atribuir,naquele exato instante,todos os outros

    membros do seu grupo de trabalho estavam tambmretirando algo do bolso: uma foto envelhecida, um re-

    corte amarelado,uma redao velha...

    Nenhum deles sabia do que acontecera com os de-mais;mas se por acaso houvesse algum que de longevisse a cena,certamente tambm se encantaria,vendotanta luz nos olhos daqueles mestres,e quem sabe dis-

    sesse, tal como fizera dona Conceio, suspirando en-ternecida,sorrindo carinhosamente:

    - Ah,essas crianas...!

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    traves da gaiola, deixava entrever o sonhado espaomulticolorido e arejado.Nela os pssaros se ajuntavam,com seu olhar aflito, deliciando-se apenas quando um

    resto de brisa penetrava pela fresta, surpreendendo-os

    risonhamente.

    Um dia, o professor resolveu sair com os alunos,

    deix-los finalmente livres por alguns instantes.E, espantado, percebeu que imediatamente pu-

    nham-se a voar,mal se abria a porta,cantando mil gor-jeios por ele nunca imaginados.E o vo parecia-lhe deestranha beleza: cadenciado, equilibrado, um bater de

    asas vigoroso e jovem,como numa dana.

    Decidiu ento abandonar a gaiola e embrenhar-secom eles nos jardins,em meio aos bosques,na mata sel-

    vagem do desconhecido.Mostrem-me o que vocs sa-bem,pediu.E deixou-se encantar.

    Hoje, professor e passarinhos aprendem juntos,

    numa grande floresta em que podem experimentar me-

    lodias novas e saltos por sobre rvores e lagos.

    E juntos riem daquele tempo distante e to estra-nho,em que passavam em gaiolas o tempo das manhsensolaradas...

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    todos e retornar escola.Alguns queriam permanecer,no haviam ainda decidido,ou queriam terminar de veras demais estantes.Outros perguntavam quando volta-

    riam a fazer uma excurso daquelas.Todos, sem exce-o,carregavam um ou dois livros escolhidos.

    Para a surpresa e a satisfao do pedagogo,entre asobras que levavam no havia apenas livros finos.Alis,quase no havia. Os gostos eram variados: contos, ro-mances,atnovelas de cavalaria.E mesmo um ou outro

    clssico chegou a passar sob seus olhos,enquanto con-tava os estudantes na fila de sada,para conferir se esta-vam todos.

    No houve prazo marcado para a leitura; apenasfoi combinado que todos devolvessem biblioteca osvolumes emprestados dentro do perodo acertado, ouadiassem quando necessrio.E assim se fez.

    Semanas depois,uma idia no saa da cabea dopedagogo,apesar da deciso to radical que jtomara.Queria saber se algum dos alunos solicitara novo em-

    prstimo.No devo fazer isso,censurava-se.Para que faz-

    lo, se na certa irei me decepcionar?- tentava conven-

    cer-se.No entanto,aquela idia lhe voltava,a curiosida-de era maior.Talvez houvesse descoberto o Mtodo.Tal-vez houvesse chegado, intuitivamente que fosse,me-todologia ideal para a iniciao dos jovens na leitura.

    Atque,sem poder mais resistir,foi conversar coma bibliotecria.

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    Caro leitor, tu que ls estas pginas, se s tam-bm um pedagogo, ou se alguma vez jte perguntas-te sobre como fazer para que os estudantes descu-

    bram o gosto pela leitura,deves estar ansioso por sa-

    ber os resultados da consulta.Algo ctico,deves estardesconfiado da resposta, pronto para verificar que

    este conto inverossmil, distante da realidade, casoseja dito que aquela simples tentativa docente des-

    pertou o prazer de ler.

    Bem,se por acaso assim,tens razo,no omitireios fatos de ti.Com efeito,ocorreu que o pedagogo sou-be da bibliotecria que apenas quatro estudantes, dostrinta e cinco que levara,haviam retornado para retirar

    novos volumes.

    Mas eram quatro alunos que,segundo sabia,aten-to no haviam lido quase nada alm das obras solicita-

    das em sala de aula.

    O que sei da histria termina aqui.Desconheo in-clusive qual foi a lio que o pedagogo retirou daqueleepisdio.

    Em todo caso, tu e eu,caro leitor, podemos arris-

    car algum palpite.Eu,pessoalmente,creio que o peda-

    gogo deve ter concludo que no havia receitas paraensinar a ler,nem para cativar para a leitura.Podia ha-

    ver,sim,formas diferentes para cada um.E um dos pa-

    pis do pedagogo,ou do orientador de estudos,ou doeducador,como quisermos chamar,sersempre tentardescobrir quais so as formas que podem despertaresse desejo em cada indivduo. Os jovens esto aindase aproximando da prpria vida;a escola tem o gran-

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    mens e culturas que passam a fazer parte tambm detua vida e de tua cultura?

    Percebeste,acaso, que no htempo para o livro?Seja qual for a poca da publicao, uma vez escrita, aobra jno mais pertence nem ao autor,nem a seu tem-po, transformando-se numa possibilidade de encontro

    entre os homens de todas as pocas e de todas as cultu-ras.Ou acaso,quando ls,no ouves as vozes de autoresque jamais te viram,e no entanto escreveram para ti?

    Penso muito nisso porque eu jfui como aquelepedagogo de que te falava ainda hpouco,e pude cons-tatar tambm, nos encantos e desencantos das muitassalas de aula por onde andei,que nosso papel sertobem cumprido quanto mais formos capazes de instigar,

    de questionar, de apresentar o desconhecido, sem su-

    por que seja exatamente naquele momento que o alu-

    no deverse aproximar do novo.Mas,assim como pode ter ocorrido com o pedago-

    go de que te falei,algumas idias me ficaram muito cla-ras:primeiro,que no se desperta o gosto pela leituraobrigando a ler.Segundo,que seria ideal se cada um pu-

    desse escolher a sua prpria leitura, mesmo que paraisso o professor no precisasse ser to radical como foi

    nosso protagonista, e se dispusesse a prestar certasorientaes sobre autores,ou pocas,ou perodos lite-rrios e seus contextos.Terceiro,que a leitura tem seuprprio tempo, e pouco natural estabelecer prazosiguais para todas as pessoas.

    Bem vs, apenas disso pude dar-me conta,nestesanos de sala de aula.Que concluses mais simples...E,

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    Sobre o livro

    Formato:14x21cm

    Mancha:16.5x34 paicasTipologia:Garamond Book (texto)

    Gill Sans (encabeamento)

    Equipe de realizao

    Assistente de Produo GrficaLuzia Bianchi

    RevisoJosRomo

    Srgio F.Torres de Freitas

    Projeto GrficoCssia Letcia Carrara Domiciano

    Criao da Capa

    Marcos Horta

    DiagramaoOsmarina Lucinia Buzzola Ambrsio

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