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01 01 Bernard Stiegler Book2

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01 01 Bernard Stiegler Book2

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  • 01 Bernard Stiegler 17.02.10 14:19 Page 22

  • Este texto trata da exteriorizao da memria, isto , da tcnica como

    perda do saber. O processo de exteriorizao (mnemotecnologias) se concretiza

    como histria da gramatizao, histria tcnica da memria, onde a memria

    hipomnsica relana a constituio de uma tenso de memria anamnsica.

    Como as questes filosficas so questes de transindividuao, em termos de

    filosofia poltica, tratase de descrever e de criticar os processos concretos de

    transindividuao e pensar as hypomnmata digitais e as novas formas de otium

    que podem aparecer e fundar uma nova economia poltica da memria e do

    desejo.

    This text deals with the exteriorization of memory, that is, of technique as loss

    of knowledge. The process of exteriorization (mnemotechnology) concretizes

    itself as history of grammatization, technical history of memory, in which

    hipomnesic memory reinstitutes the constitution of an anamnestic memory

    tension. Since the philosophical questions as transindividuation questions, in

    terms of political philosophy, it deals with describing and criticizing the con-

    crete processes of transindividuation and thinking the digital hypomnmata and

    the new ways of otium that may appear and found a new political economy of

    memory and desire.

    Anamnsia e hipomnsia:Plato, primeiro pensador do proletariado

    Bernard Stiegler

    palavraschave:memria; anamnsia;

    hipomnsia; Plato; Marx

    keywords: memory; anamnestic;

    hipomnesic; Plato; Marx

    23 Parafernlias (Corpos Informticos), 2007, componentes eletrnicos e fotografia.Foto de: Anderson Frana.

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  • A exteriorizao da memria como perda do saber

    Todos ns j tivemos a experincia da perda de um objeto por-tador de memria pedao de papel, livro anotado, agenda, relquia,fetiche etc. Descobrimos, ento, que uma parte de ns mesmos (comonossa memria) est fora de ns. Essa memria material, que Hegelchama de objetiva, parcial. Mas ela constitui a parte mais preciosada memria humana: nela se forma o conjunto das obras de esprito sobaspectos os mais variados.

    Escrever um manuscrito organizar o pensamento confiandooao fora, na forma de rastros (traces)1, isto , de smbolos. Somente dessaforma ele se reflete, constituise realmente, tornandose repetvel(Jacques Derrida diria itervel) e transmissvel, transformandose,assim, em saber. Esculpir, pintar, desenhar ir ao encontro da tangibi-lidade do visvel, ver com as mos dando a ver, ao mesmo tempo,rever; formar o olho daqueles que olham e, assim, esculpir, pintar edesenhar esse olho; o transformar. Esse tambm o sentido do queJoseph Beuys chama de escultura social.

    A memria humana originalmente exteriorizada, e isso sig-nifica que ela , antes de qualquer coisa, tcnica. Ela se formou,primeiramente, h dois mil anos, como instrumento ltico. Suporte damemria espontnea, o instrumento ltico no , no entanto, feito paraguardar a memria: sem dvida, somente aps o paleoltico superior que surgem as mnemotcnicas propriamente ditas. So os mitogramasda sociedade mgica, dos quais o churinga da Austrlia um teste-munho recente, assim como as tatuagens no corpo do feiticeiro, o quipo(cordelette noeuds) dos incas. Na origem dos primeiros textos, asescrituras, que s aparecem depois do neoltico, resultam no alfabeto,que ainda hoje organiza a agenda dos empresrios. Porm, esse objetocalendrio , atualmente, um aparelho: o computador de bolso. E pas-sase, assim, das mnemotcnicas s mnemotecnologias.

    Originalmente objetivada e exteriorizada, a memria que nopara de crescer tecnicamente e de estender o saber dos homens e seupoder, ao mesmo tempo lhes escapa e os ultrapassa, questionando suasorganizaes psquicas e sociais. Esse processo se torna particular-mente sensvel com a passagem das mnemotcnicas s mnemotecnolo-gias. Mas isso tambm ocorreu na antiguidade grega e depois com aimprensa.

    Hoje, a memria se tornou o elemento maior do desenvolvi-mento industrial e tecnolgico, e os objetos cotidianos so cada vezmais suportes de memria objetiva, quer dizer, tambm de saberes. Ora,

    1. N.T.: A traduo detrace por rastro no

    vai sem problemas,pois o prprio Derrida

    reconhece a estranhezado uso feito por ele dotermo francs. Aquele

    que, em portugus,parece ser um falso

    cognato de trace,trao, no deve, no

    entanto, ser descartadodesse tipo de pensa-mento. A despeito de

    trao correspondernormalmente a trait, j

    no prprio francs osdois termos trace (ras-

    tro) e trait (trao) secomunicam e Derrida

    tira proveito dessarelao. Outras

    tradues possveis detrace seriam vestgio,

    impresso ou qualquermarca em geral. Cf.

    NASCIMENTO, Evando.Escrita e gramatologia.

    Disponvel em:www.rubedo.psc.br|

    Artigos|EvandoNascimento. Acesso

    em: 30 maio 2008.

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  • esses saberes tecnolgicos, objetivados na forma de aparelhos, geram,sobretudo, uma perda de saber, no momento mesmo em que se fala emsociedades de saber, em indstrias do conhecimento e em capitalis-mo cognitivo ou cultural.

    Estamos, permanentemente, ligados a aparelhos mnemotec-nolgicos os mais variados: da televiso ao telefone, passando pelo com-putador e a direo com GPS. Ora, essas tecnologias cognitivas, squais confiamos uma parte cada vez mais importante de nossamemria, nos fazem tambm perder, cada vez mais, saber.

    Perder um telefone celular perder o rastro (trace) de nmerosde contatos e perceber que eles no mais esto na nossa prpriamemria, mas no aparelho. E preciso aqui perguntar se o desenvolvi-mento industrial e massivo das mnemotecnologias no constitui umaperda estrutural da memria, ou, mais precisamente, um deslocamen-to dessa memria: um deslocamento pelo qual ela pode se tornar umobjeto de controle de saberes e constituir a base essencialmentemnemotecnolgica dessas sociedades de controle, que Gilles Deleuzecomeou a teorizar, no fim da sua vida.

    Essa hiptese se fundamenta em uma antiga questo dafilosofia exposta por Plato, como hipomnsia, e que Michel Foucault2

    reativa, no final de sua vida, como questo das hypomnmata.Ns exteriorizamos na aparelhagem mnemotecnolgica contem-

    pornea, cada vez mais, funes cognitivas, e perdemos correlativamente,cada vez mais, saberes que se encontram delegados aos aparelhos e aosservios que os agenciam, os controlam, os formalizam, os modelam, mastalvez nos destruam, pois esses saberes, que nos escapam, pareceminduzir a uma obsolescncia do homem que se encontra cada vez maisdesarmado e como que esvaziado do seu interior.

    Assim, quanto mais se aperfeioam os automveis, menossabemos dirigir. O sistema GPS, ajudando hoje o motorista na sua con-duo, substitu-lo- amanh inteiramente. O GPS teleguiar o veculopor um sistema de direo automtica. Logo, medida que o sistema,que formaliza nossos esquemas sensriomotores, automatizase inversa-mente o perdemos.

    Quanto mais confiamos sries de pequenas tarefas, que for-mam a trama de nossa existncia, aos aparelhos e aos servios da inds-tria moderna, mais nos tornamos vos, mais perdemos nosso saberfaz-er (savoirfaire), nosso saberviver (savoirvivre) e, com eles, os sabores daexistncia. Somos apenas bons para consumir, cegamente, sem ossabores que somente os saberes fornecem, como que impotentes.Tornamonos incapazes, seno obsoletos, se for verdade que o saber

    2. FOUCAULT, Michel.Dits et crits II. Paris:

    Gallimard, 1994.

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  • que nos d a potncia de sermos humanos. As economias existentes, que necessitam dessas tecnologias,

    onde os comportamentos so formalizados e gerados, so caractersti-cas de uma poca hiperindustrial que reatualiza singularmente aanlise platoniciana da hipomnsia, pois, se for verdade que a industri-alizao em geral a generalizao de uma reprodutibilidademnemotecnolgica dos comportamentos motores dos produtores, ahiperindustrializao a generalizao de uma reprodutibilidademnemotecnolgica de comportamentos motores dos consumidores.

    Como o produtor, cujo gesto reproduzido e cujo saberfazer(savoirfaire) passa pela mquina, despojandoo de seu valorsaber (valeur-savoir), deixandolhe apenas sua fora de trabalho quase animal o quefaz dele o que se chama de proletrio , o consumidor roubado de seusaberviver (savoirvivre) encontrandose, simultaneamente, desindividua-do: ele apenas um poder de compra, um consumo cego que destri omundo cegamente.

    Jacques Derrida, em A farmcia de Plato3, constri a maioriade seu empreendimento de desconstruo da metafsica a partir de umaleitura de Fedro, mostrando como esse dilogo ope hipomnsia sofs-tica uma anamnsia filosfica, l onde impossvel, segundo o queDerrida descreve em De la grammatologie4 como uma lgica destesuplemento, que o rastro (trace), opor o interior a exterior: imposs-vel opor memria viva memria morta, que a hypomnematon, queconstitui a memria viva como sbia. Onde a metafsica instala oposiesestticas, preciso rearticular composies dinmicas: preciso pensarprocessualmente, e Derrida chama esse processo de diferensa5.

    Portanto, o que Scrates descreve em Fedro, qual seja, que aexteriorizao da memria uma perda de memria e de saber, o queexperimentamos hoje, no cotidiano, em todos os aspectos de nossaexistncia e cada vez mais no sentimento de impotncia, seno de inca-pacidade no momento mesmo em que a extraordinria potnciamnsica das redes digitais nos torna igualmente sensveis imensidoda memria humana, que parece ter se tornado reativvel e acessvel,infinitamente.

    Esse aparente paradoxo significa que a hipomnsia umaquesto poltica e objeto de combate: um combate por uma poltica damemria, mais precisamente, pela constituio de meios hipomnsicosdurveis. A exteriorizao da memria e dos saberes, quando atinge oestgio hiperindustrial, ao mesmo tempo o que estende o seu podersem limite e o que permite o seu controle: controle pelas indstrias cog-nitivas e culturais das sociedades de controle que formalizam a ativi-

    3. DERRIDA, Jacques.

    A farmcia de Plato.So Paulo:

    Iluminuras, 1997.

    4. Idem. De la grammatologie.

    Paris: Minuit, 1967.

    5. N.T.: Por naturezaintraduzvel em outra

    lngua, diffrance fere ocdigo ortogrfico

    francs com a substitu-io proposital do e de

    diffrence por um a [...],que a rigor s perce-

    bido visualmente naescrita [...]. Por esse

    motivo, creio ser injus-tificvel a proposta de

    algumas traduescomo diferncia,

    diferncia, diferanaou, bem melhor, difer-

    ensa[...] diffrancemarca o limite da pos-

    sibilidade de todatraduo (NASCIMEN-

    TO, Evando. Op. cit.).

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  • dade neuroqumica e as sequncias de nucleotdeos, e que inscrevem,dessa forma, os substratos neurobiolgicos da memria e dos saberes nahistria do que preciso analisar como um processo de gramatizao,onde as biotecnologias so o estgio mais recente e as nanotecnologiasa etapa seguinte, instalando plenamente a questo de uma biopoltica,uma psicopoltica, uma sociopoltica e uma tecnopoltica da memria.

    A gramatizao como histria do suplemento

    No existe interioridade que preceda a exteriorizao, muitopelo contrrio: a exteriorizao constitui o interior como tal, isto , dis-tingue-o e o configura, no sentido que Leroi-Gourhan descreve comosendo um processo de exteriorizao, no qual essa distino configu-rante, que no para de se deslocar, aciona novas relaes entre os indi-vduos psquicos e indivduos coletivos; novos processos de formao deindivduos psquicos e sociais; novos processos de individuao psquicae coletiva6.

    Quando aparecem as mnemotecnologias, o processo de exteri-orizao, que o devir tcnico, concretizase como histria da gramati-zao. O processo de gramatizao a histria tcnica da memria,onde a memria hipomnsica relana, a cada vez, a constituio de umatenso de memria anamnsica. Essa tenso anamnsica se exteriorizacomo obras de esprito, onde se configuram as pocas de individuaopsicossocial: a gramatizao o processo pelo qual os fluxos e as con-tinuidades, que tecem as existncias, so discretizados (tornados dis-cretos). A escritura, como discretizao do fluxo da palavra, umestgio da gramatizao. Ora, com a revoluo industrial, o processo degramatizao ultrapassa repentinamente a esfera da linguagem, isto ,tambm do logos, e investe a esfera do corpo. Primeiro ela discretizaos gestos dos produtores visando sua reproduo automatizada, e, aomesmo tempo, aparecem as reprodutibilidades maqunicas e apare-lhadas do visvel e do audvel, que tanto espantam Walter Benjamin.

    Essa gramatizao do gesto que a base do que Marxdescreve como proletarizao, ou seja, como perda de saberfazer(savoirfaire), que continua com os aparelhos eletrnicos e digitais,como gramatizao de todas as formas de saberes, na forma demnemotecnologias cognitivas, onde os saberes lingusticos se tornamtecnologias e indstrias do tratamento automtico das lnguas, assimtambm o saberviver (savoirvivre), isto , os comportamentos em geral,do userprofiling7 gramatizao dos afectos - o que conduz ao capital-ismo cognitivo das economias hiperindustriais de servios.

    6. SIMONDON, Gilbert.Lindividuation psy-chique et collective.Paris: Aubier, 1969.

    7. N.T.: Em ingls no original.

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  • A gramatizao a histria da exteriorizao da memria emtodas as suas formas: memria nervosa e cerebral, memria corporal emuscular, memria biogentica. Assim exteriorizada, a memria podeser objeto de controle sociopoltico e biopoltico, atravs de investimen-tos econmicos de organizaes sociais que reagenciam assim as organi-zaes psquicas por intermdio dos rgos mnemotcnicos. O nmerodesses rgos pode ser contado pelo nmero de mquinasinstrumen-tos e todos os autmatos, a compreendidos os eletrodomsticos(Adam Smith analisou, j em 1776, os efeitos da mquina sobre oesprito do trabalhador).

    por isso que o pensamento da gramatizao pede umaorganologia geral, isto , uma teoria da articulao dos rgos e senti-dos corporais (crebro, mos, olhos, tato, lngua, rgos genitais,vsceras, sistema neurovegetativo etc.), dos rgos artificiais (suportestcnicos da gramatizao) e dos rgos sociais (grupos humanos fami-liais, clnicos, tnicos, instituies e sociedades polticas, empresas eorganizaes econmicas, organizaes internacionais e sistemas soci-ais em geral, mais ou menos desterritorializados jurdicos, lingusti-cos, religiosos, polticos, fiscais, econmicos etc.).

    Se reabrirmos a questo de Fedro, na poca hiperindustrial doobjeto hipomnsico mnemotecnolgico, e do ponto de vista de umaorganologia geral (fundando uma organologia poltica, uma organologiaeconmica e uma organologia esttica), descobrimos que a hipomnsiaconstitui a primeira verso de um pensamento da proletarizao. Isso,se for verdade que o proletariado ator econmico sem saber, pois semmemria: sua memria foi passada para dentro da mquina reproduto-ra dos gestos. Gestos que esse proletariado no necessita mais saberfazer. Ele deve simplesmente servir, tornandose novamente um servo.

    Examinar a memria tcnica, hoje, reabrir o estudo da hipom-nsia como questo do proletariado e como processo de gramatizao,em que o consumidor doravante lesado em sua memria e em seussaberes: estudar o estgio da proletarizao generalizada induzida pelageneralizao das tecnologias hipomnsicas.

    A verdade de Plato estaria, nesse aspecto, em Marx. Mas istocom a condio de tirar duas concluses suplementares: 1. Marx no pensou o carter hipomnsico da tcnica e daexistncia humana, o que o fez no pensar a vida humana comoexsistncia8.

    2. A luta inaugural da filosofia contra a sofstica, em torno damemria e de sua tecnizao, est no corao da luta poltica, que aprpria filosofia; e a reavaliao da importncia da hipomnsia em

    8. N.T.: Lhomme est untant eksistant,

    cestdire un existant quiest dintelligence avec

    ltre, qui a une com-prhension pron-

    tologique de ltre.Disponvel em :

    www.larousse.fr/demo/personnage/M/MartinH

    eidegger.htm.

    28 Bernard Stiegler

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  • Plato, assim como aquela da desconstruo que prope Derrida, quedeve constituir a base de um projeto poltico renovado da filosofia ondea tcnica se torna o tema central.

    A filosofia como reao ao estgio ortottico da gramatizao

    Se for verdade que a filosofia comea com Plato, ela se con-cretiza em seu combate contra a sofstica em torno da questo damemria como mnemotcnica (hipomnsia, mas tambm retrica e tec-nologias da linguagem baseadas na logografia). A questo primeira dafilosofia a memria, isto , a episteme, concebida como anamnsia. E a poca da gramatizao que provoca essa questo filosfica: afilosofia se constitui como afirmao da anamnsia como reao contraa prtica sofstica da hipomnsia, que a escritura, definida como tec-nizao da memria lingustica e, como tal, como falso saber (Gorgias),a tcnica sendo em geral apreendida pela filosofia platoniciana comoum pseudosaber do devir, isto , do contingente, do sensvel e do aci-dental, o verdadeiro saber sendo colocado como saber do necessrio, ouseja, das essncias inteligveis do ser, enquanto imutvel.

    A gramatizao impensvel no quadro dos pares constitudospor Plato, na base da oposio entre anamnsia e hipomnsia, que oconduz a opor: o ser e o devir, a alma e o corpo; o inteligvel pensado apartir da imortalidade dessa alma e o sensvel como mortalidade docorpo, que tambm o lugar das paixes e a armadilha da queda. Tudoisso alicerado pela oposio do logos e da teckn.

    Opor memria psquica viva e memria tcnica morta induzirtoda essa srie. Inversamente, repensar a memria como processo degramatizao, onde a memria viva e a memria morta compem per-manentemente, tentar sair dessas oposies. Pensar a memria hoje,como nova questo poltica que constitui a tcnica, esboar essepasso frente.

    A questo da filosofia a do amor ao saber. Ora, esse amor aosaber constitui a prova de um amor perdido. Esse saber perdido faz dosaber um objeto do desejo, do philein, assim como do Eros. E todo obje-to do desejo um objeto j perdido: ele s desejado na medida em queele faz falta (fait dfaut). Esse saber foi perdido pela memria: amemria aparece, pela primeira vez, na filosofia de Plato, em Mnon. a que o saber definido como reminiscncia, como relembrana(ressouvenir) e como corpo tcnico, a queda mesma. Em Mnon, arelembrana o fruto da dialtica, ela mesma atividade do pensamen-to, qual Fedro ope os artifcios da hipomnsia que a afloram. Em

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  • Fedro, que retoma com o mito da alma alada, o tema que Mnon recu-sou, com o mito de Persfone, aprendemos que se trata de um saberque foi esquecido por causa da queda.

    A questo amorosa da filosofia a de um esquecimento tal queh uma anamnsia a ser completada, mas que preciso distinguir dahipomnsia dos sofistas: a memria da verdade (da idia) foi original-mente perdida. Existe, na origem, uma falta de origem. Mas essa origemno a origem verdadeira, ela apenas aquilo que Plato definiu comouma queda, prefigurando nisso a verso monotesta da falta de memriacomo desobedincia e falta, isto , como pecado original.

    A queda faz a alma cair na tcnica que a aprisiona no corpo, ecomo paixo que desencadeia a memria artificial pela qual os sofistasproduzem o pithanon, a persuaso e as falsas crenas, esquema que serepetir em Rousseau: a hipomnsia a tcnica em geral oposta anamnsia, como a alma oposta ao corpo, e isto que constitui a cenade Georgia. Nesse dilogo, a filosofia se define contra os sofistas quepretendem tudo saber pela tcnica (como polymathes), como amor deum saber perdido que exprime o irredutvel no saber de Scrates e isto que a dogmatizao do socratismo, para Plato, tender progressi-vamente apagar.

    Ora, o que constitui a questo filosfica, o objeto de seu dese-jo o saber, episteme, ou a verdade, aletheia precisamente o desejo(philein, philia, elo social na individuao, chamado justia, Um queconstitui o Ser etc.). Mas tal como este desejo constitudo pela sua tec-nicidade, enquanto tecnicidade, onde a questo sofstica d problemana Atenas do sculo V, recalcada pela filosofia. esse o n proble-mtico que traduz a oposio entre anamnsia e hipomnsia, e issoque constitui a filosofia como metafsica que se trata de desconstruirnesse aspecto.

    A memria humana epifilogentica

    queda, logo o erro, o pecado original que, para Plato, signifi-ca a falta (le dfaut) de origem que precederia uma origem plena, umainterioridade, uma alma imortal, enfim, oposio platoniciana deanamnsia e hipomnsia, a arqueologia e a paleontologia humanas per-mitem responder com uma teoria da memria, onde parece que a tec-nicidade o que constitui a vida como exsistncia, isto , como dese-jo e como saber. E isso que permite caracterizar a hominizao peloaparecimento de uma memria epifilogentica.

    O Zinjantropo, descoberto em 1959, um australopiteco data-

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  • do de 1,75 milhes de anos, cujos antecedentes bipedides, os maisantigos, seriam de 3,6 milhes de anos. Ele pesa cerca de 30 quilos. um verdadeiro bpede que tem uma reentrncia occipital exatamente naperpendicular do alto do crnio. Assim, ele possui os membros anteri-ores da motricidade liberados: eles so essencialmente dedicados fa-bricao e expresso, quer dizer, exteriorizao. Seu esqueleto foiencontrado, com seus instrumentos, na garganta de Olduvai.

    LeroiGourhan, partindo desses fatos, mostra que o que faz ahumanidade do homem e constitui uma ruptura na histria da vida oprocesso de exteriorizao tcnica do ser vivo. O que caracterizava, atento, o ser vivo, a saber, as condies de predao e de defesa, passapara fora dele: a luta pela vida, ou melhor, pela existncia, no podemais estar encurralada pela cena darwiniana. O homem leva essa luta,que poderamos chamar tambm de espiritual, por rgos no biolgi-cos, isto , por rgos artificiais, que consistem as tcnicas. Mas essavida no mais uma simples biologia, em que uma existncia, umaeconomia tcnica do desejo sustentada por meios tcnicos hipomnsicosque so tambm simblicos9.

    LeroiGourhan mostra que a tcnica um vetor de memria.Do australopiteco ao homem de Neandertal, produzse a diferenciaobiolgica do crtex cerebral que se chama abertura leque cortical. Mas,a partir deste ltimo, o sistema cortical praticamente no evolui mais:seu equipamento neuronal bastante parecido com o nosso. Ora, dohomem de Neandertal at ns, a tcnica evoluiu de maneira extra-ordinria, e isso significa que a evoluo tcnica no depende daevoluo biolgica. O espao de diferenciao tcnica se produz fora dadimenso biolgica e independente dela, fora desse meio interior noqual reinam, para Claude Bernard, os elementos constitutivos doorganismo. O processo de exteriorizao , nisto, o processo de consti-tuio de uma terceira camada de memria.

    Desde o neodarwinismo, fruto da biologia molecular, e segun-do os trabalhos de Weismann, admitese que os seres vivos sexuados soconstitudos por duas memrias: a memria da espcie, ou genoma, queWeismann nomeou grmen, e a memria do indivduo, dita somtica,que conserva o sistema nervoso central onde se deposita a memria daexperincia. Isso existe desde os moluscos do lago de Lman, quePiaget estudou, at os chimpanzs, passando pelos insetos e pelos ver-tebrados.

    O homem tem acesso a uma terceira memria que apoiada econstituda pela tcnica. Um slex talhado se forma na matriainorgnica organizada por essa talha: o gesto tcnico engrama uma

    31 Bernard Stiegler

    9. STIEGLER, Bernard.Mcrance et discrdit

    3. Lesprit perdu ducapitalisme. Paris:

    Galile, 2006.

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  • organizao que se transmite via o inorgnico, abrindo pela primeiravez, na histria da vida, a possibilidade de transmitir saberes adquiridosindividualmente, mas por uma via no biolgica. Essa memria tcnica epifilogentica; ela ao mesmo tempo o produto da experincia indi-vidual epigentica e o suporte filogentico da acumulao de saberes,constituindo o phylum cultural intergeracional.

    O escravo Mnon traa na areia a figura de um objetogeomtrico, pois seu saber procede dessa exterioridade primordial damemria. Para pensar seu objeto, ele deve exteriorizlo, organizando ainorganicidade da areia que se torna, assim, superfcie plstica, poden-do receber e conservar uma inscrio, o espao e o suporte de projeode um conceito geomtrico. Por mais efmero que ele seja, o desenhona areia pode conservar uma caracterstica de um elemento da figurapor mais tempo que o esprito do escravo, pois seu esprito essencial-mente mvel: seus pensamentos no param de passar e de se apagar.Ele retencionalmente finito. Sua memria fracassa sem cessar, suaateno est sempre sendo retirada de seus objetos para novos objetose ele tem dificuldade de intencionar o objeto geomtrico, de visualiz-lo em sua identidade orgnica, sua necessidade, sua essncia ntima:seu eidos.

    O desenho, como memria hipomnsica, indispensvel a essefilsofo em potencial, que o escravo e sua iniciativa, isto , sua anam-nsia. O desenho constitui uma bengala da razo, um espao de intu-io inteiramente produzido por gestos que o escravo traa na areia, medida que se d seu raciocnio, os efeitos figurados desse raciocnio aareia guardando como resultado a intuio e a compreenso que oescravo tem a partir dos olhos, e sobre os quais eles podem prolongare construir o raciocnio geomtrico10.

    isso o que a oposio platoniciana entre o inteligvel e o sen-svel, isto , entre o logos e a tekhn, tornar literalmente impensvelnos dilogos que seguiro Mnon e assim que se formar a metafsi-ca como denegao da tcnica original da memria.

    O cerne da questo filosfica da memria a transindividuao

    As questes filosficas so todas questes de transindividu-ao. A transindividuao o resultado do processo de coindividuaodos indivduos psquicos, no indivduo coletivo, que os rene comogrupo humano. Processo que no para de colocar e de individuar aquesto do Um e do Mltiplo11. A individuao , pois, uma operaode memorizao psquica e coletiva onde a transindividuao a

    32 Bernard Stiegler

    10. STIEGLER, Bernard.La technique et le

    temps. 3. Le temps ducinma et la question

    du maltre. Paris:Galile, 2001.

    12. A posio deSimondon sobre este

    assunto ambgua e hesitante (Cf.

    STIEGLER, Bernard.Lapolitique de

    Simondon. La RevuePhilosophique, tomo

    131, n.3, 2006.Disponvel em:

    www.cairn.info/revuephilosophique

    20063325.htm;

    11. Referncia aJacques Garelli.

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  • metaestabilizao de significaes. E, nisto, a transindividuao oque, atravs dos indivduos psquicos, individua coletivamente fundosprindividuais, eles mesmos constitudos e sustentados pelas formashipomnsicas12.

    Coloquemos que o indivduo psquico um eu, e que o indiv-duo coletivo um ns. O eu s pode ser pensado como pertencente aum ns. Ele se constitui adotando uma histria coletiva que herda e naqual se reconhece uma pluralidade de eu. Essa herana uma adoono sentido que eu posso, perfeitamente, como neto de um imigrantealemo, reconhecerme em um passado que no foi aquele de meusancestrais, e que eu posso, no entanto, tornar meu como francs oucomo americano. Esse processo de adoo estruturalmente artificial uma memria intrinsecamente artificial13.

    Essa artificialidade, que um falta original (dfaut dorigine), tambm o que abre o jogo do eu, enquanto essencialmente processo, eno um estado. Esse processo uma in-dividuao enquanto tendnciaa tornarse um, isto , indivisvel, mas essa tendncia no se realizanunca ( isso que Kant interroga em Paralogismes, na Crtica da razopura) porque ela encontra, como sistema aberto, neguentrpico edinmico, uma contratendncia com a qual ela forma um equilbriometaestvel: um equilbrio no limite do desequilbrio em um meiomnsico prindividual onde o eu se coindividua no ns.

    Isso s possvel porque esse ns igualmente um tal proces-so. A individuao do eu sempre processualmente inscrita na indivi-duao do ns, enquanto, inversamente, a individuao do ns apenasse completa atravs daquelas, processualmente polmicas, dos eu queo compem. O que liga o eu e o ns, na individuao, o meio prin-dividual segundo suas condies positivas de eficcia advindas de dispo-sitivos retencionais pelos quais ele se forma como meio mnsico. Essesdispositivos retencionais so sustentados pelo meio tcnico, que acondio do encontro do eu e do ns. A individuao do eu e do ns ,nesse sentido, igualmente individuao de um sistema tcnico (o queestranhamente Simondon no viu). O sistema tcnico um dispositivoque possui um papel especfico (onde todo objeto est preso: um obje-to tcnico s existe agenciado, no seio de um tal dispositivo, a outrosobjetos tcnicos: o que Simondon chama de conjunto tcnico).Assim, o fuzil, e mais geralmente, o devirtcnico com o qual ele faz sis-tema, a possibilidade de constituio de uma sociedade disciplinar,segundo Foucault14.

    O sistema tcnico o que sustenta a possibilidade de constitu-io de dispositivos retencionais que so resultantes do processo de

    14. Marx faz, porexemplo, timas anli-

    ses do problema dadisciplina no exrcito e

    nos atelis. A anliseque vou fazer da disci-

    plina no exrcito no seencontra em Marx. O

    que aconteceu no exr-cito a partir do sculo

    XVI e no comeo dosculo XVII at, pratica-mente, o fim do sculo

    XVIII? Uma enormetransformao que fez

    que, no exrcito, atento constitudo

    essencialmente depequenas unidades de

    indivduos relativamen-te intercambiveis, or-ganizados em torno deum chefe, essas unida-

    des fossem substi-tudas por uma grande

    unidade piramidal, comuma srie de chefes

    intermedirios, subofi-ciais e tcnicos. Isso,

    porque uma descobertatcnica havia aconteci-

    do: o fuzil relativa-mente rpido e ajust-

    vel (FOUCAULT,Michel.Op. cit., p. 1006).

    33 Bernard Stiegler

    e Idem. Nanomutaes,

    hypomnta, grammatisation.

    Revue Nanomutations.2006. Disponvel em:

    www.cairn.info/revuephilosophique

    20063325.htm.

    13. RENAN, Ernest.Quest ce quune

    nation? Paris: Presses Rocket, 1992.

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  • gramatizao: este desabrocha no seio do processo de individuao dosistema tcnico. Os dispositivos retencionais dos meios mnsicos, quegeram cada novo estgio da gramatizao, so o que condiciona osagenciamentos entre a individuao do eu e a individuao do ns, emum mesmo processo de individuao psquica, coletiva e tcnica (isto ,mnsica, onde a gramatizao um subsistema da tcnica); um proces-so que comporta trs ramificaes, e cada ramo se divide, ele mesmo,em subconjuntos processuais (por exemplo, o sistema tcnico, em seindividuando, individua tambm os sistemas mnemotcnicos oumnemotecnolgicos onde bifurcam os estgios da gramatizao etc.)15.

    Antes mesmo da filosofia (chegada tardiamente), a questo dosprimeiros pensadores prsocrticos (simultaneamente gemetras, fisil-ogos, poetas e legisladores nomotetas) a que articula o Mltiplo,que constitui a massa de cidados, vrios eu, ao Um que ele se chamegua (Thales) ou ser (Parmnides) que funda o ns, at seu mais vastohorizonte, como universal. A questo poltica que se forma, assim, adas condies da metaestabilizao das leis jurdicas, mas tambmepistmicas, enquanto horizonte comum, isto , transindividual das sig-nificaes vindas da individuao psicossocial, que os filsofos pensamcomo eid, idealidades.

    O comeo do pensamento prsocrtico o aparecimento dopensamento do Um e do Mltiplo, no momento em que a gramatizao,que conduziu alfabetizao, abre a krisis da qual surge esse novoprocesso de individuao psquica e coletiva, que a polis que substi-tui a sociedade baslica do padrerei. De Thales a Plato, essa krisisinaugura a era do pensamento crtico, isto , tambm poltico, comoprocesso de individuao psicossocial: processo onde o cidado se dis-tingue do grupo como estruturalmente inacabado e em devir, precisa-mente por essa distino onde ele se destaca como singularidade dedireito.

    Esse pensamento polticofilosfico do Um e do Mltiplo o datransindividuao como tal a partir de Plato que funda assim ametafsica, como mnm, atravessada pela tekhn, isto , ao mesmotempo, como anamnsia e hipomnsia. A questo filosfica passandopela krisis sofstica, e saindo assim da poca prsocrtica entosaber em quais condies possvel transindividuar na artificialidade. Ea transindividuao a questo do esprito tal como ele se tornarprincpio da unidade do monotesmo cristo. Quando o Um se torna oSer, esse se divide em regies que constituem disciplinas: os saberesfundados nas ontologias regionais, para falar como Husserl16.

    34 Bernard Stiegler

    15. FOUCAULT, Michel.La technique et le

    temps 4. Symboles etdiaboles, ou la guerre

    des esprits. Paris:Galile, 2002.

    16. HUSSERL, Edmund.Recherches logiques.

    Paris: PUF, 1996.

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  • Eles definem o que se transindividua entre o psquico e o cole-tivo e a legalidade dessa transindividuao, segundo os regimes de indi-viduao que formam tambm paridades (dos coletivos de pensamentoe dos ns transcendentais, sempre para falar como Husserl).

    As ontologias regionais so, conforme as regras, fundamentaisda transindividuao que define a ontologia formal da lgica e/ ou dametafsica, e esta , por sua vez, como metatransindividuao, a queresulta da individuao filosfica.

    As operaes tramam a histria da metafsica tal como ela foi,diferentemente, desconstruda desde Marx at o pensamento da grama-tologia, passando por Freud. Mas, alm dessa desconstruo e aqum(como na era prsocrtica), a questo da individuao permaneceprimeira, e a da transindividuao na tenso anamnsica do Um doMltiplo permanece o objeto da filosofia propriamente dita17. por issoque a filosofia no terminou.

    A transindividuao como reteno

    A transindividuao como atividade da memria, sendo psicos-social, mostra que toda memria uma questo de seleo e, inversa-mente, que toda seleo uma questo de memria. Quando eu sele-ciono (por exemplo, quando eu falo ou eu calo o que no falo), eu con-stituo uma memria, quer dizer que eu transindividuo ou eu participode um processo de transindividuao.

    Pensar essa seleo necessita passar pela fenomenologiahusserliana do objeto temporal (Zeitobjekt) e da crtica por onde pareceque a transindividuao, onde o psquico e o coletivo se conjugam,acontece nas condies organolgicas de retenes tercirias formadaspelos suportes hipomnsicos dos meios prindividuais. A epifilognese o processo de produo dessas retenes tercirias hipomnsicas, com-portando as retenes primrias e secundrias definidas por Husserl, eque formam a trama da vida anamnsica.

    A reteno primria, assim como sua distino da retenosecundria, a que Husserl retira de uma anlise fenomenolgica damelodia. No agora de uma melodia, isto , no momento presente de umobjeto musical que transcorre, a nota presente somente pode ser umanota, e no um som, na medida em que ela retm nela a nota prece-dente, que permanece presente, nota precedente ainda presente queretm nela, por sua vez, aquela que a precede etc. E preciso no con-fundir essa reteno primria, que pertence ao presente da percepo,com a reteno secundria, que a melodia que eu escutei, por exem-

    35 Bernard Stiegler

    17. Descrever o que euchamo, em Mcrance

    et discrdit 1. La dcadence des dmocra-

    ties industrielles, deregimes de consistncia,

    descrever regimes de transindividuao,

    onde o que permitetransindividuar as

    existncias so justa-mente as consistncias

    (Cf. STIEGLER,Bernard. Mcrance

    et discrdit.1. La dcadence des

    dmocraties industrielles. Paris:

    Galile, 2004).

    01 Bernard Stiegler 17.02.10 14:19 Page 35

  • plo, ontem, e que eu posso reescutar na imaginao pelo jogo da lem-brana, e que constitui o passado de minha conscincia. preciso noconfundir, diz Husserl, percepo (reteno primria) e imaginao(reteno secundria).

    Mas existe uma terceira espcie de reteno, e ela hipomnsi-ca. Antes da inveno do fongrafo, era absolutamente impossvel escu-tar, duas vezes seguidas, a mesma melodia. Ora, desde a apario dofonograma, que um caso de reteno terciria, e um estado da grama-tizao, isto , uma poca do suplemento, a repetio idntica de ummesmo objeto temporal se tornou possvel, o que permite, alis, melhorcompreender os processos retencionais. E o que aparece como resulta-do :

    Quando o mesmo objeto temporal acontece duas vezesseguidas, ele gera dois fenmenos temporais diferentes, oque quer dizer que as retenes primrias variam de umfenmeno para outro: as retenes da primeira audio,tornadas secundrias, atuam na seleo das retenesprimrias da segunda audio. Isso verdade, em geral,mas a reteno terciria, que o fonograma, torna-a evi-dente. A repetio hipomnsica produz uma diferena. Por outro lado, os objetos temporais terceirizados (fono-grama, filmes, emisses radiofnicas e televisivas), grava-dos ou teletransmitidos, e nisto controlados, so o tempomaterializado que sobredetermina as relaes entreretenes primrias e secundrias em geral e permitem,assim, controllas. A diferena tanto pode ser intensificadapela repetio terciria quanto anulada por ela: a repetiopode gerar indiferena.

    O jogo das retenes primrias e secundrias, anamnsico,sendo o de uma seleo, mas uma seleo tal que ela determinadapelas retenes tercirias hipomnsicas, o que constitui a realidadeconcreta de toda operao de transindividuao18. E o pensamento dareteno terciria, uma histria do suplemento como gramatizao,advm da organologia geral onde a histria do suplemento s pens-vel em sua tripla dimenso fisiolgica, tcnica e social19.

    Em termos de filosofia poltica, tratase de descrever e decriticar (de discernir, krinein) os processos concretos de transindividu-ao. Por exemplo, o jurdico um processo concreto de transindividu-ao concreto significando que ele pertence a uma poca da grama-tizao que o determina. Produzir uma lei transindividuar ao p da

    36 Bernard Stiegler

    19. Mostrei alhurescomo os trs nveis

    organolgicos se arti-culam com as trs for-

    mas de retenes, ecomo as trs snteses

    da imaginao tran-scendental, que Kant

    estabelece na Crtica darazo pura, so consti-tudas por uma quarta

    sntese prottica e aposteriori.

    18. A anamnsia deveser pensada desta

    forma, com o conceitoaristotlico de ato, de

    energeia e de ent-elecheia: a partir de um

    par no oposicional doato e da potncia, onde

    a potncia forma oprindividual, ultrapas-

    sando a oposio daforma e da matria

    resultante de umesquema hilemrfico,

    como mostraSimondon.

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  • letra e o incio recente de gravaes da imagem sonora em movimen-to, em processos judicirios, coloca novas questes sobre a transindi-viduao jurdica.

    Esta transindividuao se faz segundo leis constitucionais, nosentido filosfico, isto , leis constitudas por uma lgica transcenden-tal. E a filosofia poltica consiste em descrever as legalidades que per-mitem a transindividuao do jurdico, a partir desta constituio quecondiciona tambm as matemticas etc. Ora, levar em considerao ahipomnsia na formao da anamnsia torna impossvel e caduca acompreenso transcendental, isto , a priori, da constituio. E no por simples coincidncia que a filosofia, como rainha das cincias,entre em crise no momento em que novos estados da gramatizaoaparecem, e estes no mais somente aqueles da letra.

    Em se tratando de filosofia poltica, importa saber quem seapropria e quem controla os processos de transindividuao denomina-dos metatransindividuantes e que permitem controlar as metatransfor-maes socioeconmicas e sociopolticas, atravs das hipomnsias pr-prias a cada poca da gramatizao as metatransindividuaes sendodeterminadas pelas caractersticas tcnicas ou tecnolgicas das reten-es tercirias.

    Dizendo de outra forma, o e da individuao psquica e coletiva,onde se formam as condies de transindividuao, a tcnica e pre-cisamente isto que a filosofia havia, at agora, excludo. por isso que preciso constituir um novo horizonte filosfico, onde a tecnicidade este-ja no corao da transindividuao. Esse caminho, que passa pela des-construo, no para a: esta no um impasse, mas a condio de quese faa uma histria tcnica do suplemento concebido como reteno ter-ciria no processo de individuao de uma organologia geral20.

    Capitalismo e gramatizao do desejo

    A memria trabalha, e seu trabalho, que se parece com o doluto, idealiza seus objetos. Esta idealizao espontnea (entendida aquino sentido freudiano) uma condio da transindividuao. Mas, poroutro lado, a transindividuao, como processo de produo de signifi-caes, supe a ideao. H ideao quando h linguagem, comomostram as Recherches logiques de Husserl21. Assim que aparece ologos, o trabalho da memria, como trabalho transindividual do espri-to, passa da ideao idealizao pela elaborao conceitual entendidacomo anamnsia: a dianoia como skhol, como mlt, como otium.Mas no possvel opor a anamnsia hipomnsia, e por isso que

    37 Bernard Stiegler

    20. Nietzsche, pensadordo rastro (trace) e da

    inscrio, na segundadissertao da

    Gnalogie de la morale, o filsofo que introduz

    a questo da genea-lgica e nisto organo-

    lgica da seleo. Freudfaz disso a questo do

    inconsciente, o proble-ma que o pensamento

    freudiano no chega apensar as retenes

    tercirias, logo, nem atcnica, o que o leva auma fabulao neola-

    markiana. Bergson,pelo privilgio que d

    ao tempo, que ele opeao espao, fabrica um

    par oposicional dife-rente daquele de

    Husserl. Este ope areteno primria s

    retenes secundrias,mas exclui as retenes

    tercirias pelo mesmomotivo, a saber, elas

    so espaciais e notemporais. Deleuze

    permanece preso aopar oposicional bergso-

    niano que ele ope aopar oposicional husser-

    liano. Desse ponto devista, Deleuze mais

    bergsoniano quenietzscheano. Os tra-

    balhos de BrbaraStiegler (Nietzsche et la

    critique de la chair.Paris: PUF, 2005)mostram que, em

    Nietzsche, as relaesentre apolneo e dioni-

    saco j deixam de ladoas questes de tcnicae de indstria. Ao con-trrio, um pensamento

    como o de Bergson, quedomina ainda Deleuze,

    no pode colocar aquesto da tcnica

    como se v, por exemp-lo, em Le diagramme. A

    partir da, sua crticadas sociedades de con-

    trole desesperada.

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  • Foucault22 pode mostrar que o otium uma prtica das hypomnmata.No entanto, preciso de novo analisar o discurso de Plato

    sobre as hypomnmata e a hipomnsia, como fatores de perda de saber.Do ponto de vista de uma histria da gramatizao, Fedro antecipa asquestes que reaparecem em O Capital. So questes de uma econo-mia poltica da memria. Fedro diz que a memria pode se proletarizar,que a lhipomnsia, como exteriorizao, uma desindividuao, e queessa questo poltica (ento a questo da sofstica).

    Hoje, o controle industrial da memria pelas hypomnmata,que so as mnemotecnologias, constitui uma perda de saberviver(savoirvivre), tanto quanto de saberfazer (savoirfaire), e uma perda desaberes tericos (de transindividuao das idealidades). No estado atualda hegemonia que o capitalismo financeiro exerce sobre as tecnologiashipomnsicas, e das quais ele faz tecnologias de controle retencional,ns perdemos o poder de transindividuar.

    Se individuar individuar o grupo: o transindividuar e setransindividuar. Reciprocamente, no acessar a transindividuao,perder o poder e o saber de transindividuar se desindividuar arrui-nar a psique e a precipitar para a psicose.

    Os gregos pensavam no interior de um processo de individu-ao psquica e coletiva fundado na letra como reteno terciriaortottica: a transindividuao, a, torna-se hegemonicamente literal noque os meios simblicos, que so tambm mnsicos, so todos determi-nados pela hipomnsia alfabtica que rege a cidadania.

    A memria objetivada alfabtica ortottica (orthots significaexatido), uma vez que ela permite engramar sem ambiguidade uma sig-nificao lingustica pelo princpio de uma decomposio (anlise) e deuma recomposio (sntese) fontica. Interiorizada pelos locutores, elagera uma nova relao com a lngua e, consequentemente, um novoprocesso de transindividuao de significaes: ela coloca o sentido prova de uma nova diferensa (no sentido de Derrida).

    A identificao textual dos enunciados, isto , sua objetivaohipomnsica, gera uma intensificao de sua subjetivao: de sua indi-viduao anamnsica. Mas, ao mesmo tempo, o que salienta Plato,o controle hipomnsico da letra permite tambm a logografia, isto , oconjunto de tcnicas da linguagem que consiste em manipular aopinio pelo pithanon (a arte de persuadir) curtocircuitando a anam-nsia, que a transindividuao, e que Plato chama de dialtica que, antes de tudo, um dilogo.

    No sculo XIX, com os primeiros aparelhos de gravaoanalgicos, aparecem as engramagens ortotticas mnemotecnolgicas.

    38 Bernard Stiegler

    21. HUSSERL, Edmund.Op. cit.

    22. FOUCAULT, Michel.Lcriture de soi.

    Dits et crits.Paris: PUF, 1996.

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  • Os aparelhos mnemotecnolgicos se tornam numricos nasegunda metade do sculo XX. As mnemotcnicas e as mnemotecnolo-gias ortotticas digitais permitem, simultaneamente, intensificar a indi-viduao e, ao mesmo tempo, control-la no sentido de uma desindivid-uao. Assim, as formas da hypomnmata analgicas e digitais relanamas mais velhas questes da filosofia no contexto capitalista e mer-cadolgico que a atividade mercantil dos sofistas sem dvida prefigura,mas onde a dimenso industrial introduz novas questes, pois a inds-tria um novo estado da gramatizao.

    A gramatizao dos meios mnsicos e simblicos, pelos apare-lhos tecnolgicos, produzse de fato, enquanto a mquinainstrumentodesenvolve uma outra forma de ortotese pelo controle dos gestos, logo,do corpo. Onde as hipomnsias literais controlavam, desde aAntiguidade, as funes intelectivas do esprito, as hipomnsias audio-visuais controlaro suas funes sensitivas, a partir do sculo XX. Ashipomnsias, no incio da revoluo industrial, controlavam repro-duzindo a motricidade do gesto. A fotografia e o cinema participamdesta gramatizao do gesto. O controle do trabalho, pela organizaocientfica do trabalho, que se apoia na gramatizao teorizada porFrederick W. Taylor, em Principles of scientific management23.O gestogramatizado um gesto tercirio: sua reproduo maqunica intervmcomo reteno terciria na atividade motora de produo. Sempre exis-tiu reteno terciria na atividade motora de produo. o que fazaparecer o que se chama, para a prhistria, tecnologia experimentalaplicada reconstituio da talha dos slex de Neandertal. Mas todo omanagement24, advindo da teoria tayloriana do trabalho, um pensa-mento e um controle do gesto por um tipo de reteno terciriaortottica e maqunica, que constitui uma hipomnse do gesto peloqual o trabalhador transformado em proletrio e privado de seussaberes.

    Os aparelhos analgicos, e depois digitais, que se desenvolvem nalinhagem do maquinismo industrial e das mquinasinstrumentos, afe-tam no somente os modos de produo, mas tambm os modos de con-sumo. Acontece a um novo estado de exteriorizao de saberes e dehipomnsia, que constitui o processo de proletarizao generalizada comoperda de saberes. A gramatizao literal posta a servio da concepo, agramatizao dos gestos a servio da produo e a gramatizao dos senti-dos a servio do consumo. Esse capitalismo cognitivo e cultural constituiuma nova organizao hipomnsica integrada, que permite o controle detodas as formas de movimento, isto , de emoo e, a, de inconsciente.

    Os corpos, no processo de individuao seja o corpo do pro-

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    23. Vrias edies,1911.

    24. N.T.: em ingls no original.

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  • dutor controlado pelo gesto ou o corpo do consumidor controlado pelossentidos aparecem quando se formam os pensamentos nietzscheano efreudiano do desejo e da pulso, como fenmenos surgindo do incons-ciente; significa que, no momento em que vivemos, o reaparecimento daanamnsia e da hipomnsia, como telecracia, e nas formas que tomaramuma dimenso industrial e tecnolgica colossal e mundial, o cerne daquesto que a sofstica coloca filosofia, democracia, uma reelabo-rao da questo do desejo, enquanto ele mesmo constitudo ou desti-tudo hipomnesicamente e segundo estados de gramatizao.

    O processo de individuao a economia do que, desde Freud,chamase de desejo: a economia libidinal. Freud no soube articular umpensamento da hipomnsia em psicanlise, embora seu pensamento sejao da anamnsia, como mostrou to bem Jean Franois Lyotard: umaanamnsia pensada a partir do narcisismo, do ideal do eu e da subli-mao como poderes de transformao das pulses animais e, em par-ticular, da pulso sexual, em um poder de individuao e de transfor-mao espiritual do psiquismo e do coletivo, pela constituio de umprocesso de transindividuao, que Aristteles chamou de philia, emoutras palavras, amor.

    A questo que nos hoje colocada como poltica da memria a de uma poltica do desejo, isto , uma poltica do inconsciente. Oinconsciente o que articula corpos sobre retenes tercirias esuportes hipomnsicos, constituindo o corpo como poder tcnico, isto ,como poder da imaginao, como potncia do fantasma. Pensar hoje aquesto da memria, tal como ela foi originalmente exteriorizada e per-mite, ao mesmo tempo, intensificar a individuao e produzir desindivi-duao por perda de saber e por proletarizao, reelaborar um pensa-mento hipomnsico e anamnsico da economia, em geral, dos saberes,na medida em que estes so formas da libido.

    Em nossa poca tal o carter eminentemente estranho einquietante do capitalismo contemporneo , os saberes so destrudose, atravs deles, a libido tambm destruda, por uma exteriorizao,permitindo um controle e uma intensificao dos processos pulsionais,em detrimento da economia libidinal, isto , da anamnsia: o capitalis-mo consumista, mimtico, gregrio e pulsional reativa as tcnicas sofs-ticas a um ponto incomparavelmente mais potente e perigoso, sendouma verdadeira gramatizao do desejo, constituindo um limite para oqual, evidente, que esse capitalismo caminha, para seu desmorona-mento e para sua autodestruio, se nada acontecer para mudar esseestado de fato.

    Procura-se, desde ento, acionar programas de busca da econo-

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  • mia hipomnsica do desejo que permitem as mdias digitais. Estes soportadores de possibilidades anamnsicas, assim como hipomnsicas deindividuao e de transindividuao totalmente inditas. Tratase depensar as hypomnmata digitais e as novas formas de otium que podem aaparecer e fundar uma nova economia poltica da memria e do desejo.

    Bernard Stiegler, diretor do Instituto de Pesquisa e Inovao do Centre Georges Pompidoue professor na Universit de Technologie de Compigne, filsofo e Doutor pela cole desHautes Etudes en Sciences Sociales, Paris. Foi diretor de programa do CollgeInternational de Philosophie, diretor adjunto do Institut National de l'Audiovisuel (INA),diretor do IRCAM, e diretor do departamento de desenvolvimento cultural do CentreGeorges Pompidou, Paris.

    Traduo de Maria Beatriz de Medeiros.

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