01 - DARNTON, Robert. O que é a história dos livros

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  • 5/14/2018 01 - DARNTON, Robert. O que a hist ria dos livros

    7o QUE E A HISTORIA DOS LIVROS?

    Histoire du livre na Franca, Geschichte des Buchwesens na Ale-manha, history of books ou of the book nos paises de lingua inglesa -o nome varia de lugar para lugar, mas por toda parte ela esta sendoreconhecida como uma nova disciplina importante. Ate se poderia cha-mar de his tori a social e cultural da comunicacao impressa, se nao fosseurn nome tao comprido, pois sua finalidade e entender como as ideiaseram transmitidas por vias impressas e como 0 contato com a palavraimpressa afetou 0 pensamento e comportamento da humanidade nosultimos quinhentos anos. Alguns historiadores do livro buscam seu ob-jeto no periodo anterior a invencao do tipo movel. Alguns estudiosos daimprensa se concentram em jornais, folhetos e outras formas alem dolivro. Pode-se estender e ampliar 0 campo de muitas maneiras, masde modo geral ele trata de livros desde a epoca de Gutenberg, sendouma area de pesquisa que se desenvolveu com tanta rapidez nos ulti-mos anos que e provavel que conquiste urn lugar ao lado de camposcomo a historia da ciencia e a historia da arte, no elenco das disciplinasacademicas,

    Qualquer que seja 0 futuro da his tori a dos livros, seu passadomostra como urn campo de conhecimento pode assumir uma identi-dade acadernica distinta. Ela surgiu da convergencia de divers as disci-plinas num conjunto com urn de problemas, todos relacionados com 0processo de comunicacao. Inicialmente, os problemas tomaram a for-ma de questoes concretas em ramos do conhecimento sem relacao entresi: quais foram os textos originais de Shakespeare? 0 que causou a

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    Revolucao Francesa? Qual e a ligac;aoentre a cultura e a estratificacaosocial? Ao trabalharem nessas questoes, os estudiosos viram que esta-yam se cruzan do nos mesmos caminhos, numa terra de ninguem si-tuada na interseccao de meia duzia de campos de estudo. Decidiramconstituir urn campo proprio e convidar historiadores, estudiosos daliteratura, sociologos, bibliotecarios e todos os que quisessem entendero livro como uma forca na historia. A historia dos livros comecou a terseus proprios periodicos, centros de pesquisa, conferencias e circuitosde palestras. Congregou tanto os mais velhos do cIa quanto os jovensradicais. E, embora ainda nao tenha criado senhas, codigos secretospara 0 aperto de maos ou uma populacao propria de doutores, seusadeptos podem se identificar pelo brilho nos olhos. Pertencem a mesmacausa, urn dos poucos setores nas ciencias humanas com espirito extro-vertido e uma lufada de ideias novas.Naturalmente, a historia da historia dos livros nao comecou on-tern. Ela se esterrde ate a cultura da Renascenca, se nao antes; e co-mecou a serio no seculo XIX, quando 0estudo dos livros como objetosmateriais levou ao crescimento da bibliografia analitica na Inglaterra.Mas 0 trabalho contemporaneo representa urn desvio das correntesestabelecidas de estudos na area, cujas origens .podem ser remontadasao seculo XIX, passando pelos antigos mimeros de The Library e Bor-senblatt fur den Deutschen Buchhandel ou pelas teses na Ecole desChartes. A nova corrente se desenvolveu nos anos 1960 na Franca, ondese enraizou em instituicoes como a Ecole Pratique des Hautes Etudes,sendo divulgada em publicacoes como L'apparition du livre (1958), deLucien Febvre e Henri-Jean Martin, eLivre et societe dans la France duXV/lIe siecle (2 v., 1965 e 1970), de urn grupo ligado a VIe Section daEcole Pratique des Hautes Etudes.Os novos historiadores do livro inseriram 0 tema dentro do Iequede assuntos estudados pela escola dos Annales de historia socio-econc-mica. Ao inves de se deterem em detalhes da bibliografia, tentaramdescobrir 0modelo geral da producao e consumo do livro ao longo degrandes periodos de tempo. Compilaram estatisticas a partir de solici-tacoes de privileges (uma especie de direito de publicacao), analisaramo conteiido de bibliotecas particulares e mapearam correntes ideolo-gicas atraves de generos pouco lembrados, como a bibliotheque bleue(brochuras primitivas). Nao se interessavam por livros raros e edicoesde luxo; pelo contrario, concentraram-se no tipo mais comum de livros,porque queriam descobrir a experiencia literaria dos leitores comuns.Colocaram fenfimenos eonhecidos como a Contra-Reform a e 0 Ilumi-nismo sob urn angulo poueo conhecido, mostrando 0 quanto a eultura

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    tradicional ultrapassava a cultura de vanguarda no consumo literariode toda a sociedade. Embora nao apresentassem urn conjunto solido deconclusoes, eles demonstraram a importancia de levan tar novas ques-toes, de usar novos rnetodos e acrescentar novas Iontes.'

    o exemplo deles se difundiu por toda a Europa e Estados Unidosfortalecendo tradicoes locais, como os estudos da recepcao na Ale-manha e a historia da imprensa na Gra-Bretanha. Reunidos pela suaparticipacao num mesmo empreendimento e animados pelo entusiasmopor novas ideias, os historiadores do livro comecararn a se encontrar,primeiro em cafes, depois em conferencias. Criaram novos periodicos- Publishing History, Bibliography Newsletter, Nouvelles du livreancien, Revue francaise d'histoire du livre (nova serie), Buchhandels-geschichte e Wolfenbiitteler Notizen zur Buchgeschichte. Fundaramnovos centros - 0 Institut d'Etude du Livre em Paris, 0 ArbeitskreisfUr Geschichte des Buchwesens em Wolfenbiittel, 0 Center for the Bookna Biblioteca do Congresso. Coloquios especiais - em Genebra, Paris,Boston, Worcester, Wolfenbiittel e Atenas, para citar apenas algunsque se realizaram no final dos anos 70 - divulgaram suas pesquisas emescala internacional. No curto periodo de vinte anos, a historia doslivros se t01nou urn campo de estudos rico e diversificado.

    Tao rico, de fato, que agora, mais do que urn campo, parece umaexuberante floresta tropical. 0 explorador mal con segue atravessa-la.A cada passo, ele se ve emaranhado numa densa vegetacao de artigosde revistas, e fica desorientado com 0 entrecruzamento de disciplinas- a bibliografia analitica apontando nesta direcao, a sociologia doconhecimento naquela outra, enquanto a historia, a literatura inglesae a literatura comparada delimitam territories que se sobrepoern. Ele eassediado por pretensoes a novidade - "la nouvelle bibliographie ma-terielle"; "the new literary history" - e se ve desconcertado com meto-dologias rivais, que the dizem para cotejar edicoes, com pilar estatis-ticas, decodificar a lei dos direitos autorais, percorrer milhoes de ma-nuscritos, arfando junto a barra de uma imprensa com urn recons-truida, psicanalisar os processos mentais dos leitores. A historia doslivros ficou tao povoada de disciplinas auxiliares que ja nao e possiveldistinguir seus contornos gerais. Como 0 historiador do livro poderianegligenciar a historia das bibliotecas, das edicoes, do papel, 90S tipose da leitura? Mas como ele pode dominar suas tecnologias, principal-mente quando aparecem em imponentes forrnulacoes estrangeiras,como Geschichte der Appellstruktur e Bibliometrie bibliologique? E 0que basta para que a pes soa sinta vontade de se recolher a uma sala delivros raros, para ficar contando as marcas-d'agua,

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    Para conseguir uma certa distancia dessa correria interdisciplinare enxergar 0 objeto como um todo, talvez caiba propor um modelogeral para analisar como os livros surgem e se difundem entre a socie-dade. Evidentemente, as condicoes variaram tanto de lugar para lugare de epoca para epoca, desde a invencao do tipo movel, que seria toloesperar que todas as biografias dos livros se encaixassem num mesmomodelo. Mas, de modo geral, os livros impressos passam aproximada-mente pelo mesmo ciclo de vida. Este pode ser descrito como um cir-cuito de comunicacao que vai do autor ao editor (se nao e 0 livreiro queassume esse papel), ao impressor, ao distribuidor, ao vendedor, e chegaao leitor. 0 leitor encerra 0 circuito porque ele influencia 0 autor tantoantes quanto depois do ato de composicao. Os proprios autores sao lei-tores. Lendo e se associando a outros leitores e escritores, eles formamnocoes de genero e estilo, alem de uma ideia geral do empreendimentoliterario, que afetam seus textos, quer estejam escrevendo sonetos sha-kespearianos ou instrucoes para montar urn kit de radio. Um escritor,em seu texto, pode responder a criticas a seu trabalho anterior ou ante-cipar reacoes que serao provocadas por esse texto. Ele se dirige a leito- res implicitos e ouve a resposta de resenhistas explicitos. Assim 0 cir-cuito percorre um ciclo completo. Ele transmite mensagens, transfor-mando-as durante 0percurso, conforme passam do pensamento para 0texto, para a letra impressa e de novo para 0pensamento. A historia dolivro se interessa por cada fase desse processo e pelo processo como umtodo, em todas as suas variacoes no tempo e no espaco, e em todas assuas relacoes com outros sistemas, economico, social, politico e cultu-ral, no meio circundante.Euma grande empreita. Para manter suas tarefas dentro de pro-porcoes exeqiiiveis, os historiadores do livro geralmente recortam umsegmento do circuito de comunicacoes e analisam-no segundo os proce-dimentos de uma unica disciplina - a impressao, por exemplo, queestudam atraves da bibliografia analitica, Mas as partes nao adquiremseu significado completo enquanto nao sao relacionadas com 0 todo,e, se a historia do livro nao pretende se fragmentar em especializacoesesotericas isoladas entre si por tecnicas misteriosas e incompreensoesmutuas, parece necessaria alguma visao holistica do livro como meio decomunicacao. 0 modelo mostrado na figura 1 apresenta uma maneirade visualizar 0 processo completo de comunicacao. Com pequenasadaptacoes, ele se aplicaria a todos os periodos da historia do livroimpresso (os manuscritos e as ilustracoes de livros terao de ser consi-derados em outra ocasiao), mas eu gostaria dediscuti-lo em relacao aoperiodo que conheco melhor, 0seculo XVIII, e aborda-lo fase por fase,

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    mostrando como cada fase est a ligada a: (1) outras atividades que umadeterminada pessoa desenvolve num determinado ponto do circuito:(2) outras pessoas no momenta temporal em outros circuitos; (3) outraspessoas em outros pontos no mesmo circuito; (4) outros elementos nasociedade. As tres primeiras consideracoes se referem diretamente atransmissao do texto, ao passo que a ultima diz respeito a influenciasexternas, que podem variar ao infinito. Por uma questao de simplici-dade, reduzi-as as tres categorias gerais no centro do diagrama.

    Os modelos tern uma tendencia a congelar os seres humanos forada historia. Para dar urn pouco de vida a este modelo e mostrar comoele pode explicar urn exemplo real, you aplica-lo a historia editorialdas Questions sur l'Encyclopedie, de Voltaire, uma obra importantedo Iluminismo que afetou a vida de muitos livreiros do seculo XVIII.Pode-se estudar 0 circuito de sua transrnissao em qualquer ponto -por exemplo, no estagio de composicao, quando Voltaire deu forma aotexto e orquestrou sua divulgacao para promover sua campanha contraa intolerancia religiosa, conforme mostraram seus biografos: no estagiode impressao, onde a analise bibliografica contribui para estabelecer 0mimero de edicoes: ou no ponto de sua penetracao nas bibliotecas,onde, segundo estudos estatisticos de historiadores literarios, as obrasde Voltaire ocupavam uma parcela impression ante do espaco nas es-tantes.? Mas eu gostaria de considerar 0elo menos familiar no processode difusao, 0 papel do vendedor de livros, tomando como exemploIsaac-Pierre Rigaud de Montpellier, e passando pelas quatro conside-racoes acima mencionadas. 3

    1. Em 16 de agosto de 1770, Rigaud encomendou trinta exem-plares da edicao in-octavo das Questions, em nove volumes, que a So-ciete Typographique de Neuchatel (STN) comecara a imprimir no prin-cipado prussiano de Neuchatel no lade suico da fronteira entre a Francae a Suica, Normalmente, Rigaud preferia ler pelo menos algumas pagi-nas de urn livro novo, antes de te-Io em estoque, mas, no caso das Ques-tions, ele achava que era urn negocio tao segura que se arriscou a fazeruma encomenda bastante grande, mesmo sem te-Ias visto. Ele nao nutrianenhuma simpatia pessoal por Voltaire. Pelo contrario, deplorava a ten-dencia do filosofoem brincar com seus livros, acrescentando e corrigindopassagens, enquanto cooperava com edicoes pirate adas pelas costas doseditores originais. Essa pratica gerava reclamacoes dos clientes, que sequeixavam de receber textos inferiores (ou nao suficientemente auda-ciosos). "E espantoso que no final de sua carreira M. de Voltaire naoconsiga se abster de enganar os livreiros", protestou Rigaud a STN.

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    Nao teria importancia se todas essas pequenas astucias, frau des e trapa-cas fossem atribuidas ao autor. Mas. infelizmente. sao os editores e aindamais os vendedores a varejo que geralmente sao considerados como osresponsaveis."

    Voltaire dificultava a vida para os livreiros. mas vendia bern.Nao havia nada de voltairiano na maioria dos outros livros na loja

    de Rigaud. Seus catalogos de vendas mostram que ele se especializoubastante em livros medicos. que sempre tinham demanda em Mont-pellier, gracas a famosa faculdade de medicina. Rigaud tam bern man-tinha uma linha discreta de obras protestantes. pois Montpellier fi-cava em territorio huguenote. E, quando as autoridades estavam ocu-padas em outras coisas, ele trazia alguns carregamentos de livros proi-bides." Mas, de modo geral, atendia aos c1ientes com todos os tiposde livros, tirados de uma relacao que valia pelo menos 45 mil librasfrancesas, a maior de Montepellier e provave1mente de todo 0 Langue-doc, segundo urn relatorio do subdelegue do intendente.>

    A encomenda de Rigaud a STN ilustra 0 feitio de seu negocio.Ao contrario de outros grandes comerciantes do interior. que, ao fare-jarem urn best-seller, especulavam com cern ou mais exemplares do1ivro, raramente ele encomendava mais do que meia duzia de exempla-res de uma mesma obra. Lia muito, consultava seus c1ientes, fazia son-dagens em sua correspondencia comercial e estudava os catalogos que aSTN e seus outros fornecedores the enviavam (em 1785. 0 catalogo daSTN arrolava 750 titulos). Entao escolhia cerca de dez titulos e enco-mendava apenas 0 mimero de exemplares suficientes para formaremuma carga de 50 libras, peso minimo do frete ao preco mais baratocobrado pelos carroceiros. Se os livros vendiam bern, ele os encomen-dava de novo, mas gera1mente mantinha encomendas bastante modes-tas, fazendo seus pedidos quatro ou cinco vezes por ano. Dessa forma,ele conservava 0 capital, minimizava os riscos e montou urn estoque taogrande e diversificado que sua livraria se tornou urn centro de atendi-mento de todos os tipos de demandas literarias na regiao.o modelo de encomendas de Rigaud, que se patenteia c1aramentenos 1ivros de contas da STN, mostra que e1e ofere cia aos seus c1ientesurn pouco de tudo - livros de viagens, historias, romances, obras reli-giosas e os ocasionais tratados cientificos ou filosoficos, Ao inves deseguir suas preferencias pessoais, ele parecia refletir a demanda comuma grande precisao e viver de acordo com a sabedoria reconhecida docomercio de livros, resumida por urn outro c1iente da STN da seguintcmaneira: "0 me1hor livro para urn livreiro e 0 que vende bern". 7 1 ~ 1 1 1

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    .vista de seu estilo prudente de neg6cio, a decisao de Rigaud ~m enco-mendar antecipadamente trinta conjuntos de nove volumes das Ques-tions sur l'Encyclopedie se afigura especialmente significativa. Ele naoteria aplicado tanto dinheiro numa unica obra se nao tivesse certezaquanto a demanda - e suas encomendas posteriores mostram que seuscalculos estavam corretos. Em 19 de junho de 1772, logo depois de re-ceber a ultima entrega do ultimo volume, Rigaud encomendou maisdoze conjuntos, e dois anos depois encomendou mais duas colecoes,embora nessa epoca a STN ja tivesse esgotado seus estoques. Ela haviapublicado uma edi~ao enorme, 2500 exeinplares, mais ou menos 0 do-bro de sua tiragem normal, e os livreiros tinham se atropelado na corre-ria para compra-los, Assim, a compra de Rigaud nao foi uma aberra-~ao. Expressava uma corrente de voltairianismo que se difundira larga-mente entre 0publico leitor do Antigo Regime.

    2. Como se afigura a compra das Questions, vista da perspectivadas relaeoes entre Rigaud e os outros livreiros de Montpellier? Urnalmanaque do comercio de livros, em 1777, arrolava nove deles: 8

    Editores-Livreiros: Aug. Franc, RochardJean MartelLivreiros: Isaac-Pierre RigaudJ. B. FaureAlbert PonsToumelBasconCezaryFontanel

    Mas, de acordo com urn relat6rio de urn vendedor ambulante daSTN, havia apenas sete,? Rigaud e Pons tinham se unido e dominadocompletamente 0comerciolocal; Cezary e Faureiam vivendo nos niveisintermediaries, e os demais oscilavam a beira da falencia em lojinhasprecarias. 0 ocasional encademador e mascate disfarcado tambem dis-tribuia alguns livros, em sua maioria ilegais, para os leitores mais aven-tureiros da cidade. Por exemplo, a demoiselle Bringand, conhecida 'como "a mae dos estudantes", guardava alguns frutos proibidos "de-baixo da cama a direita, no segundo andar", conforme 0 relat6rio deuma batida engenhada pelos livreiros estabelecidos." 0 comercio namaioria das cidades do interior obedecia ao mesmo modelo, que podeser visto como uma serie de circulos concentricos: no centro, uma ouduas firmas tentavam monopolizar 0mercado; na periferia, alguns pe-

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    quenos comerciantes sobreviviam especializando-se em brochuraspopulares e livros usados, montando c1ubes de leitura (cabinets litte-raires) e encadernadoras ou mascateando suas mercadorias pelas re-glees mais interiores; fora da fimbria da legalidade, os aventureirosentravam e saiarn do mercado, vendendo literatura proibida.Quando fez sua encomenda das Questions, Rigaud estava conso-lidando sua posicao no centro do comercio local. Sua fusao com Pons,em 1770, deu-lhe capital e ativos suficientes para resistir a imprevistos- atraso nas entregas, devedores omissos, crises de liquidez - que

    . muitas vezes transtornavam neg6cios menores. E ele tam bern jogavaduro. Quando Cezary, urn dos comerciantes de nivel medic. deixoude atender a alguns pagamentos seus em 1781. Rigaud conseguiutira-lo do ramo organizando urn conluio de seus credores. Eles se nega-ram a dar novos prazos de pagamento, levaram-no a ser preso pordividas e obrigaram-no a liquidar seu estoque em hasta publica. ondemantiveram os precos baixos e arremataram os livros. Fornecendoc1ientela. Rigaud controlava a maioria das oficinas de encadernacao deMontpellier, e exercendo pressao sobre os encadernadores, ele criavaatrasos e obstaculos nos servicos para os outros livreiros. Em 1789.restavam apenas urn, Abraham Fontanel, que s6 permanecia solventepor manter urn cabinet litteraire, "que provoca terriveis acessos de in-veja no sieur Rigaud, que quer ficar como 0 unico e todos os dias mani-festa seu odio por mim";' conforme confidenciou Fontanel it STN.

    Rigaud nao eliminou seus concorrentes simplesmente vencendono estilo competitivo feroz do capitalismo comercial nos primeiros tem-pos da Franca moderna. As cartas dele, de seus concorrentes e a cor-respondencia de muitos outros livreiros mostram que 0 comercio de li-vros sofreu uma retracao entre 0 final dos anos 1770 enos an os 1780.Em tempos dificeis, os gran des livreiros eliminavam os pequenos, e osduros sobreviviam aos brandos. Rigaud era urn c1iente duro desde 0corneco de suas relacoes com a STN. Ele encomendou seus exemplaresdas Questions a Neuchatel, onde a STN estava imprimindo uma edicaopirata. e nao a Genebra, onde Gabriel Cramer, 0 editor regular de Vol-taire. estava imprimindo a edicao original, e is so porque havia arran-cado term os melhores em Neuchatel. Ele tambem exigiu services me-lhores, principalmente quando os outros livreiros de Montpellier, quehaviam tratado com Cramer, receberam antes seus exemplares. 0 atra-so provocou uma saraivada de cartas de Rigaud para a STN. Por que aSTN nao trabalhava mais rapido? Ela nao sabia que estava fazendocom que ele perdesse c1ientes para seus concorrentes? Se ela nao forne-cesse entregas mais rapidas a preco mais baixo, no futuro ele teria de

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    fazer suas encomendas a Cramer. Finalmente, quando os volumes 1 a 3chegaram de Neuchatel, os volumes 4 a 6 de Genebra j a estavam avenda nas outras livrarias. Rigaud comparou os textos, palavra porpalavra, e descobriu que a edi~ao da STN nao trazia nenhum dos mate-riais adicionais que ela dissera receber a socapa de Voltaire. Assim,como ele ia poder introduzir 0 tema dos "acrescimos e correcoes" em i)seu discurso de venda? As recriminacoes se amontoavam velozmente nocorreio entre Montpellier e Neuchatel, e mostravam que Rigaud queriaexplorar cada centimetro de todas as vantagens que conseguisse lograrsobre seus concorrentes. E, mais importante, elas tambem revelavamque as Questions estavam sendo vendidas por toda a extensao de Mont-pellier, embora em principio nao pudessem circular legalmente naFranca, Longe de estar restrita ao comercio clandestino de personagensmarginais como "a mae dos estudantes", a obra de Voltaire revelava-secomo urn artigo concorrido na disputa por lucros, no pr6prio cerne docomercio livreiro estabelecido. Quando comerciantes como Rigaud searranhavam e dilaceravam pela entrega de suas encomendas da obra,Voltaire podia ter certeza de que estava conseguindo impulsionar suasideias pelas principais linhas do sistema de comunicacoes da Franca,

    3. 0 papel de Voltaire e Cramer no processo de difusao levantaurn outro problema: como a operacao de Rigaud se encaixava nos ou-tros estagios do ciclo de vida das Questions. Rigaud sabia que naoestava comprando uma primeira edicao: a STN enviara uma circular aele e a seus outros principais clientes, explicando que ela reproduziriao texto de Cramer, mas com correcoes e acrescimos feitos pelo proprioautor, de modo que essa sua versao seria superior a versao original.Urn dos diretores da STN tinha visitado Voltaire em Ferney, em abril ,Ide 1770, e voltara com a promessa de que Voltaire retocaria as paginasimpressas que iria receber de Cramer, e entao as passaria para Neu-chatel, para uma edicao pirata," Voltaire fazia essas brincadeiras commuita frequencia. Eram uma maneira de melhorar a qualidade e au-men tar a quantidade de seus livros, e assim serviam ao seu objetivoprincipal - que nao consistia em ganhar dinheiro, pois nao vendiaseus textos aos editores, e sim em difundir 0 Iluminismo. No entanto,a questao do lucro movia as outras partes do sistema. Assim, quandoCramer soube da tentativa da STN em atacar seu mercado, ele protes-tou junto a Voltaire. Voltaire voltou atras em sua promessa a STN,e esta teve de se contentar com uma versao atrasada do texto, que elarecebeu de Ferney, mas apenas com urn minimo de acrescimos e cor-re~5es_13Na verdade, esse recuo nao afetou suas vendas, porque 0mer-

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    cado tinha muito espaco para absorver as edicoes, nao s6 da STN,como tam bern de Marc Michel Rey em Amsterda, e provavelmenteoutras mais. Os livreiros podiam escolher seus fornecedores, e esco-lheram de acordo com as vantagens marginais que conseguissem obter,em materia de preco, qualidade, rapidez e garantia na entrega. Rigaudtratava regularmente com editores em Paris, Lyon, Rouen, Avignone Genebra. Jogava-os uns contra os outros, e as vezes encomendava 0-mesmo livro a dois ou tres, para ter certeza de recebe-lo antes de seusconcorrentes. Mas, no caso das Questions, ele ficou para tras e tevede receber sua mercadoria pela rota tortuosa Voltaire-Cramer- Vol-taire-STN.

    Essa rota simplesmente levava 0 livro do autor ate 0 editor. Paraque as paginas impressas seguissem das oficinas da STN em Neucha-tel para a loja de Rigaud em Montpellier, elas tin ham de serpentearpor urn dos estagios mais complexos no circuito do livro. Podiam seguirduas rotas principais. Uma ia de Neuchatel para Genebra, Turim, Nice(que ainda nao era francesa) e Marselha, Eia possuia a vantagem decontornar 0 territ6rio frances - e, portanto, 0 perigo do confisco -,mas envoi via enormes desvios e despesas. Os livros tinham de ser arras-tados pelos Alpes e passar por uma legiao de intermediaries - agentesde expedicao, bateleiros, carroceiros, encarregados de entrepostos, ca-pitaes de navios e portuarios -, antes de chegarem ao dep6sito deRigaud. Os melhores expedidores suicos anunciavam que podiam en-tregar uma encomenda em Nice num prazo de trinta dias, a 13 Iibrasfrancesas e 8 vintens por 100 quilos de peso, mas seus calculos se mos-traram irreais. A rota direta de Neuchatel a Lyon e R6dano abaixo erarapida, facil e barata - mas perigosa. As caixas tinham de receberuma chancela no momenta de sua entrada na Franca, eram inspecio-nadas pel a corporacao dos livreiros e pelo inspetor real de livros emLyon, sen do a seguir reexpedidas e novamente inspecionadas em Mont-pellier .14

    Sempre cauteloso, Rigaud pediu a STN que expedisse os primei-ros volumes das Questionspela rota indireta, pois sabia que podia con-fiar em seu agente Joseph Colomb em Marselha, que colocaria os Iivrosna Franca sem maiores percalcos. A encomenda saiu em 9 de dezembrode 1771, mas s6 chegou depois de marco, quando os tres primeiros vo-lumes da edicao de Cramer ja estavam sendo vendidos pelos concor-rentes de Rigaud. 0 segundo e 0 terceiro volumes chegaram em julho,porem carregados de taxas de expedicao e danificados pelo manejogrosseiro. "Parece que estamos a uma distancia de 5 ou 6 leguas", re-clamou Rigaud, acrescentado que lamentava nao ter feito neg6cio com

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    Cramer, cujas entregas ja tinham chegado ao sexto volume." A essasalturas, a STN ja estava bastante preocupada com a possibilidade deperder clientes em todo 0 sul da Franca, e montou uma operacao decontrabando em Lyon. 0 encarregado, um vendedor marginal de livroschamado Joseph-Louis Berthoud, conseguiu passar 0 quarto e 0 quintovolumes pelos inspetores da corporacao, mas logo a seguir foi a falen-cia; para piorar ainda mais as coisas, 0 goverbo frances impes umataxa de 60 libras por 100 quilos em todas as importacoes de livros. ASTN voltou a rota alpina, oferecendo-se para levar seus despachos ateNice por 15 libras/l00 quilos, se Rigaud pagasse as demais despesas,inclusive 0 imposto de importacao. No entanto, Rigaud achou que essataxa era um golpe tao forte no comercio internacional que suspendeutodas as suas encomendas junto aos fornecedores internacionais. Coma nova politic a tarifaria, a operacao de disfarcar os livros clandestinoscomo obras permitidas e passa-los pelos canais comerciais normais tor-nou-se proibitivamente onerosa.Em dezernbro, Jacques Deandreis, 0 agente da STN em Nice.conseguiu de alguma maneira despachar um carregamento do sextovolume das Questions para Rigaud, pelo porto de Sete, supostamentefechado a importacoes de livros. A seguir, 0 governo frances. perce-bendo que quase tinha destruido 0 comercio de livros estrangeiros. re-duziu a tarifa para 25 libras/l00 quilos. Rigaud propos dividir os cus-tos com os fornecedores: ele pagaria 113. e eles 213. Essa proposta foiaceita pela STN. mas na primavera de 1772 Rigaud decidiu que a rotade Nice era cara demais, sob quaisquer condicoes. Tendo ouvido tantasreclamacoes de seus outros clientes, a STN chegou a mesma conclusaoe enviou um de seus diretores a Lyon. e ele convenceu J.-M. Barret.um comerciante lionss mais confiavel, a fazer passar as encomendaspela corporacao local e encaminha-las ate seus clientes das provincias.Gracas a esse acordo, os tres ultimos volumes das Questions de Rigaudchegaram a salvo no verso.

    Aentrega da colecao inteira em Montpellier custara um esforcoconstante e despesas consideraveis, e, finda essa transacao, Rigaud e aSTN continuaram a redefinir suas rotas de fornecimento. Como aspressoes politicas e economicas continuavam a mudar, eles precisavamrecombinar a todo momenta seus acordos dentro do mundo complexodos intermediaries, que ligavam as editoras as livrarias e. em ultimaanalise, freqiientemente determinavam a literatura que chegaria aosleitores franceses.Nao e possivel definir como os leitores assimilavam seus livros.Uma analise bibliografica de todos os exemplares localizaveis mostra-

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    ria as variantes disponiveis de urn texto. Urn estudo dos arquivos decart6rio de Montpellier poderia indicar quantos exemplares apareciamnas herancas, e as estatisticas extraidas dos catalogos de leiloes perm i -tiriam calcular 0 rnimero deles em vultosas bibliotecas particulares.Mas, em vista do atual estado da documentacao, nao e possivel saberquem eram os leitores de Voltaire nem como respondiam a seus textos.A leitura continua a ser 0 estagio no circuito dos livros que oferecemaiores dificuldades de estudo.

    4. Todos os estagios eram afetados pelas condicoes sociais, eco-nomicas, politicas e intelectuais da epoca: mas, para Rigaud, essasinfluencias gerais se faziam sentir num contexto local. Ele vendia livrosnuma cidade de 31 mil habitantes. Apesar de importante setor textil,Montpellier era essencialmente urn antigo centro religioso adminis-trativo, largamente dotado de instituicoes culturais, entre elas umauniversidade, uma academia de ciencias, doze lojas maconicas e dezes-seis comunidades monasticas. E, por ser uma intendencia e sede daspropriedades provinciais do Languedoc, alem de con tar com varies tri-bunais, a cidade tinha urn grande mimero de advogados e funcionariosdo rei. Se estes guardavam alguma sernelhanca com seus equivalentesem outros centros de provincia," provavelmente correspondiam a umaboa parcela dos clientes de Rigaud e provavelmente apreciavam a lite-ratura iluminista. Ele nao discutia a base social dos clientes em suacorrespondencia, mas comentava que eles insistiam em ter as obras deVoltaire, Rousseau e Raynal. Assinavam em peso a Encyclopedie, e atechegavam a pedir tratados ateistas como Systeme de la nature e Philo-sophie de fa nature. Montpellier nao era urn centro intelectualmenteatrasado, e constituia urn born territ6rio de livros. "0 comercio de li-vros e muito amplo nesta cidade", comentou urn observador em 1768."Os livreiros tern mantido bons estoques em suas livrarias desde queos habitantes desenvolveram urn gosto por bibliotecas." 17

    Eram essas condicoes propicias que predominavam quando Ri-gaud encomendou suas Questions. Mas no comeco dos anos 1770 che-gar am tempos dificeis, enos anos 1780 Rigaud, como a maioria doslivreiros, queixava-se de urn grande declinio em seu comercio. Toda aeconomia frances a sofreu uma retracao nesses anos, segundo a versaocorrente de C. E. Labrousse." As financas do Estado certamente des-pencaram: por isso a catastr6fica tarifa de 1771 sobre os livros, quefazia parte da tentativa malografa de Terray em diminuir 0 deficitacumulado durante a Guerra dos Sete Anos. 0governo tambem tentouacabar com os livros proibidos e pirate ados , primeiramente com urn

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    policiamento mais rigoroso em 1771-74, e a seguir com uma reform ageral do comercio de livros em 1777. Essas medidas acabaram arrui-nando 0 comercio de Rigaud com a STN e as outras editoras que ha-viam crescido em volta das fronteiras frances as nos anos pr6speros dametade do seculo, Os editores estrangeiros publicavam edicoes origi-nais de Iivros que nao passariam pela censura em Paris e edicoes pira-teadas de livros lancados pelos editores parisienses. Como os parisien-ses tinham adquirido quase urn monop6lio no setor editorial legal, seusrivais nas provincias fizeram aliancas com as editoras estrangeiras, efechavam os olhos quando chegavam despachos do exterior, para sereminspecionados nas camaras das corporacoes locais ichambres syndica-les). Com Louis XIV, 0governo havia utilizado a corporacao parisiensecomo instrumento para eIiminar 0comercio ilicito; mas com Louis XVela se tornou cada vez mais frouxa, ate 0 advento de uma nova era derigor com a queda do ministerio de Choiseul (dezembro de 1770). As-sim, as relacoes de Rigaud com a STN ajustavam-se perfeitamente auma configuracao economica e politica que predominava no comerciolivreiro desde 0 comeco do seculo XVIII, e comecava a se desfazer jus-tamente quando as primeiras caixas das Questions estavam a caminhode Neuchatel para Montpellier.Uma outra pesquisa poderia mostrar outras configuracoes, pois 0modelo nao precisa ser aplicado dessa maneira, e na verda de pode serinteiramente dispensado. Nao estou afirmando que a hist6ria do livrodeva ser escrita de acordo com uma f6rmula padrao, e sim tentandomostrar como seus segmentos dispares podem ser reunidos dentro deurn unico esquema conceitual. Outros historiadores do livro podempreferir outros esquemas. Podem se concentrar sobre 0 comercio li-vreiro de todo 0Languedoc, como fez Madeleine Ventre; sobre a biblio-grafia geral de Voltaire, como Giles Barber, Jeroom Vercruysse e outrosestao fazendo; ou ainda sobre 0modelo geral da producao de Iivros naFranca setecentista, a mane ira de Francois Furet e Robert Estivale.19Mas, como quer que definam seus temas, eles nao conseguirao extrairseu significado pleno a menos que 0 relacionem com todos os elementosque operavam em conjunto, como urn circuito para a transmissao dostextos. Para esclarecer melhor este ponto, passarei uma vez mais pelocircuito modelo, levantando questoes que tern sido investigadas comexito ou que parecem maduras para maiores pesquisas.

    1. Autores. Apesar da proliferacao de biografias de gran des es-critores, as condicoes basicas da autoria continuam obscuras para inu-meros periodos da hist6ria. Em que ponto os escritores se Iibertaram

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    do patronato dos nobres ricos e do Estado, para viverem de suas penas?Qual era a natureza de uma carreira literaria, e como se a seguia?Como os escritores tratavam com os editores, os impressores, os livrei-ros, os resenhistas, e entre si? Enquanto essas perguntas nao foremrespondidas, nao entenderemos plenamente a transmissao dos textos.Voltaire podia fazer aliancas secretas com editores piratas porque naoprecisava viver do que escrevia. Urn seculo mais tarde, Zola proc1amouque a independencia de urn escritor consistia em vender sua prosa aolance mais elevado." Como se deu essa transformacao? 0 trabalho deJohn Lough corneca a nos fornecer uma resposta, mas e possivel fazeruma pesquisa mais sistematica sobre a evolucao da republica das letrasna Franca a partir dos registros policiais, almanaques Iiterarios e bi-bliografias (La France litteraire da os nomes e publicacoes de 1187escritores em 1757 e 3089 em 1784). A situacao na Alemanha e maisobscura, devido a fragmentacao dos estados gerrnanicos antes de 1871.Mas os estudiosos alernaes estao cornecando a recorrer a fontes comoDas gelehrte Teutschland, que relaciona 4 mil escritores em 1779, e arastrear os laces entre autores, editores e leitores em estudos monogra-ficos e regionais." Marino Berengo tern mostrado 0 quanto e possiveldescobrir acerca das relacoes autor-editor na Italia." E 0 trabalho deA. S. Collins ainda oferece uma exposicao excelente da questao da au-toria na Inglaterra, embora precise ser atualizado e ampliado paraalem do seculo XVIII.23

    2. Editores. Agora 0 papel fundamental dos editores vern se tor-nando mais claro, gracas a artigos publicados no Journal of PublishingHistory e a monografias como The world of Aldus Manutius [0 mundode Aldus Manutius]. de Martin Lowry, Charles Dickens and his pub-lishers [Charles Dickens e seus editorest, de Robert Patten, e Entre-preneurs of ideology: neoconservative publishers in Germany, 1890-1933 [Empresarios da ideologia: editores neoconservadores na Alema-nha, 1890-1933], de Gary Stark. Mas a evolucao do editor, como figuraespecifica diferenciada do mestre livreiro e do impressor, ainda de-manda urn estudo sistematico. Os historiadores mal cornecaram a utili-zar os documentos dos editores, embora sejam as fontes mais ricasdentre todas para a hist6ria dos livros. Os arquivos da Cotta Verlag emMarbach, por exemplo, contem no minimo 150 mil documentos, mass6 foram exam inados superficialmente, em busca de referencias a Goe-the, Schiller e outros escritores famosos. Uma pesquisa mais aprofun-dada quase certamente revel aria uma grande quantidade de inform a-coes sobre 0 livro como uma forte influencia na Alemanha oitocentista.

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    Como os editores firmavam contratos com autores, faziam aliancascom livreiros, negociavam com autoridades politicas, tratavam as fi-nancas, os fornecimentos, as remessas e a publicidade? As respostas aessas perguntas levariam a historia dos livros a penetrar no territorio dahistoria social, economica e politica, com beneficios mutuos,o Projeto de Biobibliografia Historica em Newcastle-upon-Tynee 0 Institut de Litterature et de Techniques Artistiques de Masse emBordeaux exemplificaram as direcoes ja tomadas por esse trabalhointerdisciplinar. 0 grupo de Bordeaux tern tentado rastrear os livrosatraves de diversos sistemas de distribuicao, para descobrir a experien-cia literaria de diferentes grupos na Franca contemporanea." Os pes-quisadores de Newcastle tern estudado 0processo de difusao pela ana-lise das relacoes de assinantes, que foram largamente utilizadas nascampanhas de venda dos editores ingleses desde 0 corneco do seculoXVII ate 0 comeco do seculo XIX.25 Seria possivel fazer urn trabalhosemelhante com os catalogos e prospectos dos editores, que se encon-tram reunidos em centros de pesquisa, como a biblioteca de Newberry.Toda a questao da propaganda do livro requer exame. Muito se apren-sderia sobre as atitudes em relacao aos livros e 0 contexte de sua utili-za~ao estudando a maneira como eram apresentados - a estrategia doapelo, os valores invocados pelo discurso empregado - em todos ostipos de publicidade, das noticias dos jornais aos cartazes de muro. Oshistoriadores americanos tern utilizado os amincios de jornal para ma-pear a penetracao da palavra impressa em areas afastadas da sociedadecolonial. 26 Consultando os documentos dos editores, poderiam fazerincursoes mais profundas nos seculos XIX e XX.2' Mas, infelizmente,os editores costumam tratar seus arquivos como lixo. Ainda que pou-pem uma eventual carta de urn autor famoso, eles jogam fora os livrosde contas e a correspondencia comercial, que geralmente sao as fontesde informacoes mais importantes para 0historiador do livro. 0 Centrodo Livro na biblioteca do Congresso esta no momenta compilando urnguia para os arquivos de editores. Se forem preservados e estudados,poderao oferecer uma perspectiva diferente sobre todo 0curso da histo-ria americana.

    3. Impressores. A oficina grafica e muito mais bern conhecida doque os outros estagios da produ~ao e difusao de livros, por ser urn temade estudos muito valorizado no campo da bibliografia analitica, cujoobjetivo, tal como foi definido por R. B. McKerrow e Philip Gaskell, e"elucidar a transmissao de textos explicando os processos da producaodo livre"." Os bibli6grafos tern dado contribuicoes importantes a cri-124 j

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    ,I tica de textos. principal mente na area de estudos shakespearianos, ti-rando inferencias que remontam da estrutura de urn livro para 0 pro-cesso de sua irnpressao e. portanto, para urn texto original, como osmanuscritos desaparecidos de Shakespeare. Essa linha de raciocinio foirecentemente destacada por D. F. McKenzie.29 Mas, mesmo que nun-ca consigam reconstruir urn Ur-Shakespeare, os bibli6grafos podemdemonstrar a existencia de diferentes edicoes de um texto e diferentesest ados de uma edicao, 0 que e uma especializacao necessaria nos es-tudos de difusao. Suas tecnicas tam bern permitem decifrar os arquivosdos impressores. e assim inauguraram uma nova fase arquivistica nahist6ria da irnpressao. Gracas ao trabalho de McKenzie, Leon Voet,Raymond de Roover e Jacques Rychner, agora temos uma visao clarado funcionamento das oficinas graficas ao longo de todo 0 periodo doprelo manual (aproximadamente 1500-1800) ..1 0 Sao necessarias outraspesquisas para periodos posteriores, e poder-se-iarn colocar novasquestoes: como os impressores calculavam os custos e organizavam aproducao, principalmente ap6s a expansao do jornalismo e da im- ,~pressao de materiais volantes? Quais as alteracoes sofridas nos orca-mentos dos livros com a intrcducao do papel feito a maquina, na pri-meira dec ada do seculo XIX, e do linotipo nos anos 1880? De que ma-neira as transformacoes tecnol6gicas afetaram a conducao do tra-balho? E que papel desempenharam os oficiais graficos, urn setorexcepcionalmente expressivo e militante do operariado, na hist6ria dotrabalho? Vista de fora, a bibliografia analitica pode parecer urn mis-terio, mas ela e capaz de dar gran des contribuicoes tanto para a his-t6ria social quanto para a hist6ria literaria, especialmente se vier acom-panhada de alguma leitura dos manuais e autobiografias de impres-sores, a comecar pelos de Thomas Platter, Thomas Gent, N. E. Restifde la Bretonne, Benjamin Franklin e Charles Manby Smith.

    4. Expedidores. Pouco se sabe sobre a maneira como os livrossaiam das graficas e chegavam aos dep6sitos. A influencia do carreto,da barcaca, do navio mercante, do correio e da estrada de ferro sobre ahist6ria da literatura pode ter sido maior do que se imagina. Emboratenha side provavelmente pequeno 0 efeito das facilidades de trans-porte sobre 0 comercio nos grandes centros editoriais, como Londres eParis, algumas vezes elas determinaram 0 ritmo dos neg6cios em areasdistantes. Antes do seculo XIX, os livros eram geralmente enviados emfolhas soltas, de modo que 0 comprador podia encarderna-Ios deacordo com seu gosto e seu bolso. Eles eram transportados em gran desfardos embrulhados em bastante papel, e facilmente sofriam estragos

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    com a chuva e 0atrito das cordas. Em comparacao a mercadorias comotecidos, seu valor intrinseco era pequeno, mas as despesas do freteeram elevadas, devido ao tamanho e peso das folhas. Assim, freqiien-temente a expedicao respondia por uma larga parcela do custo total dolivro e ocupava urn grande espaco na estrategia de marketing dos edi-tores. Em muitas partes da Europa, os impressores nao podiam contarcom a remessa dos livros para os livreiros nos meses de agosto e se-tembro, porque os carroceiros largavam os carretos para trabalhar nacolheita. 0 comercio baltico freqiientemente amargava uma inter-rupcao apos outubro, pois 0 gelo bloqueava os portos. As rotas seabriam e fechavam por toda parte, em resposta as pressoes da guerra,da politica e mesmo das taxas de seguro. Desde 0seculo XVI ate nossosdias, a literatura nao-ortodoxa tern sido transportada clan destin a-mente em enormes quantidades, de modo que sua influencia varia con-forme a eficiencia do contrabando. E outros generos, como brochuraspopulares e publicacoes baratas de terror e misterio, circulavam porsistemas especiais de distribuicao, que demandam urn estudo muitomaior, ainda que os historiadores do livro estejam agora comecando aabrir 0 terreno. 31

    5. Livreiros. Gracas a alguns estudos classicos - H. W. Bennettsobre 0 inicio da era moderna na Inglaterra, L. C. Wroth sobre os Es-tados Unidos no periodo colonial, H.-J. Martin sobre a Franca seis-centista e Johann Goldfriedrich sobre a Alemanha -, e possivel mon-tar urn quadro geral da evolucao do comercio de livros." Mas e precisoestudar melhor 0 livreiro enquanto agente cultural, 0 intermediario en-tre a oferta e a demanda em seu principal ponto de conexao. Ainda naoconhecemos muito 0 mundo social e intelectual de homens como Ri-gaud, seus gostos e valores, a insercao deles em suas comunidades. Elestambem operavam dentro de redes comerciais, que se ampliavam e sedesfaziam como as aliancas no mundo diplomatico, Quais as leis quegovernavam a ascensao e a queda dos irnperios comerciais na area edi-torial? Urn cstudo comparativo das historias nacionais poderia revelaralgumas tendencies gerais, como a forca centripeta de gran des centroscomo Londres, Paris, Frankfurt e Leipzig, que atraiam as editor as dointerior para suas orbitas, e a tendencia contrabalanceadora da inte-gracao entre fornecedores e comerciantes provinciais em enclaves inde-pendentes como Liege, Couillon, Neuchatel, Genebra e Avignon. Mas edificil fazer comparacoes porque 0comercio funcionava atraves de dife-rentes instituicoes em diferentes paises, gerando diferentes tipos de ar-quivos. Os registros da London Stationers' Company, da Cornmunaute

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    des Libraires et Imprimeurs de Paris e das feiras de livros de Leipzig eFrankfurt guardam uma profunda relacao com 0 curso tornado pelahist6ria do livro na Inglaterra, Franca e Alernanha.:"

    Nao obstante, os livros eram vendidos como mercadorias por to-das as partes. Urn estudo economico mais ousado abriria uma novaperspcctiva para a hist6ria da literatura. James Barnes, John Tebbel eFrederic Barbier mostraram a irnportancia do elemento economico nocornercio de livros durante 0 seculo XIX, na Inglaterra, Estados Unidose Franca." Mas e possivel amp liar os estudos - por exemplo, sobre osmccanisrnos de credito, as tecnicas de negociar as letras de cambio, desc defender contra as suspensoes de pagamento, e de trocar folhas im-pressas ao inves de pagamentos em especie, 0 cornercio livreiro, comooutros neg6cios na Renascenca enos inieios da Idade Moderna, era emlarga medida urn jogo de confianca, mas ainda nao sabemos como eleerajogado.

    6. Leitores. Apesar de uma volumosa literatura sobre sua psico- logia, fenomenologia, textologia e sociologia, a leitura continua a sermisteriosa. Como os leitores entendem os sinais na pagina impressa?Quais sao os efeitos sociais dessa experiencia? E como ela sofre varia-coes? Estudiosos da literatura como Wayne Booth, Stanley Fish, Wolf-gang Iser, Walter Ong e Jonathan Culler tomam a leituracomo inte-resse central da critic a de textos por entenderem a literatura como ati-vidade, construcao de senti do dentro de urn sistema de cornunicacao, enao como urn canon de textos." 0 historiador do livro pode empregar esuas nocoes de "piiblicos ficticios", "leitores implicitos" e "cornuni- :dades interpretativas". Mas ele tam bern po de achar que suas cons ide- .racoes sao urn poueo estaticas no tempo. Embora os criticos saibampereorrer a hist6ria literaria (e sao muito fortes no seculo XVII ingles),eles parecem presumir que os textos sempre afetaram a sensibilidadedos leitores de uma mesma maneira. Mas urn habitante seiscentista deLondres vivia num universo mental diferente do de urn professor ame-ricano do seculo XX. A pr6pria leitura se transformou ao longo dotempo. Ela era freqiientemente feita em grupo e em voz alta, ou em se- ,gredo e com uma intensidade que hoje talvez nem consigamos ima-ginar. Carlo Ginzburg mostrou quanto senti do urn moleiro quinhen-tista podia infundir a um texto, e Margaret Spufford demonstrou quetrabalhadores ainda mais humildes lutavam para ter urn dominio dapalavra impressa na epoca de Areopagitica:" No inicio da era mo-derna, por todas as partes da Europa, das eamadas socia is de Mon-taigne as camadas sociais de Menocchio, os leitores nao se limitavam a

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    decifrar os livros, mas extraiam um significado deles. A leitura ja erauma paixao muito antes do "Lesewut" e do "Wertherfieber" da eraromantica: e ela ainda tem em si0Sturm und Drang, apesar da moda daleitura dinamica e da visao mecanicista da literatura como codificacaoe decodificacao de mensagens.

    Mas os textos moldam a recepcao dos leitores, por mais ativosque possam ser. Como observou Walter Ong, as paginas iniciais de TheCanterbury tales [Oscontos da CantuariaJ e A farewell to arms [Adeusas armas] criam um arcabouco e dao um papel ao leitor ao qual ele naopode se esquivar, independentemente do que pense sobre peregrinacoese guerras civis." Com efeito, a tipografia, 0 estilo e a sintaxe deter-minam como os textos transmitem os sentidos. McKenzie mostrou queo Congreve obsceno e desregrado das primeiras edicoes in-quarto as-sentou-se como 0pudico neoc1assicista das Works [Obras] de 1709 naotanto devido a um expurgo, mas por causa do formato do livre." Ahistoria da leitura tera de levar em conta a coercao do texto sobre 0v leitor, bem como a liberdade do leitor com 0texto. A tensao entre essastendencias existe sempre que as pessoas estao diante de livros, e geroualguns resultados extraordinarios, tal como a leitura dos Salmos porLutero, a leitura de Le misanthrope por Rousseau, a leitura do sacri-ficio de Isaac por Kierkegaard.Se e possivel retomar as grandes releituras do passado, por outrolado a experiencia intima dos leitores comuns sempre pode se esquivarde n6s. Mas deveriamos ao menos conseguir reconstruir boa parte do contexto social da leitura. 0debate sobre a leitura em silencio na IdadeMedia resultou em algumas indicacoes impressionantes sobre os ha-bitos de leitura," e os estudos na Alemanha, onde proliferaram extra-ordinariamente nos seculos XVIII e XIX, mostram a Importancia daleitura para 0 desenvolvimento de um estilo cultural proprio da bur-guesia.f Os estudiosos alemaes tambem tem contribuido muito para ahistoria das bibliotecas e para todos os tipos de estudos sobre are-cepcao." Seguindo uma nocao de Rolf Engelsing, eles defendem amiu-de a ideia de que os habitos de leitura se transformaram no final doseculo XVIII. Antes dessa "Leserevolution"; os leitores tinham a ten-dencia de percorrer repetida e laboriosamente um pequeno mimero detextos, em especial a Biblia. Com ela, passaram a se lancar a materialde qualquer genero, atras de entretenimento e nao tanto de edificacao,A passagem da leitura intensiva para a leitura extensiva coincidiu comuma dessacralizacao da palavra impressa. 0mundo comecou a se con-fundir com a questao da leitura, e os textos comecaram a ser tratadoscomo mercadorias, podendo ser descartados com a mesma indiferenca

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    para com 0 jornal do dia anterior. Essa interpretacao foi recentementequestionada por Reinhart Siegert, Martin Welke e outros jovens estu-diosos, que descobriram uma leitura "intensiva" na recepcao de obrasefemeras como almanaques e jornais, notadamente 0 Nothund Hidfs-buchlein , de Rudolph Zacharias Becker, urn sucesso extraordinario daGoethezeit .42 Mas, quer 0 conceito de uma revolucao na leitura preva-leca quer nao, ele contribuiu para aproximar a pesquisa sobre a leiturade algumas questoes gerais da hist6ria social e cultural." Pode-se dizero mesmo quanto a pesquisa sobre a alfabetizacao;" que possibilitouaos estudiosos a descoberta de urn vago perfil de diversos publicos lei-tores de duzentos e trezentos anos atras, e a atribuicao dos livros a seusrespectivos leitores em varios niveis da sociedade. Quanto mais baixo 0nivel, mais intenso 0estudo. A literatura popular tern sido urn tema depesquisa muito concorrido nesses iiltimos dez anos," apesar da ten-dencia cada vez maior de questionar a ideia de que os livretos baratos,como a bibliotheque bleue, tenham representado uma cultura auto-noma da gente simples, ou de que seja possivel distinguir claramenteentre correntes da cultura de "elite" e da cultura "popular". Atual-mente, parece descabido conceber a transforrnacao cultural como urnmovimento linear, ou gradualmente descendente, de influencias. Ascorrentes nao s6 desciam, mas tambern subiam, fundindo-se e mistu-rando-se nesse transito. Personagens como Gargantua, Cinderela eBuscon avancavam e recuavam atraves das tradicoes orais, das bro-churas baratas e da literatura refinada, mudando de nacionalidade ede genero;" Pode-se inclusive rastrear as metamorfoses das figurascorrentes dos almanaques. 0 que a reencarnacao de Poor Richard comoIe Bonhomme Richard revela acerca da cultura literaria nos EstadosUnidos e na Franca? E 0 que se pode saber a respeito das relacoesfranco-germanic as acompanhando 0Mensageiro Manco (der hinkendeBote, Ie messager boiteux) atraves do comercio de almanaques peloReno?

    As perguntas sobre quem Ie 0 que, em que condicoes, em quemomento, com que resultados, ligam os estudos da leitura a sociologia.o historiador do livro poderia aprender a seguir tais perguntas com 0trabalho de Douglas Waples, Bernard Berelson, Paul Lazarsfeld e Pier-re Bourdieu. Poderia se inspirar na pesquisa sobre a leitura que sedesenvolveu na Escola de Biblioteconomia da Universidade de Chicagoentre 1930 e 1950, e que ainda aparece nos esporadicos relat6rios Gal-lup.:" E, como exemplo da corrente sociol6gica na historiografia, elepoderia consultar os estudos da leitura (e nao-leitura) entre os traba-lhadores ingleses nos dois ultimos seculos, realizados por Richard Alt-

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    ick, Robert Webb e Richard Hoggart." Todos esses trabalhos se abrem ~para 0problema mais amplo de como 0contato com a palavra impressaafeta a maneira de pensar dos homens. A invencao do tipo m6vel trans-formou 0 universo mental do homem? Nao existe uma resposta unicasatisfat6ria a essa pergunta, porque, como mostrou Elizabeth Eisen-stein, ela abarca imimeros aspectos diferentes da vida europeia nosinicios da Idade Moderna," Mas ha de ser possivel chegar a uma ideiamais solida do sentido dos livros para as pessoas. A presenca do livro naprestacao de juramentos, na troca de presentes, na concessao de pre-mios e na doacao de herancas oferece pistas sobre seu significado emdiferentes sociedades. A iconografia dos livros poderia indicar 0 pesode sua autoridade, mesmo para trabalhadores analfabetos que se sen-tavam nas igrejas diante de pinturas representando as tabuas de Moi-ses. 0 lugar dos livros no folc1ore e dos motivos folcl6ricos nos livrosmostra que, quando a tradicao oral entrou em contato com 0 texto im-presso, as influencias se deram em ambas as direcoes, e que os livrostem de ser estudados em relacao com os outros meios de comuni-cacao. 50 As linhas de pesquisa podem levar a varies rumos, mas, emultima analise, todas devem permitir entender melhor como a palavraimpressa moldou as tentativas dos homens de compreender a condicaohumana.

    E facil perder de vista as dimensOesmais amplas desse empreen-dimento, porque os historiadores do livro muitas vezes se extraviam ematalhos esotericos e especializacoes compartimentalizadas. Seus tra-balhos podem ficar tao fragmentados, mesmo nos limites da biblio-grafia sobre um unico pais, que a concepcao da hist6ria do livro comoum tema unico, a ser estudado numa perspectiva comparativa dentrode todo 0 leque das disciplinas hist6ricas, chega a parecer uma va espe-ranca, Mas os livros nao respeitam limites, sejam lingiiisticos ou na-cionais. Muitas vezes foram escritos por autores que pertenciam a umarepublica intemacional das letras, compostos por impressores que naotrabalhavam em suas linguas matemas, vendidos por livreiros que ope-ravam alem das fronteiras nacionais, e lidos num idioma por leitoresque falavam em outra lingua. Os livros, quando tratados como objetosde estudo, tambem se recusam a ficar confinados dentro dos limites deuma unica disciplina. Nenhuma delas - a hist6ria, a literatura, a eco-nomia, a sociologia, a bibliografia - e capaz de fazer justica a todos osaspectos da vida de urn livro. Pela sua pr6pria natureza, portanto, ahist6ria dos livros deve operar em escala intemacional e com metodo

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  • 5/14/2018 01 - DARNTON, Robert. O que a hist ria dos livros

    interdisciplinar. Mas nao precisa ser privada de coerencia conceitual,porque os livros fazem parte de circuitos de comunicacao que funcio-nam segundo modelos homogeneos, por mais complexos que sejam.Exumando esses circuitos, os historiadores podem mostrar que os livrosnao se limitam a relatar a hist6ria: eles a fazem.

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