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1 O complexo de Édipo e o Édipo estrutural Vamos começar pelo problema do complexo de Édipo na teoria psicanalítica, colocando algumas questões para ir orientando a leitura. Com respeito ao complexo de Édipo existem, em Freud, três momentos de síntese que podem ser Vistos como três elaborações sucessivas. A primeira é a exposiç o que Freud fez na carta que enviou a Fliess em 15 de outubro de 1897, exposiç o que retoma em A Interpreta ç5o dos Sonhos, na seção sobre ‘Morte dos seres queridos”. A segunda síntese é a que Freud realizou em Psicologia dos Grupos e a Análise do Ego (cap. VII) e em O Ego e o ld (cap. III, “O ego e o superego”). E o terceiro momento podemos considerar que começa com o trabalho A Organizaçâb Genital Infantil (1923) e termina com o artigo de 1931 sobre a sexualidade feminina. Quando dizemos que existem três momentos ou três formulações de Freud, estamos nos referindo àqueles lugares da obra em que ele tenta explicitar uma teoria com a qual está trabalhando. E, como em toda explicitaço que um autor faz de sua teoria, existem, na realidade, um recorte e uma seleção, deparamo-nos, ent5o, com uma sítuaço muito particular: algumas das formulações so incompletas em relação ao trabalho que Freud apresenta, por exemplo, nos históricos clínicos. Acontece algo bastante semelhante ao trabalho sobre O inconsciente da metapsicologia: ali Freud tenta uma síntese do conhecimento do inconsciente que, no entanto, no contempla suficientemente toda a elaboração freudiana sobre o tema do inconsciente, tal como se deduz dos trabalhos existentes até aquele momento. Portanto, há que diferenciar entre a síntese que um autor realiza a forma como um autor apresenta a sua própria teoria e a maneira como essa teoria é posta em prática mais além da apresentação que esse autor faça. Com isto, estamos retomando, em outro nível, toda uma problemática sobre a qual trabalhamos o 9 ano passado: a diferença existente entre o ser e a representação que se toma como refletindo esse ser. Neste caso, tomamos por um lado a explicitação que se faz da teoria, mas, por outro lado, a explicitação desta teoria posta em prática, que pode mostrar pontos de fratura em relação à mesma explicitação. Partindo da explicitação, dizíamos, podem-se encontrar três conceitualizações em Freud em relação a Édipo. Comecemos com a que aparece na carta a Fliess de outubro de 1897, a do capítulo sobre “Morte dos seres queridos” e a mencionada em “Um tipo especial de escolha de objeto feita pelo homem”, o artigo de 1910. Freud coloca o que todos já sabemos, mas que, na sua época, significou uma revolução: o desejo amoroso pelo progenitor do sexo oposto e o desejo hostil em relação ao progenitor do mesmo sexo, desejo hostil este que culmina no da morte. É neste trabalho, “Um tipo especial de escolha de objeto feita pelo homem”, que Freud cunhou, pela primeira vez na sua obra escrita, a expressão “complexo de Édipo”. Antes, havia utilizado “Édipo”, por exemplo, em A Interpretaçio dos Sonhos, quando coloca o mito de Édipo, mas só então utiliza a expressão “complexo de Édipo”. Vão ver que não é por um mero interesse de erudição que insisto que a expressão

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1 O complexo de Édipo e o Édipo estrutural Vamos começar pelo problema do complexo de Édipo na teoria psicanalítica, colocando algumas questões para ir orientando a leitura. Com respeito ao complexo de Édipo existem, em Freud, três momentos de síntese que podem ser Vistos como três elaborações sucessivas. A primeira é a exposiç o que Freud fez na carta que enviou a Fliess em 15 de outubro de 1897, exposiç o que retoma em A Interpreta ç5o dos Sonhos, na seção sobre ‘Morte dos seres queridos”. A segunda síntese é a que Freud realizou em Psicologia dos Grupos e a Análise do Ego (cap. VII) e em O Ego e o ld (cap. III, “O ego e o superego”). E o terceiro momento podemos considerar que começa com o trabalho A Organizaçâb Genital Infantil (1923) e termina com o artigo de 1931 sobre a sexualidade feminina. Quando dizemos que existem três momentos ou três formulações de Freud, estamos nos referindo àqueles lugares da obra em que ele tenta explicitar uma teoria com a qual está trabalhando. E, como em toda explicitaço que um autor faz de sua teoria, existem, na realidade, um recorte e uma seleção, deparamo-nos, ent5o, com uma sítuaço muito particular: algumas das formulações so incompletas em relação ao trabalho que Freud apresenta, por exemplo, nos históricos clínicos. Acontece algo bastante semelhante ao trabalho sobre O inconsciente da metapsicologia: ali Freud tenta uma síntese do conhecimento do inconsciente que, no entanto, no contempla suficientemente toda a elaboração freudiana sobre o tema do inconsciente, tal como se deduz dos trabalhos existentes até aquele momento. Portanto, há que diferenciar entre a síntese que um autor realiza — a forma como um autor apresenta a sua própria teoria — e a maneira como essa teoria é posta em prática mais além da apresentação que esse autor faça. Com isto, estamos retomando, em outro nível, toda uma problemática sobre a qual já trabalhamos o 9

ano passado: a diferença existente entre o ser e a representação que se toma como refletindo esse ser. Neste caso, tomamos por um lado a explicitação que se faz da teoria, mas, por outro lado, a explicitação desta teoria posta em prática, que pode mostrar pontos de fratura em relação à mesma explicitação. Partindo da explicitação, dizíamos, podem-se encontrar três conceitualizações em Freud em relação a Édipo. Comecemos com a que aparece na carta a Fliess de outubro de 1897, a do capítulo sobre “Morte dos seres queridos” e a mencionada em “Um tipo especial de escolha de objeto feita pelo homem”, o artigo de 1910. Freud coloca o que todos já sabemos, mas que, na sua época, significou uma revolução: o desejo amoroso pelo progenitor do sexo oposto e o desejo hostil em relação ao progenitor do mesmo sexo, desejo hostil este que culmina no da morte. É neste trabalho, “Um tipo especial de escolha de objeto feita pelo homem”, que Freud cunhou, pela primeira vez na sua obra escrita, a expressão “complexo de Édipo”. Antes, havia utilizado “Édipo”, por exemplo, em A Interpretaçio dos Sonhos, quando coloca o mito de Édipo, mas só então utiliza a expressão “complexo de Édipo”. Vão ver que não é por um mero interesse de erudição que insisto que a expressão “complexo de Édipo” aparece em 1910. O que estou situando é uma problemática e uma conceitualização que já aparece implícita pela escolha de uma expressão como”complexo de Édipo” e que corresponde a uma época definida. O termo “complexo” havia sido utilizado pelo grupo suíço de Bleu ler e Jung, com quem Freud havia começado a fazer intercâmbio científico. Freud toma de Jung o básico do conceito denotado por “complexo”. Em Jung, “complexo” significava um conjunto de idéias carregadas afetivamente e que era capaz de conduzir o curso associativo. O primeiro uso do termo “complexo” Freud só o faz em 1906, em um trabalho no qual vamos nos deter porque tem sido praticamente ignorado em psicanálise e que cremos que oferece interesse teórico: “A psicanálise e o estabelecimnto dos atos nos procedimentos legais”, escrito pouco tempo após ter entrado em contato com Jung. Nesse artigo, Freud explica os experimentos de Jung e disto vai surgir o conceito de complexo. Diz assim: “Os experimentos que eles levaram a efeito” (refere-se a Bleuler e Jung) “adquiriram seu valor pelo fato de que eles supunham que a reação à palavra-estímulo não podia ser uma questão de sorte e sim que devia estar determinada por um conteúdo ideacional presente na mente do sujeito que reagia”. Lembro-lhes os experimentos de Jung: davam-se palavras-estímulo e registravam-se as associações. A resposta, de acordo com a teoria, não era por acaso, e sim que este et(mulo caía sobre uma estrutura presente do sujeito e a resposta informava-nos sobre a mesma. Diz Freud: “Tornou-se costume nomear como complexo um conteúdo ideativo deste tipo que é capaz de influenciar a reação à palavra-estímulo”. Quer dizer que Freud toma este sentido, que é aquele que vai ser utilizado na sua teoria. E um pouco mais adiante, no mesmo artigo, diz: “Esta influência” — refere-se à do complexo ideativo — “age já seja porque a palavra-estímulo toca no complexo diretamente, ou

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porque o complexo consegue fazer uma conexão com a palavra através de nós intermediários”. Qual é a importância disto? Aqui há toda uma teoria do funcionamento psí . ,.l,, ,,,

lo que preexiste à palavra-estímulo é decisivo para a organização da resposta. O modelo que coloca é o seguinte: 19 — algo existente dentro do psiquismo do indivíduo; 29 — um estímulo; e 39 — um efeito. A primazia não está dada pelo estímulo, e sim pelo existente. Esta idéia constitui, em Freud, uma verdadeira estrutura formal, cujas versões particulares vamos reencontrar na análise dos sonhos, da transferência, das produções psicopatológicas.

Assim:

19—O existente + 29 — Desejo reprimido + 39 — Velhas relações de obje- + to, fantasias, emoções em estado de repressão 49 — Hereditariedade +expe- + riências infantis

O importante a reter aqui é que os restos diurnos, a pessoa do analista ou o acontecimento desencadeante adquirem sua eficácia não pelo que são em si mesmo e sim por sua conexão com o existente. Mais ainda, o que determina que, da diversidade de estímulos presentes, algum deles se converta em restos diurnos é exclusiva- mente aquele que desperta o complexo. A tal ponto isto é assim para Freud que ele entende a transferência clínica como algo que está no paciente, pronto para aproveitar a figura do analista — este seria a famosa tela neutra — e disparar. Mais do que a verdade que esteja contida nesta suposição, o que ilustra é um modelo geral: o prévio constitui o posterior em significativo.* Observe-se, então, que o que poderia se ver como simplesmente uma teoria da associação de idéias é algo mais, é toda uma concepção da estrutura e do funcionamento psíquico, como o evidencia o fato de que a reencontramos no sonho, na transferência e nas séries complementares da formação de sintomas. Resulta, então, que, com o termo “complexo”, o que Freud estava estabelecendo é que há algo que existe no sujeito, frente ao qual um elemento externo age, seja como um disparador que evoca, ou como algo que permite a exteriorização daquilo que lutava para se deflagrar. Desta maneira pode-se entender por que Freud diz, nesta primeira época de a teorização, que o complexo de Édipo é central: há um conjunto de sentimentos, de aptidões, de emoções, de idéias — ao qual chama de “complexo” — que existem no menino e que orientam sua relação frente a seus pais. Por que ponho a ênfase em um conjunto de idéias, sentimentos, afetos, que existem no menino? Porque toda esta caracterização do complexo de Édipo surge Há, naturalmente, um outro modelo em Freud que rompe com a linearidade da causação psicológica do antes que condiciona o posterior: é o princípio da retroaço, que já aparece no Projeto de 1895 (seções 4, 5 e 6 da parte II) e muito especialmente no parágrafo 1 de “Novas observações sobre as neuropsicosesde defesa” (1896) e na Etiologia da Histeria (1897).

Estímulo contingente Efeito Restos diurnos —* Produção onírica Pessoa do analista — Transferência clínica

Acontecimento desencadeante

—* Produção sintomática

centrada na análise do que acontece ao menino. É um ser que, em função de seus impulsos, se orienta de determinada maneira frente a seus pais. Mais ainda, se tivéssemos que escolher uma metáfora ou algum modelo que permitisse visualizar isto, poderíamos dizer que, nesta concepção, o menino é o equivalente a um ímã dentro de um campo magnético; o ímã já tem propriedades suas, independentemente do campo magnético, e em função deste se orienta, entra em determinada relação com o campo magnético, mas suas propriedades preexistem ao campo, a tal ponto que se orienta de acordo com a constituição prévia de seus pólos.

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Para que se veja, desde já, mais claramente a diferença com o que poderia ser uma outra concepção do Édipo, que se desenvolverá mais tarde, pensemos agora num pedaço de ferro que não seja um ímã e que se ache no interior de um poderoso campo magnético. Suas moléculas orientar-se-ão por influência do campo, mas, uma vez fora deste, converter-se-á em um ímã artificial. Aqui já não é um ímã que se orienta de acordo com o campo e sim algo que se converte em ímã em função do campo; este estrutura aquele. É claro que o ferro já possui propriedades que fazem com que o campo magnético possa influenciá-lo — o mesmo não aconteceria com um pedaço de madeira —, mas o campo aparece não simplesmente interagindo com ele, como acontecia no primeiro modelo, e sim, organizando-o. Retornando agora à sexualidade do menino e de seus pais. Aquele é como o pedaço de ferro e não como o ímã: o biológico, o prévio é a condição de possibilidade para que o campo edípico aja. Mas não é uma sexualidade já constituída—como poderia ser a do animal — e sim que se organiza no seio da estrutura edípica. Teremos ocasião ao longo do livro de ir dotando esta afirmativa geral de conteúdo particular. Assim a concepção que aparece na primeira formulação freudiana do Édipo é a de uma sexualidade biologicamente determinada que orienta o menino — ímã no campo dinâmico da relação com seus pais. Apesar disso. Freud faz com que os pais intervenham, embora de uma maneira muito particular. Na seção sobre a “Morte dos seres queridos”, há alguns parágrafos que mostram que Freud não só tomava em conta o complexo de Édipo no menino como também outorgava alguma participação aos pais. Diz assim: “A atração sexual age também,geralmente, sobre os próprios pais, fazendo com que, por um traço natural” (enfatizo o natural) “a mãe prefira e proteja os varões enquanto que o pai dedica maior ternura às filhas”. E mais adiante diz Freud: “As crianças se dão conta perfeitamente de tais preferências e se rebelam contra aqueles seus ascendentes imediatos que as tratam com maior rigor”. Ou seja, o que os pais fazem provoca algum tipo de reaçáb nos meninos. Mas, para que se veja como, apesar disso, a influência dos pais é entendida como sepdo puramente de interação, diz Freud: “Deste modo, seguem” (refere-se aos meninos) “seu próprio impulso sexual” (a palavra que sublinho é “seguem”). “E, ao mesmo tempo, renovam com isto o estímulo que parte dos pais quando a sua escolha coincide com a deles.” Ou seja, em última instância, Freud vê como um encontro entre duas entidades constituídas: os meninos seguem seu próprio impulso sexual e renovam ao mesmo tempo com isto o estímulo que parte dos pais. Notem que, aqui, o papel que fica reservado aos pais não é o de constituintes da sexualidade do menino e sim o de algo que interage com algo que é próprio do menino.

É aqui que se torna clara a diferença entre um enfoque interacionista e um enfoque intersubjetivo. No primeiro, existem entidades que interagem, quer dizer, que se intercambiam, que se influenciam mutuamente. Em um enfoque intersubjetivo, não preexistem entidades que interagem e sim que se constituem como entidades no próprio processo da inter-relaçao. O complexo de Édipo da primeira época freudiana, assim caracterizado, aparece como orientando a sexualidade infantil e suas emoções. Pelo que havíamos dito, está centrado no que acontece ao menino. E notem que não é casual que se chame “complexo de Édipo”. Se o genitivo “de” tem algum sentido é que é o complexo que Édipo tem. Ou seja, complexo de Édipo está nos dizendo o complexo que Édipo “tinha”, com o qual a mesma expressão está marcando o interesse que centra a conceitualização: ver o que é que acontece a este sujeito que é Édipo. Isto vai fazer com que nós tenhamos que diferenciar entre o complexo de Édipo, como algo que alguém vive subjetivamente, e o Édipo como uma estrutura na qual se dá o complexo de Édipo, diferença esta que é central e à qual vou me referir mais adiante. ,,- Recapitulando: o complexo de Édipo está centrado no menino; supõe-se este como um ente constituído em sua sexualidade, cuja evolução, de natureza biológica e predeterminada, o faz dirigir-se a seus pais. Esta conceituação não descreve como sua sexualidade se constitui nem como seus desejos se constroem, nem o papel que os pais têm na construção desta sexualidade. Poderia se dizer que, a partir deste ponto de vista, este Édipo não pode ser considerado um Édipo estrutural. Primeiro, porque não trata de caracterizar a totalidade da estrutura em jogo, os pais e o menino, e porque não cumpre com o sentido moderno com que se utiliza o termo “estrutura”, como um conjunto de elementos que se constituem na relação e que são, portanto, rigorosamente interdependentes. No entanto, este Édipo que não é estrutural em sentido rigoroso, já Freud o entrevê como estruturante. Agora bem, em que sentido é estruturante? Este Édipo é estruturante do sujeito em um sentido: como conseqüência desta sexualidade que se desenvolve no seio de uma situação edípica, como conseqüência destes desejos de tipo incestuoso e hostis que entram em contradição com o que Freud chamaria as correntes dominantes da vida anímica do sujeito — em síntese, a cultura —, todos estes sentimentos são repugnantes ao sujeito e, então, Freud estabelece a concepção da repressão, da censura, como o mecanismo que constitui um tratar de colocar fora da consciência do sujeito aquilo que o repugna. A partir deste ponto de vista, o complexo de Édipo, ainda com as limitações desta época, é estruturante no sentido do primeiro tópico, já que contribui para a constituição do inconsciente, Não o fundamenta, porque em Freud o que fundamenta o inconsciente é a repressão primária, mas contribui para a sua constituição. A sexualidade aparece, assim, como dando

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origem a exclusões e, portanto, em última instância, a produções sintomáticas como retorno do reprimido. Para poder diferenciar semanticamente este Édipo do da estrutura pode ser adequado chamar-se o primeiro de “o Édipo do mito” e reservar “o Edipo” para o estrutural, como é a tendência na psicanálise francesa atual.

Eu havia dito que há tim segundo momento em Freud, que é o que aparece explicitado em A Psicologia dos Grupos e a Análise do Ego. Aqui, não só expõe o que acontece durante o período edípico e o torna complexo — o Édipo completo: ambivalência em relação a ambos os pais — como também propõe algo novo: a saída do Édipo com as identificações. Nesse trabalho, A Psicologia dos Grupos e a Análise do Ego, como conseqüência do que acontece no Édipo, o sujeito sai com determinadas identificações, já com a sua identidade sexual. Há uma mudança substancial em relação à formulação anterior, porque a identidade sexual já não se dá por dada, por natural, e sim quea identidade sexual é algo que se deve assumir, é algo que pode não ocorrer, ou pode ocorrer em uma direção distinta da que a biologia estaria determinando, como é o caso da homossexualidade, por exemplo. Como conseqüência destas identificações, à saída do Édipo forma-se o superego. Lembrem: herdeiro do complexo de Édipo no sentido de que é o substituto das catexias do objeto pelas identificações, e além de formar o caráter, como Freud afirma nessa primeira página do capítulo III de O Ego e o ld. O Édipo aqui adquire um caráter mais estruturante da personalidade, porque já não aparece somente constituindo o inconsciente sobre a base de uma fundação anterior, mas sim surge — estamos já no segundo tópico — integrando parte de toda a arquitetônica do sujeito. O sujeito constitui-se como tal no seio da situação edípica, porque, se o superego e o caráter se formam em conseqüência do que acontece nela, então esta situação aparece como condição estruturante do sujeito. Neste sentido, não há um sujeito que preexista à relação com os pais. É no contato com estes pais, movido por sua sexualidade e por seu ódio a seus pais, que o sujeito se estrutura de determinada maneira. Podemos dizer que é menos interacionista que o primeiro modelo dado por Freud: já não há alguém que segue seu impulso natural, mas há um interjogo que constitui um sujeito. Considera não só o que acontece no acme da situação edípica como também à saída dela e, portanto, coloca a existência de dois tempos no Édipo. Na obra freudiana vem depois um terceiro período, aquele em que Freud diz que o Édipo não é igual tanto para a mulher quanto para o homem. Estabelece uma diferença, já com respeito ao período que acabamos de resumir, no qual o Édipo era equivalente para ambos. Além disso, converte a castração no centro do Édipo. Contudo, não vem claro ainda, nestas formulações mais tardias sobre o Édipo, qual é a função, o que é que a mãe quer. Ou seja, o que é que acontece na totalidade da estrutura edípica. A análise segue centrada em um dos pólos da estrutura edípica, o menino. É aqui que aparece verdadeiramente o mérito de Lacan, que amplia o conceito de “complexo de Édipo”, já não só para o que acontece no menino, mas também para o que acontece numa situação dentro da qual o menino está incluído. Quando afirma que o menino é o falo da mãe, ele já está dizendo o que é o menino para a mãe, mas, além de estar nos falando sobre a mãe, apresenta-nos esta constituindo- se na relação com o menino. Porque se o menino é o falo para a mãe, esta se constitui, em função do menino, como o possuindo. A mãe já não é um ser e sim alguém

que se figura, se estrutura, em interdependência com este menino. No entanto, a análise do pai, enquanto sujeito, não aparece tão claramente delimitada. Poderia se dizer, e já vamos trabalhar nisto, que se elevou a função do pai a um primeiro plano, ou seja, o papel que representa para esta díade mãe-filho, mas o que não aparece estudado é o que significa para o pai que a mãe tenha o falo através do filho, que seja ilusoriamente a lei, etc. Enquanto que se descrevem os efeitos que as funções da estrutura induzem no imaginário da mãe e do menino, o mesmo não acontece com o pai. Inclusive alguns trabalhos, como o de Moustafá Saffouan, membro destacado do grupo lacaniano, quando analisam a função do pai real, o que lhes interessa é o que este produz na díade mãe-filho. Mas, não queremos antecipar em forma de aforismos o que merece ser objeto de um estudo detalhado e de leitura de textos, mas tínhamos interesse em sugerir questões que dessem dimensão à discussão. Há muitos outros problemas que devemos debater detidamente: como se constitui a sexualidade, a escolha do objeto? Qual o papel dos impulsos? Como se encontram estes e se insererfl na ordem cultural? Como se passa do biológico ao cultural? Isto é, em síntese, o que o complexo de Édipo da segunda época freudiana — O Ego e o ld — trata de dar conta: como se passa do biológico ao cultural. Mas o Édipo é chave também para entender a constituição dos mecanismos de funcionamento psíquico e, entre eles, os de defesa. Durante muito tempo, pensou-se que os mecanismos de defesa eram algo que estava naturalmente dentro de um indivíduo e do qual dispunha para se proteger das ansiedades da situação

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edípica. Enquanto que a fuga perante o perigo pode ser um instinto — no sentido dos etnólogos — que se traz desde a filogenia, a negação freudiana, para tomar um exemplo, depende da linguagem. Por ora, o que a caracteriza é o signo lingüístico “não”. E se é pelo recurso à linguagem, isto implica que o sujeito não só deve adquiri-la como também que a recebe dos que lhe trazem a linguagem: seus pais. Mais ainda, se os mecanismos de defesa são operações do pensamento, formas de manejar símbolos, no código operatório que se ocasiona na situação ed ípica ao menino por parte de seus pais se acha a condição de possibilidade da existência dos mecanismos defensivos. Mas isto não é tudo. Não somente os pais bcasionam um conjunto de operações possíveis como também privilegiam algumas dentre elas. Assim, tomemos um só exemplo que sabemos simplificante, mas ao mesmo tempo ilustrativo: o discurso coletivo de certas famílias, que constitui verdadeiros rodeios ao redor de temas que não são tocados diretamente e sim que ficam marcados pela sua ausência, facilita por introjeção um tipo de pensamento individual no qual a evitação é um traço distintivo. A identificação representa, portanto, um papel central na constituição dos mecanismos de defesa no sujeito. E como são processos que ocorrem no seio de uma situação, a edípica, que está marcada pelos desejos, os mecanismos de funcionamento dos pais serão aceitos ou rejeitados de acordo como o menino fique colocado perante aqueles. Assim, o Édipo aparece condicionando os mecanismos de defesa e não estes como algo que enfrenta o edípico. Voltaremos no decorrer do livro para tratar de desenvolver o que agora apareceomo uma formulação geral.

Eu lhes havia dito que Lacan amplia o Édipo mediante uma conceitualização que pode ser considerada mais estrutural, e surge, então, a pergunta: qual é a relação entre este Édipo e a cultura? O Édipo que nós analisaremos é um Édipo mutilado, é um Édipo que, por sua vez, não está definido em relação a uma estrutura mais ampla na qual está nscrito, que é a estrutura da cultura. Neste momento, ex is- tem pistas para tratar de estudar uma articulação entre a cultura e o Édipo, mas são pistas a serem desenvolvidas e talvez seja o terreno mais inexplorado de toda a teoria. Mas colocamos muitos outros problemas que quero ir apontando para que tenhamos motivo de reflexão e que se possam converter em problemática que nos seja frutífera. O complexo de Édípo é inconsciente no sentido sistemático, quer dizer, algo que não pode tornar-se consciente mediante catexias de atenção — o que seria o caso do pré-consciente já que os desejos incestuosos e hostis constituem o núcleo do reprimido. Temos então uma primeira tese: o complexo de Édipo pertence ao inconsciente em sentido sistemático. Assim, se neste complexo inconsciente deseja-se eliminar o pai para se poder ficar com a mãe — já que esta é, na conceitualização freudiana, a causa principal do desejo de morte para com o progenitor do mesmo sexo — isto implica uma lógica de oposição: “ou ele ou eu”, “se ele tem a mamãe, eu não a posso ter; logo, ele deve desaparecer”. Por outro lado, se existem conflitos inconscientes, com idéias que se opõem entre si e que seriam a causa das defesas também inconscientes, tudo isto não indicará que existe contradição no inconsciente, que os contrários não podem coexistir, já que, se fosse assim, como poderia haver conflito? E então, como se articula a existência do conflito inconsciente e da contradição que implica o complexo de Édipo reprimido com a afirmação repetida até o cansaço, mas sem extrair conseqüências dela, de que no inconsciente não há contradições? Como se articula a teoria do complexo de Édipo com a teoria do inconsciente? Esta é uma problemática que também deveremos encarar em nossas reuniões. Vocês podem se perguntar a esta altura: que tem tudo isto a ver com a psicopatologia, com as perversões? Damos desde já a resposta; se o Édipo intervém determinando o tipo e a escolha de objeto, a identidade do sujeito, como este e seu desejo se constituem, seus mecanismos de defesa, a perversão que implica uma determinada identidade, uma posição perante o desejo, uma escolha de objeto, estará, então, marcada pelo Édipo. por isto que abordar o tema do Édipo não é fazer um rodeio, mas sim iniciar a consideração do problema que nos ocupa.

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