01_igreja_potiguara

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/25/2019 01_igreja_potiguara

    1/19

    Revista Historiar, ano II, n. I (2010) 8

    A IGREJA POTIGUARA: A saga dos ndios protestantes no Brasil Holands. 1

    Francisca Jaquelini de Souza Virao 2

    RESUMO

    Este artigo aborda a saga dos ndios da tribo potiguara que foram evangelizados pelos

    ministros reformados holandeses durante o Brasil Holands (1630 1654). Destacando

    principalmente a atuao dos regedores Pedro Poty e Antnio Paraupaba, a sua relao

    com os holandeses, sua importncia para a governabilidade dos flamengos e atuao na

    expanso do evangelho reformado na Amrica.

    PALAVRAS-CHAVE: Tribo Potiguara, Brasil Holands, Protestantismo.

    ABSTRACT

    This article is about the story of Indians by Potiguara Nation who were Reformed

    Christians during the period of Dutch Brazil (1630 1654). The dutch ministries to

    teach the Christian doctrine for the Indians. Two Indians, Pedro Poty and Antnio

    Paraupaba were the best important for Dutch government and reformed gospel in

    America.

    KEY WORDS: Potiguara Nation, Dutch Brazil, Protestantism.

    INTRODUO

    O Censo 2000 do IBGE revelou que o Brasil tem aproximadamente 26milhes de protestantes, estimativas para o Censo 2010 de que este nmero cresa

    para 35 a 40 milhes. O nmero to grande de protestantes no Brasil fez surgir nos

    ltimos anos inmeras pesquisas sobre o protestantismo brasileiro, a grande maioria

    Trabalho resultante de artigo para graduao em Histria pela Universidade Regional do Cariri.

    Graduada pela Universidade Regional do Cariri e atualmente leciona Histria na Escola de Ensino

    Mdio Maria Emlia de Lima Pinho em Acopiara-CE. E-mail:[email protected].

  • 7/25/2019 01_igreja_potiguara

    2/19

    Revista Historiar, ano II, n. I (2010) 9

    delas temporalizando seu objeto de estudo do sculo XIX para os dias atuais, mas o

    protestantismo brasileiro muito mais antigo do que se pensa.

    A primeira entrada do evangelho reformado em nosso pas foi em 1557

    durante a Frana Antrtica. Em 9 de maro de 1557 foi realizado o primeiro culto das

    Amricas, mas sem a presena de brasileiros, apenas franceses. Os franceses tinham um

    real projeto de evangelizao do Brasil, mas o Fracasso da Frana Antrtica foi o

    fracasso desse projeto. Somente 80 anos depois um trabalho reformado realmente forte

    foi realizado no Brasil.

    A f reformada, pouco abordada em estudos sobre o Brasil Holands,

    mostrou-se fundamental para a aliana entre ndios e holandeses, consequentemente

    para a governabilidade dos mesmos. E sobre este assunto de que trata o presente

    artigo, como uma religio pode ser crucial para a governabilidade de um Estado.

    A IGREJA REFORMADA E O BRASIL

    No perodo que chamamos de Brasil Holands (1630 1654) houve uma

    intensa evangelizao por parte da Igreja Reformada Holandesa, que era a igreja oficial

    do Estado Holands. Estes missionrios concentraram seus esforos com mais

    intensidade na tribo potiguara, muitos potiguaras se converteram f reformada se

    tornando verdadeiros crentes, como Pedro Poty.

    A forte evangelizao deste povo, a convivncia com os holandeses e a

    insero em espaos, antes jamais pensados pelos indgenas pode ter criado uma

    mentalidade protestante nestes ndios, mentalidade esta que parece ser inegvel quando

    se observa a documentao produzida por eles.

    Quando a Reforma Protestante eclode na Europa ela criar alguns

    problemas para os prprios protestantes. Tais como se a igreja unida ao Estado, comoser um protestante sem ser um criminoso? Este problema parece ter sido

    superficialmente resolvido quando surgem os primeiros Estados Protestantes e

    protestantes perseguidos em Estados Catlicos comeam a migrar em massa.

    Isto sugere a criao de uma mentalidade bem interessante, a de que uma

    igreja protestante s sobrevive em um Estado Protestante que a proteja. No Brasil

    holands no ser diferente. Essa mentalidade parece ter criado uma relao entre

    etnia/regio e religio. como se quem fosse de um Estado Catlico seria catlico e de

  • 7/25/2019 01_igreja_potiguara

    3/19

    Revista Historiar, ano II, n. I (2010) 10

    um Estado Protestante, protestante, e esta relao pode ter criado um conceito de espao

    religioso nos ndios protestantes do Brasil Holands.

    Talvez o conceito protestante de Igreja, que de Igreja Universal, ou seja, a

    igreja uma comunidade de crentes formada por todos os cristos do passado, presente

    e futuro de todos os lugares da Terra que se encontram separados pelo espao e tempo,

    mas unidos espiritualmente em Cristo fizesse com que holandeses e ndios potiguaras

    tivessem relaes muito mais profundas do que apenas a poltico-militar. Observa-se

    isso nitidamente quando analisado as representaes da Antnio Paraupaba, ser que a

    forte mentalidade protestante indgena que se expressa com mais fora em sua viso do

    espao, no revela uma profunda relao religiosa entre ndios e holandeses?

    Este conceito de espao pode ser visto quando se analisa dois documentos

    produzidos pelo ndio potiguar Antnio Paraupaba. Nestes dois documentos Paraupaba

    exige o socorro holands aos ndios refugiados na Serra da Ibiapaba, CE, depois da

    rendio holandesa em 1654. Para fundamentar sua petio, este regedor-mor, utiliza

    como argumento o fato destes ndios serem sditos holandeses e membros da Igreja

    Reformada Holandesa.

    A argumentao produzida atravs da influncia da mentalidade

    protestante da poca que considerava que somente em um Estado Protestante, uma

    igreja protestante poderia sobreviver e na viso da Amrica como um refgio seguro s

    perseguies sofridas na Europa. Tm-se ento a criao de um conceito protestante do

    espao no Brasil do sculo XVII.

    Compreender como uma mentalidade religiosa pode formar um conceito de

    espao extremamente importante no apenas para entendermos os vrios conceitos de

    espao construdos ao longo da Histria do Brasil, mas tambm para aprofundarmos

    nossos conhecimentos acerca dos conceitos de cultura e poder.

    ndios potiguaras foram legtimos funcionrios pblicos do Estado Holandscomo Antnio Paraupaba, Pedro Poty e Carapeba, lderes militares respeitadssimos no

    exrcito holands como Domingos Fernandes Calabar (que aqui visto mais como

    ndio), que em seu funeral recebeu honras militares por parte do exrcito holands.

    Mas muito mais profundamente nas relaes religiosas. Muitos ndios foram

    enviados Holanda, ao calvinista Seminrio de Leiden para se tornarem mestres-escolas

    e at mesmo pastores. E apesar de poucos, houve sim casamentos entre ndios e

    holandeses. Tudo isto faz-nos perguntar at onde ia relao entre holandeses e ndios

  • 7/25/2019 01_igreja_potiguara

    4/19

    Revista Historiar, ano II, n. I (2010) 11

    potiguaras, talvez estudando o conceito de espao formulado por eles atravs de sua

    mentalidade protestante cheguemos a alguma resposta.

    O Nordeste do sculo XVII analisado neste artigocomo sendo uma regio

    no sentido geogrfico do termo, que contm duas regies tnicas, o Nordeste Holands,

    ou seja, a Nova Holanda, onde os holandeses procuraram estabelecer relaes pacficas

    com luso-brasileiros e ndios, principalmente com os potiguaras. E o Nordeste

    Portugus, que fora dominado e durante o perodo holands foi subjugado pela regio

    tnica dominante. E regio entendida, segundo o conceito de Jos DAssuno Barros,

    (...) como uma unidade que apresenta uma lgica interna ou um padro que a

    singulariza, e que ao mesmo tempo pode ser vista como unidade a ser inserida ou

    confrontada em contextos mais amplos... (BARROS, 2005:98)

    Dependendo de que regio tnica o indivduo pertencia ele estabelecia

    relaes espaciais bem definidas. Neste artigo analisaremos apenas as relaes entre

    ndios potiguaras e holandeses, estes (os ndios) foram inseridos no espao militar,

    poltico, social e principalmente o religioso(MEUWESE, 2003: 461 470).

    Falo assim, pois entendo que o espao seja:...a prtica que se d ao sentido

    de um lugar, segundo Michel de Certau e que nascem da adoo de posturas, desde

    corporais at polticas e estticas. Os espaos so posturas, so posies que se

    imobilizam por dado tempo, mas que se desfazem num outro momento de cambaleio e

    de vacilao das foras que sustentaram estas posturas. (ALBUQUERQUE, 2008:73)

    No sculo XVII, o Estado era unido Igreja, e esta unio constitua

    conseqncias muito mais profundas do que costumamos analisar. Segundo Marilena

    Chau:

    A teoria do corpo poltico mstico tambm se adapta idia

    jurdica do fundo pblico (a terra) como domnio e patrimnio

    rgios: a terra (entendida como todos os territrios herdados ouconquistados pelo rei e todos os produtos que neles se

    encontram ou nele so produzidos) se transforma em rgo do

    corpo do governante, transmissvel a seus descendentes ou

    podendo ser, em parte, distribuda sob forma do favor. (CHAU,

    2000: 83)

    Se o territrio do Estado era o corpo do prprio rei e se o Estado era unido

    Igreja, como fica ento situao daqueles que no pertenciam religio do rei, nestecaso os protestantes? Lutero buscou uma soluo quando afirmou a doutrina do

  • 7/25/2019 01_igreja_potiguara

    5/19

    Revista Historiar, ano II, n. I (2010) 12

    Sacerdcio Universal. Logo surgiram na Europa Estados Catlicos e Protestantes, os

    protestantes perseguidos em Estados Catlicos ento migraram para Estados

    Protestantes, onde tinham liberdade de culto, acredito que isto criou uma relao entre

    regio/etnia e religio e esta relao criou uma mentalidade de que uma igreja

    protestante s poderia existir em um Estado Protestante que a protegesse, na Holanda

    essa mentalidade era muito mais forte, pois o prprio pas como Estado surge de uma

    luta poltico-religiosa contra a Espanha (SCHALKWIJK,2004: 383 384). E essa

    mentalidade cruzou o Atlntico e se fez presente no Brasil Holands. Este conceito, o de

    mentalidade, entendido segundo a frmula de R. Mandrou, ou seja, como as estruturas

    mentais que so (...) constitudas pelas vises de mundo herdadas de um passado

    remoto e reconhecidas por certos grupos, ou at mesmo por toda a sociedade global

    (ARIS In LE GOFF, 2005:225).

    Com a evangelizao indgena os pastores holandeses influenciaram os

    ndios, principalmente os potiguaras a terem uma viso de mundo muito parecida com a

    deles, j que apesar dos ndios terem seus prprios interesses ao se aliarem aos

    holandeses, aqueles que se converteram f reformada se mostraram verdadeiros

    crentes, como afirma Ribas nesta anlise que faz da vida de Felipe Camaro e Pedro

    Poty:Diferentemente de seu primo, que titubeava ante as relaes luso-brasileiras e

    neerlandesas, Poti manteve-se irredutvel at o final. Difcil sonda-lhe mais intimamente

    as causas. Seja como for, em nome de uma f ou de uma estratgia, o fato que Poti no

    era mais um catlico. Ele era um reformado. (RIBAS, 2007: 208)

    Com a Restaurao a sua regio tnica j no existia mais e com ela tambm

    se foram os espaos em que estavam inseridos. O que fazer? Os potiguaras no se

    reconheciam dentro da regio tnica portuguesa, buscaram ento amparo onde se

    reconheciam, na Repblica Holandesa. Eles eram sditos do mesmo prncipe e filhos do

    mesmo Pai.Poty morreu por sua f, mas tambm por seu povo (RIBAS, 2007: 208).

    Paraupaba cruzou um oceano em busca de seus irmos de f para salvar sua gente, os

    ndios da Serra da Ibiapaba se refugiaram dos padres, mas tambm da espada

    portuguesa. Estes ndios viveram e morreram por um sonho: o da sobrevivncia e

    optaram estar do lado daqueles que julgaram dar-lhes a vida.

    E ao entrar em contato com esses, lhes apresentaram uma f libertadora, da

    qual teriam a opo de aceitar ou no, e liberdade tudo o que um povo subjugado querouvir. A busca pela sobrevivncia forou a escolha, mas foi a f que selou a aliana.

  • 7/25/2019 01_igreja_potiguara

    6/19

    Revista Historiar, ano II, n. I (2010) 13

    A MENTALIDADE PROTESTANTE DOS NDIOS POTIGUARAS

    1) o conceito que uma igreja protestante s poderia sobreviver em um

    Estado Protestante.Para a implementao da Frana Antrtica, Villegaignon recorre a

    polticos reformados franceses, o argumento que ele usou para convenc-los foi que

    seu veemente desejo e mais forte empenho era procurar um stio de repouso e

    tranqilidade, onde pudesse estabelecer os perseguidos em Frana por causa do

    evangelho. (CRESPIN, 2007: 26)

    2) A viso da Amrica como um refgio. E Jean de Lry nos confidencia

    que alm de um lugar seguro para a igreja Villegaignon prometeu fazer da Frana

    Antrtica um refgio: manifestou a vrios personagens notveis do reino o desejo, que

    de h muito alimentava, no s de retirar-se para um pas longnquo onde pudesse

    livremente servir a Deus, de acordo com o evangelho reformado, mas ainda preparar um

    refgio para todos os que desejassem fugir s perseguies. (LRY, 1967: 27)

    3) A supervalorizao do mrtir. No clssico O Peregrino, John Bunyan

    ao retratar o martrio de Fiel na Feira da Vaidade o coloca na posio de heri, que

    parece ser o destino dos mrtires. Que doces cantos ouvi eu de Cristo, enquanto

    caminhava! Grande foi a tua felicidade no Senhor, meu bom amigo Fiel, dizia

    ele...Bendize a Deus, amigo Fiel, e canta: teu nome ser eterno, porque vives, apesar de

    te haverem morto. (BUNYAN 2004: 146)

    Vemos como esta mentalidade presente na documentao produzida pelos

    potiguaras. 1) Paraupaba busca auxlio na Holanda por que o Estado Holands era

    protestante como aqueles ndios eram.

    Portanto confiamos firmemente que V. Ex. ( que sempre semostraram como verdadeiros pais e defensores dos oprimidos e

    desamparados, e sinceros paladinos da verdadeira Igreja de

    Deus) mandaro o mais depressa possvel para l o socorro

    suficiente para a subsistncia da infeliz nao dos Brasilianos e

    para a conservao da Igreja Crist Reformada, a nica

    verdadeira. ( HULSMAN, 2006: 53)

  • 7/25/2019 01_igreja_potiguara

    7/19

    Revista Historiar, ano II, n. I (2010) 14

    2) Paraupaba v a Serra da Ibiapaba como o refgio potiguara. Sendo por

    isso o suplicante enviado a V.Ex por esta nao que se refugiou com mulheres e

    crianas em Cambressive no serto alm do Cear, a fim de escapar aos ferozes

    massacres dos Portugueses... ( HULSMAN, 2006: 52)

    3) Em sua representao aos Estados Gerais holandeses, Paraupaba

    apresenta Pedro Poty como um mrtir:

    Que ele, um indigno, tendo, por uma merc no merecida e

    incompreensvel, reconhecido a Deus e ao Pai de todas as graas

    na verdadeira religio, a Reformada, que tinha a certeza de ser

    no s a verdadeira, mas a nica aprazvel a Deus, e que estava

    resolvido a no abandon-la nem na vida e nem na morte.

    (HULSMAN, 2006: 59 60)

    Esta mentalidade forjou um conceito de espao religioso que percebido

    nas Representaes de Antnio Paraupaba e na documentao potiguara. 1) o conceito

    que uma igreja protestante s sobrevive em um Estado protestante sugere a criao de

    uma relao regio/etnia e religio. Pedro Poty parece no diferenciar a etnia de

    religio. Em sua carta a Felipe Camaro, Poty usa o argumento que Felipe luta ao lado

    dos portugueses por que catlico:

    Sou christo e melhor do que vs: creio s em Christo, sem

    macular a religio com idolatria, como fazeis com a vossa.

    Aprendi a religio christ e a pratico diariamente, se vs a

    tivsseis aprendido, no servirieis com os perfidos e perjuros

    portuguezes, que apezar das promessas do rei e do juramentofeito por elle, depois de roubarem os bens dos Hollandezes, vm

    atacar traioeiramente a esses e a ns mesmos; mas ho de

    receber o castigo de Deus. (MAIOR, 1912: 66)

    2) o espao do refgio. A regio tnica da qual eles pertenciam j no

    existia mais, e nem os espaos em que estavam inseridos. Agora a Serra era o seu

    refgio, eram refugiados em sua prpria terra. Ele apresentou e mostrou o estadotriste... em que se encontra essa nao fiel..., pedindo humildemente assistncia e

  • 7/25/2019 01_igreja_potiguara

    8/19

    Revista Historiar, ano II, n. I (2010) 15

    ajuda. (HULSMAN 2006: 54) 3) a supervalorizao do mrtir. Paraupaba apresenta

    Poty, no como um grande guerreiro, mas como um mrtir e ele faz essa apresentao

    citando-o como um exemplo de fidelidade dentre outros da nao brasiliana.

    Paraupaba genial ao citar a parbola dos talentos. Se os holandeses no

    dessem o socorro dificilmente se justificaria perante o Grande e Todo Poderoso Deus,

    que contra os que enterram a sua libra com medo de a colocar na usura. (

    HULSMAN 2006: 53). Primeiro ele fala da fidelidade da Igreja Filha e depois traz

    responsabilidade a Igreja Me. Para Paraupaba mais do que sditos do mesmo Estado,

    potiguaras e holandeses eram membros da mesma Igreja, que para ele era eterna e

    transcultural, ele usou intensamente a doutrina de Igreja Universal:

    Cremos e confessamos uma s igreja catlica ou universal. Ela

    uma santa congregao e assemblia dos verdadeiros crentes em

    Cristo. Esta igreja existe desde o princpio do mundo e existir

    at o fim. (...) A santa igreja tambm no est situada, fixada ou

    limitada em certo lugar, ou ligada a certas pessoas, mas ela est

    espalhada e dispersa pelo mundo inteiro. Contudo, est

    integrada e unida, de corao e vontade, no mesmo Esprito,

    pelo poder da f. ( CONFISSO DE B BELGA,2005:25 - 26 )

    Pela anlise desses documentos tudo leva a crer que Paraupaba via o mundo

    com os olhos de sua mentalidade religiosa, seu espao era religioso. Ele no v mais seu

    pas como a terra de seus ancestrais, mas se sente um refugiado em sua prpria terra,

    no v Pedro Poty como um grande guerreiro, mas como um mrtir, v seu prprio

    povo como parte da Igreja Universal de Cristo e a ele mesmo como um pobre cristo em

    busca de justia.

    PEDRO POTY, O PRIMEIRO MRTIR PROTESTANTE BRASILEIRO

    Pedro Poty um daqueles homens que despertam paixes e dios, sua histria

    ainda muito pouco conhecida pela historiografia brasileira, apesar de sua vida estar

    intimamente ligada com nossa histria. Estud-lo quase como embarcar em um

    romance de aventura ala Spillberg.

  • 7/25/2019 01_igreja_potiguara

    9/19

    Revista Historiar, ano II, n. I (2010) 16

    Em provveis 34 anos de vida, ele passou a infncia na Paraba, a juventude

    na Holanda, onde recebeu a melhor educao holandesa em seu perodo ureo, volta

    para o Brasil ainda jovem para se tornar lder de sua tribo, os potiguaras. Guerreiro

    respeitado tanto pelos potiguaras quanto pelos holandeses, participa da Campanha da

    Angola, quando os holandeses conquistam esse territrio dos portugueses, morre com

    status de heri e de mrtir. Foi uma espcie de diplomata, militar, lder poltico e

    religioso. Um homem cuja vida merece ser conhecida.

    Quando a frota do comandante holands Boudewyn Hendricksz aportou na

    Baa da Traio na Paraba em 1625, levou para a Holanda algo que no vieram buscar

    no Brasil: ndios da tribo potiguara. Hendricksz viera ao Brasil para servir de apoio aos

    holandeses que h um ano estavam na Bahia, na primeira tentativa de colonizao

    batava do Brasil. Sua parada na Paraba foi para reabastecer sua frota.

    Os ndios trataram os flamengos muito bem e pediram para embarcar rumo

    a Holanda com eles, pois os portugueses estavam no encalo dos neerlandeses. Apenas

    menos de dez ndios embarcaram, dentre eles Pedro Poty, que deveria ter 10 ou 11 anos.

    Portanto Poty deve ter nascido entre 1614 e 1615.

    Na Holanda o jovem Poty conheceu vrias cidades, aprendeu a ler e escrever

    em neerlands e se converteu Religio Reformada. A cidade em que passou mais

    tempo foi Leiden, tudo pago pela Companhia das ndias Ocidentais, alis seu tutor deve

    ter sido Johannes de Laet, diretor da companhia que morava em Lienden. L vrios

    pilotos holandeses o procuram para saber de informaes da costa do Brasil. Essas

    informaes chegaram Companhia que dirigiu-se ao Prncipe de Orange-Nassau com

    o objetivo de nova conquista no Brasil, desta feita em Pernambuco, isto em 1628.

    Poty volta ao Brasil dois anos depois (provavelmente aos 15 ou 16 anos), uns

    seis meses depois da tomada de Recife provavelmente na frota de Hendrick Lonck, pois

    este recebera como instruo complementar a conquista da Paraba. A misso de Potypara o holandeses era de servir como uma espcie de diplomata, alm de traduzir o tupi

    e o holands arrebanhar os ndios para o lado holands, coisa que fez muito bem j que

    dois quintos dos tupis nordestinos eram fiis sua posterior liderana durante a Batalha

    dos Guararapes.

    Porm talvez a primeira misso oficial de Poty na Conquista Holandesa do

    Nordeste do Brasil tenha sido no Cear, com Elbert Smient em 13 de outubro de 1631.

    Em servir como intermedirio nas conversaes com os tapuias das capitanias do Ceare Rio Grande junto com Gaspar Paraupaba, ndio potiguara do Cear, que tambm era

  • 7/25/2019 01_igreja_potiguara

    10/19

    Revista Historiar, ano II, n. I (2010) 17

    um dos que foram Holanda. O Rio Grande interessava Companhia por causa de suas

    ricas salinas e o Cear pelas minas de prata.

    Poty viveu na aldeia de Massurepe onde era capito, l liderava 198

    guerreiros potiguaras. Nesta aldeia o ingls Thomas Kemp foi o professor reformado no

    tempo de Poty e Davi Doreslaer o pastor responsvel. Mas dos ministros reformados

    holandeses em que Poty mais se apegou sem dvida foi a Johannes Eduardus, foi este o

    missionrio que traduziu as famosas cartas tapuais do tupi para o neerlands em 1646.

    Outra misso importante que Poty participou foi a tomada do forte Santa

    Cataria em Cabedelo na Paraba em 1637 na frota de Van Schoppe, lutando ao lado de

    Antnio Paraupaba e Maurcio de Nassau. Participou do culto de Ao de Graas

    realizado pelo pastor Samuel Folkerus, o primeiro da Paraba. Momento que deve ter

    sido marcante para ele, j que era paraibano. Outro momento marcante na vida de Poty

    foi sua participao na primeira Ceia do Senhor onde participou brasileiros, esta Ceia

    foi realizada em 1640, em sua aldeia, Massurepe, que ndios de outras aldeias tambm

    participaram, Thomas Kemp, deve ter sido o ministro protestante que celebrou esta Ceia

    do Senhor. A vida de Poti parece se confundir com os primrdios do protestantismo

    brasileiro.

    Ele deve ter participado da Conquista de Luanda na Angola, pois os

    ndios brasileiros ou brasilianos foram junto com os Holandeses, e j que era capito,

    deveria estar com seus guerreiros. Na verdade acredito que foi justamente a mostra de

    suas habilidades como guerreiro e lder militar, aliado sua habilidade de diplomata

    que j demonstrara no Brasil que fizeram com que fosse eleito regedor-mor dos ndios

    da Paraba, na Assemblia Indgena de 1645. Aos 30 anos, Pedro Poty j era uma

    unanimidade entre os ndios aliados aos holandeses no Brasil.

    Pouco se sabe da vida de Poty fora dos campos de batalha e das suas

    verdadeiras audincias diplomticas. Como cristo protestante convicto deveriaparticipar de todos os cultos protestantes, como fora criado na Holanda deveria apreciar

    arte, ler, principalmente a Bblia, deveria ser uma de suas ocupaes dirias, tambm

    deveria apreciar pintura e msica. Mas como o Brasil Holands era um pas conflituoso,

    mesmo no perodo nassoviano, no deveria ter muito tempo para isso, com os

    holandeses ele aprendeu tambm maus hbitos, na verdade o pior de seus pecados que

    os prprios holandeses consideravam, o da bebedeira, mesmo sendo um cristos

    reformado, Poty era conhecido por suas recadas alcolicas, mas isso no fazia dele umbbado descontrolado, s um homem fraco para a bebida, lembrando que os ndios no

  • 7/25/2019 01_igreja_potiguara

    11/19

    Revista Historiar, ano II, n. I (2010) 18

    conheciam a bebida com forte teor de lcool. No sabemos se ele casou, no h

    documentao que fala sobre isso, mas como Poty fora capturado pelos portugueses na

    Segunda Batalha dos Guararapes, sua esposa deveria receber uma penso, e sendo

    esposa de Pedro Poty ela deveria ser muita conhecida, como no aparece documentao

    at agora encontrada que prove isso, podemos afirmar que ele era solteiro.

    O perodo em que mais sabemos de sua vida foi durante a Insurreio

    Pernambucana, onde liderou seus potiguaras contra os portugueses. Durante esse

    perodo trocou vrias cartas com Felipe Camaro, seu primo, afim de convenc-lo a

    desistir de lutar pelos portugueses e sim lutar ao lado dos holandeses, que considerava

    os libertadores dos ndios do Brasil. Dessas cartas apenas uma de cada se salvou, a sua

    foi produzida em 31 de outubro de 1645, dia da Reforma Protestante, provavelmente de

    propsito. Neste valioso documento Poty mostra toda a sua f na Religio Reformada e

    em um Brasil formado por ndios e holandeses, alm de todo o seu dio aos

    portugueses.

    Poty foi o primeiro protestante brasileiro a sofrer torturas para renegar sua

    f. Quando foi capturado foi levado para o Cabo de Santo Agostinho em Pernambuco

    onde sofreu torturas durante seis meses para renegar sua f pelos jesutas, coisa que no

    o fez.

    ANTNIO PARAUPABA E A MARCHA DOS 4000

    Assim como Pedro Poty, Antnio Paraupaba tambm embarcou na frota de

    Boudewyn Hendricksz em 1625, recebeu a mesma educao de Pedro e tambm se

    converteu a mesma f reformada que Pedro. Tambm retorna ao Brasil junto com o

    irmo e amigo potiguar. Paraupaba tinha funo semelhante a Poty no Brasil, mas aqui

    quero destacar apenas os ltimos anos de sua vida.Durante a Assemblia os ndios realizada em 30/03/1645 em Itapecerica,

    Paraupaba foi eleito regedor-mor do Rio Grande, ao lado de Pedro Poty, da Paraba e

    Domingos Fernandes Carapeba de Itamarac e Pernambuco. Paraupaba desenvolveu

    misses importantes para o governo holands, principalmente junto aos potiguaras do

    Cear, terra de seu pai Gaspar, e os jandus do Rio Grande, os recrutando ao lado

    holands.

    Mas sua vida ficou marcada por ter produzido dois importantssimosdocumentos e por ter liderado uma marcha pica pelos sertes nordestinos, conduzindo

  • 7/25/2019 01_igreja_potiguara

    12/19

    Revista Historiar, ano II, n. I (2010) 19

    cerca de 4000 ndios por mais de 750 km de Pernambuco at a atual Viosa do Cear.

    Estes eram ndios tapuias (aliados polticos dos holandeses) e potiguaras (ndios

    convertidos a f reformada) de Pernambuco, Paraba, Rio Grande e Itamarac depois da

    capitulao de Taborda de 26/02/1654, pois no acreditava no perdo portugus, pelo

    visto nem ele, e nem estes 4000 ndios.

    A viagem teve ter durado cerca de um ou dois meses, pois em Agosto deste

    mesmo ano ele j estava na Holanda informado aos Estados Gerais a situao destes

    ndios e pedindo ajuda para a sobrevivncia dos mesmos. E o seu pedido de ajuda

    interessantssimo pois o argumento usado por Paraupaba para convencer os Estados

    Gerais Holandeses que era obrigao deste ajudar aqueles ndios que aqueles eram

    sditos holandeses e no do rei de Portugal e eram seus irmos de f, membros

    convertidos da Igreja Reformada Holandesa.

    Podemos perceber como a unio Estado/Igreja era forte no sculo XVII estes

    ndios no eram apenas sditos holandeses, mas membros da Igreja Reformada

    Holandesa, isso tornava-os juridicamente iguais a qualquer holands, e se examinarmos

    apenas um documento religioso, o Catecismo de Heildelberg, o oficial da Igreja

    Reformada Holandesa e usado no Brasil para o evangelismo, percebe-se na pergunta 54

    do domingo 21, que diz O que voc cr sobre a santa igreja universal de Cristo? esta

    resposta: Creio que o Filho de Deus rene, protege e conserva, dentre todo o gnero

    humano, sua comunidade, eleita para a vida eterna. Isto Ele fez por seu Esprito e sua

    Palavra, na unidade da verdadeira f, desde o princpio do mundo at o fim. Creio que

    sou membro vivo dessa igreja, agora e para sempre.

    A frase dentre todo gnero humano pode ser lida como qualquer povo, raa

    ou etnia e a frase creio que sou membro dessa igreja, agora e para sempre pode ser lida

    como sou de igual importncia que qualquer outro membro. Assim pelo prprio

    documento eclesistico, se um ndio brasileiro fosse membro da Igreja ReformadaHolandesa, ele seria igual a qualquer protestante holands, tendo os mesmos direitos e

    deveres, e como a Igreja era unida ao Estado, este tambm era um sdito holands com

    os mesmos direitos e deveres que qualquer holands. Paraupaba sabia disso, por isso

    usou tal argumentao.

    Ele tambm sabia que com a Restaurao aqueles ndios eram duplamente

    criminosos, pois j que todas as terras do Brasil passaram novamente para o rei de

    Portugal, estes ndios j no tinham, juridicamente falando terra nenhuma e por teremlutado ao lado dos holandeses eram inimigos do Estado Portugus (do rei) e por serem

  • 7/25/2019 01_igreja_potiguara

    13/19

    Revista Historiar, ano II, n. I (2010) 20

    protestantes, inimigos da religio do Estado, portanto duplamente criminosos, hereges e

    traidores para Portugal.

    Paraupaba morreu no inverno de 1657 na Holanda, sua esposa Paulina

    recebeu uma penso vitalcia dos Estados Gerais, o que aconteceu com ela e seus filhos

    no se sabe. Mas sabemos muito bem o que aconteceu com aqueles 4000 ndios e o

    que veremos no prximo ponto.

    A GENEBRA DOS SERTES, OS NDIOS PROTESTANTES DA SERRA DA

    IBIAPABA

    Vieira comea seu relato falando dos Tabajaras, que antes amigos dos

    portugueses, passaram a ser amigos dos holandeses e que se tornaram mais feras

    depois que viero ajuntar com ellas outras estranhas e de mais refinado veneno, que

    foro os fugitivos de Pernambuco.(VIEIRA, 1904: 92)

    Este refinado veneno, a teologia reformada, prova que estes ndios eram

    maduros em sua f, como veremos ao analisar posteriormente o relato de Vieira. E j

    que eram maduros na f muito difcil de acreditar que desejassem a morte de seus

    irmos de f holandeses, j que no se fazia distino entre etnia e religio no Brasil

    Holands e tambm por que acreditavam que pertenciam a uma igreja universal, o

    Prprio Corpo de Cristo, que tanto eles como os holandeses tambm eram membros.

    Em seu relato Viera diz que:

    Com a chegada destes novos hospedes ficou Ibiapaba

    verdadeiramente a Genebra de todos os sertes do Brazil por

    que muitos dos ndios de Pernambuco foro nascidos e creados

    entre os Hollandezes, sem outro exemplo nem conhecimento da

    verdadeira religio. Os outros militavo debaixo de suas

    bandeiras com disciplina de seus regimentos que pela maiorparte so formados da gente mais corrupta de todas as naes da

    Europa. (VIEIRA, 1904: 93)

    Deixando bem claro que existiam dois tipos de ndios que vieram de

    Pernambuco, os potiguaras, os que eram convertidos a f reformada, e os tapuias apenas

    aliados polticos dos holandeses.

    O que de mais se admirar nesses ndios era sua cultura material, Vieirarelata que sabiam ler e escrever e traziam consigo alguns livros, provavelmente uma

  • 7/25/2019 01_igreja_potiguara

    14/19

    Revista Historiar, ano II, n. I (2010) 21

    Bblia, o catecismo de Heildelberg e o Catlico Reformado de William Perkins. Alis

    essa cultura letrada era financiada pela Companhia das ndias Ocidentais com a

    manuteno de escolas e mestres-escolas para cada aldeia e est no catecismo de

    Heildelberg a manuteno de escolas as escolas crists devem ser mantidas diz o

    catecismo. Saber ler a Bblia fundamental para a religio reformada, parte integrante

    da prtica religiosa protestante ler a Bblia, atravs dela que se sabe como o fiel pode

    agradar a Deus, o mesmo catecismo diz: A verdadeira f o conhecimento e a certeza

    de que verdade tudo o que Deus nos revelou em sua Palavra.

    Alm dos livros os ndios tambm tinham, segundo Vieira cartas escritas em

    papel veneziano, seladas com lacre da ndia, roupas de gr e seda que ganharam dos

    holandeses. O estudo da cultura material destes ndios seria realmente fascinante, mas

    este no o nosso objetivo aqui. Nos interessa a convico religiosa destes ndios.

    A princpio eles no acreditavam muito nos padres, achando que eles eram

    espies dos portugueses, prenderam at um na serra, o padre Pedro Pedrosa, e segundo

    Vieira era os de Pernambuco que os envenenavam. A misso teve certo sucesso,

    alguns que se casaram no rito protestante se converteram a f catlica, mas parece que a

    maioria dos protestantes permaneceram fiis a sua f at o fim. E o mais incrvel que

    os ndios desenvolveram a mesma mentalidade em relao a Ibiapaba que os

    protestantes europeus em relao Amrica: um refgio. Paraupaba disse que: Sendo

    por isso o supp. enviado a V. Exas. Por aquella Nao que

    se refugiou com mulheres e crianas em Cambressive, no serto alem do Cear, afim de

    escapar aos ferozes massacres dos Portuguezes( MAIOR, 1912: 76).

    O padre relatou pelo menos duas das respostas de cartas que enviou aos

    ndios, as quais transcrevo aqui:

    Eis aqui como era verdade e que at agora todos cuidvamos; ecomo os Padres no tivero nunca outro intento se no de nos

    arrancar de nossas terras para nos fazerem escravos de seus

    parentes, os brancos. (VIEIRA, 1904:117) Ou seja os

    portugueses, mais uma vez percebemos a ligao etnia/religio,

    estes no podem ser os holandeses, pois no escravizaram os

    ndios e l-se nas Atas da Igreja Reformada Holandesa no Brasil

    que liberdade dos ndios no podia ser molestada. Deve-seordenar por edital que nenhum habitante retenha qualquer ndio

  • 7/25/2019 01_igreja_potiguara

    15/19

    Revista Historiar, ano II, n. I (2010) 22

    contra sua vontade e que o deixe ir para a aldeia onde morava.

    ( CRESPIN 2007:157)

    A outra diz: Se por sermos vassallos de El-Rey, quereis que vamos para o

    Maranho, estas terras tambm so de El-Rey; e se por sermos Christos, filhos de

    Deus, Deus est em toda parte. (VIEIRA, 1904: 117) Para pessoas que no confiavam

    nos portugueses, dos quais acabam de afirmar que s queria escraviz-los, esta frase

    cheia de confiana, confiana e obedincia, pois aprenderam com os mestres-escolas

    holandeses a no temer os poderes dos governantes, pois estes foram institudos por

    Deus e s fazem o que Deus permite e tambm a confiarem que o seu Deus sempre os

    protegeria, e mesmo que morressem, como Poty, sua recompensa era o cu. No

    catecismo de Heildelberg l-se sobre as autoridades isto: Devo prestar toda honra,

    amor e fidelidade a meu pai e me e todos os meus superiores; devo submeter-me sua

    boa instruo e disciplina com a devida obedincia, e tambm ter pacincia com seus

    defeitos; porque Deus nos quer governar pelas mos deles. E sobre a confiana em

    Deus:

    Para que tenhamos pacincia em toda adversidade e mostremos

    gratido em toda prosperidade e para que, quanto ao futuro,

    tenhamos a firme confiana em nosso fiel Deus e Pai, de que

    criatura alguma nos pode separar do amor dEle. Porque todas as

    criaturas esto na mo de Deus, de tal maneira que sem a

    vontade dEle no podem agir e nem se mover. .(CATECISMO

    DE HEIDELBERG, 2005: 60)

    Alm de toda essa demonstrao de confiana e obedincia as prprias

    convices, estes ndios demonstravam tambm grande conhecimento doutrinrio

    reformado. Vieira continua seu relato informando que:

    Na venerao dos templos, das imagens, das cruzes, dos

    sacerdotes, e dos sacramentos, esto muitos delles to

    Calvinistas e Lutheranos como se nascero em Inglaterra ou

    Allemanha. Estes chamo Igreja , igreja de moanga, que quer

    dizer, igreja falsa; e da doutrina morandubas dos Abors, que

  • 7/25/2019 01_igreja_potiguara

    16/19

    Revista Historiar, ano II, n. I (2010) 23

    quer dizer patranhas dos padres; e faziam taes escarucos e

    zombarias dos que acudiam Igreja a ouvir a doutrina que

    muitos a deixaro por esta causa. (VIEIRA, 1904: 121)

    Esse comportamento se explica pelo documento que estou usando para

    entender a mentalidade destes protestantes, o catecismo de Heildelberg, que diz sobre a

    missa do papa:

    A missa, porm, ensina que Cristo deve ser sacrificado todo dia,

    pelos sacerdotes na missa, em favor dos vivos e dos mortos, e

    que estes, sem a missa, no tem perdo dos pecados pelo

    sofrimento de Cristo; e tambm que Cristo est corporalmente

    presente sob a forma de po e vinho e, por isso, neles deve ser

    adorado. A missa, ento, no fundo, no outra coisa seno a

    negao do nico sacrifcio e sofrimento de Cristo e uma

    idolatria abominvel. .(CATECISMO DE HEIDELBERG,

    2005: 63)

    Como protestantes que eram s reconheciam dois sacramentos, o batismo e

    a Ceia do Senhor, e nesta o po e o vinho no viram o corpo e sangue de Cristo. E aprova de seus conhecimentos teolgicos vem do que o padre jesuta registrou a opinio

    de um destes em relao a missa catlica. Um disse, que de nenhuma cousa lhe pesava

    mais, que ser Christo, e ter recebido o batismo. (VIEIRA, 1904: 121)

    Para ter esse conhecimento sobre o batismo no catecismo de Heildelberg,

    eram necessrios 26 domingos, isso significa que no mnimo receberam cinco meses de

    doutrina protestante, ou seja muito conhecimento reformado. Sobre O sacramento da

    Confisso he o de que mais fugio, e mais abominavo; e tambem havia entre elles

    quem lhes pregasse que a confisso se havia de fazer s Deus, e no aos homens.(

    VIEIRA, 1904: 121) No precisa nem comentar que se trata da doutrina do sacerdcio

    universal. O catecismo dizia que s Jesus era o mediador entre Deus e os homens.

    Em seu relato vemos que os protestantes participaram de uma celebrao da

    Semana Santa em uma igreja catlica, mas acredito que isto foi mais por estratgia de

    sobrevivncia do que de abandono da f, pois segundo o padre sua devoo se acabava

    quando comeava a doutrina, ou seja a missa. Na verdade muitos deles permaneceram

    firmes na sua f at o fim ... e os da Serra sem o exemplo e doutrina dos

  • 7/25/2019 01_igreja_potiguara

    17/19

    Revista Historiar, ano II, n. I (2010) 24

    Pernambucanos, que ero os seus maiores dogmatistas...(VIERA, 1904: 137) Para o

    jesuta ficariam bem mais fcil de catequizar. Foram levados ao Maranho e muitas

    famlias conservaram noes Calvinistas por geraes. (SCHALKWIJK 2004:262).

    CONSIDERAES FINAIS

    Conhecer a Histria desses ndios alm de ser muito revelador para os

    estudos sobre o protestantismo brasileiro, que muito mais antigo que o protestantismo

    de misso e imigrao do sculo XIX perceber o quanto eles contriburam para a

    governabilidade holandesa e assim notar que os ndios protestantes tiveram um papel

    crucial na permanncia holandesa no Brasil.

    O fato de serem protestantes contribuiu e muito para a sua lealdade para

    com os holandeses, mas ainda muito pouco se sabe sobre esta igreja no Brasil, este

    artigo apenas o incio de uma longa jornada sobre o assunto, que espero cativar aos

    colegas historiadores.

    FONTES IMPRESSAS

    BUNYAN. John. O peregrino. Martin Claret. So Paulo, 2004.

    CATECISMO DE HEILDELBERG. Cultura Crist. So Paulo. 2005.

    CNONES DE DORT. Cultura Crist. So Paulo.2005

    CONFISSO DE F NEERLANDESA.Cultura Crist. So Paulo.2005

    CONFISSO DE F DE WESTMISTER.Cultura Crist. So Paulo. 2008

    CRESPIN, Jean. A tragdia da Guanabara. Cultura Crist, So Paulo 2007.

    LUTERO, Martinho. Do cativeiro babilnico da Igreja. Martin Claret. So Paulo.

    2006.

    LRY, Jean de. Viagem Terra do Brasil. Livraria Martins Editora, So Paulo. 4 Ed.1967.

    Maior. Pedro Souto. A misso de Antnio Paraupaba ante o governo hollandez.

    Revista do Instituto de Cear, Fortaleza, 1912, Pg 72 82

    ________________. Duos ndios notveis e parentes prximos. Revista do Instituto

    do Cear. Fortaleza, 1912, pg 61 71

    ________________. Atas dos Snodos e Classes do Brasil no sculo XVII durante o

    domnio holands. In: A tragdia da Guanabara. Cultura Crist. So Paulo, 2007

  • 7/25/2019 01_igreja_potiguara

    18/19

    Revista Historiar, ano II, n. I (2010) 25

    SCHALKWIJK. Frans Leonard. O Brasil na Correspondncia de Calvino. Revista

    Fides Reformata.Vol.10.n1.So Paulo.2004.p101-128.

    VIEIRA. Padre Antnio. Relao da misso da Serra da Ibiapaba. Revista do

    Instituto do Cear, Fortaleza, 1904 Pag. 86 138

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. Nos destinos de fronteira, histria, espaos

    e identidade regional. 1 Edio. Recife PE. Edies Bagao. 2008

    BARROS, Jos DAssuno Barros. Histria, regio e espacialidade In Revista de

    Histria Regional 10(1): 95 129, Vero, 2005.

    BOXER, Charles R. O imprio martimo portugus 1415 1825. Companhia das

    Letras. So Paulo 2002.

    CHAU, Marilena. Brasil, mito fundador e sociedade autoritria.1 Edio. Editora

    fundao Perseu Abramo. So Paulo, 2000.

    DAVIES, Natalie Zemon. Culturas do Povo: sociedade e cultura no incio da Frana

    moderna. Paz e Terra. Rio de Janeiro. 1990.

    DE CERTAU, Michel. A Cultura no Plural. 5 E. Papirus. Campinas. 1995

    HOLLANDA, Srgio Buarque de. Razes do Brasil In: Construtores do Brasil. Nova

    Cultural, So Paulo, 2000.

    LE GOFF, Jacques. A Histria Nova. 5 Edio. So Paulo SP. Martins Fontes. 2005

    MAIA, Lgio de Oliveira. O estatuto da chefia indgena nas Serras da Ibiapaba,

    leituras e leitores na Experincia Colonial (sculo XVII) In Documentos, Revista do

    Arquivo Pblico do Estado do Cear, n3. Fortaleza, 2006

    MELLO. Evaldo Cabral de. Rubro veio, o imaginrio da restaurao

    pernambucana. Topbooks. 2Ed. Rio de Janeiro. 1997MEUWESE, Marcus P. For the Peace and Well-being of the Country:

    Intercultural Mediators and Dutch-Indian Relations in New Neatherland and

    Dutch Brazil, 1600- 1664. Tese de Doutorado defendida na University of Notre Dame,

    Notre Dame, Indiana, Setembro de 2003. Disponvel em: http://etd.nd.edu/ETD-

    db/theses/available/etd09272003005338/unrestricted/MeuweseMP092003.pdf Acessado

    em 24/01/2007

    RIBAS, Maria Aparecida de Arajo Barreto. O leme espiritual do navio mercante: Amissionao calvinista no Brasil Holands (1630 1645). Tese de Doutorado

  • 7/25/2019 01_igreja_potiguara

    19/19