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INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS

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EQUIPE DE ELABORAÇÃO/PRODUÇÃO DE MATERIAL DIDÁTICO:

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A literatura fala da literatura – Antoine Compagnon e os demônios da teoriaTexto-mundo: a questão da representação em Platão e Aristóteles

Mimese e Verossimilhança

Ampliando a noção de “texto”

Sumário

07

O QUE É LITERATURA

OS GÊNEROS LITERARIOS

QUEM NARRA AQUI

INTRODUÇÃO E GÊNEROS LITERÁRIOS

EM TEMPO: OUTRAS QUESTÕES LITERÁRIAS

07

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A Lírica

O Épico

O Trágico

Bakhtin em seu Epos e Romance

Walter Benjamin: O narrador

A narração na pós-modernidade

Quem é o autor?

21

42

42

27

46

35

53

15

20

38

Intertextualidades: o labirinto da citação 56

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59

66

68

71

77

79

OS ESTUDOS CULTURAIS

Introdução aos Estudos Culturais

Vozes da América Latina: a inserção de outras leituras

O Cânone

Revendo a noção de ‘literatura’

Glossário

Referências Bibliográfi cas

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Prezado aluno,

A disciplina Introdução aos Estudos Literários tem por objetivo levar você a mergulhar no universo da crítica e das teorias da literatura e da cultura. Começamos o nosso passeio refl etindo sobre a noção de literatura e sobre a antiguidade clássica, com os primeiros textos, na cultura ocidental, que tiveram por objeto de estudo a literatura. Mostraremos que esses textos tinham objetivos bem diferentes daqueles que têm orientado a teoria da literatura desde a sua constituição como disciplina, porque os autores desses primeiros textos, os fi lósofos Platão e Aristóteles, possuíam uma perspectiva normativa e prescritiva em relação à literatura, o que não é o objetivo da teoria literária. Procuramos, ao longo do curso, mostrar que o texto literário é um eterno devir e que as refl exões em torno dele devem sempre se pautar numa recusa a verdades e conceitos totalizadores que possam sufocar a literatura, funcionando como “camisas de força” para o seu contínuo movimento de “dan-çar” com o mundo, revelando-o e sendo revelada por ele. Vigilantemente numa posição de “advogados do diabo” em relação a essas verdades, compartilhamos a mesma posição de teóricos contemporâneos da literatura, como Antoine Compagnon, Eneida Maria de Souza, Jonathan Culler e Silviano Santiago. Imbuídos desse espírito crítico e atentos ao nosso tempo e ao mundo a nossa volta, revisitamos os conceitos de arte, de teoria da literatura, os antigos conceitos de mimesis, verossimilhança, catarse, passamos pelos gêneros literários, expusemos a questão do autor, questionamos a noção de cânone literário, colocamos em pauta a literatura atual. O nosso porto de chegada são as discussões contemporâneas em torno da literatura, principalmente a apresentação da perspectiva culturalista, que coloca a literatura em diálogo com outras manifestações culturais, principalmente com a cultura de massa, lançando novo desafi o a nós, professores, alunos, estudiosos e críticos da literatura a “oxigenar” e potencializar as nossas formas de ver e de viver a literatura.

Sorte, nos estudos e na vida!

Apresentação da Disciplina

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INTRODUÇÃO E GÊNEROS LITERÁRIOS

O QUE É LITERATURA

A literatura fala da literatura – Antoine Compagnon e os demônios da teoria

Olá! Nas refl exões que iniciaremos acerca do universo da literatura, começaremos com a questão da arte da escrita. O texto do escritor francês Gilles Deleuze, logo abaixo, apresentará algumas rápidas questões para pensarmos sobre a língua, o ato de escrever, dentre outras coisas, que nos fará perceber esse não-limite do literário, suas frestas, seus sulcos, seu modo de ser e nos fazer delirar!

PRÓLOGO(Gilles Deleuze)

Este conjunto de textos, dos quais alguns são inéditos, outros já publicados, organiza-se em torno de determinados problemas. O problema de escrever: o escritor, como diz Proust, inventa na língua uma nova língua, uma língua de algum modo estrangeira. Ele traz à luz novas potências gramaticais ou sintáticas. Arrasta a língua para fora de seus sulcos costumeiros, leva-a a delirar. Mas, o problema de escrever é também inseparável de um problema de ver e de ouvir: com efeito, quando se cria uma outra língua no interior da língua, a linguagem inteira tende para um limite “assintático”, “agramatical”, ou que se comunica com seu próprio fora.

O limite não está fora da linguagem, ele é o seu fora: é feito de visões e audições não-linguageiras, mas que só a linguagem torna possíveis. Por isso, há uma pintura e uma música próprias da escrita, como efeitos de cores e de sonoridades que se elevam acima das palavras. É através das palavras, entre as palavras, que se vê e se ouve. Beckett falava em “perfurar buracos” na linguagem para ver ou ouvir “o que está escondido atrás”. De cada escritor é preciso dizer: é um vidente, um ouvidor, “mal visto mal dito”, é um colorista, um músico.

Essas visões, essas audições não são um assunto privado, mas formam as fi guras de uma história e de uma geografi a incessantemente reinventadas. É o delírio que as inventa, como processo que arrasta as palavras de um extremo a outro do universo. São acontecimentos na fronteira da linguagem. Porém, quando o delírio recai no estado clínico, as palavras em nada mais desembocam, já não se ouve nem se vê coisa alguma através delas, exceto uma noite que perdeu sua história, suas cores e seus cantos. A literatura é uma saúde.

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Introdução aos

Estudos Literários

Esses problemas traçam um conjunto de caminhos. Os textos aqui apresentados, e os autores considerados, são tais caminhos. Uns são curtos, outros mais longos, mas eles se cruzam, tornam a passar pelos mesmos lugares, aproximam-se ou se separam, cada qual oferece uma vista sobre outros. Alguns são impasses fechados pela doença.

O texto de Deleuze abre possibilidades de escrita e rabisca a difi culdade de caracterizar de forma mais precisa a literatura. Esse trabalho com a linguagem, seu modos de fazê-la delirar, traçam redes que desembocarão em questões híbridas (glossário): a literatura fala da literatura, fala da vida, fala dos estudos literários, da sociedade, das culturas.

Feito esse primeiro diálogo com o rápido texto de Deleuze, viajemos, agora, ao lado de Compagnon.

O que este outro escritor-pensador nos oferece é uma tentativa de historicizar o conceito de literatura e suas questões, assim como demonstrar sua expansão para outros âmbitos da vida. Vamos lá?

A LITERATURA(Antoine Compagnon)

Os estudos literários falam da literatura das mais diferentes maneiras. Concordam, entretanto, num ponto: diante de todo estudo literário, qualquer que seja seu objetivo, a primeira questão a ser colocada, embora pouco teórica, é a da defi nição que ele fornece (ou não) de seu objeto: o texto literário. O que torna esse estudo literário? Ou como ele defi ne as qualidades literárias do texto literário? Numa palavra, o que é para ele, explícita ou implicitamente, a literatura?

Certamente, essa primeira questão não é independente das que se seguirão. Indagaremos sobre seis outros termos ou noções, ou, mais exatamente, sobre a relação do texto literário com seis outras noções: a intenção, a realidade, a recepção, a língua, a história e o valor. Essas seis questões poderiam, portanto, ser reformuladas, acrescentando-se a cada uma o epíteto literário, o que, infelizmente, as complica mais do que as simplifi ca:

O que é intenção literária?

Toda obra é uma viagem, um trajeto, mas que só percorre tal ou qual caminho exterior em virtude dos caminhos e trajetórias interiores que a compõem, que constituem sua paisagem ou seu concerto.

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Ed.34, 1997.

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O que é realidade literária? O que é recepção literária? O que é língua literária? O que é história literária? O que é valor literário?Ora, emprega-se, freqüentemente, o adjetivo literário, assim como o substantivo

literatura, como se ele não levantasse problemas, como se se acreditasse haver um consenso sobre o que é literário e o que não o é. Aristóteles, entretanto, já observava, no início de sua Poética, a inexistência de um termo genérico para designar, ao mesmo tempo, os diálogos socráticos, os textos em prosa e o verso: “A arte que usa apenas a linguagem em prosa ou versos [...] ainda não recebeu um nome até o presente” (1447a 28-b9). Há o nome e a coisa. O nome literatura é, certamente, novo (data do início do século XIX; anteriormente, a literatura, conforme a etimologia, eram as inscrições, a escritura, a erudição, ou o conhecimento das letras; ainda se diz “é literatura”), mas isso não resolveu o enigma, como prova a existência de numerosos textos inti¬tulados Qu ‘Est-ce que l’Art? [O que É a Arte?] (Tolstoï, 1898), “Qu’Est-ce que Ia Poésie?” [O que É a Poesia?] (Jakobson, 1933¬-1934), Qu’Est-ce que Ia Littérature? [O que É Literatura?] Charles Du Bos, 1938; Jean-Paul Sartre, 1947. A tal ponto que Barthes renunciou a uma defi nição, contentando-se com esta brincadeira: “A literatura é aquilo que se ensina, e ponto fi nal.”1 Foi uma bela tautologia. Mas pode-se dizer outra coisa que não “Literatura é literatura?”, ou seja, “Literatura é o que se chama aqui e agora de literatura?” O fi lósofo Nelson Goodman (1977) propôs substituir a pergunta “O que é arte?” (What is art?) pela pergunta “Quando é arte?” (When is art?) Não seria necessário fazer o mesmo com a literatura? Afi nal de contas, existem muitas línguas nas quais o termo literatura é intradu¬zível, ou não existe uma palavra que lhe seja equivalente.

Qual é esse campo? Essa categoria, esse objeto? Qual é a sua “diferença específi ca?” Qual é a sua natureza? Qual é a sua função? Qual é sua extensão? Qual é sua compreensão? É necessário defi nir literatura para defi nir o estudo literário, mas qualquer defi nição de literatura não se torna o enunciado de uma norma extraliterária? Nas livrarias britânicas encontra-se, de um lado, a estante Literatura e, de outro, a estante Ficção; de um lado, livros para a escola e, de outro, livros para o lazer, como se a Literatura fosse a fi cção entediante, e a Ficção, a literatura divertida. Seria possível ultrapassar essa classifi cação comercial e prática?

A aporia resulta, sem dúvida, da contradição entre dois pontos de vista possíveis e igualmente legítimos; ponto de vista contextual (histórico, psicológico, sociológico, institucional) e ponto de vista textual (lingüístico). A literatura, ou o estudo literário, está sempre imprensada entre duas abordagens irredutíveis: uma abordagem histórica, no sentido amplo (o texto como documento); e uma abordagem lingüística (o texto como fato da língua, a literatura como arte da linguagem). Nos anos sessenta, uma nova querela entre antigos e modernos despertou a velha guerra de trincheiras entre partidários de uma defi nição externa e partidários de uma defi nição interna de literatura, aceitáveis às duas, mas ambas limitadas. Genette, que julga “tola” a pergunta “O que é literatura?” - ela é mal colocada -, sugeriu, entretanto, distinguir dois regimes literários complementares: um regime constitutivo, garantido pelas convenções, logo fechado - um soneto, um romance pertencem de direito à literatura, mesmo que ninguém os leia -, e um regime condicional, logo aberto, dependente de uma apreciação revogável - a inclusão, na literatura, dos Pensées [Pensamentos] de Pascal ou de Ia Sorciere [A Feiticeira] de Michelet depende dos indivíduos e das épocas2.

Descrevamos a literatura sucessivamente: do ponto de vista da extensão e da

1 BARTHES. Réfl exions sur un manuel, p. 170.2 GENETTE. Fiction et diction, p. 11.

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Estudos Literários

compreensão, depois da função e da forma, em seguida, da forma do conteúdo e da forma da expressão. Avancemos dissociando, seguindo o método familiar da dicotomia platônica, mas sem demasiadas ilusões sobre nossas chances de sucesso.

A EXTENSÃO DA LITERATURA

No sentido mais amplo, literatura é tudo o que é impresso (ou mesmo manuscrito), são todos os livros que a biblioteca contém (incluindo-se aí o que se chama literatura oral, doravante consignada). Essa acepção corresponde à noção clássica de “belas-letras” as quais compreendiam tudo o que a retórica e a poética podiam produzir, não somente a fi cção, mas também a história, a fi losofi a e a ciência, e, ainda, toda a eloqüência. Contudo, assim entendida, como equivalente à cultura, no sentido que essa palavra adquiriu desde o século XIX, a literatura perde sua “especifi cidade”: sua qualidade propriamente literária lhe é negada. Entretanto, a fi lologia do século XIX ambicionava ser, na realidade, o estudo de toda uma cultura, da qual a literatura, na acepção mais restrita, era o testemunho mais acessível. No conjunto orgânico assim constituído, segundo a fi lologia, pela língua, pela literatura e pela cultura, unidade identifi cada a uma nação, ou a uma raça, no sentido fi lológico, não biológico do termo, a literatura reinava absoluta, e o estudo da literatura era a via régia para a compreensão de uma nação, estudo que os gênios não só perceberam, mas no qual também forjaram o espírito.

No sentido restrito, a literatura (fronteira entre o literário e o não-literário) varia consideravelmente segundo as épocas e as culturas. Separada ou extraída das belas-letras, a literatura ocidental, na acepção moderna, aparece no século XIX, com o declínio do tradicional sistema de gêneros poéticos, perpetuado desde Aristóteles. Para ele, a arte poética - a arte dessa coisa sem nome, descrita na Poética - compreendia, essencialmente, o gênero épico e o gênero dramático, com exclusão do gênero Lírico, que não era fi ctício nem imitativo - uma vez que, nele, o poeta se expressava na primeira pessoa - vindo a ser, conseqüentemente, e por muito tempo, julgado um gênero menor. A epopéia e o drama constituíam ainda os dois grandes gêneros da idade clássica, isto é, a narração e a representação, ou as duas formas maiores da poesia, entendida como fi cção ou imitação (Genette, 1979; Combe). Até então, a literatura, no sentido restrito (a arte poética), era o verso. Mas um deslocamento capital ocorreu ao longo do século XIX: os dois grandes gêneros, a narração e o drama, abandonavam cada vez mais o verso para adotar a prosa. Com o nome de poesia, muito em breve não se conheceu senão, ironia da história, o gênero que Aristóteles excluía da poética, ou seja, a poesia lírica a qual, em revanche, tornou-se sinônimo de toda poesia. Desde então, por literatura compreendeu-se o romance, o teatro e a poesia, retomando-se à tríade pós-aristotélica dos gêneros épico, dramático e lírico, mas, doravante, os dois primeiros seriam identifi cados com a prosa, e o terceiro apenas com o verso, antes que o verso livre e o poema em prosa dissolvessem ainda mais o velho sistema de gêneros.

O sentido moderno de literatura (romance, teatro e poesia) é inseparável do romantismo, isto é, da afi rmação da relatividade histórica e geográfi ca do bom gosto, em oposição à doutrina clássica da eternidade e da universalidade do cânone estético. Restrita à prosa romanesca e dramática, e à poesia lírica, a literatura é concebida, além disso, em suas relações com a nação e com sua história. A literatura, ou melhor, as literaturas são, antes de tudo, nacionais.

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Mais restritamente ainda: literatura são os grandes escritores. Também essa noção é romântica: Thomas Carlyle via neles os heróis do mundo moderno. O cânone clássico eram obras-modelo, destinadas a serem imitadas de maneira fecunda; o panteão moderno é constituído pelos escritores que melhor encarnam o espírito de uma nação. Passa-se, assim, de uma defi nição de literatura do ponto de vista dos escritores (as obras a imitar) a uma defi nição de literatura do ponto de vista dos professores (os homens dignos de admiração). Alguns romances, dramas ou poemas pertencem à literatura porque foram escritos por grandes escritores, segundo este corolário irônico: tudo o que foi escrito por grandes escritores pertence à literatura, inclusive a correspondência e as anotações irrisórias pelas quais os professores se interessam. Nova tautologia: a literatura é tudo o que os escritores escrevem.

Voltarei, no último capítulo, ao valor ou à hierarquia literária, ao cânone como patrimônio de uma nação. No momento, notemos apenas este paradoxo: o cânone é composto de um conjunto de obras valorizadas ao mesmo tempo em razão da unicidade da sua forma e da universalidade (pelo menos em escala nacional) do seu conteúdo; a grande obra é reputada simultaneamente única e universal. O critério (romântico) da relatividade histórica é imediatamente contraposto à vontade de unidade nacional. Donde a zombaria irônica de Barthes: “A literatura é aquilo que se ensina”, variação da falsa etimologia consagrada pelo uso: “Os clássicos são aqueles que lemos em classe.”

Evidentemente, identifi car a literatura com o valor literário (os grandes escritores) é, ao mesmo tempo, negar (de fato e de direito) o valor do resto dos romances, dramas e poemas, e, de modo mais geral, de outros gêneros de verso e de prosa. Todo julgamento de valor repousa num atestado de exclusão. Dizer que um texto é literário subentende sempre que um outro não é. O estreitamento institucional da literatura no século XIX ignora que, para aquele que lê, o que ele lê é sempre literatura, seja Proust ou uma fotonovela, e negligencia a complexidade dos níveis de literatura (como há níveis de língua) numa sociedade. A literatura, no sentido restrito, seria somente a literatura culta, não a literatura popular (a Fiction das livrarias britânicas).

Por outro lado, o próprio cânone dos grandes escritores não é estável, mas conhece entradas (e saídas): a poesia barroca, Sade, Lautréamont, os romancistas do século XVIII são bons exemplos de redescobertas que modifi caram nossa defi nição de literatura. Segundo T. S. Eliot, que pensava como um estruturalista em seu artigo “La Tradition et le Talent Individuel” [A Tradição e o Talento Individual] (1919), um novo escritor altera toda a paisagem da literatura, o conjunto do sistema, suas hierarquias e suas fi liações:

Os monumentos existentes formam entre si uma ordem ideal que é modifi cada pela introdução, entre eles, da nova (da verdadeiramente nova) obra de arte. A ordem existente é completa antes da chegada da nova obra; para que a ordem subsista, depois da intervenção da novidade, o conjunto da ordem existente deve ser alterado, ainda que ligeiramente; e assim as relações, as proporções, os valores de todas as obras de arte em relação ao conjunto são reajustados3.

A tradição literária é o sistema sincrônico dos textos literários, sistema sempre em movimento, recompondo-se à medida que surgem novas obras. Cada obra nova provoca um rearranjo da tradição como totalidade (e modifi ca, ao mesmo tempo, o sentido e o valor de cada obra pertencente à tradição).

Após o estreitamento que sofreu no século XIX, a literatura reconquistou desse modo, no século XX, uma parte dos territórios perdidos: ao lado do romance, do drama

3 ELIOT. Tradition and the Individual Talent, p. 38.

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Estudos Literários

e da poesia lírica, o poema em prosa ganhou seu título de nobreza, a autobiografi a e o relato de viagem foram reabilitados, e assim por diante. Sob a etiqueta de paraliteratura, os livros para crianças, o romance policial, a história em quadrinhos foram assimilados. Às vésperas do século XXI, a literatura é novamente quase tão liberal quanto as belas-letras antes da profi ssionalização da sociedade.

O termo literatura tem, pois, uma extensão mais ou menos vasta segundo os autores, dos clássicos escolares à história em quadrinhos, e é difícil justifi car sua ampliação contemporânea. O critério de valor que inclui tal texto não é, em si mesmo, literário nem teórico, mas ético, social e ideológico, de qualquer forma extraliterário. Pode-se, entretanto, defi nir literariamente a literatura?

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.

Espero que você tenha apreciado o texto durante sua leitura. Escolhemos este fragmento de texto pelo fato de, nele, o autor colocar questões que já fazem parte de uma espécie de tradição no mundo literário. Essas questões perseguem todos os alunos, professores, pesquisadores de literatura que se debruçam sobre a árdua tarefa de continuar repassando e repensando os conhecimentos literários. Tarefa que Compagnon faz com gosto e leveza: repensa a literatura dentro de uma forma não-prescritiva, sem estancar os movimentos pelos quais ela passou ou tem passado, sem fazer uso de uma predileção crítica ou teórica que exclua leitores menos preparados.

Ao distinguir literatura de fi cção, o autor caminha com o cotidiano, propondo um diálogo com o senso comum como aquele que também determina um status para a noção do literário, ainda que essa determinação surja recheada de possíveis mitifi cações acerca do mesmo.

Para saber mais, visite o site abaixo. Nele, você encontrará uma entrevista bem interessante com o escritor Gilles Deleuze. Fatores extra-literários nos ajudando a pensar a literatura...

http://www.oestrangeiro.net/index.php?option=com_content&task=view&id=67&Itemid=51

Texto-mundo: a questão da representação em Platão e Aristóteles

A Grécia clássica se constituiu como base do pensamento ocidental não somente com relação à Filosofi a, mas, também, com relação à Poética. O estudo de fi lósofos como Platão e Aristóteles é fundamental para que possamos discutir os conceitos de representação que permeiam a noção de literatura no Ocidente. Iniciemos, pois, com Platão.

Mas, quem foi Platão? Platão foi discípulo de Sócrates e é o autor de obras importantes para a

discussão sobre a literatura e a estética, tais como A República, O Banquete, O Fedro, etc. Platão interpretou o universo como essencialmente espiritual e obedecendo a um plano (uma idéia). Desenvolveu a doutrina das Idéias, em que a Virtude tinha base no conhecimento. O racional, portanto, seria a parte nobre e boa do homem, enquanto seu corpo se constituiria um obstáculo no

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alcance das Idéias. Os artistas, de modo geral, e os poetas, em particular, não poderiam fazer parte do Estado Ideal, a República, por imitarem o mundo das Idéias.

Segundo Platão, o universo obedece a uma ordem. Para tanto, Platão supõe a existência de um criador, o Demiurgo, que modelou o mundo e todos os seres a partir das idéias já existentes. O mundo, então, se constitui como o Mesmo, ou as Idéias; seu oposto, o nada, é o Outro, algo que não são as idéias, portanto, imperfeito.

Platão afi rmava que o homem percebe o mundo através dos sentidos, prefi gurando o mundo sensível. O mundo sensível se apresenta como o mundo das aparências, ou seja, o modo como as coisas aparecem aos homens, portanto, o “não - real”, o imperfeito. Nele, cada homem se apega àquilo que lhe parece real, resultando daí a ocorrência de divergências de opiniões entre os indivíduos. A noção platônica, portanto, crê em mundos diferentes: o mundo perfeito ou real, equivalente ao das Idéias; e o imperfeito, aquele que reproduz as idéias a partir da percepção realizada pelos sentidos. O mundo das idéias e o mundo sensível, embora separados, encontram-se relacionados, uma vez que as coisas sensíveis representam “imitações” de idéias que lhe correspondem, do mesmo modo, por exemplo, como um pintor imita a natureza, pintando-a. Entretanto, é também desta forma que os homens poderão conhecer as idéias – como um modelo do qual lhe tiramos cópias.

Conhecer é assim reconhecer, lembrar-se das idéias que foram contempladas pela alma, mas esquecidas por causa do apego do corpo às coisas sensíveis. (p. 51, Abrão, 1999)

A alma, imaterial, incorpórea, e impalpável, participa do mundo inteligível, ou das idéias, e tem a capacidade de reconhecê-las, tornando-se, então, a conexão entre os dois mundos. O corpo, entretanto, se constitui como um obstáculo para o espírito (ou alma), uma vez que veicula as sensações pelas quais o ser assimila a doutrina das Idéias. Como fi lósofo político, Platão, em seu livro A República, prega a construção de um Estado em que a população estivesse distribuída em três classes: a classe mais baixa, formada pelos artesãos, seria responsável pela produção e distribuição; a segunda classe ou intermediária, pelos guardiões ou soldados, responsáveis pela defesa da sociedade; e fi nalmente, a classe mais alta, a aristocracia, formada pelos dirigentes do Estado, devido à sua capacidade em fi losofar. Note-se, porém, que na República não havia lugar para os poetas.

Segundo Platão, os prosadores e os poetas reportam acontecimentos passados, presentes e futuros através da simples narrativa ou imitação, ou através de ambas (Platão, p.115). Citando Homero, Platão o critica da seguinte forma: quando ele profere um discurso como se fosse outra pessoa, acaso não diremos que ele assemelha o mais possível o seu estilo ao da pessoa cuja fala anunciou? (Platão, p. 117), ou seja, ao narrar um acontecimento, o narrador, no caso Homero, estaria procurando assemelhar a sua fala à do sujeito que viveu o acontecido, confi gurando-se assim em uma imitação de alguém que fala. Alegando que os artistas, de modo geral, e os poetas e prosadores, em particular, poderiam fazer com que a população, especialmente os jovens, se desviasse do mundo real (das idéias) e o confundisse com a imitação, Platão os impede de fazer parte da República. E aconselha a vigiar também os outros artistas e impedi-los de introduzir na sua obra o vício, a licença, a baixeza, o indecoro, quer na pintura de seres vivos, quer nos edifícios, quer em qualquer outra obra de arte (Platão, p. 132).

Platão não foi o único fi lósofo a pensar a questão da representação, Aristóteles, que foi seu discípulo, em seus primeiros textos apresenta uma forte infl uência de seu mestre. Entretanto, Aristóteles, homem dedicado ao estudo da natureza e dos seres vivos, diverge de Platão no tocante à observação das coisas que se apresentam aos sentidos, e amplia a teoria platônica buscando a integração dos sentidos como meio de alcançar o conhecimento científi co e fi losófi co.

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Introdução aos

Estudos Literários

Para Aristóteles, o conhecimento é um processo de abstração pelo qual o intelecto produz conceitos universais que, ao contrário das idéias de Platão, não existem separadamente das coisas e do intelecto. (p 56. Abrão,1999).

Aristóteles acreditava que o mais alto bem para o homem se constituía na auto-realização, e para tanto, o homem deveria proceder com o controle das emoções, e a conservação do corpo em boa saúde. Com relação à fi losofi a política, diferentemente de Platão, Aristóteles defendia a idéia de um Estado governado por uma classe “intermediária” entre a aristocracia e a democracia, a politéia, na qual haveria lugar para os poetas e os artistas, e onde a tragédia seria o gênero preferido por levar o homem à catarse.Vejamos ,então, qual o signifi cado da catarse.

O termo Katharsis, ou catarse, esteve ligado ao culto de Dionísio, ou Baco, pelo fato de as danças realizadas neste culto levarem o indivíduo a uma liberação de temor e malefícios, produzindo, assim, a cura no portador de doenças. O termo, portanto, associa-se às ciências médicas. Entretanto, justamente devido à sua associação com a liberação de emoções, a palavra passou a designar a liberação da emoção causada pela apreciação de um objeto artístico de qualquer natureza. Para Platão, a catarse surtia um efeito negativo; Aristóteles, porém, ligando a catarse à idéia de música, aconselha-a com fi ns de “purifi cação”, fato que passou a gerar controvérsias a respeito da signifi cação do termo, uma vez que Aristóteles não a explica. A palavra catarse, portanto, encontra-se traduzida como “purgação” no sentido médico, e como “purifi cação” no sentido religioso.

Saiba mais !

A catarse tem como função liberar o indivíduo de uma emoção forte, geralmente o terror ou a compaixão. Desse modo, Aristóteles associa a catarse à poesia trágica, já que na tragédia, o prazer é o efeito causado pela liberação dos sentimentos de terror e compaixão acumulados pelos espectadores durante a sua apresentação.

A tragédia é a imitação de uma ação importante e completa; de certa extensão; num estilo agradável pelo emprego separado de cada uma das suas formas, segundo as partes: ação apresentada não com ajuda de uma narrativa, mas por atores, e que suscitando a compaixão e o terror, tem por efeito obter a purgação dessas emoções (Aristóteles, p. 229).

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Para Aristóteles, a catarse exerce uma função de controle, uma vez que impede o excesso passional nos indivíduos, “purgando-os”, e, conseqüentemente, levando-os a uma clareza racional.

Indicação de site:http://www.espirito.com.br/portal/artigos/diversos/fi losofi a/a-arte-poetica.html

Mimese e Verossimilhança

Platão, em A República, considera os artistas como imitadores do “terceiro grau”. O que signifi ca isso? Platão situa os seres em três categorias, ou graus, e, tomando como exemplo uma mesa, estabelece o seguinte critério: em primeiro lugar estaria Deus, Criador da idéia; em segundo lugar estaria o artífi cie, o materializador da idéia; e em terceiro grau e último grau encontra-se o artista, como por exemplo, um pintor, pelo fato de copiar ou imitar a realidade, no caso através da pintura. O interesse de Platão residia em identifi car a utilidade do poeta, ou do artista de modo geral, e o efeito da sua arte, ou seja, o efeito da tragédia no espectador.

Mas ainda não formulamos a mais séria acusação contra a poesia. O que nela há de mais terrível é a sua capacidade de fazer danos aos homens de real valor, e poucos são os que escapam à essa infl uência. (Platão)

A concepção platônica pressupõe um efeito negativo da arte sobre o seu apreciador, pois a emoção causada pela obra de arte, a catarse, prejudicaria o indivíduo no entendimento da verdade. O platonismo concebe a arte como mimesis, ou seja, a reprodução de algo que existe na realidade, e que deve ser reconhecido pela razão. As imitações são danosas aos indivíduos por não se tratarem de objetos reais na essência, mas por se constituírem – segundo a ótica platônica - de uma visão espelhada da realidade, uma aparência ilusória, levando os cidadãos ao engano.

Por outro lado, Aristóteles, embora infl uenciado por Platão, afasta-se da concepção platônica e, considerando a arte não somente como imitação da realidade – imitatio- identifi ca a mímesis como a imitação da ação humana, ou seja, uma representação. Por exemplo, na tragédia, a representação de um drama envolve a ação do(s) ator(es) e do texto representado, e que gera uma reação no público espectador. O objeto artístico, portanto, supõe uma interação entre o autor e o receptor, considerando que a obra só se realiza pelo efeito causado no receptor (público).

Enquanto Platão considera a obra de arte como apenas uma imitação, Aristóteles amplia esta noção considerando a arte não apenas uma mera imitação da realidade, mas

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também como uma imitação do imaginário, ou daquilo que poderia ser, instituindo, portanto, o conceito de verossimilhança. A verossimilhança é o resultado do processo artístico da mimese. Conceitualmente, diz respeito à realidade, mas à realidade fi ccional. Para Aristóteles, a mimese na obra de arte se daria tanto pela sua semelhança com o mundo real, como pelo seu afastamento dessa mesma realidade.

Não compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu, mas sim o que poderia ter acon-tecido, o possível, segundo a verossimilhança ou necessidade (Aristóteles, p.306).

Mostrando a diferença entre o historiador e o poeta em A Poética, Aristóteles aponta para o fato que a história tradicional se caracteriza pelo discurso científi co e objetivo, no qual encontra-se documentado a realidade empírica; a obra de arte, todavia, possui a equivalência da verdade, isto é, mesmo não sendo verdadeira, tem na sua verossimilhança a característica responsável pela possibilidade de algo vir a ser ou acontecer.

E a literatura?

A literatura é fi cção, algo que existe na imaginação de seu criador, e, portanto, não pode ser submetido à uma verifi cação extra-textual (fora do texto).

A literatura cria seu próprio universo, semanticamente autônomo em relação ao mundo em que vivemos. Ela traz seus seres fi ccionais, seu ambiente imaginário, seu código ideológico, sua própria verdade: pessoas metamorfoseadas em animais, animais que falam a linguagem humana, tapetes voadores, cidades fantásticas, amores incríveis, situações paradoxais, sentimentos contraditórios, etc.4

A realidade criada pela fi cção poética tem relação signifi cativa com o real, uma vez que a criação não parte de um vazio, e sim de algo que já existe. As estruturas lingüísticas, sociais, e ideológicas, reais, fornecem o material para que o artista crie o mundo imaginário.

É importante observar que mesmo a literatura de cunho realista é, contudo, fruto da imaginação do artista, que faz um recorte da realidade que pretende mostrar, mesmo quando

4 - Autor desconhecido. Fonte: Apostila de Teoria da Literatura I-A. Ufba. Profas. Lívia Ma. Santos e Viviane Freitas, 2004.

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não tem consciência disso e pretenda uma reprodução fi dedigna da realidade. Embora o texto de Aristóteles não avance a tal ponto, admite-se que a diferença entre o texto “fi ccional” e o “histórico” ou “científi co” reside no fato que na fi cção existe a consciência do real como “construção”, enquanto que no segundo, se crê estar reproduzindo os acontecimentos com fi delidade. Ambos os discursos são, digamos assim, “construções”: enquanto o artista “constrói” a realidade de forma consciente, o historiador tradicional crê estar se reportando à realidade dos acontecimentos.

Verossimilhança Interna e ExternaCom relação ao texto artístico podemos observar dois tipos de verossimilhança,

de acordo com o grau de “semelhança” ou “afastamento” da obra diante do mundo físico, caracterizando, assim, a verossimilhança como interna ou externa. Quando há a predominância, na obra, de aspectos físicos que se relacionam com o mundo em que vivemos, chamamos de verossimilhança externa. Por exemplo, Manuel Bandeira, no poema Evocação do Recife retrata a cidade do Recife, mesmo que em outra época, a partir de lugares reais, aproximando-se do contexto de realidade e provocando a verossimilhança externa:

Evocação do Recife Manoel Bandeira

RecifeNão a Veneza americanaNão a Mauritsstaad dos armadores das Índias OcidentaisNão Recife dos mascatesNem mesmo o Recife que aprendi a amar depois Recife das revoluções libertáriasMas o Recife sem história nem literaturaRecife sem mais nadaRecife da minha infânciaA Rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e partia as vidraças da casa

de Dona Aninha ViegasTotônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê na ponta do narizDepois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras, mexericos, namoros, risadasA gente brincava no meio da ruaOs meninos gritavam: Coelho sai! Não sai!A distância as vozes macias das meninas politonavam: Roseira dá-me uma rosa Craveiro dá-me um botão (Dessas rosas muita rosa Terá morrido em botão...)De repente Nos longes da noite Um sinoUma pessoa grande dizia:Fogo em Santo Antonio!Outra contrariava: São José!Totônio Rodrigues achava sempre que era São José.Os homens punham o chapéu e saíam fumandoE eu tinha raiva de ser menino porque não podia ver o fogo

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Rua da União...Como eram lindos os nomes das ruas da minha infânciaRua do Sol(Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)Atrás de casa fi cava a Rua da Saudade... ... onde se ia fumar escondidoDo lado de lá era o cais da Rua da Aurora...

...onde se ia pescar escondidoCapiberibeCapibaribeLá longe o sertãozinho de CaxangáBanheiros de palhaUm dia eu vi uma moça nuinha no banhoFiquei parado o coração batendoEla se riu Foi o meu primeiro alumbramentoCheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiuE nos pegões da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos em jangadas de bananeirasNovenas CavalhadasEu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a mão nos meus cabelosCapiberibe CapibaribeRua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas com o xale

vistoso de pano da CostaE o vendedor de roletes de canaO de amendoim Que se chamava midubim e não era torrado era cozidoMe lembro de todos os pregões: Ovos frescos e baratos Dez ovos por uma patacaFoi há muito tempo...A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livrosVinha da boca do povo na língua errada do povoPorque ele é que fala gostoso o português do Brasil Ao passo que nós O que fazemos É macaquear A sintaxe lusíadaA vida com uma porção de coisas que eu não entendia nem Terras que não sabiam onde fi cavam...Recife... Rua da União... A casa de meu avô...Nunca pensei que ela acabasse!Tudo lá parecia impregnado de eternidadeRecife... Meu avô morto.Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô. Rio, 1925.

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A verossimilhança interna diz respeito à linguagem no que tange a elaboração formal do texto, aos elementos estruturais e a concepção de que a linguagem utilizada é a criadora do universo fi ccional. Neste caso, observa-se um maior “afastamento” do mundo exterior e o autor criará seu universo fi ccional. Como exemplo disso, podemos citar o gênero fantástico, situado por Todorov como entre o estranho e o maravilhoso, como O asno de ouro, de Apuleio, ou A Metamorfose, de Kafka. Nessas obras, seres não humanos são inteligentes, têm sentimentos, mas não fazem parte do mundo real, e sim do universo fi ccional. Vejamos, como exemplo, o início do texto de A Metamorfose, de Kafka:

Quando certa manhã Gregor Samsa despertou, depois de uma noite mal dormida, achou-se em sua cama transformado em um monstruoso inseto. Estava deitado sobre a dura carapaça de suas costas, e ao levantar um pouco a cabeça, viu a fi gura convexa de seu ventre escuro, sulcado por pronunciadas ondulações, em cuja proeminência a colcha mal podia agüentar, pois estava visivelmente a ponto de escorregar até o solo. Inúmeras patas, lamentavelmente esquálidas em comparação com a grossura comum de suas pernas, ofereciam a seus olhos o espetáculo de uma agitação sem consistência.

Que me aconteceu?6

Observem que em ambas as concepções de verossimilhança, interna e externa, o receptor, ou leitor encontra-se envolvido no reconhecimento. Podemos verifi car que a verossimilhança de caráter externo é comum nas obras realistas, cujas descrições de cenário e personagens se afi nam mais ao senso comum, ao universo que nos é conhecido. A verossimilhança interna, contudo, é facilmente encontrada nas obras ditas de “vanguarda”, e pressupõem um leitor já familiarizado com a linguagem utilizada na obra. Exemplos de verossimilhança interna podem ser verifi cados na poesia concreta e em enredos que envolvem elementos sobrenaturais, fl uxo de consciência, etc. Assim, quando a descrição do cenário está mais próxima da realidade, denominamos de verossimilhança externa; a verossimilhança interna por sua vez é construída através da linguagem.

6 - KAFKA, Franz. A Metamorfose Um Artista da Fome Cartas a Meu Pai. São Paulo: Martins Claret, 2001.p.17.

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Ampliando a noção de “texto”

Após um primeiro contato com a teoria literária, alguns textos críticos e o diálogo rápido que tivemos com a antiguidade clássica grega, precisamos reler todas essas ‘impressões’ para pensarmos o presente. Em que instância a noção de literatura estaria situada na contemporaneidade? Qual seria o âmbito do literário? Quais seriam as formas de se ‘ler’ o tempo do agora?

Diante do numeroso leque que nos foi oferecido por Compagnon para pensarmos o que seria essa instância do literário, podemos perceber que, se a literatura fala da vida, ela se expande para as mais diversas formas de movimentação cultural. Textos diversos, imagens do cotidiano, grafi tes, músicas, paisagens, fotografi as, arquitetura, enfi m, todos esses elementos seriam focos de interesse do literário. A literatura se aproveita de todos esses “textos”, pois eles narram a sociedade, o homem, sua relação com o mundo.

A seguir, trazemos para você uma história em quadrinhos de Robert Crumb. O autor norte-americano apresenta uma narrativa via imagens que historicizam o caminho que a América vem fazendo e que representa uma das grandes questões que enfrentamos na atualidade. Para tanto, o que predomina na sua história não é a linguagem escrita, tal como estamos habituados, mas uma linguagem plástica, que caminha pelo sensível dos detalhes. E que se torna extremamente bem sucedida em sua comunicação. Leia, atentamente, a história a seguir para podermos ‘visualizar’ sua linguagem, tentando pensar, para a literatura, uma noção de texto que se expande.

Feita essa leitura da HQ de Crumb, percebemos o quão intensa é sua narrativa, mesmo que esta não seja permeada de ‘palavras escritas’. A noção de texto se amplia para outras formas que ventilam as palavras e atribuem novos sentidos ao espaço da enunciação. Um fi lme mudo, a imagem estática de um objeto, o caminhar silencioso de cada um pelas ruas...todos eles formam um grande texto. A literatura faz dobras na sua forma e, no espaço da contemporaneidade, qualquer manifestação artística nos ajuda a compreender as instâncias da arte, da cultura. Pensando uma noção de texto para além das palavras, o olhar da literatura alcança o longe e fragmentado cotidiano.

AtividadesComplementares

1. Lidos os dois textos, o de Deleuze e o de Compagnon, como você caracterizaria a literatura, suas formas, seu sentido? E, voltando à pergunta de Compagnon: é possível, fi nalmente, defi nir a literatura? Por quê?

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2. Comente a postura de Platão e a de Aristóteles em relação à mimesis. O que você pensa sobre a concepção de cada fi lósofo? Como você consegue pensar essa noção de mimesis sendo transformada até os dias de hoje?

OS GÊNEROS LITERÁRIOS

Os Gêneros Literários são as várias formas de trabalhar a linguagem, de registrar a história, e fazer com que a essa linguagem seja um instrumento de conexão entre os diversos contextos literários que estão dispersos ao redor do mundo. Desde a antiguidade, os gêneros literários são conhecidos e geralmente são divididos, segundo Aristóteles, como: Lírico, Narrativo ou Épico e Dramático.

Neste segundo bloco, estudaremos cada um dos gêneros literários em particular e as relações mantidas entre eles. Veremos a lírica, o épico e o dramático, assim como suas particularidades e, posteriormente, veremos como cada gênero não se estabiliza em uma fórmula única e totalizante.

A lírica

Minhocas arejam a terra; poetas, a linguagem. Manoel de Barros.

Ao longo dos anos, o termo “lírica” tem sido associado à poesia. A etimologia do vocábulo “lírica” encontra-se ligada à palavra canção. A associação entre a palavra e a canção deu origem à poesia cantada, datada da Grécia clássica, e que permaneceu como tradição até a Renascença quando entrou em desuso. Entretanto, a partir do século XIX a lírica passou a ser utilizada para denominar um conteúdo relacionado com a subjetividade, o “eu”.

Podemos, então, sintetizar e dizer que a lírica se refere à expressão subjetiva do poeta: suas alegrias, suas dores, suas incertezas, sua consciência de si mesmo, sua visão de mundo. O poeta lírico é acima de tudo um ser solitário; o mundo que o circunda não o importa. Seu interesse reside

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antes de tudo na sua vivência interior; os elementos exteriores servem como mero pretexto para o poeta explicitar o seu íntimo.

Mesmo quando exprime a natureza, esta não passa da sua própria visão do que se constitui aquela paisagem, que, por sua vez, dependerá do “estado de alma” do poeta. Deste modo, portanto, um soneto será lírico não porque é um soneto, mas por conter uma dada experiência e uma dada postura mental perante a realidade do mundo.7

Segundo Hegel, a verdadeira poesia lírica, como toda a verdadeira poesia, tem por missão o conteúdo autêntico da alma humana. Porém, enquanto líricos, até os conteúdos mais positivos, mais concretos e mais substanciais devem ser o refl exo de sentimentos, intuições, idéias ou refl exões subjetivas.8

A poesia lírica se conceitua como a poesia da subjetividade, da emoção, e do “eu”, e como decorrência da autocontemplação do poeta tem a sua mais forte característica no conteúdo ambíguo. O esforço do poeta em traduzir em palavras toda a carga emocional que invade o seu interior culminará em reduzi-la, valendo-se, constantemente, de metáforas, que, por sua vez, acarreta uma distorção no seu conteúdo, tornando-o incerto, com mais de um sentido.

Um poema puro seria aquele em que as palavras abandonassem seus signifi cados particulares e suas referências a isto ou aquilo, para signifi car somente o ato de poetizar- exigência que acarretaria o seu desaparecimento, pois as palavras não são outra coisa que signifi cados de isto ou aquilo, isto é, de objetos relativos e históricos. Um poema puro não poderia ser composto de palavras e seria, literalmente, indizível. Ao mesmo tempo, um poema que não lutasse contra a natureza das palavras, obrigando-as a ir mais além de si mesmas e de seus signifi cados relativos, um poema que não tentasse fazê-las dizer o indizível, permaneceria uma simples manipulação verbal.9

As palavras de Octavio Paz, acima, defi nem o poema como algo que, não podendo prescindir da palavra para se tornar possível, procura sempre transcender o seu sentido semântico; esta defi nição confi rma o conceito hegeliano em que as palavras não dão conta daquilo que o poeta pretende dizer, embora, concomitantemente, aponte para o fato que as palavras são os recursos dos quais se vale o poeta para poder se exprimir.

Assim, diante da impossibilidade de estabelecer um conceito exato e defi nitivo sobre poesia, resta-nos mostrar o que ela representa. Mauro Faustino10 , em seu texto Que é poesia?, considera que a maneira mais próxima de se conceituar a poesia seria dizer que se trata simplesmente de uma forma de literatura, a arte da palavra, ou a maneira de organizar palavras em padrões lógicos, musicais e visuais. A poesia, portanto, é uma excitação dos sentidos: visuais, auditivos e, sobretudo, um exercício de pensamento. A polis ou a cidade, ambiente que propiciou o nascimento da poesia para os gregos, permanece como referencial para os poetas modernos. Contudo, embora os poetas gregos se relacionassem com o mundo exterior, se distinguiram de seus sucessores, pelo fator “subjetividade.” Enquanto no mundo grego o poeta narra o mundo do ponto de vista da onipotência, o poeta romântico acreditava na poesia como expressão da sua subjetividade, do seu “eu”; o poeta moderno, por sua vez, percebe que a sua relação com o mundo é relativa, justamente porque passa pelo fi ltro da subjetividade: o poeta moderno sabe perfeitamente que qualquer recorte do mundo será apenas linguagem.11

7 - MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974. p. 306.8 - HEGEL. Estética. Poesia. 1964.9 - PAZ, Octavio. A consagração do instante. 10 - FAUSTINO, Mauro. Que é poesia? In: Poesia e experiência. São Paulo: Perspectiva, 1977. p.60 11 - CARA, Salete de Almeida. O lirismo moderno. In: A poesia lírica. São Paulo: Ática, 1995. p. 40.

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Isto equivale a dizer que o poeta moderno reconhece a sua incapacidade de apresentar o mundo de forma verdadeira e inquestionável, ou, ainda, na sua totalidade; o poeta sabe que a sua visão de mundo é parcial e segmentada.

Observem o soneto abaixo:

Correspondências BaudelaireComo longos ecos que de longe se confundemnuma tenebrosa e profunda unidade,vasta como a noite e a claridade,os perfumes, as cores e os sons se correspondem.

Baudelaire é o poeta da modernidade por excelência, e conceituou o poema como uma relação de sons, ritmos e imagens. É o poeta dos boulevares, do novo, da nova confi guração da cidade, é também o poeta do “feio” e do “transitório” em oposição à beleza e à eternidade cantada pelos dos seus precursores. Tratando-se, historicamente, de uma época cuja principal característica se apresenta como a transformação concretizada através da construção de novas vias públicas (boulevares) e novas descobertas tecnológicas e científi cas, a modernidade e as mudanças decorrentes deste processo ocasionaram também a degradação, incluindo, por conseguinte, o que se torna feio e grotesco. À medida que o progresso se instalou na modernidade, os meios de comunicação evoluíram e o predomínio da técnica infl uenciou a arte de modo geral. Na poesia, a linguagem expressiva foi sendo percebida como mediação entre poeta e realidade, perdendo o seu caráter de verdade e desestabilizando a função do poeta.12

A fotografi a como a mais moderna técnica de linguagem na ocasião (1829) veio a infl uenciar a arte de modo decisivo, no que tange ao modo de captar “a realidade”. A fotografi a desloca o papel do artista revelando-lhe uma nova forma de desvelar o mundo: através de uma visão pessoal, recortada e, sobretudo, inventiva, de um instante perenizado.

Dica:

Para ver fotos de escritores, entre no site de Lygia Fagundes Telles e vasculhe seu baú!

http://portalliteral.terra.com.br/ligia_fagundes_telles/bau/fotos.shtml?bau

12 - CARA, Salete de Almeida. Op. cit. loc. cit. p. 43.

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Evidentemente, a infl uência exercida pela fotografi a predominou no âmbito da arte pictórica, entretanto, a possibilidade de escolher sob qual perspectiva se queria revelar o mundo inspirou, inegavelmente, também a escrita, no caso, a poesia. Ilustrando a situação do poeta versus a nova cidade, o poeta português, Cesário Verde escreveu:

Nas nossas ruas, ao anoitecer,Há tal soturnidade, há tal melancolia,Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia,Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,O gás extravasado enjoa-me, perturba;E os edifícios, com as chaminés, e a turba,Toldam-se duma cor monótona e londrina. Donde antes natureza e a sua conciliação com o sujeito, na modernidade, a cidade

surge como paisagem predominante: ruas e lojas engolfam o poeta e seu mundo. Solto na grande cidade, o poeta moderno busca na História sentido para a sua condição atual, e, espelhando a sua perplexidade diante do mundo novo, surge uma linguagem alegórica e fragmentada a dialogar com a tradição. Nessa busca, elementos característicos da poesia como o ritmo, a sonoridade, a ambigüidade de sentidos, a organização de idéias e associações criativas, abandonam os antigos modelos e regras, se expandindo e emancipando.

O sujeito lírico moderno não mais existe como referente, ou alguém em particular; torna-se oculto quanto poeta e como leitor, na medida em que a sua existência surge com o texto, e o leitor participa através do ato de leitura.

Na lírica moderna, a fala do sujeito lírico não refl ete necessariamente a voz do autor; o sujeito lírico se encontra imbricado na trama do texto poético. ...sua existência brota da melodia, do canto, da sintaxe, do ritmo: o sujeito lírico é o próprio texto,e é no texto que o poeta real transforma-se em sujeito lírico13.

A partir do Simbolismo, o sujeito lírico moderno passa a perceber que a subjetividade pode também ser ilusória, já que o espaço da poesia não se constitui nem do espaço da realidade nem do “eu”, dando lugar à “precariedade do sujeito”, estabelecida pela via da própria linguagem. Vejamos o que Fernando Pessoa nos diz sobre o poeta:

O poeta é um fi ngidorFinge tão completamenteQue chega a fi ngir que é dorA dor que deveras sente. Fernando Pessoa

A poesia lírica moderna vem abarcar, portanto, todos os tipos de digressões da “alma” e do “eu”. Suas audácias resultam num conceito de poesia que se assemelha à transgressão lógica e num direcionamento à utopia e ao mundo do desejo, uma vez que o poeta liberta-

13 - CARA, Salete de Almeida. Op. cit. loc. cit. p. 46.

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se de regras e modelos pela via do poema alcançando um outro espaço, o espaço possível da liberdade e do sonho.

Tomando como exemplo alguns poetas modernos brasileiros poderemos perceber que o texto se constitui como uma fotografi a ou uma pintura, em que o sujeito lírico é o elemento que une as escolhas de linguagem que forma o texto em si.

Pensão familiar14

Manoel Bandeira

Jardim da pensãozinha burguesa,Gatos espapaçados ao sol.A tiririca sitia os canteiros chatos.O sol acaba de crestar as boninas que murcharam.Os girassóis amarelo! resistem.E as dálias, rechonchudas, plebéias, dominicais,

Um gatinho faz pipi.Com gestos de garçom de restaurant-PalaceEncobre cuidadosamente a mijadinha.Sai vibrando com elegância a patinha direita:– É a única criatura fi na na pensãozinha burguesa.

É pela construção do texto que se revela o sujeito do/no texto, ponto de encontro com o leitor, elemento indispensável para que o efeito leitura-tradução seja realizado, e tenha signifi cação.

Algumas outras questões a respeito da poesia ainda merecem destaque, como as suas características e a diferenciação de outros gêneros literários. Vamos ver?

Ezra Pound15 resume os aspectos representativos da poesia em melopéia, logopéia e fanopéia, em que cada um desses aspectos corresponde às características rítmicas, organização/combinação de palavras (forma), e visuais, respectivamente. A fanopéia consiste na projeção do objeto na imaginação visual; a melopéia se refere à musicalidade ou ritmo; e a logopéia designa a arte de combinar palavras, dando-lhes forma e conteúdo, e provocando efeitos e associações através das duas características anteriores, a fanopéia e a melopéia.

Mauro Faustino ainda ressalta dois aspectos importantes na poesia: o prosaico e o poético. Ambos estão contidos de modo implícito na escrita, considerando que não haveria uma literatura que, por mais prosaica que fosse, como por exemplo, um relatório, não contivesse sequer uma palavra, ou uma organização de palavras que não se confi gurasse como “poética”; por outro lado, não haveria uma poesia tão pura que não abordasse algo prosaico.

Todavia, esclarecemos que a distinção entre a prosa e a poesia se faz por alguns outros aspectos, a saber: do ponto de vista formal citamos os aspectos concretos, ou exteriores, da poesia como a sua representação gráfi ca. Acrescente-se também o fato que o poema possui um caráter mais musical que a prosa – lembremos que no que pese a poética ter se desvinculado da música, esta ainda se faz presente, marcando a poesia através do ritmo e da rima, fl uindo e confi gurando o poema. Considerando a prosa e a poesia, ou especifi camente prosa e verso, como idéias contrastantes, observamos que ambas as formas se distinguem

14 - BANDEIRA, Manoel. Op.cit.loc.cit. p. 27.15 - POUND, Ezra. Apud MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974. p. 316 e 323.

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como expressão verbal, e, embora nitidamente reconhecidas por parte do leitor, são de difícil restrição a este ou aquele campo de delimitação entre o prosaico do poético.

Observemos que, neste caso, a defi nição de “prosaico” diz respeito ao arranjo de palavras que narram, ou descrevem o objeto, enquanto que poético denomina o arranjo das palavras em padrões que sintetizam, suscitam, apresentam, criam e recriam o objeto16 .

Quando o escritor se vale de palavras que descrevem, comentam, personifi cam, ou analisam o objeto de sua criação, estará adentrando a seara da prosa. Entretanto, quando o escritor se utiliza de palavras que inovam e recriam o objeto de sua criação, estará se inserindo no campo da poética. Ou em outras palavras, prosaico é o discurso e poético é o canto17 .

A prosa é clara; a poesia é ambígua. A poesia é dependente da palavra, e a linguagem poética, portanto, delas se utiliza para criar e/ou recriar; é no seu uso que o poeta faz e refaz o objeto de sua criação.

Dando-lhes um novo sentido, o poeta cria imagens que ampliam o conteúdo semântico desses vocábulos; entretanto, à medida que as imagens expandem e transcendem o signifi cado das palavras, promovem também uma multiplicidade de interpretações nas quais o leitor, e a sua experiência pessoal, estará inevitavelmente envolvido. A imagem nunca diz só isto; a imagem diz isto e aquilo, ao mesmo tempo; ou ainda: a imagem diz que isto é aquilo.

As imagens são produtos imaginários, designadas pelas palavras organizadas em um conjunto de frases, que, unidas, compõem um poema. Essas expressões verbais, classifi cadas pela retórica, são chamadas de comparações, metáforas, símiles, jogos de palavras, paronomásias, símbolos, alegorias, mitos, fábulas, etc, tendo todos em comum a pluralidade de signifi cados. Os elementos que constituem uma imagem não perdem seu caráter concreto e específi co, entretanto, na constituição da imagem podem provocar uma signifi cação contrária ou até mesmo paradoxal, como, por exemplo, quando o poeta afi rma: “as pedras são plumas”. Sabemos que as pedras são pesadas e que as plumas são leves, entretanto, ao lançar mão desses vocábulos para criar uma imagem, opõe seus signifi cados alcançando outra signifi cação que não as próprias dos elementos, individualmente. Daí dizermos que o poema não diz o que é, e, sim, o que poderia ser. O poeta, através da imagem suscitada, cria e recria realidades que faz sentido para ele. A imagem poética reproduz a pluralidade da realidade e, ao mesmo tempo, outorga-lhe unidade18. Vejamos a poesia a seguir e refl ita:

16 - FAUSTINO, Mauro.Op. cit. loc. cit.. p.61. 17 - FAUSTINO, Mauro.Op.cit.loc.cit.p.66.18 - PAZ, Octavio. A imagem. In: O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. p.131

O sertanejo falando19 João Cabral de Melo Neto

A fala a nível do sertanejo engana:As palavras dele vêm, como rebuçadas

19 - MELO NETO, João Cabral de. In: A Educação pela Pedra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. p.16.

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(palavras, confeito, pílula), na glacede uma entonação lisa, de adocicada.

Enquanto que sob ela, dura e endureceO caroço de pedra, a amêndoa pétrea,Dessa árvore pedrenta (o sertanejo)Incapaz de não se expressar em pedra. 2Daí porque o sertanejo fala pouco:As palavras de pedra ulceram a bocaE no idioma pedra se fala doloroso;O natural desse idioma fala à força.Daí também porque ele fala devagar:Tem de pegar as palavras com cuidado,Confeitá-las na língua, rebuçá-las;Pois toma tempo todo esse trabalho.

Visite o site:

http://www.ufrgs.br/proin/versao_2/paz/index01.html

Neste endereço você encontrará um texto do escritor mexicano Octavio Paz, no qual ele pretende construir uma suave distinção entre poesia e poema pelas vias metafóricas e abstratas. O texto vale a pena ser lido, pois a partir dele você terá maior acesso às teorias que demarcam esse assunto, se entrosando mais e mais com o tema e com essa linguagem que coloca em suspensão diariamente, a vida e o tempo.

O épico

O gênero épico, já mencionado algumas vezes durante as explanações temáticas, é um gênero mais objetivo que os demais. O mundo objetivo é emancipado da subjetividade do narrador que não exprimirá seu estado de alma, mas narrará o estado de alma dos seres que povoam a obra. O narrador épico participa da obra na medida em que está sempre presente no ato de narrar, mesmo quando os personagens dialogam é o narrador que indica as ações e que lhes descreve as reações (por exemplo, João disse, exclamou, gritou, etc). O narrador épico deseja comunicar alguma coisa a alguém, e como o seu desejo de contar histórias não envolve a expressão do seu estado de alma, ele possui o distanciamento necessário a fi m de tornar a sua narrativa objetiva.

O épico tem como característica o tratamento de “um vasto assunto”. Daí ocorrendo a sua linguagem ser menos sintética do que os demais gêneros, e a menor utilização de recursos sonoros e rítmicos, como por exemplo, na Lírica. Por este motivo também, o

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narrador épico dispõe de tempo para contar a sua história com maior calma e lucidez. O gênero épico é constituído por dois “horizontes”: o maior, ou do narrador, e o menor, ou dos personagens, ambos de pleno conhecimento do narrador a história já decorreu, o que vem a diferenciar, mais uma vez, este gênero da Lírica.

Mesmo na narração em que o narrador conta uma estória acontecida a ele mesmo, o eu que narra tem horizonte maior que o eu narrado e ainda

envolvido nos eventos, visto já conhecer o desfecho do caso.A distância do narrador também o possibilita a não necessitar se metamorfosear

nos personagens dos quais narra os destinos; poderá imitá-los, fi ngir estar presente nos acontecimentos, conhecer os sentimentos dos protagonistas, mas nunca se transforma neles. Estará sempre mostrando, ou ilustrando, as ações dos personagens.

A epopéia e o poema épico, embora vistos como sinônimos, apresentam uma característica curiosa: nem todo poema épico é, necessariamente, uma epopéia; entretanto, uma epopéia será sempre um poema épico. Isto se explica pelo fato de que, quando um poema épico torna-se representativo da história de um povo, torna-se, concomitantemente, uma epopéia. O poema épico, contudo, não conseguiu se alçar à altura de se realizar como uma epopéia, ou como uma lenda histórica de uma comunidade. Isto pode ocorrer tanto pela falta de criatividade, ou “engenho e arte”, ou por estar concentrado em um recorte: um acontecimento secundário, historicamente, como, por exemplo, Caramuru, O Uraguai, etc. As epopéias podem ser anônimas, ou de criação coletiva, como, por exemplo, A Odisséia, Ilíada, A Canção de Rolando, El Cid, e a essas se denomina de epopéia natural, folclórica ou primitiva. As epopéias de autoria conhecida como Eneida e Os Lusíadas são denominadas de epopéia erudita ou artifi cal20.

O personagem central da epopéia, o herói representa o destino de uma comunidade, e passa por uma série de provas ou aventuras das quais sairá consagrado pela comunidade. O herói representa os valores éticos do povo ou nação a que a lenda se refere.

A epopéia, como gênero, encontra-se caracterizada por Bakthin por três traços: o primeiro, pelo passado nacional épico, objeto da epopéia; o segundo, a lenda nacional, e não a experiência pessoal, atua como fonte da epopéia; e o terceiro, é que o mundo épico é o tempo do autor e dos ouvintes, distante.

O primeiro traço diz respeito ao passado nacional, isto é, ao mundo da origem da história de uma nação, constituído pelo que houve de “primeiro” e de “melhor”. O tempo da epopéia é sempre o passado, inacessível, que atua como referência e orientação para os descendentes de uma nação, ou povo.

Qualquer que tenha sido a sua origem, a epopéia que chegou até nós é a forma de um gênero acabado de maneira absoluta e muito perfeita, cujo traço constitutivo é a relação do mundo por ela representado no passado absoluto das origens e dos fastígios nacionais. O passado absoluto é uma categoria (hierarquia) de valores específi cos. Para a visão do mundo épico, o “começo”, o “primeiro”, o “fundador”, o “ancestral”, o “predecessor”, etc., não são apenas categorias temporais, mas igualmente axiológicas e temporais, este é o grau superlativo axiológico-temporal que se realiza tanto pela atitude das pessoas, como também pela atitude de todas as coisas e fenômenos do mundo épico: neste passado tudo é bom, e tudo é essencialmente bom (o “primeiro”) unicamente neste passado. O passado épico absoluto é a única fonte e origem de tudo que é bom para os tempos futuros. Assim afi rma a forma da epopéia.

A epopéia tem como objeto o tempo e, como única fonte, a lenda. Podemos afi rmar, portanto, que a força da epopéia reside na memória de um tempo remoto, inacessível, e

20 - MOISÉS, Massaud. Op. Cit.p. 188.21 - BAKTHIN, Mikhail. Epos e Romance. In: Questões de Literatura e de Estética (Teoria do Romance).São Paulo: Unesp, 1998. p.407.

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referencial para as futuras gerações de um grupo social, apresentando valores inquestionáveis para este grupo. A tradição se apresenta como sagrada. Chamamos de “passado absoluto” o tempo que não possui nenhuma ligação com o presente; é circular, perfeito, concluído. A epopéia apóia-se numa lenda nacional; seu discurso é enunciado em forma de lenda. O mundo épico é longínquo, distante e acabado, não deixando brechas para contestação, ou avaliação, nisto residindo a sua perfeição. Por isso, exemplos clássicos de epopéia são A Ilíada e A Odisséia.

O passado épico é uma forma particular de percepção literária do homem e do acontecimento. Ela coincidia quase que completamente com a percepção literária e com a representação em geral. A representação literária é uma forma “sub specie aeternitatis”. Representar e imortalizar pelo discurso literário só é possível e viável para aquilo que é digno de ser comemorado e mantido na memória dos descendentes; e é no plano antecipado de sua longínqua memória que ele assume a forma. Para os seus contemporâneos, a atualidade (que não virá a ser memória) é comemorada em argila, e aquela que visa o futuro (a posteridade) é comemorada em mármore e bronze22.

De acordo com excerto acima, podemos inferir que as epopéias se constituem de fatos notáveis para um dado grupo social na sua origem, e que por sua vez, irão se confi gurar em uma lenda, ou uma representação literária, que, sobrevivendo na memória dos descendentes do grupo será comemorada e valorizada de forma inquestionável pela comunidade.

A epopéia e o poema épico, embora vistos como sinônimos, apresentam uma característica curiosa: nem todo poema épico é, necessariamente, uma epopéia; entretanto, uma epopéia será sempre um poema épico. Isto se explica pelo fato que um poema épico que torna-se representativo da história de um povo, torna-se uma epopéia. O poema épico, contudo, não conseguiu se alçar à altura de se realizar como uma epopéia, ou como uma lenda histórica de uma comunidade. Isto pode ocorrer tanto pela falta de criatividade, ou “engenho e arte”, ou por estar concentrado em um recorte: um acontecimento secundário, historicamente, como, por exemplo, Caramuru, O Uraguai, etc.

As epopéias podem ser anônimas, ou de criação coletiva, como, por exemplo, A Odisséia, Ilíada, A Canção de Rolando, El Cid, e a essas se denomina de epopéia natural, folclórica, ou primitiva. Às epopéias de autoria conhecida como Eneida e Os Lusíadas denomina-se de epopéia erudita ou artifi cal23.

O personagem central da epopéia, o herói representa o destino de uma comunidade, e passa por uma série de provas ou aventuras das quais sairá consagrado pela comunidade. O herói representa os valores éticos do povo ou nação a que a lenda se refere.

22 - BAKTHIN, Mikhail. Op.cit. p. 410.

23 - MOISÉS, Massaud. Op. Cit.p. 188.

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O Romance & o Conto

O gênero épico consiste em uma narrativa seqüenciada, na qual o agente é o narrador, que possui o distanciamento necessário a fi m de apresentar o mundo narrado de forma objetiva.

O romance se constitui de uma narrativa longa, com vários personagens, e uma pluralidade de confl itos que se desdobram a partir da história do

narrador. O modelo da narrativa origina-se na oralidade, no contar de experiências individuais. É herdeiro da epopéia clássica, no que pese ser uma forma “híbrida”, pois, como a épica, o romance trata de um “vasto assunto”, e como na lírica, o narrador apresenta um ponto de vista individual, diferindo do “heroi” da epopéia que representa um grupo social; também possui a dialógica do drama através da polifonia de estruturas, e pode englobar outras formas narrativas, como, por exemplo, o diário, vide Robinson Crusoé, que, segundo alguns teóricos se apresenta como um divisor de águas neste gênero narrativo, por já manifestar características de hibridismo; outros autores consideram Dom Quixote como precursor do gênero por apresentar um questionamento de mundo.

No romance moderno, os valores coletivos anteriormente confi rmados pelo herói épico passam a ser questionados; o herói do romance é um sujeito perplexo diante do mundo que vive, e que busca o sentido da vida, conforme explica Georg Lukács, em Teoria do Romance. O herói do romance moderno busca valores; o herói da epopéia já os tinha, apenas confi rmava-os. O protagonista principal do romance, ou herói, é “problemático”, se questiona e está dividido entre a vida interior e exterior; o narrador narra de acordo com a sua perspectiva, como mostra o delírio de Dom Quixote no texto abaixo:

(...) é mister andar pelo mundo buscando as aventuras como escola prática, para que, saindo com alguns feitos em limpo, se cobre nome e fama tal, que, quando depois, se chegar à corte de algum grande monarca, já o cavaleiro seja conhecido por suas obras, e que, apenas o houverem visto entrar pelas portas da cidade, os rapazes da rua o rodeiem e acompanhem, vozeando entre vivas: “Este é o Cavaleiro do Sol”, ou da “Serpente”, ou de outra qualquer insígnia, debaixo da qual houver acabado grandes façanhas.”Este é”, dirão, “o que venceu em singular batalha o gigante Brocabruno da Grande Força; o que desencantou o grande Mameluco da Pérsia do largo encantamento em que tinha permanecido quase novecentos anos”; e assim de mão em mão irão pregoando os seus feitos; e logo, com o alvoroto dos rapazes da rua, e de todo outro gentio, sairá às janelas do seu real palácio o rei daquele reino; e assim que vir o cavaleiro, conhecendo-o pelas armas, ou pela empresa do escudo, forçosamente há de dizer: “Eia! Sus! Saiam meus cavaleiros, quantos em minha corte são, a receber a fl or da cavalaria que ali vem;”24

O conto representa um momento de crise, no sentido que é o momento que “assinala o encontro decisivo de forças em confl ito”. O registro de histórias em forma de conto inicia-se na França, no século XVII, com a transcrição dos contos chamados “fada”por Charles Perrault, seguido por outros autores como os Irmãos Grimm e La Fontaine, culminando com o conto moderno no século XX por Edgar Alan Poe. O conto é uma história condensada, um momento de “crise”, que se caracteriza por “seqüestrar” o leitor pelo tempo da narrativa. Recorta um episódio signifi cativo que tem um efeito sobre o leitor, “seqüestrando-o”.

O Menino Lygia Fagundes Telles

Sentou-se num tamborete, fi ncou os cotovelos nos joelhos, apoiou o queixo nas mãos e fi cou olhando para a mãe. Agora ela escovava os cabelos muito louros e curtos, puxando-os

24 - CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote. São Paulo: Nova Cultural, 2003. p. 130.

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para trás. E os anéis se estendiam molemente para em seguida voltarem à posição anterior, formando uma coroa de caracóis sobre a testa. Deixou a escova, apanhou um frasco de perfume, molhou as pontas dos dedos, passou-os nos lóbulos das orelhas, no vértice do decote e em seguida umedeceu um lencinho de rendas. Através do espelho, olhou para o menino. Ele sorriu também, era linda, linda, linda! Em todo o bairro não havia uma moça linda assim.

– Quantos anos você tem, mamãe?– Ah, que pergunta! Acho que trinta ou trinta e um, por aí, meu amor, por aí... Quer se

perfumar também?– Homem não bota perfume.– Homem, homem! Ela inclinou-se para beijá-lo. – você é um nenenzinho, ouviu bem?

É o meu nenenzinho.O menino afundou a cabeça no colo perfumado. Quando não havia ninguém olhando,

achava maravilhoso ser afagado como uma criancinha. Mas era preciso mesmo que não houvesse ninguém por perto.

Agora vamos que a sessão começa às oito, avisou ela, retocando apressadamente os lábios.

O menino deu um grito, montou no corrimão da escada e foi esperá-la embaixo. Da porta, ouviu-a dizer à empregada que avisasse ao doutor que tinham ido ao cinema.

Na rua, ele andava pisando forte, o queixo erguido, os olhos acesos. Tão bom sair de mãos dadas com a mãe. Melhor ainda quando o pai não ia junto porque assim fi cava sendo o cavalheiro dela. Quando crescesse haveria de casar com uma moça igual. Anita não servia que Anita era sardenta. Nem Maria Inês com aqueles dentes saltados. Tinha que ser igualzinha à mãe.

– Você acha a Maria Inês bonita, mamãe?– É bonitinha, sim.– Ah! tem dentão de elefante.E o menino chutou um pedregulho. Não, tinha que ser assim como a mãe, igualzinha

à mãe. E com aquele perfume.– Como é o nome do seu perfume?–Vent Vert. Por quê, fi lho? Você acha bom?– Que é que quer dizer isso?–Vento Verde.– Vento Verde, vento verde. Era bonito, mas existia vento verde? Vento não tinha cor,

só cheiro. Riu.– Posso te contar uma anedota, mãe? Posso?– Se for anedota limpa, pode.– Não é limpa não.– Então não quero saber.– Mas por que, pô!?– Eu já disse que não quero que você diga pô.Ele chutou uma caixa de fósforos. Pisou-a em seguida.– Olha mãe, a casa do Júlio...Júlio conversava com alguns colegas no portão. O menino fez questão de cumprimentá-

los em voz alta para que todos voltassem e fi cassem assim mudos, olhando. Vejam, esta é minha mãe!, teve vontade de gritar-lhes. Nenhum de vocês tem uma mãe linda assim! E lembrou-se deliciado que a mãe de Júlio era grandalhona e sem graça, sempre de chinelo e consertando meia. Júlio devia estar agora roxo de inveja.

– Ele é bom aluno? Esse Júlio.– Que nem eu.– Então não é.

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O menino deu uma risadinha.– Que fi ta a gente vai ver?– Não sei meu bem.– Você não viu no jornal? Se for fi ta de amor, não quero! Você não viu

no jornal, hein, mamãe?Ela não respondeu. Andava agora tão rapidamente que às vezes o

menino precisava andar aos pulos para acompanhá-la. Quando chegaram à porta do cinema, ele arfava. Mas tinha no rosto uma vermelhidão feliz.

A sala de espera estava vazia. Ela comprou os ingressos e em seguida, como se tivesse perdido toda a pressa, fi cou tranqüilamente encostada a uma coluna lendo o programa. O menino deu-lhe um puxão na saia.

– Mãe, mas o que é que você está fazendo?! A sessão já começou, já entrou todo o mundo, pô!

Ela inclinou-se para ele. Falou num tom muito suave, mas os lábios se apertavam comprimindo as palavras e os olhos também tinham aquela expressão que o menino conhecia muito bem: nunca se exaltava, nunca elevava a voz. Mas ele sabia que quando ela falava assim, nem súplicas nem lágrimas conseguiam fazê-la voltar atrás.

– Sei que já começou, mas não vamos entrar agora, ouviu? Não vamos entrar agora, espera.

O menino enfi ou as mãos nos bolsos e enterrou o queixo no peito. Lançou à mãe um olhar sombrio. Por que é que não entravam logo? Tinham corrido feito dois loucos e agora aquela calma, espera. Esperar o que, pô?!...

– É que a gente já está atrasado, mãe.– Vá ali no balcão comprar chocolate ordenou ela, entregando-lhe uma nota

nervosamente amarfanhada.Ele atravessou a sala num andar arrastado, chutando as pontas de cigarro pela frente.

Ora, chocolate. Quem é que quer chocolate? E se o enredo fosse de crime, quem é que ia entender chegando assim começado? Sem nenhum entusiasmo, pediu um tablete de chocolate. Vacilou um instante e pediu em seguida um tubo de drágeas de limão e um pacote de caramelos de leite, pronto, também gastava à beca. Recebeu o troco de cara fechada. Ouviu então os passos apressados da mãe que lhe estendeu a mão com impaciência:

– Vamos, meu bem, vamos entrar.Num salto, o menino pôs-se ao lado dela. Apertou-lhe a mão freneticamente.– Depressa que a fi ta já começou, não está ouvindo a música?Na escuridão, fi caram por um instante parados, envolvidos por um grupo de pessoas,

algumas entrando, outras saindo. Foi quando ela resolveu.– Venha vindo atrás de mim.Os olhos do menino devassavam a penumbra. Apontou para duas poltronas vazias.– Lá, mãezinha, lá tem duas, vamos lá!Ela olhava para um lado, para outro, e não se decidia.– Mãe, aqui tem mais duas, está vendo? Aqui não está bom? insistiu ele, puxando-a elo

braço. E olhava afl ito para a tela, e olhava de novo para as poltronas vazias que apareciam aqui e ali como coágulos de sombra. Lá tem mais duas, está vendo?

Ela adiantou-se até as primeiras fi las e voltou em seguida até o meio do corredor. Vacilou ainda um momento. E decidiu-se. Impeliu-o suave, mas resolutamente.

– Entre aí.Licença? Licença? ... ele foi pedindo. Sentou-se na primeira poltrona desocupada que

encontrou, ao lado de uma outra desocupada também. Aqui, não é, mãe?– Não, meu bem, ali adiante murmurou ela, fazendo-o levantar-se. Indicou os três

lugares vagos quase no fi m da fi leira. Lá é melhor.

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Ele resmungou, pediu “licença, licença?”, e deixou-se cair pesadamente no primeiro dos três lugares. Ela sentou-se em seguida.

– Ih, é fi ta de amor, pô!– Quieto, sim?O menino pôs-se na beirada da poltrona. Esticou o pescoço, olhou para a direita, para

a esquerda, remexeu-se:– Essa bruta cabeçona aí na frente!– Quieto, já disse!– Mas é que não estou enxergando direito, mãe! Troca comigo que não estou enxergando!Ela apertou-lhe o braço. Esse gesto ele conhecia bem e signifi cava apenas: não insista!– Mas, mãe...Inclinando-se até ele, ela falou-lhe baixinho, naquele tom perigoso, meio entre os dentes

e que era usado quando estava no auge: um tom tão macio que quem a ouvisse julgaria que ela lhe fazia um elogio. Mas ele sabia o que havia debaixo daquela maciez.

– Não quero que mude de lugar, está me escutando? Não quero. E não insista mais.Contendo-se para não dar um forte pontapé na poltrona da frente, ele enrolou o pulôver

como uma bola e sentou-se em cima. Gemeu. Mas por que aquilo tudo? Por que a mãe lhe falava daquele jeito, por quê? Não fi zera nada de mal, só queria mudar de lugar, só isso... Não, desta vez ela não estava sendo nem um pouquinho camarada. Voltou-se então para lembrar-lhe que estava chegando muita gente, se não mudasse de lugar imediatamente, depois não poderá mais porque aquele era o último lugar vago que restava, “olha aí, mamãe, acho que aquele homem vem pra cá!” Veio. Veio e sentou-se na poltrona vazia ao lado dela.

O menino gemeu, “ai! Meu Deus...”Pronto. Agora é que não haveria mesmo nenhuma esperança. E aqueles dois enjoados lá na fi ta numa conversa comprida que não acabava mais, ela vestida de enfermeira, ele de soldado, mas por que o tipo não ia pra guerra, pô!... E a cabeçona da mulher na sua frente indo e vindo para a esquerda, para a direita, os cabelos armados a fl utuarem na tela como teias monstruosas de uma aranha. Um punhado de fi os formava um frouxo topete que chegava até o queixo da artista. O menino deu uma gargalhada.

– Mãe, daqui eu vejo a mocinha de cavanhaque!– Não faça assim, fi lho, a fi ta é triste... Olha, presta atenção, agora ele vai ter que fugir

com outro nome... O padre vai arrumar o passaporte.– Mas por que ele não vai pra guerra duma vez?– Porque ele é contra a guerra, fi lho, ele não quer matar ninguém sussurrou-lhe a mãe

num tom meigo. Devia estar sorrindo e ele sorriu também, ah! que bom, a mãe não estava mais nervosa, não estava mais nervosa! As coisas começavam a melhorar e para maior alegria, a mulher da poltrona da frente levantou-se e saiu. Diante dos seus olhos apareceu o retângulo inteiro da tela.

– Agora sim! disse baixinho, desembrulhando o tablete de chocolate. Meteu-o inteiro na boca e tirou os caramelos do bolso para oferece-los à mãe. Então viu: a mão pequena e branca, muito branca, deslizou pelo braço da poltrona e pousou devagarinho nos joelhos do homem que acabara de chegar.

O menino continuou olhando, imóvel. Pasmado. Por que a mãe fazia aquilo?! Ficou olhando sem nenhum pensamento, nenhum gesto. Foi então que as mãos grandes e morenas do homem tomaram avidamente a mão pequena e branca. Apertaram-na com tanta força que pareciam querer esmagá-la.

O menino estremece. Sentiu o coração bater descompassado, bater como só batera naquele dia na fazenda, quando teve de correr como louco, perseguido de perto por um touro. O susto ressecou-lhe a boca. O chocolate foi-se transformando numa massa viscosa e amarga. Engoliu-o com esforço, como se fosse uma bola de papel. Redondos e estáticos, os olhos cravaram-se na tela. Moviam-se as imagens sem sentido num sonho fragmentado.

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Os letreiros dançavam e se fundiam pesadamente, como chumbo derretido. Mas o menino continuava imóvel, olhando obstinadamente. Um bar em Tóquio, brigas, a fuga do moço de capa perseguido pela sereia da polícia, mais brigas numa esquina, tiros. A mão pequena e branca a deslizar no escuro como um bicho. Torturas e gritos nos corredores paralelos da prisão, os homens agarrando as portas de grade, mais conspirações. Mais homens. A mão pequena e branca. A fuga, os faróis na noite, os gritos, mais tiros,

tiros. O carro derrapando sem freios. Tiros. Espantosamente nítido em meio do fervilhar de sons e falas e ele não queira, não queria ouvir! O ciciar delicado dos dois num diálogo entre os dentes.

Antes de terminar a sessão, mas isso não acaba mais, não acaba? , ele sentiu, mais do que sentiu, adivinhou a mão pequena e branca desprender-se das mãos morenas. E, do mesmo modo manso como avançara, recuar deslizando pela poltrona e voltar a se unir à mão que fi cara descansando no regaço. Ali fi caram entrelaçadas e quietas como estiveram antes.

– Está gostando, meu bem? perguntou ela, inclinando-se para o menino.– Ele fez que sim com a cabeça, os olhos duramente fi xos na cena fi nal. Abriu a boca

quando o moço também abriu a sua para beijar a enfermeira. Apertou os olhos, enquanto durou o beijo. Então o homem levantou-se embuçado na mesma escuridão em que chegara. O menino retesou-se, os maxilares contraídos, trêmulo. Fechou os punhos. “Eu pulo no pescoço dele, eu esgano ele!”

O olhar desvairado estava agora nas espáduas largas interceptando a tela como um muro negro. Por um brevíssimo instante fi caram paradas em sua frente. Próximas, tão próximas. Sentiu a perna musculosa do homem roçar no seu joelho, esgueirando-se rápida. Aquele contato foi como ponta de um alfi nete num balão de ar. O menino foi-se descontraindo. Encolheu-se murcho no fundo da poltrona e pendeu a cabeça para o peito.

Quando as luzes se acenderam, teve um olhar para a poltrona vazia. Olhou para a mãe. Ela sorria com aquela mesma expressão que tivera diante do espelho, enquanto se perfumava. Estava corada, brilhante.

– Vamos, fi lhote?Estremeceu quando a mão dela pousou no seu ombro. Sentiu-lhe o perfume. E voltou

depressa a cabeça para o outro lado, a cara pálida, a boca apertada como se fosse cuspir. Engoliu penosamente. De assalto, a mão dela agarrou a sua. Sentiu-a quente, macia. Endureceu a ponta dos dedos, retesado: queria cravar as unhas naquela carne.

– Ah, não que mais andar de mãos dadas comigo? Hein, fi lhote?Ele inclinara-se, demorando mais do que o necessário para dobrar a barra da calça

rancheira.– É que não sou mais criança.– Ah, o nenenzinho cresceu? Cresceu? Ela riu baixinho. Beijou-lhe o rosto. Não anda

mais de mão dada?– O menino esfregou as pontas dos dedos na umidade dos beijos no queixo, na orelha.

Limpou as marcas com a mesma expressão com que limpava as mãos nos fundilhos da calça quando cortava as minhocas para o anzol.

Na caminhada de volta, ela falou sem parar, comentando excitada o enredo do fi lme. Explicando. Ele respondia por monossílabos.

– Mas que é que tem, fi lho? Ficou mudo...– Está me doendo o dente.– Outra vez? Quer dizer que fugiu do dentista? Você tinha hora ontem, não tinha?Ele botou uma massa. Está doendo murmurou, inclinando-se para apanhar uma folha

seca. Triturou-a no fundo do bolso. E respirou abrindo a boca. Como dói, pô. Assim que chegarmos você toma uma aspirina. Mas não diga, por favor, essa palavrinha que detesto.

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– Não digo mais.Diante da casa de Júlio, instintivamente ele retardou o passo. Teve um olhar para a

janela acesa. Vislumbrou uma sombra disforme passar através da cortina.– Dona Margarida.– Hum?– A mãe do Júlio.Quando entraram na sala, o pai estava sentado na cadeira de balanço, lendo o jornal.

Como todas as noites, como todas as noites. O menino estacou na porta. A certeza de que alguma coisa terrível ia acontecer paralisou-o atônito, obumbrado. O olhar em pânico procurou as mãos do pai.

– Então, meu amor, lendo o seu jornalzinho? – perguntou ela, beijando o homem na face. Mas a luz não está muito fraca?

– A lâmpada maior queimou, liguei essa por enquanto, disse ele, tomando a mão da mulher. Beijou-a demoradamente. Tudo bem?

– Tudo bem.O menino mordeu o lábio até sentir gosto de sangue na boca. Como nas outras

noites, igual. Igual.– Então, fi lho? Gostou da fi ta? Perguntou o pai, dobrando o jornal. Estendeu a mão ao menino

e com a outra começou a acariciar o braço nu da mulher. Pela sua cara, desconfi o que não.– Gostei, sim.– Ah, confessa, fi lhote, você detestou, não foi? Contestou ela. Nem eu entendi direito,

uma complicação dos diabos, espionagem, guerra, máfi a... Você não podia ter entendido.– Entendi. Entendi tudo! – Ele quis gritar e a voz saiu num sopro tão débil que só ele ouviu.– E ainda com dor de dente! – Acrescentou ela, desprendendo-se do homem e subindo

a escada. Ah, já ia esquecendo a aspirina!O menino voltou para a escada os olhos cheios de lágrimas.– Que é isso? Estranhou o pai. – Parece até que você viu assombração. Que foi?O menino encarou-o demoradamente. Aquele era o pai. O pai. Os cabelos grisalhos.

Os óculos pesados. O rosto feio e bom.– Pai... murmurou, aproximando-se. E repetiu num fi o de voz: Pai...– Mas meu fi lho, que aconteceu? Vamos, diga!– Nada. Nada.Fechou os olhos para prender as lágrimas. Envolveu o pai num apertado abraço.

O trágico

Assim como na Lírica, em que não há oposição entre o sujeito e objeto, no gênero Dramático também este aspecto se faz característico. Entretanto, enquanto na Lírica o mundo é subjetivado, ou seja, o poeta “abarca” o mundo, no gênero Dramático se dá o contrário: o mundo não se encontra relativizado pelo sujeito, independe do poeta. Neste gênero podemos dizer que o narrador, comum no gênero épico, é absorvido pelos personagens tanto quanto o “eu” da lírica.

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Introdução aos

Estudos Literários

Associada à noção de Drama encontra-se a Tragédia, já mencionada aqui quando falamos de Aristóteles e a concepção de verossimilhança. A Tragédia consistiria em imitação de ações sérias e praticadas por indivíduos de uma classe elevada, idéia que permaneceu até o século XVIII, quando, inspirados pela Revolução Industrial, instituiu-se o drama burguês. A tragédia clássica apresentava a seguinte estrutura: o prólogo, em forma de diálogo; o “párodo” ou entrada do coro; os episódios, em número de três; e o êxodo, ou desfecho da peça. Durante os séculos

seguintes, o Drama passou por diversas modifi cações e, fi nalmente, a partir do século XIX passou a apresentar três atos. Ou seja, tudo o que retardava a ação foi, gradativamente, removido. A Tragédia, na contemporaneidade, não é mais encenada com as suas características originais, e, segundo especialistas, só se pode rotulá-la como tal em algumas obras de Henrik Ibsen, ou em algumas peças características do Teatro do Absurdo.

A Comédia, oriunda também da Tragédia, era considerada uma forma “menor” de entretenimento. Na Grécia clássica, a comédia se desenvolveu em três fases diferentes, de acordo com o assunto abordado: a “comédia antiga” dizia respeito aos assuntos políticos ou sociais; a “comédia mediana” tratava de mitologia, ou de assuntos literários; e fi nalmente, a “comédia nova” que discorria sobre temas amorosos como a paixão.

O Drama obedece a uma hierarquia estabelecida de acordo com a classe social dos indivíduos representados nas peças: classe alta, Tragédia; classe inferior, Comédia. O teatro “cômico” se consagrou a partir da Renascença, inaugurando uma nova era para o Drama com Gil Vicente (Portugal), Calderon de La Barca (Espanha), Shakespeare (Inglaterra), Moliére (França), entre outros.

As situações apresentadas na Comédia e na Tragédia se distinguem pelas ações dos indivíduos: enquanto na tragédia os indivíduos, pertencentes à aristocracia ou à uma classe privilegiada, eram movidos por temas de acordo com a sua esfera de ação, na Comédia

Tratando-se de gêneros literários, Anatol Rosenfeld25 , autor aqui escolhido como referência, diverge da concepção hegeliana a respeito do Drama, entre outros aspectos, devido ao fato de Hegel colocar o gênero Dramático como uma síntese dos outros gêneros, e estabelecer uma hierarquia em que este gênero seria superior ao Lírico e ao Épico. Rosenfeld, por sua vez, não advoga a superioridade de nenhum gênero e os classifi ca de acordo com a relação do mundo imaginário para com o “autor”, sujeito fi ctício de quem emana o texto literário.

Ainda segundo Rosenfeld, na Lírica, o mundo é conteúdo do “eu lírico”, enquanto que na Épica, embora o narrador se encontre afastado do mundo objetivo ainda se encontra presente, situado como um mediador deste mundo. No gênero dramático não existe quem apresente os acontecimentos como nos gêneros anteriormente citados; os acontecimentos se apresentam como fato, sem a interferência de mediador, daí resultando a força deste gênero. Os personagens se manifestam sem dialogar com o “autor” – se apresentam, simplesmente, em cenários que se tornam ambiente, e com atores que desaparecem para dar lugar aos personagens. No gênero Dramático não há um narrador nem oposição entre sujeito e objeto.

Os fatos se apresentam sem mediador.

25 - ROSENFELD, Anatol. O Teatro Épico. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1985.

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essas ações estavam circunscritas à cenas cotidianas, próximas à gente vulgar, comuns aos indivíduos de classes “inferiores”.

Um dos traços mais marcantes da Dramática é o fato de seu autor não “aparecer” na obra, confundindo-se muitas vezes com os personagens ou com o próprio texto. Isto, porém, incorre em algumas exigências a fi m de que o seu desenvolvimento ocorra de forma adequada, como, por exemplo, o recorte dado ao tema. Uma vez que não existe a intermediação do narrador que inicie um “desenrolar” de um enredo, faz-se necessário que a peça se inicie já dentro de um contexto, histórico. No Drama a ação se desenrola no presente, no “agora”, não havendo um narrador que a situe no tempo, nem que a faça tornar ao passado, muito menos ao futuro. O tempo da ação é sempre o presente, e o futuro desconhecido. A evocação do passado só pode ser realizada através dos diálogos travados pelos personagens, já que o tempo no Drama é linear e sucessivo, como na realidade.

A ação dramática acontece agora e não aconteceu no passado, mesmo quando se trata de um drama histórico. Lessing, na sua Dramaturgia de Hamburgo (11o capítulo), diz com acerto que o dramaturgo não é um historiador; ele não relata o que se acredita haver acontecido, mas faz com que aconteça novamente perante os nossos olhos. Mesmo o novamente é demais. Pois a ação dramática, na sua expressão mais pura, se apresenta sempre “pela primeira vez”. Não é a representação secundária de algo primário. Origina-se, cada vez, em cada representação, “pela primeira vez”; não acontece “novamente” o que já aconteceu, mas, o que acontece, acontece agora, tem a sua origem agora; a ação é “original”, cada réplica nasce agora, não é citação ou variação de algo dito há muito tempo.26

Na ação dramática a catarse é gerada pela verossimilhança, cuja ocorrência se dá pelo funcionamento da peça, que, como um organismo, todas as partes interagem dinamicamente e são determinadas pelo todo. As funções de coro, prólogo e epílogo no contexto do drama se manifestam como uma intervenção do autor, no sentido que deslocam cenas e sugerem um mediador, insinuando uma função lírico-narrativa. Na ausência de um narrador, a ação se realiza pelo diálogo; Rosenfeld aponta para o fato que o diálogo constitui a Dramática como literatura e como teatro declamado (apartes e monólogos não afetam a situação essencialmente dialógica)27 . Os diálogos representam a tensão suscitada pelo entrechoque de vontades que caracterizam o confl ito, afi rmando o seu caráter dialético como propulsor da afi rmação e réplica através dos choques de intenção. Caracterizando a função lingüística dos gêneros literários, Rosenfeld racionaliza que se o pronome da Lírica é o “eu”, e o do Épico, “ele”, o do Drama seria o “tu” ou “vós”. Portanto, a sua linguagem, preponderante, seria “apelativa”, diferentemente da expressiva e comunicativa da Lírica e da épica, respectivamente.

Por não possuir um mediador que componha, descrevendo, seus personagens em seus aspectos físicos nem psicológicos, nem tampouco o ambiente que a peça se situa, o texto dramático necessita de um palco, ou local que o complete cenicamente. As representações visuais, as rubricas, a coreografi a, a música e a pantomima assumem as funções do narrador, situando a platéia acerca do contexto da peça e seus personagens. O paradoxo da literatura dramática é que ela não se contenta em ser literatura, já que, sendo “incompleta”, exige a complementação cênica.

O teatro como representação, portanto, depende fortemente de um público presente, mesmo quando o ato de representar aparentemente não se dirija a ninguém presente. Na realidade, na maioria das vezes, a platéia inexiste para os personagens. Os atores sabem da existência do público, porém, desempenham os seus papéis como se ignorassem a platéia, porque estão metamorfoseados em seus personagens. É importante ressaltar que as observações aqui realizadas dizem respeito ao Drama “puro”, ou peças “fechadas”; quanto mais distante a obra dramática se situar da Dramática “pura”, mais se aproximarão do que chamamos de épica, ou lírica-épicas, ou “abertas”.

26 - ROSENFELD, Anatol. O Teatro Épico. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1985.p.31.27 - Op. Cit. p.34.

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Introdução aos

Estudos Literários

Bakhtin em seu Epos e Romance

Depois de termos visto a questão dos gêneros literários e a especifi cidade de cada um deles, veremos agora um pouco do seu hibridismo, ou seja, como cada gênero não funciona de forma totalizante e encerrada em si mesma. Pensar o épico como uma narrativa permeada de fatos heróicos não nos impede de encontrar em sua estrutura alguns lances que, possivelmente, podem soar

trágicos ou que contenham um lirismo intenso. O que é preciso perceber é o que predomina em cada gênero, percebendo sua escrita, sua estrutura, a forma como se é contada a história, para, daí, tirar as inferências sobre se tal história seria épica, trágica ou um poema lírico.

No texto a seguir, a autora trabalha com alguns pensamentos de M. Bakhtin, refl etindo sobre o nascimento do romance a partir da épica e suas transformações. Para Bakhtin, o romance é um gênero que se constitui em forma de expressão inacabada, apresentando um ciclo contínuo do homem. Em seus estudos, o autor aborda o romance como “gênero que está por se constituir, levando-se em conta o processo de evolução de toda a literatura nos tempos modernos...” (1988, p. 403). Assim, desenvolve uma análise comparativa entre o romance e a epopéia e, a partir daí, vê esta última como forma de expressão da memória e o romance como forma de conhecimento, já que nele o herói passa por um processo de conhecimento de si mesmo no momento atual, no contato com as pessoas da época e suas opiniões, revelando-se como uma quebra da representação do mundo do modo fechado e defi nido do épico.

Vamos a algumas refl exões propostas pelo texto que segue abaixo:

A TEORIA DO ROMANCE E A ANÁLISE ESTÉTICO-CULTURAL DE M. BAKHTIN

Irene A. Machado (professora da PUC-SP e autora de Analogia do dissimilar (Editora Perspectiva)

(...) Considerando que o processo de interação dialógica, desenvolvido nas diversas esferas

da atividade humana, gera infi nitas modalidades comunicativas, são igualmente infi nitas as espécies de gêneros discursivos que Bakhtin reuniu. Dentre esta variedade de gêneros discursivos, destacam-se os gêneros do discurso literário, mais especifi camente a prosa romanesca. É nesta modalidade de discurso que Bakhtin vai encontrar elementos concretos para a explicitação da forma signifi cante, a que aludira no ensaio anterior, pois acreditava que nos gêneros do discurso literário se acumulam, durante séculos, formas de compreensão de determinados aspectos do mundo, cujos sentidos explicitam o caráter de uma época e seu desdobramento futuro. E, segundo Bakhtin, o único gênero que soube representar toda a dinâmica desse grande tempo foi o romance. Suas refl exões sobre o romance estão de tal modo tomadas pela preocupação de desvelar, na forma enunciativa, o dimensionamento ideológico, que se tornaram um verdadeiro manifesto sobre a cultura de nossa era. Bakhtin empreende uma leitura entusiástica e apaixonada do romance, pois entende ser ele não só a síntese das representações culturais formadas ao longo do tempo, como também um embrião de procedimentos para composições futuras. O romance é um gênero que, ao debruçar-se sobre o presente, descobre um tempo que não é o seu. Este diálogo transtemporal estimula o fascínio de Bakhtin e o leva a elaborar uma das mais notáveis teorias do romance, cujos pontos principais se concentram neste ensaio.

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A idéia central desta teoria é a noção de romance como um gênero em devir. Além de desestabilizar a clássica teoria dos gêneros poéticos, assentada sobre formações precisas e estruturas canônicas, esta concepção de Bakhtin polemiza com algumas tendências atuais que entendem o romance como um gênero que viveu a plenitude de suas formas no século XIX, encontrando-se defi nitivamente morto neste século. Bakhtin não compactua com esta tendência e considera o inacabamento da estrutura composicional do romance o traço maior de sua poeticidade. Daí a inoperância da estilística tradicional na apreensão deste tipo de formação poética. O estilo do romance é antes uma combinação de estilos agenciados, sobretudo, pela diversidade social de linguagens que organizam artisticamente sua composição, difi cultando, assim, a consolidação de uma estrutura canônica, premissa elementar dos gêneros poéticos. Aliás, a verdadeira premissa da prosa romanesca é, para Bakhtin, a estratifi cação interna da linguagem, que torna o romance um fenômeno pluriestilístico, plurilíngüe e plurivocal. É por estas vias que Bakhtin envereda no sentido de apreender os níveis de poeticidade da palavra no romance.

Bakhtin reconhece que o romance trouxe um dilema para a estilística e fi losofi a do discurso, colocadas, assim, diante de um impasse: ou reconheciam o romance e a prosa literária que gravita em torno dele como gêneros não-literários, ou seriam obrigadas a rever de maneira radical a concepção de discurso poético. Bakhtin parte exatamente de uma revisão da noção de gênero, pois entende que a poeticidade do discurso literário, depois do surgimento do romance, não podia ser pensada fora do contexto da dialogia interna da linguagem. A dialogia supera o símbolo poético do tropo e torna-se, conseqüentemente, o traço distintivo deste discurso a que Bakhtin chama prosa poética. Um discurso moldado pelo arranjo de vozes através das quais ressoa a voz do poeta prosador. O discurso poético assim concebido não é mais emanação de um ‘Eu lírico’ individual e soberano, que oculta a vida plena de dialogia em que o poeta vive.

É importante ressaltar que ao eleger o romance como um discurso poético privilegiado, Bakhtin não depõe contra a poesia (poema), nem a nega enquanto discurso, como pode parecer à primeira vista. O problema é que Bakhtin opera com um aspecto não-previsto pela clássica teoria dos gêneros poéticos. Tornar a dialogia da prosa como um traço distintivo do discurso poético signifi ca reverter totalmente as regras do gênero. Para Bakhtin, o poema que exclui a interação entre discursos e em que o poeta não acede ao pensamento de outrem não é poesia. Poesia é manifestação de uma consciência poética que vê, imagina e compreende o mundo, não com os olhos de sua linguagem individual, mas com os olhos de outrem. Por isso, a linguagem dos gêneros poéticos canonizados é, para Bakhtin, autoritária, dogmática, conservadora.

Tudo isso levou Bakhtin a considerar a poesia como um discurso monológico, a temer a linguagem única da poesia e a condenar com veemência o conceito de linguagem poética defendido pelos poetas simbolistas (Balmont, Ivanov), pelos futuristas (V. Khliébnikov) e se tornado a chave do formalismo russo. Devemos esclarecer, contudo, que pelo menos no que se refere a Khliébnikov, o temor de Bakhtin não procede, visto que a poesia zaúm assumiu a poeticidade articulada na (in)tensa vivência da palavra no contexto dinâmico da língua e num universo pluralista de linguagens. Embora este exercício de linguagem tenha escapado a Bakhtin, ele não deixou de perceber a riqueza dialógica do discurso poético de Horácio, Villon, Heine, Laforgue, Ânienski e de Púchkin, de quem analisa alguns fragmentos do notável Evguiênin Oniêguin. Estas poucas páginas, que ocupam dois capítulos do ensaio sobre o discurso no romance (pp. 85-133), merecem uma leitura particular daqueles que desejam entender o conceito de poesia que Bakhtin tinha em mente ao se propor estudar a poética da prosa romanesca (...)

A romancização, o metacriticismo e o drama da evolução literáriaQuando Bakhtin atribui ao romance a característica de gênero em devir, seu objetivo

principal é apresentar uma estrutura poética cujas possibilidades plásticas ainda não foram

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Introdução aos

Estudos Literários

totalmente exploradas. Quer dizer, o romance é um gênero novo, constituído a partir das línguas vivas e das novas formas de recepção advindas da escrita e do livro. Este dado novo provoca o interesse de Bakhtin pelas relações entre a épica e o romance, com objetivo de delimitar com maior rigor a “metodologia do estudo do romance”, preocupação central do ensaio “Epos e romance”, escrito em 1941 (pp. 397-428).

Operando contra o pano de fundo da épica, Bakhtin observa que o romance não é um gênero entre outros, mas o único que está evoluindo em meio a outros gêneros já consolidados (p. 398). Sua convivência com estes gêneros é, contudo, confl ituosa, não há harmonia; pelo contrário, o romance serve-se da paródia para denunciar os graus de convencionalidade das composições estáveis, reinterpretá-las e até mesmo eliminá-las. O romance, enfi m, põe em crise o próprio conceito de gênero como formação estável e se apresenta como antigênero, um metagênero, em desacordo com normas e cânones; reconhece a arbitrariedade e convencionalidade de todas as formas, inclusive de si próprio.

Este olhar corrosivo e ao mesmo tempo criativo, que o romance dirige aos outros gêneros, prefi gura a performance do romance na História literária. O romance, quando surge, romanciza os outros gêneros. Romancizar não signifi ca, contudo, subjugar para mais facilmente impor um cânone estranho aos dominados, pois o próprio romance está privado deste cânone. Trata-se de liberá-los (os gêneros subjugados) de tudo o que é convencional, necrosado, empolado e amorfo, impedindo sua evolução (p. 427). O fenômeno da romancização, apontado por Bakhtin, não é apenas uma implicação direta do caráter paródico que reina na estrutura interna do romance; é sintoma das alterações e, conseqüentemente, da reordenação dos fenômenos literários dentro de um novo quadro num determinado momento do processo evolutivo. Ou seja, quando o romance se estabelece como gênero predominante, toda a literatura é afetada por uma espécie de criticismo de gêneros. Esta revisão de posições ante um novo quadro é que permite a reformulação dos constituintes dos gêneros poéticos.

(...) “O romance tornou-se o principal personagem do drama da evolução literária na era moderna precisamente porque, melhor do que todos, é ele que expressa as tendências evolutivas do novo mundo; ele é, por isso, o único gênero nascido naquele mundo e em tudo semelhante a ele” (p. 400). Na verdade, todas estas propriedades do romance estudadas por Bakhtin ainda não tiveram, a meu ver, a devida acolhida nos estudos literários, que não contam com um instrumental teórico para tratar de formações inacabadas e em evolução.

(...)Colocando o romance na perspectiva da épica, Bakhtin procura valorizar aqueles aspectos que fi cam fora de qualquer comparação. Por exemplo, enquanto a épica -¬ a mais sublime expressão dos gêneros elevados - só se dignifi cou ao representar o passado épico único, distante e glorioso, o romance se alimenta do presente vulgar, instável, transitório. É isso que o situa na perspectiva direta dos gêneros inferiores, as sátiras populares, que fi zeram da instabilidade do presente e do sujeito que nele vive o objeto de sua representação. O gênero sério-cômico torna-se, para Bakhtin, a primeira etapa da evolução do romance enquanto gênero em devir, em prejuízo, inclusive, da épica. É nas representações burlescas que a atualidade entra pela primeira vez como objeto de representação literária. “Quando o presente se torna o centro da orientação humana no tempo e no mundo”, estes “perdem seu caráter acabado”. “O tempo e o mundo tornam-se históricos” (p. 419). O tema do herói que tudo vence perde, assim, terreno no romance, cujos temas gravitam em torno da inadequação do homem ao seu destino; o personagem, ao invés de glorioso e invencível, é um ideólogo em potencial, como já foi referido anteriormente. E o que é mais importante: a épica não suscita nenhum questionamento, ao passo que o romance, travestido de Sherazade, “especula sobre categorias da ignorância”, mantendo aceso o interesse pelo que vem depois. As respostas adiadas são perguntas em formação nem sempre resolvidas no fi nal.

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BIBLIOGRAFIA

BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (tradução de Yara Frateschi Vieira). São Paulo, Hucitec; Brasília, Ed. da Universidade de Brasília, 1987.

_________. “Arte y responsabilidad”. In Estética de la creación verbal (tradução de Tatiana Bubnova). México: Siglo Veintiuno, 1982.

_________. Problemas da poética de Dostoiévski (tradução de Paulo Bezerra). Rio de Janeiro: Forense- Universitária, 1981.

_________. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance (tradução de Aurora F. Bernardini e outros). São Paulo: Hucitec e Fund. para o Desenv. da Unesp, 1988.

Este texto foi retirado do site de pesquisa:http://www.usp.br/revistausp/n5/fmachadotexto.html

Neste texto, tivemos um breve contato sobre a forma bakhtiniana de pensar os gêneros literários. A proposta de Bakhtin pode ser uma tendência dentro da perspectiva contemporânea, quando se pretende pensar em teorias que não se aplicam de forma vasoconstritora e que propõem um diálogo com desdobramentos outros de formas de narrar que se mantém extremamente fl uidas. Para tanto, é necessário o conhecimento acerca das teorias que ele coloca em diálogo, assim como o entendimento de que, o que ele propõe, antes de tentar romper com alguma refl exão feita anteriormente, seria mais uma tentativa de compreender as teorias que vêm junto com seu tempo. Ele sugere, assim, uma leitura do passado a partir do presente. Reconhece os formatos antigos e propõe um outro olhar sobre as mudanças que esse ‘antigo’ sofrera.

AtividadesComplementares

Após termos estudado a teoria dos gêneros literários neste bloco, escolha um gênero e tente refl etir sobre seu desdobramento na atualidade. Para efetivar essa refl exão, cite exemplos que demonstrem, com as respectivas marcas textuais, a situação que você pretende insinuar acerca deste gênero, como um processo de desdobramento e/ou transfi guração. Você pode, ao escolher a lírica, traçar um breve comentário sobre como a lírica se confi gurava e como poderia ser visto, hoje, um poema concretista como uma continuidade da lírica clássica na contemporaneidade.

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Introdução aos

Estudos Literários

EM TEMPO: OUTRAS QUESTÕES

LITERÁRIAS

QUEM NARRA AQUI

De acordo com Walter Benjamin28 , as fi guras arcaicas de narradores estão representados por dois grupos: o marinheiro comerciante e o camponês sedentário, que transmitiam suas diferentes experiências: de viagens e mundos desconhecidos pelo marinheiro comerciante, e a vivência da terra pelo narrador sedentário, o camponês. Com o surgimento das ofi cinas na Idade Média, os dois grupos se fundiram trocando histórias e experiências narradas ao longo da jornada de trabalho passada nas ofi cinas.

O mestre sedentário e os aprendizes migrantes trabalhavam juntos na mesma ofi cina; cada mestre tinha sido um aprendiz ambulante antes de se fi xar em sua pátria ou no estrangeiro. Se os camponeses e os marujos foram os primeiros mestres da arte de narrar, foram os artífi ces que a aperfeiçoaram. No sistema corporativo associava-se o saber das terras distantes, trazidos para casa pelos migrantes, com o saber do passado, recolhido pelo trabalhador sedentário.29

Walter Benjamin, no texto O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov enfatiza a importância da troca de experiências nas narrativas de tradição oral, nas quais a palavra do narrador aglutinava e transmitia valores sociais e morais ao(s) ouvinte(s). Ao narrar a experiência sua ou alheia a fi gura do narrador se confundia com o próprio discurso. A riqueza em sabedoria manifestada nessas narrativas foi se apagando ao longo do tempo, à medida que o indivíduo se distanciou de valores coletivos, e passou a buscar respostas particulares, isoladas. Destituído dos antigos pactos sociais, o narrador clássico desapareceu, dando lugar ao romancista questionador, perplexo, desorientado.

Vamos ler alguns trechos do texto O narrador, de Walter Benjamin para termos uma maior compreensão sobre os fatos que ele nos apresenta.

28 - BENJAMIN, Walter. O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Arte e Política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1987. 29 - Op. Cit. p. 199.

28 BENJAMIN Walter O Narrador Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov In: Arte e Política Ensaios sobre literatura e

O NARRADORConsiderações sobre a obra de Nikolai Leskov(Walter Benjamin)

1

Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo de distante, e que se distancia ainda mais.

Walter Benjamin: O narrador

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Descrever um Leskov*30 como narrador não signifi ca trazê-Io mais perto de nós, e sim, pelo contrário, aumentar a distância que nos separa dele. Vistos de uma certa distância, os traços grandes e simples que caracterizam o narrador se destacam nele. Ou melhor, esses traços aparecem, como um rosto humano ou um corpo de animal aparecem num rochedo, para um observador localizado numa distância apropriada e num ângulo favorável. Uma experiência quase cotidiana nos impõe a exigência dessa distância e desse ângulo de observação. É a experiência de que a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências.

Uma das causas desse fenômeno é óbvia: as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo. Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nível está mais baixo que nunca, e que da noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior, mas também a do mundo ético sofreram transformações que antes não julgaríamos possíveis. Com a guerra mundial tornou-se manifesto um processo que continua até hoje. No fi nal da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável. E o que se difundiu dez anos depois, na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em comum com uma experiência transmitida de boca em boca. Não havia nada de anormal nisso. Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela infl ação, a experiência do corpo pela guerra de material e a experiência ética pelos governantes. Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem em que nada permanecera inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de forças de torrentes e explosões, o frágil e minúsculo corpo humano.

2A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os

narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos. Entre estes, existem dois grupos, que se interpenetram de múltiplas maneiras. A fi gura do narrador só se torna plenamente tangível se temos presentes esses dois grupos. “Quem viaja tem muito que contar”, diz o povo, e com isso imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece suas histórias e tradições. Se quisermos concretizar esses dois grupos através dos seus representantes arcaicos, podemos dizer que um é exemplifi cado pelo camponês sedentário e outro pelo marinheiro comerciante. Na realidade, esses dois estilos de vida produziram de certo modo suas respectivas famílias de narradores. Cada uma delas conservou, no decorrer dos séculos, suas características próprias. Assim, entre os autores alemães modernos Hebel e Gotthelf pertencem à primeira família, e Sielsfi eld e Gerstäcker à segunda. No entanto essas duas famílias, como já se disse constituem apenas tipos fundamentais.

30 - (*) Nikolai Leskov nasceu em 1831 na província de Orjol e morreu em 1895 em S. Petersburgo. Por seus interesses e simpatias pelos camponeses, tem certas afi nidades com Tolstoi e por sua orientação religiosa com Dostoievski. Mas os textos menos duradouros de sua obra são exatamente aqueles em que tais tendências assumem uma expressão dogmática e doutrinária - os primeiros romances. A signifi cação de Leskov está em suas narrativas, que pertencem a uma fase posterior. Desde o fi m da guerra houve várias tentativas de difundir essas narrativas nos países de língua alemã. Além das pequenas coletâneas publicadas pelas editoras Musarion e Georg Müller, devemos mencionar, com especial destaque, a seleção em nove volumes da editora C. H. Beck.

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Introdução aos

Estudos Literários

A extensão real do reino narrativo, em todo o seu alcance histórico, só pode ser compreendido se levarmos em conta a interpenetração desses dois tipos arcaicos. O sistema corporativo medieval contribuiu especialmente para essa interpenetração. O mestre sedentário e os aprendizes migrantes trabalhavam juntos na mesma ofi cina; cada mestre tinha sido um aprendiz ambulante antes de se fi xar em sua

pátria ou no estrangeiro. Se os camponeses e os marujos foram os primeiros mestres da arte de narrar, foram os artífi ces que a aperfeiçoaram. No sistema corporativo associava-se o saber das terras distantes, trazidos para casa pelos migrantes, com o saber do passado, recolhido pelo trabalhador sedentário.

3Leskov está à vontade tanto na distância espacial como na distância temporal.

Pertencia à Igreja Ortodoxa grega e tinha um genuíno interesse religioso. Mas sua hostilidade pela burocracia eclesiástica não era menos genuína. Como suas relações com o funcionalismo leigo não eram melhores, os cargos ofi ciais que exerceu não foram de longa duração. O emprego de agente russo de uma fi rma inglesa, que ocupou durante muito tempo, foi provavelmente, de todos os empregos possíveis, o mais útil para sua produção literária. A serviço dessa fi rma, viajou pela Rússia, e essas viagens enriqueceram tanto a sua experiência do mundo como seus conhecimentos sobre as condições russas. Desse modo teve ocasião de conhecer o funcionamento das seitas rurais, o que deixou traços em suas narrativas. Nos contos lendários russos, Leskov encontrou aliados em seu combate contra a burocracia ortodoxa. Escreveu uma série de contos desse gênero, cujo personagem central é o justo, raramente um asceta, em geral um homem simples e ativo,’ que se transforma em santo com a maior naturalidade. A exaltação mística é alheia a Leskov. Embora ocasionalmente se interessasse pelo maravilhoso, em questões de piedade preferia uma atitude solidamente natural. Seu ideal é o homem que aceita o mundo sem se prender demasiadamente a ele. Seu comportamento em questões temporais correspondia a essa atitude. É coerente com tal comportamento que ele tenha começado tarde a escrever, ou seja, o com 29 anos, depois de suas viagens comerciais. Seu primeiro texto impresso se intitulava: “Por que são os livros caros em Kiev?”. Seus contos foram precedidos por uma série de escritos sobre a classe operária, sobre o alcoolismo, sobre os médicos da polícia e sobre os vendedores desempregados. (...)

5O primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da narrativa é o

surgimento do romance no início do período moderno. O que separa o romance da narrativa (e da epopéia no sentido estrito) é que ele está essencialmente vinculado ao livro. A difusão do romance só se torna possível com a invenção da imprensa. A tradição oral, patrimônio da poesia épica, tem uma natureza fundamentalmente distinta da que caracteriza o romance. O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa - contos de fada, lendas e mesmo novelas - é que ele nem procede da tradição oral nem a alimenta. Ele se distingue, especialmente, da narrativa. O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los. Escrever um romance signifi ca, na descrição de uma vida humana, levar o

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incomensurável a seus últimos limites. Na riqueza dessa vida e na descrição dessa riqueza, o romance anuncia a profunda perplexidade de quem a vive. O primeiro grande livro do gênero, Dom Quixote, mostra como a grandeza de alma, a coragem e a generosidade de um dos mais nobres heróis da literatura são totalmente refratárias ao conselho e não contêm a menor centelha de sabedoria.

6Devemos imaginar a transformação das formas épicas segundo ritmos comparáveis

aos que presidiram à transformação da crosta terrestre no decorrer dos milênios. Poucas formas de comunicação humana evoluíram mais lentamente e se extinguiram mais lentamente. O romance, cujos primórdios remontam à Antiguidade, precisou de centenas de anos para encontrar, na burguesia ascendente, os elementos favoráveis a seu fl orescimento. Quando esses elementos surgiram, a narrativa começou pouco a pouco a tornar-se arcaica; sem dúvida, ela se apropriou, de múltiplas formas, do novo conteúdo, mas não foi determinada verdadeiramente por ele. Por outro lado, verifi camos que com a consolidação da burguesia - da qual a imprensa, no alto capitalismo é um dos instrumentos mais importantes - destacou-se uma forma de comunicação que, por mais antigas que fossem suas origens, nunca havia infl uenciado decisivamente a forma épica. Agora ela exerce essa infl uência. Ela é tão estranha à narrativa como o romance; mas é mais ameaçadora e, de resto, provoca uma crise no próprio romance. Essa nova forma de comunicação é a informação. (...)

Cada manhã recebemos notícias de todo mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Metade da arte narrativa está em evitar explicações. (...) O extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação. (...)

Trouxemos para você a seleção das partes que julgamos ser as mais interessantes para darmos continuidade à nossa conversa sobre o narrador. Repare como Benjamin fala, no início do texto, de dois tipos de narradores: o marinheiro viajante e o camponês sedentário. Todos abraçam o estereótipo do narrador que o autor quer traçar como sendo aquele que repassa a história, os ensinamentos, a experiência. Um narra sua experiência de viagem e o outro narra sua experiência de observação. Os dois, em mar ou em terra, fazem o papel do sábio, daquele que pode falar e dar conselhos porque viveu, porque pode recorrer ao acervo de toda uma vida: a sua própria e a do outro que ele também conhece muito bem. O narrador, trazido à cena por Walter Benjamin, prima por uma leveza baseada muito mais na concepção prática da vida do que na abstração de uma moral pura e simples. Ele tem suas “raízes no povo, principalmente nas camadas artesanais”. E a narrativa construída a partir dessa raiz, tira de dentro de si o substrato com o qual unifi cará um discurso cuja fabricação conta com o tempo da memória.

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A narração na pós-modernidade

Depois de termos lido o texto de Walter Benjamin sobre o narrador, voltemos um pouco os olhos para a contemporaneidade para pensarmos como esse narrador se desdobraria no agora. O texto a seguir, escrito por Silviano Santiago, ilustra um pouco a forma como esse narrador contemporâneo se confi gura.

O narrador pós-moderno(Silviano Santiago)

Os contos de Edilberto Coutinho servem tanto para colocar de maneira exemplar como para discutir exaustivamente uma das questões básicas sobre o narrador na pós-modernidade. Quem narra uma história é quem a experimenta, ou quem a vê? Ou seja: é aquele que narra ações a partir da experiência que tem delas, ou é aquele que narra ações a partir de um conhecimento que passou a ter delas por tê-Ias observado em outro?

No primeiro caso, o narrador transmite uma vivência; no segundo caso, ele passa uma informação sobre outra pessoa. Pode-se narrar uma ação de dentro dela, ou de fora dela. É insufi ciente dizer que se trata de uma opção. Em termos concre¬tos: narro a experiência de jogador de futebol porque sou jogador de futebol; narro as experiências de um jogador de futebol porque acostumei-me a observá-Io. No primeiro caso, a narrativa expressa a experiência de uma ação; no outro, é a experiência proporcionada por um olhar lançado. Num caso, a ação é a experiência que se tem dela, e é isso que empresta autenticidade à matéria que é narrada e ao relato; no outro caso, é discutível falar de autenticidade da experiência e do relato porque o que se transmite é uma informação obtida a partir da observação de um terceiro. O que está em questão é a noção de autenticidade. Só é autêntico o que eu narro a partir do que experimento, ou pode ser autêntico o que eu narro e conheço por ter observado? Será sempre o saber humano decorrência da experiência concreta de uma ação, ou o saber poderá existir de uma forma exterior a essa experiência concreta de uma ação? Um outro exemplo palpável: digo que é autêntica a narrativa de um incêndio feita por uma das vítimas, pergunto se não é autêntica a narrativa do mesmo incêndio feita por alguém que esteve ali a observá-Io.

Tento uma primeira hipótese de trabalho: o narrador pós-moderno é aquele que quer extrair a si da ação narrada, em atitude semelhante à de um repórter ou de um espectador. Ele narra a ação enquanto espetáculo a que assiste (literalmente ou não) da platéia, da arquibancada ou de uma poltrona na sala de estar ou na biblioteca; ele não narra enquanto atuante.

Trabalhando com o narrador que olha para se informar (e não com o que narra mergulhado na própria experiência), a fi cção de Edilberto Coutinho dá um passo a mais no processo de rechaço e distanciamento do narrador clássico, segundo a caracterização modelar que dele fez Walter Benjamin, ao tecer considerações sobre a obra de Nicolai Leskov. É o movimento de rechaço e de distanciamento que torna o narrador pós-moderno.

Para Benjamin os seres humanos estão se privando hoje da “faculdade de intercambiar experiência”, isso porque “as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo”. À medida que a sociedade se moderniza, torna-se mais e mais difícil o diálogo enquanto troca de opiniões sobre ações que foram vivenciadas. As pessoas já não conseguem hoje narrar o que experimentaram na própria pele.

Dessa forma, Benjamin pode caracterizar três estágios evolutivos por que passa

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a história do narrador. Primeiro estágio: o narrador clássico, cuja função é dar ao seu ouvinte a oportunidade de um intercâmbio de experiência (único valorizado no ensaio); segundo: o narrador do romance, cuja função passou a ser a de não mais poder falar de maneira exemplar ao seu leitor; terceiro: o narrador que é jornalista, ou seja, aquele que só transmite pelo narrar a informação, visto que escreve não para narrar a ação da própria experiência, mas o que aconteceu com x ou y em tal lugar e a tal hora. Benjamin desvaloriza (o pós-moderno valoriza) o último narrador. Para Benjamin, a narrativa não deve estar “interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada como uma informação ou um relatório”. A narrativa é narrativa “porque ela mergulha a coisa na vida do narrador para depois retirá-la dele”. No meio, fi ca o narrador do romance, que se quer impessoal e objetivo diante da coisa narrada, mas que, no fundo, se confessa como Flaubert o fez de maneira paradigmática: “Madame Bovary, c’est moi”.

Retomemos: a coisa narrada é mergulhada na vida do narrador e dali retirada; a coisa narrada é vista com objetividade pelo narrador, embora este confesse tê-Ia extraído da sua vivência; a coisa narrada existe como puro em si, ela é informação, exterior à vida do narrador.

No raciocínio de Benjamin, o principal eixo em torno do qual gira o “embelezamento” (e não a decadência) da narrativa clássica hoje é a perda gradual e constante da sua “dimensão utilitária”. O narrador clássico tem “senso prático”, pretende ensinar algo. Quando o camponês sedentário ou o marinheiro comerciante narram, respectivamente, tradições da comunidade ou viagens ao estrangeiro, eles estão sendo úteis ao ouvinte. Diz Benjamin: “Essa utilidade [da narrativa] pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida - de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos.” E arremata: “O conselho tecido na substância viva da experiência tem um nome: sabedoria.” A informação não transmite essa sabedoria porque a ação narrada por ela não foi tecida na substância viva da existência do narrador.

Tento uma segunda hipótese de trabalho: o narrador pós-moderno é o que transmite uma “sabedoria” que é decorrência da observação de uma vivência alheia a ele, visto que a ação que narra não foi tecida na substância viva da sua existência. Nesse sentido, ele é o puro fi ccionista, pois tem de dar “autenticidade” a uma ação que, por não ter o respaldo da vivência, estaria desprovida de autenticidade. Esta advém da verossimilhança, que é produto da lógica interna do relato. O narrador pós-moderno sabe que o “real” e o “autêntico” são construções de linguagem.

A perda do caráter utilitário e a subtração do bom conselho e da sabedoria, características do estágio presente da narrativa, não são vistas por Benjamin como sinais de um processo de decadência por que passa a arte de narrar hoje, como sugerimos atrás, o que o retira de imediato da categoria dos historiadores anacrônicos ou catastrófi cos. Na escrita de Benjamin, a perda e as subtrações acima referidas são apontadas para que se saliente, por contraste, a “beleza” da narrativa clássica – a sua perenidade. O jogo básico no raciocínio de Benjamin é a valorização do pleno a partir da constatação do que nele se esvai. E o incompleto - antes de ser inferior - é apenas menos belo e mais problemático. As transformações por que passa o narrador são concomitantes com “toda uma evolução secular das forças produtivas”. Não se trata, pois, de olhar para trás para repetir o ontem hoje (seríamos talvez historiadores mais felizes, porque nos restringiríamos ao reino do belo). Trata-se antes de julgar belo o que foi e ainda o é – no caso, o narrador clássico –, e de dar conta do que apareceu como problemático ontem – o narrador do romance –, e que aparece ainda mais problemático hoje – o narrador pós-moderno. Aviso aos benjaminianos: estamos

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utilizando o conceito de narrador num sentido mais amplo do que o proposto pelo fi lósofo alemão. Reserva a ele o conceito apenas para o que estamos chamando de narrador clássico.

(...) De maneira ainda simplifi cada, pode-se dizer que o narrador olha o outro para levá-Io a falar (entrevista), já que ali não está para falar das ações de sua experiência. Mas nenhuma escrita é inocente.

Como correlato à afi rmação anterior, acrescente¬mos que, ao dar fala ao outro, acaba também por dar fala a si, só que de maneira indireta. A fala própria do narrador que se quer repórter é a fala por interposta pessoa. A oscilação entre repórter e romancista, vivenciada sofridamente pelo personagem (Hemingway), é a mesma experimentada, só que em silêncio, pelo narrador (brasileiro). Por que este não narra as coisas como sendo suas, ou seja, a partir da sua própria experiência?

Antes de responder a essa pergunta, entremos num outro conto espanhol de Edilberto Coutinho, “Azeitona e vinho”. Em rápidas linhas, eis o que acontece: um velho e experiente homem do povoado (que é o narrador do conto), sentado numa bodega, toma vinho e olha um jovem toureiro, Pablo (conhecido como EI Mudo), cercado de amigos, admiradores e turistas ricos. Olhando e observando como um repórter diante do objeto da sua matéria, o velho se embriaga mais e mais tecendo conjeturas sobre a vida do outro, ou seja, o que acontece, aconteceu e deveria acontecer com o jovem e inexperiente toureiro, depositando nele as esperanças de todo o povoado.

Os personagens e temas são semelhantes aos do conto anterior, e o que importa para nós: a própria atitude do narrador é semelhante, embora ele, no segundo conto, já não tenha mais como profi ssão o jornalismo, é alguém do povoado. O narrador tinha tudo para ser o narrador clássico: como velho e experiente, podia debruçar-se sobre as ações da sua vivência e, em reminiscência, misturar a sua história com outras que convivem com ela na tradição da comunidade. No entanto, nada disso faz. Olha o mais novo e se embriaga com vinho e a vida do outro. Permanece, pois, como válida e como vértebra da fi cção de EC uma forma precisa de narrar, ainda que desta vez a forma jornalística não seja coincidente com a profi ssão do narrador (onde a autenticidade como respaldo para a verossimilhança?). Trata-se de um estilo, como se diz, ou de uma visão do mundo, como preferimos, uma característica do conto de EC que transcende até mesmo as regras mínimas de caracterização do narrador.

A continuidade no processo de narrar estabelecida entre contos diferentes afi rma que o essencial da fi cção de EC não é a discussão sobre o narrador enquanto repórter (embora o possa ser neste ou naquele conto), mas o essencial é algo de mais difícil apreensão, ou seja, a própria arte do narrar hoje. Por outro lado, paralela a esta constatação, surge a pergunta já anunciada anteriormente e estrategicamente abandonada: por que o narrador não narra sua experiência de vida? A história de “Azeitona e vinho” narra ações enquanto vivenciadas pelo jovem toureiro; ela é basicamente a experiência do olhar lançado ao outro.

Atando a constatação à pergunta, vemos que o que está em jogo nos contos de EC não é tanto a trama global de cada conto (sempre é de fácil compreensão), nem a caracterização e desenvolvimento dos personagens (sempre beiram o protótipo), mas algo de mais profundo que é o denso mistério que cerca a fi gura do narrador pós-moderno. O narrador se subtrai da ação narrada (há graus de intensidade na subtração, como veremos ao ler “A lugar algum”) e, ao fazê-Io, cria um espaço para a fi cção dramatizar a

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experiência de alguém que é observado e muitas vezes desprovido de palavra. Subtraindo-se à ação narrada pelo conto, o narrador identifi ca-se com um segundo observador - o leitor. Ambos se encontram privados da exposição da própria experiência na fi cção e são observadores atentos da experiência alheia. Na pobreza da experiência de ambos se revela a importância do personagem na fi cção pós-moderna; narrador e leitor se defi nem como espectadores de uma ação alheia que os empolga, emociona, seduz etc.

A maioria dos contos de Edilberto se recobrem e se enriquecem pelo enigma que cerca a compreensão do olhar humano na civilização moderna. Por que se olha? Para que se olha? Razão e fi nalidade do olhar lançado ao outro não se dão à primeira vista, porque se trata de um diálogo-em-literatura (isto é, expresso por palavra) que, paradoxalmente, fi ca aquém ou além das palavras. A fi cção existe para falar da incomunicabilidade de experiências: a experiência do narrador e a do personagem. A incomunicabilidade, no entanto, se recobre pelo tecido de uma relação, relação esta que se defi ne pelo olhar. Uma ponte, feita de palavras, envolve a experiência muda do olhar e torna possível a narrativa.

No conto “Azeitona e vinho”, insiste o narrador: “Pablito não sabe que o estou observando, naquele grupo”. E ainda: “Não se lembrará de mim, mas talvez não tenha esquecido as coisas de que lhe falei.” Permanece a fi xidez imperturbável de um olhar que observa alguém, aquém ou além das palavras, no presente da bodega (de uma mesa observa-se a outra), ou no passado revivido pela lembrança (ainda o vejo, mas no passado).

Não é importante a retribuição do olhar. Trata-se de um investimento feito pelo narrador em que ele não cobra lucro, apenas participação, pois o lucro está no próprio prazer que tem de olhar. Dou uma força, diz o narrador. Senti fi rmeza, retruca o personagem. Ambos mudos. Não há mais o jogo do “bom conselho” entre experientes, mas o da admiração do mais velho. A narrativa pode expressar uma “sabedoria”, mas esta não advém do narrador: é depreendida da ação daquele que é observado e não consegue mais narrar - o jovem. A sabedoria apresenta-se, pois, de modo invertido. Há uma desvalorização da ação em si.

Eis nas suas linhas gerais a graça e o sortilégio da experiência do narrador que olha. O perigo no conto de EC não são as mordaças, mas as vendas. Como se o narrador exigisse: Dei¬xem-me olhar para que você, leitor, também possa ver.

O olhar tematizado pelo narrador de “Azeitona e vinho” é um olhar de generosidade, de simpatia, amoroso até, que recobre o jovem Pablito, sem que o jovem se dê conta da dá¬diva que lhe está sendo oferecida. Mas, atenção!, o mais experiente não tem conselho a dar, e é por isso que não pode visar lucro com o investimento do olhar. Não deve cobrar, por assim dizer. Eis a razão para a briga entre Hemingway (observador e também homem da palavra) e o toureiro Dominguín (observado e homem da ação):

Nessa época, Dominguín o chamava de Pai. Papá. Agora dizia que o velho andava zureta. Pai pirado. Poucos dias depois pude mostrar a Clara uma entrevista em que Dominguín contava: Eu era seu hóspede em Cuba. Vieram uns jornalistas à casa dele, para entrevistar-me. [...] Quando um jornalista quis saber se era verdade que eu procurava os conselhos [o grifo é nosso] do dono da casa, para melhorar a minha arte, compreendi bem como pudera ter surgido o despropositado boato, só de ver o rosto dele. Pensei em dar uma resposta diplomática, mas mudei de idéia e falei com toda a franqueza: Não creio, no ponto a que cheguei, precisar dos conselhos de ninguém em questão de tourada.

(...) A vivência do mais experiente é de pouca valia. Primeira constatação: a ação pós-moderna é jovem, inexperiente, exclusiva e privada da palavra - por isso tudo é que não pode ser dada como sendo do narrador. Este observa uma ação que é ao mesmo tempo, incomodamente auto-sufi ciente. O jovem pode acertar errando ou errar acertando. De nada vale o paternalismo responsável no direcionamento da conduta. A

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não ser que o paternalismo se prive de palavras de conselho e seja um longo deslizar silencioso e amoroso pelas alamedas do olhar.

Caso o olhar queira ser reconhecido como conselho, surge a incomunicabilidade entre o mais experiente e o menos. A palavra já não tem sentido porque já não existe mais o olhar que ela recobre. Desaparece a necessidade da narrativa. Existe, pesado, o silêncio.

Para evitá-Io, o mais experiente deve subtrair-se para fazer valer, fazer brilhar o menos experiente. Por a experiência do mais experiente ser de menor valia nos tempos pós-modernos é que ele se subtrai. Por isso tudo também é que se torna praticamente impossível hoje, numa narrativa, o cotejo de experiências adultas e maduras sob a forma mútua de conselhos. Cotejo que seria semelhante ao encontrado na narra¬tiva clássica e que conduziria a uma sabedoria prática de vida.

Em virtude da incomunicabilidade da experiência entre gerações diferentes, percebe-se como se tornou impossível dar continuidade linear ao processo de aprimoramento do homem e da sociedade. Por isso, aconselhar - ao contrário do que pensava Benjamin- não pode ser mais “fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada”. A história não é mais vislumbrada como tecendo uma continuidade entre a vivência do mais experiente e a do menos, visto que o paternalismo é excluído como processo conectivo entre gerações. As narrativas hoje são, por defi nição, quebradas. Sempre a recomeçar. Essa é a lição que se depreende de todas as grandes rebeliões menos experientes que abalaram a década de 60, a começar pelo Free speech movement, em Berkeley, e indo até os événements de mai, em Paris.

(...)O velho na bodega já tinha passado por tudo pelo que passa o jovem El Mudo,

mas o que conta é o mesmo diferente pelo que o observador passa, que o observado experimenta na sua juventude de agora. A ação na juventude de ontem do observador e a ação na juventude de hoje do observado são a mesma. Mas o modo de encará-Ias e afi rmá-Ias é diferente. De que valem as glórias épicas da narrativa de um velho diante do ardor lírico da experiência do mais jovem? - eis o problema pós-moderno.

Aqui se impõe uma distinção importante entre o narrador pós-moderno e o seu contemporâneo (em termos de Brasil), o narrador memoralista, visto que o texto de memórias tornou-se importantíssimo com o retorno dos exilados políticos. Referimo-nos, é claro, à literatura inaugurada por Fernando Gabeira com o livro O que é isso, companheiro?, onde o processo de envolvimento do mais experiente pelo menos se apresenta de forma oposta ao da narrativa pós-moderna. Na narrativa memorialista o mais experiente adota uma postura vencedora.

Na narrativa memorialista, o narrador mais experiente fala de si mesmo enquanto personagem menos experiente, extraindo da defasagem temporal e mesmo sentimental (no sentido que lhe empresta Flaubert em “educação sentimental”) a possibilidade de um bom conselho em cima dos equívocos cometidos por ele mesmo quando jovem. Essa narrativa trata de um processo de “amadurecimento” que se dá de forma retilínea. Já o narrador da fi cção pós-moderna não quer enxergar a si ontem, mas quer observar o seu ontem no hoje de um jovem. Ele delega a um outro, jovem hoje como ele foi jovem ontem, a responsabilidade da ação que ele observa. A experiência ingênua e espontânea de ontem do narrador continua a falar pela vivência semelhante, mas diferente do jovem que ele observa, e não através de um amadurecimento sábio de hoje.

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(...)A literatura pós-moderna existe para falar da pobreza da experiência,

dissemos, mas também da pobreza da palavra escrita enquanto processo de comunicação.

Trata, portanto, de um diálogo de surdos e mudos, já que o que realmente vale na relação a dois estabelecida pelo olhar é uma corrente de energia, vital (grifemos: vital), silenciosa, prazerosa e secreta.

(...)De maneira sutil, Benjamin toma paralelo o embelezamento da narrativa clássica

com outro embelezamento: o do homem no leito de morte. O mesmo movimento que descreve o desaparecimento gradual da narrativa clássica serve também para descrever a exclusão da morte do mundo dos vivos hoje. A partir do século XIX, informa-nos Benjamin, evita-se o espetáculo da morte. A exemplaridade que dá autoridade à narrativa clássica, traduzida pela sabedoria do conselho, encontra a sua imagem ideal no espetáculo da morte humana. “Ora, é no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e sobretudo sua existência vivida – e é dessa substância que são feitas as histórias – assumem pela primeira vez uma forma transmissível.” A morte projeta um halo de autoridade – “a autoridade que mesmo um pobre-diabo possui ao morrer” – que está na origem da narrativa clássica.

Morte e narrativa clássica cruzam caminho, abrindo espaço para uma concepção do devir humano em que a experiência da vida vivida é fechada em sua totalidade, e é por isso que é exemplar. À nova geração, aos ainda vivos, o exemplo global e imóvel da velha geração. Ao jovem, o modelo e a possibilidade da cópia morta. Um furioso iconoclasta oporia ao espetáculo da morte um grito lancinante da vida vivida no momento de viver. A exemplaridade do que é incompleto. O toureiro na arena sendo atingido pelo touro.

Há – não tenhamos dúvida – espetáculo e espetáculo, continua o jovem iconoclasta. Há um olhar camufl ado na escrita sobre o narrador de Benjamin que merece ser revelado e que se assemelha ao olhar que estamos descrevendo, só que os movimentos dos olhares são inversos. O olhar no raciocínio de Benjamin caminha para o leito da morte, o luto, o sofrimento, a lágrima, e assim por diante, com todas as variantes do ascetismo socrático.

O olhar pós-moderno (em nada camufl ado, apenas enigmático) olha nos olhos o sol. Volta-se para a luz, o prazer, a alegria, o riso, e assim por diante, com todas as variantes do hedonismo dionisíaco. O espetáculo da vida hoje se contrapõe ao espetáculo da morte ontem. Olha-se um corpo em vida, energia e potencial de uma experiência impossível de ser fechada na sua totalidade mortal, porque ela se abre no agora em mil possibilidades. Todos os caminhos o caminho. O corpo que olha prazeroso (já dissemos), olha prazeroso um outro corpo prazeroso (acrescentemos) em ação.

“Viver é perigoso”, já disse Guimarães Rosa. Há espetáculo e espetáculo, disse o iconoclasta. No leito de morte, exuma-se também o perigo de viver. Até mesmo o perigo de morrer, porque ele já é. Reina única a imobilidade tranqüila do homem no leito de morte, reino das “belles images”, para retomar a expressão de Simone de Beauvoir diante das gravuras fúnebres dos livros de história. Ao contrário, no campo da vida exposta no momento de viver o que conta para o olhar é o movimento. Movimento de corpos que se deslocam com sensualidade e imaginação, inventando ações silenciosas dentro do precário. Inventando o agora.

(...)O olhar humano pós-moderno é desejo e palavra que caminham pela imobilidade,

vontade que admira e se retrai inútil, atração por um corpo que, no entanto, se sente alheio

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à atração, energia própria que se alimenta vicariamente de fonte alheia. Ele é o resultado crítico da maioria das nossas horas de vida cotidiana.

Os tempos pós-modernos são duros e exigentes. Querem a ação enquanto energia (daí o privilégio do jovem enquanto personagem, e do esporte enquanto tema). Esgotada esta, passa o atuante a ser espectador do outro que, semelhante a ele, ocupa

o lugar que foi o seu. “Azeitona e vinho”. É essa última condição de prazer vicário, ao mesmo tempo pessoal e passível de generalização, que alimenta a vida cotidiana atual e que EC dramatiza através do narrador que olha. Ao dramatizá-lo na forma em que o faz, revela o que nele pode ser experiência autêntica: a passividade prazerosa e o imobilismo crítico. São essas as posturas fundamentais do homem contemporâneo, ainda e sempre mero espectador ou de ações vividas ou de ações ensaiadas e representadas. Pelo olhar, homem atual e narrador oscilam entre o prazer e a crítica, guardando sempre a postura de quem, mesmo tendo se subtraído à ação, pensa e sente, emociona-se com o que nele resta de corpo e/ou cabeça.

O espetáculo torna a ação representação. Dessa forma, ele retira do campo semântico de “ação” o que existe de experiência, de vivência, para emprestar-lhe o signifi cado exclusivo de imagem, concedendo a essa ação liberta da experiência condição exemplar de um agora tonifi cante, embora desprovido de palavra. Luz, calor, movimento – transmissão em massa. A experiência do ver. Do observar. Se falta à ação representada o respaldo da experiência, esta, por sua vez, passa a ser vinculada ao olhar. A experiência do olhar. O narrador que olha é a contradição e a redenção da palavra na época da imagem. Ele olha para que o seu olhar se recubra de palavra, constituindo uma narrativa.

O espetáculo torna a ação representação. Representação nas suas variantes lúdicas, como futebol, teatro, dança, música popular, etc.; e também nas suas variantes técnicas, como cinema, televisão, palavra impressa etc. os personagens observados, até então chamados de atuantes, passam a ser atores do grande drama da representação humana, exprimindo-se através de ações ensaiadas, produto de uma arte, a arte de representar. Para falar das várias facetas dessa arte é que o narrador pós-moderno ele mesmo detendo a arte da palavra escrita – existe. Ele narra ações ensaiadas que existem no lugar (o palco) e no tempo (o da juventude) em que lhes é permitido existir.

O narrador típico de EC, pelas razões que vimos expondo, vai encontrar na “sociedade do espetáculo” (para usar o conceito de Guy Debord) campo fértil para as suas investidas críticas. Por ela é investido e contra ela se investe. No conto “A lugar algum”, transcrição ipsis litteris do script de um programa de televisão, em que é entrevistado um jovem marginal, a realidade concreta do narrador é grau zero. Subtraiu-se totalmente. O narrador é todos e qualquer um diante de um aparelho de televisão. Essa também – repitamos – é a condição do leitor, pois qualquer texto é para todos e qualquer um.

Em “A lugar algum”, o narrador é apenas aquele que reproduz. As coisas se passam como se o narrador estivesse apertando o botão do canal de televisão para o leitor. Eu estou olhando, olhe você também para este programa, e não outro. Vale a pena. Vale a pena porque assistimos aos últimos resquícios de uma imagem que ainda não é ensaiada, onde a ação (o crime) é respaldada pela experiência. A experiência de um jovem marginal na sociedade do espetáculo.

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Para testemunhar do olhar e da sua experiência é que ain¬da sobrevive a palavra escrita na sociedade pós-industrial.

[1986]

SANTIAGO, Silviano. Nas Malhas da Letra.

O texto de Silviano Santiago nos apresenta, com certa clareza, o narrador pós-moderno, pensando-o a partir de um diálogo estabelecido com o texto de Benjamin, O narrador, que apresentamos à você no Conteúdo 1 do Tema 3. Os dois tipos de narrador enfocados são interessantes e não nos cabe julgar ou escolher quais seriam as virtudes de um em detrimento do outro. O que Silviano faz em seu trabalho de crítico literário é tentar ler o seu tempo, sua forma de narrar e habitar a contemporaneidade, as formas de narrar que se transmutam por meio desse sujeito que muda sua experiência e seu contato com o mundo. O pós-moderno refere-se não ao fi m do moderno, mas a uma perlaboração de tudo aquilo que se confi gurou como modernidade e que, passado um tempo, viria a se confi gurar com outros propósitos que nem rompem com as tendências anteriores, nem fi cam restritos ao modelo precursor. Em termos de narrativa, o pós-moderno ou exagera ou faz uma literatura ainda não feita. Por isso, encontramos na literatura contemporânea um exagero ainda maior do pastiche, da paródia, da mistura entre documento e fi cção. A mudança se dá no nível do espaço. Por isso dizemos que os centros são móveis, que a fi xidez de uma identidade só pode se pensada enquanto uma referência em trânsito.

O tempo, grande tema da modernidade, cede lugar ao espaço na pós-modernidade.

Quem é o autor?

Falamos de textos, de obras literárias, de gêneros que caracterizam determinadas escritas, mas uma pergunta pode ecoar em meio a essas teorias todas: quem é o autor? Quem escreve o texto que leio? Essa discussão é feita há tempos e certamente não tem data para ser fi nalizada. Diante do emblema da autoria, vários foram os estudos que se fi zeram sobre ela, questionando o local de fala do autor, se seus dados biográfi cos contariam para a análise do texto literário, a intenção daquele que escreve, o status que esse local de ‘autor’ gera, enfi m, várias questões a se ramifi carem cada vez mais em busca da ‘identidade’ desse sujeito que cria, fi cciona e é, ao mesmo tempo, real e fi cção.

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Um texto marcante e extremamente citado no universo letrado seria “A morte do autor”, de Roland Barthes e que foi escrito em 1968. Nele, Barthes traça um possível caminho de escrita, lugar no qual o corpo que escreve se perde, perde sua identidade, pois a escrita é esse oblíquo para onde foge esse sujeito, no sentido da dissimulação e fi ngimento de que falou Fernando Pessoa.

À medida que os fatos são contados, a voz perde sua essa origem de corpo, e “o autor entra na sua própria morte, a escrita começa”. Dessa forma,

Barthes vai delineando um mapa de como se observar o ‘autor’ no passar dos anos. Em algumas sociedades, tínhamos a fi gura de um mediador que contava as histórias, que fazia a vez do contador, mas nunca a idéia do gênio. Para Barthes, o autor é uma personagem moderna, descoberta com o fi m da Idade Média, que trouxe à tona o ‘prestígio pessoal do indivíduo’ ou da ‘pessoa humana’. Assim, é, pois, no positivismo (resumo e desfecho da ideologia capitalista) que ocorre de se conceder maior importância à pessoa do autor. Este começa a reinar nos manuais de história literária, nas biografi as de escritores, nas entrevistas. Barthes coloca ainda que a imagem que podemos encontrar na cultura corrente é tiranicamente centrada na fi gura do autor, da sua pessoa, dos seus gostos, paixões.

Todavia, ele contrapõe as afi rmações acima dizendo que quem performa é a linguagem e não o autor. ‘É a linguagem quem fala e não o autor, e escrever é, através de uma impessoalidade prévia, atingir aquele ponto e que só a linguagem atua, performa’. O que ele pretende refl etir é a morte de um tipo de Autor-Deus, que contém toda a verdade e explicação do texto. Roland Barthes não compactua com esse Autor-Deus, pois acredita que o escritor moderno nasce ao mesmo tempo em que seu texto. Ele acredita que o verdadeiro lugar da escrita é a leitura e que para o leitor nascer, morre o Autor.

Outras visões irão se seguir ao texto de Barthes, concordando com a morte do Autor, mas nunca com a do autor. O autor sobrevive às tempestades teóricas enquanto mais um sujeito que é prenhe de subjetividade e são as lacunas de sua vida que transbordam em seu texto. Não se pretende com isso, dizer que toda leitura de um texto deve levar em consideração os fatores biográfi cos do autor para ser compreendido em sua completude. Esses fatores - sobre a vida de quem escreve - servem enquanto um suplemento para uma determinada interpretação de texto que por acaso vá em busca desses acontecimentos que, mesmo quando não forem ‘aproveitados‘ no momento da leitura, não podem, contudo, ser ignorados.

Para conhecermos um pouco mais o assunto e como ele tem repercutido, vamos ver o texto que se segue com alguns apontamentos sobre as principais teorias desenvolvidas sobre a questão do autor:

Foucault (1992), em seu texto “O que é um autor?”, comenta que, historicamente, os textos passaram a ter autores na medida em que os discursos se tornaram transgressores com origens passíveis de punições, pois, na Antiguidade, as narrativas, contos, tragédias, comédias e epopéias - textos que hoje chamaríamos literatura - eram colocados em circulação e valorizados sem que se pusesse em questão a autoria - o anonimato não constituía nenhum problema, a sua própria antigüidade era uma garantia sufi ciente de autenticidade. Os textos científi cos, ao contrário, deveriam ser avalizados pelo nome de um autor, como os tratados de medicina, por exemplo.

Nos séculos XVII e XVIII, os mesmos textos científi cos passaram a ter validade em função de sua ligação a um conjunto sistemático de “verdades” demonstráveis. No fi nal do século XVIII e no correr do século XIX, com a instituição do sistema de propriedade, possuidor de regras estritas sobre direitos do autor e relações autor/editor, é que o gesto carregado de riscos da autoria, enquanto transgressão, segundo Foucault, passou a se constituir um bem, preso àquele sistema.

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Para Foucault, o que denomina como “função-autor”, dispensada nos discursos científi cos pela sua participação em um sistema que lhe confere garantia, permanece nos discursos literários. A “função-autor” não se constrói simplesmente atribuindo um texto a um indivíduo com poder criador, mas se constitui como uma “característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma sociedade” (Foucault, 1992, pág. 46), ou seja, indica que tal ou qual discurso deve ser recebido de certa maneira e que deve, numa determinada cultura, receber um certo estatuto. O que faz de um indivíduo um autor é o fato de, através de seu nome, delimitarmos, recortarmos e caracterizarmos os textos que lhes são atribuídos.

Em seu polêmico estudo “A Morte do Autor”, Barthes enfatiza a questão da não existência do autor fora ou anterior à linguagem. Procurando apresentar a idéia do autor como sujeito social e historicamente constituído, Barthes o vê como um produto do ato de escrever - é o ato de escrever que faz o autor e não o contrário. Para ele um escritor será sempre o imitador de um gesto ou de uma palavra anteriores a ele, mas nunca originais, sendo seu único poder mesclar escritas. Barthes retira a ênfase de um sujeito que tudo sabe, unifi cado, intencionado como o “lugar” de produção da linguagem, esperando assim libertar a escrita do despotismo da obra - o livro.

O hipertexto, de certa forma, vai ao encontro das postulações de Barthes: libertando a escrita da “tirania do autor” pela facilidade que dá a cada leitor de adicionar, alterar ou simplesmente editar um outro texto, abrindo possibilidades de uma autoria coletiva e quebrando a idéia da “ecriture” como originária de uma só fonte. Nesse sentido hipertexto e teoria contemporânea, reconfi guram o autor sob diversos aspectos- tanto na teoria do hipertexto como na teoria literária as funções do escritor e do leitor tornam-se profundamente entrelaçadas. Por um lado, hipertextos transferem parte do poder do escritor para o leitor pela possibilidade e habilidade que este último passa a ter de escolher livremente seus trajetos de leitura elaborando o que poderíamos denominar “meta-texto”, anotando seus escritos junto aos escritos de outros autores e estabelecendo links (nexos ou interconexões) entre documentos de diferentes autores de forma a relacioná-los e acessá-los rapidamente. (...)

Por outro lado, as experiências com hipertexto estreitam a distância que separa documentos individuais - uns dos outros - no mundo da impressão e pelo fato de reduzirem a autonomia do texto, reduzem também a autonomia do autor. O leitor pode, por sua vez, tornar-se um construtor de signifi cados ativo, independente e autônomo (Snyder, 1996). As chances de traçar padrões pessoais de leitura, de mover-se de forma aleatória de maneira não linear servem para destacar a importância do leitor na “escrita” de um texto.

Cada leitura não muda fisicamente as palavras, mas reescreve o texto, simplesmente através de sua reorganização enfatizando diferentes pontos que podem, de forma sutil, alterar seu signifi cado. Barthes sugere que os leitores criam suas próprias interpretações independentemente das intenções do autor.

Um outro aspecto a se observar é que na tradição da história social da impressão os livros sempre possuíram autores, os leitores fi cavam restritos aos estudos de teoria literária. Mais recentemente, com a estética da recepção a signifi cação do texto como historicamente construída, e produzida no interstício existente entre a proposição da obra - leia-se a vontade do autor - e as respostas dos leitores, estes últimos passaram a ser levados em conta em função das atenções se voltarem para a maneira como as formas físicas, com que o texto é apresentado, afetam a construção do sentido.

Benjamin, referindo-se à imprensa russa, fez alusão ao desaparecimento da distinção convencional entre autor e público. Ao afi rmar que leitores estavam sempre prontos “a escrever, descrever e prescrever,” nos jornais soviéticos, fazendo com que o

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mundo do trabalho tomasse a palavra e transformasse a literatura em direito de todos, atribuiu ao jornal, uma outra forma de apresentar o texto, a função de redenção da palavra (Benjamin, 1994, pág. 125).

Sob esta ótica também se pode entender melhor a atribuição de uma nova autoria ao leitor do hipertexto. Ao elaborar seu trajeto de leitura, tal como o meio eletrônico lhe possibilita, o leitor/usuário

constrói um novo sentido ao texto proposto - um sentido pessoal que poderíamos até denominar como “leitura-escritura”. A refl exão sobre o hipertexto recoloca, também, em debate a questão da propriedade intelectual. Aliás, o texto eletrônico e as leis de direitos autorais estão na rota de colisão em muitos pontos e quer nos parecer que as soluções para o problema estão longe de ser encontradas. De um lado se situam autores, editores e distribuidores de livro, bem como desenvolvedores de software zelosos de seus direitos, preocupados em que se cumpram as leis que punem as cópias não autorizadas. Do outro todos os leitores usuários reproduzindo “bits” sem citar fontes. (...)

A questão que se coloca é, pois, a seguinte: se o autor e texto se dispersam e se este último adquire uma multiplicidade de vozes, através dos sistemas de hipertexto, como preservar de forma eqüitativa os direitos legais dos múltiplos autores? A resposta à questão é ainda objeto de busca e o debate sobre o tema palpitante, haja visto os interesses que envolve. O que se pode defi nir é que os sistemas de hipertexto deslocam o poder de controle do texto do autor para o leitor, o que demanda novas políticas na orientação da propriedade intelectual.

Texto retirado de: http://www.unicamp.br/~hans/mh/autor.html

Procure ler o texto de Barthes na íntegra, “A morte do autor”, em:http://www.facom.ufba.br/sala_de_aula/sala2/barthes1.html

Intertextualidades: o labirinto da citação

De autor em autor, a gente acaba caindo em um texto que fala de outro texto e daí em diante. Barthes começa o texto que mencionamos no Conteúdo 3 citando uma novela de Balzac. Assim costuma acontecer com a maioria dos textos que lemos: neles encontramos referências de tantos outros autores e obras, palavras, citações que formam um labirinto que acabam por garantir uma espécie de linguagem para cada escritor, um sabor de texto diferenciado a partir do elenco que cada um delineia para si. A referência a um texto anterior gera um movimento. A este daremos o nome de intertextualidade, sabendo que dentro desta cabem outras estruturas, como por exemplo, a citação.

Como se pode notar na constituição da própria palavra, intertextualidade signifi ca relação entre textos. Considerando-se texto como um recorte signifi cativo feito no processo ininterrupto de simbiose cultural, isto é, na ampla rede de signifi cações dos bens culturais, pode-se afi rmar que a intertextualidade é inerente à produção humana. O homem sempre lança mão do que já foi feito em seu processo de produção simbólica. Um texto é um “momento” que se privilegia entre um início e um fi nal escolhidos. Assim sendo, o texto, como objeto cultural, tem uma existência física que pode ser apontada e delimitada: um fi lme, um romance, um anúncio, uma música. Entretanto, esses objetos não estão ainda

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prontos, pois destinam-se ao olhar, à consciência e à recriação dos leitores. Cada texto constitui uma proposta de signifi cação que não está inteiramente construída. A signifi cação se dá no jogo de olhares entre o texto e seu destinatário. Este último é um interlocutor ativo no processo de signifi cação, na medida em que participa do jogo intertextual tanto quanto o autor. A intertextualidade se dá tanto na produção como na recepção da grande rede cultural de que todos participam. Filmes que retomam fi lmes, quadros que dialogam com outros, propagandas que se utilizam do discurso artístico, poemas escritos com versos alheios, romances que se apropriam de formas musicais, tudo isso são textos em diálogo com outros textos: intertextualidade.

É importante marcar a primazia de Bakhtin em relação a esses estudos, divulgados por Julia Kristeva. É dela o clássico conceito de intertextualidade: “(...) todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto.” (KRISTEVA, 1974, p. 64).

Por isso mesmo, Antoine Compagnon chama a atenção para o fato de que “escrever, pois, é sempre reescrever, não difere de citar. A citação, graças à confusão metonímica a que preside, é leitura e escrita, une o ato de leitura ao de escrita. Ler ou escrever é realizar um ato de citação”. (COMPAGNON, 1996, p.31)

A intertextualidade, inerente à linguagem, torna-se explícita em todas as produções literárias que se valem do recurso da apropriação, colocando em xeque a própria noção de autoria. Referências, alusões, epígrafes, paráfrases, paródias ou pastiches são algumas das formas de intertextualidade, de que lançam mão os escritores em seu diálogo com a tradição. Drummond retoma Gonçalves Dias. Adélia Prado retoma Drummond. Bandeira retoma outros poemas de sua própria autoria, Clarice idem. Um mesmo escritor pode reler-se, utilizando-se de textos que ele mesmo escreveu, o que resulta numa espécie de intratextualidade. Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, retoma seu conhecido texto ‘No meio do caminho’, para escrever ‘Consideração do poema’:

Uma pedra no meio do caminhoou apenas um rastro, não importa.Estes poetas são meus. De todo o orgulho, de toda a precisão se incorporaramAo fatal meu lado esquerdo. Furto a Viniciussua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.Que Neruda me dê sua gravatachamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus Maiakóvski. (ANDRADE, 1978, p. 75)

Embaralhando mais as fronteiras discursivas, a obra de Jorge Luiz Borges é exemplo de um discurso híbrido que associa o fi ccional e o teórico, evidenciando o papel da leitura na composição dos textos. Tomemos como exemplo o conto ‘Pierre Menard, autor do Quixote’, em que se propõe o nível máximo da apropriação: escrever, linha por linha, a obra alheia e, mesmo assim, criar uma obra nova:

“Não queria compor outro Quixote – o que é fácil – mas o Quixote. Inútil acrescer que nunca visionou qualquer transcrição mecânica do original; não se propunha copiá-lo. Sua admirável ambição era produzir páginas que coincidissem – palavra por palavra e linha por linha – com as de Miguel de Cervantes.”

(BORGES, 1995, p. 57)

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Borges, em outro texto, Kafka e seus precursores, inverte o processo de produção textual quando transforma Kafka em modelo para aqueles que escreveram antes dele, criando, regressivamente, uma tradição. Tudo isso porque o leitor ativa sua biblioteca interna a cada texto lido, estabelecendo nexos relacionais entre o que lê e o que já foi lido. Então, a intertextualidade, centrada também na figura do leitor, perturba qualquer possibilidade de cronologia rígida para a

historiografia literária, na medida em que as associações feitas são livres.Até mesmo o conceito de tradução é revisto, numa perspectiva intertextual, como uma

leitura da obra, uma recriação. Relativizam-se também as noções de cópia e modelo, fonte e infl uência. Isso porque a cópia pode levar a uma releitura desconstrutora do modelo. A crítica literária brasileira contemporânea, valendo-se de tais relativizações, produziu textos que nos permitem reler a própria história da colonização com novos olhos. Ensaios como “Nacional por subtração”, de Roberto Schwarz (1989); “O entre-lugar do discurso latino-americano”, “Eça, autor de Madame Bovary” (1978) e “Apesar de dependente, universal” (1982), de Silviano Santiago integram esse debate.

Em qualquer nível, a produção simbólica é sempre uma retomada de outras produções, perfazendo um jogo infi nito que enreda autores e leitores. Apropriando-nos de Schneider, podemos afi rmar:

“O texto literário é um palimpsesto. O autor antigo escreveu uma ‘primeira’ vez, depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a página com um novo texto, e assim por diante. Textos primeiros inexistem tanto quanto as puras cópias; o apagar não é nunca tão acabado que não deixe vestígios, a invenção, nunca tão nova que não se apóie sobre o já-escrito.

(SCHNEIDER, 1990, p.71)

AtividadesComplementares

• Feita a leitura dos dois textos, o de Benjamin e o de Silviano, procure tecer refl exões sobre o narrador benjaminiano e o narrador pós-moderno. Em que ponto eles se encontram e em que se diferem?

• Faça uma busca sobre o tema da intertextualidade na internet sobre o poema de Gonçalves Dias, “Canção do Exílio”. Você irá descobrir intertextualidades inspiradoras. Aproveite para também dar continuidade ao diálogo iniciado por tantos escritores...

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OS ESTUDOS CULTURAIS

Introdução aos Estudos Culturais

Repare como a coisa vem caminhando: nós vimos primeiro as noções que se pode ter sobre a literatura, os primeiros pensadores a se jogarem na tarefa de estudo e refl exão do literário, os efeitos literários, a questão dos gêneros, algo sobre o narrador moderno, pós-moderno, o autor, a intertextualidade que envolve qualquer obra e em cada movimento de estudo e de diálogo fomos apontando teorias e formas de encarar a Teoria Literária.

Agora, te lançamos na arena dos Estudos Culturais, apenas mais uma vertente teórica, mas com o propósito de agregar antes de excluir qualquer experiência cultural. Isso não signifi ca dizer que o que se tem aqui seja um vale-tudo, mas uma proposta para se pensar a literatura fora do espaço reservado da própria literatura. O lugar sacralizado e canônico cede espaço para outras possibilidades culturais que renovam o olhar e o passeio do literário. A seguir, trechos de um texto para nos apresentar melhor esse tal “Estudos Culturais”.

Crítica cultural, crítica literária: desafi os do fi m de século(Silviano Santiago)

Prepared for delivery at the 1997 meeting of the Latin American Studies Association, Continental Plaza Hotel, Guadalajara, Mexico, April 17-19, 1997.

Existe maior difi culdade em interpretar as interpretações do que em interpretar as coisas.

Montaigne

Para abordar com segurança o tema proposto -- “Crítica cultural, crítica literária: desafíos de fi n de siglo” --, será preciso refl etir antes sobre um problema de periodização. Em que ano e em que circunstâncias históricas começa o “fi m de século” na América Latina e, em particular, no Brasil? Se nos entregarmos ao trabalho prévio de articular uma série de questões derivadas, a pergunta de caráter geral poderá receber resposta que proponha uma data relativamente precisa. Enunciemos, primeiro, as perguntas derivadas.

Quando é que a cultura brasileira despe as roupas negras e sombrias da resistência à ditadura militar e se veste com as roupas transparentes e festivas da democratização?

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Quando é que a coesão das esquerdas, alcançada na resistência à repressão e à tortura, cede lugar a diferenças internas signifi cativas? Quando é que a arte brasileira deixa de ser literária e sociológica para ter uma dominante cultural e antropológica? Quando é que se rompem as muralhas da refl exão crítica que separavam, na modernidade, o erudito do popular e do pop? Quando é que a

linguagem espontânea e precária da entrevista (jornalística, televisiva, etc.) com artistas e intelectuais substitui as afi rmações coletivas e dogmáticas dos políticos profi ssionais, para se tornar a forma de comunicação com o novo público?

A resposta às perguntas feitas acima levam a circunscrever o momento histórico da transição do século XX para o seu “fi m” pelos anos de 1979 a 1981. (...)

Nesses três anos a que estaremos nos referindo, a luta das esquerdas contra a ditadura militar deixa de ser questão hegemônica no cenário cultural e artístico brasileiro, abrindo espaço para novos problemas e refl exões inspirados pela democratização no país (insisto: no país, e não do país). A transição deste século para o seu “fi m” se defi ne pelo luto dos que saem, apoiados pelos companheiros de luta e pela lembrança dos fatos políticos recentes, e, ao mesmo tempo, pela audácia da nova geração que entra, arrombando a porta como impotentes e desmemoriados radicais da atualidade. (...)

Em artigo publicado em 13 de agosto de 1981, Heloisa Buarque de Hollanda esboçava um primeiro balanço das novas tendências na arte e na cultura brasileiras. A reviravolta que ambas sofriam se devia à passagem recente do furacão soprado pelo cineasta Cacá Diegues, denominado com propriedade na época de “patrulhas ideológicas”. O furacão, porque desorientava a esquerda formada nos anos 50 e consolidada na resistência à ditadura militar dos anos 60 e 70, era premonitório da transição. O livro de entrevistas que levou o nome da polêmica -- Patrulhas Ideológicas-se confi gura hoje mais como o balanço da geração que resistiu e sofreu durante o regime de exceção e menos como a plataforma de uma nova geração que desejava tomar ao pé da letra a “diástole” (apud General Golbery) da militarização do país.

Como narradores castrados pelos mecanismos da repressão, como pequenos heróis com os olhos voltados para o passado doloroso, como advogados de acusação dispostos a colocar no banco dos réus os que de direito ali deveriam fi car para sempre, a maioria dos personagens públicos entrevistados em 1979/1980 quer contar uma história de vida. Resume o cineasta Antônio Calmon: “Eu acho melhor contar a história do que teorizar”. Ainda em 1979, sai publicado o emblemático depoimento do ex-guerrilheiro Fernando Gabeira, O que é isso, companheiro?, que narra com minúcia de detalhes o cotidiano redentor e paranóico da guerrilha no Brasil e na América Latina e as sucessivas fugas dos latino-americanos para os vários exílios. Na numerosa produção de relatos de vida, há um tom Christopher Lasch que impede que o lugar político-ideológico até então ocupado pelo regime militar seja esvaziado e reocupado pelos defensores de uma cultura adversária, ou seja, os esquerdistas renitentes não descobrem que o inimigo não está mais lá fora, do outro lado da cerca de arame farpado, mas entre nós.

O acontecimento “patrulhas ideológicas” fecha não só o período triste da repressão como também o período feliz da coesão na esquerda. Por ser o mais polêmico dos intelectuais brasileiros contemporâneos, Glauber Rocha é o primeiro que põe o dedo no harmônico e fraterno bloco esquerdista para abrir rachaduras. Em 1977, O Jornal do Brasil propicia, num apartamento carioca, o diálogo entre os quatro gigantes da esquerda

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brasileira: o antropólogo Darcy Ribeiro, o poeta Ferreira Gullar, o cineasta Glauber Rocha e o crítico de arte Mário Pedrosa. O longo e doloroso debate termina com intervenções abruptas de Glauber. Devido às divergências de opinião, conclui que “o debate não pode ser publicado”. Segundo a transcrição, “todo mundo [na sala do apartamento] protesta, grita, reclama da posição de Glauber”. Glauber continua a silenciar a fala dos demais. Acrescenta: “Eu, por exemplo, comecei a discordar do Darcy [Ribeiro] a partir de certo momento, mas eu não discordarei publicamente [grifo nosso] do Darcy...” A moderadora do debate não percebe a dimensão da rachadura aberta pela discordância no privado que não podia se tornar pública e reage com o cola-tudo das boas intenções: “o problema é que você [Glauber] está querendo impor um pensamento, quer ganhar uma discussão e não é isso que importa aqui”. Glauber termina a conversa amistosa com duas declarações contundentes. A primeira é a de que “não há condições no Brasil de se fazer um debate amplo e aberto” e a segunda, “esse debate já era”.

Nos anos seguintes, o debate amplo e aberto não apareceria nos relatos de vida dos ex-combatentes, não se daria pela linguagem conceptual da história e da sociologia, não seria obra de políticos bem ou mal intencionados. Esse debate amplo e aberto se passaria no campo da arte, considerando-se esta não mais como manifestação exclusiva das belles lettres, mas como fenômeno multicultural que estava servindo para criar novas e plurais identidades sociais. Caiam por terra tanto a imagem falsa de um Brasil-nação integrado, imposta pelos militares através do controle da mídia eletrônica, quanto a coesão fraterna das esquerdas, conquistada nas trincheiras. A arte abandonava o palco privilegiado do livro para se dar no cotidiano da Vida. Esse novo espírito estaria embutido na plataforma política do Partido dos Trabalhadores, PT, idealizado em 1978.

Voltando ao artigo de Heloisa Buarque, percebe-se que ela, ao ler o livro Retrato de época (um estudo sobre a poesia marginal da década de 70), detecta “um certo mal-estar dos intelectuais em relação à sua prática acadêmica” cuja saída estava sendo desenhada pela “proliferação de estudos recentes (reunindo-se aí uma expressiva faixa da refl exão universitária jovem) no registro da perspectiva antropológica”. Os setores emergentes da produção intelectual, acrescenta ela, “explicita[va]m certas restrições ao que chamam os aspectos ortodoxos da sociologia clássica e da sociologia marxista”.

Segundo Heloísa, a chave da operação metodológica apresentada no livro está no modo como o antropólogo Carlos Alberto dá o mesmo tratamento hermenêutico tanto ao material oriundo das entrevistas concedidas pelos jovens poetas marginais, quanto ao poema de um deles. O texto do poema passa a funcionar como um depoimento informativo e a pesquisa de campo é analisada como texto. O paladar metodológico dos jovens antropólogos não distingue a plebéia entrevista do príncipe poema.

Essa grosseira inversão no tratamento metodológico de textos tão díspares -- aparentemente inocente porque conseqüência da falta de boas maneiras dum jovem antropólogo -- desestabilizaria de maneira defi nitiva a concepção de Literatura, tal como era confi gurada pelos teóricos dominantes no cenário das Faculdades de Letras nacionais e estrangeiras. Conclui Heloísa: “Carlos Alberto parece colocar em suspenso a literatura como discurso específi co”.

Esvaziar o discurso poético da sua especifi cidade, liberá-lo do seu componente elevado e atemporal, desprezando os jogos clássicos da ambigüidade que o diferenciava dos outros discursos, enfi m, equipará-lo qualitativamente ao diálogo provocativo sobre o cotidiano, com o fi m duma entrevista passageira, tudo isso corresponde ao gesto metodológico de apreender o poema no que ele apresenta de mais efêmero. Ou seja, na sua transitividade, na sua comunicabilidade com o próximo que o deseja para torná-lo seu. (...)

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Será que no ano seguinte ao da sua publicação, 1981, Patrulhas ideológicas já podia ser dado como retrógrado? Há duas exceções ao tom grandiloqüente, autocomiserativo e trágico dos depoimentos concedidos pelos entrevistados. As palavras do compositor e intérprete Caetano Veloso é uma das exceções. Provocado sobre o retorno na cena artística do discurso tradicional

da esquerda, reage com corpo e sensualismo, retirando o exercício político da classe política e decretando a combinação extemporânea da prática política aliada à prática da vida, em distanciamento dos chamados líderes carismáticos da contra-revolução (General Golbery) e da revolução (Fidel Castro). Diz ele que o cantor e amigo Macalé “estava entusiasmado porque falou com o Golbery, mas eu não acho graça, nem em Fidel Castro, nem em ninguém... eu acho tudo isso meio apagado, não sinto muito tesão”. Suas idéias sobre o papel do artista na sociedade, sobre arte e engajamento, sobre a função política e erótica da obra de arte, sobre a produção e disseminação do conhecimento no espaço urbano escapam ao ramerrão do livro. E é por isso que, se não se sente patrulhado, sente que incomoda um número cada vez maior de pessoas, como na história do elefante. É o que constata: “o que mais incomoda [as pessoas] é a minha vontade de cotidianizar a política ou de politizar o cotidiano”. Como elemento mediador entre o cotidiano e a política, o fazer -- o próprio fazer artístico. Pelo seu produto é que o artista se exprime politicamente no cotidiano. Acrescenta ele: “me sinto ligado a tudo que acontece mas através do que eu faço”. Caetano está defi nindo, no dizer do Raymond Williams de The Long Revolution, “culture as a whole way of life”, apagando a conjunção E que ligava tradicionalmente cultura e sociedade.

A outra e segunda exceção no livro de 1980 são as palavras da cientista social Lélia Gonzales, negra e carioca de adoção. De início, denuncia o processo de embranquecimento por que passa o negro quando submisso ao sistema pedagógico-escolar brasileiro, anunciando a futura batalha do multiculturalismo contra o cânone ocidental: “e passei por aquele processo que eu chamo de lavagem cerebral dado pelo discurso pedagógico-brasileiro, porque, na medida em que eu aprofundava meus conhecimentos, eu rejeitava cada vez mais a minha condição de negra”. Cutucada com vara curta sobre a liderança de São Paulo no movimento negro de esquerda, com o fi m de saber se é o intelectual paulista que irá desempenhar o papel de mediador entre o Rio de Janeiro e a Bahia, Lélia não titubeia na resposta: “O Rio de Janeiro é que é o mediador entre Bahia e São Paulo. Porque, por exemplo, o negro paulista tem uma puta consciência política. Ele já leu Marx, Gramsci, já leu esse pessoal todo. Discutem, fazem, acontecem, etc. e tal. Mas de repente você pergunta: você sabe o que é iorubá? Você sabe o que é Axé? Eu me lembro que estava discutindo com os companheiros de São Paulo e perguntei o que era Ijexá. O que é uma categoria importante para a gente saber mil coisas, não só no Brasil como na América inteira. Os companheiros não sabiam o que era Ijexá. Ah! não sabem? Então, vai aprender que não sou eu que vou ensinar não, cara!” (...)

Desrecalcar a base cultural negra no Brasil não signifi ca voltar ao continente africano. Para Lélia, isso é sonho, sonho de gringo. Signifi ca, antes, detectar na formação dita científi ca e disciplinar dos intelectuais negros paulistas certa neutralidade étnica que abole a diferença e que, por isso mesmo, permite -- apenas no privado, lembremo-nos das palavras de Glauber Rocha -- a expressão de crenças religiosas subalternas. Lélia afi rma: “Nós aqui, no Brasil, temos uma África conosco, no nosso cotidiano. Nos nossos sambas, na estrutura de um Candomblé, da macumba...” Sua fala política se

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encaminha para a negociação pelas trocas culturais entre negros, brancos e índios, com vistas a um Brasil que seria representado não mais como unidade, mas miscigenado, multicultural, porque não há como negar “a dinâmica dos contatos culturais, das trocas, etc.” Nesse sentido, uma das grandes questões colocadas por Patrulhas Ideológicas a da democratização do Brasil após um longo período de autoritarismo militar --acaba por ter uma resposta desconcertante para a esquerda, também autoritária, mas naquele momento em plena crise de autocrítica: “Veja, por exemplo, a noção de Democracia. Se você chegar num Candomblé, onde você, pra falar com a Mãe de Santo, tem de botar o joelho no chão e beijar a mão dela e pedir licença, você vai falar em Democracia!? Dança tudo.” Os grupos étnicos excluídos do processo civilizatório ocidental passam a exigir alterações signifi cativas no que é dado como representativo da tradição erudita brasileira ou no que é dado como a mais alta conquista da humanidade, a democracia representativa. Exigem autonomia cultural. (...)

As atitudes extemporâneas expressas no citado depoimento de Lélia Gonzales abrem o leque das expectativas universitárias para outros campos e objetos de estudo durante os três anos (1979 a 1981) a que estamos nos referindo. As Faculdades de Letras -- formadoras de “literatos natos”, segundo a expressão brejeira de Heloisa, e dedicadas tradicionalmente ao estudo da cultura duma minoria, no caso a letrada, que se manifesta e dialoga pelo livro, -- são despertadas para a cultura da maioria.

São despertadas pela avassaladora presença da música comercial-popular no cotidiano brasileiro. Por estar informada e formada pelo Estruturalismo francês e pelos teóricos da Escola de Frankfurt, o despertar da minoria letrada não foi pacífi co. É surpreendente, por exemplo, que a primeira crítica severa à grande divisão (“the Great Divide”, segundo a expressão já clássica de Andreas Huyssen) entre o erudito e o popular com o conseqüente rebaixamento deste, tenha partido de um jovem intelectual com formação na Universidade de São Paulo, o professor de Letras e músico José Miguel Wisnik. Mais surpreendente, ainda, é que dele tenha partido a primeira leitura simpática e favorável do cantor Roberto Carlos, ainda que, para tal tarefa, o crítico tenha de se travestir pela fala da sua mulher, caindo literalmente numa “gender trap”.

Estamos nos referindo ao artigo “O minuto e o milênio ou Por favor, professor, uma década de cada vez”, capítulo do livro Anos 70 - 1. Música popular . “A má vontade para com a música popular em Adorno é grande”, começa por afi rmar José Miguel. Em seguida, constata que ela é conseqüência de dois fatores que acabam por nos diferenciar dos europeus, optando o crítico brasileiro pela desconstrução do pensamento adorniano. Em primeiro lugar, diz José Miguel, para Adorno, “o uso musical é a escuta estrutural estrita e consciente de uma peça, a percepção da progressão das formas através da história da arte e através da construção duma determinada obra”. Em segundo lugar, observa, ainda, “o equilíbrio entre a música erudita e a popular, num país como a Alemanha, faz a balança cair espetacularmente para o lado da tradição erudita, porque a música popular raramente é penetrada pelos setores mais criadores da cultura, vivendo numa espécie de marasmo kitsch e digestivo [...]”.

José Miguel contrapõe ao soturno quadro erudito europeu um cintilante cenário brasileiro, marcado por “uma poética carnavalizante, onde entram [...] elementos de lirismo, de crítica e de humor: a tradição do carnaval, a festa, o non-sense, a malandragem, a embriaguez da dança, e a súbita consagração do momento fugidio que brota das histórias do desejo que todas as canções não chegam pra contar”. Nesse sentido e entre nós, há que primeiro constatar -- levando-se em consideração o pressuposto básico levantado por Antonio Candido para confi gurar a “formação” da literatura brasileira -- que “a música erudita nunca chegou a formar um sistema onde autores, obras e público

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[grifo nosso] entrassem numa relação de certa correspondência e reciprocidade”. Apontando na balança dos trópicos desequilíbrio inverso ao apresentado na balança européia, José Miguel retoma uma descoberta clássica de Mário de Andrade, a que diz que no Brasil o uso da música raramente foi o estético-contemplativo (ou o da música desinteressada). Em seguida, afi rma que, entre nós, a tradição musical

é popular e adveio do “uso ritual, mágico, o uso interessado da festa popular, o canto-de-trabalho, em suma, a música como um instrumento ambiental articulado com outras práticas sociais, a religião, o trabalho e a festa”. (...)

Através da intervenção dum professor de Letras é que a crítica cultural brasileira começa a ser despertada para a complexidade espantosa do fenômeno da música popular. O seu modo de produção se dá num meio em que as forças mais contraditórias e chocantes da nossa realidade social se encontram sem se repudiarem mutuamente. Em lugar de separar e isolar vivências e experiências, em lugar de introjetar o rebaixamento cultural que lhe é imposto para se afi rmar pelo ressentimento dos excluídos, a música popular passa a ser o espaço “nobre”, onde se articulam, são avaliadas e interpretadas as contradições sócio-econômicas e culturais do país, dando-nos, portanto o seu mais fi el retrato. No trânsito entre as forças opostas e contraditórias, José Miguel aposta em três oposições que, por não o serem, acabam por integrar os elementos díspares da realidade brasileira no caldeirão social em que se cozinha a música popular-comercial: “embora mantenha um cordão de ligação com a cultura popular não-letrada, desprende-se dela para entrar no mercado e na cidade; b) embora deixe-se penetrar pela poesia culta, não segue a lógica evolutiva da cultura literária, nem fi lia-se a seus padrões de fi ltragem; c) embora se reproduza dentro do contexto da indústria cultural, não se reduz às regras da estandardização. Em suma, não funciona dentro dos limites estritos de nenhum dos sistemas culturais existentes no Brasil, embora deixe-se permear por eles”.

A música popular no Brasil é “uma espécie de hábito, uma espécie de habitat, algo que completa o lugar de morar, o lugar de trabalhar”, e é por isso que, no tocante às década de 60 e 70, há que “pensar o oculto mais óbvio”: tanto o estrondoso sucesso comercial de Roberto Carlos, quanto a simpatia despertada pela sua “força estranha” em fi guras do porte de Caetano Veloso. O crítico pergunta: “que tipo de força o sustém no ar por tanto tempo? Por que ele?” O crítico se sente incapaz de pensar o paradoxo do oculto mais óbvio. Será que isso é tarefa para mim?, deve ter perguntado a si antes de dar continuidade ao artigo. José Miguel cai na armadilha do gênero (gender trap), incapaz de responder à questão que é formulada pelo encadeamento orgânico do seu raciocínio analítico. Eis que pede ajuda à sua mulher [sic] para que responda e escreva sobre Roberto Carlos. A profundidade da escuta de Roberto Carlos só pode ser captada por ouvidos femininos. Vale a pena transcrever o transcrito, deixando o leitor jogar algum alpiste interpretativo no interior da armadilha para que se evidenciem ainda mais as trapaças que o falocentrismo pode pregar:

“Ela disse: voz poderosa, suave, louca, ele [Roberto Carlos] realiza melhor do que ninguém o desejo de um canto espontâneo, arranca matéria viva de si e entra em detalhes, coisas mal acabadas, células emocionais primitivas, momentos quase secretos de todo mundo (como as frases decoradas que a gente prepara para lançar ao outro na hora de partir e que não chega a dizer nem a confessar), uma qualidade romântica, ingênua e vigorosa, que unifi ca a sem-gracice, o patético, a doçura, o lirismo

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que há em todos, e fi ca forte, quase indestrutível, pois soma anseios, ilusões, ideais que também pairam por aí, mais além, estranho à realidade cotidiana de muitos.”

Dando continuidade à leitura reabilitada do melhor da música popular-comercial brasileira, o crítico diz que poderia complementar o seu trabalho, ratifi cando a liderança que veio sendo concedida por justo mérito a Caetano Veloso. O intérprete torna-se, ao mesmo tempo, lugar de ver a produção dos contemporâneos e lugar onde ela pode ser vista e analisada. Caetano é irônico por cair na armadilha de gênero que ele próprio estabelece no processo de produção das suas canções; Caetano é romântico pela recusa em cair na armadilha de gênero, já que se transforma em ouvinte e intérprete de Roberto Carlos. Para “falar um pouco mais de Caetano a partir de Roberto Carlos” é preciso assumir a fala rebaixada da mulher.

Três canções escreveu Caetano para Roberto Carlos: “Como 2 e 2”, “Muito romântico” e “Força estranha”. Canções, segundo José Miguel, que refl etem sobre o ato de cantar e em que, como no caso de Flaubert e Madame Bovary mencionados por Huyssen, todos os recursos de despersonalização e de identifi cação, de alteridade, são utilizados pelo compositor/intérprete: “minha voz me difere e me identifi ca; noutras palavras, sou ninguém que sou eu que é um outro”. Caetano injetou “refl exão critica” ao romantismo rebaixado/enaltecido de Roberto Carlos. Pela ironia (como escapar dela nesse jogo de espelhos?), ele acentuou “a tensão entre o sentimento romântico e a mediação da mercadoria”. (...)

Talvez seja correto afi rmar que a memória histórica no Brasil é uma planta tropical, pouco resistente e muito sensível às mudanças no panorama sócio-econômico e político internacional. Uma planta menos resistente e mais sensível do que, por exemplo, as nascidas na Argentina, terra natal de Funes, o memorioso. A passagem do luto para a democratização, alicerçada pela desmemória dos radicais da atualidade, foi dada por passadas largas que uns, e muitos julgam até hoje, precipitadas e prematuras. Para eles, a anistia no Brasil, concedida a todos e qualquer um por decreto-lei, não deixou que o país acertasse contas com o seu passado recente e negro. Desde então, sem planos para o futuro, estamos mancando da perna esquerda, porque o passado ainda não foi devidamente exorcizado. Nesse sentido, e dentro do pessimismo inerente à velha geração marxista, a aposta na democratização, feita pelos artistas e universitários entre os anos de 1979 e 1981, abriu o sinal verde para o surgimento nas esquerdas de uma “cultura adversária”. (...)

É inegável que os resultados obtidos pelas passadas largas, precipitadas e prematuras, dadas principalmente pelos jovens artistas e universitários, redundaram em questionamentos fundamentais da estrutura social, política e econômica brasileira. Ao encorajar o ex-guerrilheiro a se transformar de um dia para o outro num cidadão, os desmemoriados ajudavam a desmontar no cotidiano das ruas o regime de exceção, chegando a ser indispensáveis na articulação das pressões populares pelas “diretas já”. Ao redimensionarem o passado recente, também redirecionaram o gesto punitivo para a formação cultural do Brasil, estabelecendo estratégias de busca e afi rmação de identidade para a maioria da população, que vinha sendo marginalizada desde a Colônia. Ao questionarem o intelectual pelo viés da sua formação pelas esquerdas dos anos 50, induziram-no à autocrítica e tornaram possível a transição da postura carismática e heróica dos salvadores da pátria para o trabalho silencioso e dedicado de mediador junto às classes populares. Ao acatarem a televisão e a música popular, com suas regras discutíveis e efi cientes de popularização dos ideais democráticos, conseguiram motivar os desmotivados estudantes, também desmemoriados, a irem para as ruas e lutar a favor do impeachment do presidente Collor.

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O texto de Silviano Santiago elucida muitas questões e faz o árduo caminho de se tentar traçar uma espécie de genealogia para uma nova forma de crítica cultural a ser feita no Brasil. Ele cita exemplos tomando como ponto de partida o fi m do golpe militar e algumas de suas conseqüências que se tornariam mais tarde temas de debates e de outras discussões. O mosaico de citações feito por Silviano apresenta ao leitor uma tentativa de se passar a ler o país e suas produções ampliando o leque de visão no momento em que se começa a colocar em cena

uma cultura que até então vinha sendo sonegada pela historiografi a e pela crítica cultural. O desafi o que dá título ao texto ainda nos é lançado mesmo após a tal virada do

século. Ao leitor, professor, possível formador de opinião, Silviano tensiona a questão para o fato de se tentar, nas intempéries do cotidiano, ultrapassar preconceitos e ampliar, permanentemente, o campo da visão e da sensibilidade.

Vozes da América Latina: a inserção de outras leituras

A abertura da crítica literária para outras produtos culturais, ampliando o próprio conceito de literatura, teve uma importância capital para o processo de democratização da arte. Uma democratização que permitiu a ampliação do conceito de arte para outras formas de produção cultural, como a música popular, o cinema, revistas em quadrinhos.

Ressaltamos que esse processo se insere em um projeto maior, sob o patrocínio inegável dos estudos culturais, que orienta-se em direção a dois questionamentos principais. O primeiro consiste em pensar a legitimidade do discurso histórico diante da literatura, problematizando a oposição entre o “real” e o “fi ccional”, cujos limites se esmaecem diante de um olhar culturalista, que reconhece a imparcialidade de qualquer relato e o entrecruzamento entre o vivido e o imaginado. O segundo é a desconstrução da hierarquia de autores canônicos diante de autores que foram mantidos à margem por críticos literários orientados por uma perspectiva eurocêntrica, ou seja, que privilegiam modelos de matriz européia.

A desconstrução de hierarquias reverbera para a abertura da cena cultural não apenas para escritores, mas, também, para críticos de outros países, a exemplo da emergência dos latino-americanos Silviano Santiago, Beatriz Sarlo e Ricardo Piglia. Desse modo, a partir dessa abertura, passou-se a ouvir vozes provenientes dos países latino-americanos, que discutiam questões a eles pertinentes. Devemos ressalvar, no entanto, que, ao pontuar a emergência dessas vozes, não defendemos, com isso, uma postura adversa ao olhar estrangeiro (europeu, norte-americano, indiano) sobre a América Latina. Defendemos, na verdade, a importância de imprimir uma discussão em debates sobre cultura, a partir dessa própria cultura, permitindo que, ao lado de um olhar estrangeiros, muitos deles já legitimados, outros olhares possam ser contemplados. Devemos atentar, ainda, que a crítica de caráter local, isto é, as refl exões de Silviano Santiago não se limitam ao Brasil, do mesmo modo que as considerações de Beatriz Sarlo sobre a condição pós-moderna na Argentina, em Cenas da vida pós-moderna, não se encerram e não concernem apenas à Argentina.

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Uma outra contribuição trazida pelos estudos culturais é o descentramento da fi gura do autor diante do leitor. Nesse sentido, o leitor passa a endossar o texto também como seu autor, uma vez que, sem a sua leitura não há produção de sentido e o texto torna-se, apenas, uma reunião de páginas. No mesmo movimento, o autor, também, atua como leitor na cena da escritura, pois a escrita envolve a leitura, já que não é possível falar sem acionar outras leituras e uma comunidade de outros autores, conforme Michel Foucault sinaliza em O que é um autor?

Destituído do estigma de decodifi cador de textos, o leitor passa a ser considerado um produtor de sentidos e a sua leitura liberta-se da ânsia de seguir padrões cristalizados e alcançar a “melhor” interpretação. É desse modo que, a partir dessa reviravolta nos estudos literários, a interpretação passa a ser vista como algo “pessoal e intransferível”, como Silviano Santiago subintitula o seu texto “Singular e anônimo”, em Nas malhas da letra, subtítulo a partir do qual indica que a leitura – ele refere-se, em especial, à de poesia – não deve ser transferida como a mais adequada a outros leitores, nem por esses apropriada.

“‘Fica difícil fazer literatura tendo Gil como leitor’ – comecemos a ler um trecho no fi nal da Correspondência completa, longo poema-carta de Júlia, endereçado a ‘My dear’.

Dizendo que é difícil fazer literatura para Gil, o poema nos diz que ele não existe para um leitor de nome próprio. O leitor, quando nomeado poeticamente, é anônimo, é aquele a quem realmente foi endereçado o poema: ‘My dear’ – hipócrita, semelhante e irmão. No poema citado, o leitor não tem e não pode ter nome próprio. O leitor se dá nome, isto é, personaliza a relação poema-leitor, quando ele próprio, leitor, se alça ao nível da produção dita pública (papo, artigo, livro, sala de aula, conferência etc.), nomeando a si como tal, assinando, responsabilizando-se. Quanto da assinatura do poeta não se apega na assinatura do leitor (crítico, professor, exegeta etc.).

[...] [...] Em didática tradicional, o que se pede – não tenhamos dúvida – é o endosso do

aluno à assinatura oral do professor. A didática moderna é apenas mais ilusória, incorrendo na falácia do coletivo, ao acreditar que se pode fazer uma leitura com a fi ta durex que emenda as impressões mais acertadas (de que ponto de vista?) e as mais díspares dos alunos.

Nem um único nem todos. Qualquer, desde que enfrente as exigências: singular e anônimo. [...]”

(SANTIAGO, 2002, p. 65, 6) Sendo pessoal e intransferível, o leitor de poesia não pode portanto, limitar-se a leituras

já realizadas sobre um determinado poema. Sobre a concepção de leitura de poesia, Silviano Santiago forja duas imagens, a saber, a do guardião e a de vestal, ou seja, para o autor o leitor não deve ser dogmático, nem cético em sua leitura. Para falar sobre estas posturas diante do texto, Santiago prefi gura duas imagens. A primeira, representada por Mary, seria o leitor que se comporta como um “vestal”, isto é, um guardião do poema, cujo sentido deve ser resguardo e é inatingível. A segunda é o detetive, representado por Gil, incumbido da missão de desvendar os poemas, buscando pistas no autor, e desconsiderando, por vezes, o papel do leitor no processo de produção de sentido.

“Gil quer desvendar o poema a partir do desejo-do-outro, vicária e parasitariamente, e não compreendê-lo a partir do seu próprio desejo. Gosta de acumular sem gastar.

Gil é o leitor medroso de se afi rmar, de quebrar a barreira que interdita o outro, de transgredi-la prazerosamente em favor de uma comunhão/combustão. Tem medo de avançar como alteridade que separa o sujeito do objeto, guardando a distância dita objetiva. Esquece-se de que, no ler, busca-se exatamente a maneira de se identifi car com o outro, guardando no entanto os próprios sentimentos, a individualidade, a intimidade.

[...]

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Estudos Literários

Já Mary toma o hermetismo ao pé da letra: o poema é indevassável ao leitor como uma doutrina esotérica. É preciso se iniciar diante do que, por mais que nos adentremos, não perde a condição de enigma a desafi ar infi nitamente a curiosidade do homem. Como Gil, Mary está certa no princípio (o poema certamente coloca exigências para os que dele querem fruir), mas errada na maneira como generaliza tal princípio, como que mitifi cando o que existe de literário no poema (mas não só de literário vive um poema, poderia

lhe dizer um Gil mais lúcido.). Assim sendo, o poema só pode ser para ela “literatura pura”: ‘me lê toda como literatura pura’, diz o poema.

Por isso é que Mary “não entende as referências diretas”. São estas que rompem o processo de mitifi cação do literário pelo literário, rompem o círculo vicioso, corroendo-o, instaurando a possibilidade, na leitura, de uma ‘comunhão’ [...].”

(SANTIAGO, 2002, p. 69, 71) Salientamos que a leitura não deve ser considerada, no entanto, um jogo de vale-tudo.

A interpretação tem um caráter subjetivo, mas devemos, enquanto professores de literatura, identifi car desvios muito acentuados do sentido do texto lido. Pois sabemos que um texto tem diversas signifi cações, afi nal, se assim não fosse, uma narrativa escrita no século XVIII não teria interlocutores em outras épocas e, através deles, não poderiam ser atualizadas. O que enfatizamos, entretanto, são as limitações que o estabelecimento de um único modo de leitura ou uma única forma de interpretação pode causar no leitor.

Um outro crítico latino-americano, o argentino Ricardo Piglia falou, em entrevista com Mônica López Ocón, sobre o caráter subjetivo da leitura e o deslocamento da noção de intenção ou mesmo leitura “melhor”. Ao ser perguntado sobre as leituras feitas sobre ele e seus livros e as possíveis lacunas nessas interpretações, o escritor responde:

“Como eu gostaria que meus livros fossem lidos? Tal qual eles são lidos. Nada mais que isso. Por que o escritor teria que intervir para afi rmar ou retifi car o que se diz sobre sua obra? Cada um pode ler o que quiser num texto. Há bastante repressão na sociedade. Claro que existem estereótipos, leituras cristalizadas que passam de um crítico a outro: poderíamos pensar que essa é a leitura de uma época. Um escritor não tem nada a dizer sobre isso. Depois que alguém escreveu um livro, o que mais pode dizer sobre ele? Na realidade, tudo o que pode dizer é o que escreve no próximo livro.” (PIGLIA, 1994, p. 67)

Ao tratarem sobre o lugar do leitor na produção de sentidos e a necessidade de dar a voz ao outro, os escritores latino-americanos enfocados parecem sinalizar para a importância de ampliar o espaço de discussão para outras vozes. Incluem-se, entre essas, a de autores que sempre estiveram fora do retrato e críticos que, leitores de teóricos de outras nações, demandam seus espaços na cena crítica cultural contemporânea, como intérpretes locais e globais.

O Cânone

Durante todo este tempo, alguns nomes foram lançados neste material sem que se questionasse o porquê deles estarem aqui em detrimento de tantos outros. A resposta é simples: eles compõem o acervo de escritores ou obras nós escolhemos (às vezes até inconscientemente) devido ao fato deles fazerem parte do nosso repertório de estudo, de vida. É claro que cada um tem um repertório variado, por isso a variedade de vozes que aparecem durante a nossa escrita que cita outros textos de outros autores que, por sua vez, citam tantos outros autores. Ao longo da vida, nos deparamos com obras que são tidas como sendo obras clássicas. Mas, o que seria um clássico? De onde vem essa palavra?

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O termo clássico surgiu derivado do adjetivo latino classicus, que indicava o cidadão pertencente às classes mais elevadas de Roma. No século II d.C. um certo Aulo Gelio (Noctes Atticae) utilizou-o para designar o escritor que por suas qualidades literárias poderia ser considerado modelar em seu ofício: “Classicus scriptor, non proletarius”. Durante o Renascimento, o termo clássico reapareceria, seja em textos latinos, seja nas línguas vernáculas, referindo-se tanto a autores greco-latinos quanto a autores modernos da própria época, considerados modelos de linguagem literária na língua vernácula. No século XVIII - o termo se estenderia aos autores que aceitavam os cânones da retórica greco-latina: ordem - clareza - medida - equilíbrio - decoro - harmonia e bom gosto. Tornou-se, pois, a base de uma estética essencialmente normativa. Assim, clássico, indicando modelo exemplar, cristalizou-se como tradição, como cânone gramatical e semântico, como relicário do idioma e como um conjunto de regras imutáveis, isto é, universais e atemporais. No plano da mensagem, o que valia para caracterizar um clássico era a sua dimensão edifi cante, seus componentes morais e a sua capacidade de apresentar as paixões humanas de forma decorosa.

No século XIX, a grande rebelião romântica começou a destruir a rigidez conservadora que envolvia a idéia de uma obra clássica. Victor Hugo mandou as regras às favas, abrindo um caminho mais liberto para a criação literária. Contudo, foram as vanguardas das primeiras décadas do século XX - especialmente Futurismo e Dadaismo - que levaram a ruptura com o classicismo às ultimas conseqüências, propondo, a exemplo de Marinetti, a destruição de bibliotecas, museus e tudo aquilo que representasse o “peso vetusto da tradição”.

Passado o furor das vanguardas, o que fi cou? No plano do senso comum, clássico, hoje, indica uma obra artística superior, defi nitiva e que, por seus vários elementos estético-ideológicos, aproxima-se daquilo que (de forma mais ou menos nebulosa) chamaríamos de ‘perfeição’. Porém esta obra não tem mais o sentido normativo que possuía no passado já que sua beleza lhe é irredutivelmente própria. Verdade que, nas escolas, a reverência exagerada aos clássicos - sobretudo aos da Antigüidade - veio até a década de 1960, a ponto de muitos de nós, professores, termos sido torturados, nas aulas de língua portuguesa, com a análise sintática de Os Lusíadas. As sucessivas mudanças culturais, ocorridas no Ocidente, especialmente a partir dos anos de 1960, quebraram toda e qualquer idéia de obra modelar e instauraram um conceito mais amplo e fl exível do que seria um clássico.

Esquematicamente poderíamos apontar alguns traços defi nidores do que hoje se considera um texto clássico:

1. São obras que ultrapassam o seu tempo, persistindo de alguma maneira na memória coletiva e sendo atualizada por sucessivas leituras, no transcurso da história.

2. Apresentam paixões humanas de maneira intensa, original e múltipla. São paixões universais (ou pelo menos “ocidentais”) e têm um grau de maior ou menor fl exibilidade em relação à historicidade concreta.

3. São obras que registram e simultaneamente inventam a complexidade de seu tempo. De maneira explícita ou implícita desvelam a historicidade concreta, as idéias e os sentimentos de uma época determinada. Há uma tendência geral: quanto mais explícita for a revelação histórica, menor o resultado estético. Na verdade, o espírito da época deve estar ‘introjetado’ na experiência dos indivíduos.

4. São obras que criam formas de expressão inusitadas, originais e de grande repercussão na própria história literária. Há clássicos que interessam em especial (ou talvez unicamente) ao mundo literário, como, por exemplo, o Ulisses, de Joyce.

5. São obras de reconhecido valor histórico ou documental, mesmo não alcançando a universalidade inconteste. Nesta linha situam-se aquelas obras que são clássicas apenas na dimensão da história literária de um país, como, por exemplo, a obra de José de Alencar, ou apenas de uma região, como por exemplo as obras de Cyro Martins ou Aureliano de Figueiredo Pinto.

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6. Talvez a característica fundamental de uma obra clássica seja a sua inesgotabilidade. Ou como diz Calvino: “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”.

7. Um clássico é fundamental também pelo efeito que defl agra na consciência do leitor. Sob esta ótica, devemos considerar que ele é, simultaneamente:

• Forma única de conhecimento – transmite paixões humanas oriundas de um patrimônio universal (que é a experiência do homem);

• Utilização da linguagem de uma maneira exemplar, original e inesperada; • Um conjunto de revelações, idéias e sentimentos que têm a propriedade de durar na

memória mais do que outras manifestações artísticas (música, cinema, etc.) Estas podem ter (e geralmente têm) um impacto maior na hora da fruição, mas seu prolongamento emotivo – a sua duração - é mais breve e inconsistente do que o proporcionado pela grande obra literária.

Um não contra a morte. Por perdurar, a obra clássica ultrapassa o tempo e a fi nitude humana. De uma certa forma, é um protesto contra o “sem sentido” da vida.

Bom, vimos as defi nições, até mesmo os adjetivos que se atrelam ao universo dos clássicos. Vimos, ainda, um tipo de fórmula que delimita um obra como clássica. Mas em nenhum momento foi colocada a questão da nossa escolha, do nosso arbítrio, das refl exões que nos levam a amar ou a odiar uma obra, mesmo que esta seja um clássico ou uma obra desconhecida.

Eis uma tarefa para o escritor Ítalo Calvino. Aprecie alguns trechos (trouxemos apenas as premissas sem os comentários) da obra do autor!

Por que ler os clássicos

Ítalo Calvino - texto de 1981

1. Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: “Estou relendo...” e nunca “estou lendo...”.

2. Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-los.

3. Os clássicos são livros que exercem uma infl uência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual.

4. Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira. 5. Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura. 6. Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer7. Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas

das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes).

8. Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele para longe.

9. Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos.

10. Chama-se de clássico um livro que se confi gura como equivalente do universo, à semelhança dos antigos talismãs.

11. O “seu” clássico é aquele que não pode ser-lhe indiferente e que serve para defi nir a você próprio em relação e talvez em contraste com ele.

12. Um clássico é um livro que vem antes de outros clássicos; mas quem leu antes os outros e depois lê aquele, reconhece logo o seu lugar na genealogia.

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13. É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo.

14. É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível.

O escritor deixa seu leitor livre para se posicionar, falar, escolher, decidir o que fará parte da estante designada aos seus clássicos. É uma postura extremamente aberta e conciliadora: não impõe hegemonicamente seu ponto de vista, ao perceber a quantidade de obras em contato com o leitor.

E Calvino fecha seu texto dizendo:

Agora deveria reescrever todo o artigo, deixando bem claro que os clássicos servem para entender quem somos e aonde chegamos(...)

Depois, deveria reescrevê-lo ainda mais uma vez para que não se pense que os clássicos devem ser lidos porque “servem” para qualquer coisa. A única razão que se pode apresentar é que ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos.

E se alguém objetar que não vale a pena tanto esforço, citarei Cioran (não um clássico, pelo menos por enquanto, mas um pensador contemporâneo que só agora começa a ser traduzido na Itália): “enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava aprendendo uma ária com a fl auta. ‘Para que lhe servirá?’, perguntaram-lhe. ‘Para aprender esta ária antes de morrer’”.

Para ler o texto na íntegra, consulte o site:http://www.lumiarte.com/luardeoutono/calvino.html

Revendo a noção de “literatura”

A seguir, teremos um texto fazendo um breve panorama sobre o que se convencionou no Brasil como sendo Literatura Marginal. O leitura de obras neste texto, no entanto, vai até o início dos anos 80.

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O que fi cou da poesia marginal?

Não só a política está interessada em rever os anos do sufoco. A literatura também quer saber se valeu a pena a criação poética dos anos 70.

Olha a passarinhadaOnde?Passou.

CHARLES

A “literatura marginal” escrita nos anos 70 está balizada por duas mortes: a de Torquato Neto (“e vivo tranqüilamente todas as horas do fi m”), que marca o melancólico início, e a de Ana Cristina César (“Estou muito concentrada no meu pânico”), que chama a atenção para o gran fi nale de sua geração.

Avaliada por muitos como o surto da biotônica vitalidade contra a ditadura militar instalada no País, seus poetas praticavam quase sempre um ritual mórbido em torno dos grandes mortos da contracultura - Jimi Hendrix e Janis Joplin, entre outros - e uma intensa (auto) fl agelação, presente desde o confessado uso de drogas até o desprezo paradoxal pela cultura, sobretudo a literária.

A poesia que resultou dos anos loucos é o retrato bem-acabado dessa inanição intelectual. Argumenta-se, hoje, que a repressão não permitiria coisa diferente. Trata-se, contudo, de uma idéia primária: a poesia de Garcia Lorca seria legível em nossos dias, caso sucumbisse em qualidade à ditadura franquista, e detonasse poemas-piadas e impressões instantâneas, como as que compuseram o lugar-comum da poesia marginal? Qualquer ditadura fi caria agradecida com o nível de contestação dos livrinhos vendidos de mão em mão, de reduzidíssimo poder de fogo.

A prática poética da geração 70, além disso, é um elogio ao anacronismo: a maioria dos poemas, seja pela técnica, seja pelo tratamento dispensado ao tema, confi gura uma imitação detalhada da poesia que se escreveu nos primeiros anos do Modernismo brasileiro (1920 a 1930). Os poemas de Oswald de Andrade, por exemplo, podem ser facilmente confundidos com as anotações dos poetas marginais. Chacal, em “Papo de Índio”, chega ao extremo de repetir a fórmula da Antropofagia:

veiu uns ômi de saia pretacheiu di caixinha e pó brancoqui eles disserum qui chamava açucri.aí eles falarum e nós fechamu a cara.depois eles arrepetirum e nós fechamu ocorpo. aí eles insistirum e nós comeu eles. Quando Heloisa Buarque de Hollanda publicou Impressões de Viagem (1980),

não desconfi ava que seria eleita madrinha dos marginais. Era uma tarefa espinhosa. Deve ser por tudo isso que, retornando de outra viagem, impressionou-se e pediu mais competência à nova geração. Seu livro é uma leitura bem articulada do engajamento político da década de 60 e da dispersão da geração 70, dois momentos que estuda com igual simpatia. É acusado freqüentemente de ser provinciano, por se limitar aos grupos

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do Rio de Janeiro. Envolvendo-se com teorias que pertencem quase sempre a Benjamin e a Lukács, Heloisa desloca a discussão acerca do literário para o plano da produção intelectual, tentando desfazer o suposto equívoco entre oposição e opção alternativa. Ao que parece, deu preferência a um projeto mais globalizante: “O texto, a produção do livro e a própria vida desburocratizada dos novos poetas sugerem, de maneiras muito parecidas, o descompromisso como resposta à ordem do sistema. “No entanto, torna-se difi cílimo contemplar “força subversiva” na prática declarada da ignorância: a defesa do caráter da momentaneidade, da experiência artesanal e do binômio arte/vida pode muito bem condenar uma literatura, ainda que seus “escritores” não se incomodem com críticas à qualidade literária. Nem poderiam: o que eles fi zeram foi causar tédio pela vereda fl orida da falta de intenções. O sucesso de suas teses, no entanto, abriu campo para outros estudos, como o do melhor documentado (mas preso aos rigores acadêmicos) trabalho de Carlos Alberto Pereira, Retrato de Época (1981), amplamente centrado na poesia e com curiosos depoimentos do way of life marginal.

Porém, a simpatia generalizada começou pouco a pouco a declinar, e muitas vezes pelas palavras de antigos companheiros de viagem. Paulo Leminski, cujo depoimento é insuspeito, participou aqui e ali com alguns poemas típicos, mas defi ne com rigor a produção intelectual da época. Em entrevista ao Correio das Artes (8-7-84), de João Pessoa, declarou: “A chamada poesia marginal dos anos 70 é uma poesia, em grande parte ignorante, infanto-juvenil, tecnicamente inferior aos seus antecessores.” Incultos, como faz supor Leminski, leram rápida e confusamente alguma coisa de Nietzsche e os almanaques contraculturais de Herbert Marcuse e Wilhelm Reich, salpicando toda essa salada sexual de zen-budismo e, entenda quem puder, misticismo coloquial.

Se dependesse dos próprios malditos, o que escreveram jamais seria considerado poesia. Assim pensa Cacaso de seu livro Segunda Classe: “É uma coisa inteiramente informal, é um negócio meio repentista assim. A gente estava era curtindo, a verdade é essa.” Francisco Alvim, por sua vez, tinha um desprezo consciente pelo que escrevia. Acerca de seu livro Passatempo, disse: “Ele se escreveu. Não me interessa inclusive a qualidade dele; eu acho que é uma resposta, é uma coisa que eu escrevi na minha vida.” É igualmente curioso observar uma vertente que gostava de agredir o conhecimento livresco em troca de um outro que, como se supunha, aprendia-se nas ruas. Escreveu Charles: “A sabedoria tá mais na rua que/ nos livros em geral/ (essa é a batida mas batendo é que faz render)/ bom é falar bobage e jogar pelada/ um exercício contra a genialidade.” Eles conseguiram! O próprio Charles, por exemplo, escreveu poemas que não poderiam ser mais lúcidos e que retratam bem o que acontecia na rua:

HORA ILUMINADAmastigando uma pêrade boberaàs três em ponto.

Por mais que o poema “Suspiro”, de Francisco Alvim, se resuma ao verso “A vida é um adeuzinho”, quem será capaz de decorá-lo? Por mais que Chacal insista em procurar “na beira de um calipso neurótico / um orfeu fudido”, ele só encontrará algo bem pior, ou seja, um poeta que escreveu versos como “doce dulce dá-se dócil”.

Naquela década, contudo, a poesia estava sendo salva pela estréia salutar de Adélia Prado, pela laboriosa anarquia de Roberto Piva, e ainda por Antônio Carlos Sacchin e Armando Freitas Filho. São nomes pinçados de um profundíssimo caldeirão de poetas que entornou bons e maus versos. José Paulo Paes, que cultivou

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o epigrama irônico, é uma bela demonstração de como a síntese não é necessariamente a indigência poética de quem pensa que hai-cai é o garrancho abandonado nas paredes dos mictórios. Num levantamento sumário, o ex-poeta engajado Moacyr Félix arrolou um número monstruoso de poetas estrelados na década de 70, que hoje ninguém sabe por onde andam e o que escrevem. É preciso citar,

ainda, alguns nomes que não permitiram fazer da década um imenso deserto cujas areias terminam onde começam as de Ipanema. Do oásis plantado por alguns bons livros, que dissiparam as fumaças das dunas baratas, ressalte-se que os anos 70 serviram para consolidar a literatura escrita por mulheres como Olga Savary, Miriam Fraga, Hilda Hilst e Laís Correa de Araújo, entre outras.

O poema mais signifi cativo dos anos 70 não foi escrito por nenhum poeta do desbunde ou outro qualquer que tenha perdido o bonde, mas por um poeta exilado. Com Poema Sujo (1977), Ferreira Gullar elevou a um só tempo a poesia engajada a poesia memorialística e as técnicas mais modernas do verso.

Hoje, quase todos os poetas marginais já têm obra completa publicada - comparecendo com uma poesia extremamente datada. Embora vulgar, o argumento de que o “vazio cultural” dos anos 70 causou a aparição de uma poesia oca precisa ser considerado, ao menos por defi nir uma produção já envelhecida. A melhor contribuição daqueles poetas depositou-se nas letras de música popular e em roteiros para fi lmes ou programas de televisão, formas que escapam à pequenez das edições mimeografadas, embora caiam no circuito outrora execrado. Waly Salomão é exemplo de escritor que adaptou-se bem às letras de música, bastante superior à sua prosa. De resto, sua formação cultural é bem mais sofi sticada do que a de qualquer outro brincalhão do circo das letras.

Ninguém vive bem em tempos políticos difíceis, ainda mais na companhia de poemas intragáveis. Há coisas constrangedoras como esta:

Tenho pena dos pobres, dos aleijados, dosvelhos Tenho pena do louco Neco VicenteE da Lua sozinha no céuque, embora assemelhe-se aos poetas da lavramarginal, pertence a Jorge de Lima - com uma ressalva, porém: quando a escreveu, eletinha apenas 9 anos de idade. Freud afi rmavaque toda criança é um perverso polimorfo – edeve estar certo, pois pelo menos em poesia asinfâncias se confundem.

(Felipe Fortuna, poeta e ensaísta. Ainda não tem geração.) Texto encontrado no Jornal do Brasil, Caderno B/Especial, 07 de setembro de 1986.

Este breve panorama sobre a literatura marginal no Brasil nos auxilia a continuar pensando no movimento de abertura para outras ramifi cações teóricas que surgiam constantemente nas comunidades letradas do país e de algumas partes do mundo. O movimento da poesia e da literatura marginal sonda possibilidades narrativas que nos anos 80 promoveram um boom da memória, que tem como marco o relato de Gabeira em O que

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é isso companheiro. A partir de então, surgem obras pautadas na memória e na experiência. Discursos de classes tidos à margem do sistema literário, aparecerão com maior força desestabilizando ainda mais a instância sacra em que a literatura se encontrava.

A literatura contemporânea conta com vozes de escritores como Marcelino Freire, Ferréz, Paulo Lins, MV Bill, Celso Athayde, que algumas vezes narram a partir de um determinado local que habitaram ou habitam – a favela, como no caso de Ferréz, Bill, Athayde – ou se colocam como militantes da causa, inserindo-se no espaço da memória que narra também a experiência do outro, como sugere Silviano em sua explanação sobre o narrador pós-moderno.

TOTONHA(Marcelino Freire)

Capim sabe ler? Escrever? Já viu cachorro letrado, cientifi co? Já viu juízo de valor? Em quê? Não quero aprender, dispenso.

Deixa pra gente que é moço. Gente que tem ainda vontade de doutorar. De falar bonito. De salvar vida de pobre. O pobre só precisa ser pobre. E mais nada precisa. Deixa eu, aqui no meu canto. Na boca do fogão é que fi co. Tô bem. Já viu fogo ir atrás de sílaba?

O governo me dê o dinheiro da feira. O dente o presidente. E o vale-doce e o vale-lingüiça. Quero ser bem ignorante. Aprender com o vento, tá me entendendo? Demente como um mosquito. Na bosta ali, da cabrita. Que ninguém respeita mais a bosta do que eu. A química.

Tem coisa mais bonita? A geografi a do rio mes¬mo seco, mesmo esculhambado? O risco da poeira? O pó da água? Hein? O que eu vou fazer com essa cartilha? Número?

Só para o prefeito dizer que valeu a pena o esforço? Tem esforço mais esforço que o meu esforço? Todo dia, há tanto tempo, nesse esquecimento. Acordando com o sol tem melhor bê-á-bá? Assoletrar se a chuva vem? Se não vem?

Morrer já sei. Comer, também. De vez em quando, ir atrás de preá, caruá. Roer osso de tatu. Adivinhar quando a coceira é só uma coceira, não uma doença. Tenha santa paciência!

Será que eu preciso mesmo garranchear meu nome? Desenhar só para a mocinha aí fi car contente? Dona professora, que valia tem meu nome numa folha de papel, me diga honestamente. Coisa mais sem vida é um nome assim, sem gente. Quem está atrás do nome não conta?

No papel, sou menos ninguém do que aqui, no Vale do Jequitinhonha. Pelo menos aqui todo mundo me conhece. Grita, apelida. Vem me chamar de Totonha. Quase não mudo de roupa, quase não mudo de lugar. Sou sempre a mesma pessoa. Que voa.

Para mim, a melhor sabedoria é olhar na cara da pessoa. No focinho de quem for. Não tenho medo de linguagem superior. Deus que me ensinou. Só quero que me deixem sozinha. Eu e a minha língua, sim, que só passarinho entende, entende?

Não preciso ler, moça. A mocinha que aprenda. O prefeito que aprenda. O doutor. O presidente é que precisa saber ler o que assinou. Eu é que não vou baixar a minha cabeça para escrever.

Ah, não vou.

FREIRE, Marcelino. Contos negreiros.

Esse tipo de literatura, pautada em relatos de classes que apresentam a precariedade em que vivem, denotam a singularidade de cada situação e sua potência, como no caso de Totonha, que se nega a entrar no vicioso círculo social ilustrado e burocrático que

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maquia outras necessidades dos cidadãos. Essa literatura não só ratifi ca a possibilidade e potência de existência, muito mais que de resistência de um grupo que inspira novas criações e teorias. No mesmo rastro que Totonha, encontramos o fi lme Estamira, a narrativa de Cidade de Deus, os romances de Ferréz – Ninguém é inocente em São Paulo; Capão Pecado e tantos outros manifestos de movimentos que ocorrem cotidianamente. Esses movimentos denunciam não apenas a violência e a desigualdade

social, mas a intensidade dos discursos em que vivem, seu poder de grupo, de corporação. Sua potência de também poder escolher o que quer ser.

A literatura contemporânea é uma confi rmação de que a vida não basta, por isso tantas insinuações e movimentos contra a maré. Por isso, também, narrar: para legar ao literário o rastro da existência de cada um que a cada dia, no imbricado da literatura e da vida, vem sendo lançado para dentro de universos irremediáveis. Boa leitura sempre! E boa viagem!

Para saber mais, visite:http://ferrez.blogspot.com/http://www.eraodito.blogspot.com/http://www.vivafavela.com.br/

AtividadesComplementares

• Vimos muitas nomenclaturas e teorias durante nosso curso e agora gostaríamos que você traçasse um seguimento acerca desses assuntos na sua vida. Tome como ponto de partida a noção que você tinha do Literário antes do curso e como você pensa esse mesmo universo artístico agora.

• Relacione os conceitos aristotélicos de mimesis e catarse aos textos e teorias colocados em cena durante o curso, que enfoquem, prioritariamente, vertentes discutidas sobre os Estudos Culturais, para refl etirmos como essas instâncias literárias, atreladas à refl exão humana por séculos, pode se confi gurar no estudo e interpretação de textos contemporâneos.

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Glossário 31

Alegoria- discurso que faz entender outro, numa linguagem que oculta a outra. Podemos considerar alegoriaa toda concretização, por meio de imagens, fi guras e pessoas, de idéias, qualidades ou entidades abstratas. O aspecto material funcionaria como disfarce, dissimulação, ou revestimento, do aspecto moral, ideal ou fi ccional.

Alusão – toda referência, direta ou indireta, propositada ou casual, a uma obra, personagem, situação, etc., pertencente ao mundo literário, artístico, mitológico, etc.

Ambigüidade – que apresenta duas faces, dois ou mais sentidos. Plurissignifi cação.

Catarse – efeito promovido pela liberação de emoções através da simpatia ou medo, como, por exemplo, por ocasião de uma performance teatral; próprio do drama.

Confl ito – qualquer componente de uma história (personagens, fatos, ambiente, idéias, emoções) que se opõe a outro, criando uma tensão que organiza os fatos da história e prende a atenção do leitor.32

Crise – do grego, decisão, julgamento; momento assinalado que numa peça de teatro ou narrativa se processa o encontro decisivo das forças em confl ito, que provoca as opções defi nitivas e o epílogo irremediável.

Drama- essencial e historicamente, a palavra vincula-se ao teatro, isto é,a arte da representação.33

Épica - palavra, narrativa, poema, recitação. Diz respeito à epopéia, e aos heróis.

Fanopéia – consiste em “projetar o objeto (fi xo ou em movimento) na imaginação visual”

Ficção – sinônimo de imaginação e invenção, encerra o próprio núcleo do conceito de Literatura: Literatura é fi cção por meio da palavra escrita. Entretanto, o vocábulo se emprega, costumeira e restritivamente, para designar a prosa literária em geral, ou seja, a prosa de fi cção.

Logopéia – criação de palavras. Designa, de modo geral, a arte de combinar as palavras a fi m de sugerir a idéia de beleza pela forma e pelo conteúdo.

Melopéia – consiste em “produzir correlações emocionais por intermédio do som e do ritmo da fala”.

Metáfora – transporte, translação; consiste no transportar para uma coisa o nome de outra, ou do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou da espécie de uma para a espécie de outra, ou por analogia.34

32 - GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, [S/d].p. 11.33 - Para signifi cado mais abrangente do termo, consultar páginas 161 a 163 do Dicionário de Termos Literários. 34 - Ibidem. p 323 a 333

31 - MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974. Utilizado para a maior parte dos os termos extraídos deste glossário.

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Mimese – imitação.35

Rubrica36 - sinal indicativo dos movimentos e gestos dos atores, consignado nos respectivos papéis.

Pantomima37 – arte ou ato de expressão por meio de gestos.

Paronomásia- do grego paronomasia; para, “próximo de”; onomasía, denominação.Designa uma figura de linguagem que consiste no emprego de vocábulos semelhantes mas de significados opostos.

Simbolismo – no sentido genérico, o termo encontra-se ligado à símbolos e às atitudes simbolistas. O movimento literário e cultural datado do fi nal do século XIX e início do século XX diz respeito a uma negação da arte representada pelo Realismo, e a retomada de valores do Romantismo, com acréscimo de novos dados.38

Símile – coisa semelhante; fi gura de pensamento, até certo ponto sinônimo de comparação, o símile dela se distingue na medida em que se caracteriza pelo confronto de dois seres ou coisas de natureza diferente, a fi m de ressaltar um deles.

35 - Ibidem. p. 335 a 338. 36 - HOLANDA, Aurélio.Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969. p.1072 37 - Op. Cit. p.892. 38 - Para maiores esclarecimentos, verifi car em Dicionário de Termos Literários, op.cit.

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Democratizando a Educação.www.ead.ftc.br

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