03-Etnoecologia e Direitos Dos Povos

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    Etnoecologia e direitos dos povos:elementos de uma nova ao indigenista

    Paul E. Little

    Relaes interculturais e intercientficasNos ltimos quinhentos anos, a sociedade dominante brasileira, em suaspocas colonial, imperial e republicana, elaborou mltiplas e contradit-rias formas de entender e se relacionar com a diversidade socioculturalrepresentada pelas sociedades indgenas. Nesse longo perodo, houve

    constante oscilao entre a desvalorizao quase total dessa diversidade,expressa atravs de guerras de conquista, escravizao e extermnio, e suasupervalorizao romntica, que caracteriza as sociedades indgenas comoexpresses de uma pureza natural no contaminada pela civilizao.

    Com o surgimento das cincias sociais, no fim do sculo xix eincio doxx, essa enorme diversidade sociocultural comeou a receberdocumentao etnogrfica, em estudos feitos por antroplogos, mis-sionrios e exploradores, implcita ou explicitamente fundamentados

    em uma ideologia de resgate que propunha que os mitos, lnguas eprticas das sociedades indgenas fossem registrados antes de seu totaldesaparecimento. No fim do sculo xx, houve uma mudana radicaldessa ideologia, particularmente na antropologia, com o reconhe-cimento e a denncia da existncia de formas de interculturalidadefundamentadas em relaes coloniais. Como conseqncia, foramrejeitados, ao menos no discurso acadmico, os artifcios de hegemoniaocidental e dominao nacional das sociedades indgenas.

    Uma dimenso pouco analisada e reconhecida da diferenciaosociocultural indgena tem sido a diferenciao ecolgica das sociedadesindgenas, isto , as distintas formas de inter-relao entre cada umadessas sociedades e seus respectivos ambientes naturais e sociais. Se a

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    relao entre culturas distintas produz formas de interculturalidade, arelao entre sistemas de adaptao diferentes produz formas de inter-cientificidade. A trajetria das relaes de intercientificidade entre asociedade dominante brasileira e as sociedades indgenas semelhantes de interculturalidade, mas tem alguns elementos prprios. Por partedos invasores europeus, por exemplo, houve negao generalizada davalidade e da utilidade dos sistemas de adaptao indgena, e a superio-ridade do sistema europeu foi considerada inquestionvel. Mas, nos pri-meiros sculos de contato entre os europeus e as sociedades indgenas,deram-se no plano prtico importantes intercmbios de conhecimentoe tecnologia em ambas as direes, de tal magnitude que a prpriasobrevivncia dos europeus dependeu, em parte, do uso de alimentos,

    medicinas e tecnologias indgenas (Crosby 1972; Dean 1995).Na atualidade, ainda existe uma bifurcao nas formas de relacio-

    namento intercientfico entre a sociedade dominante brasileira e associedades indgenas. Na perspectiva das cincias naturais e de seuspraticantes agrnomos, engenheiros florestais, mdicos etc. , o dis-curso da superioridade da cincia ocidental continua predominando,e ele que fundamenta as prticas de extenso dos tcnicos ligados aombito tanto governamental quanto missionrio. Ao mesmo tempo,

    surgiu uma variante ecolgica de romanticismo que postula que associedades indgenas representam um exemplo vivo de harmonia coma natureza, o que, discursivamente, transformou-as em uma espciede selvagem ecologicamente nobre (Redford 1990). Esse romanti-cismo problemtico porque prope novamente uma naturalizaodas sociedades indgenas, grosseira simplificao que dificulta a com-preenso das complexas e s vezes contraditrias relaes ecolgicasmantidas pelas diferentes sociedades indgenas. Um guia melhor so

    os entendimentos procedentes dos estudos etnogrficos com baseem trabalhos com indgenas reais, e no idealizados ou hiper-reais(Ramos 1998).

    A etnoecologia e o dilogo intercientficoSer com base nesse contexto que esboarei elementos que podemformar uma ao indigenista que trabalhe diretamente a intercien-tificidade. Antes de entrar nos detalhes dessa proposta, alguns escla-recimentos conceituais so necessrios. O eixo metodolgico dessa novaao reside na noo de etnoecologia, que pode ser definida como oestudo etnogrfico e comparativo dos sistemas especficos que um grupohumano utiliza na interao com seu meio biofsico e social.

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    A etnoecologia parte do campo maior de estudos conhecidocomo etnometodologia, que prope a suspenso dos valores e (pr-)conceitos do pesquisador para a obteno de uma compreenso profun-da das lgicas e estruturas internas de determinada sociedade (Coulon1995). primeira vista, esse um dos princpios bsicos da etnografiaclssica tal como desenvolvida por Franz Boas e Bronislaw Malinowskie seus respectivos discpulos. Ao se aplicar a etnometodologia cincia,criando o campo da etnocincia, emerge, contudo, outro conjuntode problemas. Ao aceitar, metodolgica e epistemologicamente, ospostulados de uma outra cincia, a etnocincia questiona os prpriosfundamentos da cincia ocidental, algo que nem Boas nem Malinowskiestavam dispostos a fazer. Embora os primeiros estudos etnocientficos

    datem da dcada de 1950, a etnocincia como campo de estudos chegou maturidade somente na dcada de 1980, e nos anos subseqentesfloresceu em mltiplas direes: etnobotnica, etnozoologia, etnoictio-logia, etnomedicina, etnopsiquiatria e etnoecologia.

    Nosso interesse aqui pela subrea da etnoecologia, que focaliza suaateno investigativa nos conhecimentos ambientais do grupo, nas estruturasprodutivas, formas e freqncias de mobilidade, na cosmologia e nos ritos re-ligiosos que orientam o uso de conhecimentos e tecnologias (Nazarea 1999).

    Assim, a etnoecologia vai muito alm do simples inventrio de nomes nativosde plantas ou de prticas produtivas do grupo, j que procura entender suaadaptao como fundamentada emsistemas integrados, dentro de umalgica prpria de transmisso de conhecimento e aprendizagem.

    O locus principal dos estudos etnocientficos tem sido a antropo-logia. Por vrias razes, esses estudos privilegiaram at o momento ossistemas cientficos das sociedades indgenas. Primeira, as cincias ind-genas so extremamente sofisticadas e complexas, e como tal oferecem

    um novo universo para estudos em profundidade. Segunda, os povosindgenas que habitam as florestas tropicais oferecem grande acervo deconhecimentos sobre esses ecossistemas, ainda pouco conhecidos pelacincia ocidental e ligados ao interesse mundial por parte dos ambien-talistas. Terceira, o grande risco de que os conhecimentos ambientaisindgenas estejam em vias de desaparecimento, agravado pelas inmerasinvases sofridas pelas sociedades indgenas, o que s vezes pe emquesto sua prpria sobrevivncia como grupo.

    Nessa ltima razo encontramos um forte eco da antropologiade resgate praticada no incio do sculo xx, com a diferena de queagora o interesse no est limitado aos mitos ou s lnguas, incluindoos sistemas cientficos completos. inegvel que o imenso acervo de

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    conhecimentos e tecnologias das distintas sociedades indgenas tem altovalor para a cincia ocidental e para a humanidade com um todo, poiscontm modelos de manejo e gesto ambiental de ecossistemas comple-xos que duraram sculos, em uma prtica que hoje seria chamada dedesenvolvimento sustentvel. Por isso, um dos principais argumentosutilizados a favor do resgate desses conhecimentos o de que podemser incorporados ao acervo de conhecimentos cientficos ocidentais.O problema aqui, de novo, que essa incorporao representa umaapropriao unilateral dos conhecimentos e tecnologias indgenas porparte do Ocidente, muitas vezes acompanhada pela privatizao dosconhecimentos por parte de empresas biotecnolgicas ou farmacuticase dos governos dos pases do Norte.

    Nas dcadas recentes, muitas crticas foram feitas prtica da novaantropologia de resgate, principalmente a partir das perspectivas ps-coloniais e reflexivas. A alternativa proposta indica que a primeira preo-cupao dos pesquisadores deveria ser a sobrevivncia e a dignidade dasociedade indgena sob estudo, o que garantiria que seus sistemas deadaptao sobreviveriam junto com eles. Assim, a prtica de resgataros conhecimentos de uma sociedade sem tentar resgat-la da destrui-o no seria mais aceita como apropriada, tendo de ser acompanhada

    de posicionamentos e atividades comumente considerados polticas.Essas prticas produziram novas formas de advocacia por parte dosantroplogos, sendo a Declarao de Barbados de 1971 um dos docu-mentos fundantes dessa linha de pesquisa e ao (Paine 1985; Wright1988; Albert 1997). Nesse sentido, o atual desafio da etnocincia acolher os frutos dessa tradio para integr-los sua prtica, ao mesmotempo em que mantm seus padres de rigor cientfico.

    Qual seria o perfil dessa nova atividade intercientfica? Como

    lidar com a multiplicidade de cincias do contexto atual? Sem desva-lorizar a riqueza e a importncia de seus conhecimentos e tecnologiastradicionais, hoje as sociedades indgenas so cada vez mais con-frontadas com as exigncias da sociedade dominante brasileira e daeconomia mundial, e precisam de novos conhecimentos e tecnologiaspara sobreviver. Um indicador dessa situao (entre muitos outros)so as reivindicaes dos prprios indgenas ao Governo Federal.O subprograma Projetos Demonstrativos para Populaes Indgenas(pdpi), do programa ambiental ppg7, por exemplo, recebeu em suafase de elaborao um conjunto de reivindicaes das organizaesindgenas em torno de projetos e linhas de financiamento nas reas decomputao, mecnica, contabilidade, geoprocessamento e uma srie de

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    outras reas ocidentais. Tal pedido no representa uma negao deseus conhecimentos tradicionais, mas o reconhecimento de que outrosconhecimentos so necessrios para sua sobrevivncia no sculo xxi.

    Outro elemento da nova conjuntura informtica o fato de quea sociedade dominante brasileira se encontra em situao semelhante:outros conhecimentos alm dos cientficos ocidentais so necessrios paraque sobreviva. A atual crise ecolgica que agride o planeta em mltiplasvertentes perda de biodiversidade, desertificao, mudanas climticas,esgotamento dos estoques de recursos no renovveis, epidemias fora decontrole, desnutrio macia, contaminao do ar e da gua, crescimentoacelerado do buraco na camada de oznio mostra claramente que acincia ocidental, tal como aplicada na atualidade, tambm precisa de

    renovao e de novos insumos e, como mencionado, os conhecimentose tecnologias indgenas oferecem pistas para enfrentar essa crise.

    Tanto a cincia ocidental quanto as cincias indgenas precisam,portanto, ser renovadas para poderem confrontar os desafios ambientaisfeitos a todos. nesse contexto que proponho um verdadeiro dilogointercientfico, em vez da simples apropriao unilateral, seja por par-te das sociedades indgenas, seja por parte da sociedade dominantebrasileira. A procura de dilogo em um mbito caraterizado pelas

    polaridades de romanticismo e dominao no mnimo difcil, con-tudo justamente essa a possibilidade de estabelecer um verdadeirodilogo entre cincias que pode se tornar o pilar de uma nova aoindigenista no Brasil.

    Elementos de uma nova ao indigenistaPara avanar nessa direo, necessrio treinamento para ambos oslados e, com esse fim, proponho o desenvolvimento e a realizao de

    um conjunto de atividades em forma de cursos de aperfeioamento,oficinas e seminrios direcionados para distintos pblicos-alvo, pr-ticas que j mostraram alto grau de efetividade na rea ambiental(Little 2000).

    Um primeiro passo consiste na capacitao e sensibilizao detcnicos, cientistas naturais e sociais e funcionrios governamentais quetrabalham com as sociedades indgenas em torno de outras formas defazer cincia. O contedo da capacitao em etnoecologia consistirianas diversas reas do conhecimento etnocientfico: botnica, agricul-tura, engenharia florestal, farmacologia e outros. Alm do contedotcnico, esses treinamentos teriam uma dimenso prtica, uma vez queas informaes transmitidas seriam vinculadas s sociedades indgenas

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    e aos ecossistemas especficos com que essas pessoas trabalham.1 Entreos temas a serem tratados, podemos mencionar as ecocosmologias ouas distintas vises do mundo natural (rhem 1981); as formas de in-ter-relacionamento entre plantas, animais, espritos e humanos (Bale1993); os conhecimentos ambientais, prticas medicinais e tecnologiasadaptativas; e os mltiplos tipos de extrativismo que utilizam recursosrenovveis de uma maneira que leva em conta seus ciclos naturais dereproduo (Moran 1990). Os treinadores desse tipo de curso seriamexperts tanto etnocientficos quanto indgenas: curandeiros, xams,herbalistas, ancios.

    Um segundo passo diz respeito s tentativas de gerar novos conhe-cimentos e tecnologias hbridas, adaptadas s necessidades da nova

    conjuntura que confrontamos. Essa atividade vai muito alm da familia-ridade de conhecimentos de ambos lados e sua fuso mgica em umconhecimento novo e hbrido. Os estudos etnocientficos mostram queestamos diante de sistemas de conhecimento nos quais as informaesprecisam ser entendidas em um contexto maior. Um dilogo entre cin-cias, portanto, precisa de intermedirios ou brokers entre os diferentessistemas (Cleveland & Murray 1997). Os antroplogos e lderes indge-nas, com experincia em reas de conhecimento ocidental e indgena,

    so elementos cruciais desse processo. Uma renovada ao indigenistadeve facilitar esse tipo de encontro entre experts e promover experinciasprticas de experimentao e aplicao de novas tecnologias.

    H inmeras reas de conhecimento e tecnologia que poderiamser trabalhadas nesse tipo de encontro, incluindo algumas que j con-tam com resultados interessantes, como os sistemas agroflorestais nosquais as formas tradicionais de manejo ambiental (tanto indgenas quantode caboclos e ribeirinhos) e as prticas da cincia ocidental esto sendo

    mutuamente renovadas com a gerao de novos conhecimentos hbridos(DuBois et al. 1996). Algo semelhante acontece com o manejo davrzea e as variadas propostas para novas formas de explorao desserico ecossistema (McGrath et al. 1993; Goulding et al. 1996), assimcomo com os sistemas silvopastoris, o consrcio agrcola, o controlebiolgico de pragas e os novos tipos de extrativismo. Essas atividadesestabelecem um mbito propcio para a produo de conhecimentos e

    1 A sensibilizao representa uma atividade paralela que tenta instaurar a sus-penso de valores e lgicas necessrios para entender outro sistema cientficodesde dentro, sem subordin-lo s noes universalistas da cincia ocidentalou contamin-lo com noes romnticas.

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    tecnologias localmente efetivos e com possibilidades de multiplicao,representando os novos sistemas hbridos de adaptao e produoum subsdio bsico para qualquer programa de desenvolvimento ver-dadeiramente sustentvel.

    A dicotomia entre o universalismo da cincia ocidental e olocalismo das cincias indgenas permanece, contudo, um aspectoproblemtico dessa proposta de dilogo. Os estudos de etnocinciamostram como grupos indgenas aplicam seus conhecimentos a umambiente especfico: o seu ambiente. Isso no implica que esses conhe-cimentos no possam ter aplicaes vlidas em outros ambientes, massimplesmente que nunca houve pretenso de aplic-los universalmen-te. A cincia reducionista do Ocidente oposta. Reivindica que seus

    conhecimentos so universais, vlidos para quaisquer ambientes. Natentativa de reconciliar essas noes de universalismo e localismo, sonecessrias mudanas em ambos os tipos de cincia: a ocidental teriade reconhecer que seus conhecimentos precisam ser adaptados s exi-gncias de ambientes especficos e as indgenas, que seus conhecimentospodem ser aplicados para alm de seu ambiente restrito. Nesse sentido,o princpio bsico do conhecimento hbrido seria ecolgico: o contedode qualquer conhecimento dependeria parcialmente do lugar em que

    seria aplicado, porque teria de se adaptar s exigncias desse lugar es necessidades das pessoas que utilizaro os ditos conhecimentos, ouseja, no mais possvel falar sobre cincias e sua aplicao sem falarsimultaneamente sobre os lugares onde essa aplicao acontecer e ogrupo especfico que a realizar.

    Em outras palavras, a reintroduo de espaos sociais e naturaisespecficos no processo de produo e aplicao de conhecimentos etecnologias requer ateno nos campos tanto epistemolgico e metodo-

    lgico quanto poltico e legal. A centralidade de localidades especficasno uso de conhecimentos e tecnologias fica evidente no fato de que ostreinamentos em etnoecologia seriam implementados em terras indge-nas. Assim, como espaos sociais e artifcios legais, as terras indgenasesto no centro de qualquer renovao na ao indigenista.

    tica, direitos e ao indigenistaO dilogo como princpio de interao entre a sociedade brasileiradominante e as sociedades indgenas gera questes ticas que ainda noforam confrontadas. Em alguns casos, isso explicvel pela novidade daconjuntura, particularmente no que se refere ao campo da biotecnologia,que criou tipos inditos de direitos vinculados s novas tecnologias de

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    manipulao gentica. Em outros casos, a ao indigenista no Brasil foidesenvolvida em torno dos interesses e necessidades da sociedade domi-nante, que procurava solucionar seu problema indgena. Entretanto,quando a ao indigenista tem como ponto de partida as aspiraes einteresses das mesmas sociedades indgenas, transformando problemaem oportunidade, as questes ticas voltam para o primeiro plano.Mais ainda, na tentativa de construir um dilogo, as questes ticasse transformam em um tipo de umbral: se uma atividade indigenistaviola normas ticas bsicas, no deve ser realizada.

    Hoje, na chamada sociedade da informao, a informao cien-tfica adquire alto valor econmico e poltico. As normas de copyright,com base na noo de direitos de propriedade intelectual, aplicam-se

    maioria das publicaes cientficas, porm as informaes procedentesdas cincias indgenas raras vezes so enquadradas nessas normas legais.Em muitos casos, as informaes coletadas por pesquisadores terminamsendo de sua propriedade intelectual, e no das pessoas que as transmiti-ram. Assim, existe umstandardduplo no qual a cincia ocidental tem o

    status de universal, e portanto direito a copyright, enquanto as cinciasindgenas so designadas como populares e no usufruem desse direitopor serem consideradas parte do domnio pblico. Se levarmos a srio o

    dilogo intercientfico, ele tem de acontecer em uma situao de igual-dade entre as cincias, dando os mesmos direitos para ambos os lados,vale dizer, na posio indigenista aqui proposta, as relaes desiguais detroca informacional entre o conhecimento privado (ocidental) e o pblico(indgena) precisam ser equilibradas (Posey & Dutfield 1996).

    O uso de patentes complica ainda mais essa situao. Patentes sofiguras legais privatizantes e exclusivas que no figuram nas sociedadesindgenas. Quando material biolgico coletado em uma terra indgena

    e levado para fora, muitas vezes considerado parte do patrimnio p-blico. Tipicamente, uma empresa biotecnolgica faz uma modificaonesse material em seu laboratrio, patenteia a modificao e ganha direitoexclusivo ao produto final, sem haver pago pelo material de base nempelas modificaes histricas feitas pelas sociedades indgenas que omaterial contm (Souza Silva 1995). Apesar das tentativas de normatizaressa situao no Brasil atravs de uma lei nacional sobre biodiversidade, atendncia o estabelecimento de normas que considerem todo o materialbiolgico do pas parte do patrimnio nacional, tambm desconhecendoos direitos indgenas em favor dos direitos do Estado.

    No campo das relaes intercientficas, a questo de direitos passapelo confronto entre sistemas jurdicos diferentes. No caso das socie-

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    dades indgenas, h grande variedade de leis consuetudinrias queno esto necessariamente em concordncia ou mesmo contempladasno sistema legal do Estado brasileiro. Em geral, a lei consuetudinria desvalorizada perante a lei federal. O dilogo entre sistemas jurdicoslevanta questes ticas que formam parte de um debate maior sobre osdireitos dos povos, uma categoria especial dos direitos humanos quese aplica s diferentes sociedades de uma nao e funciona como pano defundo para quase todas as demais atividades de ao indigenista. A Clusula169 da Organizao Internacional de Trabalho, que garante esses direitos,representa uma das frentes desse dilogo no Brasil, e, apesar de ter sidolongamente debatida no Congresso Nacional, ainda no foi aprovadae incorporada como parte da poltica intercultural do pas.2

    Um terceiro passo necessrio para a implementao cabal dessaproposta para uma nova ao indigenista em torno do eixo da etnoeco-logia a incorporao de treinamento em direitos dos povos, que incluitemticas como a legislao indgena do pas referente s terras indgenase suas respectivas sociedades; as polticas de ordenamento territorial (reasprotegidas, zoneamento ecolgico-econmico, reservas extrativistas); eos distintos regimes de propriedade e noes da lei consuetudinria. Umdos alvos principais desses treinamentos so as sociedades indgenas e

    suas respectivas organizaes e lideranas. Em alguns casos, esses treina-mentos devem ser realizados na lngua nativa dos grupos participantes.Outro alvo so as pessoas que trabalham diretamente com as sociedadesindgenas nas reas tcnica, social, legal, religiosa e cultural.

    Nesse sentido, a implementao de atividades de treinamento emetnoecologia e direito forma a base de uma nova ao indigenista que,pela primeira vez na histria do pas, procura o estabelecimento de umverdadeiro dilogo intercientfico. No processo, novos atores sociais se-

    riam incorporados por ambos os lados do atual abismo intercultural. Umpossvel resultado dessa implementao seria a gerao de novos conhe-cimentos e tecnologias a serem utilizados por ambas as partes. Em suma,uma nova ao indigenista deve representar uma contribuio tanto paraa autonomia e a auto-sustentabilidade das terras indgenas quanto para adignidade e a sustentabilidade da sociedade brasileira como um todo.

    2 Na antropologia, h crescente interesse nos estudos sobre regimes legais querespeitam as normas das leis consuetudinrias, em um sistema conhecidocomo pluralismo legal. Assim, da mesma maneira que o dilogo entre cin-cias, o dilogo entre sistemas legais tambm est na infncia (Young 1996).