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1 DESERTED Primeira temporada 03 – THE BOY WHO WOULDN’T HOE CORN Criado por DIEGO FARIA e JOÃO NETTO MARTINS Escrito e revisado por DIEGO FARIA 2014

03 - The Boy Who Wouldn't Hoe Corn (O Menino Que Não Colheria Milho)

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Terceiro episódio da primeira temporada de Deserted, série escrita por Diego Faria.

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DESERTED

Primeira temporada

03 – THE BOY WHO WOULDN’T HOE CORN

Criado por

DIEGO FARIA e

JOÃO NETTO MARTINS

Escrito e revisado por

DIEGO FARIA

2014

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I. ?

O sol estava mais quente do que o normal, estava tão forte que chegava a

queimar o sapato de quem ousasse caminhar pela rodovia. Há poucas semanas atrás

havia sido natal, agora nada mais restava além de falsas esperanças de uma nova

oportunidade de vida e a chance de fazer tudo dar certo mais uma vez.

O posto de gasolina Royal Fields que ficava na beira da estrada estava mais

esquecido do que a volta do senhor Jesus. As bombas de gasolina estavam empoeiradas,

cobertas de teias de aranha e com algumas válvulas já enferrujadas, assim como o

atendente de lá – um velho de aproximadamente setenta anos – que passava o dia todo

assistindo o quase nulo movimento na rodovia esquecida que se estendia pela frente do

estabelecimento e parecia nunca terminar.

O senhor – que se chamava Iosif – quase nunca ficava na parte interior do

estabelecimento, lá era muito quente e tinha cheiro de mofo. Ele sempre estava sentado

em um banco rústico de madeira, de costas para a janela suja do posto, onde havia

passado a maior parte de seus últimos anos sem movimentação alguma, mas, de vez em

quando, recebia uma visita ou outra, apenas com o propósito de uma boa conversa.

Leonhard era um refugiado polonês que desde pequeno vivia fora de seu país,

em uma pequena chácara na região metropolitana de Misty Cliffs, agora com sua esposa

Ada. De vez em quando ele deixava sua mulher em casa com seus serviços e caminhava

até o posto onde Iosif ficava, lá os dois passavam a tarde conversando sobre assuntos

diversos, lembrando os tempos de juventude e comentando sobre a maldita classe

esquerdista que se achava no direito de julgar toda uma sociedade construída sobre

valores e pressupostos infalíveis. As tardes sempre eram muito agradáveis.

Os passos extremamente lentos de Leonhard sobre o asfalto velho e quente eram

a única prova de que aquele lugar não era apenas um quadro esquecido desenhado por

algum pintor bêbado e deixado no canto escuro do porão. Ele usava sua bengala como

apoio e depois de alguns minutos cansativos ele finalmente pôde sentir o frescor da

sombra que o posto de gasolina proporcionava.

Ele se sentou numa cadeira de plástico que estava ao lado do banco de Iosif,

lugar onde era seu por patrimônio havia tempos. Os dois ficaram em silêncio por um

longo tempo, o refugiado polonês recuperava seu fôlego e o dono do estabelecimento

olhava para o horizonte com os olhos cerrados em resposta aos fortes raios de sol.

- Dia abafado – disse Iosif, colocando uma das mãos no bolso e pegando seu

primeiro cigarro do dia.

Era um cigarro de palha de milho, feito por ele mesmo, daqueles com forte

cheiro.

Leonhard respirava com dificuldade mas tentava não demonstrar tamanho

cansaço.

- É... têm sido difícil... – respondeu ele.

- Como está Ada?

- Bem. Lavando roupa.

Antes de Iosif professeguir, ele acendeu seu cigarro:

- Sabe, isso não vai ser tão doloroso assim, vai ser apenas... um momento.

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Leonhard pigarreou, logo depois tirou sua boina e passou a mão sobre os ralos

cabelos brancos:

- Você não entende mesmo, hein, Iosif? – Leonhard colocou a boina novamente

– Não são números, são pessoas.

Lá dentro, sobre o balcão, o velho rádio do posto estava ligado e The Notting

Hillbillies tocavam Railroad Worksong.

- Sim, são pessoas, Leonhard. Mas foram elas mesmas que causaram isso.

- Todos nós causamos.

Os dois senhores conversavam inexpressivos, olhando para a velha estrada como

qualquer outra tarde.

- Essas coisas são normais. Não é a primeira e nem a última vez que isso

acontece.

- E isso não torna as coisas melhores ou menos impactantes – acrescentou

Leonhard.

- Não estamos fazendo isso porque queremos, estamos fazendo isso porque

precisamos, o mundo precisa – comentou Iolaf, jogando seu cigarro fora.

- Devem haver outros meios...

- Você sabe que não, todos os sistemas já estão operando e a contagem

regressiva começa daqui a dois meses. Foram anos de estudo, são mais de mil

envolvidos nisso, não há como dar errado.

- Exceto que os únicos sobreviventes serão os mesmos filhos da mãe que

resolveram aplicar a maldita fórmula.

- E de que outra maneira seria? Todos nós faremos sacrifícios, não será fácil pra

ninguém, muito menos para os sobreviventes.

Os olhos de Leonhard se encheram de lágrimas e suas mãos começaram a

tremer.

- Vocês... vocês... vocês se acham no direito de brincar... de brincar de ser Deus.

- Não, meu caro amigo – Iolaf se levantou do banquinho e aproveitou para se

espreguiçar -, nós somos Deus.

Enquanto o dono do estabelecimento se aproximava da velha porta de vidro o

outro senhor aproveitou para derrubar uma única lágrima que havia se alojado dentro de

seu coração, fazendo-o se arrepender de todas as ações tomadas até aquele momento.

- Isso não pode acabar assim – disse Leonhard.

- Não vai acabar, Leonhard. Este é apenas um novo começo. Você quer uma

cerveja? – finalizou Iolaf, entrando e batendo a porta atrás de si.

Há pouco menos de dois quilometros dali, em uma fazenda cercada por infinitos

campos de milho, uma família começava o trabalho da tarde: o pai descarregava os

galões de óleo da camionete e a mãe trabalhava sozinha na cozinha enquanto os dois

filhos ainda jovens preparavam os equipamentos para a colheita do milho. Seguindo a

estrada de terra que surgia na rodovia, cortava o milharal e ia até a fazenda havia apenas

uma placa, e nela estava escrito:

“Bem-Vindos ao lar da família Phoenix. Lugar de amor, fé e esperança!”

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II. ATO UM

Contarei uma pequena história e não me prolongarei, sobre um fazendeiro

preguiçoso que não colheria seu milho. A razão pela qual eu nunca pude contar é que

aquele jovem rapaz sempre esteve bem. Ele plantou seu milho no mês de junho, e em

julho já estava da altura de seus olhos. Chegou setembro, veio a grande geada, e todo o

milharal do jovem rapaz foi perdido...

- Pai, o cano do celeiro está vazando de novo! – exclamou Victor tentando

segurar a grande calha que chacoalhava com muita pressão e molhava todo seu corpo –

Corra!!

George, o pai de Victor – um senhor grande de quase sessenta anos, cabelos

grisalhos e olhar bruto -, correu de forma desajeitada até onde seu filho segurava a

calha, tremendo sob a água gelada que descia e rapidamente se espalhava por todo o

chão de terra.

- Que merda aconteceu dessa vez, Victor? – exclamou George, afastando seu

filho mais novo e dando um forte golpe na calha de alumínio.

- Eu não sei, você pediu pra eu contar quantos anéis internos ainda restavam –

respondeu Victor, ainda assustando, sem saber ao certo o que fazer.

Ele ouviu alguns passos e viu seu irmão Bruce se aproximando rapidamente pela

grande porta do celeiro.

- Merda, Vic – comentou seu irmão mais velho sem muita animação.

- O quê? – exclamou Victor com uma voz desafinada – Vocês acham que eu fiz

isso por querer? – ele se virou e caminhou rapidamente até a saída aos fundos do celeiro

sem importar-se onde iria, apenas desejando estar em qualquer outro lugar, menos ali.

Bruce olhou inconformado para a frente, desejando ir atrás de seu irmão.

- Deixe ele, logo voltará – comentou George, terminando de fixar o longo cano –

Vamos, ainda hoje temos que começar a colheita do milho.

Ele ainda ficou por alguns instantes ali, olhando apenas para a porta aberta, sem

nada importante em vista. Bruce não sabia ao certo como reagir: de um lado estava seu

irmão, novo demais para entender tudo sobre a vida difícil no campo, ele se esforçava,

mas os esforços não eram suficientes para seu pai, que de outro lado já estava ficando

velho, tinha problemas do coração e queria garantir um bom futuro para seus filhos, e

isso significava filhos que soubessem trabalhar, que soubessem colher o milho.

Bruce apenas suspirou, fechando os olhos por longos segundos.

Eram quase nove horas, todos já haviam levantado, inclusive Victor.

- Bom dia – sussurou seu irmão mais novo, aos pés da cama confortável que

ficava no centro de um dos maiores shoppings de Misty Cliffs.

- Bom dia – respondeu Bruce de forma confusa, rolando na cama e não sabendo

ao certo o que estava acontecendo.

A tempestade.

É, então subitamente veio-lhe as lembranças do dia anterior e do fundo de seu

coração ele praguejou por tudo aquilo não ter sido apenas um sonho.

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- Todos já levantaram, estamos no refeitório ao lado – dizia Victor com voz

baixa, tentando não chamar atenção dos outros sobreviventes -, vim te chamar porque

não sei até quando vamos ter comida.

- Relaxa – iniciou Bruce, tentando tranquilizar seu irmão, mas, no fundo, ele

também sabia que algo muito ruim estava acontecendo -, nunca vai faltar comida,

existem milhares de McDonald’s espalhados pelo mundo.

Os dois sorriram como se nada de ruim estivesse acontecendo e aquele momento

fosse uma prova de que tudo o que precisavam era de um pouco de paz.

- Vamos! – finalizou Victor, puxando os lençóis de seu irmão.

Os sobreviventes haviam arrastado algumas mesas e juntado todas ao centro,

parecia que permanecer juntos dava uma impressão de segurança maior. Eles

conversavam em voz baixa e muitos deles ainda estavam com o medo e o pesar em suas

faces. A mesa estava repleta de frutas, sucos, hambúrguers e carnes. Misty Cliffs estava

morta agora, e para eles não restava outra opção além de dançar e dormir sobre o

cadáver de quem um dia pisou naquele mesmo lugar.

Victor foi até o lugar onde já estava sentado antes, ao canto da mesa – ao lado de

David -, Bruce o seguiu e sentou ao seu lado, ainda confuso e com sono. Thomas

sentava-se na ponta da mesa, ao lado de sua irmã Susan. Ele se sentia desconfortável,

algo além das centenas de mortos estava o incomodando e ele sabia muito bem o que

era.

- Bem... – Thomas pigarreou ao se levantar da cadeira, tentando chamar a

atenção de todos – Agora que todos estão aqui, eu acho que podemos conversar melhor

sobre tudo isso.

Os sobreviventes concordaram com a cabeça, mas não soltaram nenhum som.

Jane Powell estava encolhida ao canto, com a cabeça baixa e segurando um terço

entre os dedos finos e compridos.

- Eu acho que ninguém aqui um dia se preparou para algo assim – continuou

Thomas -, mas, nossa única saída é seguir em frente. Está muito claro que há algo muito

estranho acontecendo nessa região – neste momento, Alicia esboçou um sorriso

sarcástico, como se estivesse debochando do que acabara de ouvir -, mas eu tenho

certeza absoluta de que logo receberemos ajuda e uma resposta lógica para tudo isso.

Jimmy levantou a mão, ainda mastigando algo que estava comendo.

Thomas fez um sinal para o rapaz prosseguir.

- Cara, com todo respeito, mas toda a minha família está morta – nesse momento

a maioria dos sobreviventes sentiram um forte aperto no coração, como uma facada ou

até pior -. Não me peça para ser paciente e esperar uma resposta lógica pra tudo isso...

Alguns comentários aleatórios repercutiram pelo salão. Bruce comentava alguma

coisa com John Foster, que parecia determinado e indagado com as palavras do rapaz.

Victor estava quieto em seu canto, de longe ele observava Crystal – que até agora não

havia olhado pra ninguém – e imaginava o que se passava por aquela mente distante.

Jane estava concentrada em suas orações, não havia tempo para discussões fúteis

quando o Senhor Todo Poderoso precisava de orações e fiéis para que talvez um dia

resolvesse salvar este resto de nação de pecadores. Eugene sabia que já não tinha idade

para aquilo, ele apenas tomava seu café e prestava atenção na conversa ao seu redor,

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sem nunca expressar sua própria opinião. Susan fazia suas as palavras de seu meio-

irmão, foi ela quem teve a ideia de um discurso e a maioria de seus ideiais haviam sido

transferidos subliminarmente para a mente de seu irmão, como se ele mesmo tivesse

escolhido tudo que ela propôs. É claro que ninguém ali tinha culpa alguma do que

estava acontecendo – eu imagino -, também não existiam mocinhos e vilões naquela

sala, existiam apenas pessoas – pecadoras e promissoras, que um dia sonharam com

uma vida americana perfeita – e isso era tudo que neste momento existia na grande

cidade.

Jimmy sentiu um forte aperto no peito seguido de uma pontada na cabeça, ele

estava exausto e ainda era manhã, não conseguia nem imaginar como seguiria o resto do

dia. Então, achou que seria mais aceitável ir até o banheiro e chorar escondido lá,

ninguém o julgaria, muito menos conheceriam seu lado frágil que era praticamente

impossível de ser notado.

- Ei! – exclamou Bruce, levantando-se de sua cadeira – Eu tenho algo a dizer!

Todos fizeram silêncio, Victor não sabia o que era, mas não tinha um bom

pressentimento.

- O que foi? – perguntou Thomas, se sentando novamente.

- John e eu tivemos uma ideia: nós vamos sair à procura de feridos, pessoas que

estejam precisando de ajuda.

- Isso é estúpido – manifestou-se Thomas -, você já parou pra pensar que esta

coisa pode ser contagiosa? E, afinal, nós estamos precisando de ajuda.

Alicia estava com os braços cruzados e demonstrava pouco interesse, mesmo

assim lançou seu comentário:

- Se essa coisa fosse contagiosa... você não acha que todos nós já estaríamos

mortos? Sangrando por todos os buracos possíveis?

- Deus, Alicia, vê o que fala! – comentou Susan, fazendo uma breve cara de

nojo.

- Ela está certa, isso não deve ser contagioso – comentou David -. Eu vou junto.

- Eu também – disse Eugene -, eu posso ser velho, mas ainda sou útil.

Bruce sorriu e seus olhos brilharam.

- Eu também vou – disse Alicia, e as palavras saíram como uma pedra ao ar,

lançada de forma tão aleatória que os outros sobreviventes quase não acreditaram.

- Você tem certeza? – perguntou Bruce.

- Absoluta. Eu já fui enfermeira, acho que também posso ser útil – finalizou ela.

Por alguns instantes a curiosidade de Bruce em saber porquê Alicia não era mais

uma enfermeira o deixou indagado, depois ele simplesmente acenou com a cabeça.

- Tudo bem, então saímos daqui a meia hora – disse Bruce, caminhando até

alguma outra sala onde pudesse organizar melhor seus planos.

III. O TÚNEL DO AMOR

Crystal voltou até o departamento de camas e estava organizando alguns

materiais que estavam dentro e sua mochila, ela planejava ir junto com Bruce, mas algo

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a dizia para não ir, ela não se sentia bem desde a noite passada quando viu sua irmã

novamente.

- Hei – disse uma voz tímida e insegura, era Victor -, como está?

Crystal deu um leve sorriso e levantou o punho enfaixado do dia anterior:

- O melhor possível, e você?

- Estou bem – respondeu ele, soltando as palavras mais mentirosas em toda sua

vida.

Por um longo período tudo ficou quieto de forma extremamente desconfortável.

- Mas então – retomou Victor -, você pretende ir com meu irmão?

Crystal sentou-se em uma das camas, de frente para Victor.

- Eu acho que sim, não quero ficar sem fazer nada, isso me faz ficar pensando

em coisas que eu não devia.

Victor deu um sorriso malicioso, como se estivesse planejando aquele momento

desde a hora em que acordou:

- E se eu te convidar para alguma outra coisa? E se eu já tiver outro plano

melhor em mente?

Ela congelou, isso definitivamente era sinal de alguma coisa.

- Que tipo de plano?

Victor sorriu, aquilo era um sim.

Os dois saíram antes mesmo de Bruce e os outros sobreviventes partirem, eles

correram pelo salão principal fazendo com que seus passos ecoassem pelo shopping. Os

elevadores não estavam funcionando, então desceram pelas escaladas rolantes – que por

sinal também não estavam funcionando – e se dirigiram até o estacionamento no

subsolo.

- Qual você quer? – perguntou Victor, parado ao lado de Crystal na pista

principal do estacionamento.

Ela olhou ao seu redor: haviam todos os tipos de carro, em sua grande maioria

eram novos e caros, daqueles que só gente rica dirige para ir ao shopping. Mas, também

haviam alguns mais velhos.

- Eu quero aquele! – exclamou ela, apontando excitada com o dedo indicador

para um fusca azul ao canto do estacionamento.

Victor imaginou que aquele carro deveria ser de um dos funcionários da limpeza

dali por estar estacionado ao lado da porta de serviço. O carro era velho mas tinha seu

charme, e além de tudo, não haviam motivos para discutir com a garota que conheceu

no dia anterior.

- Então é com esse que iremos! – finalizou ele, segurando na mão de Crystal e

correndo até o carro.

Eles chegaram até a porta do passageiro, Victor a abriu para Crystal de forma

desajeitada e correu até o outro lado do veículo, mas o que viu não o agradou nem um

pouco.

Era um cadáver.

Parecia que por um momento ele havia se esquecido de todas as coisas estranhas

que aconteceram nas últimas vinte e quatro horas e agora recebia um balde de água fria:

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isso não era só uma tempestade, não era só destruição, haviam pessoas mortas, caídas

por todos os cantos da cidade, e isso não podia ser normal.

Era um homem de aproximadamente quarenta anos de idade, pele escura e

vestimentas simples. Victor teve certeza de que ele era o motorista do fusca azul.

Crystal percebeu que o garoto hesitou, mas de onde estava sentada ela não

conseguia ver o que era.

- Aconteceu algo, Victor? – perguntou ela, em voz baixa.

- Não – respondeu ele com dificuldade, sua garganta parecia estar trancada e seu

coração parecia bater com a força de uma bomba.

Ele se abaixou, as chaves do veículo estavam ao lado da porta.

- Vamos – finalizou ele, entrando no carro e olhando para os belos olhos claros

de Crystal, de certo modo isso o fazia se sentir melhor.

Após ele girar a chave e dar partida no carro, a garota ligou o rádio e aumentou o

volume. Estava tocando uma música famosa de Skeeter Davis, e como impulso

praticamente imediato, Victor mudou de estação o mais rápido que pôde. Crystal se

assustou mas não disse nada.

- Não gosto dessa música – comentou Victor, se sentindo constrangido –, me trás

más lembranças...

E isso era realmente verdade.

Ele saiu pelo estacionamento e todo o percurso foi como um mergulho em suas

piores lembranças. Crystal ficou olhando pela janela, eram muitos mortos por todo

lugar, ela nem sequer imaginaria como tudo aquilo acabaria. Victor apenas mergulhou.

Naquele mesmo dia, depois de ajudar seu pai na colheita do milho junto com seu

irmão Bruce, os dois tomaram banho, se arrumaram e saíram com alguns amigos para

uma festa.

A camionete antiga de George seguiu por uma colina empoeirada e subiu até

onde algumas dezenas de carros estavam estacionados, haviam também alguns barris

com fogo para iluminar o local e o som era uma mistura infernal de diversas músicas

vindas de todos os carros. Por todos os cantos haviam jovens bebendo em copos

plásticos e rindo exageradamente, algumas garotas dançavam sobre a traseira das

camionetes e a noite estava apenas começando.

No carro estava Bruce, seu amigo Todd, Lori – namorada de Todd -, Maria –

amiga de Lori – e Victor.

O irmão mais velho estacionou o carro na parte mais afastada da festa. As portas

se abriram e no mesmo momento Victor pôde sentir o vento frio que se aproximava,

parecia que ia chover. Ele não queria estar ali, estava de mau humor, mas pensou que

talvez aquilo o ajudaria a colocar as coisas no lugar.

- É isso aí – comentou Todd, ele era um rapaz alto, de cabelos ondulados ruivos

e parecia sempre estar com uma cara de quem planeja algo ruim -, você trouxe, Bruce?

Bruce lembrou-se de algo e abriu o porta-luvas do carro, tirando de lá uma

garrafa de whisky.

- Aqui – finalizou ele, animado.

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Victor sentiu um aperto no peito. Sabia que seu irmão também iria beber e era

ele quem estava dirigindo.

Todos saíram do carro, caminhando animados até a concentração de jovens ao

centro da festa. Estava anoitecendo e as únicas imagens visíveis eram aquelas que

ficavam entre os faróis de carros e barris, tudo ao redor da festa se tornara apenas

silhuetas negras que contornavam o ambiente e apontavam que aquela seria uma noite

sem luar.

- Bruce, não estou me sentindo muito bem – disse Victor, praticamente

sussurando no ouvido do irmão.

Bruce parou e fez um sinal para que Todd, Lori e Maria continuassem. Ele olhou

fundo nos olhos do irmão mais novo, colocando uma de suas mãos no ombro de Victor:

- Escute, Victor – Bruce era ótimo naquilo, a sinceridade em seus olhos fazia o

peito de seu irmão doer -, eu sei que esses últimos dias não têm sido os melhores, lá em

casa está tudo corrido por causa da colheita do milho e você sabe como nosso pai fica

estressado – ele suspirou -. Você viu como todos nós cansamos hoje, se eu quisesse eu

poderia simplesmente ficar de mau humor também, como você, mas eu escolhi dirigir

até aqui, trazer uma garrafa de whisky barato e aproveitar a noite com meus amigos e

meu irmão, que pra mim parece muito mais lucrativo.

Ele sorriu, e Victor tentou fazer o mesmo sem muito sucesso.

Todd chamou Bruce com um grito exageradamente alto, os dois irmãos

seguiram pelo terreno de terra e se juntaram aos seus amigos encostados na traseira de

um carro, praticamente ao centro da festa.

Victor olhou ao seu redor e viu que lá também estava Troy Schrader – um garoto

do time da escola que Victor sempre odiou – e seus amigos-farinha-do-mesmo-saco

Jesse Winston e Joe Camp. Mas lá também estava Loretta Schrader, a garota que Victor

mais amava na face da Terra.

Bruce cutucou seu irmão - que estava em uma espécie de transe – e fez um sinal

para que fossem até o centro, onde todos estavam dançando. Victor respondeu com um

sinal de mão dizendo que ficaria ali, ele ainda não estava muito bem para ir até lá.

Bruce apenas concordou, entregando-o as chaves do carro com a desculpa de

que seria fácil de perde-las lá no meio, enquanto dançava. Então ele sorriu para Victor e

seguiu com Todd e as garotas até o centro.

Uma música de Eric Paslay se destacava entre as outras que tocavam

simultaneamente. Victor sentiu pela primeira vez uma coragem que nunca havia sentido

antes, pensou que aquela noite realmente poderia significar alguma coisa e não

arrancaria pedaço chegar e dar um oi para a garota que sempre amou. Loretta era

simpática, estudavam durante anos na mesma classe e ela estava sempre de bom humor,

era inteligente e responsável. Pra ajudar, agora ela estava ali, na pista, perto de seu

irmão e os outros amigos, isso poderia facilitar muito, não importava se fosse levar um

soco na cara de Troy e seus amigos, um beijo de Loretta valeria a pena.

“Ainda não estou confiante o suficiente”, pensou com si mesmo, esboçando um

pequeno sorriso de canto e virando-se até onde ficavam os barris de cerveja para encher

um copo. Victor não era o tipo de garoto que gostava de beber muito, ele apenas bebia

em ocasiões especiais, e sem dúvida aquela seria uma delas.

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Tomou um pequeno gole e se virou, foi caminhando até onde estava na

espectativa de que seu humor melhorasse.

Sentiu uma única gota de chuva cair exatamente em seu copo de cerveja.

Ao chegar até o lugar onde estava, continuou bebendo e observando todos ao seu

redor: Troy e seu amigos tiravam sarro de outro garoto que passava por lá – como de

costume -, Todd tentava beijar Lori mas ela recusara – parecia estar de mau humor

também -, Maria dançava ao lado da amiga e Bruce...

Bruce beijava Loretta.

No mesmo momento Victor sentiu como se levasse uma descarga elétrica tão

forte em seu peito que o fez ficar sem ar. Sentiu sua face esquentar e as mãos ficarem

fracas. Começou a apertar o copo plástico cada vez mais forte, estava com muita raiva,

nunca havia sentido nada daquele tipo antes. Apertou tão forte o copo que o resto de

cerveja escorreu por sua mão e caiu sobre seu tênis.

Ele não queria fazer aquilo, mas se obrigou a olhar novamente para seu irmão e

ao menos ter certeza de o que vira fosse real. E era, mas desta vez, algo o deixou mais

sem chão ainda: Bruce tirava do bolso duas pílulas, entregando uma para Loretta e

colocando a outra em seu próprio copo. Aquilo deixou Victor atordoado, sentia seu

corpo todo formigar, como se seu próprio coração quisesse rasgar seu peito e explodir

para fora, deixando-o em pedaços para que ao menos encontrasse o mínimo de paz em

uma morte brutal, já que a vida não lhe interessava mais.

Deixou o copo cair no chão e colocou a outra mão no bolso, pegando as chaves

da camionete.

Victor seguiu o caminho até o carro em menos tempo do que imaginava, não se

importava com nada, as pessoas ao seu redor se pareciam com demônios negros em

meio às chamas de barris e ele nem se importava em olhar para o lado, apenas caminhou

até o veículo, colocou a chave no painel e girou, ligando o carro na primeira tentativa.

Em menos de dois minutos ele já estava longe dali, e nem ouvia o som das músicas da

festa.

Estacionou na beira da estrada, ao lado de uma barreira de metal que protegia os

carros de caírem em um grande desnível que levava até um enorme lago. Sua respiração

o torturava, era como se nada mais importasse, ele apenas precisava desaparecer, trocar

a dor psicológica pela dor física, isso doía menos e tinha total certeza de que adiantaria

em alguma coisa.

Agora a chuva começava a aumentar.

O rapaz gritou tão alto que sentiu como se todas as mágoas de sua vida tivessem

sido lançadas junto com o ar de seus pulmões. Ele começou a dar socos incansáveis no

volante e no painel, várias vezes atingindo a buzina e produzindo um som sem ritmo

algum, uma sinfonia composta pelos golpes no painel, seus gritos desesperados e

desafinados, a buzina e a chuva que começava a cair. Então, de tanto bater, os

movimentos fizeram com que o retrovisor interno caísse e apontasse para sua face.

Victor viu seu reflexo, as lágrimas surgindo em seus olhos e sua pele mais pálida

do que o normal. Aquele não era ele, mas também não tinha escolha.

Afundou o pé no acelerador e fez a volta, seguindo a rodovia.

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Ele simplesmente ligou o rádio e deixou que tocasse. Skeeter Davis cantava

“The End of the World”, e provavelmente esta era a pior lembrança que Victor tinha,

afinal, aquele era realmente o fim do mundo para ele.

Não tirava o pé do acelerador por nada, parecia que suas pernas tinham se

tornado pedra ao mesmo tempo em que as lágrimas nunca cessavam e as mãos não

paravam de tremer. Era um sentimento indescritível, não sabia se sentia mais alguma

coisa por Loretta, por Bruce, ou simplesmente por sua vida ser um lixo, um inferno.

Seguiu uma curva fechada na escuridão da tempestade e sentiu um arrepio na

espinha, mas isso não o fez freiar, continuou cada vez mais rápido.

110...

Olhou ao redor, as lágrimas e a chuva atrapalhavam a visão, mas ainda assim

conseguia ver o vento forte chacoalhando as altas árvores de pinus.

120...

Um forte trovão fez parte da música, foi muito alto, mas pela primeira vez ele

não sentira tanto medo de uma tempestade.

135...

Seu coração parecia ter parado de bater. Sua alma parecia ter se esquecido da

própria existência e agora flutuava para longe de seu corpo.

150...

Nada mais importava, sua vida não significava nada...

160...

Tudo ficou escuro, Victor não sabia mais onde estava, não sabia se havia

estrada, não sabia que horas eram, não sabia o que aconteceria a seguir, apenas sabia

que queria sumir.

E foi isso que aconteceu.

O carro perdeu o controle e Victor apenas tirou as mãos do volante, ele estava

sem sinto de segurança.

O veículo atravessou uma pequena elevação no terreno e foi de encontro a uma

cerca de madeira, quebrando-a com facilidade para depois atingir em cheio uma mureta

de pedra. Lá o carro parou com um forte impacto e para Victor parecia que tudo rodava

em câmera lenta: o impacto de força extrema, um som abafado, seu corpo sendo lançado

do banco e indo na direção do parabrisa, os mil pedaços de vidro sendo espalhados ao

seu redor, um calor na testa e algo escorrendo por seus olhos, a chuva gelada atingindo

sua face e um último trovão audível antes de cair no gramado com um forte baque e lá

ficar, sem mover ao menos um músculo.

Victor ainda ficou consciente por uma meia hora, depois tudo se transformou em

escuridão, mas mesmo assim ele foi capaz de ouvir os sons produzidos por um corvo

que se escondia da chuva ali perto. Foi como se o som daquele animal fosse seu único

conforto naquele momento.

- Em quê você está pensando? – perguntou Crystal.

Victor se deu conta de que ele esteve em transe por longos minutos enquanto

dirigia.

Ele engasgou e gaguejou antes de responder.

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- Em nada, ou melhor, em tudo... tudo isso que aconteceu ontem.

Ela não disse nada, apenas fez um sinal com a cabeça e achou que aquela seria a

melhor escolha. Depois de mais alguns minutos em silêncio, ela finalmente falou:

- Mas então, que lugar é esse que nunca chega?

Vitor sorriu, com os olhos na estrada.

- Feche os olhos – iniciou ele -, já estamos chegando.

Crystal tapou os olhos e esperou até que Victor desse a ordem para abri-los.

Depois de alguns minutos ela sentiu que o carro tinha estacionado e o silêncio era quase

total. Quando abriu os olhos ela finalmente viu onde estavam: era um parque de

diversões, obviamente abandonado.

Bruce e os companheiros pegaram uma pequena van branca do estacionamento e

seguiram pela rua principal à procura de qualquer coisa.

- Acho que deveríamos ir primeiro na delegacia, talvez tenha alguém lá – disse

Eugene.

- É uma boa ideia – respondeu Bruce.

John apenas balançou a cabeça, ele se sentia desconfortável.

- Ei – iniciou Alicia no banco traseiro -, não é meio estranho que ainda não tenha

voltado o sinal de celular?

David estava sentado ao seu lado.

- Talvez sim, talvez não. A cidade lidou com uma grande tempestade.

- Queria que fosse apenas uma tempestade – comentou Bruce, com os olhos no

retrovisor.

- Na verdade – iniciou Eugene – eu tenho uma ideia do que possa estar

acontecendo – ele ficou um instante em silêncio -. Se trata de uma epidemia, muita

gente morreu, as ruas estão infestadas de gente morta e os sintomas foram todos

idênticos, não há o que discordar...

- Bem – respondeu Alicia -, mas depois de praticamente um dia o Departamento

de Epidemias ou algum outro órgão já deveria ter chegado.

- Ou – disse David -, eles não estão aqui porque estamos em quarentena, eles

devem ter trancado as saídas da cidade.

Bruce continuou com um olhar mais sério do que o normal.

- E devem pensar que não há ninguém vivo, devem achar que estão todos

mortos.

Eugene pigarreou.

- Mas, também há o fato de que nós não fomos atingidos. Isso só pode significar

duas coisas...

Todos ficaram em silêncio, com medo do que pudesse ser dito em seguida.

- Ou somos imunes, ou o efeito só está demorando um pouco mais para atingir

nossos corpos.

Alicia deu um longo suspiro:

- E eu espero definitivamente que seja a primeira opção.

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Victor havia se esquecido de que um parque de diversões precisava de energia

para funcionar, e neste momento energia era algo em falta em algumas regiões. Mas,

Crystal conseguiu reverter a situação e o lembrou de que o Tunel do Amor não

precisava de energia para funcionar.

- Como você sabe disso? – perguntou ele, caminhando ao lado da garota na

direção da entrada do túnel.

- Meu tio era dono de um parque. A correnteza que leva o bote é artificial, mas

não mecânica, já as luzes e a música do interior são todas ligadas em uma grande bateria

com gerador para não ter tanto perigo de fios de eletricidade ficarem no meio da água.

Victor sorriu, estava surpreso com o conhecimento da nova amiga.

Eles chegaram na entrada do brinquedo, Crystal foi até a beira do riacho e

investigou uma das paredes com a palma da mão e finalmente encontrou uma alavanca

que acionou todo o brinquedo. Um som abafado foi ouvido e as luzes vermelhas e cor

de rosa em forma de coração começaram a piscar. Victor colocou um pé sobre o bote e

o outro ficou em terra firme, quando Crystal chegou ele tentou ser engraçado, colocando

um braço atrás das costas e utilizando a outra mão para segurar e beijar a mão de

Crystal, que sorriu de maneira espontânea e logo o chamou para dentro do barquinho

também. Naquele momento eles até haviam esquecido de tudo o que estava acontecendo

no lado de fora.

Aquele lugar era uma explosão de sentimentos para Victor. As luzes seguiam

piscando por todo o trajeto da forma alternada e eram refletidas na água que os levava

em uma velocidade moderada, a música tocando ao fundo o deixava ansioso com aquele

toque incessante de marimba tropical que parecia o deixar em transe. O musgo já

crescia pelas bordas de pedra do túnel e todo o resto parecia não existir para eles, estava

escuro e era isso o que eles queria: que nada mais existisse.

Crystal segurou a mão de Victor, que se virou para olhá-la vagarosamente a fim

de evitar constrangimentos.

Ao se virar, Crystal inclicou a cabeça e veio para o seu lado, tocando seus lábios

com os lábios dela. Victor se afastou sem saber ao certo o que estava fazendo, seu rosto

enrubesceu no exato momento e sem ao menos olhar para a garota ele soube que ela

também estava envergonhada.

Por alguns instante, todo o som audível era o da música e da água se chocando

contra o bote.

- Oh... me desculpe, eu... sinto muito... – tentou dizer Victor, gaguejando e

confuso.

- Não, não, não, eu que peço desculpas, eu... – Crystal também não sabia o que

dizer.

Um forte som foi ouvido e por um instante quase inexpressivo Victor ficou

contente pelo corte súbito da cena constrangedora, mas logo depois um arrepio subiu

por sua espinha e sua garganta parecia ter trancado. Crystal também apresentava um

semblante assustado, seus olhos arregalaram.

- Ouviu isso? – perguntou ela.

- Ouvi – respondeu -, parecem...

- Outras pessoas – finalizou Crystal.

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IV. A VALSA DA MORTE

Quando Bruce estacionou na frente da delegacia ele já teve certeza de que ali

também não encontraria ajuda.

Além disso, encontrou a porta da frente arrombada.

- Vamos – comentou ele.

Todos desceram do carro e caminharam até o balcão da sala central do edifício, e

como Bruce havia imaginado: não havia ninguém lá.

- Filho da puta – comentou ele em voz baixa, se virando contra o balcão e dando

um soco na madeira.

- Se acalme, garoto – disse Eugene -. Ainda deve haver uma esperança, alguma

coisa que possamos fazer.

- Tem – disse Alicia, com toda convicção -, podemos pegar as armas do estoque

e dar o fora daqui.

- O quê? – exclamou David, inserindo sensacionalismo exagerado em seu tom de

voz.

Alicia olhou em seus olhos e isso fez com que ele se sentisse intimidado.

- Sim, isso mesmo que você ouviu. Estamos numa merda de cidade fantasma, até

onde sabemos somos os únicos sobreviventes desse banho de sangue e eu ao menos não

quero ficar vulnerável.

- Como você disse – retrucou David -, estamos sozinhos! Qual a necessidade de

carregar armas.

Ela soltou um sorriso de raiva e fechou os punhos.

- Escuta aqui, seu hippiezinho de merda. Você sabe o que está acontecendo?

Sabe com o que estamos lidando? – ela fez um breve intervalo – É, ninguém aqui sabe.

Portanto, com ou sem a concordância de vocês eu vou pegar uma maldita arma, porque

eu posso ser uma vadia, mas acima de tudo eu sou uma vadia que luta pela vida que

tem.

Todos ficaram sem palavras e David se sentiu constrangido.

Alicia seguiu pelo corredor central e foi até a sala onde ficava o estoque de

armas. Como era de se esperar, a porta estava arrombada e praticamente todas as armas

haviam sido levadas, mas, haviam duas calibre 38 jogadas no chão, próximas a uma

caixa de munição.

- Isso é o bastante – resmungou Alicia, mesmo desejando que nunca precisasse

usa-las.

- Agora vamos – disse Bruce, virando-se e saindo pela porta arrombada.

Todos o seguiram pelo caminho de volta e entraram na van, ele estava virando a

chave quando parou e ficou olhando diretamente para algum ponto a sua frente.

- O que foi? – perguntou John, procurando por algo.

- Mais sobreviventes – disse Bruce, quase não acreditando em suas próprias

palavras.

Há aproximadamente quarenta metros, uma pessoa rastejava pela rua, toda suja

de sangue e ferimentos dos pés à cabeça. Bruce abriu a porta e saiu correndo, era uma

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mulher de aproximadamente vinte e poucos anos, ele a pegou nos braços e a carregou

até a van, nenhum dos dois disse uma palavra.

- Vamos, precisamos voltar até os outros, essa mulher precisa de ajuda –

comentou ele, colocando a mulher no banco traseiro, indo até o banco do motorista e

pisando forte no acelerador.

Alicia se virou e começou a prestar os primeiros socorros dentro do veículo, não

havia muito o que fazer, mas algo deveria ser feito.

- Eu acho que nós temos um problema aqui – comentou ela.

- Não me diga, mais um? Que novidade – exclamou Bruce, demonstrando o

nervosismo em sua voz.

- É sério – disse ela.

- O que foi dessa vez? – perguntou Eugene.

- Esses ferimentos no corpo dela, não são os sintomas que todos sentiram,

também não são marcas de ferimentos na hora da tempestade...

- O que você quer dizer com isso? – perguntou David.

- Quero dizer que alguém a atacou, e não faz muito tempo – finalizou ela.

- São mais sobreviventes! – exclamou Victor, entusiasmado.

Ele e Crystal perceberam que as vozes vinham de uma entrada que ficava a

menos de vinte metros de onde o bote estava, ali mesmo, dentro do túnel. Era uma sala

longa, escura, com luzes amarelas e brancas que iluminavam poucas gotas d’água que

caíam do teto sobre moldes de madeira e papelão no formato de casais se abraçando, se

beijando e dançando uma valsa que tocava ao fundo.

Victor se sentiu muito mal, era quase um nojo, aquelas vozes não estavam

falando normalmente, eram alguns garotos e eles estavam dando risadas, gritando e

quebrando alguma coisa. De um momento para o outro ele perdeu todas as esperanças

em encontrar alguém para ajuda-los.

- Rápido – sussurou Crystal -, pule do bote, se seguirmos por aqui eles vão nos

ver!

Victor pulou e logo ela foi atrás. A água atingia a altura da cintura dos dois e

estava muito gelada. O som que a água fez quando os dois pularam poderia ter sido

ouvido pelas outras pessoas que estavam ali, mas estavam conversando e gritando tão

alto que o som passou despercebido.

Os dois encostaram-se nas paredes do túnel e seguiram caminhando pela

escuridão, tinham que ao menos ver o que estava acontecendo e sem dúvida aquele seria

o caminho mais curto para sair do túnel.

- Parecem animais – sussurou Crystal ao ouvir os gritos e sons indecifráveis que

os garotos produziam.

O bote vazio passou ao lado dos dois e seguiu pela correnteza, sendo iluminado

pelas luzes vermelhas ele até parecia brilhar em meio a tanta escuridão.

- Devem estar bêbados ou drogados – comentou Victor, também tentando

sussurrar.

Por um instante o silêncio foi total, aquelas palavras que ele havia dito o

lembraram de algo que nunca mais queria ter desenterrado de sua memória...

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Ele abriu os olhos e se deparou com um quarto de hospital completamente

branco – a não ser por um quadro na parede que representava um vaso de girassóis - e

não havia ninguém mais ali. Sentiu que seu corpo doía e que estava frio, talvez ainda

fosse manhã. Demorou para se lembrar o que havia acontecido, mas logo em seguida as

imagens vieram a sua mente: a festa, Loretta, Bruce, o carro, a tempestade, o acidente.

- Ei – o som quebrou o silêncio, era seu irmão, encostado na porta do quarto e

com um aspecto terrível.

Victor sentiu uma raiva extrema daquele rapaz a sua frente, não queria nem

sequer olhar em seus olhos novamente.

- O que foi? Já está com o discurso preparado? Alguma coisa sobre não fazer

nada em casa e ainda destruir um carro?

A voz de Victor saiu rasgando sua garganta, ele estava com dores em todo o

corpo e quando falava parecia que elas se multiplicavam.

Bruce não conseguiu se segurar, uma lágrima escorreu por sua face, logo depois

mais uma, e depois não havia mais o que fazer, ele soluçava de tanto chorar.

Uma enfermeira apareceu na porta e colocou a mão sobre o ombro de seu irmão.

Victor não sabia o que tinha feito, estava se sentindo muito, muito mal mesmo. Sentiu

que seu coração disparou e ao mesmo tempo sentiu culpa.

- Bruce? O que aconteceu? Se acalme, cara. Eu estou bem, estou aqui, nada de

mal aconte...

- Victor – iniciou a enfermeira -, sabemos que você está bem, não é nada disso.

O garoto ficou mudo, simplesmente não conseguia falar.

A enfermeira fez um sinal para Bruce e perguntou se gostaria que ela falasse,

Bruce discordou e em meio a lágrimas disse que ele mesmo falaria.

Antes mesmo de tudo começar, Victor sentiu um forte baque no peito e seu

corpo inteiro estremeceu, como se tivesse morrido e sua alma estivesse neutralizada,

queimando.

- Vic... – iniciou Bruce com uma voz desafinada – Ontem, quando eu estava na

festa, mamãe ligou chorando, eu quase não entendia nada, mas consegui entender que

nosso pai estava tendo mais um daqueles ataques do coração. Eu corri até onde você

estava, corri até o carro, pois sempre dá tempo de levar ele até o hospital... mas você

não estava lá, nem o carro... – Bruce chorava descontroladamente, mas em um tom

baixo, fazia força para que todas as lágrimas possíveis parassem de afogar seus medos e

seu coração, mandando-as para fora e lutando contra tudo – Não deu tempo, Vic, Não

deu tempo...

Victor não conseguia falar nada, não conseguia entender, não conseguia chorar.

- Nosso pai está morto – enfim finalizou seu irmão mais velho.

Nesse momento ele perdeu o chão, tudo pareceu se tornar negro novamente.

Era sua culpa. Era sua culpa e disso ele não tinha dúvidas.

- Ei, Victor, você está bem? – perguntou Crystal, colocando a mão sobre seu

ombro e acordando-o de seu transe.

Ele ficou tonto por alguns instantes.

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- Eu... sim... estou bem.

Os dois seguiram pela parede até a borda do saguão escuro onde ficavam os

modelos de casais e as vozes misteriosas. Crystal olhou pelo canto e viu que eram no

mínimo quatro garotos, de aproximadamente vinte anos cada um, eles usavam objetos

para quebrar os moldes em exposição e foi possível ver que um deles - provavelmente o

líder do grupo - estava com a camisa toda cheia de sangue, e não era dele.

O pequeno bote desceu correnteza abaixo e o garoto olhou para o lado.

- Esperem aí... tem alguém aqui – disse ele, ainda na escuridão.

Os outros garotos resmungaram algo, levantando-se e pegando armas.

- Tem alguém aqui – repetiu o garoto -, aquele bote não desceria sozinho.

Ele saiu da escuridão, e Crystal pode ver que em sua mão direita ele segurava

um taco de baseball repleto de pregos na ponta.

- Temos que sair daqui – resmungou ela -, corra!

Ela e Victor seguiram contra a correnteza, era extremamente difícil naquela

temperatura e escuridão do ambiente, eles sabiam que era uma tarefa quase impossível

escapar. A música parecia mais alta do que nos últimos minutos e confundiu a cabeça de

Victor.

- Aqui – sussurrou ele, apontando para outro saguão que ficava em um dos

cantos do túnel -, me dê sua mão!

Victor subiu no cimento úmido e se apoiou em um dos moldes em forma de

casal dançando valsa para que pudesse puxar Crystal, mas, antes que pudesse reagir de

qualquer forma, foi atingido em cheio por uma barra de ferro no meio da face.

Crystal gritou e tentou escapar pela água, mas perdeu o equilíbrio e caiu, ficando

completamente submersa, levantando-se apenas quando uma mão grande segurou com

força e brutalidade seu cabelo, fazendo-a levantar e perceber que aquele era o garoto

maior, possivelmente o líder do grupo.

- Ora, ora – comentou ele, esboçando um sorriso mais bonito do que o normal -,

mais dois para a coleção.

Bruce e os outros sobreviventes que haviam ido com ele até a delegacia agora

voltavam ao shopping carregando a garota machucada e falando alto, o estado dela não

era grave, mas necessitava de bons cuidados.

Alicia tentava manter a desconhecida acordada e imóvel, mas a tarefa era difícil

quando suas mãos escorregavam em meio ao sangue e suor da vítima. Eles seguiram

pelo saguão principal, e ao virar a primeira curva na direção de onde estava

concentrados, Alicia levou um choque, seu corpo ficou gelado e por alguns instantes ela

e os outros não souberam o que fazer.

Mais pessoas.

No mínimo trinta, todos sobreviventes assim como eles, Bruce presumiu.

- Afastem-se! – exclamou Alicia, sem importar-se em causar boas primeiras

impressões – Ela está ferida!

Thomas – que no momento da chegada estava conversando com os novos

companheiros – correu de encontro a Bruce e perguntou o que estava acontecendo.

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- Eu poderia perguntar o mesmo – disse Bruce, ofegante -, preparem água morna

e tragam todos os equipamentos de primeiros socorros que tiverem!

Thomas virou as costas e lançou um olhar sarcástico:

- Obrigado pelo esclarecimento.

Victor não via nada, a escuridão era total e sua cabeça doía mais do que podia

imaginar.

A primeira coisa que sentiu foi um cheiro forte de gasolina.

- Victor? Está acordado? – disse uma voz leve, quebrando o silêncio. Era

Crystal.

- Sim – gemeu ele, em palavras quase impossíveis de entender -, acho que estou.

- Eles estão em seis – disse Crystal, sem se preocupar com detalhes.

- Onde estamos? Faz tempo que você está acordada?

Agora ele também sentia um forte cheiro de poeira e graxa ao seu redor.

- Eu não sei onde a gente está, acordei enquanto eles colocavam a gente nesse

lugar... Se parece com uma... garagem...

Victor tentou levantar do piso de cimento gelado e acabou chutando um grande

balde – aparentemente de tinta ou verniz -, fazendo o barulho de metal ecoar pelo lugar.

Ele se sentou novamente, usando as mãos para procurar pelas mãos de Crystal.

- Faz muito tempo? – perguntou ele, se sentindo confuso na conversa.

- Uma hora, mais ou menos – disse ela -. Eu acho que eles não estão mais aqui,

devem ter saído.

- Ei! – os dois pularam de susto com a voz desconhecida, sabiam que era de um

garoto do outro lado da porta, fora da garagem – Calem a boca vocês dois, estão

achando que estão em casa?

- Quem é você? – gritou Victor – O que querem com a gente?

- Calem a boca! – repetiu o garoto – Quando meu amigos voltarem a gente

conversa.

Crystal segurou com mais força a mão de Victor. Eles haviam escapado da

tempestade, mas a calmaria nunca tinha realmente chegado.

Depois de terem levado a garota machucada até um colchão e a deixado sob os

cuidados de Alicia e Susan, Bruce e David caminharam até o pavilhão principal e

encostaram-se em um balcão.

Perceberam que os novos sobreviventes eram todos pessoas desconhecidas,

exceto pelo Pastor Gillian, conhecido de toda a cidade.

Jimmy chegou corrento e juntou-se aos dois outros garotos:

- E aí, quem é a garota?

- Encontramos ela na rua, quase sem consciência – respondeu Bruce.

- Quando estes aí apareceram? – perguntou David, desconversando.

- Agora a pouco, eu e Thomas estávamos levando alguns corpos até os fundos e

vimos todo o grupo andando pela avenida principal... bando de loucos – tinha um tom

de inconformidade na voz de Jimmy.

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- Onde está meu irmão? – perguntou Bruce, observando tudo e todos ao seu

redor.

- Ainda não voltou – respondeu Jimmy tranquilamente.

- Como assim? – Bruce empalidecera – Onde ele foi?

- Saiu com aquela garota, Crystal...

- Oh, merda – sussurrou o irmão mais velho, caminhando até a sala onde Alicia e

Susan cuidavam da garota.

- Ei! – exclamou ele – Alguma de vocês tem ideia de onde Victor e Crystal se

meteram?

Alicia continuou com os olhos pregados na desconhecida:

- Não estão aqui?

Ela nem bem tinha terminado sua frase quando a paciente soltou um grito

estridente que ecoou por todo o piso do shopping.

- Ela acordou! – exclamou Susan.

- Não me diga – respondeu Alicia.

A moça parecia sentir muita dor, suas mãos tremiam e ela as esticou até segurar

Alicia pelo colarinho, puxando-a para perto de seus lábios. E então, como praticamente

em um sussurro, algumas palavras flutuaram sem força pela sua boca, fazendo com que

somente Alicia conseguisse ouvir o que tinha para dizer:

- Eles vão nos encontrar... vão matar... todos nós...

V. O DIA DO JULGAMENTO

Iosif estava sentado sozinho em seu banco de madeira no posto. Haviam se

passado quase dois meses desde que Leonhard fizera sua última visita.

Já estava escuro, o dono do estabelecimento resolveu entrar e trancar as portas.

Após girar a chave na fechadura, o velho telefone do Royal Fields tocou. Iosif se

assuntou, faziam anos desde que tinha recebido a última ligação naquele telefone.

Caminhou lentamente pelo posto fedido, mal iluminado e cheio de bugigangas, o

telefone verde-oliva estava empoeirado.

- Alô? – disse ele no silêncio da noite, a voz trêmula.

No rádio ao fundo tocava The Boy Who Wouldn’t Hoe Corn, a música do

fazendeiro preguiçoso que não colheria seu milho.

- Senhor Iosif? – disse a voz firme de mulher do outro lado da linha.

- Sim, eu mesmo.

- Você sabe quem eu sou? Ou melhor, de onde estou ligando?

Ele passou a mão pelas têmporas, dando um breve suspiro.

- Sem dúvidas.

- Muito bem. Infelizmente liguei para informa-lo sobre o incidente.

A voz da mulher era inabalável, até parecia de um robô.

- Incidente? – perguntou ele.

A música ao fundo ecoava. O banjo em conjunto com a letra poética enchia o

coração de Iosif.

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- Sim. Infelizmente nosso projeto falhou. Ligamos por consideração aos

envolvidos. A nuvem foi libertada, o EDEN falhou.

- Como assim? O que você quer dizer com isso? – suas mãos começaram a

tremer.

- Amanhã de manhã a nuvem já vai estar funcioando. Até onde sabemos foi uma

falha na segurança, um erro milimétrico, pouca coisa.

Ele começou a chorar, então sussurrou no telefone.

- A humanidade não permite erros milimétricos...

- O EDEN sabe, senhor. Estamos muito descontentes com o resultado e

esperamos a compreensão de todos os envolvidos.

- Eu não acho que você entenda a gravidade de suas palavras – falou ele.

- Sim, senhor. Infelizmente temos total noção da dimensão das consequências.

- Então diga! – exclamou ele – Diga! Eu quero ouvir da sua voz!

- É provável... – iniciou ela – que em menos de um mês... toda a raça humana

esteja extinta.

Iosif não aguentou, caiu de joelhos, seu coração doía. Estava morrendo, antes

mesmo do resto da humanidade.

O telefone caiu de sua mão, ficando pendurado pelo fio preto encaracolado que

se estendia até próximo do chão. Mesmo assim, Iosif conseguiu ouvir as últimas

palavras da mulher do outro lado da linha:

- Senhor Iosif? O EDEN pede desculpas pela inconveniência, mas agora não há

mais o que ser feito. Tenha uma ótima noite, obrigado por ser um de nossos

associados...

DESERTED