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Possibilidades e fundamentos do controle judicial de constitucionalidade de políticas públicas: o caso da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45 * Rogério Gesta Leal ** Leandro Konzen Stein *** Introdução A ampliação do campo de objetos sindicáveis no âmbito da jurisdição constitucional brasileira por meio do instituto da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental constitui notável campo de observação para as possibilidades e fundamentos, no âmbito do Estado democrático contemporâneo, de um controle judicial de políticas públicas que, de modo geral, eram afetas essencialmente aos demais poderes do Estado. Pretendemos focar (a) a ampliação de objetos sindicáveis via ADPF, tendo em conta a distinção entre inconstitucionalidade e descumprimento da Constituição; (b) retomar a discussão sobre os contornos da função jurisdicional no Estado Democrático a partir da compreensão procedimentalista da constituição e do direito de Jürgen Habermas; para (c) avaliar criticamente a decisão tomada na ADPF nº 45. * Este trabalho foi desenvolvido por conta do projeto de pesquisa intitulado MODELOS, FUNDAMENTOS E CONTEÚDOS DA REGULAÇÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS DELEGADOS, desenvolvido junto ao Centro de Estudos e Pesquisas de Energia Alternativas e Serviços Públicos, do Programa de Mestrado em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, RS, Brasil. ** Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Doutor em Direito, Professor Titular da Universidade de Santa Cruz do Sul, Professor Colaborador da Universidade Estácio de Sá. Professor Visitante da Università Túlio Ascarelli – Roma Tre, Universidad de La Coruña – Espanha, e Universidad de Buenos Aires. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas: “Estado, Administração Pública e Sociedade”, vinculado ao CNPq. *** Advogado. Sócio-diretor de DARTAGNAN & STEIN Assessoria Legal (www.dartagnan.adv.br). Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. MBA, e.a., em Direito da Economia e da Empresa pela Fundação Getúlio Vargas – FGV/RJ/Chicago University, EUA. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas “Estado, Administração Pública e Sociedade” vinculado ao CNPq. Autor do livro “O Supremo Tribunal Federal e a defesa dos preceitos constitucionais fundamentais: uma história de construção do sistema brasileiro de controle de constitucionalidade” (Editora Núria Fabris, 2009, monografia premiada com o 1º Lugar no I Concurso Nacional de Monografias do Supremo Tribunal Federal) e de diversos capítulos de livros e artigos publicados em periódicos de renome nacional. Professor convidado de Pós-Graduações na área de Direito da Energia e Biocombustíveis.

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Possibilidades e fundamentos do controle judicial de constitucionalidade de políticas

públicas: o caso da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45*

Rogério Gesta Leal**

Leandro Konzen Stein***

Introdução

A ampliação do campo de objetos sindicáveis no âmbito da jurisdição constitucional

brasileira por meio do instituto da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental

constitui notável campo de observação para as possibilidades e fundamentos, no âmbito do

Estado democrático contemporâneo, de um controle judicial de políticas públicas que, de

modo geral, eram afetas essencialmente aos demais poderes do Estado.

Pretendemos focar (a) a ampliação de objetos sindicáveis via ADPF, tendo em conta a

distinção entre inconstitucionalidade e descumprimento da Constituição; (b) retomar a

discussão sobre os contornos da função jurisdicional no Estado Democrático a partir da

compreensão procedimentalista da constituição e do direito de Jürgen Habermas; para (c)

avaliar criticamente a decisão tomada na ADPF nº 45.

* Este trabalho foi desenvolvido por conta do projeto de pesquisa intitulado MODELOS, FUNDAMENTOS E CONTEÚDOS DA REGULAÇÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS DELEGADOS, desenvolvido junto ao Centro de Estudos e Pesquisas de Energia Alternativas e Serviços Públicos, do Programa de Mestrado em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, RS, Brasil. ** Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Doutor em Direito, Professor Titular da Universidade de Santa Cruz do Sul, Professor Colaborador da Universidade Estácio de Sá. Professor Visitante da Università Túlio Ascarelli – Roma Tre, Universidad de La Coruña – Espanha, e Universidad de Buenos Aires. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas: “Estado, Administração Pública e Sociedade”, vinculado ao CNPq. *** Advogado. Sócio-diretor de DARTAGNAN & STEIN Assessoria Legal (www.dartagnan.adv.br). Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. MBA, e.a., em Direito da Economia e da Empresa pela Fundação Getúlio Vargas – FGV/RJ/Chicago University, EUA. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas “Estado, Administração Pública e Sociedade” vinculado ao CNPq. Autor do livro “O Supremo Tribunal Federal e a defesa dos preceitos constitucionais fundamentais: uma história de construção do sistema brasileiro de controle de constitucionalidade” (Editora Núria Fabris, 2009, monografia premiada com o 1º Lugar no I Concurso Nacional de Monografias do Supremo Tribunal Federal) e de diversos capítulos de livros e artigos publicados em periódicos de renome nacional. Professor convidado de Pós-Graduações na área de Direito da Energia e Biocombustíveis.

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1. Da distinção entre inconstitucionalidade e descumprimento da Constituição: a

ampliação de objetos sindicáveis no controle abstrato de normas brasileiro – a

completude do sistema através da ADPF

O sistema brasileiro de controle de constitucionalidade instaurado pela Constituição

Federal de 1988 dilatou significativamente o espectro de ações constitucionais diretas (via de

ação), denotando uma tendência de ampliação e alargamento da jurisdição constitucional

abstrata e concentrada em nosso país, o que revela a influência continental européia,

notadamente espanhola e portuguesa, na Constituição Federal de 1988, mudando-se o

paradigma vigorante desde a proclamação da República de controle difuso e incidental de

inspiração norte-americana1 para um controle de cariz romano-germânico, introduzido por

Kelsen (década de 1920) na Europa e logo espalhado, com significativas variações, por todo o

mundo ocidental. Veja-se o rol das ações concentradas de controle de constitucionalidade

existentes no sistema de fiscalização introduzido pela Carta Magna de 88:

a) ação direta de inconstitucionalidade (art. 102, I, a, CF/88);

b) ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, §2º, CF/88);

c) ação declaratória de constitucionalidade (art. 102, I, a, CF/88);

d) ação direta interventiva (art. 36, III, CF/88); e

e) argüição de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, §1º da CF/88).

Aqui o que mais interessa é o último instituto, qual seja, a ADPF. Previsto

originalmente no art. 102, parágrafo único (posteriormente renumerado para §1º), encontrou

tardiamente regulamentação através da Lei 9.882/99. Todavia, a Lei trouxe mais

perplexidades do que certezas, deslocando o debate (que até então era meramente teórico)

para a práxis constitucional a partir da jurisprudência produzida desde então2. Não

1 Que era até pouco tempo o referencial principal do constitucionalismo pátrio, apesar das introduções, desde a década de 1930, de mecanismos tendentes a corrigir as deficiências do modelo, como a ação direta interventiva e a remessa ao Senado (1934/1946), além da representação contra inconstitucionalidade (1965). 2 Eis que a jurisprudência do STF era uníssona em afirmar que enquanto não houvesse regulamentação do artigo 102, §1º, da CF/88, não poderia ser apreciada a ADPF. Veja-se, por todas, a seguinte ementa sobre um decreto de intervenção em município do Tocantins: “DIREITO CONSTITUCIONAL, CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL: ART. 102, § 1º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. DECRETO ESTADUAL DE INTERVENÇÃO EM MUNICÍPIO. Arts. 4.º da Lei de Introdução ao Código Civil e art. 126 do Código de Processo Civil. 1. O § 1.º do art. 102 da Constituição Federal de 1988 é bastante claro, ao dispor: “a argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei”. 2. Vale dizer, enquanto não houver lei, estabelecendo a forma pela qual será apreciada a argüição de

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pretendemos, nesse texto, entrar no árduo e moroso embate sobre a definição de preceito

fundamental ou mesmo da distinção de modalidades de argüição, ou ainda, da polêmica sobre

a legitimidade ativa ou da aplicação do princípio da subsidiariedade. Tais temas, que

abrolharam a partir dos artigos da lei regulamentadora e da excelsa jurisprudência, são por

demais amplos para o específico objetivo aqui que é o de definir o campo de atuação da

argüição de descumprimento, ou seja, perquirir sobre os objetos sindicáveis por meio da

ADPF. Mas para isso, imprescindível conhecer a diferença entre descumprimento e

inconstitucionalidade, de modo a tornar possível distinguir a nova ação dos demais

instrumentos de controle constitucional, já existentes no sistema nacional de fiscalização:

A expressão descumprimento de preceito (constitucional) fundamental já se encontra

no lacônico §1º do art. 102 da CF/883, sendo que a Lei n.º 9.8824 traz a locução ato do Poder

Público, como parâmetro do objeto da ADPF. Isto é, ambas as expressões se ligam de modo a

conformar o campo de atuação do instituto: descumprir a Constituição não se limita a editar

uma norma contrária aos ditames da Lei Magna, isto é, qualquer ato pode descumprir a

Constituição. Poderiam ter sido inclusive incluídos os atos de particulares no espectro da

argüição de descumprimento, sendo que a frase atos do Poder Público que tragam lesão a

preceito fundamental, como “fatos geradores” do descumprimento é apenas uma limitação –

feita pelo legislador ordinário – do palco onde operará a ADPF.

Essas distinções partem das concepções de André Ramos Tavares5. O autor nos

apresentando um conceito amplíssimo6 e amplo7 de inconstitucionalidade como

descumprimento de preceito fundamental, decorrente da Constituição, o STF, não pode apreciá-la. 3. Até porque sua função precípua é de guarda da Constituição (art. 102, “caput”). E é esta que exige Lei para que sua missão seja exercida em casos como esse. Em outras palavras: trata-se de competência cujo exercício ainda depende de lei. 4. Também não compete ao STF elaborar Lei a respeito, pois essa é missão do Poder Legislativo (arts. 48 e seguintes da CF) [...] 9. Agravo improvido, Votação unânime. [Grifou-se]. STF – TRIBUNAL PLENO – RELATOR: Min. SYDNEY SANCHEZ AGRPET- 1140/TO (AG. REG. EM PETIÇÃO). Julgamento 02/05/1996. 3 “§1º A argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei”. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. 4 “Art. 1º. A argüição prevista no §1º do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público.” BRASIL. Lei 9.882, de 3 de dezembro de 1999. Dispõe sobre o processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do §1º do art. 102 da Constituição Federal. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília: DF, 3 dez. 1999. Disponível em: <www.presidencia.gov.br >. Acesso em: 30 mar. 2008. 5 TAVARES, André Ramos. Tratado da argüição de preceito fundamental. Lei n. 9.868/99 e Lei n. 9.882/99. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 162-222, passim.

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descumprimento da Constituição, finda por – ao trazer à colação o conceito restrito ou próprio

de inconstitucionalidade – demonstrar que, a partir disso (restrição do termo

inconstitucionalidade) esse se distancia do vocábulo descumprimento:

Apresentando o Direito a conformação de ordenamento e, mais do que isso, de sistema, consoante tem procurado enfatizar a doutrina a partir da obra pioneira de BERTALANFFY, é plenamente compreensível guardar-se um conceito específico para o caso em que se queira designar a eventual colisão entre elementos dispostos dentro desse mesmo sistema. É aqui que surge o emprego restrito do vocábulo inconstitucionalidade, preferencialmente ao amplo de descumprimento da Constituição, para designar essa particular situação jurídica desencadeada em virtude de elementos que devem estar dispostos de maneira congruente e entrelaçada. Pode-se dizer mesmo que, desde esse momento, inconstitucionalidade e descumprimento passam a adquirir conotações que se vão distanciando.8

Destarte, a inconstitucionalidade traduziria uma decorrência lógica do conceito de

ordenamento jurídico como sistema de normas, no qual não seria possível existirem

elementos incompatíveis, devendo a norma inferior (infraconstitucional) que fosse conflitante

com a norma superior (constitucional) ser taxada de inconstitucional e, mediante um

procedimento judicial, ser expurgada do sistema.

Assim, os atos praticados pelos particulares e os atos materiais em geral, por seu turno, não são tachados de constitucionais ou inconstitucionais. O conceito é reservado, nesse sentido, exclusivamente, ao mundo normativo, já que se revela como uma especial forma de invalidade: a suprema invalidade.9

Percebe-se que o conceito de inconstitucionalidade, que é bastante reduzido, deixaria a

descoberto um largo espectro de atos incompatíveis com a Constituição, atuando apenas no

campo dos atos normativos do Poder Público. Os atos administrativos e materiais estariam

livres, desse modo, de uma fiscalização concentrada e abstrata de constitucionalidade.

Para resolver esse aparente vácuo normativo, introduziu o constituinte originário o

termo descumprimento de preceito fundamental no texto do art. 102, §1º, da CF/88,

tardiamente regulamentado pela Lei 9.882/99. Veja-se que essa distinção entre

inconstitucionalidade e descumprimento da Constituição (restringida a uma parte desta, ou

6 “Qualquer fato praticado pode revelar-se como contrário à Constituição”. TAVARES, André Ramos. Tratado da argüição de preceito fundamental. op. cit., p. 166. 7 “A inconstitucionalidade [...] designa o juízo de identificação da incompatibilidade entre a Constituição e o comportamento ativo ou passivo do legislador ou de quem lhe faça as vezes, ou ainda, em alguns casos, do administrador e mesmo do magistrado.” TAVARES, André Ramos. Tratado da argüição de preceito fundamental. op. cit., p. 175. 8 TAVARES, André Ramos. Tratado da argüição de preceito fundamental. op. cit., p. 178. 9 TAVARES, André Ramos. Tratado da argüição de preceito fundamental. op. cit., p. 179.

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seja, apenas aos seus preceitos fundamentais) traz uma série de implicações do ponto de vista

teórico e processual e marca o sistema brasileiro de controle de forma indelével, visto que os

termos se completam, evitando espaços vazios no controle concentrado10:

Importa distinguir entre inconstitucionalidade e descumprimento da Constituição, no caso brasileiro, embora o descumprimento só vá assumir importância, em nível jurídico-constitucional, quando se tratar de preceito fundamental, porque só assim se autoriza o uso da via da argüição. Ou seja, a distinção que importa é aquela que se dá entre inconstitucionalidade e descumprimento de preceito fundamental, sem que isso signifique que a distinção esteja apenas na referência a “preceito fundamental”, quanto ao descumprimento, e a “todas as normas constitucionais”, quanto à inconstitucionalidade. Há outro sentido que merece ser analisado. Quando o constituinte abandona a técnica de falar de “inconstitucionalidade” para falar em “descumprimento” da Constituição, isso quer significar que pretendeu imprimir uma diferença em relação aos referidos termos – insista-se, diferença esta que vai além da óbvia distinção de que o descumprimento só pode reportar-se a algum preceito considerado fundamental na Constituição (caso contrário não terá relevância prática), ao passo que a inconstitucionalidade pode estar referida a toda a Constituição.11

Indaga o autor: “Qual seria essa diferença entre incidir na inconstitucionalidade e

incidir no descumprimento da Constituição?”12 Fundamenta sua resposta, recapitulando

alguns conceitos diferenciadores esculpidos no próprio texto constitucional13:

a) a violação das normas constitucionais para fins de recurso extraordinário: a

Constituição, nesse caso, fala em “contrariar dispositivo desta Constituição” (art. 102, III, a)

e não em “inconstitucionalidade”;

b) a violação da Constituição para fins de cabimento da ação direta de intervenção: o

Texto Magno traz, por ocasião do tratamento da representação interventiva, a noção de “não

observância” dos princípios constitucionais sensíveis, no sentido inverso da expressão do art.

34.: “A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: [...] VII -

assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais[...]”.[Grifou-se].14

c) a violação da Constituição para fins de cabimento das ações do controle

concentrado: a Constituição brasileira refere-se à inconstitucionalidade apenas quando trata

10 Apesar de, contudo, o objeto do descumprimento ficar, como referido, restrito apenas aos preceitos fundamentais do Texto Magno. 11 TAVARES, André Ramos. Tratado da argüição de preceito fundamental. op. cit., p. 188. 12 TAVARES, André Ramos. Tratado da argüição de preceito fundamental. op. cit., p. 189. 13 TAVARES, André Ramos. Tratado da argüição de preceito fundamental. op. cit., p. 189-197, passim. 14 BRASIL. Constituição (1988). op. cit.

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da ação direta genérica, da ação direta por omissão e da ação declaratória. É por isso que a

inconstitucionalidade tem sido associada aos atos normativos ou omissões, como os únicos

comportamentos capazes de desencadeá-la.

Após essa importante e consubstanciada distinção entre diferentes termos utilizados

pelo texto constitucional para delimitar e diferir os diversos modos de violação da

Constituição, o autor adverte para uma lúcida constatação: “Mas a Constituição – insista-se –

não empregou o termo ‘inconstitucionalidade’ para a argüição, o que [...] representa um

‘silêncio eloqüente’”15, asseverando que:

O problema é que ainda se continua a associar a violação da Constituição à inconstitucionalidade, numa espécie de sinestesia maligna. Na ordem vigente, da violação à Constituição pode originar-se ou uma inconstitucionalidade, em sentido técnico, ou um descumprimento, no caso, de preceito fundamental.16

Dessa crítica ao senso comum acerca da inconstitucionalidade, Tavares parte para uma

conceituação da violação da Constituição como descumprimento para fins de cabimento da

argüição constitucional:

A noção de “descumprimento” é mais longa que a de inconstitucionalidade, que foi acima delineada, podendo açambarcar até mesmo fatos do mundo concreto contrários à “realidade” constitucional (realidade normativa, do mundo do dever ser). O descumprimento, na Carta de 1.988, assemelha-se à noção lata apresentada em nível teórico. Realmente, se com relação à inconstitucionalidade a Constituição refere-se de forma expressa a leis e atos normativos como únicos atos capazes de nela incidir (quando se trata de controle concentrado), o mesmo não ocorreu com o descumprimento, já que quanto a este a Constituição unicamente restringe o parâmetro (há de ser preceito fundamental), mas não o objeto de controle (com o que a medida restou ampla, a admitir toda forma de descumprimento, dê-se por lei, ato normativo, administrativo ou mesmo material, incluindo-se o de caráter privado).17 [Grifou-se].

Todavia, essa concepção de André Ramos Tavares não é imune a críticas. Veja-se, a

propósito, o juízo que faz Roberto Mendes Mandelli Júnior dessa distinção levada a cabo por

Tavares:

Descumprimento é, portanto, espécie do gênero inconstitucionalidade, assim como também contrariedade, utilizada como requisito necessário para interposição de recurso extraordinário, que possibilita um controle difuso de constitucionalidade. [...]

15 TAVARES, André Ramos. Tratado da argüição de preceito fundamental. op. cit., p. 189. 16 TAVARES, André Ramos. Tratado da argüição de preceito fundamental. op. cit., p. 197. 17 TAVARES, André Ramos. Tratado da argüição de preceito fundamental. op. cit., p. 197.

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A diferenciação proposta por André Ramos Tavares, portanto, não deve prosperar, pois qualquer ato descumpridor ou contrário à Constituição poderá ensejar um juízo de inconstitucionalidade, seja o ato concreto ou normativo, seja o ato municipal, estadual ou federal, anterior ou posterior à Constituição.18

Apesar dessas divergências, não se nega – e isso é o mais importante – a ampliação do

objeto da ADPF em relação às outras ações de controle concentrado de constitucionalidade,

como a ADIn, ADInO e ADC. Ou seja, os atos sindicáveis, a partir da introdução do art. 1º da

Lei 9.882/99, passam por um alargamento importante de modo, repise-se, a cobrir um campo

descoberto, de uma fiscalização concentrada, de atuação do Poder Público. Veja-se o art. 1º da

Lei de Regência:

Art. 1º. A argüição prevista no §1º do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público.19

Fica claro da leitura do artigo que são passíveis de impugnação por esse instrumento

os atos do Poder Público, restando ampliada tal noção, por meio de uma exemplificação das

espécies normativas sujeitas à argüição, no seu parágrafo único, inciso I, o qual explica que:

“Caberá também argüição de descumprimento de preceito fundamental: I – quando for

relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal,

estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição”20.

Conforme ensina Mandelli Júnior21, os objetos sindicáveis seriam, portanto, os

seguintes:

a) atos não normativos do Poder Público;

b) leis ou atos normativos municipais; e

c) leis ou atos normativos anteriores à Constituição22.

18 MANDELLI JUNIOR, Roberto Mendes. Argüição de descumprimento de preceito fundamental: instrumento de proteção dos direitos fundamentais e da constituição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 107-108. 19 BRASIL. Lei 9.882, de 3 de dezembro de 1999. op.cit. Acesso em: 30 mar. 2008. 20 BRASIL. Lei 9.882, de 3 de dezembro de 1999. op. cit. Acesso em: 30 mar. 2008. 21 MANDELLI JUNIOR, Roberto Mendes. Argüição de descumprimento de preceito fundamental: instrumento de proteção dos direitos fundamentais e da constituição. op. cit., p. 122-123. 22 Na visão do citado autor que entende que: “Não estão, portanto, aqui incluídos as leis e os atos normativos posteriores à Constituição, posto que estes são impugnáveis pela ação direta de inconstitucionalidade [...]”. MANDELLI JUNIOR, Roberto Mendes. Argüição de descumprimento de preceito fundamental: instrumento de proteção dos direitos fundamentais e da constituição. op. cit., p. 122-123. Essa posição se coaduna, ademais, com o princípio da subsidiariedade (art. 4º, §1º da Lei 9.882/99) aplicável à propositura da ADPF. Tal postura,

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Superar-se-iam, com essa inclusão expressa do legislador, obstáculos criados pela

interpretação dada à Constituição Federal pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no

sentido de não fiscalizar – no controle concentrado e abstrato – atos de efeito concreto23, atos

políticos24, atos normativos secundários25, leis e atos normativos municipais26, bem como leis

ou ato normativos anteriores à atual Constituição Federal27, entre outros atos do Poder

Público, dada a generalidade do termo que pode açambarcar inúmeros outras atuações dos

entes estatais de quaisquer das três esferas (federal, estadual e municipal).

todavia, não é pacífica. André Ramos Tavares entende que, atualmente, é a ADPF o meio principal de fiscalização concentrada de constitucionalidade: “[...] a verdade é que com a introdução da argüição, o mais coerente e constitucionalmente admissível será para ela desviarem-se todos – insista-se uma vez mais – todos os casos de descumprimento de preceitos fundamentais da Constituição. É o que impõe a própria sistemática constitucional. Com essa estruturação a medida estaria, como se percebe, angariando parte do que, historicamente, tem pertencido à ação chamada genérica [...]. Dessa forma, no que respeita aos preceitos fundamentais, o objeto da ação genérica foi total e exclusivamente absorvido pela argüição.” TAVARES, André Ramos. Tratado da argüição de preceito fundamental. op. cit., p. 235. 23 “A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem considerado inadmissível a propositura de ação direta de inconstitucionalidade contra atos de efeito concreto. Assim, tem-se que a ação direta é o meio pelo qual se procede ao controle de constitucionalidade das normas jurídicas in abstracto [...]”. MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 198. 24 A esse respeito, veja-se a discussão sobre a sindicabilidade do veto político e das políticas públicas realizada de forma detalhada adiante. 25 “O STF firmou jurisprudência no sentido de admitir como objeto impugnável por um controle concentrado e abstrato de constitucionalidade, por meio da ação direta de inconstitucionalidade, somente os atos normativos primários – que retiram fundamento de validade diretamente da Constituição – e os regulamentos autônomos, manifestamente ausentes de fundamento legal, por invadirem esfera reservada à lei.” MANDELLI JUNIOR, Roberto Mendes. Argüição de descumprimento de preceito fundamental: instrumento de proteção dos direitos fundamentais e da constituição. op. cit., p. 126. 26 Os atos normativos municipais não estão sujeitos ao controle concentrado e abstrato, via ADIn e ADC, visto que a Constituição somente fala, quando disciplina o tema, em sindicabilidade dos atos normativos estaduais e federais em face da Constituição Federal. Assim, até a regulamentação da ADPF, existia apenas o controle concentrado e abstrato das leis municipais feito pelos Tribunais de Justiça dos Estados em caso de contrariedade à respectiva Constituição Estadual (art. 125, §2º da CF/88) e o controle difuso de constitucionalidade das leis municipais em face da CF. Veja-se, assim, a grande inovação, nesse ponto, da Lei de Regência da ADPF. Contudo, deve-se atentar para a advertência de Binenbojm de que: “[...] a Lei nº 9.882/99 não conferiu legitimidade aos Prefeitos Municipais, nem tampouco às Mesas de Câmaras Municipais ou qualquer entidade pública ou privada de âmbito municipal, para manejarem o novo instrumento. Resta saber a quem interessará deflagrar, via argüição de descumprimento de preceito fundamental, a jurisdição da Suprema Corte para o exercício do controle de constitucionalidade de leis e atos normativos municipais. Espera-se que a Lei nº 9.882/99 não tenha criado – como diria Barbosa Moreira – um sino sem badalo”. BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional brasileira: legitimidade democrática e instrumentos de realização. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 213-214. 27 O Supremo entende que aqui se trataria de mera questão de revogação da norma anterior à CF atual, não existindo, pois, inconstitucionalidade superveniente. Veja-se a esse respeito a ADIn 02-DF, de relatoria do Min. Paulo Brossard, j. 06.02.1992, DJU 21.11.1997, p. 60.585. A questão, contudo, não é pacífica nem mesmo no Pretório Excelso, haja vista os votos vencidos dos Ministros Marco Aurélio, Sepúlveda Pertence e Néri da Silveira.

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Percebe-se, do exposto, que a ADPF tem seu próprio campo de atuação no controle

concentrado de constitucionalidade, o que a distingue dos demais instrumentos dessa espécie

de fiscalização. Relembrando as palavras de Tavares28, pode-se dizer que a argüição de

descumprimento tem seu parâmetro restringido com relação às demais ações constitucionais

abstratas (há de ser preceito fundamental), mas, não o seu objeto de controle, isto é, abarca

todos os atos do Poder Público, e não apenas os atos normativos:

A verdade é que, em muitos sistemas constitucionais, nem todos os actos dos poderes públicos estão sujeitos à fiscalização de constitucionalidade. Nuns o controlo está limitado aos actos normativos. Noutros, não abrange sequer todos os actos normativos, estanco excluídas as leis parlamentares – como sucede na Suíça com as leis federais –, ou ao invés as “leis” governamentais – como sucede na França. Tradicional é a exclusão da fiscalização dos “actos políticos” ou “actos de governo”. No caso português é evidente a discrepância entre o art. 3º da CRP, segundo o qual “a validade das leis e dos demais actos do Estado depende da sua conformidade com a Constituição”, e o sistema de fiscalização, que apenas prevê o controlo dos actos normativos (para além do caso especial dos actos de convocação dos referendos). É bom de ver que em termos lógicos só pode dizer-se perfeito (no sentido completo, acabado) o sistema de fiscalização que abranja todos os actos do poder, se e na medida em que são constitucionalmente vinculados. A liberdade de decisão política deve ser salvaguardada pela garantia na Constituição de adequadas esferas de discricionariedade política, e não mediante normas constitucionais imperfeitas, isentas de fiscalização de constitucionalidade. Como quer que seja, afigura-se que não devem continuar livres do controlo de constitucionalidade os actos do Estado, qualquer que seja a sua natureza, normativa ou não, desde que afectem quaisquer dos interesses ou posições constitucionalmente garantidas [...].29 [Grifou-se].

Nessa ampliação dos atos abarcados pelo controle de constitucionalidade operada pela

Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, é que reside aquilo que chamamos

aqui de completude30 do controle concentrado de constitucionalidade brasileiro – que Moreira

chamou de perfeição do sistema de fiscalização – que o coloca na vanguarda do

constitucionalismo contemporâneo.

28 TAVARES, André Ramos. Tratado da argüição de preceito fundamental. op. cit., p. 197. 29 MOREIRA, Vital. Princípio da maioria e princípio da constitucionalidade: legitimidade e limites da justiça constitucional. In. SOUZA E BRITO, José de Souza. et al. Legitimidade e legitimação da justiça constitucional.: colóquio no 10º aniversário do Tribunal Constitucional – Lisboa, 28 e 29 de maio de 1993. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 187. 30 Cattoni de Oliveira usa a expressão “ilhas de discricionariedade” para falar do (largo) campo de atuação não abarcado pelo controle de constitucionalidade, mormente em função do judicial self restraint adotado por alguns tribunais pátrios. CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo. Uma justificação democrática do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, p. 26. Tavares fala na “colmatação de lacunas” pela ADPF: “[...] não obstante já contar o sistema constitucional com outras vias, elas não contemplavam totalmente o combate à desobediência ao Texto Magno, lacunas essas que, ao menos no tocante aos preceitos fundamentais, vieram a ser colmatadas pela argüição.” TAVARES, André Ramos. Tratado da argüição de preceito fundamental. op. cit., p. 283-284.

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2. Possibilidades de controle judicial de políticas públicas: o caso da ADPF nº 45 –

limites da jurisdição constitucional brasileira

A demonstrada ampliação do sistema brasileiro de controle abstrato e concentrado de

normas a partir da argüição de descumprimento traz consigo um problema no tocante à

legitimidade da atuação – cada vez mais interventiva – do Poder Judiciário (jurisdição

constitucional). Não pretendemos aprofundar aqui a polêmica acerca dos limites dos tribunais

(constitucionais) no Estado Democrático de Direito, nem as potencialidades lesivas à

democracia de uma jurisdição constitucional interventiva31. Todavia, tangenciar a tensão entre

liberais, comunitários e procedimentalistas é pano de fundo necessário para compreendermos

a complexidade e amplitude das questões decididas na Argüição de Descumprimento de

Preceito Fundamental nº 45:

Como salienta Barroso32, caso apreciada apenas quanto à decisão prolatada, a ADPF

45 não se destacaria, já que foi considerada prejudicada pela perda superveniente de seu

objeto. Nessa ADPF, questionava o argüente (Partido da Social Democracia Brasileira –

PSDB) veto presidencial aposto a proposição legislativa constante da Lei de Diretrizes

Orçamentárias (§2º do art. 55, renumerado, posteriormente, para art. 59) que assim versava:

Art. 55. A proposta orçamentária incluirá os recursos necessários ao atendimento: I— (...) II — da aplicação mínima em ações e seiviços públicos de saúde, em cumprimento ao disposto na Emenda Constitucional n.° 29, de 13 de setembro de 2000. §1.º (...) §2.° Para efeito do inciso II do caput, consideram-se como ações e serviços públicos de saúde a totalidade das dotações do Ministério da Saúde, deduzidos os encargos previdenciários da União, os serviços da dívida e a parcela das despesas do Ministério financiada com recursos do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza.33

Aduziu ainda o autor da ação que:

[...] o Poder Constituinte estabeleceu um piso mínimo de recursos a serem aplicados no que chamou de “ações e serviços públicos de saúde”. Desde então, considerando as Leis de Diretrizes Orçamentárias editadas desde o advento da Emenda Constitucional n.° 29, a definição do que vem a ser “ações e serviços públicos de saúde” sempre foi “a totalidade das dotações do Ministério da Saúde, deduzidos os encargos previdenciários da União, os serviços da dívida e a

31 Conferir LEAL, Rogério Gesta. O Estado-juiz na democracia contemporânea: uma perspectiva procedimentalista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. 32 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 278. 33 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45/DF. Petição Inicial. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso em: 10 mar. 2008.

11

parcela das despesas do Ministério financiada com recursos do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza”.34

Assim, o veto estaria a incorrer em subversão do arquétipo tipificado pelo texto

constitucional (após a Emenda Constitucional nº 29/2000) no que se refere aos recursos

atinentes aos serviços públicos de saúde.

Veja-se que a problemática reside em dois temas candentes no contexto

contemporâneo da justiça constitucional brasileira. O primeiro diz com a possibilidade de

controle de constitucionalidade de vetos (seja por inconstitucionalidade, seja político35) e o

segundo com o controle/concretização judicial de políticas públicas36.

No que se refere à sindicabilidade judicial dos vetos, tem-se que essa questão já havia

sido enfrentada pelo Pretório Excelso no seu primeiro julgado em sede de ADPF. Naquela

oportunidade – em que o Partido Comunista do Brasil (PC do B) interpusera ADPF em face

de veto do Prefeito do Rio de Janeiro a projeto de lei que elevava o valor do imposto predial e

territorial urbano (IPTU) – assentou o Tribunal, resolvendo Questão de Ordem, o seguinte:

[...] 8. No processo legislativo, o ato de vetar, por motivo de inconstitucionalidade ou de contrariedade ao interesse público, e a deliberação legislativa de manter ou recusar o veto, qualquer seja o motivo desse juízo, compõem procedimentos que se hão de reservar à esfera de independência dos Poderes Políticos em apreço. 9. Não é, assim, enquadrável, em princípio, o veto, devidamente fundamentado, pendente de deliberação política do Poder Legislativo - que pode, sempre, mantê-lo ou recusá-lo, - no conceito de "ato do Poder Público", para os fins do art. 1º, da Lei nº 9882/1999. Impossibilidade de intervenção antecipada do Judiciário, - eis que o projeto de lei, na parte vetada, não é lei, nem ato normativo, - poder que a ordem jurídica, na espécie, não confere ao Supremo Tribunal Federal, em via de controle concentrado. 10. Argüição de descumprimento de preceito fundamental não conhecida, porque não admissível, no caso concreto, em face da natureza do ato do Poder Público impugnado.37

34 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45/DF. Petição Inicial. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso em: 10 mar. 2008. 35 A mensagem presidencial deixa claro que o veto nesse caso é político, pois refere que a exclusão das dotações orçamentárias do Ministério da Saúde financiadas com recursos do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza do montante de recursos a serem aplicados em ações e serviços públicos de saúde cria dificuldades para o alcance do equilíbrio orçamentário, em face da escassez de recursos disponíveis, o que contraria o interesse público, motivo pelo qual se propõe oposição de veto a esse dispositivo. 36 No caso específico, serviços públicos de saúde. 37 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 1/RJ. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso em: 03 mar. 2008.

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Luis Roberto Barroso explica quais são as duas posições interpretativas acerca da

sindicabilidade (controle judicial de constitucionalidade) dos atos políticos, mais

especificamente dos vetos, em especial aquele aposto por motivo de inconstitucionalidade:

O veto, por qualquer dos dois fundamentos – inconstitucionalidade ou contrariedade ao interesse público –, sujeita-se a um controle político das casas legislativas que haviam aprovado o projeto, podendo ser rejeitado pela maioria absoluta de seus membros em votação secreta. A doutrina tem especulado se caberia controle judicial do veto aposto pelo Chefe do Executivo fundado em inconstitucionalidade, para aferir do acerto de seu juízo acerca da ilegitimidade constitucional do projeto. O entendimento mais tradicional é o de que se trataria de uma competência política discricionária, e, conseqüentemente, insuscetível de apreciação de mérito pelo Judiciário. Nada obstante, a literatura jurídica mais recente tem optado, com melhor razão, pela vinculação do Chefe do Executivo à Constituição e à realidade dos motivos que invoca para a prática de determinado ato. Por essa linha, representantes da maioria que aprovou o projeto deveriam ter reconhecido a possibilidade de suscitar a controvérsia, utilizando-se, por exemplo, de mandado de segurança.38

O voto do Ministro-relator Néri da Silveira é elucidativo da posição (tradicional) do

Pretório Excelso nesse caso, tendo sido seguido à unanimidade na decisão:

É insuscetível de dúvida que o veto constitui ato do Poder Executivo, em sentido próprio. Análise, entretanto, da natureza desse ato conduz à compreensão de não ser ele enquadrável no conceito de ato do Poder Público de que cogita o art. 1º da Lei nº 9.882/1999 e, assim, não admissível a argüição de descumprimento de preceito fundamental, para impugná-lo, nos termos em que aforada. [...] O exercício da faculdade de apor veto, total ou parcial, a projeto de lei aprovado pelo Poder Legislativo, manifesta, no sistema constitucional pátrio, a independência do Poder Executivo e a índole política do ato praticado, quer quando o motivo do veto for a contrariedade ao interesse público, quer quando o motivo do veto for a contrariedade ao interesse público do projeto de lei, em sua integralidade ou em parte, quer quando contra ele se invoca o fundamento de inconstitucionalidade. Se, no último caso, se pode, também conhecer a contribuição do Poder Executivo no sentido de preservar a higidez da ordem jurídica, decerto, tal não esvazia o caráter político do ato de vetar. [...] Do exposto, resolvendo a Questão de Ordem, não conheço da argüição de descumprimento de preceito fundamental, porque não cabível no caso concreto, em face da natureza do ato do Poder Público impugnado, ficando, em conseqüência, prejudicado o pedido de liminar.39

Destarte, apesar de o relator, Ministro Celso de Mello, ter julgado, em decisão

monocrática datada de 29 de abril de 2004, prejudicada a argüição nº 45, como já referido, por

perda superveniente do objeto, houve uma sinalização da possibilidade de mudança de rumos

38 BARROSO, Luís Roberto. op. cit., p. 68. 39 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 1/RJ. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso em: 03 mar. 2008.

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na jurisprudência da Corte no que se refere ao veto, tendo em vista o leading case que foi a

ADPF nº 1.40

Deve-se evitar, contudo, ilações apressadas nesse ponto, pois em julgamento posterior

(ocorrido em 07.05.2007), o Min. Eros Grau, também em decisão monocrática, referendando

posicionamentos do Tribunal nas ADPFs 1/DF, 63/AP e 64/AP, negou processamento à

ADPF nº 73/DF, em que se questionava exatamente a possibilidade de controle judicial de

constitucionalidade de veto presidencial que estaria a ferir o orçamento da saúde, sob os

seguintes fundamentos:

O Partido da Social Democracia Brasileira - PSDB propõe argüição de descumprimento de preceito fundamental, com pedido de liminar, indicando como ato lesivo o veto parcial do Presidente da República ao Projeto de Lei n. 3, de 2004 – CN, que resultou na Lei n. 10.934, de 11 de agosto de 2.004. A lei mencionada dispõe sobre diretrizes para a elaboração da lei orçamentária de 2.005. 2. O argüente sustenta que seria patente o cabimento desta ADPF. Isso porque o ato de que se trata, veto a lei de diretrizes orçamentárias, não seria impugnável pela via da ação direta. Diz que Supremo Tribunal Federal entende que as leis de diretrizes orçamentárias consubstanciam atos de efeitos concretos. [...] 6. É o relatório. Decido. 7. A questão posta nestes autos diz com a possibilidade de análise, pelo Supremo Tribunal Federal, de veto aposto no projeto de lei de diretrizes orçamentárias do ano de 2005, no ponto concernente aos recursos destinados às ações e serviços de saúde. 8. O argüente sustenta inicialmente que o requisito da subsidiariedade, inerente à argüição de preceito fundamental, estaria atendido em razão do caráter orçamentário da lei que sofreu o veto presidencial. [...] 12. O Supremo Tribunal Federal, em oportunidade anterior, discutiu o cabimento de ADPF cujo ato lesivo era veto presidencial, então fixando entendimento no sentido de sua inadmissibilidade: [...] [ADPF n. 1/QO, DJ de 7 de novembro de 2.003]. 13. A presente argüição de descumprimento de preceito fundamental carece de condições que viabilizem o seu prosseguimento.41 [Grifou-se].

Todavia, o ponto nevrálgico está no manejo de uma ação do controle concentrado e

abstrato de normas para controle judicial de políticas públicas, o que o Ministro Relator faz

questão de deixar claro na fundamentação apesar de no decisum julgá-la prejudicada42:

40 É esta a opinião de Barroso: “Além disso, [a ADPF 45] admite a possibilidade de controle do veto do Poder Executivo a projeto de lei aprovado, o que na ADPF (QO) n. 1/RJ foi considerado inviável, dada a natureza política do ato.” BARROSO, Luís Roberto. op. cit., p. 278. 41 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 73/DF. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso em: 20 mar. 2008. 42 A ADPF nº 45 restou prejudicada pelo seguinte motivo: “Vale referir que o Senhor Presidente da República, logo após o veto parcial ora questionado nesta sede processual, veio a remeter, ao Congresso Nacional, projeto de lei, que, transformado na Lei nº 10.777/2003, restaurou, em sua integralidade, o § 2º do art. 59 da Lei nº 10.707/2003 (LDO), dele fazendo constar a mesma norma sobre a qual incidira o veto executivo. Em virtude da mencionada iniciativa presidencial, que deu causa à instauração do concernente processo legislativo, sobreveio a edição da já referida Lei nº 10.777, de 24/11/2003, cujo art. 1º - modificando a própria Lei de Diretrizes Orçamentárias (Lei nº 10.707/2003) - supriu a omissão motivadora do ajuizamento da presente ação

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Não obstante a superveniência desse fato juridicamente relevante, capaz de fazer instaurar situação de prejudicialidade da presente argüição de descumprimento de preceito fundamental, não posso deixar de reconhecer que a ação constitucional em referência, considerado o contexto em exame, qualifica-se como instrumento idôneo e apto a viabilizar a concretização de políticas públicas, quando, previstas no texto da Carta Política, tal como sucede no caso (EC 29/2000), venham a ser descumpridas, total ou parcialmente, pelas instâncias governamentais destinatárias do comando inscrito na própria Constituição da República.43 [Grifou-se].

A clareza é ímpar. Cinja-se que, consoante panorama delineado no capítulo anterior,

as demais ações do controle concentrado-abstrato de constitucionalidade não seriam meios

idôneos a controlar essa espécie de ato do Poder Público, em função da concretude do ato.

Citando a jurisprudência do Pretório Excelso, explica Gilmar Mendes:

Na mesma linha de orientação, afirma-se que “atos estatais de efeitos concretos, ainda que veiculados em texto de lei formal, não se expõem, em sede de ação direta, à jurisdição constitucional abstrata do Supremo Tribunal Federal” (...), porquanto “a ausência de densidade normativo no conteúdo do preceito legal impugnado desqualifica-o – enquanto objeto juridicamente inidôneo – para o controle normativo abstrato”. Em outro julgado, afirmou-se que disposição constante da lei orçamentária que fixava determinada dotação configuraria ato de efeito concreto, insuscetível de controle jurisdicional de constitucionalidade por via de ação (“Os atos estatais de efeitos concretos – porque, despojados de qualquer coeficiente de normatividade ou de generalidade abstrata – não são passíveis de fiscalização, em tese, quanto à sua legitimidade constitucional”).44

A inicial também anda nesse sentido, de modo – inclusive – a preencher o pressuposto

geral de admissibilidade de subsidiariedade esculpido no art. 4º, §1º, da Lei de Regência:

A respeito do cabimento, quanto ao descumprimento de preceito constitucional, apesar do ato atacado estar contido em lei ordinária federal, seu descompasso com a Constituição Federal não pode ser argüido pela via da Ação Direta de Inconstitucionalidade, pois a Lei de Diretrizes Orçamentárias— LDO é ato normativo de efeitos concretos.45

constitucional.” BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45/DF. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso em: 10 mar. 2008. [Grifou-se]. 43 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45/DF. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso em: 10 mar. 2008. 44 MENDES, Gilmar Ferreira. cp. cit., p. 198. 45 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45/DF. Petição Inicial. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso em: 10 mar. 2008.

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O seguinte trecho não deixa dúvidas que a posição – ao menos individual do Relator –

é por uma atuação interventiva do Poder Judiciário na concretização de políticas públicas, o

que somente pode ocorrer no âmbito do controle concentrado-abstrato com a ADPF:

Essa eminente atribuição conferida ao Supremo Tribunal Federal põe em evidência, de modo particularmente expressivo, a dimensão política da jurisdição constitucional conferida a esta Corte, que não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais - que se identificam, enquanto direitos de segunda geração, com as liberdades positivas, reais ou concretas (RTJ 164/158-161, Rel. Min. CELSO DE MELLO) -, sob pena de o Poder Público, por violação positiva ou negativa da Constituição, comprometer, de modo inaceitável, a integridade da própria ordem constitucional.46

Vislumbra-se, pois, que essa nova função do Judiciário estaria vinculada à dimensão

social dos direitos fundamentais incorporados pela Carta Magna de 1988, eis que o direito e,

por conseqüência, o Estado-juiz, deixa de ser o locus de decisão de conflitos individuais

(direitos negativos) para ser promotor de políticas públicas de inclusão social (direitos

prestacionais). Como aponta Eros Grau:

A contemplação, nas nossas Constituições, de um conjunto de normas compreensivo de uma “ordem econômica, ainda que como tal não formalmente referido, é expressiva de marcante transformação que afeta o direito, operada no momento em que deixa de meramente prestar-se à harmonização de conflitos e à legitimação do poder, passando a funcionar como instrumento de implementação de políticas públicas.47

Porém, o Relator tem o cuidado de deixar claro que possui consciência de que: “É

certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder

Judiciário - e nas desta Suprema Corte, em especial - a atribuição de formular e de

implementar políticas públicas.”48 Haveria, repise-se, uma inédita virada jurisprudencial na

Corte Suprema brasileira – tendo sempre a cautela de perceber que se trata de decisão

monocrática, não tendo sido a questão sequer levada ao Plenário – no sentido de superar a

velha doutrina das questões políticas e da judicial self restraint importadas de forma acrítica

do contexto norte-americano e de há muito criticadas pela doutrina pátria.

46 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45/DF. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso em: 10 mar. 2008. 47 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 16. 48 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45/DF. Petição Inicial. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso em: 10 mar. 2008.

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Canotilho, explicando o âmbito de incidência do princípio da autolimitação judicial

em questões políticas no âmbito da jurisdição constitucional, esclarece que:

O princípio foi definido pelo juiz Marshall como significando haver certas “questões políticas”, da competência do Presidente, em relação às quais não pode haver controle jurisdicional. No entanto, como acentua a própria doutrina americana, a doutrina das questões políticas não pode significar a existência de questões constitucionais isentas de controlo. Em primeiro lugar, não deve admitir-se uma recusa de justiça ou declinação de competência do Tribunal Constitucional só porque a questão é política e deve ser decidida por instâncias políticas. Em segundo lugar, como já se disse, o problema não reside em, através do controlo constitucional, se fazer política, mas sim em apreciar; de acordo com os parâmetros jurídico-materiais da constituição, a constitucionalidade da política. A jurisdição constitucional tem, em larga medida, como objecto, apreciar a constitucionalidade do “político”. Não significa isto, como é óbvio, que ela se transforme em simples “jurisdição política”, pois tem sempre de decidir de acordo com os parâmetros materiais fixados nas normas e princípios da constituição. Conseqüente, só quando existem parâmetros jurídicos-constitucionais para o comportamento político pode o TC apreciar a violação desses parâmetros.49 [Grifou-se].

Todavia – e a citação de Canotilho deixa isto claro –, a superação da antiga doutrina

das political questions (judicial self restraint) não deve levar ao extremo oposto (gigantismo

judicial). E aqui se insere o nó górdio da justiça constitucional num Estado democrático pós-

convencional em que não se pode confiar a apenas um dos Poderes a tarefa de regente da

sociedade imersa numa espécie de menoridade cívica50. Em outras palavras, como conciliar a

necessidade de implementação de políticas públicas sociais previstas no texto constitucional

sem sobrelevar demasiadamente o papel de um dos poderes estatais? O debate sobre a

jurisdição constitucional ganha relevo como justificação teórica de decisões judiciais,

essencialmente no âmbito do controle abstrato de normas.

49 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 4. ed. Lisboa: Almedina, [s.d.], p. 1264. 50 Kant já apregoava, no ano de 1783, o esclarecimento (Aufklãrung) como forma de saída do homem da sua menoridade: “A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma grande parte dos homens, depois que a natureza de há muito os libertou de sua direção estranha (naturaliter maiorennes), continuem, não obstante, de bom grado menores durante toda a vida. São também as causas que explicam porque é tão fácil que os outros constituam seus tutores. É tão cômodo ser menor! Se tenho um livro que faz as vezes de meu entendimento, um diretor espiritual que por mim tem consciência, um médico que decide por mim a respeito de minha dieta, etc., então não preciso esforçar-me eu mesmo.” KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: Que é “Esclarecimento”? (“Aufklãrung”). In: . Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. São Paulo: Martin Claret, 2004, p. 115. Essa crítica, mutatis mutandis, poderia ser transportada ao conjunto da sociedade contemporânea que espera a tutela ou de um Executivo assistencialista ou de um Legislativo impositivo, ou mesmo de um Judiciário interventor, ao invés de levar a cabo uma postura de cidadania ativa e protagonista de sua história. Conferir LEAL, Rogério Gesta. Estado, administração pública e sociedade: novos paradigmas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

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Sustentamos que o autor que melhor coaduna a realização dos direitos e garantias

fundamentais sem o risco de subtrair da sociedade civil oportunidades de participação em

temas que lhe digam respeito é J. Habermas ao buscar uma postura intermediária entre

liberais e comunitários.51

Habermas parte da concepção de que “somente as condições processuais da gênese

democrática das leis asseguram a legitimidade do direito”52 para demonstrar que o nexo

interno ente soberania do povo e direitos humanos somente é possível por meio da teoria do

discurso que, superando jusnaturalismo e juspositivismo, revela a co-originariedade da

autonomia privada e pública a partir da noção de autolegislação na qual os destinatários são

simultaneamente os autores de seus direitos.

De pronto, importa relembrar que as críticas à jurisdição constitucional produzidas

pelo autor tedesco são dirigidas essencialmente à jurisprudência de valores levada a cabo pelo

Tribunal Federal Alemão a partir da década de 1950. Ele também analisa o sistema norte-

americano no qual a controvérsia atinente à legitimidade da jurisprudência constitucional

estaria mais vinculada à política do que à teoria do direito:

As reservas contra a legitimidade da jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal não dependem apenas da mudança de paradigmas, mas também de opções metodológicas. Na República Federal da Alemanha, a crítica pode referir-se a uma “doutrina da ordem de valores”, desenvolvida pelo próprio tribunal, portanto a autocompreensão metodológica dos juízes, a qual teve conseqüências problemáticas para a decisão de importantes precedentes, o que não acontece nos Estados Unidos. A crítica justificada à jurisprudência de valores dirige-se, muitas vezes, de forma brusca, contra as graves conseqüências que resultam do Estado de direito, sem esclarecer que se trata apenas, e em primeiro lugar, de conseqüências de uma auto-interpretação falsa. Com isso, ela perde de vista a alternativa de uma compreensão correta da interpretação construtiva, segunda a qual, direitos não podem ser assimilados a valores.53

A identificação entre direitos e valores é inaceitável para Habermas, eis que essa

atividade interventiva, a par de buscar uma efetividade do texto magno, acaba por,

paradoxalmente, enfraquecer a Constituição:

51 CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva: elementos da filosofia constitucional contemporânea. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2004, p. 183. 52 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. Rio de Janeiro; Tempo Brasileiro, 2003, v. 1, p. 326. 53 HABERMAS, Jürgen. op. cit., p. 314-315.

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Os que pretendem diluir a constituição numa ordem concreta de valores desconhecem seu caráter jurídico específico; enquanto normas do direito, os direitos fundamentais, como também as regras morais, são formados segundo o modelo de normas de ação obrigatórias – e não segundo o modelo de bens atraentes.54

Claro está que a crítica habermasiana é bem localizada temporal e especialmente. Não

pode, portanto, ser transportada de forma acrítica (abstrata) para outros países:

A discussão sobre o tribunal constitucional – sobre seu atavismo ou automodéstia – não pode ser conduzida in abstracto. Quando se entende a constituição como interpretação e configuração de um sistema de direitos que faz valer o nexo interno entre autonomia privada e pública, é bem-vinda uma jurisprudência constitucional ofensiva (offensiv) em casos nos quais se trata da imposição do procedimento democrático e da forma deliberativa da formação política da opinião e da vontade: tal jurisprudência é até exigida normativamente. Todavia, temos que livrar o conceito de política deliberativa de conotações excessivas que colocariam o tribunal constitucional sobre pressão permanente. Ele não pode assumir o papel de um regente que entra no lugar de um sucessor menor de idade. Sob os olhares críticos de uma esfera pública jurídica politizada – da cidadania que se transformou na “comunidade dos intérpretes da constituição”-, o tribunal constitucional pode assumir, no melhor dos casos, o papel de um tutor.55

Como explica Appio, fazendo um comparativo com o contexto norte-americano em

que não existem limites normativo-constitucionais claros à intervenção judicial, o caso

brasileiro é diverso, pois aqui existe sim uma definição constitucional clara acerca da função

do Estado-juiz (em especial, o juiz constitucional):

No caso brasileiro, contrariamente, o debate gravita em torno dos limites da atividade judicial em face da omissão do Poder Público, especialmente no que tange ao atendimento dos direitos sociais previstos de modo expresso no caput do art. 6º da Constituição Federal, como, por exemplo, o direito à moradia, à saúde e à educação. Estes direitos, tomados em sua expressão literal, conduzirão a um debate diferente no Brasil, já que a defesa da aplicabilidade imediata e ampla dos direitos sociais parte de uma interpretação literal da própria Constituição. A Constituição brasileira, por sua natureza analítica e compromissária, irá definir direitos sociais, os quais, considerados a partir de uma interpretação literal, poderiam conduzir a uma concepção plenamente compatível com o “ativismo judiciário”. Portanto, somente a partir de um debate acerca do conteúdo do princípio democrático no Brasil se revela possível traçar limites para a atividade judicial de controle das políticas públicas, quando então o papel dos juízes terá de ser redefinido a partir do Estado neoliberal.56 [Grifou-se].

Não significa, portanto, que o Judiciário está autorizado a invadir esferas de

competência dos demais poderes estatais; todavia, inegável que se deve buscar uma atuação

equilibrada dentro do próprio sistema jurídico pátrio que contempla mecanismos de check and

balances capazes de auto-corrigirem desvios de rumo. Como já escrevemos:

54 HABERMAS, Jürgen. op. cit., p. 318. 55 HABERMAS, Jürgen. op. cit., p. 346-347. 56 APPIO, Eduardo. Controle judicial das políticas públicas no Brasil. Curitiba: Juruá Editora, 2006, p. 48.

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Se for verdade que, ao menos em grande parte dos países de modernidade tardia e economia dependente, como o Brasil, o surgimento de um Judiciário promovedor de medidas sociais compensatórias e mesmo satisfativas para determinadas demandas individuais e coletivas revelou-se importante para assegurar o mínimo existencial configurador da dignidade da pessoa humana, é igualmente verossímil que tal comportamento não pode ser tomado como fórmula substitutiva e mesmo emancipadora dos demais poderes instituídos e de suas funções democráticas – inclusive no plano filosófico do seu significado -, eis que precisa ser cotejado no âmbito específico da idéia revisada de Democracia Representativa, ainda vigente no sistema política ocidental.57

O problema está, pois, em garantir o mínimo existencial consubstanciador da

dignidade da pessoa humana, atingindo o menos possível as estruturas republicanas

democráticas e representativas, eis que veiculadoras de institutos igualmente constitucionais58.

Essa não é tarefa fácil, mormente num país como o Brasil, mas cremos que Habermas traz

alguns indicativos bastante lúcidos (notadamente no Facticidade e Validade) na conformação

de um Judiciário democrático, que assim podemos resumir:

(a) Deve-se evitar a confusão entre normas e valores através de suas respectivas

referências ao agir obrigatório (normas têm validade deontológica com sentido absoluto) ou

teleológico (valores têm valor relativo de uma apreciação de bens/fins);

(b) Deve-se evitar a problemática da “indeterminação do direito”: os tribunais

constitucionais não podem incorrer na autocompreensão falsa de buscar um direito

suprapositivo, além da totalidade das leis positivadas pelo Estado;

(c) Deve-se evitar a invasão de competência dos demais Poderes do Estado: o tribunal

deve buscar a proteção do sistema de direitos que possibilita a autonomia pública e privada

dos cidadãos. Esse seria o sentido para as competências do tribunal constitucional que

corresponde à intenção da divisão de poderes no interior do Estado de direito.

Assim, Habermas defende sim o instituto da jurisdição, sendo que suas críticas – ao

contrário do que pensam seus contendores mais apressados – são a posturas irracionais e

decisionistas que desconsiderariam o nexo entre Estado de Direito e democracia. A judicial

review deve garantir os direitos fundamentais sem os quais não há autonomia cidadã59:

57 LEAL, Rogério Gesta. O Estado-juiz na democracia contemporânea. op. cit., p. 93. 58 Cf. LEAL, Rogério Gesta. O Estado-juiz na democracia contemporânea. op. cit., p. 94. 59 HABERMAS, Jürgen. op. cit., p. 154: “Esses sistema [de direitos] deve contemplar os direitos fundamentais que os cidadãos são obrigados a se atribuir mutuamente, caso queiram regular sua convivência com os meios

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A defesa habermasiana do instituo do judicial review, diferentemente da postura comunitária que o identifica como entrave ao processo democrático, fundamenta-se na vinculação conceitual e normativa entre Estado de Direito e democracia radical. Da relação co-original entre a autonomia privada e autonomia pública resulta que os direitos dos cidadãos não lhes foram atribuídos senão por eles mesmos enquanto co-legisladores. Conseqüentemente, se a gênese democrática do sistema de direitos ancora-se necessariamente em uma cidadania ativa, isto significa que “o legislador político, nem na Alemanha, nem em nenhuma outra parte, tem a faculdade para restringir ou abolir direito fundamentais.”60

Retomando a decisão da ADPF nº 45, podemos vislumbrar que o Relator não buscou

uma ordem suprapositiva de valores ou mesmo procedeu a uma auto-interpretação equivocada

do juiz constitucional como criador de direitos não positivados; apenas procedeu à

interpretação da Constituição Federal de modo razoável, garantindo a higidez do texto

constitucional, a partir da completude do controle concentrado de constitucionalidade trazida

pelo instituto da argüição de preceito fundamental. Veja-se o seguinte excerto:

É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário - e nas desta Suprema Corte, em especial - a atribuição de formular e de implementar políticas públicas (JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, "Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976", p. 207, item n. 05, 1987, Almedina, Coimbra), pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo. Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático.61

A função residual do Judiciário é realçada:

Não obstante a formulação e a execução de políticas públicas dependam de opções políticas a cargo daqueles que, por delegação popular, receberam investidura em mandato eletivo, cumpre reconhecer que não se revela absoluta, nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de atuação do Poder Executivo. É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do

legítimos do direito positivo.” O autor, mais à frente, esclarece que tais direitos fundamentais não são direitos naturais apriorísticos: “Nada vem antes da prática de autodeterminação dos civis, a não ser, de um lado, o princípio do discurso, que está inserido nas condições da socialização comunicativa em geral, e de outro lado, o médium do direito.” (p. 165). 60 CITTADINO, Gisele. op. cit., p. 214. 61 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45/DF. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso em: 10 mar. 2008.

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indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedentemente já enfatizado - e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico -, a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado.62

Ao fim e ao cabo, forçoso concluir, ao menos por ora, que a questão – que, sem

dúvida, é complexa e polêmica – demanda uma maior maturação no seio do Supremo

Tribunal Federal, pois revela apenas a posição de um de seus ministros que, apesar de estar

esboçada em decisão monocrática, não faz coisa julgada, pois o dispositivo foi pela denegação

da ADPF nº 45.

Considerações finais

Vimos que a completude do sistema abstrato de controle de constitucionalidade

brasileiro traz um indissociável problema de legitimidade democrática do Judiciário na

sindicabilidade de atos até então estranhos ao judicial review, como vetos políticos ou a

concretização de políticas públicas.

A matriz teórica que melhor resolve esse aparente impasse entre a necessidade de

implementação ótima dos direitos fundamentais sociais e a garantia da democracia

procedural/procedimental é a teoria do discurso habermasiana. O equilibro/co-originariedade

entre direitos humanos fundamentais e soberania popular é resgatada na obra de Habermas,

em especial no Facticidade e Validade, a partir da superação do positivismo, sem resvalar à

metafísica (neo)jusnaturalista.

Assim, deve-se aguardar novas discussões sobre a ampliação da justiça constitucional

brasileira, à luz da restauração republicana da democracia, a partir da imposição de respeito às

regras do jogo democrático postas pela própria ordem constitucional, que é representativa e

fomentadora da participação social.

Referências

APPIO, Eduardo. Controle judicial das políticas públicas no Brasil. Curitiba: Juruá Editora, 2006.

62 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45/DF. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso em: 10 mar. 2008.

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