24
Cornelius a Lapide, sj (1597-1637) + AFLIÇÕES (veja-se também CRUZES) Tradução por Uyrajá Lucas Mota Diniz Excelências e vantagens das aflições É muito melhor o sofrer por Jesus Cristo do que o ressuscitar mortos, diz São João Crisóstomo. Por meio deste, nós contraímos uma dívida com Deus. Por meio daquele, Jesus Cristo se converte em nosso devedor. Ó Maravilha! Jesus Cristo nos faz um obséquio, e por este obséquio ficará agradecido: Pati pro Christo, magis est quam suscitare mortos: hic enim debitor sum (Deo); illic autem debitorem habeo Christum. Ó rem admirandam! Et donat mihi, et super hoc, ipse debet mihi (Homil. IV in Epist. ad Philipp.). Santo Egídio, discípulo de São Francisco, dizia: Ainda que o Senhor fizesse cair pedras e rochas do céu,

04 - AFLIÇÕES

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Texto de Cornélio à Lápide traduzido da Obra "TESOROS DE CORNELIO À LÁPIDE" - Tomo I, por Uyrajá Lucas Mota Diniz.

Citation preview

Cornelius a Lapide, sj (1597-1637)+AFLIES (veja-se tambm CRUZES)

Traduo por Uyraj Lucas Mota Diniz

Excelncias e vantagens das aflies

muito melhor o sofrer por Jesus Cristo do que o ressuscitar mortos, diz So Joo Crisstomo. Por meio deste, ns contramos uma dvida com Deus. Por meio daquele, Jesus Cristo se converte em nosso devedor. Maravilha! Jesus Cristo nos faz um obsquio, e por este obsquio ficar agradecido: Pati pro Christo, magis est quam suscitare mortos: hic enim debitor sum (Deo); illic autem debitorem habeo Christum. rem admirandam! Et donat mihi, et super hoc, ipse debet mihi (Homil. IV in Epist. ad Philipp.).

Santo Egdio, discpulo de So Francisco, dizia: Ainda que o Senhor fizesse cair pedras e rochas do cu, nenhum dano nos fariam se soubssemos sofrer as aflies (Ribaden, in ejus vita).

Olhai a Jos, diz So Joo Crisstomo, de cativo, chegou logo a ser Chefe de todo o Egito; esta vantagem das aflies sofridas valorosamente; inquebrantvel foi sua pacincia, as provas no o abateram e Deus, depois de o haver experimentado, acho-lhe digno e lhe abenoou (Homil. ad pop.).

Os aflitos so os fortes da terra, diz So Jonatas: Afflicti terrae fortes terrae (Surius, in ejus vita).

Os padecimentos so asas com as quais voo at o cu, disse So Cipriano: Penae sunt pennae queis astra vehor (Epist. ad martyres).

Jesus Cristo, diz So Martinho, s se manifesta na Cruz s pessoas piedosas (Surius, in ejus vita).

Senhor, diz So Bernardo, mais vantajoso para mim abraar-vos e possuir-vos em minhas aflies, que estar sem Vs, ainda que eu habitasse no Cu (Serm. XVII).

A virtude se aperfeioa na desgraa, diz So Paulo aos Corntios. Glorificar-me-ei, pois, em minhas aflies a fim de que a virtude de Jesus Cristo habite em mim: Virtus in infirmitate perficitur: libenter igitur gloriabor in infirmitatibus meis, ut inhabitet in me virtus Christi (II Cor XII, 9). Por este motivo, comprazo-me em minhas debilidades, nos ultrajes, nas necessidades, nas perseguies e angstias sofridas por Jesus Cristo: quando sou desgraado, ento, encontro-me forte: Propter quod placeo mii in infirmitatibus meis, in contumeliis, in necessitatibus, in percutionibus, in angustiis pro Christo; cum enim infirmor, tunc potens sum (II Cor XII, 10).

J vs, diz So Bernardo, que as aflies da carne aumentam as foras do esprito e do-lhe valor. A fora da carne, ao contrrio, debilita a do esprito. O que h, pois, de admirvel em que os padecimentos do corpo fortifiquem a alma? Como haveremos de amar esta carne que no cessa de revoltar-se contra o esprito? Com sabedoria e muita razo, pede a Deus o Salmista para ver-se envolto em aflies: Confige timore tuo carnes meas (Psalm. CXVIII, 120). Penetrai minha carne com vosso temor. O temor de Deus uma fecha excelente (Serm XIX, in Cant.).

Achamo-nos abatidos com Jesus Cristo, porm, com ele viveremos pelo poder do Senhor que resplandecer entre ns, diz o grande Apstolo: Nam et nos infirmi sumus in illo (Christo); sed vivemos cum eo ex virtute Dei in vobis (II Cor XIII, 4).

Aquele que se v afligido por enfermidades, est perto de Deus, diz So Gregrio Nazianzeno: Anima morbo affecta, Deo propnqua est (Orat. ad cives Naziancenos).

As aflies, diz So Bernardo, acalmam os brios da voluptuosidade; fazem nascer as virtudes e as fortificam; sujeitam a carne corrompida e dispem a alma a que se eleve ao cu nas asas nas virtudes. As aflies e os sofrimento fazem perder carne o suprfluo, e do alma as qualidades que lhe faltavam. Se, pois, as aflies, esses verdadeiros dons do Senhor, aumentam nossas virtudes, diminuem e afugentam os vcios, inspiram-nos desprezo aos bens da terra e amor s coisas celestiais, elas nos asseguram a vida eterna. Com essas consideraes devemos nos animar: quanto mais penosa seja a luta, mais brilhante ser nossa vitria. Damos uma prova de que desejamos agradar a Deus e de que lhe amamos, quando nos dirigimos a Ele, no somente na ventura, seno tambm em meio das desgraas e perseguies. No nos licito subir ao cu por caminho diferente do das cruzes; por isso devemos sofr-las e am-las (Serm. X in Caena Dom.).

Encontrei-me em meio tribulao e s dores, e invoquei ento o nome do Senhor, diz o Real Profeta: Tribulationem et dolorem inveni, et nomem Domini invocavi (Psalm. CXIV, 3-4). Senhor, provaste-me com aflies e conheceste-me (Psalm. CXXXVIII, 1).

No nos aflijamos pelos sofrimentos, porque eles destroem os desejos da carne, diz Santa Sincltica (Ribaden, in ejus vita).

Vivendo segundo o esprito e no segundo a carne, a fora da alma far-nos- vitoriosos das enfermidades do corpo, diz So Cipriano (Epist. ad Demetr.).

Deus quem envia as aflies: Ele que a tudo ordenou com nmero, peso e medida, destinou desde a eternidade uma cruz e padecimentos aos que Lhe amam; Ele decidiu despojar-nos da natureza antiga e revestir-nos da nova por meio da pacincia, da pureza, da graa e do amor nas tribulaes; Ele resolveu conduzir-nos ao Cu por este caminho. Quem, pois, haver de fugir dos padecimentos e olh-los com horror, j que nos esto destinados como uma graa pela infinita bondade de Deus? As aflies fazem-nos semelhantes a Jesus Cristo na cruz, a fim de fazer-nos semelhantes a Jesus Cristo na glria.

Se para adquirir a glria humana, diz Tertuliano, alguns enfrentam os perigos do combate, o fogo, a cruz, o furor das feras e todos os tormentos, no devemos enfrent-los, ento, mais por Deus? Todos os sofrimentos nada significam, comparados com a glria celestial (Apol.).

As aflies so um benefcio, uma imensa graa de Deus. As enfermidades, diz So Baslio, so o aoite que fere aos pecadores; elas lhes advertem que eles vo mudar de vida e os converte. Um santo sacerdote indicou, um dia, este remdio a um de seus discpulos que estava enfermo: No vos aflijais, meu filho, por vossa enfermidade, dizia-lhe; prprio da piedade perfeita dar graas a Deus pelas aflies que envia. Se vos pareceis ao ferro, o fogo dos sofrimentos vos retirar o mofo que vos languidesce; se vos pareceis ao ouro, purificar-vos-. Sofrei, pois, esta prova e orai para que a vontade de Deus se cumpra (Regul. LV).

O Senhor castiga a quem Ele ama; fere a todos aqueles que recebe como seus filhos, diz So Paulo aos Hebreus: Quem enin diligit Dominus, castigat, flagellat autem omnem filium quem recipit (XII, 6).

No cheguemos a figurar-nos, diz So Joo Crisstomo, que as aflies sejam uma prova de que Deus nos abandonou e de que nos despreza, pois so, ao contrrio o sinal que manifesta o quanto Deus se ocupa de ns, porque nos purifica de nossos pecados e nos facilita os meios de merecer sua graa e sua proteo (Homil. XXXII in Gen.).

A aflies frequentes, diz So Bernardo, so uma espcie de martrio, uma espcie de efuso de sangue: Est martyrii genus, est quaedam effusio sanguinis in quotidiana corporis afflictionis (In Psalm.).

As aflies so necessrias

As aflies so necessrias para mitigar a concupiscncia, para fazer-nos expiar os pecados, para desprender-nos do mundo e de ns mesmos, e levar-nos ao afeto e obedincia de Deus! So inevitveis. A vida atual, diz Santo Agostinho em suas Meditaes, cap. XXI, uma peregrinao fatigosa; fugitiva, incerta, laboriosa, expe-nos mil vezes a toda classe de vcios; leva atrs de si todos os males; rainha dos orgulhosos, plena de misrias e de erros. No devemos chamar vida, seno morte: Quae non est dicenda vita, sed mors. O homem, com efeito, morre a cada instante, e somente segue vivendo para sofrer a morte de diferentes maneiras. Podemos chamar vida ao tempo que passamos neste mundo? Que uma vida que os humores alteram, as dores riem, os calores fazem murchar, um sopro envenena, os prazeres dissolvem, a pena consome, a inquietude abrevia e cujo sentimento se embota com a segurana? Os alimentos pe-nos obesos, os jejuns nos extenuam, as riquezas nos conduzem vanglria e ostentao, a pobreza nos humilha, a juventude nos enche de orgulho, a velhice nos encurva, a enfermidade nos acaba, e a tristeza nos subjuga. A todos esses males sucede a implacvel morte, terminando de tal modo todas as alegrias desta miservel vida, que quando esta (vida) acaba, facilmente creramos que jamais existiu. Esta morte verdadeiramente a vida, e a vida uma espcie de morte: Mors ista vitalis et vita mortalis.

A vida temporal, diz So Gregrio, trabalhosa, est plena de aflies; passa entre agitaes e trabalhos penosos. Quem que no se acha martirizado por dores, atormentado de cuidados, e possudo de temores? Choramos e rimos; a tristeza acompanha a alegria; temos fome e nos saciamos; porm, apenas saciados, a fome nos assedia novamente. A sede esgota nossas foras, o calor abate, o frio gela. Suspiros, lgrimas, soluos de todas as partes: misrias universais, variadas ao infinito e sem nmero. O rico tem suas aflies e frequentemente muito grandes; o pobre no cessa de as ter; os pequenos esto expostos sua influncia e os grandes no se acham isentos delas (Moral.).

A dor nasceu com a vida e envelheceu com ela, diz Salomo; seus olhos plenos de lgrimas anunciam que entram em uma terra de maldies e sofrimentos: Primam vocem similem omnibus emisi plorans (Sap. VII, 3). O recm nascido, sem o saber, diz Santo Agostinho, pressente a dor, seu olhar, como agudez proftica, abraa as mil aflies da vida, que ter de sofrer e que deplora: Infans praesentit quase inscius, et profhetat mille vitae aerumnas sibi subeundas, quas deplorat (Sentent.).

A vida do homem, diz J, um servio de guerra. Seus dias se parecem aos do mercenrio: Militia est vita hominis super terram, et sicut dies mercenarii dies ejus (Job VII, 1). E acrescenta: o homem, o filho da mulher, vive poucos dias e est pleno de misrias: Homo natus de muliere, brevi vivens tempore, repletur multis miseriis (Job XIV, 1). Se me deito, exclamo suspirando, quando me levantarei? Quando se acabar a noite? E at que chegue a trevas, acho-me sobrecarregado de dores: Replebor doloribus usque as tenebras (Job VII, 4).

preciso que entreguemos nossa vida com submisso Lei de Deus. Mas, diz Santo Agostinho, toda a vida do cristo, se, de fato, vive segundo o Evangelho, uma cruz e um martrio: Tota vita christiani himinis, si secundum Evangelium vivatur, cruz est, atque matyriumi (Lib. de Civit.).

Nosso corpo se compe de quatro elementos, e como os elementos so imperfeitos, nosso corpo tira deles quatro enfermidades. Da gua, lhe vem um princpio da corrupo; da terra, obtm a opacidade e o peso; do fogo, a vida animal, calor que lhe consome sem cessar e lhe impe a necessidade do alimento. Do ar, vem-lhe as dores e as enfermidades, porque o ar muda frequentemente, e transporta germes pestferos de um lugar a outro. Os trabalhos e os sofrimentos desta vida so muitas vezes grandes e numerosssimos. A aflio de que somos acometidos, escreve o Apstolo aos Corntios, tem sido superior a nossas foras, isto , superior s foras da natureza e do corpo, porm no superior s da graa e do esprito. A vida chegou a ser pesada, isto , sob o ponto de vista da natureza, porm no da caridade e do socorro do cu.

necessrio armar-se de valor para sofrer as aflies

A alma forte no sucumbe nas adversidades, mantem-se firme, resiste e triunfa. Assim como a cal entra em efervescncia na gua e o fogo se acende mais e mais com o ar, assim tambm a fora e a energia de uma alma aumentam em meio s aflies e perseguies. A virtude reverdece com as feridas que recebe. E como dizia Cato: As serpentes, a sede, o calor, os combates do Circo, tudo doce para a virtude heroica: a pacincia se alegra com as provas mais duras.

Escutai a So Joo Crisstomo: Soldado de Jesus Cristo, sois dbil, sem vigor e covarde, se presumis poder vencer sem combate e triunfar sem defesa. Desfraldai vossas foras, feri com valentia, aceitai com firmeza a feroz luta. Pensai em vosso juramento, vossa condio, vossa bandeira; o juramento que fizestes no santo Batismo, a condio que aceitastes, a bandeira na qual inscrevestes vosso nome: Delicatus es, miles, si putas te posse sina pugna vincere, sine certamine trunphare. Exsere vires, fortiter dimica, atrociter in praelio insto certa. Considera pactum, conditionem atende, militiam nosce pactum quo spopondisti; conditionem qua accesdisti, militiam cui nomem dedisti (Serm. de Martyribus).

preciso no se deixar abater. Temos de imitar a So Paulo, que dizia: Sofremos toda classe de aflies, porm no nos amedrontam; encontramo-nos em grandes dificuldades, porm no sucumbimos nelas; somos perseguidos, porm no estamos abandonados; vemo-nos derrubados, porm no perdidos: In omnibus tribulationem patimur sed non angustiamur aporiamur sed non destituimur persecutionem patimur sed non derelinquimur deicimur sed non perimus (II Cor IV, 8-9).

As aflies so ligeiras para o cristo

As aflies, as perseguies seguem ao homem piedoso, porm jamais lhe alcanam. Da vem a palavra perseguio, persecutio.

A cruz to doce para aquele que ama a Deus, que no tanto uma cruz, seno um princpio de vida e de verdadeira alegria. Por isso Santa Catarina de Sena olhava com amargura as douras da terra, e doces, as amarguras. Na cruz est a verdadeira doura, o verdadeiro consolo, a alegria verdadeira. Abraai-a e vereis por experincia. Por outro lado, desde a cruz se vai ao cu!

Com as mais bramadoras aflies, diz So Gregrio, podem-se facilmente lidar quando se pensa na Paixo de Jesus Cristo; pois, por grande que seja, a tribulao em que nos encontremos, pouca coisa recordando quo duras foram as palavras e que penosssimos foram tambm os golpes e os atrozes suplcios que aceitou por ns. Sua cabea foi rasgada pela coroa de espinhos; seus olhos foram cobertos cm um vu, e feriram seus ouvidos com horrveis blasfmias; aplacaram sua sede com fel e vinagre; cuspiram em seu rosto augusto e lhe esbofetearam. Seus ombros rangeram sob o peso da cruz; teve o corao inundado de tristeza e de amargura; o corpo cheio de chagas pelos acoites, e os braos e ps estendidos e atravessados com enormes cravos. Enfim, desde a planta dos ps at a parte mais alta de sua divina cabea, ficou o seu corpo pleno de feridas e dores (Homil. in Passion. J. Ch.).

Jesus Cristo ajuda a sofrer as aflies

O pontfice que temos, diz o grande Apostolo aos Hebreus, pode compadecer-se prontamente de nossas debilidades, posto que esteve sujeito a toda a classe de males, sem achar-se manchado pelo pecado: Non enim habemus pontificem qui non possit conpati infirmitatibus nostris temptatum autem per omnia pro similitudine absque peccato (Heb. IV, 15).

Jesus Cristo sofre com os homens eu so seus membros: com So Loureno, padeceu os tormentos do fogo; com Santo Estvo, foi apedrejado; com Santo Incio, sofreu a sanha de animais ferozes, etc. Toma tambm parte nos combates de seus fieis servidores.

Escrevendo So Paulo a Timteo, diz-lhe: J sabeis as perseguies e as aflies que sofri; o que me sucedeu em Antioquia, e Icnio e em Listra, e quo grandes foram as tribulaes que sobre mim pesaram. Porm, o Senhor me livrou de todos esses males: Et ex ominibus erupuit me Dominus (II Tim. III, 11).

A primeira vez que defendi minha causa, acrescenta So Paulo, ningum veio em meu socorro, todos me abandonaram. Desejo que isto no possa lhes prejudicar. Mas o Senhor sempre me assistiu; fortificou-me e vi-me livre dos dentes dos lees: In prima mea defensione nemo mihi adfuit sed omnes me dereliquerunt non illis reputetur. Dominus autem mihi adstitit et confortavit me ut per me praedicatio impleatur et audiant omnes gentes et liberatus sum de ore leonis (II Tim. IV, 16,17).

Do meio de minha orao, o Deus de justia me ouviu; em minhas angstias, abriu-me um imenso espao, diz o Salmista: Cum incorarem, exaudivit me Deus justitiae meae; in tribulatione dilatasti mihi (Psalm. IV, 2). Deus nos escuta algumas vezes livrando-nos das aflies; outras vezes, dando-nos a virtude da pacincia; o que, todavia, um benefcio maior; e, em alguma ocasio, nos concede tambm, no somente a pacincia, seno a alegria, diz o Cardeal Belarmino (Comment. in Psal.).

Deus, diz o Real Profeta, est ao lado daqueles que tem o corao aflito: Justa est Dominus iis qui tribulato sunt corde (Psal. XXXIII, 19). A quantas e que grandes angstias me haveis exposto, diz em outra parte, porm eis-me aqui de volta, e vossa presena me restituiu vida e me livrou das entranhas da terra. Tu me invocaste na tribulao, diz o Senhor, e eu te libertei. Ouvi-te em meio tempestade; pus-te prova. Clamaram ao Senhor em sua angstia, e o Senhor os libertou de suas misrias.

Senhor, diz Tobias, feris e cuidais da ferida; fazeis descer cova e dela livrais: Domine, tu flagellas et salvas, deducis ad nferos et reducis (Tob. XIII, 2). O Senhor nos castigou por causa de nossas iniquidades e nos salvar atendidas as suas misericrdias: Ipse castigavit nos propter iniquitates nostras et ipse salvabit nos propter misericordiam suam (Tob. XIII, 5).

As aflies vem acompanhadas de consolaes

A medida que os padecimentos de Jesus Cristo aumentam em ns, diz So Paulo, nossas consolaes aumentam tambm por Jesus Cristo: Sicut abundant passiones Christi in nobis ita et per Christum abundat consolatio nostra (II Cor I, 5). Quanto mais aumentam as aflies sofridas por Deus, maiores e mais abundantes so nossas consolaes. As aflies dos mundanos so, ao contrrio, fel sem mel; e quanto mais se multiplicam, mais tambm aumentam sua desolao, seus enjoos e seus pesares. Da deduz-se que, longe de fugir das cruzes, preciso desej-las, posto que to fecundas so em delcias. Admirvel testemunha disto So Paulo quando exclama: Minha alegria abundante em todas as nossas tribulaes. Longe, pois, de entristecer-nos nos trabalhos e provaes, devemos sentir alegria e gloriar-nos. Gloriamo-nos, diz aquele grande Apstolo, no somente na esperana, seno tambm nas aflies.

So Bernardo diz, falando de Santo Andr, Apstolo: Ia ao suplcio da Cruz com pacincia; mais ainda, voluntariamente e at com ardor, como na festa mais solene, como no mais requintado banquete: Non modo patienter, sed et libenter, verum er ardenter ad tormenta, sicut ad ornamenta, ad paenas sicut as delicias porperabat (De tripl. gener. bon.).

Havendo sido aoitados cruelmente, os Apstolos, por ordem do conselho, voltaram plenos de alegria, porque havia sido julgados dignos de sofrer afrontas pelo nome de Jesus Cristo: Ibant gaudentes a conspectu concilii quoniam digni habiti sunt pro nomine Iesu contumeliam pati (Act. V, 41).

Temos de sofrer as aflies com pacincia, confiana e resignao

Gloriamo-nos com a esperana da glria dos filhos de Deus, diz So Paulo aos Romanos, e no somente com esta esperana seno em nossas aflies, sabendo que a aflio produz a pacincia, a pacincia a prova, e a prova, a esperana; e a esperana no v (Rom. V, 2-5).

Que no se queixe o homem, diz Santo Agostinho, quando sofre alguma desgraa: com a amargura das coisas da erra, aprende a amar as coisas do cu; peregrino, empreende o caminho de sua ptria (Serm. XVIII).

Quando vos encontrardes aflitos, diz So Pedro Damio, quando sofrerdes, estai cheios de confiana; no murmureis, no vos entristeais, no vos impacienteis; antes melhor, tende a serenidade sempre no rosto, a alegria no corao, a ao de graas nos lbios (Epist. VII).

As aflies so uma prova de predestinao e de amor da parte de Deus: quando castiga, quere salvar o pecador; e, ao contrrio, a impunidade sinal de clera e da reprovao divina.

Temos de sofrer as aflies com perseverana

Levemos sempre a morte de Jesus Cristo em nosso corpo, diz o Apstolo aos Corntios, a fim de que a vida de Jesus Cristo se manifeste tambm em nossos corpos: Semper mortificationem Iesu in corpore nostro circumferentes ut et vita Iesu in corporibus nostris manifestetur (II Cor. IV, 10).

Podemos esperar com segurana a bem aventurana prometida, diz So Leo, se tomamos parte na paixo do Senhor; e como em todos os tempos deve o cristo viver piedosamente, deve tambm levar sempre a cruz: Certa atque secura est expectation promissae beatitudinis, ubi est participation Dominicae passionis: sicut ergo totius est temporis pie vivere, ita totius est temporis crucem ferre (Serm. IX de Quadrag., c. 1).

Todas as aflies nada so quando comparadas com o Inferno

Escutai a Santo Agostinho: Agora, diz ele, a vida e os prazeres temporais so doces e as tribulaes so, pelo contrrio, amargas; porm, quem deixar de beber o clice das aflies, por temor ao fogo do inferno? Quem desprezar as douras do sculo, se suspire pelos bens da vida eterna? In praesenti vita, et deliciae temporalis dulces sunt, et tribulations temporalis amarae sunt; sed quis non bibat tribulationis poculum, metuens ignem gehennarum? Et quis non contemnat dulcedinem saeculi, inhians bonis vitae aeternae? (In Sententiis, n 226).

O que so todas as cruzes, todos os sofrimentos, todas as dores, todos os tormentos, o fogo, o ferro, a morte mais violenta, comparados com os fogos do inferno? Se a tentao vos persegue, se vos desprezam, se sofreis, se vos encontrais enfermo, triste, atacado em vossa reputao, abrasado, pensai que tudo isso passageiro, tudo de curta durao, e que o inferno eterno...

Miserveis de ns pecadores, diz So Joo Crisstomo, no fujamos das aflies, seno do pecado; porque a nica e terrvel aflio a de ofender a Deus: Ne fugiamus male afligi, semd male agere; hoc enim est vere male afligi (Homil. ad pop.).

Ns mesmos criamos muitas aflies

Se os homens repudiam minha lei, diz o Senhor, pela boca do Salmista, se no procedem segundo meus juzos, se profanam minha justia e so transgressores de meus mandamentos, visitarei suas iniquidades com uma vara na mo e ferirei seus pecados: Si dereliquerint filii eius legem meam et in iudiciis meis non ambulaverint si iustitias meas profanaverint et mandata mea non custodierint visitabo in virga iniquitates eorum et in verberibus peccata eorum (Psalm. LXXXVIII, 31-33).

A violao da lei de Deus sempre foi a causa de todas as aflies, sobretudo, a causa primordial; pois esta violao voluntria. Porque, pois, sendo miserveis pecadores, haveremos de nos queixar das penas que sofremos, posto que o pecado, ao que livremente temos consentido, sua verdadeira causa? Deixemos de ofender a Deus, e Deus deixar de castigar-nos, diminuiro nossas aflies, e a graa nos far sofrer com resignao e at com alegria. Estavam sentados nas trevas e na sombra da morte, encurvados pelo peso das cadeias e famintos, porque, diz o Real Profeta, desprezado a Palavra de Deus, porque no fizeram caso dos conselhos do Altssimo. E seu corao permaneceu humilhado pelos trabalhos, debilitaram-se e ningum lhes sustentou (Psalm. CVI, 10-12).

Cabe maior sofrimento do que aquele de ter a conscincia atormentada e rasgada pelos remorsos? Cabe maior aflio do que a de ser inimigo de Deus, escravo de Satans e digno do inferno? Cabe maior pena do que a que causa o pecado mortal dando a morte alma? Estas so as mais temveis aflies. Porm estas aflies ns as queremos, ns as buscamos, desde o momento queremos e buscamos o pecado, que sua verdadeira causa. Relativamente s mesmas coisas temporais, quantas aflies no buscamos tambm ns? Entrais sem vocao, cegamente, no estado matrimonial; a mulher que tomastes por esposa m, etc. A quem podeis vos queixar? Gastais vossa fortuna em jogos, em banquetes, em ir atrs de prazeres; pronto, como o filho prdigo, vs vos encontrais reduzidos posio mais horrvel. Quem tem a culpa? Apesar dos saudveis avisos de seus pais, de seu pastor e de seu confessor, uma jovem se expe ao perigo, perde-se e desonra-se; quem lhe procurou esta aflio cruel e humilhante? Apesar das advertncias caritativas e reiteradas, um jovem libertino destri sua sade, etc. a quem h de culpar? A maior parte dos sofrimentos que nos subjugam e dos quais nos queixamos amarga e constantemente, so obra nossa; atormentamo-nos a ns mesmos; no culpemos a ningum!

O exemplo dos santos nos ajuda a sofrer as aflies

Posto que nos encontramos rodeados de uma nuvem to densa de testemunhas, diz So Paulo aos Hebreus, desprendamo-nos de tudo o que nos subjuga e de todos os laos do pecado, e corramos, pela pacincia, no certame que nos proposto: Ideoque et nos tantam habentes inpositam nubem testium deponentes omne pondus et circumstans nos peccatum per patientiam curramus propositum nobis certmen (Heb. XII, 1).

Senhor, dizia Santo Agostinho, aqui na terra cortai, queimai; porm, compadecei-vos de mim na eternidade: Hic ure, hic seca, modo in aeternum parcas (Solilog.).

Sofrer ou morrer, dizia Santa Teresa (Vita).

Ddimo, que esteve cego durante oitenta anos, dizia: Mais vale ver com os olhos do esprito do que com os do corpo; os primeiros tem que temer a palha do pecado, enquanto que os segundos com uma s olhada podem nos enviar aos fogos do inferno. Ele se acreditava feliz com sua constante cegueira (Vit. Patrum).

O Bem aventurado Pedro, Abade de Claraval, tendo perdido um olho em consequncia de uma enfermidade, dizia: escapei de um dos meus inimigos, e temo mais o olho que me restou do que aquele que perdi (Ribaden, in ejus vita). Adoeceu, em sua velhice, So Loureno Justiniano, e seu mdico viu-se obrigado a lhe cortar as carnes; porm deteve-se prontamente, no atrevendo-se a fazer penetrar a lmina de seu bisturi; porm, ento, aquele grande santo disse-lhe: Tende valor, vosso ao no pode igualar-se s agudas garras nem aos ardentes ganchos que sofreram os Mrtires (Surius, in ejus vita).

Caminhando ao suplcio, Santa Ceclia dizia: Morrer mrtir, no perder a juventude, seno troc-la por uma juventude eterna; dar barro e receber ouro, dar uma manso pobre, vil e estreita, e receber uma maior, o mais esplndido dos palcios; dar uma coisa perecvel, e receber outra que no conhece trmino (Surius, in ejus vita).

Vede o exemplo dos jovens no forno da Babilnia, de Daniel na cova dos lees, vede aos Apstolos, aos Mrtires e a todos os Santos...

Nada so as aflies comparadas com a recompensa e a glria eterna que nos aguardam

Os padecimentos desta vida, diz So Paulo aos Romanos, nenhuma proporo tem com a glria que deve um dia brilhar em ns: Non sunt condignae passiones huius temporis ad futuram gloriam quae revelabitur in nobis (Rom. VIII, 18). No consideramos as coisas visveis, diz aos Corntios, seno as invisveis, porque as coisas visveis so transitrias, porm as invisveis so eternas (II Cor. IV, 16).

Segui, pois, murmurando, diz So Bernardo, segui dizendo: demasiado longo, demasiado pesado, no posso sofrer aflies, provas de um momento; e certamente que no recebestes os golpe que os judeus descarregaram sobre este grande Apstolo; no trabalhastes mais que os demais homens, nem haveis resistido at derramar vosso sangue. Considerai que as aflies so infinitamente inferiores a glria que Deus lhes reserva. E a bem da verdade, porque fazeis caso de horas e dias incertos? A hora passa e as penas tambm: Transit hora, transit et penae. No se encadeiam, pelo contrrio, desaparecem elas sucedendo-se. No acontece o mesmo com glria, no acontece o mesmo com a recompensa concedida aos trabalhos e aos sofrimentos. Esta recompensa no reconhece mudana nem trmino; existe inteira a cada instante e dura toda a eternidade. Ademais, bebendo uma gota depois da outra, como apressamos a taa das penas, guttatim paena bibitur, nem a temos tampouco sempre em nossos lbios, seno que, pelo contrrio, passa. E a recompensa uma torrente de prazer, to impetuosa, como um grande rio, uma torrente de alegria que inunda; um rio de glria, um rio de paz (Serm. I).

Os sofrimentos logo desaparecem, a recompensa jamais se acaba. A glria que espero, diz So Francisco de Assis, to grande, que todas as enfermidades, todas as mortificaes, todas as humilhaes, todas as penas me enchem de alegria (S. Bonav. in ejus vita).

As aflies so uma gota de fel: a recompensa reservada aos que sofrem cristmente um oceano de mel; elas so delcias, uma glria, felicidade eterna!

nimo, pois, servidor bom e fiel; s constante em sofrer estes pequenos dissabores e a recompensa ser grande, diz Jesus Cristo; participa da alegria de teu Senhor: Euge bone serve et fidelis quia super pauca fuisti fidelis super multa te constituam intra in gaudium domini tui (Matth. XXV 21).

Serpes, sitis, ardor, arena, dulcia virtuti: gaudet patientia duris. (Ita Laertius)

Quantas ostendisti mihi tribulationes multas es males; es conversus vivificasti me, et de abysis terrae iterum reduxisti me (Psalm. LXX, 20).

In tribulatione invocasti me, et liberavi te, exaudivi te in abscndito tempestatis, probavi te (Psalm. LXXX, 8).

Clamaverunt ad Dominum cum tribularentur, et de necessitatibus eorum liberavit eos (Psalm. CVI, 13).

Superaundo gaudio in omni triulatione mostra (II Cor VII, 4).

No solum autem gloriamur in spe, sed et gloriamur in tribulationibus (Rom. V, 2-3).

Que certamente se abatero futuramente sobre o transgressor ainda no punido suficientemente nesta vida terrena (Nota do tradutor).