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CONCEITO GERAL DE REVELAÇÃO 1. A revelação na Escritura e nos Padres Um estudo bíblico sobre a revelação poderia referir-se ao conceito mesmo de Sagrada Escritura, já que toda ela é, antes de mais nada, palavra de Deus. Para delimitar os elementos mais significativos frente ao conceito de revelação, nos ocuparemos unicamente do vocabulário com que o Antigo e o Novo Testamentos designam essa Ação de Deus. No que diz respeito aos Padres da Igreja, nos ocuparemos com uma síntese de seus princípios e observações fundamentais. 1.1. Vocabulário bíblico sobre a revelação a) No Antigo Testamento não existe propriamente um termo para designar “revelação” divina, o qual se explica porque o conceito mesmo de revelação é um ato reflexivo do pensamento no qual se consideram de forma abstrata as palavras e Ações de Deus como um todo. Como acontece com outras realidades básicas – como “pecado” ou “justiça” – o que aparece na Escritura é um emaranhada de aspectos concretos, de acontecimentos, de palavras, cuja totalidade constitui a revelação. Este fato esta refletido no vocabulário. Ainda que exista a expressão “revelar” ou “descobrir”, esta não é apropriada para designar a autocomunicação de Deus, porque este “revelar” está afetado de ressonâncias apocalípticas. A revelação de Deus é descrita como uma presença e uma palavra de Deus através das teofanias (Sinai Ex 40,34), da manifestação de Deus em forma humana (Abraão Gn 18), dos acontecimentos históricos, sobretudo os relacionados com a saída do Egito (Sal 77,15-21), etc. Porem, de modo especial, a revelação de Deus no Antigo Testamento acontece através da sua Palavra, até o ponto de que a revelação através da palavra dirigida a outro, a revelação que é o fundamentalmente escutada constitui uma manifestação de Deus ao povo eleito. Chamamos palavra de Deus o que no Antigo Testamento se designa como dabar Yahwhe. Deve-se acrescentar imediatamente que existem notáveis diferenças entre o dabar bíblico e a nossa palavra. O dabar não era somente um sinal lingüístico da realidade mediante o conhecimento, mas uma realidade carregada de força, expressiva e cheia de energia. Etimologicamente dabar aponta a dois aspectos: à idéia de projeção do que está atrás, no coração (Gn 12, 17; Dt 15,2) e ao mesmo tempo a idéia de “dizer” (Sl 45,2; Gn 11,1). Dabar é o que sai da boca ou dos lábios mas tem a sua origem no coração. Reflete um valor noético e um valor dinâmico mutuamente implicados. Em conseqüência, o conteúdo da palavra não é somente a expressão de uma idéia, mas uma certa comunicação pessoal pela que o sujeito se introduz de alguma maneira

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Introdução ao conceito de Revelação cristã.

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CONCEITO GERAL DE REVELAÇÃO

1. A revelação na Escritura e nos Padres

Um estudo bíblico sobre a revelação poderia referir-se ao conceito mesmo de Sagrada Escritura, já que toda ela é, antes de mais nada, palavra de Deus. Para delimitar os elementos mais significativos frente ao conceito de revelação, nos ocuparemos unicamente do vocabulário com que o Antigo e o Novo Testamentos designam essa Ação de Deus. No que diz respeito aos Padres da Igreja, nos ocuparemos com uma síntese de seus princípios e observações fundamentais.

1.1. Vocabulário bíblico sobre a revelação

a) No Antigo Testamento não existe propriamente um termo para designar “revelação” divina, o qual se explica porque o conceito mesmo de revelação é um ato reflexivo do pensamento no qual se consideram de forma abstrata as palavras e Ações de Deus como um todo. Como acontece com outras realidades básicas – como “pecado” ou “justiça” – o que aparece na Escritura é um emaranhada de aspectos concretos, de acontecimentos, de palavras, cuja totalidade constitui a revelação. Este fato esta refletido no vocabulário. Ainda que exista a expressão “revelar” ou “descobrir”, esta não é apropriada para designar a autocomunicação de Deus, porque este “revelar” está afetado de ressonâncias apocalípticas. A revelação de Deus é descrita como uma presença e uma palavra de Deus através das teofanias (Sinai Ex 40,34), da manifestação de Deus em forma humana (Abraão Gn 18), dos acontecimentos históricos, sobretudo os relacionados com a saída do Egito (Sal 77,15-21), etc. Porem, de modo especial, a revelação de Deus no Antigo Testamento acontece através da sua Palavra, até o ponto de que a revelação através da palavra dirigida a outro, a revelação que é o fundamentalmente escutada constitui uma manifestação de Deus ao povo eleito.

Chamamos palavra de Deus o que no Antigo Testamento se designa como dabar Yahwhe. Deve-se acrescentar imediatamente que existem notáveis diferenças entre o dabar bíblico e a nossa palavra. O dabar não era somente um sinal lingüístico da realidade mediante o conhecimento, mas uma realidade carregada de força, expressiva e cheia de energia. Etimologicamente dabar aponta a dois aspectos: à idéia de projeção do que está atrás, no coração (Gn 12, 17; Dt 15,2) e ao mesmo tempo a idéia de “dizer” (Sl 45,2; Gn 11,1). Dabar é o que sai da boca ou dos lábios mas tem a sua origem no coração. Reflete um valor noético e um valor dinâmico mutuamente implicados. Em conseqüência, o conteúdo da palavra não é somente a expressão de uma idéia, mas uma certa comunicação pessoal pela que o sujeito se introduz de alguma maneira em sua palavra, se entrega com ela e desta forma lhe confere uma força e uma eficácia que se convertem em fidelidade.

Com a atribuição de dabar a Yahweh, nos encontramos com a expressão completa – dabar Yahweh – (que aparece 242 vezes no Antigo Testamento) tem um significado similar ao que foi exposto. Por um lado é o meio de Deus comunicar algo (sentido Noético) e, por outro, constitui o primeiro momento do designo salvífico de Deus que começa a realizar-se quando Deus se dá a conhecer (sentido dinâmico). A eficácia da palavra de Deus é representada de diversas formas. Um dos mais importantes, que aparece especialmente no profetismo, é sua força não somente eficaz mas também criadora.

b) No Novo Testamento acontece um maior esclarecimento do significado da revelação de Deus graças à variedade de termos utilizados para expressa-la. Entretanto podemos afirmar que no Novo Testamento tampouco existe um termo

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que englobe o conceito da revelação de Deus. Como no Antigo Testamento a revelação de Deus que “habita em luz inacessível; a quem nenhum dos homens tem visto nem pode ver (1Tim 6,16), continua acontecendo pela palavra.

Sinóticos: O que Cristo faz é pregar o evangelho, evangelizar, ensinar, revelar – prevalecendo o pregar e ensinar. Estes termos algumas vezes aparecem em Mateus e Lucas: Jesus foi por toda a Galiléia, ensinando nas sinagogas deles, pregando a boa nova do Reino” (Mt 4,23; 11,1; Lc20,1; At 4,2; 5,42). A diferença de matiz entre pregar e ensinar reside em que o primeiro se refere a proclamação da notícia do Reino de Deus realizado por Jesus, enquanto que ensinar significa instruir mais detalhadamente os mistérios da fé e os preceitos da vida moral.

São Paulo fala de um “espírito de revelação” (Ef 1,17; 1Cor 2,10; Co 4,3-6), utiliza como esquema fundamental para expor o núcleo da revelação os termos mistério e evangelho. O mistério revelado de Deus constitui a boa nova da salvação. Distingue entre a ação de Deus e a dos apóstolos. Deus revela, manifesta, dá a conhecer. O vocabulário torna-se mais rico quando do que fazem os apóstolos: falam, pregam, ensinam, anunciam a boa nova, dão testemunho. Em Rm 16, 25-26 o apostolo oferece uma espécie de síntese destes conceitos: “Ora, àquele que tem poder para confirmá-los pelo meu evangelho e pela proclamação de Jesus Cristo, de acordo com a revelação do mistério oculto nos tempos passados, mas agora revelado e dado a conhecer pelas Escrituras proféticas por ordem do Deus eterno, para que todas as nações venham a crer nele e a obedecer-lhe”.

Em São João não aparecem os termos revelar, pregar e evangelizar. Os termos preferidos agora são os que manifestam a relação entre a revelação com o testemunho. Mas sobretudo São João introduz o termo Logos que, mesmo aparecendo somente três vezes no conjunto dos seus escritos, a introdução do termo nos livros sagrados é de grande importância. Cristo é o Logos encarnado, que dá testemunho do Pai e da a conhecer a verdade.

1.2. Padres da Igreja

A reflexão patrística dos três primeiros séculos sobre a revelação participa das mesmas características dos livros canônicos: carece de um caráter sistemático e de reflexão. A revelação não era uma questão para ser exposta ou refletida mas uma novidade de vida trazida por Cristo. Jesus Cristo ocupa o centro do que todos os Padres, particularmente alguns como Santo Irineu ou Santo Inácio de Antioquia, afirmam sobre a revelação. Percebemos neles uma compreensão global e não explicitada sistematicamente do mistério revelador e salvador de Deus em Cristo. Como os Padres, ao menos na sua maioria, são pastores e bispos as suas obras revestem-se de um caráter exortativo, atento às necessidades dos seus ouvintes e leitores, e aos perigos que poderiam surgir para a fé. Entre estes perigos não se encontravam – ao menos em uma primeira instância – interpretações errôneas sobre a revelação. Por isso é possível afirmar que a idéia de revelação se encontra presente em todos os escritos dos patrísticos, penetrando todo o pensamento e, ao mesmo tempo, que a natureza da revelação não é objeto de um tratamento específico e sistemático.

Alem dos aspectos próprios de cada um dos Padres sobre a revelação, há uma série de idéias bastante comuns entre eles. Algumas são formuladas originalmente por um ou outro autor e depois se vão estendendo. Podemos resumir os seguintes princípios:

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a) A afirmação que Deus saiu do seu mistério e se manifestou aos homens. Esta manifestação aconteceu primeiro ao povo judeu através da Lei e dos Profetas e posteriormente a toda a humanidade por meio de Cristo. A revelação não é a primeira notícia de Deus, visto que os Padres defendem o conhecimento de Deus fora da revelação, ainda que trate-se de um conhecimento débil e imperfeito. A valoração positiva do conhecimento racional aparece especialmente afirmada em Clemente de Alexandria, que chega a falar de um “terceiro testamento” que é o da filosofia grega onde ele via um dom do Logos, fonte de toda a verdade. Esta manifestação de Deus aos filósofos viria a ser uma aliança especial de Deus com os gregos para os levar a Cristo.

b) Para os Padres revelação é acima de tudo o fato de que Deus se manifestou, deu a conhecer o seu mistério por Cristo. Cristo é a revelação e o revelador de Deus, aquele que faz visível o Deus invisível. Esta revelação de Cristo acontece através da sua humanidade e através da sua palavra. Frente a interpretação docetista que negava o caráter real da revelação através da carne, a reação dos padres é muito forte insistindo de modo muito realista na verdade da encarnação (Irineu e Inácio de Antioquia). Ao mesmo tempo através da sua palavra Cristo é o mestre dos profetas, e enquanto Logos, o mestre que instrui a humanidade (Clemente de Alexandria). Para os alexandrinos que vem na revelação propriamente uma iluminação, Cristo é o que traz a luz a nossas mentes imersas nas trevas.

c) O plano da revelação, cujo ápice é Cristo, responde a uma ação pedagógica de Deus (Irineu e Clemente). Deus educa a humanidade desde o princípio e a prepara progressivamente para receber a Cristo. Junto a uma preparação genérica de toda a humanidade está a eleição do povo de Israel a quem Deus se comunica mediante a Lei e os profetas. Frente às interpretações gnósticas que estabeleciam uma ruptura entre as duas alianças e apresentavam a Cristo como revelador de um Deus distinto do Deus da Lei e dos profetas, os Padres afirmam a unidade de Deus e da economia reveladora, junto a ação do único Verbo de Deus em ambos Testamento.

d) A revelação de Deus tem um caráter histórico, acontece num lugar e num tempo e espaço determinados. Acontece na história através de mediadores. No Antigo Testamento os mediadores são especialmente os profetas. No Novo Testamento os mediadores – em níveis distintos – são Cristo e os Apóstolos. Por sua vez a Igreja é mediadora na recepção da revelação porque ela a recebeu dos Apóstolos e, através deles, de Cristo e de Deus.

e) Através da idéia de mediação os Padres introduzem um elemento formal que permitirá identificar a autêntica revelação de Deus e distingui-la da doutrina dos hereges. O critério é a apostolicidade. Os escritos dos apóstolos, ao serem introduzidos na prática litúrgica da Igreja, vão assumindo um caráter público e oficial como regra de fé.

f) Os Padres entendem que o fato da revelação acontecer gradualmente na história é uma condescendência divina. Deus se adaptou ao homem, a sua historicidade, dando a conhecer e pedindo o que em cada momento era proporcionado ao seu desenvolvimento cognoscitivo, social e moral.

2. A revelação na história da teologia

A partir da Idade Media, o conceito teológico de revelação vai construído gradualmente. Depois da reflexão teológica de Santo Tomás aconteceu a decadência da baixa escolástica, que preparou a evolução dos séculos XIV e XV. Um

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momento chave na história posterior foi a proposta de Lutero que inaugura uma linha de pensamento religioso. Depois da ilustração e a resposta apologética começou uma renovação no campo católico que culminará na teologia da revelação do século XX com os ensinamentos do Concílio Vaticano II.

2.1. A teologia da revelação na Idade Media

Para os medievais a revelação se resume a Sagrada Escritura. Se falou por isso de um “biblicismo fundamental” na Idade Média. Os comentaristas e mestres não tinham chegado – de um modo pleno e reflexivo – os conceito de “tradição” e identificavam a revelação fundamentalmente com a Bíblia. Isso se deve ao fato de que naquele tempo acontecia um processo de reflexão sobre a natureza da revelação, da inspiração e da tradição. Porque não exista uma distinção clara entre cada um dos conceitos, as afirmações dos autores podem dar lugar a aulgum equívoco.

2.1.1. Revelação e Razão

A aceitação da filosofia aristotélica é um fato fundamental também no que se refere à determinação do conceito de revelação. Até então o clima filosófico e teológico era platônico, devido a forte influencia de Santo Agostinho. A tradição agostiniana – que entende o conhecimento como iluminação – continuou na teologia de São Boaventura e de outros franciscanos. A idéia do saber que existia neste ambiente respondia ao modo de compreender a continuidade da mente: o homem está feito para a verdade e toda a verdade o aperfeiçoa. Não existia uma distinção fundamental entre a iluminação de um conhecimento e de outro. Isto propiciava uma mutua assimilação entre cultura e revelação. Tanto era assim que o cristianismo era considerado a verdadeira sabedoria.

A introdução da filosofia aristotélica supõe a afirmação do específico da natureza. A natureza é sempre algo concreto, dotado de forças nativas, em virtude das quais se dirige para a verdade. A verdade agora é algo que o homem conquista, não algo que vem. Vistas desde a natureza, as coisas que estão alem dela são incognoscíveis. O saber não é resultado de uma iluminação mas de um conhecimento por causas, ou seja, um conhecimento sobre o que se exerce certo domínio.

Neste contexto a filosofia vai delimitando o seu campo frente à teologia. O critério de distinção entre elas não é o próprio conhecimento de Deus, já que este é Possível tanto no campo filosófico como teológico. O ponto crucial entre filosofia e teologia era o conhecimento que se pode ter de Cristo. Este conhecimento não pode ser adquirido a partir da filosofia, mas deve ser adquirido por autoridade. Deste modo a revelação como uma instrução divina. Deus é como um mestre que ensina aos homens o fim que determinou para a vida humana e como quer conduzir esta vida ao seu fim.

O homem aceita, crê nesta instrução divina, sendo assim estabelecido uma relação semelhante a que acontece entre a razão e o seu conhecimento próprio. O papel que corresponde à razão no conhecimento em geral está agora representado pela revelação, cujo conhecimento próprio é a fé. Em conseqüência há um limite para a razão que não pode legitimar os enunciados da fé que pertencem à ordem supra-racional. O homem não é capaz de conhecer com a sua razão a verdade das afirmações de fé. Pode sim dar razões de conveniência ou congruência que fundamentem a credibilidade destas verdades, porém seu caráter de verdade somente se legitima pela revelação divina.

A revelação foi determinada numa relação negativa com a razão: o revelado é aquilo cuja verdade se afirma além e independentemente do alcance da razão.

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Entretanto razão e revelação não são duas realidades totalmente separadas. Ainda que a razão não possa conhecer os elementos intrínsecos do revelado, tem o poder de afirmar que é possível crer nela. Por isso a fé não é racional mas racionável. Isso permite afirmar que a revelação não se opõe à razão mas que a completa.

A partir desta reflexão, no conceito de revelação que apresenta Santo Tomás predomina claramente o aspecto cognoscitivo. Se a revelação natural permite conhecer uma certa verdade sobre Deus a partir da criação, a revelação sobrenatural proporciona uma verdade mais profunda e inalcançável sobre o mesmo Deus e a salvação que ele oferece aos homens. A Sagrada Escritura e a pregação ensinam ao homem estas verdades reveladas por Deus e o homem, chamado e movido pela graça, alcança a fé. O conjunto do revelado é a doutrina sagrada, verdade de fé, ensinamento. O que a caracteriza é a transcendência sobre qualquer outra doutrina, verdade ou ensinamento. A afirmação da revelação implica que o que o homem pode conhecer não se identifica com o cognoscível. A conseqüência é um maior acento na gratuidade da revelação.

2.1.2. Carisma de profecia

Junto com a reflexão sobre o conceito de revelação, Santo Tomás oferece uma explicação do momento originário da mesma. Expõe a questão da natureza da profecia e, a partir dela, da natureza da revelação. Se Deus se comunica aos homens através de homens concretos que transmitem aos demais o que eles recebem de Deus, então a realidade da revelação depende também dos receptores diretos da revelação, ou seja, de uns homens particulares a quem Deus se comunica de forma direta, sem mediadores.

A profecia é um dom de caráter cognoscitivo. Santo Tomás a define como “conhecimento dado sobrenaturalmente ao homem das verdades que superam atualmente o alcance do espírito, com as que foi instruído por Deus para o bem da comunidade”. Ele distingue na profecia o conhecimento profético propriamente dito e a denuntiatio ou proclamação da profecia. O conhecimento é o mais importante e nele o profeta é mais passivo do que ativo; a denuntiatio, ao contrario, admite um papel maior da vontade já que uma vez formado o conhecimento pode escolher as imagens e formas para expressá-lo.

Santo Tomás ainda destaca que o papel essencial que tem a luz com a qual se julga o conhecimento profético. Graças a iluminação recebida, o profeta julga sem erro e com certeza os elementos presentes no seu conhecimento e assim toma posse da verdade que Deus lhe quer comunicar.

2.2. A Reforma Luterana

A reforma não propôs inicialmente um novo conceito de revelação, porém os seus postulados teológicos acabaram afetando profundamente a noção de revelação, o que deu lugar a uma intervenção do Concílio de Trento.

Podemos salientar dois aspectos da interpretação luterana que fazem referencia concreta à revelação. O primeiro é a redução do papel da razão no conhecimento de Deus. Ainda reconhecendo (como faz Calvino) que Deus se manifesta aos homens através da criação, não tarda em impor-se a idéia de que o único conhecimento de Deus que interessa é o que nos vem através da revelação de Jesus Cristo. Deste modo se mantém o caráter puramente fiducial da fé que não conta com justificação racional alguma. O segundo aspecto é precisamente o da fé fiducial. A única fé que justifica é a “fé-confiança”, aquela mediante a qual o homem se confia plenamente a Deus. Crer não é saber algo de Deus mas entregar-se a Ele, a um Deus que é o extremo ao homem, um Deus juiz que por graça olha ao homem com benevolência e perdão.

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A instalação da fé fora do âmbito universalizador da razão e seu caráter de confiança pessoal e imediata na graça, são reforçados pelo principio da sola Scriptura. Segundo este princípio a Sagrada Escritura é soberana e não pode estar submetida a nenhuma instancia humana para a sua interpretação. A Escritura é a única regra de fé, e sua interpretação é feita pelo indivíduo com a assistência que recebe do Espírito Santo, mediante a qual conhece o que está revelado e deve crer. Este testemunho interior individual do Espírito Santo é inseparável da palavra de Deus na Escritura. Com estes pressupostos, a fé não conta mais com a mediação da Igreja. A conseqüência será que alem da ênfase na transcendência da revelação que esta postura parece representar, fica de algum modo aberto o caminho ao subjetivismo e o racionalismo.

2.3. A explicitação do conceito teológico de revelação

A critica ilustrada da revelação constitui uma das bases sobre as que se apóia boa parte da filosofia moderna. Ao negar o caráter de verdade da revelação e conseqüentemente o de assentimento à fé, os ilustrados praticamente dissolviam a revelação divina ou pelo menos a reduziam a um fundo inconsciente que situa-se no âmbito do irracional. A proposta idealista de uma “filosofia da revelação” confirmava esta tendência do pensamento moderno. Frente a este panorama a reação da apologética, ao invés de criticar o conceito ilustrado de razão, empenhou-se fortemente na defesa do caráter cognoscitivo da fé e da verdade revelada, segregando a um segundo plano a ação reveladora de Deus e seu caráter histórico. Neste contexto de polêmica com o racionalismo a revelação era apresentada como a verdade de Deus entregue aos homens por meio da palavra; verdade que era testemunhada pelos milagres.

No século XIX alguns autores provindos de tradições filosóficas e culturais diversas realizaram contribuições significativas ao conceito de revelação. Na Alemanha os Teólogos da Escola de Tubinga começaram a apresentar a revelação não somente como verdade, mas também como realidade histórica e social. No Reino Unido, Newman referia-se a revelação como mistério, economia e doutrina que se impões autoritariamente. Ao mesmo tempo insistia numa aproximação mais sintética do que analítica a relação entre revelação e fé, a partir do modo como o homem chega a prestar seu assentimento religioso.

Na primeira metade do século XX o conceito de revelação foi objeto da atenta análise de um bom grupo de Teólogos. Os novos conhecimentos bíblicos e patrísticos, as contribuições de movimentos filosóficos, o movimento ecumênico e a própria renovação do método teológico, permitiram um aprofundamento e enriquecimento da natureza da revelação cristã. Dentro de uma grande diversidade de posturas teológicas, autores como Garrigou-Lagrange, de Lubac, Congar, Rahner e outros muitos, ofereceram – desde óticas e princípios distintos – uma rica reflexão sobre a revelação. Nos anos imediatamente anteriores ao Concílio Vaticano II, já estavam fundamentalmente traçadas as linhas fundamentais da teologia da revelação que sucedeu a apologética. A revelação é apresentada pelos Teólogos como uma realidade divina entendida como verdade histórica, graça e salvação, palavra e encontro, realidade pessoal e eclesial.

3. A revelação no Magistério da Igreja

3.1. Concilio de Trento

O concilio tridentino abordou sobretudo o que se refere a doutrina da Sagrada Escritura e da Tradição para evitar o perigo de conceder a Bíblia uma atenção exclusiva. Contudo não deixou de ocupar-se da natureza da fé.

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a) No Decreto de libris sacris et traditionibus, promulgado na seção IV (8 de abril de 1546), o concilio utiliza o termo Evangelho para designar a revelação que – o termo revelação propriamente dito não aparece no concilio. Em primeiro lugar a Igreja ensina que recebeu a Boa Nova prometida pelos profetas, promulgada por Jesus Cristo e pregada pelos apóstolos a toda a criatura. O Evangelho é a única fonte de toda a verdade salutar e de toda a disciplina de costumes. Em segundo lugar o concilio afirma que a verdade salvífica e a lei moral, cuja única fonte é o Evangelho, está contida nos livros sagrados e nas tradições não escritas. Em terceiro lugar o concilio ensina que recebe com igual piedade e reverencia os livros do Antigo e Novo Testamento bem como as tradições não escritas que procedem da boca de Cristo ou do ditado do Espírito Santo e são conservadas na Igreja Católica mediante a sucessão apostólic

b) No Decreto de iustificatione (seção VI, 13 de janeiro de 1547) o concilio declara já no proemio a exposição da doutrina da justificação como a “verdadeira e sana doutrina” que Cristo ensinou, ao apóstolos transmitiram e a Igreja, com a inspiração do Espírito Santo, sempre sustentou. No capítulo 5 do mesmo decreto, frente a doutrina protestante da justificação somente pela fé, o concilio ensina a necessidade da graça e da livre cooperação do homem com a ação divina.

Em resumo, o Concilio de Trento ensina que a revelação – chamada aqui de Evangelho, como já foi dito – é a doutrina prometida pelos profetas, promulgada por Jesus Cristo e pregada pelos apóstolos e conservada na Igreja. Esta doutrina esta contida nos livros da Sagrada Escritura e nas tradições que partem de Jesus Cristo. A fé com que o homem responde à revelação é um assentimento à verdade manifestada por Deus.

3.2. Concilio Vaticano I

O Concilio Vaticano I é o ponto final a uma série de intervenções magisteriais dos Papas no século XIX. Como já foi visto, este século foi permeado pela discussão ao redor da relação entre fé e razão. Isto foi a conseqüência lógica do clima cultural, pois neste tempo confluíam posturas filosóficas gestadas um ou dois séculos antes mas que até então não haviam produzido um resultado acabado. De fato as águas que começaram a correr com Descartes, Spinoza e Hume desembocam neste tempo em forma de kantismo, idealismo e positivismo, que transformam-se num verdadeiro desafio para a fé.

As posições dos filósofos provocaram uma dupla reação no meio católico : por um lado uma tentativa de dialogo da teologia com o pensamento moderno; por outro lado uma aversão deste pensamento com a conseguinte desconexão da formulação da fé em relação com o pensamento. Às interpretações extremistas destas duas tentativas fizeram com que os Papas condenassem alguns pontos e fizessem algumas observações a outros. Isso foi preparando a Constituição Dogmática Dei Filius, do Concilio Vaticano I.

O projeto imediatamente anterior à Dei Filius constava de duas partes e nove capítulos. As circunstâncias históricas que envolveram o concilio e obrigaram a sua suspensão fizeram com que somente fosse aprovada a primeira parte com os seus quatro capítulos.

A estrutura da Constituição segue uma ordem lógica. Antes de ocupar-se do conhecimento natural de Deus e da revelação, o concilio desenvolve sua doutrina sobre a criação (cap. I). Afirma contra o hegelianismo a distinção de Deus frente ao mundo e que Deus criou o mundo livremente. Frente ao deísmo afirma também que Deus cuida e governa o mundo com sua providência.

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O capítulo II (De revelatione) começa com a afirmação do conhecimento natural de Deus: “Deus, principio e fim de todas as coisas, pode ser conhecido com certeza pela luz natural da razão humana a partir das coisas criadas”. Deste modo o concilio recolhe a verdade do racionalismo e evita a sua falsidade: a razão não é uma faculdade perfeitamente adequada para o conhecimento no campo religioso porém tem certa capacidade de conhecer também neste campo. A possibilidade do conhecimento natural de Deus através das coisas criadas vai dirigida aqui para a justificação da fé em Deus e na revelação frente aos diversos agnosticismos.

Junto com a possibilidade do conhecimento racional de Deus o concilio introduz a revelação sobrenatural. A afirmação impessoal “Deus (...) pode ser conhecido com a luz da razão humana” segue agora a Ação de uma pessoa: “aprouve à sua sabedoria e bondade (…) revelar-se a si”. A revelação está aqui afirmada como ação manifestadora de Deus, ação que aparece em relação com dois atributos divinos: a sabedoria e a bondade. Desta maneira o concilio quer manifestar que a revelação é um ato de amor (bondade) e de ensinamento (sabedoria). É um ato de transmissão do conhecimento que Deus tem de si mesmo e de seu designo de salvação para os homens.

A continuação o texto conciliar passa a considerar o conteúdo da revelação desde um ponto de vista formal. Em primeiro lugar a revelação contem verdade que podem ser conhecidas pela razão mas que, graças ao fato de terem sido reveladas, podem ser conhecidas “facilmente por todos com firme certeza e sem possibilidade de erro”. Entretanto esta não é a única necessidade da revelação. Frente ao semi-racionalismo de Hermes e Günther que admitiam que a revelação somente era necessária como ajuda, o concilio afirma que ela e absolutamente necessária para participar dos bens divinos aos que o homem esta chamado e que superam absolutamente à inteligência humana. Essa revelação é uma revelação sobrenatural e se encontra na Escritura e na Tradição.

O Concilio Vaticano I concebe a revelação como algo que dá a conhecer a verdade sobrenatural de Deus que supera absolutamente o alcance e as possibilidades da razão humana. No entanto essa afirmação deve ser situada num marco mais amplo. Em primeiro lugar não devemos esquecer que o concilio não pretendia expor uma doutrina completa sobre a revelação divina, mas somente aqueles pontos que haviam sido afastados ou negados pelo racionalismo e semi-racionalismo da época.

Em segundo lugar o concilio relaciona inequivocamente a revelação e a salvação: a revelação nasce da bondade de Deus e é absolutamente necessária para que o homem participe daqueles bens divinos aos que esta ordenado pela sua elevação à ordem sobrenatural. A finalidade da revelação não é alcançar um mero conhecimento oculto mas está ordenada às realidades salvíficas.

IZQUIERDO, Cesar. Teología Fundamental, Eunsa, Pamplona 1998, capítulo 2.