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Capítulo 1 Políticas públicas sociais Edite da Penha Cunha Eleonora Schettini M. Cunha Um pouco de sua história Até final do século 19 e início do século 20 prevaleciam as idéias liberais de um Estado mínimo que somente assegurasse a ordem e a propriedade, e do mercado, como regulador "natural" das relações sociais onde a posição ocupada pelo indivíduo na sociedade e suas relações eram percebidas conforme sua inserção no mercado. A questão social, decorrente do processo produtivo, expressava-se na exclusão das pessoas, tanto da própria produção quanto do usufruto de bens e serviços necessários à sua própria reprodução. A intensificação da questão social, após a crise econômica de 1929, e o desenvolvimento do capitalismo monopolista determinaram novas relações entre capital e trabalho e entre estes e o Estado, fazendo com que as elites econômicas admitissem os limites do mercado como regulador natural e resgatassem o papel do Estado como mediador civilizador, ou seja, com poderes políticos de interferência nas relações sociais. Nesse sentido pode-se entender a política social como estratégia de intervenção e regulação do Estado no que diz respeito à questão social. O Estado, ao tomar para si a responsabilidade pela formulação e execução das políticas econômica e social, tornou-se "arena de lutas por acesso à riqueza social" (Silva, 1997:189), uma vez que as políticas públicas envolvem conflitos de interesses entre camadas e classes sociais, e as

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Capítulo 1

Políticas públicas sociais

Edite da Penha Cunha

Eleonora Schettini M. Cunha

Um pouco de sua história

Até final do século 19 e início do século 20 prevaleciam as idéias liberais

de um Estado mínimo que somente assegurasse a ordem e a propriedade,

e do mercado, como regulador "natural" das relações sociais onde a posição

ocupada pelo indivíduo na sociedade e suas relações eram percebidas

conforme sua inserção no mercado. A questão social, decorrente do processo

produtivo, expressava-se na exclusão das pessoas, tanto da própria produção

quanto do usufruto de bens e serviços necessários à sua própria reprodução.

A intensificação da questão social, após a crise econômica de 1929, e o

desenvolvimento do capitalismo monopolista determinaram novas relações

entre capital e trabalho e entre estes e o Estado, fazendo com que as elites

econômicas admitissem os limites do mercado como regulador natural e

resgatassem o papel do Estado como mediador civilizador, ou seja, com

poderes políticos de interferência nas relações sociais. Nesse sentido pode-se

entender a política social como estratégia de intervenção e regulação do

Estado no que diz respeito à questão social.

O Estado, ao tomar para si a responsabilidade pela formulação e

execução das políticas econômica e social, tornou-se "arena de lutas por

acesso à riqueza social" (Silva, 1997:189), uma vez que as políticas públicas

envolvem conflitos de interesses entre camadas e classes sociais, e as

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respostas do Estado para essas questões podem atender a interesses de um

em detrimento do interesse de outros. Nesse processo, destaca-se a parti­

cipação de diversos movimentos que lutaram por garantia de direitos civis,

políticos e sociais. Muitas ações do Estado foram resultados dessas lutas.

As políticas públicas têm sido criadas como resposta do Estado às

demandas que emergem da sociedade e do seu próprio interior, sendo

expressão do compromisso público de atuação numa determinada área a

longo prazo. Pode-se assim entender a política pública como

linha de ação coletiva que concretiza direitos sociais declarados e garantidos em

lei. É mediante as politicas públicas que são distribuídos ou redistribuídos bens

e serviços sociais, em resposta às demandas da sociedade. Por isso, o direito

que as fundamenta é um direito coletivo e não individual. (Pereira, citada por

Degennszajh. 2000:59)

Ao se pensar em política pública faz-se necessária a compreensão do

termo público e sua dimensão. Nesse sentido. Pereira destaca que:

0 termo público, associado à política, não é uma referência exclusiva ao Estado,

como muitos pensam, mas sim à coisa pública, ou seja, de todos, sob a égide de

uma mesma lei e o apoio de uma comunidade de interesses. Portanto, embora

as políticas públicas sejam reguladas e freqüentemente providas pelo Estado,

elas também englobam preferências, escolhas e decisões privadas podendo (e

devendo) ser controladas pelos cidadãos. A política pública expressa, assim, a

conversão de decisões privadas em decisões e ações públicas, que afetam a

todos. (Pereira, 1994)

Entre as diversas políticas públicas tais como a econômica, a ambiental, a

de ciência e tecnologia e outras, a política social é um tipo de política públi­

ca cuja expressão se dá através de um conjunto de princípios, diretrizes,

objetivos e normas, de caráter permanente e abrangente, que orientam a

atuação do poder público em uma determinada área.

Nas últimas décadas do século 20, em que houve forte ajuste econô­

mico na maioria dos países, a questão social foi agravada por diversos fatores:

desemprego estrutural (inexistência de postos de trabalho suficientes para

todas as pessoas em idade economicamente ativa), precarização das relações

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de trabalho (terceirização, trabalho sem carteira assinada, desregulamen­

tação de direitos conquistados etc), alterações na organização familiar (grande

número de famílias chefiadas por mulheres, por exemplo) e no ciclo de vida

(diminuição da taxa de mortalidade infantil e aumento da longevidade, por

exemplo) e aprofundamento das desigualdades sociais, gerando exclusão

e simultânea inclusão marginal de grande parcela da população.

As respostas políticas dos diversos países à questão social, embora

diferenciadas, apresentam algumas medidas comuns, entre elas: o corte de

benefícios ou a introdução de medidas de flexibilização do acesso a eles; a

maior seletividade (não se aplica a todos) e a focalização das políticas sociais

(atendem aos mais pobres entre os pobres), tornando-as residuais e casuais,

ou seja, os programas não são contínuos nem abrangentes e atingem

pequenos grupos por determinado tempo; a privatização de programas de

bem-estar social, isentando o Estado da garantia dos mínimos sociais

necessários à sobrevivência humana; e o desmonte da rede de proteção

social antes mantida pelo Estado.

No Brasil, a crise decorrente do esgotamento do "milagre econômico",

ao final da década de 1970 e início da década de 1980, propiciou uma

conjuntura socioeconómica favorável ao movimento da sociedade em direção

à redemocratjzação e, com isso, a reorganização da sociedade civil, através

de diversos acontecimentos sociais. O processo de redemocratização da

sociedade brasileira levou à instalação da Assembléia Nacional Constituinte e

à possibilidade de se estabelecer uma outra ordem social, em novas bases,

o que fez com que esses movimentos se articulassem para tentar inscrever

na Carta Constitucional direitos sociais que pudessem ser traduzidos em

deveres do Estado, através de políticas públicas.

A política social brasileira da década de 1980 apresentava estratégia

reformista, ou seja,

crescimento sustentado; ampliação do emprego; aumento do salário real; melhor

distribuição de renda; reforma agrária; seguro desemprego; revisão da legislação

trabalhista e sindical; descentralização político-administrativa; participação e

controle social; redefinição do padrão regressivo de financiamento das políticas

sociais: universalização do acesso; ampliação do impacto redistributivo. (Fagnani,

citado por Silva, 1997: 63)

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Tal estratégia, na verdade, encontrava-se na contramão do processo

de reestruturação econômica e social que acontecia nos países de economia

avançada, que envolvia fortes medidas de contenção de gastos e diminuição

crescente da cobertura no atendimento às necessidades sociais, desti­

nadas a desresponsabilizar o Estado da proteção social, transferindo parte

de suas responsabilidades e ações para a sociedade civil e o mercado.

Nesse período, a Constituição Brasileira de 1988, reflexo da ampla

mobilização social que a precedeu, instituiu oficialmente o sistema de seguri­

dade social no Brasil, baseado no tripé previdência, saúde e assistência

social, e através do seu art. 195, definiu seu financiamento por toda a socie­

dade através de recursos orçamentários da União, dos estados e dos muni­

cípios, além das contribuições sociais de empregadores (folhas de salários,

faturamento e lucros), de trabalhadores e de receitas de concursos e

prognósticos (loterias).

Essa normatização teve grande importância no que diz respeito às

políticas que integram o sistema, pois a partir da carta constitucional foi

reconhecido o direito à proteção social devida pelo Estado como universal

(a todo cidadão), independentemente de contribuição prévia ao sistema, e

estabeleceu estruturas organizativas de caráter democrático para seu funcio­

namento (conselhos, fundos, comissões, conferências etc). Esse sistema,

ainda que restrito a essas políticas, teve o mérito de romper com o formato

contratual contributivo, ou seja, a proteção social passa a ser incondicional,

não dependendo mais de contribuições pessoais que caracterizavam o sistema

até então vigente e inscreveu novos direitos sociais para a população, em

particular o direito à assistência social para os não-segurados, aqueles que

não estão vinculados ao mercado, e para os segurados que se encontrarem

em situação de vulnerabilidade circunstancial ou conjuntural, como, por

exemplo, em momentos de calamidade pública.

A década de 1990 foi marcada pelos esforços e lutas dos setores

progressistas da sociedade na regulamentação e implementação dos direitos

sociais inscritos na Constituição. Foram regulamentadas as áreas da criança

e do adolescente, da seguridade social, da saúde, da assistência social, da

educação e da previdência social, com amplas discussões e pactuações

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entre diversos atores que, organizados, representavam os segmentos sociais

envolvidos. Foi uma década marcada pelo conflito entre a expectativa

da implementação de políticas públicas que concretizassem os direitos

conquistados, assegurados em lei, e as restrições políticas e econômicas

impostas para sua implementação.

Formulando políticas públicas sociais

0 processo de formulação de uma política envolve a identificação

dos diversos atores e dos diferentes interesses que permeiam a luta por

inclusão de determinada questão na agenda pública e, posteriormente, a

sua regulamentação como política pública. Assim, pode-se perceber a

mobilização de grupos representantes da sociedade civil e do Estado que

discutem e fundamentam suas argumentações, no sentido de regulamentar

direitos sociais e formular uma política pública que expresse os interesses

e as necessidades de todos os envolvidos.

Os movimentos sociais, que, na década de 1980, lutaram pelo fim do

regime autoritário e pela redemocratização da sociedade, foram atores

sociais importantes na discussão e definição das novas formas de organi­

zação e gestão das políticas públicas, especialmente as políticas sociais. A

descentralização dos poderes e das funções do Estado foi tema recorrente,

como sinônimo de democratização. Os questionamentos desses atores quanto

às características históricas das políticas sociais brasileiras (seletivas,

fragmentadas, excludentes e setorizadas, conforme analisa Degennszajh,

2000:61) e quanto à incorporação das vontades da sociedade nas decisões

políticas movimentaram a Assembléia Constituinte e resultaram em dois

princípios que fundamentaram o processo de descentralização: a democra­

tização e a participação.

A Carta Constitucional de 1988 deu nova forma à organização do sistema

federativo brasileiro, redefinindo o papel do governo federal, que passou a

assumir prioritariamente a coordenação das políticas públicas sociais,

enquanto os municípios, reconhecidos como entes federados autônomos.

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assumiram a maior parte da responsabilidade de execução dessas políticas.

Esse formato federativo previu a transferência de diversas atribuições,

responsabilidades e recursos da instância federal para os níveis estaduais

e municipais de governo, bem como a autonomia de estados e municípios

para definirem a organização e a gestão de suas políticas. Tais definições,

ainda que importantes e de grande relevância para operar avanços signifi­

cativos na área da administração pública, como a descentralização e demo­

cratização da implementação das políticas sociais, têm levado, em alguns

casos, ao puro formalismo, devido à forte tradição centralizadora do governo

federal, à tendência à padronização, que não considera as diferentes

realidades apresentadas pelos estados e municípios, ou seja, tratam os

desiguais como iguais, e à não-efetivação de transferências de recursos

da União e dos estados para os municípios, compatíveis com as demandas

apresentadas pelo nível local.

O processo de redemocratização do Estado brasileiro consagrou a parti­

cipação popular na gestão "da coisa pública" ao fundar as bases para a

introdução de algumas experiências que contribuíram para a ampliação

da esfera pública no país, entendida como arena na qual as questões que

afetam o conjunto da sociedade são expressas, debatidas e tematizadas

por atores sociais. Esses espaços, além de possibilitarem o exercício do

controle público sobre a ação governamental, também tornam públicos

os interesses dos que os compõem.

Tais experiências alteraram significativamente a relação Estado/

sociedade na medida em que criaram novos canais de participação popular,

como é o caso dos conselhos de políticas sociais, que têm atuado na sua

co-gestão. Sendo esses conselhos instrumentos de expressão, represen­

tação e participação popular, têm o desafio de discutir e deliberar sobre

determinados temas, buscando consensos e alianças que definam as agendas

públicas que representam interesses coletivos. Outro grande deâafio é trans­

formar suas deliberações em ações do poder público, ou seja, interferir na

definição de ações, prioridades e metas dos governos e funcionamento

de seus sistemas administrativos.

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Organizando sistemas locais de políticas sociais

As diretrizes constitucionais introduziram o, modelo de gestão baseado

na descentralização político-administrativa, na responsabilidade do Estado

e na participação da população na formulação e no controle das ações de

atenção à população em todos os níveis de governo. Esse modelo requer

a adoção de conceitos e práticas inovadoras, que possam lhe dar suporte

técnico-político, uma vez que esses enunciados não trazem em si força

suficiente para uma transformação das práticas realizadas na área. social,

tradicionalmente clientelistas e assistencialistas, que são ações que trans­

formam o direito em ajuda e doação, sendo que quem recebe fica devendo

um favor e se vê obrigado a retribuir a doação com serviços ou com votos.

A gestão social de uma política pode ser entendida como uma "ação

gerencial que se desenvolve por meio da interação negociada entre o setor

público e a sociedade civil" (Tenório, 1996), o que pressupõe inter-relação

constante entre o poder público, os cidadãos e as organizações que os

representam.

Muitos»municípios, para atender às determinações constitucionais,

organizaram apressadamente seus sistemas locais de políticas setoriais,

alguns poucos com manifesta preocupação em realizar uma gestão compro­

metida com resultados concretos que alterassem realmente o padrão de

atendimento à população, em conformidade com as novas concepções que

convergem interesses coletivos e ao atual modelo de gestão das políticas

públicas sociais.

A efetividade das ações desenvolvidas tem demandado dos órgãos

gestores o aumento da sua capacidade técnica, o aperfeiçoamento dos instru­

mentos de gestão (diagnóstico, plano, sistema de informação, monitoramento

e avaliação de resultados das ações e de impacto da política), a formação e

capacitação dos recursos humanos, o aumento da capacidade de mobilizar

os recursos públicos de maneira mais eficiente e o desenvolvimento de

habilidades gerenciais que contribuam na viabilização das novas atribuições.

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As ações na área social têm sido organizadas em sistemas descentra­

lizados e participativos, constituídos por órgãos da administração pública,

gestores, seus respectivos conselhos e pelas entidades e organizações

prestadoras de serviços, que compõem o que é chamado de "rede presta­

dora de serviços". Segundo Carvalho (1997:10-11) entende-se por rede a

interconexão de agentes, serviços, entidades governamentais e não-governa-

mentais, que se vinculam em tomo de interesses comuns, seja na prestação

de serviços ou na produção de bens, estabelecendo vínculos horizontais de

interdependência e complementariedade entre si. Essas redes têm demons­

trado importância na captação e aplicação de recursos públicos e privados,

no fortalecimento institucional das organizações que as compõem, pela

capacidade de promoverem trocas de experiências, na construção de pactos

para execução dos planos de ação para atendimento aos usuários das

políticas sociais. Elas têm desempenhado importante papel político de

transformação social pela capacidade de mobilização de ações coletivas

dentro dos espaços públicos, pela representação de interesses da popu­

lação, pela inovação de processos e metodologias de trabalho.

A gestão dos sistemas das políticas sociais implica numa relação de

cooperação e complementariedade entre União, estados e municípios no

desenvolvimento de ações compartilhadas com a sociedade civil, por meio

das redes de serviços de atenção à população (saúde, educação, assistência

social, proteção à criança e ao adolescente, e outras), na responsabilidade

do órgão gestor pelo exercício das funções de planejamento, coordenação,

organização e avaliação das ações em estreita interação com os demais

atores (conselhos. ONGs, prestadores de serviços e outros). A organização

dessa rede pressupõe a efetivação de parcerias entre governo e sociedade

civil, com vistas à qualidade dos serviços prestados e resolutividade dos

sistemas com clara definição de mecanismos, estratégias de ação, papéis

e responsabilidades entre prestadores de serviços, usuários e gestores.

A criação e funcionamento dos sistemas locais das políticas públicas

sociais representam a responsabilização dos governos municipais pela

assistência à saúde, educação, criança e adolescente, assistência social

e outras, a ser prestada a todo cidadão no seu âmbito de jurisdição.

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Ao se analisar a implementação desses sistemas, que trazem mudanças

na concepção, no desenho institucional e nos modos de operação, ou seja,

de gestão dos programas de cada área, é preciso considerar a diversidade

e a diferenciação apresentada pela realidade dos estados e municípios

nos modelos de organização, nas atividades desenvolvidas, nos recursos

disponíveis e na capacidade gerencial. Deve-se, portanto, considerar o quanto

é importante que o processo de implementação dessas políticas seja

acompanhado do desenvolvimento da capacidade técnica, administrativa

e política dos gestores e dos diversos agentes que integram os sistemas.

É responsabilidade e atribuição dos gestores a coordenação do sistema

e a incorporação de práticas e mecanismos que permitam o planejamento,

monitoramento e avaliação dos resultados alcançados pelas ações e o

impacto das políticas na melhoria da qualidade de vida dos usuários, bem

como a estruturação das ações de enfrentamento da questão social. Nesse

sentido, as regulamentações específicas de cada política determinaram

sua organização em sistemas de co-gestão constituídos por conselhos,

fundos e planos de gestão.

Os conselhos de políticas criados por projetos de lei, discutidos e

aprovados pelo Legislativo, paritários (têm representação do governo e da

sociedade civil), são também responsáveis pela gestão, uma vez que têm

caráter deliberativo quanto à política e atuam no âmbito da esfera pública,

ou seja, definem as agendas públicas que representam interesses coletivos.

Como canais de participação legalmente constituídos, os conselhos exercem

o controle público sobre as ações e decisões governamentais, discutem

projetos e os tornam públicos, deliberam sobre questões relacionadas ao

que lhes é comum, estabelecem acordos e alianças, explicitam conflitos,

enfim, atuam em espaços que permitem a negociação, a pactuaçâo e a

construção de consensos que viabilizam a operacionalização dos sistemas.

Sua estruturação e seu funcionamento possibilitam à sociedade civil orga­

nizada formar opinião sobre o desejo comum e inserir na agenda governa­

mental demandas públicas para que sejam processadas e implementadas

sob forma de políticas para a área social. Os conselhos institucionalizam a

participação da sociedade civil nos processos de formulação, implementação

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e avaliação da política, sem contudo substituírem o papel do gestor, a

quem compete a implementação das políticas.

0 novo ordenamento relacionado à gestão das políticas sociais insti­

tuiu os fundos especiais como instrumentos de gestão financeira, buscando

tornar transparente e democrática a destinação e utilização dos recursos

que as financiam. As disposições legais sobre a forma de gestão dos recursos

financeiros das políticas sociais a serem adotadas pelas três esferas de

governo consideram tanto o aspecto da descentralização político-adminis-

trativa, como também a autonomia administrativa e a agilidade do processo

decisório de cunho financeiro que o fundo possibilita, além de ordenar a

gestão da política de forma a lhe garantir recursos necessários.

Os fundos, como instrumentos de gestão, têm vantagens inequívocas

para aqueles que assumem o compromisso com uma administração transpa­

rente, mas são um problema para os que permanecem na cultura da admi­

nistração pública tradicional. Assim, muitos gestores municipais criaram

fundos apenas para estarem aptos a receberem os recursos federais, não

os transformando em instrumentos efetivos de gestão. Conseqüentemente,

alguns desses fundos não movimentam nenhum recurso municipal, ficando

à mercê do gestor a decisão sobre a destinação do mesmo, sem passar

pela apreciação dos conselhos a sua aplicação.

Um dos fatores que tem sido significativo para a baixa efetivação dos

fundos é a pouca compreensão sobre o processo orçamentário e as normas

de financiamento das políticas públicas sociais, tanto no que diz respeito à

legislação e procedimentos para inclusão das demandas da área no orçamento,

quanto na própria compreensão da peça orçamentária e dos instrumentos e

processos de prestação de contas. Torna-se difícil, se não impossível, para

a grande maioria dos representantes da sociedade civil intervir e deliberar

nesse processo, que tem permanecido como uma "caixa-preta" que somente

pode ser desvendada por tecnocratas e políticos. Os esforços para alteração

desse quadro, iniciados por algumas gestões, devem ser ampliados, tanto

no que diz respeito à capacitação dos conselheiros para a deliberação relacio­

nada ao financiamento, bem como na ampliação da participação da população

na definição do montante dos recursos públicos para a área social e dos critérios

de repasse dos mesmos para a rede prestadora de serviços à população.

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O plano, outro instrumento de gestão das políticas, deve ser entendido

como um pacto entre governo e sociedade, que explicita a intenção política

do governante para a gestão, seus princípios, diretrizes, estratégias de ação e

metas, assim como as diretrizes para construção e fortalecimento do sistema

local. É instrumento de planejamento estratégico essencial para o desen­

volvimento da política, embora muitas vezes seja compreendido apenas como

cumprimento formal de uma determinação legal, que habilita o município

para o recebimento de recursos financeiros federais. Algumas vezes os planos

são elaborados em gabinetes ou por assessorias contratadas, não envolvendo

os atores sociais da área e não expressando a realidade social e as possíveis

estratégias de sua superação. Quando apresentam a complementaridade

das ações entre o poder público e a sociedade civil, o fazem formalmente,

sem a pactuação necessária para o efetivo funcionamento do sistema.

Considerações finais

De modo geral, tem-se observado que há pouca reflexão por parte

dos poderes locais quanto à sua capacidade de gestão, ou seja, das reais

possibilidades de as administrações assumirem a organização e condução

dos sistemaè locais das políticas sociais integralmente, seja nos aspectos

políticos, administrativos e/ou financeiros. Observa-se ainda que a adesão

dos municípios a esses modelos de gestão das políticas sociais, descentra­

lizados e participativos, tem-se dado a partir de uma política de indução do

Governo Federal, vinculando repasse de recursos financeiros à organização

dos sistemas locais.

As exigências atuais quanto à gestão social apontam para a necessi­

dade de renovação dos processos técnico-burocráticos, tradicionalmente

desenvolvidos no setor público. Torna-se imprescindível a adoção de modelos

de gestão flexíveis e participativos, isso é, menos hierárquicos e mais hori­

zontais, que envolvam participação dos usuários e demais interlocutores

nas negociações, decisões e ações desenvolvidas. Isso aponta para uma

nova relação de parceria entre Estado e sociedade, que supõe mudanças na

cultura das instituições públicas e seus agentes, e capacidade propositiva

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da sociedade civil, características que precisam ser desenvolvidas na área

social, cujas marcas do clientelismo e do paternalismo são muito profundas

e cristalizadas para serem dirimidas em curto período de tempo.

A implementação e consolidação das políticas sociais se dão num

momento em que o Estado brasileiro entra em crise e passa a ser questio­

nado como obstaculizador do desenvolvimento. A abordagem social-liberal

sobre a crise do Estado no Brasil, que se instala a partir da década de 1970,

considera três fatores, que são: a crise fiscal, a crise do modo de inter­

venção e a crise da forma burocrática de administrar. Tal abordagem não

considera o aspecto económico-político, abordando a crise como urna

questão administrativa a ser resolvida pela redistribuição de funções, defi­

nição de papéis e instalação de competências. O projeto de reforma do

Estado define que, de executor de políticas públicas, ele deve passar a desem­

penhar papel regulador, fiscalizador e incentivador das atividades do mercado.

Ao implementar essa reforma, estão sendo feitas alterações que restringem

a sua ação e ampliam as iniciativas privadas, como, por exemplo, a transfe­

rência para a sociedade da competência para realizar atividades que não

são consideradas exclusivas do Estado, como saúde, educação, cultura,

segurança e outras.

Isso tem levado o Estado brasileiro a se retrair em muitas de suas

responsabilidades quanto às políticas sociais. Sua opção tem sido por

programas seletivos e focalizados em demandas pontuais, contrariando o

princípio da universalização do acesso e dificultando a institucionalização

das políticas, principalmente no âmbito federal. O Brasil segue a tendência

mundial no que diz respeito à seguridade social, ou seja, "a desqualificação

e o esvaziamento da vertente não contratual e distributiva do sistema, acompa­

nhados de uma forte valorização do esquema de seguro" (Pereira, 1998: 65).

Assim, observa-se um movimento contrário ao da garantia incondicional

de direitos à proteção social pública em dCireção ao que Yazbek denomi­

na de "refilantropização da questão social", ou seja, prevalece a oferta de

bens e serviços pela iniciativa privada para os que podem adquiri-los,

enquanto os serviços públicos passam a atender os pobres.

Quanto a isso, Raczynski (1999: 197) considera a focalização como

uma das tendências emergentes nas políticas sociais na América Latina,

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associada à descentralização, à privatização, à execução de programas de

base local, à participação social e às novas relações entre Estado, mercado e

sociedade. Adverte que programas focalizados devem ser implementados como

complementos a programas universais, pois disso depende sua eficiência

e efetividade (Raczynski, 1999: 192). E a predominância dos mesmos pode

gerar efeitos políticos não desejados, polarizando a sociedade entre pobres

que são atendidos pelo setor público e ricos atendidos pelo setor privado.

A política social não tem se constituído como prioridade de governo,

ficando a reboque da política econômica, o que veio confirmar o que Draibe,

ainda no início da década de 90, apontava como uma possível tendência: a

assistencialização das políticas, ou seja, o restrito financiamento destinado

a elas, comprometendo seus resultados e empurrando as classes médias

para a compra dos serviços no mercado. Seus usuários passaram a ser as

parcelas mais pauperizadas da população, dando-lhe um caráter residual.

Numa sociedade como a brasileira, com altos índices de exclusão e

profundas disparidades regionais, em que o desenvolvimento econômico e

social tem se dado combinando ilhas de riqueza cercadas por oceanos de

pobreza, o papel do Estado na organização e financiamento de serviços sociais,

prestados por redes de atenção e proteção social, é de suma importância para

garantia das riecessidades de sobrevivência de ampla parcela da população.

Bibliografia

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