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125 Renan Freitas Pinto Sociólogo, professor da Universidade Federal do Amazonas O artigo procura apontar na obra de Montaigne os Ensaios suas idéias sobre: O Novo Mundo, destacando os principais fundamentos precursores da antropologia. Os Canibais de Montaigne The Cannibals of Montaigne This article aims to show the es- says in the Montaigne in which he presents his ideas about the new world, highlighting the principal ba- sic ideas which were the precursors of Anthropology. Untitled-3 1/1/1990, 12:42 AM 125

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Sobre o famoso ensaio de Montaigne

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Renan Freitas Pinto

Sociólogo, professor daUniversidade Federal do Amazonas

O artigo procura apontar na obrade Montaigne os Ensaios suas idéiassobre: O Novo Mundo, destacando osprincipais fundamentos precursores daantropologia.

Os Canibais deMontaigne

The Cannibals ofMontaigne

This article aims to show the es-says in the Montaigne in which hepresents his ideas about the newworld, highlighting the principal ba-sic ideas which were the precursorsof Anthropology.

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OS CANIBAIS DE MONTAIGNERenan Freitas Pinto*

MONTAIGNE E O NOVO MUNDO

A leitura crítica da obra de Michel de Montaigne (1533-1592) tem demonstradopoder oferecer esclarecimentos para várias questões relacionadas com a formaçãodo pensamento moderno e para a história das idéias que deram corpo ao que passoua ser a razão ocidental. Difícil também parece ter sido, desde o momento em que osseus Ensaios ganharam notoriedade e se impuseram como leitura aos estudiosos eamantes da filosofia, explicar e definir seu estilo de pensar e refletir sobre as questõesque se propôs a discutir, partindo apenas de uma determinada ou única perspectiva,escola ou corrente de pensamento.

Essa na verdade é, não apenas uma das características se seu modo de ser epensar, mas uma dificuldade que tem se apresentado aos que tem procuradocompreendê-lo através de sua vinculação a uma determinada corrente da ciência eda filosofia.

O seu estilo pode certamente mais facilmente ser compreendido como o de umpensador que não segue nenhuma corrente em particular, mas certamente aproveitouelementos de várias delas, atuando como um autor visceralmente compromissadocom um humanismo que diríamos eclético.

A partir da combinação de idéias que sua obra empreende em toda sua extensão,aproximando freqüentemente idéias e concepções pertencentes a diferentes correntesde pensamento de épocas distintas, constrói sua arquitetura de pensamento de formabastante pessoal, tornando inconfundível toda sua construção simultaneamenteliterária e filosófica.

É perfeitamente possível, necessário até, atribuir ao momento privilegiado daformação do pensamento ocidental o fato de que Montaigne, não apenas teve oprivilégio de viver, mas especialmente a capacidade que demonstrou em percebertal momento e de representá-lo como nenhum outro pensador seu contemporâneofoi capaz de fazê-lo. Ou seja, colocando-se ao mesmo tempo, na marcha e nacontramarcha, na contraposição à própria idéia da necessidade da filosofia. Pretendia,portanto, se transformar simultaneamente no anti-filósofo e no crítico atento, nopensador livre, determinado a apontar para a fragilidade da razão e da certeza epara a necessidade de pensarmos com o pé no chão, portanto valorizando antes detudo a sabedoria da vida. Há, por essas razões, a preocupação em se manter umleitor vigilante em busca das inconsistências e dos equívocos que brotavam no seiodo iluminismo em formação.

É necessário mencionar que seu alvo preferencial é revelar a inutilidade e mesmoo risco que representa a filosofia.

Uma filosofia que ele trata sempre entre aspas e para isso dispõe de várias razões.A primeira delas poderia ser o fato de que, para viver não precisamos da filosofia. Asegunda poderia ser sintetizada na oposição que existiria entre natureza e cultura,

*Professor do Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas.

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vida natural e vida civilizada e que nossa saída dificilmente estarianesta última, de uma vez que nossa busca de felicidade deveria

acontecer na direção da natureza e da vida simples.Em relação ao movimento de construção do pensamento moderno fundado

essencialmente na razão, através das noções de tempo e movimento, causa eefeito, permanência e mudança, necessidade e acaso, ele sugeria que era necessárioreconhecer a presença das incoerências, das situações contraditórias plurais ouparciais, em suma, a permanente possibilidade da desordem. E para demonstrarque a racionalidade convive de modo permanente com a irracionalidade, lançamão da idéia de natureza que vive e se impõe sem fazer uso da razão e que existeseparada da consciência. A personificação da natureza sempre foi muito cara aMontaigne e ela aparece ao longo dos seus ensaios dezenas de vezes, representandopapéis associados ao equilíbrio, à espontaneidade, à prudência, ao equilíbrio e aserenidade. Em seu ensaio intitulado De como filosofar é aprender a morrer, anatureza, personificada e dotada de voz própria, fala diretamente ao leitor:

“A água, a terra, o fogo, tudo o que constitui meu domínio e contribui para nossavida, não contribuem mais do que para a morte. Por que temei vosso último dia? Elenão vos entrega mais à morte do que o faz cada um dos dias anteriores... Eis ossábios conselhos que vos dá a natureza, nossa mãe”.

Ian Maclean, autor do livro Montaigne philosophe (1996), realiza um sugestivolevantamento que nos interessa de perto, pois pretendemos sugerir que Montaignepropôs alguns temas de inegável significação para abordarmos a questão darepresentação que a tradição do pensamento filosófico e antropológico faz do NovoMundo. Aqui vamos nos limitar a tratar as questões relacionadas com a natureza ea primeira delas poderia muito bem ser a seguinte: Montaigne se acredita inspiradopela natureza para pensá-la em face da razão e da consciência. Ele se auto-definecomo naturalista para assim se contrapor aos artistas e filósofos. Assim seria possívelcompreender melhor as relações entre a natureza do homem e a razão. Tal como anatureza, a razão teria capacidade da produção não das coisas naturais, mas daquelesmeios através dos quais seria capaz de resistir às paixões, aos hábitos arraigados,ou seja, a arte e a filosofia. Montaigne demonstra que o hábito possui uma enormecapacidade dominadora, que é capaz de tornar monstruosa a natureza humana. Damesma maneira indica o risco de nos deixarmos envolver pela significaçãotradicional e consagrada das palavras, de nos encerrarmos em um horizonte estreitode significações tal como ele busca demonstrar que estivesse ocorrendo em suaprópria época, com a descoberta do Novo Mundo que põe o europeu diante daconstatação de que provavelmente outros mundos poderão ainda ser acrescentadosaos seus até ali limitados horizontes.

Ao afirmar que “nosso mundo acaba de encontrar um outro”, adverte queesta descoberta representa principalmente a prova da possibilidade deprosseguirmos descobrindo.

O tema da descoberta e conquista do Novo Mundo também enseja a Montaigne amanifestar em relação aos costumes políticos, religiosos e sociais de sua época,idéias que o aproximam claramente de Maquiavel ao reconhecer, por exemplo, quemoral e política normalmente não andam juntas. Lembra Maclean que Montaigne,“pelo que ele diz de injustiça em geral e da injustiça perpetrada pelos espanhóis naAmérica em particular, deixa supor em sua obra um liberalismo radical, um relativismo

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moral que parece mal se afinar com o conformismo prudente deinspiração cética e estóica que se exprime também com freqüência nosseus Ensaios”. (p 112)

Os temas e situações envolvendo a educação e os processos de integraçãodos indivíduos à natureza e ao seu meio social estão bastante presentes em todasua obra e sua preocupação com a questão pedagógica não passou desapercebidaa Durkhein que, em sua obra A Evolução Pedagógica na França, deu especialdestaque às idéias de Montaigne, destacando alguns trechos em que este expressaem seu estilo singular a convicção de que “a natureza pode tudo e faz tudo”, namedida em que “possuímos ao nascer, inatamente, toda a ciência que nos énecessária viver”. E ainda que “não precisamos de muita doutrina para vivercomodamente, e Sócrates ensina que ela está em nós, bem como a maneira deencontrá-la e aproveitá-la”.

Ao apresentar e discutir as idéias de Montaigne sobre o papel da educação,Durkheim quer chamar a atenção para a crise pedagógica e moral que marca oséculo XVI. Além desse propósito a abordagem durkheimiana tem como resultadonos esclarecer sobre o modo de pensar de Montaigne, indicando que temas eproblemas, além do ponto de vista pedagógico, lhe interessavam mais de perto ecom igual permanência. Quando se põe como filósofo da educação e comopedagogo, adverte que é a vida que deve moldar a conduta e a moral da criança enão o que está nos livros. Constrói uma convincente argumentação para empreendersua longa crítica à educação livresca.

Uma das fortes impressões que a leitura de Montaigne vem certamenteproduzindo em seus leitores ao longo desses quatro séculos é a sua clara intençãopedagógica, que ele manifesta através de seu modo singular de filosofar, sempreretirando lições e exemplos de idéias alheias, de fatos narrados ou ocorridos, assimtransformando de um modo bastante livre todos esses elementos em um sistema depensamento sobre a educação, cujo princípio básico é assegurar ao homem suaidentificação a mais estreita possível com a natureza.

Entre seus temas preferenciais, é necessário sempre destacar o da natureza e osdiferentes sentidos que assume nos Ensaios, terminando por demonstrar que Montaigneem determinados momentos se apresenta como o intelectual sintonizado com opensamento tradicional e conservador de seu tempo, para logo em outro aspectomanifestar seu espírito crítico, irreverente e sarcástico diante das idéias e crençasconsagradas. Esses posicionamentos acontecem ora de maneira apaixonada ora emtom de aconselhamento.

Veja-se, portanto, como ele apresenta o que considera oposição entre naturezae razão. A razão, tal como a natureza, produz coisas não naturais como a arte e opensamento especulativo, afastando o homem de seu fundamento natural.

A idéia de natureza na obra de Montaigne está associada de um modoparticularmente intenso à noção de Novo Mundo, da mesma forma que sua concepçãode humanismo, que na época era ainda um neologismo, mas que Montaigne empregouinúmeras vezes, dando-lhe quase sempre um significado oposto ao campo teológico.

Sua obra essencialmente constitui uma das importantes fundações desse novocampo que é o humanismo. É a partir do humanismo que devemos buscar compreendero sentido que irão assumir os elementos originados de correntes filosóficas como oestoicismo, o epicurismo e o pirronismo, revestidos que estão de um novo espírito

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científico e filosófico. E para o nosso objetivo de apontar as conexõesentre seu estilo particular de filosofar e a inclusão do Novo Mundo como

um tema carregado de múltiplas significações.Para a abordagem da questão do convívio de Montaigne com as correntes de

pensamento que seus intérpretes vem identificando ao longo de quatro séculos deleituras, correntes essas que estão de algum modo já apontadas por ele mesmo emdiversas ocasiões, achamos preferível nos valer de comentários e afirmações de algunsdesses autores, aceitando como nossas as suas idéias a respeito dessa questão.

Cabe inicialmente apontar, em relação ao convívio de Montaigne com a filosofiagrega, que ele ocorreu principalmente através de Aristóteles, que dele sempre recebeuuma constante admiração, havendo se dedicado à sua leitura até aos momentosfinais de sua obra sem que contudo isso pudesse significar sua concordância commuitos aspectos de sua obra. Meclean, nos adverte que o Aristóteles que se apresentaa Montaigne é em grande parte, de um lado, anotado por Sexto empírico, de outro,travestido pela Idade Média nominalista e cristã.

Quanto ao pirronismo, é certo que a divulgação dessa corrente e sua inclusão nahistoria da filosofia se deve parcialmente a Montaigne. Ele mesmo a praticou em suaApologia de Raymond Sebond, na qual demonstra que a filosofia pirrônica não seapresenta como uma epistemologia destrutiva que pretende a suspensão de todojulgamento pela demonstração da incerteza do saber. Como lembra ainda Maclean,“como os pirronistas, Montaigne se serve da razão para humilhar aqueles quevangloriam de sua razão, e sobretudo aqueles que acreditam na certeza objetiva deseus princípios ou axiomas, isto é, os sectários da filosofia aristotélica”.

Quanto a suposição de ter Montaigne adotado atitudes ou incluído em suasconsiderações filosóficas fundamentos do pensamento estóico, parece não existirfortes razões para a dúvida. Se tomarmos alguns de seus ensaios como Dosincovenientes da grandeza, Da educação das crianças e de De como julgar a morte,reconhecemos neles facilmente exemplos e situações ali colocadas para indicaratitudes e pensamentos correspondentes ao estoicismo. Entretanto seremos obrigadosa reconhecer igualmente que essas idéias estão muitas vezes aproximadas a atitudesque se identificam com o epicurismo.

Entretanto, na opinião da maior parte dos que vem se dedicando a estudar emprofundidade sua obra, são praticamente unânimes em reconhecê-lo mais como umrepresentante do epicurismo, mas aqui também, um epicurismo bem ao seu modo,como se pode ler no trecho a seguir retirado de seu ensaio Da Solidão: “Chega deviver para os outros, vivamos para nós mesmos pelo menos este restinho de vida.Recolhamo-nos e na calma rememoremos nossos pensamentos e intenções... É precisoromper com as obrigações sérias e doravante amar isto ou aquilo, mas não desposar,senão a nós mesmos. Isto é, o que está fora pode não nos ser estranho, mas que nãofaça corpo conosco a ponto de não poder ser separado sem nos ferir e arrancar algumacoisa de nós. A coisa mais importante do mundo é saber pertencer-se a si próprio”.

Michel de Montaigne situa o Novo Mundo em posição destacada nos seus ensaios.Dois deles, em particular, - Dos Canibais e Dos Coches – são dedicados a esse tema,havendo outros entretanto em que o assunto está presente, como o que precedeimediatamente ao ensaio sobre os canibais da América. Neste ensaio intitulado DaModeração há uma referência em seu final ao contato do conquistador Cortez comrepresentantes do império do México, ocasião em que os indígenas pretendem forneceraos estrangeiros uma idéia de seu poder e riqueza. O assunto, como outros relacionados

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como o modo de ser dos povos do México e do Peru e do impactoque representou o processo da conquista pelos europeus, está maisclaramente exposto no ensaio Dos Coches, do qual extraímos os seguintestrechos que ilustram a visão de Montaigne sobre o significado da incorporaçãodo Novo Mundo ao horizonte da expansão colonial da Europa:

“Nosso mundo acaba de descobrir outro não menor, nem menos povoado eorganizado do que o nosso ( e quem nos diz que seja o último? ) e, no entanto tãojovem, que ignora o abc e que há cinqüenta anos, não conhecia nem pesos, nemmedidas, nem a arte de vestir, nem o trigo e a vinha; nu ainda, vivia do leite de suaama (a natureza), se relacionamos certo e se o poeta o fazia igualmente, devemospensar que o Novo Mundo só começará a iluminar-se quando o nosso penetrar nastrevas. Receio porém que venhamos a apressar a decadência desse novo mundocom nosso contato e que ele deva pagar caro nossas artes e idéias.”(p.234)

Em realidade, Montaigne apresenta os povos do Novo Mundo através de duasperspectivas para caracterizar as diferenças de estágios de evolução política e cul-tural. No primeiro caso, descreve a situação dos grandes impérios – México e Peru– que, desde os primeiros contatos da conquista, vão se fixar no imaginário europeuatravés dos relatos sobretudo dos espanhóis. No segundo caso, a partir Dos Canibaisrepresenta os povos indígenas que se encontravam no estágio de evolução políticaanterior a formação do Estado e da formação dos grandes impérios. As lições, portantoque vai retirar de ambas as situações vão se diferenciar em vários sentidos, assimcomo vão também se aproximar. É necessário recordar que as idéias de Montaignevai transmitir a seus leitores em torno dos povos do Novo Mundo são alimentadas, écerto, por noções oriundas do estoicismo, do epicurismo, do pirronismo, assim como,de forma direta, de filósofos como Sócrates, Platão, Aristóteles, Cícero e Sêneca.Toda essa articulação de idéias ocorre a partir da inspiração humanista que constituiafinal o sopro mais forte de sua vida e obra. Vejamos alguns exemplos que podemilustrar e confirmar essa assertiva.

Ao buscar uma explicação para a vitória tão fácil dos espanhóis sobre os vastos“impérios de Cuzco e México”é claro que menciona a enorme superioridade militardos europeus, mas destaca sobretudo os atributos dos povos indígenas como a prin-cipal causa de suas derrotas:

“Quanto à devoção, à lealdade, à bondade, à generosidade e à fraqueza, muitonos valeu não lhe sermos comparáveis, pois tais qualidades os perderam e destruíram.A energia, a coragem, a firmeza, a tenacidade e a resolução com que suportam osmales, a fome e a morte fornecem-nos exemplos dignos de se compararem com osda Antiguidade.” (p.234, Livro III).

Montaigne faz um comentário no sentido de advertir que a história do NovoMundo poderia ter tomado outro caminho se seus descobridores e conquistadoresestivessem sendo movidos por outras forças:

“É de se lamentar que não tenham sido vencidos por César ou Alexandre! Tãograndes transformações e mutações se houveram efetuado com doçura.Progressivamente fora desbravado o que neles havia de inculto; suas qualidadesnaturais teriam sido consolidadas e os conquistadores, introduzindo entre os vencidosseus conhecimentos acerca do cultivo das terras e das artes, lhes dariam também asvirtudes gregas e romanas. Que progresso teria alcançado sua civilização se comisso se houvesse estabelecido entre esses indígenas e nós um clima de fraternidadee de simpatia! Ao contrário, só tiveram diante deles exemplos de desregramentos e

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abusos. Aproveitamo-nos de sua ignorância e inexperiência e lhesensinamos a prática da traição, da luxúria, da avareza; e os impelimos

aos atos de crueldade e de inumanidade. Ter-se-á jamais perpetrado tantocrime em benefício do comércio? Quantas cidades arrasadas, quantos povos

exterminados! Milhões de indivíduos trucidados, em tão bela e rica parte do mundo,e tudo por causa de um negócio de perolas e pimenta! Miseráveis vitórias! Nunca aambição incitou a tal ponto os homens a tão horríveis e revoltantes ações!”(p.234.Livro III).

Nesses dois ensaios Montaigne está lançando o que podemos reconhecer comoos fundamentos do pensamento antropológico moderno. E de um modo mais explícitono ensaio Dos Canibais.

Dos CanibaisMichel Montaigne fundou com o seu ensaio “Os Canibais” o pensamento

antropológico moderno, mesmo que sejamos obrigados a reconhecer que nãopretenderia ser o fundador de um sistema filosófico ou de uma ciência, pelas razõesque já procuramos apontar. Se hoje as suas reflexões sobre os bárbaros, os povosexóticos e os selvagens das Américas nos parecem justas, equilibradas e corajosas,especialmente quando lembramos que ele estava vendo e vivendo o mundo doséculo XVI, nem sempre suas idéias foram reconhecidas ao longo dos séculosseguintes. Na verdade, em seu próprio tempo, as idéias que ganhavam força naopinião pública em relação ao Novo Mundo e aos seus indígenas e “selvagens”eram bastante negativas e é acreditando poder mudar essas opiniões que constrói ainteligente e bem humorada argumentação em defesa dos indígenas da América.

Dois aspectos da vida tribal chamam a atenção de modo especial dos europeus– cronistas, missionários e viajantes - que entravam em contato com os indígenasdo Brasil. Sim, porque os indígenas que são mencionados por Montaigne sãocertamente os Tupinambá que viviam no litoral, no território mencionado. Os doisaspectos são a guerra e a antropofagia. A guerra possuía um interesse bastanteevidente: o de conhecer a capacidade ofensiva e defensiva dos povos com os quaisteriam que se confrontar. Portanto, conhecer a guerra e suas técnicas indígenas erauma necessidade imperiosa do projeto de dominação política e militar. Quanto àantropofagia, esse era um traço cultural que indicava sua condição de bárbaros eselvagens, condição está que não podia ser aceita pela civilização que viera para seimpor com sua força e seus valores. Em decorrência do interesse especial do europeuem torno da guerra e da antropofagia, o que passa a ocorrer no registro da vida dospovos indígenas e na conseqüente produção das crônicas e relatos é um pesoexcessivo dado a esses aspectos, em prejuízo de outros relacionados com a vidaespiritual dos povos – mito, religião, história oral – assim como da enorme variedadede experiências de organização social, processos econômicos relacionados com aprodução extrativa, agricultura, uso cotidiano e mágico das plantas e outrasparticularidades desses múltiplos universos culturais.

Em defesa dos selvagens – Em seu ensaio “Os Canibais”, Montaigne procuradenunciar a tendência que parecia estar se cristalizando na opinião pública da Françae da Europa em torno dos povos indígenas da América, que passavam a ser vistossobretudo como antropófagos. O que ele pretende demonstrar é que o europeu,

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além de desconhecer as condições em que vivem esses povos,que são bastante diferentes daquelas em que vivem os povos da Europa,não consegue enxergar além de seus preconceitos. Teve, portanto, ocuidado de ter como informante uma pessoa simples de espírito, que estavadurante muito tempo a seu serviço e que permanecera numa parte do NovoMundo, “no lugar em que tomou pé Villegaignon e a que deu o nome de “FrançaAntártica”, portanto no litoral brasileiro”.

Seguindo o testemunho de seu informante, não vê nada de bárbaro ou selvagemnaqueles povos, a não ser que aceitemos o costume segundo o qual cada umconsidera bárbaro o que não se pratica em sua terra.

A região em que esses povos habitam é muito agradável. O clima é temperado aponto de, segundo suas testemunhas, raramente se encontrar um enfermo. Há peixee carne em abundância e de excelente qualidade e se contentam em grelhá-los paracomer. Suas residências são barracões com capacidade para duzentas e trezentaspessoas e são edificadas com troncos e galhos de grandes árvores. Seus leitos sãotecidos com fios de algodão e são suspensos ao teto. Cada um com o seu, dormindoas mulheres separadas dos maridos. Levantam com o sol e tomam logo a únicarefeição do dia. Entretanto bebem quando e quando querem. Sua bebida extrai-sede certa raiz. Conservam-se apenas dois ou três dias, com um gosto algo picante,sem espuma. É digestiva e laxativa para os que não estão acostumados e é muitoagradável para quem se habitua a elas.

Montaigne ao se referir aos elementos da vida cotidiana dos indígenas destaca aimportância da guerra como um de seus valores culturais e sociais básicos, indicandoque todo o conjunto de atividades convergem afinal para o combate:

“É admirável a resolução com que agem nesses combates que sempre terminamcom efusão de sangue e mortes, pois ignoram a fuga e o medo. Como troféu, trazcada qual a cabeça do inimigo trucidado, a qual penduram a entrada de suasresidências. Quanto aos prisioneiros, guardam-nos durante algum tempo, tratando-os bem e fornecendo-lhes tudo de que precisam até o dia em que resolvam acabarcom eles. Não o fazem entretanto para se alimentarem, mas sim em sinal de vingança,e a prova está em que, tendo visto os portugueses, aliados de seus inimigos,empregarem para com eles, quando os aprisionavam, outro gênero de morte, queconsistia em enterrá-los até à cintura, crivando de flechas a parte fora da terra eenforcando-os depois, imaginaram que essa gente da mesma origem daqueles seusvizinhos que haviam espalhado o conhecimento de tantos vícios, que essa gente,muito superior a eles no mal, não devia ter escolhido sem razão um tal processo devingança, o qual por isso adotaram, porque o acreditavam mais cruel, e abandonaramseu sistema tradicional”.

Montaigne adverte que reconhecer nesses atos a crueldade não deve servir paraesquecermos e escondermos o que há de bárbaro e cruel em atos e práticas daprópria Europa. Lembra que os indígenas fazem a guerra de modo nobre e generoso,pois não entram em conflito a fim de conquistar novos territórios, pois dispõem degrande fartura natural sem necessidade de trabalho e fadiga e assim não têmnecessidade de ampliar suas terras.

“Os Canibais”de Montaigne possui, como ensaio antropológico precursor, umaextraordinária capacidade de combinar uma compreensão relativista e em perspectivada situação dos povos indígenas que é claramente a de “encontro de civilizações”.

Entretanto, a posição antropológica que ele defende, baseada numa visão

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afirmativa das culturas indígenas e da necessidade de aceitaçãodas diferenças entre os modos de vida e os valores dos povos da Europa

e os do Novo Mundo, foi durante muito tempo uma posição derrotada.Nesse sentido ainda, vale anotar que a representação que ai está esboçada em

relação ao Novo Mundo é muito mais isenta de pré-noções e etnocentrismo do quea de uma série de pensadores que abordaram a questão da diferença entre povos,culturas e civilizações entre os quais devem ser mencionadas Montesquieu, Buffone Hegel. A argumentação de Montaigne em favor dos selvagens do continenteamericano não foi considerada por esses filósofos. A sua defesa da terra e do climado Novo Mundo também não parece ter surtido grande efeito nos dois séculosseguintes. A posição de Montaigne também foi derrotada na medida em que elapretendia que as relações que se estabeleciam entre europeus e povos do NovoMundo pudessem ser conduzidas de modo a estabelecer formas de aceitação desuas diferenças.

Os ensaios de Montaigne eram sempre construídos de tal modo que algumacrença ou verdade estabelecida pudesse ser ao menos colocada em dúvida. Quantoao ensaio sobre “Os Canibais” certamente ele conseguiu colocar em questão algunsproblemas relacionados com a própria identidade européia em um momento par-ticular de sua formação.

Sobretudo reter a idéia de que essa produção simultânea da identidade doseuropeus -ingleses , franceses espanhóis, portugueses etc. – e dos outros, ou seja,indígenas, povos exóticos, está presente no pensamento dos filósofos e quase semprede forma paradoxal, como é possível perceber em seus respectivos sistemas derepresentação da história, do processo civilizatório, do conteúdo dos estados nacionaisou do “espírito do povo”. Para nós que estamos buscando identificar as obras e osautores que contribuíram de forma inequívoca para a formação do pensamento so-cial brasileiro e do Novo Mundo, Montaigne aparece como um dos pensadores quepercebeu em seu tempo todas as conseqüências e desdobramentos da descoberta econquista da América.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS– Maclean, Ian. Montaigne Philosophe, Paris, Presses Universitaires de France,

1996.– Montaigne, Michel Eyquem de. Ensaios, Brasília, Editora da Universidade de

Brasília, Hucitec, 1987, 3 vols.– Puilloux, Jean – Yves. Lire lês Essais de Montaigne, Paris, Maspero, 1969.– Starobinski, Jean. Montaigne em mouvement, Paris, Gallimard, 1983.

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