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1.5- A REPRESENTAÇÃO DA CATÁSTROFE ATRAVÉS DA ARTE DE LASAR SEGALL 1 Maria Luiza Tucci Carneiro Lasar Segall pode ser considerado como um dos mais expressivos artista- símbolo dos judeus na Diáspora. Nascido em Vilna (1891), fixou- se definitivamente em São Paulo em novembro de 1923 vindo a ocupar destacada posição no cenário da arte moderna brasileira. Foram suas andanças pelos tempos sombrios de Berlim, Dresden e Paris, assim como seu retorno a Vilna, que lhe aguçaram a sensibilidade para os temas judaicos, as utopias expressionistas e as concepções de uma arte engajada 2 . Este texto não tem como proposta discutir se a arte de Segall é universal ou judaico-nacional, mas verificar como estes conceitos se entrecruzam registrando um protesto contra a degradação da retórica política, a injustiça e o genocídio 3 . É nesta direção que consideramos como um marco na história da arte moderna brasileira, o conjunto de obras produzidas entre 1936-1947 que deram conta da brutalidade sistemática praticada pelos regimes totalitários. Se algumas telas de Segall reconstituem imagens da morte em massa, outras retratam as estratégias de sobrevivência adotadas pelas minorias oprimidas expressas (sutilmente) no caminhar exausto do judeu errante, no gesto impetuoso de angústia e do medo, na resignação e apatia dos refugiados judeus. Enfim, a metáfora do sofrimento se transformou na força motriz da criação segalliana que, ao alertar a sociedade para a degradação humana, cumpriu seu papel revolucionário 4 . Foi sob o prisma de seu olhar de cidadão russo e movido por sua alma judaica que Segall abordou a questão dos refugiados, do anti- semitismo e da barbárie nazista contra os judeus. Sua opção por uma série de temas representativos da memória coletiva judaica (campos de 1 Texto a íntegra pode ser consultado no livro: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci; LAFER, Celso. Judeus e Judaismo na Obra de Lasar Segall . São Paulo, Ateliê Editorial, 2004. 2 .Claudia Valladão de Mattos, Lasar Segall. Expressionismo e Judaísmo, São Paulo, Perspectiva, 2000, p. 116. 3 Esta questão é discutida no texto de Celso Lafer Particularismo e universalidade: o judaísmo na obra de Lasar Segall”, publicado junto a esta coletânea. Vale ressaltar que entre 16 de agosto a 7 de outubro de 1984, o Museu Lasar Segall organizou a mostra Segall e o Judaismo, em cujo catálogo encontramos os textos: “Lasar Segall: o assunto Judeu”, por Jacob Klintowitz; “Ilustrações de Lasar Segall para o livro Massebichl de David Bergelsohn, por Fannina Halle, além do “Prefácio”por Maurício Segall. 4 .Christopher Lasch, O Mínimo Eu. Sobrevivência Psíquica em Tempos Difíceis, 5ª ed., São Paulo, Brasiliense, 1990.

1 5 a representação da catástrofe através da arte de lasar segall

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A Arte é um patrimônio da humanidade. Expressão cultural e humanística de todos os tempos. Por ela, também é possível denunciar a barbárie que destrói o humano e sua capacidade criativa. Destruir o humano é destruir a Arte e suas expressões do jeito humano de criar e re-criar a sua humanidade e a humanidade do outro.

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1.5- A REPRESENTAÇÃO DA CATÁSTROFE ATRAVÉS DA ARTE DE LASAR SEGALL1

Maria Luiza Tucci Carneiro

Lasar Segall pode ser considerado como um dos mais expressivos artista- símbolo dos judeus na Diáspora. Nascido em Vilna (1891), fixou-se definitivamente em São Paulo em novembro de 1923 vindo a ocupar destacada posição no cenário da arte moderna brasileira. Foram suas andanças pelos tempos sombrios de Berlim, Dresden e Paris, assim como seu retorno a Vilna, que lhe aguçaram a sensibilidade para os temas judaicos, as utopias expressionistas e as concepções de uma arte engajada2.

Este texto não tem como proposta discutir se a arte de Segall é universal ou judaico-nacional, mas verificar como estes conceitos se entrecruzam registrando um protesto contra a degradação da retórica política, a injustiça e o genocídio3. É nesta direção que consideramos como um marco na história da arte moderna brasileira, o conjunto de obras produzidas entre 1936-1947 que deram conta da brutalidade sistemática praticada pelos regimes totalitários. Se algumas telas de Segall reconstituem imagens da morte em massa, outras retratam as estratégias de sobrevivência adotadas pelas minorias oprimidas expressas (sutilmente) no caminhar exausto do judeu errante, no gesto impetuoso de angústia e do medo, na resignação e apatia dos refugiados judeus. Enfim, a metáfora do sofrimento se transformou na força motriz da criação segalliana que, ao alertar a sociedade para a degradação humana, cumpriu seu papel revolucionário4. Foi sob o prisma de seu olhar de cidadão russo e movido por sua alma judaica que Segall abordou a questão dos refugiados, do anti-semitismo e da barbárie nazista contra os judeus. Sua opção por uma série de temas representativos da memória coletiva judaica (campos de concentração, pogroms, refugiados, guerras, massacres etc.) expressa a aplicação do seu conceito de revolução espiritual através da arte . Assim, as obras de Lasar Segall – enquanto instrumento de crítica social – podem ser analisadas sob múltiplas vertentes: psicológica, histórica, artística e política. Sob qualquer um destes prismas deve-se considerar: o compromisso de Segall com suas origens judaicas; sua “alma judaica” cunhada pela vivência no gueto de Vilna e pela prática do anti-semitismo na Rússia

czarista nas primeiras décadas deste século; seu engajamento com as concepções e utopias expressionistas em circulação no período entre-guerras na

Alemanha; sua postura entre dois mundos, o da ortodoxia e da modernidade; a ascensão do nacional-socialismo na Alemanha e a execução do plano sistemático de extermínio dos

judeus arquitetado pelo III Reich; os desastres da guerra e o caminhar errante dos refugiados do nazi-fascismo; a política imigratória anti-semita adotada pelos governos Vargas e Dutra que, entre 1937-1950,

mantiveram circulares secretas contra a entrada de refugiados judeus no Brasil; a persistência no Brasil (1930-1945) de um pensamento autoritário e anti-semita identificado com as

posturas nazi-fascistas em voga a Europa; o intenso contato mantido por Segall, durante anos, com renomados artistas e intelectuais identificados

com os movimentos da vanguarda artística e de combate ao totalitarismo; o envolvimento de Segall com a situação vivenciada por seus amigos judeus presos em campos de

concentração ou refugiados do terror nazista.

1 Texto a íntegra pode ser consultado no livro: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci; LAFER, Celso. Judeus e Judaismo na Obra de Lasar Segall. São Paulo, Ateliê Editorial, 2004.2 .Claudia Valladão de Mattos, Lasar Segall. Expressionismo e Judaísmo, São Paulo, Perspectiva, 2000, p. 116.3 Esta questão é discutida no texto de Celso Lafer “Particularismo e universalidade: o judaísmo na obra de Lasar Segall”, publicado junto a esta coletânea. Vale ressaltar que entre 16 de agosto a 7 de outubro de 1984, o Museu Lasar Segall organizou a mostra Segall e o Judaismo, em cujo catálogo encontramos os textos: “Lasar Segall: o assunto Judeu”, por Jacob Klintowitz; “Ilustrações de Lasar Segall para o livro Massebichl de David Bergelsohn, por Fannina Halle, além do “Prefácio”por Maurício Segall.4 .Christopher Lasch, O Mínimo Eu. Sobrevivência Psíquica em Tempos Difíceis, 5ª ed., São Paulo, Brasiliense, 1990.

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Segall viveu em Vilna até 1906, data em que mudou-se para Berlim com o objetivo de cursar a Imperial Academia Superior de Belas-Artes. Aqueles quinze anos de vivência junto a comunidade judaica de Vilna – então capital da Lituânia e que na época estava sob o domínio da Rússia czarista – garantiram ao artista a configuração de uma identidade judaica. Assim, podemos considerar que a intensidade dos temas judaicos nas obras produzidas por Segall nasceu da comunhão da atmosfera russa como da sua condição de cidadão apátrida. Vale ressaltar que, nesta virada de século, a situação dos judeus russos já havia mudado radicalmente contrastando com os tempos reformistas (1856-1863) do reinado de Alexandre II. Tumultos anti-semitas vinham sendo registrados desde 1871 quando apareceu, pela primeira vez, a palavra pogrom (“tempestade”, em russo)5. Após o assassinato de Alexandre II em 1881, os judeus foram sendo acuados sob a acusação de controlarem o comércio e a indústria, situação que culminou com a imposição de uma série de restrições econômicas vigêntes até 1917. Estas “regras provisórias” de 3 de maio de 1882 foram impostas por Alexandre III e usadas como forma de conter o movimento revolucionário russo6. Dez anos antes do nascimento de Segall, uma diversificada literatura anti-semita já propagava a ideía de que os judeus formavam “um Estado dentro do Estado”, alimentando a onda de violência e alterando o cotidiano das regiões meridionais do Império. Em maio e dezembro de 1881 ocorreram pogroms em Odessa e Varsóvia configurando a prática de um anti-semitismo popular que, ao longo dos anos, somou forças com o anti-semitismo político. Fechava-se, cada vez mais, o cerco contra os judeus que tentavam criar comissões e grupos de autodefesa. Uma série de restrições lhes limitavam as atividades econômicas, o livre exercício da profissão de advocacia e o acesso às vagas nas universidades e aos liceus. Ondas de pogroms foram registradas por toda a “zona de resistência” em duas fases distintas: entre 1881-1884 e 1903-1906. O anti-semitismo prestava-se como arma política gerando um clima de insegurança e tensão entre os judeus que começaram a buscar por novas oportunidades de vida. Além do anti-semitismo, uma outra questão deve ser considerada: a obrigatoriedade do serviço militar. Além de impedir os jovens de cumprir as obrigações religiosas e assumir uma vida profissional, o cotidiano do exército os colocava diante de situações explícitas de intolerância sendo, constantemente relegados a ocupar posições inferiores na hierarquia militar. Amedrontados, milhares deles deixaram a Ucrânia, Bielorrússia, Polônia e Lituânia engrossando correntes emigratórias em direção aos Estados Unidos, Palestina. e Europa Ocidental, inclusive Alemanha 7. Foi, neste contexto tumultuado do império czarista que Segall nasceu e viveu toda a sua infância testemunhando a intensificação do fenômeno anti-semita. Exatamente em 1891, data do seu nascimento, os judeus eram expulsos de Moscou, configurando a prática da intolerância política. O cotidiano das comunidades judaicas foi sendo alterado por violentos tumultos anti-semitas incentivados pelas Centuárias Negras, movimento sustentado por autoridades governamentais. Em abril de 1903 ocorria o sangrento pogrom de Kichinev. Simultaneamente eram publicados, pela primeira vez no jornal russo Znania (A Bandeira), os Protocolos dos Sábios de Sião que se revelou como uma das maiores mistificações da história8.

5 Duas questões: 1) A palavra pogrom passou a ser empregada, posteriormente, como “movimento popular de violência contra os judeus” 2) Alexandre II havia estimulado a assimilação dos judeus fazendo uma série de concessões de direitos especiais aos profissionais, além de admiti-los em cargos governamentais. Foi incentivada a assimilação cultural e as atividades econômicas fora da zona de residência (até então limitada pela Constituição de 1835 que obrigava os judeus a viverem em certas regiões do Império). Alexandre II procurou utilizar-se deste processo como “fator de russificação no processso de ocidentalização do Império”. Mas, por pressões nacionalistas, foi obrigado a voltar atrás. (Élie Barnavi, (dir.) História Universal dos Judeus: Da Gênese ao Fim do Século XX, Pará, Editora CEJUP, 1995, pp.190-191).6 .Somente após a Revolução Russa em fevereiro de 1917, é que a relação entre os judeus e o poder estatal mudou radicalmente iniciando um período de grande entusiasmo para o judaísmo russo.

7 Estas foram as razões que levaram os irmãos Segall -- Oscar, Jacob e Luba – a emigrarem para o Brasil em 1913 prestando-se, dez anos mais tarde, como suporte para a estadia de Lasar em São Paulo.

8 .Este libelo anti-semita, considerado como modalidade de fraude literária, alcançou sua forma atual ao ser incluído na segunda edição do livro O Grande no Pequeno, de Sergei Nilus publicado num lugarejo próximo de São Petersburgo em 1905. Os Protocolos dos Sábios de Sião foram falsificados por um agente da polícia carzista e, durante várias décadas, alimentou o mito de uma conspiração judaico-comunista de cunho internacional. Maria Luiza Tucci Carneiro, “A Trajetória de um Mito no Brasil: Os Protocolos dos Sábios de Sião” em, Anita Novinsky e Diane Kuperman (Orgs.), Ibéria-Judaica: Roteiros da Memória, Rio de Janeiro, Expressão e Cultura; São Paulo, EDUSP, 1996, pp. 487-525; N. Cohn, El Mito de la Conspiración Judia Mundial, Madrid, Alianza Editorial, 1983).

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Segall ainda estava em Vilna quando ocorreu a primeira Revolução Russa e a instituição da Constituição de 17 de outubro em 1905. No ano seguinte, um outro pogrom foi registrado em Bialystock (nordeste da Polônia) com a colaboração do exército e da polícia9. Um anti-semitismo estatal e popular ganhou forma atingindo o seu ápice entre 1911-1913 quando se registrou o “caso Beilis” envolvendo um jovem judeu de Kiev acusado de morte ritual10.

Em 1906, Segall abandonou Vilna para estudar em Berlim, rota habitual para todos aqueles que saiam em busca de novas oportunidades. Sua alma clamava por experiências em mundos mais coloridos, menos sombrios. Matriculou-se, no ano seguinte, na Escola Acadêmica Real de Belas Artes onde teve a oportunidade de participar de debates sobre o tradicional e o moderno na Arte aprofundando seus conhecimentos sobre o impressionismo e o expressionismo. Neste período em que Segall esteve ausente de sua terra natal, o povo russo vivenciou profundas transformações políticas e sociais. A agitação anti-semita atingiu milhares de judeus que, nesta primeira década do século, foram submetidos a violentas perseguições. O fim oficial do shtetl, enquanto espaço de vida circunscrito aos judeus, só foi oficialmente decretado em 1915 durante a Primeira Guerra Mundial11. O período de 1909 e 1912 foi avaliado pelo próprio Segall como uma “época de grande inquietude artística, de fermentação e de transformação”. Os múltiplos retornos a Vilna em distintos momentos de sua formação artística (1910, 1911, 1917/1918), o despertaram para as recordações de sua infância no gueto judeu levando-o a reavaliar sua identidade judaica12. Aproximou-se dos valores do judaísmo russo sem se deixar sensibilizar pelas propostas de renovação artística sustentadas pelos movimentos nacionalistas judaicos que, tanto na Rússia como na Alemanha, congregavam um grande número de defensores do renascimento de uma arte tipicamente judaica13. Conflitos de identidade marcavam a postura destes artistas judeus russos atraídos pela possibilidade de romper com a rigidez das tradições e visualizar um mundo novo14. Podemos considerar que foi o crescente desejo de mudanças que contribuiu para o florescimento de vanguardas russas no mundo das Artes e das Letras. Na década de 20, Segall já havia optado por dar às suas obras um caráter universal, sem abrir mão de sua identidade judaica, o que explica a presença de questões étnicas em muitas de suas obras. Ao adotar personagens judeus como matrizes para sua criação, Segall (re)definiu seu território simbólico dando visibilidade as suas tradições culturais. Através de sua produção temos a oportunidade de ver o judeu retratado sob o olhar judaico e de ter registrada a memória da intolerância nas aldeias russas. Após sua visita a Vilna, em 1918 – momento em que se aproximou das novas tendências do nacionalismo judaico – Segall elaborou uma série de escritos onde discute a relação entre raça e arte, judaismo e expressionismo. Segundo Claúdia Mattos Valladão –que estudou detalhadamente este assunto – Segall optou por uma postura “internacionalista” repudiando as crescentes tendências nacionalistas e regionalistas do pós-guerra. Compartilhava das idéias defendidas pela vanguarda judaica russa sem, entretanto, envolver-se com a luta em prol de uma arte particularmente judaica. Segundo o próprio artista, o grau de universalidade dos valores do judaísmo poderia contribuir para a configuração de uma arte universal que, por sua vez, enriqueceria a civilização humana em geral. Em vários momentos de sua vida, Segall viveu o impacto de ser “um estranho no ninho”. Tanto durante a Primeira Guerra Mundial como durante a ascensão do nacional-socialismo na Alemanha, o artista experimentou a sensação de ser tratado como “o outro”. Entre 1910-1912, Segall freqüentou – na categoria de aluno avançado de Oscar Zwintscher – a Academia de Dresden, um dos centros de ensino expressivo das modernas concepções de arte. Após um prolongado período de ausência – episódio que o levou a se auto-avaliar como “culpado do crime de insubordinação grave aos rígidos regulamentos da Academia” – Segall

9 .Élie Barnavi, (Dir.) História Universal dos Judeus: da Gênese ao Fim do Século XX, p. 191.10 .Neste período o “caso Beilis” tomou conta da opinião pública russa e ocidental quando um judeu de Kiev foi acusado de morte ritual. O processo – “preparado” pelo Ministério da Justiça – provou o caráter corrupto e anti-semita do poder czarista. Beilis foi absorvido por falta de provas. 11 .Somente após a Revolução de 1917 é que os judeus se transferiram em massa para as grandes cidades que passaram a lhes oferecer oportunidades de ascensão profissional e formação cultural. 12 .Lasar Segall 1891-1957,Catálogo, Edição bilíngue, São Paulo, Arquivo Lasar Segall, 1990, p. 21.13 .Cláudia Valladão de Mattos,. Op. cit., pp. XIX e 113, nota 74.14 .Até o século XIX, os judeus, impedidos por imposições religiosas, não podiam retratar a imagem do homem. Assim, o judeu só se percebia na visão do outro (não-judeu). (Gabriela Wilder, “Artistas Judeus Russos: Um Século de Mudança 1890-1990, Herança Judaica, B’nai B’rith (94), março, 1996/5756, pp.48-49).

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tentou retornar como aluno de Gottard Kuehl. Mas, já era tarde demais15. O início do conflito mundial, a intensificação do anti-semitismo na Rússia e a conseqüente imigração dos judeus do Leste europeu em direção a Europa Ocidental (e em especial para a Alemanha) alterou a situação daqueles que, como estrangeiros, se transformaram em “inimigos políticos”. Em 5 de setembro, Segall foi “riscado” da lista de Gotthard Kuehl por “ser russo” (Gestrischen weil Russe) sendo proibido de freqüentar a Academia de Desdren. Este ato configurava, ao mesmo tempo, a crescente intolerância à presença do “judeu-oriental” (Ostjude) que, na década de 20, era visto como uma ameaça a superioridade cultural do “judeu alemão”. Entre 1914-1916, Segall experimentou as dificuldades impostas por um país em guerra: testemunhou psicoses coletivas, vivenciou o isolamento dos amigos, enfrentou o medo e dificuldades financeiras. Ajudado pelo mestre Kuehl, conseguiu permissão para permanecer em Dresden, período em que vários colegas foram confinados em Meissen, dentre os quais Scheptowsky16. A estes registros de memória somaram-se, anos mais tarde, outras tantas imagens de humilhação e degradação dos judeus na Alemanha, cenas assimiladas de fotografias que se prestaram como matrizes de criação. Veiculadas em cartões postais e publicações sobre os judeus na Europa, estas fotografias inspiraram detalhes para a composição das séries Pogroms, Campos de Concentração, Visões de Guerra, Êxodo, Emigrantes e Navio dos Emigrantes17. A prática da intolerância em tempos de guerra, levou Segall a vivenciar um duplo processo de perda: profissional, por lhe tirar a oportunidade de receber o título de Artista Independente (Aleinschfende Künstler) pela Academia de Dresden ; e de cidadania ao ser riscado da lista de alunos do Prof. Kuehl e expulso daquela instituição “por ser russo”, estigma recuperado pela crítica no Brasil que, na década de 40, estava influenciada por valores da extrema-direita18. Foi também como estrangeiro e judeu que Segall rejeitou filiar-se ao recém-fundado Partido Comunista Alemão em 1919, contrapondo-se a Felixmüller que tentava radicalizar politicamente o Grupo Secessão de Dresden19. Foi, sob o impacto desta experiência, que Segall resgatou as imagens dos pogroms na Rússia cazrista produzindo o seu primeiro conjunto de obras expressionistas. Outras, executadas ainda com nuanças impressionistas, recuperaram o clima de guerra e destruição que começavam a alterar os cenários europeus. Grupos de incendiários, cidades destruídas e vítimas de massacres anti-semitas povoaram suas litografias cuja atmosfera se fez com fortes tons e traços de dramaticidade. Ao longo de sua trajetória em Dresden e, posteriormente, no Brasil, Segall sempre se destacou por um tipo especial de judaicidade, plena de sígnos judaicos. Fragmentos da vida judaica foram retomados pelo artista que, ao ilustrar uma série de livros, teve a sensibilidade – a partir dos fundamentos do Judaísmo – para retratar o mundo dos aflitos e da aflição, da vida e da morte, dos gestos e dos murmúrios secretos. Daí sua produção estar impregnada de experiência histórica (memória e registro) e cunhada pela presença do ser 15 .Lasar Segall, “ Minhas Recordações” , pp.12-13, Claudia Valladão de Apud Mattos Op. cit., p. 10.16 .A possibilidade de uma suposta internação de Segall em Meissen durante a Primeira Guerra Mundial é totalmente descartada por Claudia Valladão que cruzou informações historiográficas e biográficas, além de valer-se da rica correspondencia entre Segall e sua ex-mulher Margaret Suhr. (Idem, pp. 33-34).17 .Dentre o material fotográfico “colecionado” por Segall (a maioria de fotógrafos desconhecidos) temos, dentre outros tantos exemplos: Proa de Navio, c. 1930. Fotografia comercial em preto e branco, cat. nº 195; Chaminé e Respiradouro de Navio, c. 1930, fotografia comercial em preto e branco, cat. nº 196; Refugiados na II Guerra, c. 1945, fotografia comercial em preto e branco, cat. nº 222; Judeu Rodeado por Nazistas durante uma Batida, c. 1940, fotografia comercial em preto e branco; Emigrantes, c. 1930, cartão-postal em preto e branco, cat. nº 192, 193, 194; Primeira Classe, c. 1919, água-forte e ponta-seca, cat. nº 121; Deportação de Judeus em Berlim Pelos Nazistas, c. 1940, Associated Press Photo, Londres, fotografia de divulgação em preto e branco; Judeus Sendo Aprisionados, Associated Press Photo, Londres , fotografia de divulgação em preto e branco c. 1940; Judeus Sendo Levados em Carroça Pelos Nazistas, c. 1940. Associated Press Photo, Londres, fotografia de divulgação em preto e branco. Museu Lasar Segall/SP, IPHAN/MinC.18 .Claudia Valladão Mattos, que teve a oportunidade de consultar a ficha de Segall junto aos arquivos da Academia cita que, na lista de Kuehl, podem ser observados os seguintes comentários sobre o estudante de Vilna: “ainda não se apresentou”(abaixo de seu nome) e “De férias no semestre de inverno de 1913-1914. Retirado da lista por ser russo!”. Em 5 de setembro de 1914. (Claudia Valladão Mattos,. Op. cit., p. 13). Lembro que, com a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, todas as comunidades alemãs, italianas e japonesas radicadas no país sofreram intensa vigilância da polícia política (DOPS e DEOPS). Entre 1942-1945 uma decretos específicos foram criados com o objetivo de controlar o cotidiano (público e privado) dos “súditos no Eixo”. Entre estes vários judeus foram confundidos como cidadãos do Eixo e penalizados como tais, (Ver Maria Luiza Tucci Carneiro, (Org.), Inventário Deops. Módulo Alemanha. São Paulo; Arquivo do Estado, 1997).19 .Carta de Conrad Felixmüller a Dieter Gleiberg, 18 de janeiro de 1917 [?]. apud Stephanie D’Alessandro. Op. cit., p. 246, nota 66.

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humano magoado, maltratado e humilhado. Ainda que em formas geométricas animadas, seus personagens se impõem através dos olhos que, segundo Segall, são as “janelas da alma”. É neste contexto que se inserem as cinco litografias criadas em 1917 para o álbum Dier Sänften, dedicado ao Krotkaya (A doce criatura) de Dostoievski. A ênfase dos traços se faz em direção a cabeça dos personagens que, através do olhar, expressam as vibrações d’alma” 20. Ao descrever a imagética de Segall nestas litografias, Will Grohmann -- que estudou o grupo da vanguarda expressionista de Dresden -- comentou que essa arte expressava a passagem “da realidade para a espiritualidade mais alta”, referindo-se ao fato das pessoas tornarem-se em urnas, “recipientes para estados d’alma” 21. Em 1919, o pintor criou vários “bicos de pena” para ilustrar um texto de Theodor Däuber (1876-1934), escritor e poeta alemão, renomado líder do movimento expressionista. Dentre estas ilustrações encontramos “Oração lunar” , “Dois casais”, “As quatro perguntas” e “Família” que, no seu conjunto, compõem com as reflexões de Däuber acerca da arte segalliana. Antecipando as mensagens que anos mais tarde caracterizariam a universalidade da arte de Segall, Däubler ressaltou o quanto aquela produção captava a dor, o incompreensível, a indignação, a ameaça, as dúvidas e, finalmente, a revolta. Para Däubler as linhas de Segall, rápidas como raios, eram prenúncio de tempestades malígnas; daí o jovem artista conseguir “murmurar advertências, ainda que vãs”. E cada advertência tornava-se, então, uma espera, momento em que “a ingenuidade da alma sente-se envolvida pelas primeiras noções”, prenúncios de tempos sombrios 22. Em 1923, Segall criou uma série de oito litogravuras destinadas a ilustrar o livro de contos Maasse-Bichl, de David Bergelsohn , um dos maiores poetas populares da literatura judaica 23. Nesta obra, a imagem se apresenta como alternativa para aqueles que não têm condições de ler a narrativa em ídiche. A estória, protagonizada por dois garotos (um rico e o outro pobre), coloca em cena o drama daqueles que sobreviviam aos limites impostos à uma cidadela de judeus russos. O garoto rico sonhava, há anos, com o retorno da mãe cega que saira em busca de cura e nunca mais retornara ao lar. O outro, paraplégico e pobre, alimentava a esperança de ver florir um mundo melhor, colorido como um vitral, objeto-símbolo de sonhos realizados. Sensível ao drama vivenciado pelos judeus russos e identificado com os sonhos frágeis destes jovens garotos, Segall deu formas pictóricas à narrativa judaica de Bergelsohn. O mundo dos humilhados e dos marginalizados emergiu da memória resguardada por Segall que, quando menino, vivera o duro cotidiano do shtetl. A essência da mensagem encontra-se duplamente trabalhada, ora pelo poeta, ora pelo pintor que -- inspirados na profunda simbologia das relações humanas e das utopias judaicas – procuraram olhar o mundo através de vidraças coloridas. Sábia estratégia de inversão de realidades24 . Durante sua permanência em Dresden, Segall foi definindo o perfil “moderno” de suas obras acentuando, cada vez mais, as formas geométricas e as expressões de máscaras picassianas. Experimentou as soluções oferecidas pelas formas dos cubo-futuristas ao estilizar suas figuras marcadas por rígidos cortes fisionômicos e deformações físicas. Valendo-se de conteúdos simbólicos, Segall foi assimilando a linguagem varguardista alemã, estilo que lhe valeu o rotulado de “artista judeu, produtor de arte degenerada”. Enquanto representante do expressionismo alemão Segall sofreu as conseqüências das teorias artísticas sustentadas pelos nazistas que, a partir de 1933, transformaram a arte em expressão da cultura alemã. Várias de suas obras foram retiradas dos museus alemães assim como de tantos outros classificados como “degenerados”. Nesta época, todo artista que vivesse na Alemanha – fosse ele escultor, pintor, marchand, arquiteto, escritor ou músico – deveria se associar a Câmara de Cultura do Reich (Reichskulturkammer), organização idealizada por Joseph Goebbels que, através do Ministério da Propaganda e Esclarecimento Público, tinha como proposta “controlar” o mundo das artes. A referida associação, e nem poderia ser diferente, não aceitava judeus e nem comunistas entre seus membros, fato que dificultava a este grupo de “párias” vender e

20 Will Grohmann, “Vorwort” In: Lasar Segall, 5 Lithographien nach der “Sänften”von Dostojewsky. Dresden: Dresddner Verlag, 1922 apud Stephanie D’Alessandro. Op. cit., p.72.21 Vera d’Horta “Preto no Branco” In: Gravura de Segall. Catálogo da exposição realizada entre 19 ago. a 25 out. Rio de Janeiro, Paço Imperial, 1987, p. 26.

22 DÄUBLER, Theodor........ (ver título) , Berlim, Editora Fritz Gurlitt de Arte e Cultura Judaica, 1920. 23 David Bergelsohn , Maasse-Bichl, Berlim, Editora Wostok, 1923. Sobre este tema ver de Fannina Halle “Ilustrações de Lasar Segall para o livro Maasse-Bichl de David Bergelsohn In: Segall e o Judaísmo. Catálogo da exposição realizada entre 16 ago. a 7 out., 1984, pp.14-16. São Paulo, Museu Lasar Segall; Secretaria do Estado da Cultura, 1984. 24 Fazem parte desta coletânea de litografias: “Mulher e dois homens”,”Dois meninos e bode”, “Dois meninos abraçados”, “Mulher e aves flutuando”, “Dois meninos com gato e figura cadavérica”, “Seres alados e figura cadavérica”, “Menino adormecido e animais”, “menino e quatro figuras à mesa”.

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exibir suas obras avaliadas como ofensivas à cultura alemã. Institui-se uma verdadeira caça à produção dos pintores ditos “degenerados” que, enquanto indesejáveis, estavam proibidos, até mesmo, de comprarem material de pintura25. Muitos artistas e intelectuais judeus deixaram a Alemanha diante da condenação de terem de viver no ostracismo. Segall, que desde 1923 optara pelo Brasil26, teve várias de suas obras confiscadas pelo regime nazista que, como exemplares “reveladores da alma judia”, fizeram parte da exposição “Arte Degenerada” (Entartete Kunst) realizada em Munique, em 1937. A Sala 2, espaço especial dedicado à arte judaica era, segundo avaliação dos críticos nazistas, “representativa da infindável provisão de lixo judaico que palavra alguma é capaz de descrever adequadamente” 27. Neste ambiente encontravam-se expostas as seguintes obras de Segall (óleo s/tela): Eternos Caminhantes (Die ewigen Wanderer, 1919), imeditamente adquirida por Paul F. Schmidt para o Stadtmuseum Dresden; Festa do Purim (Purimfest, 1920), adquirida em 1928 pelo Museum Folkwang em Essen, e Duas irmãs (Zwei Schwestern, 1919) exibida como As Amorosas (Liebende), adquirida pelo mesmo museu em Essen 28. Juntamente com as obras de Segall estavam Bildinis, de Katz; Dorfscene, Rabbiner e Winter, de Chagall; Exotische Landschaft, de Wollheim; Selbstbildnis, de Meidner; Katzenzüchter e Musikanten, de Adler; Schwebende, de Feibusch29 . Na Sala G2, outras obras de Lasar Segall participavam de um conjunto de gravuras “degeneradas”: Dois Fantasmas (Zwei Schmen, 1919), litografia adquirida em 1920 pelo Kupferstichkabinett Desdren; e Homem e Mulher (Mann und Weib, s/d), litografia adquirida pelo Stadtmuseum Dresden. Inventariado sob o nº 16437 havia um portifólio (Mappe mit sechs Blättern) contendo seis gravuras adquiridas pelo Schlesisches Museum der Bildenden Kunst, de Breslau 30. No momento em que se realizava a exposição “Arte Degenerada” em Munique, Segall – já totalmente integrado ao cotidiano artístico da cidade de São Paulo -- ingressava numa nova fase de sua produção dedicada, desta vez, ao tema da emigração e do exílio. Poderíamos dizer temas anteriores são retomados e reinterpretados sob uma nova dimensão, mais introspectiva e humanista. O emigrante retratado na década anterior assume ares de refugiado cujo drama social se faz, desta vez, limitado pelo espectro nazista que ronda (quando não domina) as terras do Velho Mundo. Cenas da emigração forçada emergem como reflexo de um longo e contínuo movimento voluntário de emigração interior a que se entregara Segall no decorrer dos anos 30. Ainda que não tenha testemunhado “ao vivo” muitos dos temas retratados entre 1936-1947, Segall conseguiu “reconstituir” (guiado por matrizes fotográficas e suas lembranças dos tempos de Vilna), os atos de injustiça social, o sofrimento dos eternos caminhantes e as atrocidades da guerra. É neste sentido que 25 .Sobre este tema ver Lynn H. Nicholas, Europa Saqueada. O Destino dos Tesouros Artisticos Europeus no Terceiro Reich e na Segunda Guerra Mundial; trad. Carlos A . Malferrari, São Paulo; Companhia das Letras, 1996, pp. 21-23.26 .Desde a sua imigração para o Brasil, Segall fizera apenas uma exposição individual, em 1926, na Galeria Neumann – Nierendorf em Berlim.27 .O conceito de “arte verdadeiramente germânica” era empregado em oposição a “falsa arte” ou “arte degenerada produzida por difamadores que escarnecem e desprezam a virtude e a verdade”. Hitler, por sua vez, almejava um total rompimento com tudo que expressasse o “esquerdismo da República de Weimar”. Os diretores que haviam promovido a arte moderna e os marchands de “arte degenerada” foram diretamente atingidos por este processo de eliminação dos “indesejáveis da comunidade artística”. O diretor do museu em Mannheim , Gustav Hartlaub, tentou esconder algumas destas obras dentre as quais estava o Rabino, de Marc Chagall que, confiscada, foi exibida por toda a cidade numa carroça. A exposição de “Arte Degenerada” foi inaugurada no terceiro dia da “Paixão da Arte Alemã” . Obras expressionistas foram acusadas de “promover a erradicação sistemática de todo e qualquer vestígio de consciência racial” por retratar negros. Uma outra sala foi destinada a abrigar uma “infindável provisão de lixo judaico que palavra alguma é capaz de descrever adequadamente”. Lynn H. Nicholas, Op. cit., pp. 22, 31.28 .Segall elaborou, por volta de 1918, um estudo em grafite dos Eternos Caminhantes que, no ano seguinte transformou-se no óleo s/ tela (1919), sob o mesmo título. Imediatamente esta obra foi adquirida por Paul F. Schmidt para o Museu Municipal de Dresden sendo apresentada na exposição da Secessão de Dresden. O quadro Festa do Purim era proveniente do Museu Folkwang em Essen, antes em Hagen. Catálogo Lasar Segall 1891-1957, São Paulo, Museu Lasar Segall, 1990. Ilustr., pp. 28, 41, 111. A exposição das obras de Segall na exposição “Arte Degenerada”, de 1937 encontra-se detalhadamente apresentada na obra Degenerate Art. The Face of the Avant-Garde in Nazi Germany [Edited by Stephanie Barron] , Los Angeles; County Museum Of Art; Art Institute of Chicago, 1991, pp. 53, 350, 351. 29 Degenerate Art. The Face of the Avant-Garde in Nazi Germany. Op.cit. 30 Das obras de Segall expostas na exposição “Arte Degenerada” apenas duas encontram-se localizadas: Os Eternos Caminhantes (Museu Lasar Segall, São Paulo, Brasil) e Duas irmãs (coleção particular). O portifólio com seis gravuras teria sido totalmente destruído e as demais constam como “localização desconhecida”.

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vejo alguns pontos em comum entre o fotógrafo Robert Capa (1913-1954) e Lasar Segall (1891-1973) enquanto homens-símbolos da Diápora judaica do século XX: ambos eram judeus e vivenciaram períodos dramáticos da história do século XX. Cada qual, valendo-se de diferentes processos e instrumentos de criação (máquina fotográfica ou tintas e pincéis), documentou, de acordo com a sua visão de mundo, as atrocidades da guerra, tendo como referência um dos mais violentos instintos do homem: a intolerância. Expressões de dor e medo, o impacto da morte, os atos de violência e destruição se prestaram, para ambos, como motivos de inspiração para seus registros. Robert Capa, um dos maiores fotógrafos documentarista do século XX, foi para o front e registrou a guerra “no ato” . Segall valeu-se de suas “visões” para (re)criar a guerra, os campos de concentração, os pogroms. Ambos, como judeus e criadores de arte, transformaram suas obras em libelos pela causa humanitária31 . Ao constatar o sofrimento vivenciado pelos judeus na Europa, Segall reformulou seus cenários e resgatou personagens-símbolos do cotidiano da intolerância, da guerra e da paz, ora realidade ora utopia. Segall transferiu para suas telas a dor, o sofrimento e a angústia daqueles que, por serem judeus, haviam sido transformados pelo Estado nazista em sub-homens (Untermenschen). Foi neste intervalo, de ascensão e queda do nacional- socialismo na Europa, que Segall produziu alguns dos seus monumentais “folhetins de crítica social” onde a figura do judeu humilhado simboliza o sofrimento de outros tantos povos perseguidos, ora sobreviventes, ora caminhantes sem-pátria. Vale ressaltar que, a partir de 1933, o cidadão-judeu havia se tornado alvo da revolução nacional-socialista, passando a ser considerado como um mero indivíduo, sem direitos e deveres para com sua pátria-mãe. Com a prática do anti-semitismo político endossada pelo III Reich, a figura jurídica do judeu tornou-se indefinida. E, como um homem sem direito à cidadania, o judeu perdeu suas fronteiras nacionais. Por esta razão, e tantas outras impossíveis de serem retratadas numa tela, é que as personagens idealizadas por Segall são figuras tristes, sem alma, espécie de mortos-vivos que vagam sem direção. Em muitas situações, os olhos vazados e os rostos vazios, superam a força de um olhar delineado pela retina expressando a total “desintegração do eu” (Êxodos, 1945; Visões de Guerra, 1940-1943, cat. nº 84). Nos documentos oficiais produzidos pela diplomacia brasileira estes mesmos figurantes sem-pátria emergem conceituados como proscrito e prófugo (desertor), expressões pejorativas empregadas como sinônimo de judeu. Nada mais do que códigos simbólicos de comunicação; nada mais do que palavras carregadas de subjetividade. Mas, em qualquer situação ficava sempre subetendido – para além da idéia de fuga – a figura de alguém que, expulso de sua pátria, emigrou em direção ao infinito. Em 1938, o diplomata brasileiro Barros Pimentel, responsável pela Legação brasileira em Berna, definiu-os como “pertencentes todos à Humanidade” 32. É neste contexto que devemos avaliar Navio dos Emigrantes: enquanto um navio que não tem direção definida. Um clima de dormência, desânimo e apatia paira sobre aqueles “passageiros sem classe” estirados pelo convés do navio. O nazismo lhes havia tirado tudo. Restava-lhes apenas a dignidade, a vontade de recomeçar e o calor humano. No Navio todos se aconchegam e se consolam manifestando um raro sentimento de fraternidade, tal como Lessing o entendia no século XVIII ou seja: o apego fraternal a outros seres humanos que brota do ódio ao mundo onde os homens são tratados “inumanamente”. E, segundo Hannah Arendt, esse tipo de humanidade é “o grande privilégio dos párias... Um privilégio obtido a alto preço; frequentemente acompanhado de uma perda radical do mundo, por uma atrofia tão imensa de todos os orgãos com que regiamos a ele”33. Em 1938, Ernest E. Noth em sua obra-testemunho L’Homme Contre le Partisan argumentava o quanto estes emigrados distinguiam-se do tipo Dante, Victor Hugo ou Heine, de outrora, ou mesmo Thomas Mann e Toscanini daquela época. O mundo, desta vez, tinha diante de si uma grande massa humana, de israelitas ou não que, expulsos de seus países haviam sido despojados de tudo o que possuíam. Valendo-se da metáfora da erupção vulcânica, do terremoto e da ressaca de grandes proporções, Noth expressa as dimensões dessa tragédia enquanto fruto das medidas extremas e desumanas dos sistemas totalitários. Daí a característica forçada da emigração decorrente da inevitável necessidade de se escapar puramente e simplemente da morte,

31 Robert Capa. Photographs Israel (1948-1950), Tel-Aviv; Museum of Art, 1988.32 .Ofício de J.R. de Pimentel Brandão, da Legação Brasileira de Berna para Oswaldo Aranha, Ministro das Relações Exteriores, Berna, 20 de setembro de 1938, Lata 1243, Maço 27865, AHI/RJ. 33 .Hanah Arendt, “Sobre a Humanidade em Tempos Sombrios. Reflexões sobre Lessing”, discurso proferido por aceitação do Prêmio Lessing da Cidade Livre de Hamburgo em Homens em Tempos Sombrios, trad. Denise Bottmann, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pp. 19 e 21.

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fato que levou o autor a questionar a atribuição de um caráter político a esta emigração moderna desconhecida em épocas anteriores. Foi como cidadão identificado com o sofrimento dos “párias” e dos “miseráveis” que Segall tentou chamar a atenção do mundo para a catástrofe vivenciada pelos judeus na Europa. Mas, segundo reflexões de Arendt, o clímax dramático da tragédia, só é possível de ser retratado numa tela quando o seu criador se converte num “sofredor”. Como imigrante, Segall reafirmou sua identidade judaica ao resgatar nas suas raízes familiares, elementos inspiradores para a sua criação E foi como judeu (filho de um escriba de Torá) que Segall aguçou seu sentimento de fraternidade para com os infelizes e os perseguidos expressando-se numa das mais puras formas de humanitarismo34. Sem poder alterar o mundo real criado pelo nazismo, Segall transformou suas telas em folhetins de denúncia social. Mas o mundo estava cego e surdo. Muitos sequer conseguiam enxergar além da trama de suas telas. Outros, aqui mesmo no Brasil, influenciados pelos modismos sustentados pelos regimes totalitários, optaram por rotular sua arte de “degenerada”, endossando slogans defendidos pelo credo artístico nazista35. Em 1926, o estilo moderno da arte de Segall já havia sido criticado enquanto algo “doentio”e “mórbido” , sendo considerado como “pior que as manifestações do Juquerí”36. A este diagnóstico somaram-se, na década de 30 e 40, outros elementos estigmatizantes que, no seu conjunto, reforçaram o perfil indesejável do artista: seu “caráter marxista” e sua “origem judaica”. Foi neste período, entre 1937-1945, que a polícia política do governo Vargas manteve Segall sob vigilância37. Sua produção artística e seu passado comprometido com a Semana de 22, sua profissão e nacionalidade de origem (artista russo e imigrante) induziram os registros elaborados pelo “Serviço Secreto” do Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo -DEOPS/SP. De acordo com a lógica da desconfiança – que, de certa forma, normatizava os julgamentos acerca dos crimes políticos – os intelectuais e artistas identificados com as idéias de vanguarda eram, a priori, “suspeitos da prática de sedição”. Os artistas, segundo os critérios de avaliação dos investigadores, valiam-se dos mais modernos meios de propaganda comunista: “silenciosos” , “subtis” e “não inspiravam curiosidade”. Neste grupo de risco estavam, por exemplo, os frequentadores do Clube dos Artistas Modernos que, no ano de 1933, esteve sob vigilância direta do Gabinete de Investigações38. Um documento entitulado Relato de Propaganda Comunista pela Arte – e que foi multiplicado em dezenas de prontuários de cidadãos produtores de cultura39 – expressa, nas suas linhas e entrelinhas, a opinião da Polícia Política sobre o papel da arte moderna no Brasil. Expressivo da relação arte/ideologia, 34 .Segundo Hannah Arendt este “tipo de humanitarismo, cuja forma mais pura é privilégio dos párias, não é transmissível e não pode ser facilmente adquirido por aqueles que não pertencem aos grupos párias. Não bastam nem a compaixão nem a efetiva participação no sofrimento.,(Hannah Arendt. Op. cit., p. 22).35 .Lynn H. Nicholas Europa Saqueada. O Destino dos Tesouros Artísticos Europeus no Terceiro Reich e na Segunda Guerra Mundial, São Paulo; Companhia das Letras, 1996; Adelin Guyot e Patrick Estellini, L’Art Nazi (1933-1945), Bruxelles; Editions Complexe, 1983. 36 .Artigo (s/i) para compor um livro de história da arte brasileira (cf. Guastini, 1926) apud, Cláudia Valladão de Mattos Lasar Segall, São Paulo; Edusp, 1997 (Artistas Brasileiros 7), nota 50, p. 164.37 .Pront. Nº 51.749, de Lasar Segall, DEOPS. AESP. Maiores detalhes sobre este tema ver Álvaro Andreucci e Valéria de Oliveira, Inventário DEOPS: O Risco das Idéias: Artistas, Músicos e Intelectuais comunistas. São Paulo: Imprensa Oficial (no prelo); WIAZOVSKI, Taciana. Inventário DEOPS: O DEOPS e o Mito do Complô Judaico-comunista, São Paulo; Imprensa Oficial (no prelo).

38 O Clube dos Artistas Modernos funcionava na rua Pedro Lessa, nº 2. São Paulo. O clima que dominava o salão foi avaliado como sendo de total sedução. Segundo observações do investigador Guarany “ quem entra lá sae pensativo. Suas paredes são decoradas por cartazes emblemáticos; mostram effeitos do plano quinquenal, como vivem os comunistas nas Rússia e outras demonstrações que incitam os outros povos a imitarem aquelle paíz... Naquelle ambiente, tem-se a impressão de viver no meio dos russos.Até os garçons do bar trajam blusa russa ou imitação e os cartazes russos expostos naquella séde são de caracter político alguns”. Dentre os palestrantes do Clube dos Artistas Modernos estavam o arquiteto Flávio de Carvalho, o escritor Jayme Adour da Camara e a pintora Tarsila do Amaral. Alí instalou-se o Teatro da Experiência criado em São Paulo por Flávio de Carvalho em 1933 e que, durante apenas tres dias, levou a peça Bailado do Deus Morto (Diretor:Flávio de Carvalho. Cenógrafo: Osvaldo Sampaio). Uma série de artifícios levaram a protestos: as máscaras de alumínio usadas pelos atores, as camisolas brancas que lhes serviam de vestimenta e o cenário iluminado por efeitos coloridos de flashes rápidos. Sob alegação de “desordens” no local, a polícia fechou o local. Wilson Martins,. (História da Inteligência Brasileira, São Paulo; Cultrix/ EDUSP, 1977-1978, vol. II pp.11,12. Relatório Reservado de Guarany. Gabinete de Investigações, São Paulo, 18 de julho de 1933. Pront. Nº 1680, de Tarsila do Amaral. Doc. 3, Fl. 3; Pront. Nº 2238, do Club dos Artistas Modernos, DEOPS/SP, AESP).

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este documento classificava o discurso do presidente da Comissão Organizadora do III Salão de Maio (São Paulo, Esplanada Hotel, 1939) como atentador à ordem política e social por relacionar arte com propaganda política. Durante os anos 30 e 40, a arte moderna foi avaliada como um instrumento de sedução e “agente calmante das massas” e, como tal, deveria ser combatida por promover a “desorganização, o aviltamento e o embrutecimento social”. Segundo as autoridades policiais a arte produzida pelos artistas modernos preparava o terreno para “uma ação mais segura, num meio inculto insensivel e depravado”40. O fato de Segall ser um artista de vanguarda e relacionado com representativas famílias judaicos-brasileiras (como os Klabin e os Warchavchik) transformou-o em foco de atenção dos investigadores policiais que, além de estarem atentos ao círculo dos artistas modernos, também identificavam “as massas judaicas com os simpatizantes comunistas”41. Ciente de que vivia num país sob a égide do autoritarismo varguista, Segall optou pelo lado da resistência diluindo, através de suas mensagens humanitárias, a crítica de que sua postura artística era “burguesa”. Os elementos simbólicos que caracterizam sua produção entre 1936-1947 nos colocam diante de um artista que estava em busca do restabelecimento espiritual da Humanidade42. Segundo seus escritos, ainda que a sociedade fosse “uma sementeira de neuroses”, era possível prever a paz como forma de “reencantamento do mundo”43. Em busca deste mundo (re)encantado, Segall deslocou a experiência carnavalesca e sua vivência no gueto de Vilna para a esfera do imaginário. Numa verdadeira inversão da realidade, o artista criou cenários fantásticos para os carnavais da Sociedade Pró-Arte Moderna - SPAM (1933 e 1934) e o balé Sonho de uma Noite de Verão, de Mendelsohn, baseado na obra de Shakespeare (1938). Mundos de sonhos coloridos e misteriosos foram povoados por pássaros fantásticos, duendes, crianças sorridentes que olhavam a realidade através de um vitral colorido 44. Para a peça A Sorte Grande (Dos Groisse Gevins, 1945), referência do teatral ídiche no Brasil, o “pintor de Vilna” procurou inspirar-se no cotidiano da vida no shtell para compor seus cenários e vestuários. O “colorido segalliano” garantiu um tom satírico e farsesco à peça, então sob direção de Zygmunt Turkow45.

39 “Relato de Propaganda Comunista pela arte”, s/d. Copiado em 3-06-1947. Apenas a título de exemplo lembramos aqui os seguintes prontuários: Nº 80.388, de Gregori Warchavchik; Pront. Nº 1053, de Patrícia Galvão; Nº 1680, de Tarsila do Amaral; Nº 51.749, de Lasar Segall, DEOPS/SP, AESP.

40 .Álvaro Andreucci e Valéria Oliveira. Op. cit. 41 .Um interessante documento foi inventariado por Taciana Wiazovski durante suas pesquisas junto a documentação do DEOPS/SP. Referindo-se a José Peres, o subchefe da Delegacia de Ordem Social o identifica com as “famílias ricas conhecidas que cercavam o indiciado como os Klabin, os Warschawchik e os Segal”. Peres teria abandonado suas atividades subversivas no momento em que se estabelecera financeiramente: “não procurava os meios proletários e sim plutocratas”. (Informe s/identificação, Pront. Nº 1594, de José Peres, DEOPS/SP, AESP, apud Wiazovski Inventário DEOPS: O Deops e o Mito da Conspiração Judaico-comunista, São Paulo; Arquivo do Estado/Imprensa Oficial (no prelo). 42 .Tal postura tem suas raízes nas teorias defendidas pelo círculo de artistas identificados com o grupo Dresden Sezession, representante da segunda geração expressionista atuante em Dresden entre 1916-1919 A partir de 1917, persistia entre os expressionistas de Dresden uma acalorada discussão sobre “o papel do artista e de sua obra nas transformações sociais”. Um dos fundadores do grupo, Conrad Felixmüller defendia a idéia de que todo artista deveria estar politicamente engajado e que só uma revolução proletária possibilitaria o florescimento de uma arte antiburguesa. Por outro lado, havia os seguidores de Hugo Zehder – também do grupo e com o qual Segall se identificava, assim como a maioria dos artistas e de setores da burguesia interessada em arte. Estes acreditavam que aquele era o momento “maduro” para realizar as visões utópicas defendidas pela geração do pré-guerra. O espírito desta nova época seria definido por uma nova concepção de Homem e Humanidade. (Claúdia Valladão de Mattos,. Op. cit., p.79-81).43 .Lasar SEGALL, “Sobre Arte”, texto publicado pela primeira vez na Revista Brasil. São Paulo, 25 (102), : jun. 1958. 44 .Entre 1932-1935, Segall envolveu-se com as atividades do SPAM- Sociedade Pró-Arte Moderna, da qual era um dos seus fundadores. De sua autoria foram os cenários e figurinos para os bailes carnavalescos: Carnaval na Cidade de SPAM (1933) e Expedição às Matas Virgens de Spamolândia (1934). (ver Catálogo da Exposição Lasar Segall, Cenógrafo, textos de Clóvis Garcia, Maria Cecília França e Claúdia Valladão de Mattos, Rio de Janeiro, Centro Cultural do Banco do Brasil, 1996).45 .O teatro ídiche tem suas raízes em Manhattan, no final do século XIX, quando grupos de amadores promoviam exibições para os imigrantes recém-imigrados da Europa Oriental com o intuíto de oferecer-lhes uma ponta de lazer nas terras da América. Tímidos talentos emergiram no Brasil sensibilizando seus espectadores para a essência dos sentimentos das populações judaicas mais pobres. O repertório apresentado era composto de um extravagante conjunto de desgrenhados melodramas, operetas, tzait bilder (quadros de época), comédias e vaudevilles, produzidos em série. Zygmunt Turkow dirigiu a peça A Sorte Grande cujo espetáculo foi apresentado no Teatro Ginástico do Rio de Janeiro,

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A linguagem vanguardista de Segall, seja como pintor ou cenógrafo, não passou incólume. Em 1943, o “Investigador 234” (extra-quadro do DEOPS/SP) elaborou um breve relatório sobre Lasar Segall tendo como referência os registros do Arquivo Geral do DEOPS/SP: “ fichado como COMUNISTA...é pintor e costuma usar da arte para fins de propaganda do credo vermelho... Lasar Segall é, de fato, pintor e proprietário nesta Capital”46. Atualizado com as propostas artísticas e postura política do artista, o relator tentou formular um parecer condizente com a realidade:

“Não é entretanto, COMUNISTA. Sempre foi contrário à política reacionária, pelo que se tornou antipático aos totalitários. Sua índole política é democrática. Pintor que é fazia caricat. uras em que eram focalizados os políticos reacionários internacionais que pretendem implantar ao mundo a NOVA ORDEM. Daí o haverem taxado de comunista47.

Em parte tais considerações correspondiam a real postura do artista que, através de mensagens cifradas e pinceladas carregadas de emoção, transformara sua obra em um agudo instrumento político. Segall tentou, segundo as concepções filosóficas defendidas por Hugo Zehder, cumprir com o papel de artista interessado no processo de transformação social. O “ato revolucionário” de sua produção está no fato dela desencadear no espectador o sentimento de fraternidade. Muitos dos cenários nos remetem a situações apocalípticas onde os figurantes são, na maioria das vezes, delineados pela dramaticidade de seus gestos, pela emoção estampada em seus rostos (muitas vezes sem face) e pelo clima de desamparo. Na sua essência, suas obras nos remetem a imagens análogas correspondentes as antíteses Inferno/Purgatório, Purgatório/Paraíso, Ruptura/Continuidade, Vida/Morte e Guerra/Paz. Se avaliada sobre este prisma, a arte de Segall pode ser interpretada como um sinal preventivo aos descaminhos do totalitarismo48. Segall, assim como outros tantos artistas de seu tempo, procurou alertar a Humanidade para o fato de que o povo israelita estava sendo morto. Temas similares podem ser identificados nas pinturas de Ludwig Meidner, Jakob Steinhardt e Richard Janthur que, em 1912, formavam na Alemanha um grupo expressionista conhecido como Die Pathetiker (Os Patéticos). Anos mais tarde, Diogo de Riveira pintou Hitler e a Pregação da Violência e o polonês Bronislaw Linke retratou A Prece dos Mortos numa verdadeira visão surrealista. Outros, mais reticentes, preferiram se fechar no seu mundo interior procurando ignorar a realidade ao seu redor. Segall – ainda que no passado tenha se mostrado envolvido com as propostas teóricas de Wassily Kandinsky – não deixou de criticá-lo por sua postura “alienada”49. Em abril 1939, Segall não perdeu a oportunidade de alertá-lo sobre as diferentes maneiras de “olhar” o mundo, nem sempre tão colorido: “O sr., caro Kandinsky, é o mais feliz, o sr. tem força para se fechar ao mundo exterior, e no seu próprio mundo, seu ateliê, dedicar-se com tranquilidade ao seu trabalho, e considerar os problemas da arte como mais importantes do que os fatos do mundo de hoje, com os quais nós todos, querendo ou não, estamos estreitamente ligados e dos quais somos infelizmente, como pessoas e como artistas, completamente

pelo Grupo de Teatro da Biblioteca Scholem Aleichem. (Arquivo do Museu Lasar Segall/SP e Arquivo da Biblioteca Scholem Aleichem/RJ)46 .Relatório do “Investigador 234” para o Delegado Especializado da Ordem Política e Social, São Paulo, 20 de outubro de 1943. Pront. Nº 51.749, de Lasar Segall, DEOPS/SP, AESP.47 Idem, ibidem.48 Tentando resgatar as raízes desta postura crítica e humanista de Segall, lembramos que Hugo Zehder – um dos fundadores do grupo Dresden Sezession e com o qual Segall mais se identificava – entendia que o ato revoluncionário do artista seria sua própria obra e sua arma o “espírito” renovador que ele revelaria por meio dela”. Defendia ainda a idéia de que o Expressionismo, por meio de símbolos por ele criados, teria desencadeado o processo de transformação social radical que criara as condições para o florescimento de uma nova sociedade. (Claúdia Valladão de Mattos, Op. cit., p. 97).49 .Entre 1917-1918, Segall esteve envolvido com as teorias sustentadas por Kandinsky em seu livro Do Espiritual na Arte. Nesta época, Segall buscava uma vinculação entre os “estados da alma”e a cor que, dependendo da intensidade dada ao colorido, poderia expressar dor, paixão, tristeza, desespero, indiferença etc. Segall conheceu Kandinsky em 1921, data em que este chegara da Rússia vindo a se estabelecer na Alemanha. Tornou-se seu amigo. Sobre a correspondência entre os dois artistas ver Vera D’Horta, “Discordâncias Cordiais: A Correspondência entre Kandisnky e Segall”, Revista de História da Arte e Arqueologia, Campinas, pp. 203-225.

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dependentes. Sou bem mais pessimista que o sr. Talvez isso se deva ao fato de que eu, à distância, veja tudo através de uma lente colorida e opaca”50.

Esta crítica, no entanto, deve ser interpretada como uma resposta às questões colocadas por Kandinsky em março daquele mesmo ano. Apelando para a metáfora da “couraça” (uma das raras opções para aqueles que haviam permanecido na Europa), Kandinsky escrevera à Segall: “O sr. deve estar agora bem contente, por estar longe da Europa, desta tia velha que ficou louca. Como a natureza cuida das suas criaturas, nós providenciamos para nós uma couraça e não reagimos mais com tanta virulência às constantes “surpresas”, como talvez voces reajam à distância. Ainda esperamos milagres, quer dizer evitar a guerra”51.

Ainda que distante da velha Europa, Segall conseguiu registrar, com variações no tempo e no espaço, o drama dos oprimidos (retratados sob a forma de multidão) e a imagem persistente da destruição cósmica. Vinculando o seu “estado de alma” aos diferentes graus de intensidade da cor, o “pintor de Vilna” retratou o medo, a dor, a morte, a tristeza e o luto como experiências universais e não apenas como atributos do drama vivenciado pelos judeus. As personagens que transitam por muitos dos cenários segallianos são figuras cadavéricas, infelizes, doloridas e machucadas pela intolerância do homem. Às vezes, um ou outro símbolo judaico se faz necessário enquanto forma de representação e não de individualização de uma causa, (Campo de Concentração,1945, cat. nº 64). Em Guerra, 1942 (cat. nº 62), a figura sem cabeça de um soldado caminha tropeçando por entre braços perdidos, pernas esgarçadas e dezenas de corpos sem identidade. A bota negra e dura de um outro soldado tropeça numa ave-símbolo de uma natureza-morta. Ao produzir sua coletânea de pogroms (Litografias, 1910-1912, cat. n. 292, 293 e 295) – Segall antecipou cenários que, anos mais tarde, seriam recuperados num outro Pogrom, em 1937 (Óleo c/ areia sobre tela, cat. nº 54). Quase que numa sequência cinematográfica, o artista reconstituiu as Vítimas do Pogrom (1910), Fuga de vítimas do Pogrom (1910), Depois do Pogrom (1910) e, finalmente, Pogrom (1937). Todas estas cenas, ainda que distintas no tempo e no espaço, devem ser interpretadas enquanto expressão contínua de um fenômeno histórico cuja gênese antecede as práticas anti-semitas acionadas pelo III Reich. O tempo que separa estes dois conjuntos de pogroms (1910-1937) expressa o quanto o mundo já se apresentava “distorcido” aos olhos de Segall que, emocionado em 1910, sentiu necessidade de “fazer suas casas chorarem”. Referindo-se ao momento em que compunha Depois do Pogrom. Segall anotou: “...senti que durante o pogrom as casas vivenciavam tudo, tanto quanto as próprias pessoas. Desenhei uma rua com casas tortas, uma pessoa do mesmo tamanho de uma casa de três andares....Tudo parecia supérfluo. Minha emoção era forte demais...”52.

Em ambos os Pogroms (1912 e 1937), um silêncio sepulcral paira sobre as figuras de corpos amontoados que abraçados sem vida, atestam a preocupação do artista com a violência e o sofrimento dos judeus do Leste Europeu. Ainda que independentes enquanto obra de arte, cada uma das cenas produzidas por Segall encontram-se inseridas numa dinâmica histórica. Algumas permeam os labirintos da memória cunhada pelo cotidiano do shtetl; outras seguem sugestões de amigos que, assim como Segall, haviam sentido na pele o que significava ser judeu numa sociedade intolerante como a Alemanha. Em 1940, o escritor austríaco Stefan Zweig, então hospedado no Hotel Grande do Rio de Janeiro, lhe escreveu propondo que tentasse, como já havia feito nos desenhos do Pogrom, reproduzir;“...toda a miséria dos imigrantes de hoje, nas portas dos consulados, nos navios, nas ferrovias e nos seus caminhos ? Isso seria monumental, de uma parte à outra do mundo, e o sr. com isso faria um documento do nosso tempo. Estou sonhando com um pintor que componha algo assim, sendo que nós, os escritores, estamos perto demais das coisas para mostrá-las de maneira épica. O olho do pintor, neste caso, é sempre mais rápido”53.

50 .Carta de Lasar Segall à Kandisnky, São Paulo, 22 de abril de 1939, Arquivo do Museu Lasar Segall, São Paulo, IPHAN/Minc51 .Carta de Kandinsky a Lasar Segall. France, Neuilly s/ Seine (Seine), 31 de março de 1939. Arquivo do Museu Lasar Segall, São Paulo, IPHAN/Minc. 52 .Apud Stephanie D’Alessandro,. Op. cit., p. 52.53 .Carta de Stefan Zweig a Lasar Segall, trad. Wolfgang Pfeiffer, Rio de Janeiro, Hotel Central, 13 de dezembro de 1940; Carta de Lasar Segall a Stefan Zweig, Campos de Jordão, 27 de dezembro de 1940. Texto datilografado em

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Acredito que Segall conseguiu atender ao sonho épico imaginado por Zweig, escritor judeu cujas obras haviam sido queimadas em praça pública pelo homens do III Reich. Ao criar a cena monumental e silenciosa do Navio dos Imigrantes (1939/41), Segall realmente ultrapossou a imagem de que aquela era uma viagem comum. As duzentas e oitenta figuras espalhadas pelos convés do Navio extrapolam a condição do judeu humilhado e perseguido pelo Estado nazista. Simbólicamente, aqueles “passageiros sem classe”, amontoadas como se fossem mortos-vivos, expressam a essência de um drama muito maior: o de todos os cidadãos do mundo que, por questões políticas, raciais ou religiosas, tornaram-se expatriados. A cena ali representada completa-se com outros cenários reconstituídos a partir da imagem do judeu errante, cujo caminhar contínuo foi retomado nas versões distintas de Mulheres Errantes – II (xilogravura, 1919; 1920, cat. nº 320, 329.), Eternos Caminhantes (óleo s/tela, 1919, cat. nº 17) e Navio dos Emigrantes (óleo c/ areia s/tela, 1939/41, cat. 59). Nas duas primeiras obras, os figurantes caminham de forma desorientada como se estivessem em busca de uma luz na escuridão. Os Eternos Caminhantes nada mais são do que figuras opacas, cujos olhos vazados completam o clima de resignação que predomina na tela. Este caminhar eterno foi retomado, quase trinta anos depois, em Êxodus I (óleo s/tela. 1947, cat. nº 15) e Êxodo (óleo s/tela, 1949, cat. nº 67) quando Segall apelou, novamente, para a metáfora da “massa da errante” que, no após-guerra, identificava-se com imagem frágil dos deslocados de guerra. Nestas duas obras, o artista apela para o coletivo Em Êxodus, os rostos das personagens nada mais são do que esboços da melancoloa, círculos pálidos sem boca e sem voz. A postura de uma das mulheres que acompanha a multidão – e que cobre o rosto com suas mãos desproprocionais – expressa o choro (surdo e mudo) pelos milhões de mortos nos campos de extermínio. No Navio dos Emigrantes, algumas figuras de olhar ausente fitam um horizonte que ainda não despontou. O mar está revolto, assim como estão os territórios europeus dominados pelos nazistas. Duvidoso é o destino de todos, visto que nem todas as nações expressavam o desejo de receber o refugiado judeu como um cidadão permanente. A figura multiplicada do judeu estirado pelo convés do Navio extrapola a tradicional imagem do emigrante retratado numa outra série produzida na década de 20. Nesta fase – anterior a fuga em massa dos refugiados do nazi-fascismo – os emigrantes ocupam o convés do navio como meros cidadãos de Terceira Classe (ponta-seca, 1928, cat. nº 382). Neste mesmo contexto podemos enquadrar o Grupo de Emigrantes no Tombadilho (água forte e ponta-seca, 1928, cat. nº 381), Grupo de Emigrantes II e III (água forte, 1926 e 1928. cat. nº 364 e 380), Emigrantes no Trombadilho (Ponta-seca, 1929, cat. nº 407). Inspirando-se em matrizes fotográficas – prática que guiou muitas das suas visões expressionistas54 Segall consegue retratar no grande Navio dos Emigrantes a avassadora melancolia e o sofrimento que atormentava aquelas centenas de cidadãos do mundo (pessoas minguadas, espoliadas, exauridas). Tornados apátridas pelo nacional-socialismo alemão, os passageiros haviam perdido até mesmo sua condição de Terceira Classe. Nada mais eram do almas errantes que (com um J vermelho carimbado no passaporte ou um Sara/Israel adicionado ao seu nome) vagavam em busca de um refúgio que lhe garantisse as mínimas condições de sobrevivência. Como muito bem interpretou Vera d’Horta -- que definiu este conjunto de obras de Segall como “ressonância da Humanidade” -- a tela do Navio encontra-se “tingida por um colorido terroso e tristes massas humanas são empilhadas em composições piramidais familiares, embarcadas no mesmo destino trágico”. 55 Esta resolução artística de retratar a massa sob a forma de composições piramidais familiares irá predominar em várias obras de Segall onde mães desesperadas soluçam sobre os corpos desprotegidos de seus filhos e velhos frágeis são carregados por outros tão frágeis quanto eles. Um outro artifício emocional empregado pelo artista para expressar a dor sofrida por muitos dos seus personagens foi de retratá-los com a boca entreaberta. A sensação transmitida ao espectador é de um intenso sufoco e angústia. Ao mesmo tempo, a composição tríade pai-mãe-criança abraçados por entre corpos estirados pelo chão transmitem a incrível sensação de tragédia concretizada pela cena que “já aconteceu”. Estes elementos, numa incrível

alemão, 2 pp. Arquivo do Museu Lasar Segall. São Paulo, IPHAN/Minc.54 .Vale a pena lembrar que muitas das abordagens temáticas adotadas por Segall tiveram como base uma cultura visual colecionada em forma de cartões postais e fotografias que, em diferentes momentos, se pretastavam, estrategicamente, como referências para a “construção” de certos cenários, como o do Navio dos Imigrantes. Sobre esta questão ver Stephanie D’Alessandro, Still More Distant Journeys: The Artistic Emigrations of Lasar Segall. New York/VG Bild-Kunst, Bonn, 1997, p. 22.55 .Vera D’HORTA, “Com o Coração na Terra. A Arte Brasileira de Lasar Segall como ‘Ressonância da Humanidade”’, Still More Distant Journeys : The Artistic Emigrations of Lasar Segall, p. 231.

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similaridade, foram retomados em Visões de Guerra 1940-1943 (Tinta preta a pena, tinta séia aguada e guache branco sobre papel, cat. nº 83) e em Êxodus I (1947, óleo sobre tela, cat. nº 15.), como se este último fosse o resultado acabado de um fato que deixou de ser uma “visão”. Esta mesma identidade de formas e personagens vamos reencontrar em Visões de Guerra 1940-43 (tinta preta e vermelha a pena e aquarela sobre papel, cat. nº 82) e Êxodo (1949, cat.nº 67). Nestas duplas cenas de êxodos, Segall recupera situações correntes do pós-guerra quando milhares de crianças, velhos e até mesmo famílias inteiras sairam de esconderijos improvisados nas fazendas, aldeias e conventos. Muitos procuravam os campos dos deslocados erguidos pelas tropas aliadas na Alemanha e na Áustria que, diante de tanta comoção, foram transformados em campos permanentes para aqueles que não tinham para onde ir. Os sobreviventes da guerra e dos campos de concentração nada mais eram do que farrapos humanos, espécie de mortos-vivos que começavam a se movimentar por todo o continente europeu num imenso êxodo espontâneo. São estes os figurantes de Êxodo, 1949, imagem patética de uma tentativa de retorno à vida. Valendo-se de traços lânguidos e de figuras pálidas, Segall captou-lhes a alma identificada com o drama vivenciado por seus iguais. A alma étnica de Segall (enquanto pintor russo e judeu) encontrou na Segunda Guerra Mundial e no Holocausto inspiração para a criação de cenas apocalípticas. O conjunto das obras que compõem os C ampos de Concentração tem como cenário o inferno nazista e como força inspiradora a precariedade da vida que, desta vez, se faz representada por cadáveres. Cádaveres estes que, em suas Visões de Guerra 1940-1943 (tinta vermelha a pena e tintas pretas e amarela, aguadas sobre papel, cat.nº 85) não mais são do que esqueletos que, desesperados, se abraçam e perambulam atacados por cães raivosos. Ao fundo, um único símbolo alerta para a questão judaica: o esboço de duas portas marcadas com a estrela de David. No entanto, a pintura segalliana não circulou indelével pela sociedade paulistana. Na década de 40, uma série de manifestos corroídos por preconceitos seculares, trouxeram a público o caráter combativo daqueles que se identificavam com o pensamento da extrema-direita. Nem Mário de Andrade desvinculou suas desavenças pessoais com o artista de uma avaliação xenófoba e nacionalista. Em carta pessoal dirigida a Henriqueta Lisboa em junho de 1941, Mario de Andrade destitui a arte de Segall de um caráter nacional (em oposição a Portinari) ao caracterizar o artista como estrangeiro e judeu56. Avaliando os seus dois retratos pintados por Portinari e Segall, Mário de Andrade não conseguiu esquivar-se de seus preconceitos . Valendo-se da clássica metáfora do Bem versus Mal, o escritor distingue os dois pintores por seus dons inatos e por suas disposições do espírito. Segundo a avaliação do escritor, teriam sido a “dadivosidade do coração” (“que raros chegam a ter”) e a “pureza de alma” de Portinari que lhe teriam permitido captar o seu lado “anjo” . Tais virtudes, entretanto, não foram creditadas a Segall que, rotulado de fazer o papel de tira, tinha o “dom de descobrir criminosos”. Ao elaborar a leitura do seu retrato produzido por Segall, Mário de Andrade resgata o medievalesco discurso da diabolização do judeu cuja concepção está relacionada ao anti-semitismo moderno57 : “ Não creio que o Segall, russo como é, judeusíssimo como é, seja capaz de ter amigos...como bom russo complexo e bom judeu místico ele pegou o que havia de perverso em mim, de pervertido, de mau, de feiamente sensual. A parte do Diabo”58. No decorrer da grande exposição realizada pelo Ministério da Educação no Museu Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro (1943), Segall voltou a ouvir os ecos de vozes afinadas com o discurso nazista. Essa exposição, ainda que sob o patrocínio oficial, só se tornou possível em 1943 quando o Brasil já se havia posicionado ao lado dos Aliados contra os países do Eixo. Este momento político é muito significativo pois interessava ao governo brasileiro configurar o perfil democrático e humanitário do nosso pais. Enquanto isso, nos bastidores continuavam a vigorar circulares secretas contrárias a entrada dos refugiados judeus no Brasil. Mais uma vez o modernismo e a arte de Segall eram associados ao comunismo e avaliados enquanto instrumento político. Dentre os 260 trabalhos de Segall estavam expostos Navio dos Emigrantes, Pogrom e Guerra. No entanto, a força desse homem e de sua arte incomodou a muitos. Esta mostra de Segall, que tem

56 .“Carta de Mario de Andrade a Henriqueta Lisboa, de 11 de junho de 1941” em Mario de Andrade, Cartas de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, Rio de Janeiro; José Olympio, 1990, pp. 50 e ss. apud Cláudia Valladão de Mattos, Lasar Segall, p. 164, nota 47. 57 .No moderno discurso anti-semita os judeus são constantemente identificados com o diabo que lhes dá as forças necessárias para se destacarem, com sucesso, na medicina e no mundo dos negócios. J. Trachtenberg, El Diablo y los Judios La Concepción Medieval del Judio y su Relación com el Antisemitismo Moderno, Buenos Aires, Paidos, 1975; L. Poliakov, O Mito Ariano, São Paulo, Perspectiva, 1974, p. 474.58 Idem, pp. 57 e ss. apud Cláudia Valladão de MATTOS, Lasar Segall, p. 174, nota 6.

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um sentido histórico-político, foi transformada em “palco de conflitos” racistas. A campanha, mascarada por um nacionalismo exacerbado, ganhou espaço junto a alguns jornais paulistas e cariocas que enquadraram o artista segundo a clássica trilogia “russo, judeu e comunista”. Os editoriais anônimos, a princípio, não conseguiram deter por muito tempo os nomes de Cypriano Lage, Carlos Maul e Augusto de Lima Jr. denunciados pela imprensa como “membros da 5ª Coluna”59. O próprio artista chegou a comentar: “Não pode haver dúvidas quanto aos verdadeiros sentimentos políticos que animam os autores de tais ‘críticas de arte’e de onde o vento sopra”60.

Cypriano Lage, através de A Notícia, propunha ao ministro Gustavo Capanema “... voltar atrás em suas iniciativas a favor da arte moderna... até o dia em que tivéssemos um ‘Salão dos Independentes’ ou um ‘Museu de Arte Degenrada’, em cujos salões – e aqui vai a revelação sensacional – Lasar Segall já figura, e desde alguns anos, com um dos seus melhores quadros...”61

Augusto de Lima Jr, em carta aberta dirigida a Capanema, pronunciou-se endossando a violenta onda de indignação contra Segall: “Enquanto eu caminho para o acaso de minha vida, vossa excelência ascende para a Zenit da sua.Vossa excelência é uma promessa e virá a ser um estadista útil ao Brasil. Eu quero um Brasil decente para os meus filhos e netos, como vossa excelência para os seus. Não é dissolvendo caracteres em tontices rabiscadas ou trazendo o Mangue para o Museu de Belas Artes que se trabalhará pelos nossos ideais”62.

Neste momento, a crítica ultranacionista recuperou slogans totalitários insistindo na tese nazista da arte degenerada. Simpatizantes integralistas projetaram o debate para o campo político sustentando o crucial dilema Democracia versus Fascismo. A partir das obras de Segall, o moderno foi identificado como “imoral, lixo, irreal, judaico, subversivo e comunista”63. O artista , rotulado de “russo-israelita”, foi acusado de produzir uma “pintura dissolvente que envolve grave perigo à paz mundial”64. A campanha anti-semita desencadeada por este grupo foi veemente repreendida pelos jornais Diário de Notícias, Diário Carioca, A Manhã, Diário da Noite, O Globo e Correio da Manhã, dentre outros. Artistas e intelectuais brasileiros solidarizaram-se com o pintor: Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Jorge Amado, Vinícius de Moares, Osório Borba, José Lins do Rego, Sérgio Milliet e Moacyr Werneck de Castro. O escritor baiano Jorge Amado – também perseguido pelo DOPS por ser comunista e acusador de escrever obras sediciosas – saiu em defesa de Segall: “Segall é um homem que nunca fez concessões na sua pintura tão marcadamente social e antinazista... nos seus grandes quadros dos últimos anos tem impressa uma força de protesto contra a ditadura nazi-fascista que o coloca entre os velhos combatentes do bom combate contra o obscurantismo do nazismo e seus similares”65.

Segall realmente comportou-se como um “velho combatente do bom combate contra o obscuratismo do nazismo e seus similares”. De diferentes maneiras procurou interferir na cultura e na realidade nacional, ora como artista, ora como um homem revoltado contra os delírios sufocantes do totalitarismo. Foi como artista-judeu que Segall ilustrou, em 1941, a História do Alfabeto Hebraico, de Elias Lipiner 66 e, em 1945, a

59 “Campanha Condenável”, por Luiz Martins, Diário de São Paulo, São Paulo, 1.06.1943; “Aspectos Retrospectivos da Exposição de Lasar Segall no Rio”, Folha da Noite. São Paulo, 10.06.1943. Arquivo do Museu Lasar Segall/SP. Claúdia V. de Mattos indica como fonte inspiradora destes artigos ultranacionalistas contra Segall um opúsculo [?] escrito em 1941 pelo juiz Raul Machado e publicado pelo Ministério da Guerra, alertando contra os perigos da infiltração comunista no Brasil. Cláudia Valladão MATTOS, Lasar Segall, p. 77. 60 .Revista Acadêmica, Rio de Janeiro, maio de 1943. 61 .Citado e comentado por Geraldo Ferraz em seu artigo “Os Propósitos da Campanha Contra a Exposição de Lasar Segall”. Diário da Noite. Rio de Janeiro, 3.06.1943. Arquivo do Museu Lasar Segall/SP; Maria Luiza Tucci Carneiro, O Anti-semitismo na Era Vargas: Fantasmas de uma Geração. 2ª ed., São Paulo, Brasiliense, 1994, pp. 428-431.62 .Jornal do Comércio, Recife, 28.05.1943.. Do mesmo autor ver “Malasartes...” A Notícia, Rio de Janeiro, 1.06.1943. Arquivo do Museu Lasar Segall/SP63 .Catálogo da Exposição A Gravura de Segall, realizada entre 18.8 a 25.10.1987, Rio de Janeiro, Fundação Pró-Memória, 1987, p. 6. 64 .A Tribuna, Vitória, 26.05.1943. Arquivo do Museu Lasar Segall/SP. 65 .“O Pintor Antifascista”, por Jorge Amado, O Imparcial, Salvador, 16.05.1943. Texto reeditado em Lasar Segall. Antologia de Textos Nacionais, Rio de Janeiro, Funarte, 1982, pp. 155-156.66 Elias Lipiner, História do Alfabeto Hebraico, Editora Mosaik, 1941.

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Canção da Partida, de Jacinta Passos publicada em Salvador 67. Em conjunto com os Klabin, os doutores Luis Lorch e Efin Mindlin, Segall envolveu-se diretamente com a causa dos refugiados em São Paulo que, como em outros estados brasileiros, necessitavam de suporte financeiro e orientação de vida 68. Nesta época, o Ministério das Relações Exteriores do Brasil, então sob a responsabilidade do chanceler Oswaldo Aranha, mantinha circulares secretas que proibiam a livre concessão de vistos aos judeus 69. Esta postura restritiva era compartilhada por vários países americanos que – apesar da pressão exercida pelo Comitê Intergovernamental Pró-Refugiados, pela Liga das Nações e comitês internacionais judaicos – não viam com bons olhos esta emigração forçada. Os judeus expulsos dos territórios ocupados pelo Reich, tentavam (a qualquer custo) obter um visto de entrada, fosse como turista, cidadão em trânsito ou permanente. Dentre essa massa expoliada estavam dois amigos pessoais de Segall: Victor Rubin e Abraham Scheptowitzky. Rubin havia se tornado (em 1923) uma espécie de administrador dos interesses artísticos do artista na Alemanha. Em 1939, segundo correspondência de Kandinsky, circulava a informação de que Rubin havia se refugiado em Cuba70. Abraham Scheptowitzky não teve a mesma sorte. Segall tentou interceder pessoalmente a favor do amigo russo que, desesperado, escrevia-lhe cartas e mais cartas apelando por socorro. Schepto tentava, a qualquer preço, conseguir um visto de emigração. O conteúdo da correspondência trocada entre Segall, Scheptowitzky e o Comitê International pour le Placement des Intellectuels Réfugiés bem atestam esta luta71. Em janeiro de 1939, Scheptowitzky narrava em cartas o seu desespero por fugir da Alemanha. Escrevendo de Dresden, cidade em que convivera com Segall entre 1918-1919, Schepto clamava por ajuda. Enquanto não era possível considerar o Brasil como refúgio, tinha esperança de obter um affidavit na América do Norte cuja quota parecia favorável aos russos. No entanto, tudo era difícil naqueles tempos sombrios. No começo de agosto, Schepto foi declarado “cidadão apátrida” segundo a legislação do III Reich. Como tal estava intimado a deixar o território alemão, prazo prorrogado até o dia 30 de novembro. Se até aquela data Schepto não conseguisse comprovar uma possibilidade de emigração perante as autoridades alemães, ele seria provavelmente expulso para a Polônia. O Comitê International alertara Segall para o destino daqueles não conseguiam emigrar: “O que significará este fato nas circunstâncias atuais para ele, o sr. pode entender seguramente...estamos procurando evitar o pior para o sr. Scheptowitzky”72. O Comité International aventava com a possibilidade de conseguir um visto de emigração para o Chile que custava US$ 170, – que, somados aos US$ 300,- da passagem de navio, 3ª Classe, totalizava U$470. Um outro amigo de Schepto se dispunha a contribuir com US$ 300. Segall autorizou em 14 de novembro, a compra de 60 dólares pagos em Gênova, com o objetivo de providenciar a compra do visto para seu amigo73. Infelizmente o visto não chegou a ser emitido a tempo e Shepto terminou seus dias num

67 Jacinta Passos, Canção da Partida, Salvador, Editora Gaveta, 1945. A história de vida desta autora foi recentemente retomada por Dalila Machado em A História Esquecida de Jacinta Passos. Salvador, Secretaria da Cultura da Bahia, 2000. 68 Maiores detalhes sobre esta questão ver Parte II- “ Caminhos da Liberdade ” In: Maria Luiza Tucci Carneiro, Brasil, um Refúgio nos Trópicos. Op. cit. , pp.104-138.69 .“ Caro Lasar...Para o fim de emigração tomo a liberdade em perguntar se voce me poderia ajudar de qualquer modo neste caso. Enquanto não é possivel considerar o Brasil para mim, poderia ser que existe uma possibilidade em obter um Affidavit na América do Norte por intermédio dos seus parentes. Considerando que eu sou russo a quota de emigração parece favorável. É urgente....”. Carta de Abraham Scheptowitzky à Lasar Segall. Dresden, 23 de janeiro de 1939. Arquivo do Museu Lasar Segall/SP. Sobre as circulares secretas ver Maria Luiza Tucci Carneiro, O Anti-semitismo na Era Vargas, Jeffrey LESSER, A Questão Judaica. Imigração, Preconceito e Diplomacia. Rio de Janeiro, Imago, 1994. 70 . Rubin teve uma filha, de nome Nora e que morou em São Paulo vivendo próximo aos Segall. Carta de Victor Rubin a Lasar Segall, de 6 de agosto de 1928; Carta de Kandinsky para Segall, Neuilly s/ Seine (França), 31 de março de 1939. Arquivo do Museu Lasar Segall/SP. Rubin tinha uma filha, chamada Nora e que morou em São Paulo. 71 Carta de Lasar Segall a Abraham Scheptowitzky, São Paulo, 31 de julho de 1939; Carta do Comité Internacional pour le Placement des Intellectuels Refugiés a Lasar Segall, Gênova, 2 de novembro de 1939. Arquivo do Museu Lasar Segall/SP 72 .As informações sobre a expulsão e prazos para deportação de Scheptowitzky haviam sido fornecidas pela Ajuda Econômica Judaica em Dresden. Carta do Comité International Pour le Placement des Intellectuels Réfugiés. Genebra, 2 de novembro de 1939. Arquivo do Museu Lasar Segall/SP. 73 .Autorização para compra de câmbio no valor de 60 dólares. Fiscalização bancária. Gênova, 14 de novembro de 1939; Carta de Fanny Schulthess, do Comité International Pour le Placemente des Intellectuels Refugiés para Lasar Segall. Genebra, 26 de dezembro de 1939; Carta de Hochachtungsvoll, do Comité International Pour le Placemente des

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campo de extermínio nazista. Dele restaram apenas suas cartas e um retrato pintado por Segall em Dresden, 1919 (Retrato de Chepto, grafite sobre papel, cat. nº 172). Nas séries Campos de Concentração e Visões de Guerra, cenários imaginários do terror que extrapolam a memória de Abraham Scheptowitzky.

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