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1 CONCORRÊNCIA, EFICIÊNCIA E SAÚDE Abel M. Mateus 1 Presidente da Autoridade da Concorrência Conferência proferida nos Seminários sobre Novas Perspectivas para o Sector da Saúde, Bioética, FMUP, Porto 1. A economia da saúde: mercado, concorrência e ética A saúde é um bem público 2 enquanto saúde pública, devido às externalidades envolvidas na situação sanitária de uma população – uma pessoa com uma doença contagiosa pode causar uma epidemia, ou aos cuidados primários que essa população necessita – uma pessoa menos saúdavel é menos produtiva e tem efeitos sobre a eficiência de uma economia. E é um bem privado, enquanto necessidade que cada indivíduo sente individualmente e nas suas características de rivalidade e de exclusão leva ao exaurir pessoal dos seus efeitos. 3 Também faz parte do capital humano, pois um indivíduo com saúde consegue tirar uma maior rentabilidade das horas que passa a trabalhar. A economia da saúde é uma disciplina dentro do panorama geral da ciência económica que estuda os mercados da saúde, nas suas múltiplas manifestações: serviços hospitalares e ambulatórios, serviços de cuidados médicos, mercados dos medicamentos e meios de diagnóstico. Os mercados da saúde são caracterizados por uma especificidade que resulta, entre outros, do forte enquadramento normativo destes bens e serviços (“a saúde é o melhor bem de que dispomos”), da assimetria de informação (o médico sabe mais do diagnóstico e tratamento do que o doente) 4 , da incerteza (não sabemos se um dado tratamento cura a doença ou não), e do moral hazard (a existência de seguro de saúde pode levar a um excesso de consumo dos serviços médicos, ou uma maior disponibilidade de remédios pode levar a um consumo excessivo). Mas a ciência económica não cobre o universo do comportamento humano. O grande economista e Nobel Kenneth Arrow dizia que era impossível o funcionamento de uma economia se não houver uma suposição de boa-fé nas transacções. Imaginem a dificuldade que seria na efectivação de uma transacção à distância. José só efectua a transferência bancária para pagamento de um obra de arte a António depois de receber a obra. E António só envia a obra depois de José ter efectuado o pagamento. Os valores morais são fundamentais no funcionamento da sociedade e economia modernas. Daí que 1 Agradeço as discussões com os Profs. Pita Barros e Miguel Gouveia e a Prof. Sofia Silva que muito têm contribuído para estas matérias entre nós. 2 Está também consagrado na Constituição como serviço público no sentido de acesso universal. 3 . È semelhante ao caso da educação, que é um bem público enquanto a necessidade de prover a educação básica a uma população, mas é um bem privado quando o indivíduo obtém conhecimentos que lhe permitem auferir um salário mais elevado, e disputa o lugar com outro indivíduo. Também faz parte do capital humano. 4 Mas também pode ocorrer no sentido contrário quando o doente, que conhece a sua história clínica, não a transmite ao profissional de saúde.

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CONCORRÊNCIA, EFICIÊNCIA E SAÚDE

Abel M. Mateus1 Presidente da Autoridade da Concorrência

Conferência proferida nos Seminários sobre Novas Perspectivas para o Sector da Saúde, Bioética, FMUP, Porto

1. A economia da saúde: mercado, concorrência e ética A saúde é um bem público2 enquanto saúde pública, devido às externalidades envolvidas na situação sanitária de uma população – uma pessoa com uma doença contagiosa pode causar uma epidemia, ou aos cuidados primários que essa população necessita – uma pessoa menos saúdavel é menos produtiva e tem efeitos sobre a eficiência de uma economia. E é um bem privado, enquanto necessidade que cada indivíduo sente individualmente e nas suas características de rivalidade e de exclusão leva ao exaurir pessoal dos seus efeitos.3 Também faz parte do capital humano, pois um indivíduo com saúde consegue tirar uma maior rentabilidade das horas que passa a trabalhar. A economia da saúde é uma disciplina dentro do panorama geral da ciência económica que estuda os mercados da saúde, nas suas múltiplas manifestações: serviços hospitalares e ambulatórios, serviços de cuidados médicos, mercados dos medicamentos e meios de diagnóstico. Os mercados da saúde são caracterizados por uma especificidade que resulta, entre outros, do forte enquadramento normativo destes bens e serviços (“a saúde é o melhor bem de que dispomos”), da assimetria de informação (o médico sabe mais do diagnóstico e tratamento do que o doente)4, da incerteza (não sabemos se um dado tratamento cura a doença ou não), e do moral hazard (a existência de seguro de saúde pode levar a um excesso de consumo dos serviços médicos, ou uma maior disponibilidade de remédios pode levar a um consumo excessivo). Mas a ciência económica não cobre o universo do comportamento humano. O grande economista e Nobel Kenneth Arrow dizia que era impossível o funcionamento de uma economia se não houver uma suposição de boa-fé nas transacções. Imaginem a dificuldade que seria na efectivação de uma transacção à distância. José só efectua a transferência bancária para pagamento de um obra de arte a António depois de receber a obra. E António só envia a obra depois de José ter efectuado o pagamento. Os valores morais são fundamentais no funcionamento da sociedade e economia modernas. Daí que

1 Agradeço as discussões com os Profs. Pita Barros e Miguel Gouveia e a Prof. Sofia Silva que muito têm contribuído para estas matérias entre nós. 2 Está também consagrado na Constituição como serviço público no sentido de acesso universal. 3. È semelhante ao caso da educação, que é um bem público enquanto a necessidade de prover a educação básica a uma população, mas é um bem privado quando o indivíduo obtém conhecimentos que lhe permitem auferir um salário mais elevado, e disputa o lugar com outro indivíduo. Também faz parte do capital humano. 4 Mas também pode ocorrer no sentido contrário quando o doente, que conhece a sua história clínica, não a transmite ao profissional de saúde.

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sejam essenciais a dedicação e a deontologia que movem os profissionais destes serviços.5 Nem o estudo económico põe em causa tais princípios. Por vezes argumenta-se entre nós que a economia não se pode aplicar ao estudo do sector da saúde. Nada de mais errado. Os recursos humanos e materiais são escassos. E quando se trata de escolher a melhor aplicação destes recursos a diferentes alternativas, no seu aspecto alocativo e distributivo, estamos claramente no domínio económico. As pessoas e os governos preocupam-se com os custos da saúde, e os recursos de saúde são escassos, pelo que só a economia nos pode esclarecer sobre a sua melhor utilização, do ponto de vista da saúde pública ou individual. É verdade que em situações de emergência, perante um ente querido que está em perigo de vida, queremos que sejam utilizados todos os recursos humanos e materiais, no mais curto espaço de tempo, para lhe salvar a vida. Mas estas situações não constituem o grosso das despesas de saúde. A maior parte dos serviços de saúde são electivos, no sentido de que o utente pode escolher onde e quando quer fazer a consulta ou o tratamento. Muitos deles até são de rotina. E mesmo no caso de emergência, são geralmente os médicos que se substituem ao doente ou família para determinar o tratamento mais eficiente.6 Vamos pois, abordar algumas das principais questões que preocupam os governos no domínio da economia da saúde. Depois de caracterizarmos em largos traços a situação da saúde e os gastos e eficiência da saúde em Portugal, abordamos a questão da concorrência e regulação nos mercados de saúde. Finalmente, a parte mais importante do trabalho é dedicado a estudar a forma como introduzir concorrência nestes mercados para aumentar a eficiência. Estudaremos os mercados dos medicamentos, profissionais da saúde, e dos serviços hospitalares. Embora muitas das questões sejam abordadas sumariamente, estabelece-se um quadro que pode ser útil para um aprofundamento das questões. 2. Situação da saúde em Portugal no contexto da OCDE Os indicadores usuais sobre a situação de saúde dos portugueses revelam uma posição ligeiramente inferior à média da OCDE7, conforme o Gráfico sobre a expectativa de vida à nascença do total da população. Estamos piores em doenças cardio-vasculares, melhores nalguns tipos de cancro e doenças do coração, muito maus em termos de mortes por acidentes de estrada e bastante bem em mortalidade infantil.

5 O móbil da dedicação ao próximo. 6 Veja-se um compêndio típico de economia da saúde utilizado no ensino universitário, como Folland, Goodman e Stano. The Economics of Health and Health Care. Prentice-Hall, várias edições. 7 Os dados aqui reportados foram retirados de OCDE, Health at a Glance, 2005 e OCDE, Supply of Physicians Care, 2006.

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3. A eficiência dos sistemas de saúde Portugal tem um número de médicos por habitante superior à média da OCDE (3,3 por mil contra 2,8), embora tenha uma taxa de crescimento inferior à média, o que pode assinalar problemas no futuro.8 Já no que respeita à especialização tem uma escassez de clínicos gerais9, em relação a especialistas, e estes tendem a concentrar-se em Lisboa e Vale do Tejo. As remunerações dos médicos do SNS comparam-se favoravelmente com as de outros países, tendo em conta o PIB per capita. Tem uma séria escassez de enfermeiros (4,2 contra 14,2 para a Irlanda), que estão entre os profissionais mais bem pagos da OCDE. O número de camas para doentes sujeitos a internamento hospitalar está ainda abaixo da média da OCDE (3,1 contra 4,2 em 2002), assim como os meios tecnológicos de tratamento (3,9 contra 7,3).

8 Esta questão tem a ver com o numerus clausus nas universidades, que foi recentemente substancialmente alargado. 9 Que se deve ao facto de esta formação ser considerada de menor reputação no sistema de ensino da medicina.

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Os indicadores sobre o número de horas trabalhadas por médico mostram que em Portugal os médicos trabalham uma média de 38 horas por semana, contra 45 na Bélgica, França e Alemanha. Também o número de consultas per capita é relativamente baixo (4,7 contra 6,9 naqueles países). Estes indicadores parecem revelar uma subutilização dos recursos humanos no sector público, que andará ligado ao problema dos incentivos e formas de remuneração no sector público e sobretudo na relação público-privado.

No que respeita a despesas em saúde, Portugal gasta por ano 1 797 USD em PPP per capita, abaixo dos 2 394 da média da OCDE, e com uma taxa de crescimento real bastante superior à média. Porém, em termos da despesa em proporção do PIB esta é bastante superior à da OCDE (9,6 contra 8,8) e apresenta um dos maiores acréscimos na

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última década. A parte pública no total das despesas é de 70%, ligeiramente abaixo da média da OCDE.

O consumo de medicamentos é também um dos mais elevados da OCDE, embora os preços estejam abaixo da média da UE. Vários estudos têm demonstrado que o grau de ineficiência no sector da saúde é estimado em cerca de 20 a 30% do total da despesa.10 A estrutura de despesas com a saúde, no Quadro seguinte, mostra que as despesas com pessoal representam cerca de 40% do total, os medicamentos 27 e os outros consumíveis 23% do total da despesa. Será, pois, necessária uma actuação em três frentes para conter as despesas e melhorar a eficiência. 10 Veja-se St. Aubyn. Evaluating Efficiency in the Portuguese Health and Education Sectors, Seminário Banco de Portugal, Fevereiro 2002.

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Despesas do Serviço Nacional de SaúdeEm milhões euros

Despesas com Pessoal 2,596.1 3,064.8

Gastos em medicamentos 1,653.1 2,088.1Compras de Produtos Farmacêuticos 620.8 379.9Produtos Vendidos p/ Farmácias 1,032.3 1,708.2

Laboratorios / outsourcingMeios Complentares de Diag. e Tratamento 484.2 708.3Outros consumiveis e despesas 1,259.4 1,770.3

Fornecimentos e Serviços Externos 476.9 911.7Outras Compras 282.4 302.5Outros Subcontratos 228.7 251.0Imobilizações 187.0 189.3Outras Despesas 84.4 115.8

Total 5,992.8 7,631.5

Investimentos Subsídio de investimento 109.1 119.0

Nota: As despesas apresentadas, bem como o valor do subsídio de investimento, abrange apenas o SNS; Neste sentido, estão excluídos deste quadro todos os Serviços Centrais do Ministério, bem como alguns serviços personalizados (INEM e INFARMED)

Fonte: IGIF

por rubrica 2000 2004

As projecções de despesa com a saúde mostram um aumento substancial nas próximas décadas, não só devido ao envelhecimento da população11 mas sobretudo devido ao progresso técnico, reflectido nomeadamente nas cada vez mais sofisticadas técnicas de diagnóstico e tratamento de casos agudos, ou doenças terminais, extremamente dispendiosas. As projecções elaboradas pelo secretariado da OCDE (Gráfico seguinte) mostram que a percentagem em termos do PIB para o total da OCDE passaria de 7 em 2005 para 13% em 2050 num cenário mais pessimista e para 10% num cenário optimista. Para Portugal o acréscimo seria de 3,75 a 6 pontos percentuais do PIB, o que corresponde a aumentos superiores à média daquela região.

11 As curvas de despesa média sobem acentuadamente a partir dos 55 a 65 anos de idade, atingindo cerca de 20% do PIB per capita. O outro segmento etário importante, mas muito inferior é o das crianças até 5 anos.

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4. Concorrência e regulação Devido à natureza complexa dos serviços de saúde, os mercados de serviços de saúde são altamente regulamentados em toda a OCDE. O Estado desempenha frequentemente um papel importante na propriedade e gestão dos hospitais. Além disso, o Estado financia uma grande percentagem dos serviços de saúde, e desempenha um papel crucial na determinação dos contratos entre provedores de saúde (médicos, laboratórios, hospitais, e outros) e as Entidades pagadoras. Por exemplo, na generalidade dos países da OCDE, no que respeita aos serviços hospitalares, a regulação e a supervisão de governação está relacionada com os seguintes pontos: (i) licenciamento com vista a assegurar a qualidade e salubridade12, evitar excesso de capacidade, limitar a indução de procura ou conter os custos dos meios de diagnóstico e tratamento, (ii) assegurar o funcionamento eficiente do seguro social de saúde, não só pelo acesso universal e equitativo a tratamentos de urgência e primários, como também estabelecer e supervisionar contratos de fornecimento de serviços aos utentes pagos pelo Estado o que pode envolver negociações entre o Estado e os fornecedores dos serviços, e (iii) assegurar e fiscalizar o cumprimento dos contratos entre os provedores de serviços e os financiadores, que são normalmente entidades do

12 Em Portugal o D-L 13/93 e o Decreto Regulamentar 63/94 estabelece que estão sujeitos a licenciamento todos os prestadores que disponham de internamento e/ou recobro, para além dos serviços hospitalares. Em Portugal o licenciamento é concedido caso o prestador apresente as condições necessárias para oferecer os serviços.

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Estado, procurando normalizar contratos, coligir informação sobre a performance dos provedores e difundir essa informação entre o público em geral. 5. Como introduzir maior concorrência: mercados dos medicamentos O sector das farmácias está sujeito à lei da concorrência como qualquer outro mercado. As farmácias são empresas e, como tal, não podem fazer acordos que restrinjam de forma sensível a concorrência. Por exemplo, não podem participar em boicotes à venda de medicamentos a empresas. A AdC tornou pública a sua Recomendação sobre a liberalização do Sector das Farmácias. Entre outras medidas recomendadas, figuram a da eliminação da reserva da propriedade e da liberalização na abertura de farmácias. Quanto à primeira é um princípio da economia moderna que cada profissional se especialize na actividade para o qual tem vantagens comparativas, pelo que um farmacêutico não tem que ser um bom gestor, nem vice-versa. Também a liberalização da abertura levaria à entrada de mais farmácias, o que aumentaria a proximidade e a qualidade do serviço. Estas medidas têm de ser combinadas com a passagem de margens fixas para margens máximas na venda ao público de medicamentos, permitindo assim passar para os consumidores e contribuintes os ganhos de concorrência. Estima-se que estas medidas venham a beneficiar os consumidores no equivalente a 1,5 a 3% do PIB. É evidente que a Autoridade, que controla as concentrações de empresas, numa óptica horizontal e vertical, estará atenta a movimentos de concentração no sector, que vieram a prejudicar o funcionamento da concorrência nalguns países em que houve esta liberalização. Por outro lado, a outra crítica que é apontada à liberalização de não cobertura das zonas periféricas e mais pobres pode ser coberta por incentivos do Estado a farmácias privadas ou sociais que completem a rede. Outro segmento de mercado que o Governo já liberalizou recentemente, foi a venda de medicamentos não sujeitos a receita médica. De facto, este segmento de mercado, correspondente à auto-medicação, é uma componente fundamental de uma política de saúde razão que terá levado o Governo à sua liberalização. . Esta medida vai aumentar a sua acessibilidade e a maior concorrência vai permitir baixar os preços. Enquanto que em Portugal estes produtos representam apenas cerca de 6,6% no total das vendas de medicamentos, em países mais avançados como a França chegam a atingir 30%. Combinado com acompanhamento dos consumidores e educação, esta medida permiti uma poupança substancial nos gastos de saúde que se estima em 150 a 300 milhões de euros por ano. Para além de permitir a resolução de problemas comuns de saúde que não requerem assistência médica, promove o descongestionamento das urgências e redução das consultas médicas. Em Portugal os medicamentos têm preços regulados tomando como benchmarking os preços em Espanha, França e Itália, o que nas comparações internacionais se têm revelado favoráveis.13 Contudo, existe um consumo excessivo de medicamentos. Este é um problema típico dos sistemas de saúde em que não existe restrição orçamental para o médico e o doente apenas suporta um co-pagamento. Alguns países adoptaram soluções baseadas na fixação de uma restrição orçamental por tipo de doença para o médico, e este é penalizado ou premiado anualmente se ultrapassa ou satisfaz esta restrição. 13 Esta conclusão tem alguma fragilidade pois são sempre feitas em termos de pequenas amostras e em que as substâncias não são sempre comparáveis.

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6. Como introduzir maior concorrência: mercados dos profissionais da saúde Os custos de formação dos médicos são dos mais elevados de todo o sistema educacional. Em Portugal estes são em grande parte pagos pelo Estado, enquanto que nos países em que as universidades são privadas, como os EUA, estes cursos atingem hoje propinas de várias dezenas de milhar de dólares, por ano, durante pelo menos 6 anos. Não é pois de admirar que as profissões médicas estejam entre as mais bem pagas. E que haja uma grande apetência por esta carreira, quando as propinas são baixas, o que implica a existência de um numerus clausus. Esta é normalmente, em todos os países uma das principais razões porque existe escassez de médicos. Embora de uma forma global o problema em Portugal não seja muito agudo, identificaram-se acima alguns problemas em termos de especialização e ocupação, para além de uma clara desaceleração na entrada de médicos nas últimas décadas, o que está a originar um agravamento do problema. Os aspectos deontológicos da profissão médica são auto-regulados através de códigos de conduta estabelecidos pela Ordem dos Médicos (como o julgamento de Hipócrates). Um dos aspectos menos desenvolvidos em Portugal é o levantamento de processos contra a má prática médica.14 Porém recorde-se que os consultórios médicos são empresas e os médicos que aí trabalham enquanto profissionais liberais, estão sujeitos às leis da concorrência. Assim, para efeitos da legislação de concorrência, estão sujeitos às mesmas regras que qualquer outra mercado. É doutrina assente na jurisprudência nacional e comunitária. Um dos problemas mais conhecidos da prática médica refere-se à procura induzida de actos clínicos, semelhante à da procura de medicamentos sujeitos a receita médica . Uma das soluções reside no estabelecimento pelo financiador ou segurador,de um orçamento por tipo de diagnóstico, penalizando ou premiando o médico se ultrapassar ou ficar aquém do valor anual estabelecido (número de doentes vezes diagnóstico). Em Portugal, como em muitos países, a insatisfação com a qualidade do serviço público tem levado à constituição de sistemas privados seja através da oferta de esquemas de seguros privados, seja pela multiplicação de consultórios médicos ou da abertura de clínicas privadas. Um dos tipos de organização mais populares dos anos 1980 nos EUA foram os HMOs, que pretendiam travar os custos de saúde, sem sacrificar a qualidade. Estes esquemas são hoje reconhecidos, a par dos serviços de saúde sociais (Misericórdias e outras Entidades Sociais) como complementares do Serviço Nacional de Saúde, mesmo em Portugal. 7. Eficiência e concorrência nos serviços hospitalares Os mercados dos serviços hospitalares são caracterizados por um conjunto de factores que devem ser tomados em conta quando se discute o problema de aumentar a eficiência e a concorrência, nomeadamente: (i) a complexidade tecnológica e científica da sua produção, (ii) assimetria na informação entre os financiadores, pacientes e os provedores dos cuidados, (iii) existência de poder de mercado local devido a populações 14 Ver sobre a regulação da profissão médica Nuno Garoupa. Regulation of Professions in Portugal: a case in rent-seeking. II Conferência sobre Desenvolvimento Português do Banco de Portugal, 2004.

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cativas, a economias de escala e aos custos de deslocação dos utentes, (iv) elevados investimentos fixos e de longa duração para a construção de unidades hospitalares, (v) os elementos típicos de seguros como o moral hazard, devido às características do seguro de saúde para provisão dos serviços, e (vi) o papel do Estado como financiador, contratante e de empregador a nível nacional e local, no que respeita aos serviços hospitalares. Os Quadros seguintes mostram-nos o número de hospitais e o número de camas por cada um dos sectores institucionais: Quadro: Número de hospitais (2004)

PORTUGAL 206

Oficial 114

Público 103

Central 31

Distrital 72

Não público 11

Militar 8

Exército 6

Força Aérea 1

Marinha 1

Paramilitar (GNR e PSP) 2

Prisional 1

Privado 92

com fins lucrativos 39

sem fins lucrativos 53

Fonte: INE, Estatísticas da Saude, 2004 Quadro: Número de camas em hospitais

PORTUGAL 37.443

Oficial 27.591

Público 26.636

Central 12.482

Distrital 14.154

Não público 955

M ilitar 682

Exército 513

Força Aérea 70

M arinha 99

Paramilitar (GNR e PSP) 127

Prisional 146

Privado 9.852

com fins lucrativos 2.356

sem fins lucrativos 7.496

Fonte: INE, Estatísticas da Saude, 2004

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Em 2004 havia 31 Hospitais, SA, que se converteram em Hospitais EPE. por força do Decreto-Lei nº 233/2005, de 29 de Dezembro. A concorrência nos serviços hospitalares começa com a liberdade de escolha do utente, só assim é possível estabelecer um mecanismo de rivalidade entre os serviços. Mas para que este tenha implicações práticas é necessário que o pagamento acompanhe a procura, ou seja, que se estabeleça um mecanismo que premeie o bom serviço hospitalar. Existem, contudo, dois problemas com este mecanismo quando nos encontramos perante uma estrutura de serviços pré-definida. Primeiro, porque os utentes para decidirem têm que ter informação sobre a performance dos serviços. E, segundo, na deslocação da procura surgirão serviços congestionados e outros excedentários, o que obrigará a uma reafectação de recursos, que têm uma certa inflexibilidade pela sua natureza fixa, acarretando excesso de capacidade ou o fecho das unidades ineficientes. A partir deste modelo teórico, é possível desenhar muitas soluções, que dependem de elementos históricos e institucionais. De uma forma abstracta, podemos identificar as seguintes questões na introdução de maior concorrência na provisão de serviços hospitalares, com vista a aumentar a eficiência destes sistemas: (i) Interface utente-serviço - Coligir e distribuir informação para o público sobre a performance de cada um dos serviços hospitalares, por regiões. Como se referiu, para que o utente possa fazer uma escolha racional é necessário que tenha informação sobre o serviço e a qualidade do serviço. Uma das actividades de um organismo regulador seria coligir essa informação e difundi-la de uma forma facilmente acessível.15 É importante que ela seja organizada de uma forma simples. Aqui é necessário notar que não basta referir, por exemplo, indicadores como o número de determinadas intervenções cirúrgicas com sucesso, pois pode ser que àquele serviço, por ter elevada reputação, acorram os doentes mais difíceis. Este scoring tem sempre que ser feito em relação ao tipo de procura. Por não ser fácil, e ser necessário ponderar vários indicadores, nalguns países introduziu-se o sistema das zero a cinco estrelas. É uma forma simplificada que tem algumas vantagens. - Liberdade de escolha pelo utente. Este factor é o elemento fundamental na cadeia de decisões de todos os mecanismos, pois sem ela não se pode revelar a procura. Este princípio é fundamental também para resolver problemas de congestionamento e de filas de espera nos cuidados ou actos dos serviços de saúde. Aplicado a sistemas em que coexistem o sector público e privado tem importantes implicações para os mecanismos de financiamento. Mas a liberdade de escolha também se pode manifestar de outra maneira. No Reino Unido o clínico geral do sistema de saúde primária tem um orçamento anual que pode utilizar para comprar serviços hospitalares para os seus doentes a nível do sistema hospitalar. 15 Em Portugal já se começou a fazer este procedimento na publicação dos resultados dos exames dos alunos das diferentes escolas secundárias públicas e privadas.

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- Sistema de co-pagamento eficientes. Para fazer uma escolha responsável o utente tem que pagar um preço pelo bem ou serviço. Este elemento tem que ser ponderado com o princípio da equidade, nunca violando o princípio da prestação de serviço universal. Combinando este aspecto com a liberdade de escolha implica que o financiamento siga a procura, como se referiu acima. (ii) Gestão hospitalar e interface provedor dos serviços-contratualizador-financiador Na estrutura tradicional de hospitais públicos estes têm vindo a ser geridos numa óptica de serviço público, em que o pessoal pertence à função pública (mas em que os médicos acumulam com uma actividade privada), com sistemas rígidos de comando-e-control, sem avaliação contínua da performance. “Gasta-se o que se gastar”, os orçamentos são baseados em acréscimos históricos, sem avaliação dos resultados dos serviços. Um passo fundamental na melhoria da gestão hospitalar é a separação clara entre o provedor do serviço e o financiador, que através da contratualização da relação vai dar autonomia ao hospital e permitir ao financiador controlar o cumprimento do contrato e avaliação da performance do hospital que presta o serviço aos utentes. -Adopção de sistemas de contabilidade (como contabilidade analítica por centros de custos) e gestão que permitam acompanhar continuamente e em tempo real a gestão das unidades hospitalares. Não é possível uma gestão eficiente de uma empresa sem que exista um sistema de contabilidade e de demais informações operacionais que permitam um acompanhamento contínuo da evolução da empresa. O mesmo se passa num hospital. Para além da informação global e agregada é também necessária informação detalhada sobre centros de custos (contabilidade analítica) que permita responsabilizar os gestores de departamentos e divisões pela sua gestão. Este é um dos elementos fundamentais e urgentes no caso português, que é uma pré-condição de sucesso de todos os outros elementos desta secção. - Adopção de esquemas empresariais de gestão que permitam autonomia administrativa e financeira (empresarialização). O sistema hospitalar é suficientemente complexo para poder ser gerido numa lógica de comando-e-control, assente em princípios da administração pública tradicional. É por este motivo que se tem evoluído no sentido ou da privatização ou da empresarialização dos hospitais. Só é possível responsabilizar uma gestão dando autonomia administrativa e financeira. Mas assim como nas empresas tem que haver um conselho de administração que gere a empresa de uma forma unificada, não pode haver nos hospitais uma hierarquia independente de médicos, enfermeiros e “gestores”, como tem acontecido tradicionalmente no nosso país. É essencial que haja uma estrutura única, embora os sistemas de gestão possam ser matriciais ao nível dos departamentos e centralizados a nível do hospital.

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- Contratualização anual da performance. A separação do provedor do serviço e do financiador que actua como agente dos principais interessados, que são os utentes do serviço hospitalar, permite contratualizar a prestação de serviços. Uma possibilidade é a de fazer concursos ex-ante, promovidos pela entidade regional que gere um dado sistema de saúde e assim atribuir orçamentos aos departamentos que ofereçam a melhor relação preço-qualidade. Este esquema está a ser tentado no Reino Unido que tem um SNS parecido ao nosso. Mas mesmo que não se realizem estes concursos, aquelas entidades (entre nós as ARS) estabelecem contratos com os hospitais para fornecimento dos serviços e com base nos quais se avalia a respectiva performance. Esta contratualização deve ser anual e deve ter uma comissão de acompanhamento independente-arbitral para resolver possíveis conflitos de interpretação.16 - Sistemas de financiamento que dêem um incentivo à performance do hospital-empresa. Estes sistemas devem penalizar a má performance, por exemplo, diminuindo o financiamento no ano seguinte, e premiar a boa gestão, permitindo que o hospital use o excedente gerado, por exemplo, para melhoria dos equipamentos, prémios adicionais ao pessoal, ou melhor ainda, para utilizar esses recursos em formação adicional ao pessoal.17 Sistemas apenas baseados nos actos médicos realizados não são eficientes, pois está-se a pagar com base nos inputs utilizados. Ora a performance de uma empresa avalia-se pela diferença entre receitas (serviços prestados vezes preços) e custos. Este método pode levar o hospital a aumentar o número de consultas e de tratamentos (reduzindo excessivamente o tempo da consulta), ou a não tratar os casos mais difíceis, que levam mais recursos. Os serviços efectivamente prestados têm na saúde uma importante dimensão qualitativa que são por exemplo, o número de doentes de apendicite que foram curados, ou o número de bébés que nasceram em boas condições de saúde.18 - Introduzir sistemas de benchmarking tais como preços prospectivos. Portugal foi um dos primeiros países, depois dos EUA a introduzir o sistema de financiamento baseado nos Grupos Homogéneos de Diagnóstico (GHD). Este método permite pagar ao hospital de acordo com os serviços efectivamente prestados. Contudo, em Portugal o incentivo para uma boa performance perdeu-se, pois se o hospital tem um deficit (acumula dívidas) o Estado acaba sempre por cobri-lo. Na prática, o sistema acaba por funcionar como um financiamento baseado nos custos históricos. Para avaliar a performance de um hospital é necessário introduzir sistemas de benchmarking. Em

16 Os contratos não podem ser nem muito detalhados (por exemplo, no Reino Unido, nos anos 1970 só para regulamentar a limpeza de uma carruagem dos comboios havia um volume de várias centenas de páginas) para darem liberdade de optimizar a gestão, nem demasiado vagos, o que não permite a avaliação objectiva da performance. 17 Suponhamos que este contrato prevê o pagamento para um determinado número de utentes, mas que devido à boa reputação o hospital atrai e acaba por tratar mais doentes, então o financiamento deveria contemplar esse acréscimo de procura, que é um facto revelador de boa performance. 18 Um dos problemas que se levanta nestes sistemas é que o bom hospital pode ser vítima do seu próprio sucesso. A reputação crescente do hospital atrai cada vez mais doentes com casos complicados (selecção adversa) o que pode fazer deteriorar os indicadores de sucesso. É, pois, necessário não só tomar em consideração o serviço prestado mas a população concreta que procura esse serviço.

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Portugal já foram feitos alguns estudos nesta matéria. Mas falta lever às últimas consequências o sistema. Os hospitais que têm resultados superiores ao benchmark devem ser premiados e vice-versa. Com pagamentos prospectivos, estes são baseados em diagnósticos (e, possivelmente, tratamentos e complexidade). Nalguns casos o pagamento é ponderado pelo número de dias de hospitalização e a intensidade do uso de cuidados médicos. -Introduzir sistemas de gestão sujeitos a contestabilidade. Assim como numa empresa um bom conselho de administração é premiado pelos accionistas reconduzindo-o nas suas funções, ou no caso de má gestão é despedido, também a gestão devidamente contratualizada deve estar sujeita a contestabilidade. (iii) Interface serviços hospitalares-recursos humanos - Adopção de esquemas mais flexíveis de recrutamento e despedimento de pessoal. Para ser possível responsabilizar os gestores das unidades hospitalares pelos resultados é necessário que eles tenham os instrumentos necessários. Um dos mais importantes é a gestão de pessoal, pois os custos de trabalho assumem um papel dominante na função custos. Assim, é necessário que os gestores tenham a possibilidade de recrutar e despedir pessoal, de acordo com as regras aplicáveis às empresas. -Gestão de recursos humanos baseada em planos e programas departamentais. Só é possível uma gestão eficiente se todos os colaboradores da empresa tiverem uma visão clara dos seus objectivos dentro da empresa, depois de uma desagregação dos objectivos gerais por departamentos e centros de cuidados. É a gestão por objectivos que é hoje seguida na generalidade das empresas dos países desenvolvidos. Mais do que isso, é necessário que os programas departamentais, que têm associados uma contabilidade por centros de custos, possam ter os recursos de equipamentos, consumíveis e financeiros que lhes permitam executar os programas, sendo aqueles responsabilizados pela minimização dos custos, dados os orçamentos disponíveis e os indicadores de performance que lhes estão atribuídos. - Remuneração e progressão na carreira de acordo com a performance e a concretização dos objectivos pessoais de desempenho. Para completar o sistema de gestão é também essencial que as remunerações reflictam os resultados alcançados individualmente e por equipe de trabalho. A remuneração por mérito deve assim assumir uma parte significativa do total e as promoções devem corresponder aos resultados alcançados. (iv) Interface serviços hospitalares-consumíveis - Necessidade de combinar a flexibilidade de gestão de compras com efeitos de escala. As ARS fazem a contratualização dos programas anuais com as unidades hospitalares, e estas têm capacidade de adquirir os consumíveis que necessitam para a consecução dos

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objectivos. Hoje a gestão dos stocks é feita segundo o princípio do just-in-time. Mas uma excessiva descentralização, embora dê flexibilidade à gestão, não permite obter os efeitos de escala que podem contrabalançar o poder de mercado das grandes farmacêuticas, e manter um melhor benchmarking das compras efectuadas. Uma solução seria a agregação das compras por Centrais Regionais de Compras para grandes séries, em que é mais eficiente a aquisição periódica. -Aquisição por concurso público e prevenção de formação de cartéis. Para que estas Centrais possam obter os melhores resultados devem efectuar periodicamente concursos públicos para aquisição dos consumíveis, que é a forma reconhecida pela teoria económica como a que permite obter as condições mais concorrenciais. Estas Centrais deveriam também estar preparadas para detectar cartéis, que têm afectado este tipo de transacções no nosso país e noutros da OCDE. (v) Optimização de redes de serviços hospitalares Um factor fundamental na minimização dos custos, para prestação de serviços a uma dada população é a optimização da rede de serviços de saúde, e em particular da rede hospitalar. Já há mais de 30 anos que se discute a hierarquização destes serviços numa rede primária, baseada em centros de saúde (em que a peça central é o clínico geral – médico de família – e o enfermeiro de triagem) para fazerem a triagem dos doentes e acompanharem o tratamento dos mesmos. Depois estes seriam transferidos, nos casos necessários para hospitais regionais, com cobertura generalista. Seria nos hospitais centrais que se concentrariam os casos graves ou de tratamentos de série, permitindo assim o aparecimento de centros de excelência por especialidades. Também estes hospitais estão associados ao ensino universitário, de formação dos restantes, e com ligação a centros de investigação. - Criação de uma rede primária de serviços de saúde que constituam a primeira linha de triagem dos doentes. Esta rede continua por criar no nosso país, apesar de ter sido tentada várias vezes, levando ao crescente congestionamento das urgências e à deterioração do seu serviço. Além disso, o papel fundamental que o médico assistente pode desempenhar permite a passagem de uma medicina curativa para a medicina preventiva, que assume a maior preponderância nos países mais avançados. Também neste caso é possível introduzir sistemas como o que acima se referiu, no Reino Unido, de ser o médico assistente que traduz a procura dos utentes em médicos especialistas, dando assim mais relevância à liberdade da procura (com maior informação). - Hierarquirização do sistema de saúde com constituição de vários níveis de hospitais e de centros de serviços e cuidados especializados. Esta hierarquização permite desenvolver os conceitos de especialização e de economias de gama que referimos acima. Por exemplo, um centro especializado em operações lazer aos olhos consegue obter melhores performances do que a disseminação deste serviço por várias unidades.

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- Partilha de centros de diagnóstico e tratamento de elevado custo. Conforme se referiu acima, o principal motor da subida dos custos de saúde para o futuro será a tecnologia. Os equipamentos são cada vez mais caros e sofisticados, assim como os tratamentos exigem uma enorme especialização. A multiplicação de centros de diagnóstico e tratamento de elevada tecnologia é muitas vezes causa de enorme desperdício e elevados custos na saúde. - Reforço do apoio a tratamentos e serviços ambulatórios no seio familiar. Hoje não é possível conceber-se um sistema de saúde, sobretudo para os cuidados geriátricos e de tratamento de doenças de longa duração, sem o apoio das famílias ou de lares. Estes apoios são muitas vezes preteridos por falta de apoio de enfermagem ou de elevados custos médicos (a consulta domiciliária), ou do desequilíbrio entre os custos no hospital e os custos no domicílio no seguro de saúde. Para além de que o “calor” e amor da família são indiscutíveis factores na recuperação da saúde. É pois essencial dignificar e apoiar estes tipos de tratamentos ambulatórios. Em conclusão, os Hospitais SA e agora os EPE foram um passo importante no sentido de separar o provedor e financiador e introduzir alguns mecanismos de gestão independente. Aqueles distinguem-se dos públicos porque é nomeado um conselho de gestão com alguma autonomia financeira e administrativa, e que tem maior liberdade na gestão dos recursos humanos (contratos individuais de trabalho) e nas aquisições de consumíveis. Estes hospitais fazem um contrato anual de performance, baseado em GHD, sendo financiados de acordo com os resultados. Contudo, a sua população servida continua cativa e apesar desta contratualização os deficits anuais continuam a ser cobertos, o que desvirtua os incentivos. Estamos, pois, ainda longe de concretizar muitos dos mecanismos que poderiam contribuir para uma melhor eficiência dos sistemas de provisão de serviços hospitalares. As experiências concretas de países da OCDE revelam os seguintes resultados em termos da introdução de mecanismos de concorrência19:

• A introdução regular de concursos públicos no outsourcing de serviços laboratoriais pode poupar 30% ou mais;

• Concorrência nos preços para o fornecimento de serviços hospitalares pode levar a reduções de preços de 7% ou mais;

• Benchmarking dos níveis de pagamentos contra os hospitais mais eficientes pode levar a reduções de custos de 6% ou mais em hospitais menos eficientes;

• Orçamentos por médico para tratamentos pode levar a reduções nas admissões aos hospitais de 3.3%;

• Pagamentos baseado em número de casos tratados pode poupar 10% ou mais comparado com o financiamento hospitalar baseado no orçamento do ano anterior; e

• A presença de hospitais baseados na performance pode estar associado a reduções de 2.4% nos custos hospitalares numa dada área geográfica.

19 Ver OCDE, Competition and related mechanisms ..., p. 5.

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8. As Parcerias Público-Privadas (PPPs) Fundamentalmente por causa das limitações orçamentais têm-se multiplicado nos últimos anos as chamadas PPPs para a construção de hospitais públicos. São um tipo de Project Finance em que a empresa concessionada constrói, opera durante o período de concessão e depois transfere para o Estado o hospital (BOT). O mérito desta forma de investimento e provisão dos serviços hospitalares reside em dois factores. Embora do lado do financiamento, o custo de capital seja em geral superior àquele que o Estado obteria se recorresse à dívida pública, é do lado da gestão que pode compensar: a capacidade de o sector privado fazer uma gestão do hospital mais eficiente do que o sector público. A resposta a estas duas questões é matéria de investigação activa e corrente. Contudo, uma das questões fundamentais para o Estado é ter capacidade para negociar contratos de BOT que sejam equilibrados em termos do prosseguimento do interesse público e dos incentivos correctos para o sector privado. Esta capacidade de negociação por parte do Estado ainda está longe de ser atingida. Repare-se que essa capacidade não se esgota na celebração do contrato inicial de concessão, pois estes contratos requerem o acompanhamento e monitorização contínua. 9. Conclusões Não existem sistemas perfeitos de provisão de serviços de saúde, e de uma forma ou de outra, existem problemas graves em vários modelos. O dos EUA mostra que tem elevados custos totais e não oferece uma solução equitativa para os cidadãos, o do Reino Unido baseado no serviço nacional de saúde, embora de custos mais baixos revela graus de qualidade e filas de espera inaceitáveis do ponto vista social. Porém, todos os países estão a introduzir reformas no sentido de melhorar a sua performance. Também em Portugal se está a assistir a um debate público e estão a ser tomadas medidas que respondem às preocupações acima enumeradas. O que é essencial é que o conjunto de medidas tomadas respeita uma lógica de sequência temporal e de coerência interna que aumente a eficiência e o bem-estar social, o que nem sempre é fácil dado o que conhecemos da teoria do segundo óptimo. Mesmo sem questionar os sistemas institucionais vigentes vimos acima que é possível melhorar substancialmente a sua eficiência.