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1 A HISTÓRIA A CONTRAPELO SEGUNDO MONTEIRO LOBATO Francisco Alambert Professor do Departamento de História da USP 1 tudo é coisa de relâmpagos, que a gente só vê depois, mais tarde, no fim da festa, quando a imaginação pega a recompor o quadro. Monteiro Lobato ... a história escrita se relacionaria com as formas épicas como a luz branca com as cores do espectro. Como quer que seja, entre todas as formas épicas a crônica é aquela cuja inclusão na luz pura e incolor da história escrita é mais incontestável. E, no amplo espectro da crônica, todas as maneiras com que uma história pode ser narrada se estratificam como se fossem variações da mesma cor. O cronista é o narrador da história. Walter Benjamin, “O Narrador” 1 Esse texto, até aqui inédito, é parte da minha tese de doutorado, defendia no Departamento de História da USP, em 1998, intitulada Civilização e Barbárie, História e Cultura.

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A HISTÓRIA A CONTRAPELO

SEGUNDO MONTEIRO LOBATO

Francisco Alambert

Professor do Departamento de História da USP1

tudo é coisa de relâmpagos, que a gente só vê depois, mais tarde, no fim da festa, quando a imaginação pega a recompor o quadro. Monteiro Lobato

... a história escrita se relacionaria com as formas épicas como a luz branca com as cores do espectro. Como quer que seja, entre todas as formas épicas a crônica é aquela cuja inclusão na luz pura e incolor da história escrita é mais incontestável. E, no amplo espectro da crônica, todas as maneiras com que uma história pode ser narrada se estratificam como se fossem variações da mesma cor. O cronista é o narrador da história. Walter Benjamin, “O Narrador”

1 Esse texto, até aqui inédito, é parte da minha tese de doutorado, defendia no Departamento de História da USP, em 1998, intitulada Civilização e Barbárie, História e Cultura.

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Do mesmo modo com que Machado de Assis percebera que depois da Guerra do

Paraguai os relógios andavam mais depressa – ou seja, a modernização batia

definitivamente às portas do Brasil –, Monteiro Lobato parece ter percebido as

transformações no tempo que a ordem do progresso sob o capitalismo impunha após o fim

de outro conflito, a Grande Guerra de 1914-1918 (essa entretanto, bem longe de nosso

continente). Com efeito, talvez nenhum outro intelectual de sua época tenha dado tanta

atenção ao tema da modernização e aos impactos do progresso capitalista na estrutura

econômica, política e cultural brasileira quanto ele. Não se trata aqui de, uma vez mais,

exercitar as distinções e aproximações dessa figura polêmica – desse modernista anti-

modernista (ou desse modernizador anti-modernista, tanto faz) – com as utopias e distopias

de sua época. O papel específico de Lobato, com seus avanços e ambigüidades, na

formação intelectual moderna brasileira tem sido objeto de muitos estudos recentemente2.

Cabe aqui apenas notar e discutir a presença da Guerra do Paraguai em um momento de sua

obra. Um momento especial tanto para o autor quanto para a história cultural do Brasil e,

mais especificamente, da recepção da Guerra do Paraguai nessa história.

Em 1921, mesmo ano em que aparecem a novela Os Negros e a coletânea de contos

Cidades Mortas, Lobato reúne vários escritos dispersos e os publica no volume intitulado A

Onda Verde. Este em nada pode ser comparado com aqueles nem com os outros livros que

irão compor o acervo lobatiano. Não se tratavam nem de contos, nem de novelas ou

2 Cf. CHIARELLI, Tadeu. Um jeca nos vernissages. São Paulo, Edusp, 1995; LANDERS, Vasda B.: De Jeca a Macunaíma: Monteiro Lobato e o Modernismo: Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1988; ver também a excelente biografia escrita por AZEVEDO, Carmen L.; CAMARGOS, Marcia; SACCHETTA, Vladimir: Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia. São Paulo, Editora SENAC, 1997.

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romances, nem de panfleto político, muito menos das histórias infantis que lhe deram a

fama incomparável. A princípio, Onda Verde reunia a intensa produção jornalística do

autor: são sobretudo artigos, espécies de resenhas, reflexões pessoais; enfim, uma série de

trabalhos preliminares, ou talvez complementares, aos vôos mais altos do autor em outras

searas.

Parece certo entender essa obra no contexto da formação das idéias lobatianas, e

nesse sentido ela ganha importância dobrada. Pois pode-se ver em Onda Verde um autor

literalmente ensaiando seus temas, aproximando-se de problemas fundamentais na

composição de seu ideário político, estético, artístico, etc. E é nesse livro, nessa radiografia

mental de Lobato, que se encontram duas das mais interessantes reflexões sobre o tema da

Guerra do Paraguai e sua relação com o passado e o presente da sociedade brasileira,

centradas no momento em que as estruturas da República Velha se encaminhavam para sua

maior crise. Posso adiantar que se trata de uma inflexão no tema que, embora

contemporânea dos trabalhos de Baptista Pereira e dos ideólogos da Guerra dos anos 20, se

choca radicalmente com a maneira com que as heranças e conseqüências do conflito

vinham sendo abordadas. Lobato, esse cultor do mundo decadente, ao mesmo tempo que

apologista da modernização, soube ver melhor que qualquer outro de seus contemporâneos

os impasses nos quais o país transitava e sua íntima relação com um fato do passado.

O presente de Lobato era o tempo da Primeira República e de seus impasses. Era

também o momento, literariamente refletido, das conseqüências da modernização

estimulada pelo café nos ritmos da vida nas franjas dos centros urbanos. Mas seus olhos

souberam ver e aproximar desse quadro a grande tragédia européia de então: a I Guerra

Mundial. Como era uma máquina de pensar paralelos, exemplos e soluções (ou uma

máquina de produzir ideologias, como se queira), Monteiro Lobato logo irá se por a refletir

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primeiramente sobre o papel da guerra no destino das civilizações. Até aí, não havia muita

novidade. Mas sua aproximação do tema é quase psicanalítica – poderíamos afirmar com

muita ênfase, não fosse o autor tão estranho a esse tipo de abordagem. Afinal, um dos

textos do livro apela a um problema freudiano: ele se pergunta quem afinal é o “pai da

guerra”3?

Para nosso liberal exaltadíssimo, o pai da guerra era o “parasita” que sugava as

forças de liberdade que emanavam do povo. A guerra era seu meio mais terrível de

existência e perpetuação. A apresentação do sentido da guerra por Lobato é radical e

impiedosa: “a guerra constitui o supremo mal”. A guerra se atém ao mundo na medida em

que se constitui num infernal círculo vicioso onde tanto a vitória quanto a derrota não se

diferenciam, pois não podem sanar as chagas criadas: “A guerra tira dos seus próprios

efeitos extremos, vitória e derrota, o estímulo que mantém vívida a mentalidade

guerreira”4.

Ainda que a comparação seja forçada e quase disparatada, é surpreendente que,

trilhando esse caminho, Lobato se aproxime da famosa interpretação de Walter Benjamin

quanto ao caráter estetizante da guerra5, especialmente na forma que lhe deu o nazismo

(que antes já havia promovido a estetização da política), responsável por sua permanência e

reprodução. Na visão lobateana, o tema da estetização da guerra se coloca nesses termos:

“A apoteose dos heróis, a apresentação estética de todos os crimes, o embelezamento

sistemático da carniçaria, o exaltamento das virtudes guerreiras, revigoram, na vitória, a 3 LOBATO, Monteiro. “O pai da guerra”, in: A Onda Verde e o Presidente Negro. São Paulo, Brasiliense, 1951, pp. 53-58. 4 Idem, ibidem, p. 53. 5 Cf. BENJAMIN, W. “Teorias do fascismo alemão”; “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”. In: Obras Escolhidas, volume 1. São Paulo, Brasiliense, 1985.

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mentalidade bélica enfraquecida nos anos de paz. Na derrota, o sofrimento injusto, a

espoliação do inocente, a insolência da pata invasora, criam o ódio mortal e põe em todas as

almas uma idéia suprema de vingança.”6

Mas o parasita tem nome: o Estado. É à instituição estatal, pensada em oposição ao

povo livre, que é creditada a montagem exclusiva desse circo de horrores. O povo, para

Lobato, constitui um corpo cujas partes distintas e diferentes contribuem para o equilíbrio e

o funcionamento do organismo. A esse corpo Lobato poderia chamar civilização, mas não o

faz.. Prefere, entretanto, evocar longa citação de Nietzsche para justificar, com Zaratustra, a

certeza de que o Estado tudo corrói e deturpa. A guerra é sua maior arma, seu último ideal,

mas a paz não é melhor nem representa sua negação, ao contrário, realiza sua

concretização:

“(...) pois os povos não fizeram a guerra. Eles são vítimas da guerra, porque são vítimas do

monstro Estado. O monstro empolga-os e a partir da escola organiza a mentira viva de que

se alimenta e em que se rebolca. Mentira alemã de um lado, mentira francesa de outro,

mentira inglesa, mentira italiana, mentira em todos os idiomas, sob todas as formas.”7

A Grande Guerra foi a porta de entrada para que Lobato colocasse o Brasil no rol

das línguas dos Estados que mentem. A Guerra do Paraguai, a Grande Guerra do século

XIX sul-americano, era nossa mentira ainda pulsando num mundo de muitas mentiras

6 LOBATO, Monteiro. “O pai da guerra”, op.cit., p. 53. 7 Idem, p. 57.

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bélicas, um mundo que se esforçava por sobreviver ao fim da era dos impérios8. E a porta

de entrada na nossa Grande Guerra foi o episódio de Uruguaiana.

Uruguaiana foi tema de uma espécie de resenha incluída no livro. O que mais nos

interessa nesse caso é que a idéia de pensar o episódio e sua importância para a sociedade

brasileira do momento, foi sugerida a Lobato pela leitura de trechos do diário de André

Rebouças, que àquela época vinha sendo publicado por Yan de Almeida Prado justamente

na Revista do Brasil que, como se sabe, desde 1916 era editada pelo próprio Lobato9. O

encontro do escritor com as terríveis memórias de Rebouças é de enorme significação para

a história que estamos contando. Mais do que isso, o ressurgimento do diário de Rebouças

teve um peso decisivo no debate sobre as conseqüências da Guerra nos projetos

civilizadores brasileiros que, creio, nunca foi pensado. Por isso, é necessário, nesse ponto,

uma ou duas observações sobre a obra desse mulato da corte de D. Pedro II, monarquista

fanático, modernizador mais fanático ainda, cujas lembranças estampadas nos horrores de

seu diário demarcam cenas e imagens decisivas nas conformações do fenômeno ideológico

em torno da Guerra do Paraguai.

André Rebouças foi um dos mais significativos políticos e intelectuais de seu

tempo. Isso significa dizer que foi um dos mais tipicamente contraditórios. Mulato e

monarquista, devoto fiel de D. Pedro II – de quem foi amigo pessoal e acompanhou no

exílio europeu (onde veio a falecer) depois da proclamação da República –, foi também um

8 A história dessa derrocada está magistralmente contada em HOBSBAWN, Eric. A era dos impérios. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1993. 9 Todo um estudo ainda está por ser feito analisando a presença da Guerra do Paraguai na fase dos anos 20 da Revista do Brasil. Por ora, fica apenas indicada a particularidade do tema no ideário da revista, coisa que pode ser notada se arrolarmos, além da publicação do Diário de Rebouças, a publicação de textos como: RAMOS, Mario Bulhões. “O bailado sobre o cadáver de Solano López”. Revista do Brasil, São Paulo, nov. 1923, ano 8, v. 24, n. 95; ou, agora pela editora da revista, dirigida por Lobato: TAUNAY, Alfredo D’Escragnole. Visconde de. Dias de guerra e de sertão. São Paulo: Edição da Revista do Brasil, 1920 (posteriormente republicado pela editora Melhoramentos, em 1927).

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dos mais ativos ideólogos da Abolição, junto com Nabuco, Rui Barbosa e José do

Patrocínio. Pregou um programa abolicionista que se completaria com a reforma agrária e a

"democracia rural", quando os trabalhadores poderiam entrar "num sistema de concorrência

e oportunidade"10. Engenheiro, obcecado por máquinas, artefatos de engenharia e armas,

foi primeiro tenente da campanha do Uruguai em 1866. Por tudo isso, pode-se pensar, trata-

se de uma espécie de herói modernizador e reformista mais do que simpático a um

reformista obcecado como Monteiro Lobato.

De fato, Rebouças pode ser visto como um dos heróis civilizadores, com todas as

contradições de praxe, do século XIX. Mas o que talvez o diferencie de sua época é o fato

de que se tratava de um civilizador que conhecia o tamanho da barbárie civilizada: mulato,

mesmo tendo concluído o curso na Academia Militar com méritos, foi-lhe negada, dada a

sua cor, uma bolsa de estudos na Europa. Com recursos próprios e familiares, entretanto,

parte para conhecer a Exposição Internacional de Londres de 1862, onde se encanta com a

técnica e o progresso das ciências, que quer trazer para o Brasil. Antes, porém, a história

lhe reservava passar pela prova da Guerra. Nesse meio-tempo, estava armada sua

plataforma de atuação: por um lado lança-se às reformas políticas, em especial à campanha

abolicionista, por outro, sonha ser o patrocinador da maquinização da vida brasileira (quer

construir estradas de ferro, docas, etc). Por fim, tornou-se, segundo bem definiu Maria

Odila Silva Dias, "um prisioneiro da modernização". Nesse sentido, pode ser pensado como

um dos mais bem acabados espíritos ligados à Geração de 1870.

Esse conjunto de situações de classe, de partido, de ideologias – essa contradição

básica do liberalismo brasileiro em sua luta pela modernização materializada no corpo de

10 BOSI, Alfredo. “A escravidão entre dois liberalismos”, in: Dialética da Colonização, São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p. 234.

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um de seus próceres lançado à insânia da Guerra (justo ele, que apreciava o progresso mais

que ninguém) – dá um caráter especial ao Diário de André Rebouças. Um caráter que o

diferencia significativamente de outras obras de cunho memorialístico, como as

Reminiscências do General Dionisio Cerqueira, as Recordações de José Rodrigues Silva, o

Diário do oriental Leon Plleja ou as Memórias do argentino Centurion.

O manuscrito foi publicado integralmente apenas em 1973. Esteve anos perdido

entre os papéis de Rebouças em poder de Monteiro Lobato e depois de Yan de Almeida

Prado. Seu conteúdo dá-nos um testemunho surpreendente de uma literatura passiva, escrita

a princípio para não ser publicada ou lida por ninguém. Apenas alguns trechos referentes à

Guerra apareceram nos números de setembro, outubro e dezembro de 1920 da Revista do

Brasil, então dirigida por Lobato. Textos que, podemos presumir, influenciaram parte da

geração dos anos modernistas, especialmente Lobato e Baptista Pereira;

A oposição civilização/barbárie se estampa francamente no diário de Rebouças,

escrito do ponto de vista de um homem europeizado culturalmente (como Machado,

Taunay ou Baptista Pereira, por exemplo) que, sem fugir à etiqueta de seu tempo, retrata os

paraguaios como bárbaros primitivos:

"Diz-se que alguns foram mortos comendo carne humana tirada dos bornais de nossos

soldados. Feridos, muitas vezes bem gravemente, comiam vorazmente farinha e carne que

se lhes oferecia. Os paraguaios têm costumes ainda primitivos (...) batendo na boca como

os índios. Quando se lhes perguntavam que vem lá? uns respondiam com seu metal de voz

especial, quase feminil, que logo os denunciava: 'son brasileiros' -, outros, supondo talvez

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intimidar-nos, respondiam: 'son los paraguaios, que vem matar los cambays (negrinhos)'.

São ordinariamente cruéis e traiçoeiros"11.

Mas sua situação de classe e seu fervor modernizador colocam-no diante de uma

certa ambigüidade. Como não escrevia, a princípio, para ser lido, permitiu-se observar

mesmo os momentos em que uma clara separação entre o Brasil "civilizado" e o Paraguai

"bárbaro" se estreita para quase desaparecer. Por exemplo, aponta o massacre inútil contra a

cidade de Uruguaiana, que estaria prestes a se render (justamente um dos episódios mais

discutidos e negados pelos defensores do Império), relatando fome e miséria entre os

soldados paraguaios, indisciplina e desmazelo nos soldados brasileiros. Retratava assim a

"vitória" em Uruguaiana:

"(...) As 2 horas da tarde, mataram os chefes que se entregaram; principiou então cena

mais cômica, senão mais abjeta, que tem visto a América do sul: - o desfilar perante o

Imperador, tendo ao lado Mitre e Flores, do exército paraguaio, se tal nome poder merecer

o bando de esfarrapados mendigos, carregados de objetos roubados em Itaqui, São Borja e

Uruguaiana"12.

Maria Odila da Silva Dias observa que nessa passagem, como em outras, o autor

reage

11 REBOUÇAS, André. Diário: a Guerra do Paraguai (1866). Introdução e notas de Maria Odila Silva Dias. São Paulo, IEB - USP, 1973, p. 85. 12 Idem, p. 101.

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"com indignação contra a mesquinhez do meio e do modo selvagem como se processava a

guerra; desejaria certamente vislumbrar a seu redor a grandeza e os aperfeiçoamentos

técnicos da moderna arte bélica européia, com que se deparava nas horas vagas dedicadas à

leitura de Leveneu, Maximes et instructions sur L'árt de la Guerre ou a conversar com o

Duque de Saxe sobre um novo canhão prussiano de carregar pela culatra."13

Embora a historiadora acredite que esses "comentários maldosos sobre os inimigos

expressam sentimentos de patriotismo ofendido do jovem soldado voluntário"14, é certo

também que, ao ridicularizar e minimizar a força e a competência do adversário o autor

acaba por também minimizar (e até certo ponto, ridicularizar) o vitorioso.

Como um observador menos preso que Taunay aos "mistérios" da natureza, como

alguém mais afinado com a maquinaria da modernidade (em sua acepção fundadora: a

bélica) era muito mais difícil para Rebouças enxergar a Guerra como metáfora, idealizá-la

como um espetáculo exclusivo de nobreza. Estamos diante de um diário que mesmo que

queira se afastar do mundo, é impelido a retornar à dureza do cotidiano. A realidade lhe

assolava as quimeras.

Quem realizará esse trabalho, reabilitando as quimeras que Rebouças via soçobrar

nos campos de batalha, de uma maneira tão dilacerante que ele só podia relatar para si

mesmo, serão os ideólogos dos anos 20, os historiadores dos Institutos Históricos, os

militares ou intelectuais como Baptista Pereira. Ideólogos que podiam contar com a

distância que os anos e a República permitem.

13 Idem, “Introdução”, p. 5. 14 Idem, p. 6.

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Baptista Pereira, por exemplo, não cai nessa ambigüidade que atormentou

Rebouças. Para ele é necessário, mais do que tudo, creditar forças e perigos ao Paraguai,

para valorizar a vitória brasileira. Tratava-se de elaborar uma estratégia de guerra contra o

passado que Rebouças gostaria ter deixado esquecido, mas diante do qual não podia, em

suas noites escuras, ao menos deixar de transmitir seu horror para o interlocutor mudo que

era seu diário.

O pesadelo de Rebouças fez Lobato acordar para as fantasmagorias da Guerra e sua

presença e peso na constituição do Brasil moderno. Uruguaiana e a Guerra do Paraguai,

vistas pelo olhar ambíguo e doloroso de Rebouças, levaram Lobato esboçar uma violenta e

satírica reflexão sobre história, memória, guerra e patriotismo, onde a idéia da estetização

da guerra como fator de manipulação política e manutenção do estado de violência na

sociedade, desenvolvida em “O pai da Guerra”, é retomada:

“Uruguaiana!... Palavra sonora que sugere mil coisas distantes, apagadas já, apesar de

transcorridos menos de sessenta anos da tragicomédia de Canabarro e Estigarribia, dois

hipopótamos, afins na bravura e na incapacidade mental. Foi de ontem a Guerra do

Paraguai; seus veteranos ainda vivem por aí ao léu, às dezenas; no entanto, parece um fato

de priscas eras – tão rapidamente o Brasil evoluiu daí para cá, aos pinotes. Uruguaiana está

na história devidamente estilizada ao sabor do paladar patriótico. Tem isso a história de

generoso: estiliza os fatos, descasca-os dos realismo dolorosos, desfigura-os num sentido

estético. É o meio da humanidade poder ver-se com bons olhos...”15

15 LOBATO, Monteiro. “Uruguaiana”, in: A Onda Verde e o Presidente Negro. Op. cit., pp. 95-96.

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Nesse ponto, o texto e a fluência ensaística das idéias fazem o crítico de arte

empedernido e mal humorado se encontrar com um surpreendente crítico da história e das

mentiras do Estado modernizador brasileiro – seja o Estado monárquico de antes, seja o

republicano de sua época. Para fixar a imagem dessa mentira, Lobato aproxima-a da cor

azul, para ele a maior ilusão da natureza. Pois uma paisagem ou uma montanha azulejante à

distância revela-se, na proximidade do olhar crítico, um truque. A montanha de longe pode

evocar a estabilidade tranqüila do azul de safira, mas de perto é só “aspereza, precipício,

perambeira, bossoroca, mata híspida tramada de cipós e arranha-gato. E não é azul”16.

O crítico da história deve proceder com a mesma aproximação destemida, negar o

azul dos grandes homens e de seus feitos. Porque quando nos aproximamos disso tudo, “o

azul histórico descora, morre e tudo fica prosaico, colorido da grisalha suja das coisas

contemporâneas”. Essa aproximação, essa descoloração da pintura “azul” da história, é o

que Lobato aprende com o diário de André Rebouças. É também a base de seu esforço

desmistificador, numa época em que isso parecia tão difícil:

“Uruguaiana caiu, pois, de madrugada; e estaria terminada a guerra se Pedro II não

cometesse o erro de reincidir no erro de López, invadindo-lhe os domínios. Essa invasão

custou rios de dinheiro e de sangue, amamentou a Argentina e deu com a monarquia em

terra. Cinco anos de guerra foram suficientes para desenvolver entre nós o germe do

militarismo, o qual, senhoreando-se da situação, fez uma República para uso e gosto dos

militares. Do ponto de vista humano, bem como do ponto de vista imperial, prosseguir na

16 Idem, p. 96. Note-se de passagem que a crítica ao azul da montanha pode ser vista também como a negação da idealização da natureza em Taunay. Analisei essa questão em "Literatura e política no Visconde de Taunay". In ALMEIDA, A. M. de, ZILLY, B., LIMA, E. N. de. De sertões, desertos e espaços incivilizados. Rio de Janeiro: MAUAD/FAPERJ, 2001.

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guerra foi um desastre. Uruguaiana deveria ter sido um ponto final. O fazê-la vírgula, deu

com o Império em terra. Que grande ciência, na política, a ciência da pontuação!...”17

Pintura e Literatura, cor azul e pontuação: esses os princípios lobatianos. Esse

projeto de descolorir a história, de negar seu azul celeste, tão distante dos esforços de sua

época, é consubstanciado num esboço literário chamado “Voluntários da Pátria”18. Se

algumas de suas idéias, timbres e inflexões não tiveram grandes influências imediatas, não

se pode culpar Lobato, mas apenas as formas e as profissões de fé que tomaram a História

do Brasil até muito recentemente.

O início desse “conto”, vamos chamá-lo assim por enquanto, é marcado pelo que já

foi descrito em mais de uma oportunidade como a “obsessão” de Lobato com a idéia de

“decadência”. Também aqui a ação se desenrola numa das “cidades mortas”. Mas, como

disse Marisa Lajolo, “as cidades mortas de Lobato não morreram de morte natural”19.

Sabemos que na literatura adulta lobatiana, especialmente em seus contos, esse processo de

análise da decadência, simbolizada pelo colapso imposto à tradição e ao estilo de vida rural,

baseia-se numa crítica ao progresso compreendido como predador do modelo social erigido

em torno da sociedade agrícola e provinciana. Assim, os contos de livros como Urupês ou

Cidades Mortas querem encenar em seu movimento a passagem de um Brasil pré-

capitalista para uma ordem capitalista acelerada e implacável, centrada no mundo urbano-

industrial.

17 Idem, p. 99. 18 LOBATO, Monteiro. “Veteranos do Paraguai”, in: A Onda Verde e o Presidente Negro. Op. cit, pp. 35-40. 19 LAJOLO, Marisa. “Monteiro Lobato, o mal-amado do Modernismo brasileiro”, in: Contos Escolhidos. São Paulo, Brasiliense, 1996, p. 9. Da mesma autora, conferir Monteiro Lobato. São Paulo, Brasiliense, col. “Encanto Radical” n° 72, 1985.

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Em “Voluntários da Pátria”, entretanto, não é esse o quadro, melhor dizendo, não

são apenas essas as razões do quadro desolador. No contexto do livro, nem se pode dizer

que se trata exatamente de um conto. Sua forma aproxima-o tanto da narrativa ficcional,

com os elementos lobatianos da decadência rural, quanto da crônica ou da impressão de

testemunho. A primeira frase diz apenas: “Foi na rua da Palha da cidade de Três

Estrelinhas”. Para o leitor das fantasias infantis de Lobato, a menção aparentemente

zombeteira de “rua da Palha” ou de uma cidade chamada “Três Estrelinhas” parece deixar

claro que se trata de uma ficção tipicamente sua. Mas o enigmático “Foi” denota a presença

do narrador nos fatos. À essa frase breve, segue-se um longo trecho entre parêntesis cuja

função é explicar o nome da rua – que ficamos sabendo ser comum a muitas cidades

interioranas. Mas, fundamentalmente, o parêntesis nos introduz o cenário desolador de

terras devastadas, esse já típico da situação dos contos. Um lugar onde a grama dos pastos

não passa de “uma hipótese só admitida pelo dono deles”, uma terra tão desolada que

mesmo “os animais ali metidos passam a noite ‘rapando’ o solo em busca do ‘cheiro da raiz

da grama’”.

Ao longo parêntesis, entremeado de aspas denotando a transcrição de depoimentos,

segue outra expressão de testemunho a balançar a certeza do que estamos lendo: “Foi lá que

vimos...”. E o que ela introduz é uma cena de composição profundamente pictórica, que faz

lembrar um quadro de Almeida Júnior ou de outro de nossos retratistas daquele mundo

destroçado, tão ao gosto acadêmico de Lobato:

“Foi lá que vimos, uma tarde, sentado num mocho de três pernas, à porta dum casebre, esse

velho cujo cadáver ali passa na rede com rumo ao cemitério. De bruços num porretão de

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cego, atentamente ouvia ler notícias da Grande Guerra a um menino descalço, de cócoras à

soleira da porta”20.

A cena também pode nos remeter a um quadro de Debret e seus meninos descalços.

Mas esse menino, agora, aparece em contraposição ao ancião da guerra. Tudo se passa, se

forçarmos a aproximação, como se o velho veterano fosse um daqueles garotos de Debret,

que depois da brincadeira de guerra, acabou por participar de uma de verdade, enquanto o

outro menino que lhe seguiu está agora no contexto de outra guerra, esta entretanto distante

dele. O velho é um fantasma que o passado lança ao presente.

A novidade aqui, creio que também para os leitores de Lobato, é que, nesse texto

pelo menos, a razão da decadência, simbolizada pelo velho cego, não está diretamente

ligada às forças econômicas e ao rolo-compressor do progresso, mas a um fato do passado

que fantasmagoricamente reaparece no presente.

O narrador-testenhuma aprecia a cena inusitada e põe-se atento à leitura do menino

e à reação do velho. Ao ouvir o nome “Curupaiti”, pronunciado pelo ancião como

murmúrio em resposta às histórias do desenrolar da Grande Guerra, percebe estar diante de

um veterano soldado da Guerra do Paraguai. Alguém lhe informa tratar-se realmente de um

veterano que vagava quase como mendigo, apenas “roendo a meia pataca do soldo”. Seu

nome era Pedro Alfaiate.

Pedro Alfaiate era um daqueles velhos que, às dezenas, rondavam como sombras os

campos do interior (como o próprio Lobato assinalou anteriormente). Velho e soldado,

veterano de um passado que já então havia se tornado história oficial, ele era a memória

20 LOBATO, Monteiro. “Veteranos do Paraguai”, op. cit, p. 35.

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viva, ou semi-viva, a contra-história que ainda podia ser encontrada para ser consultada,

como um livro:

“Os velhos são livros vivos compostos pela Vida. Nem sempre interessantes, aliás. (...) Mas

um velho soldado é sempre um livro interessante, rico de incidentes, pitoresco e não raro

heróico. Aproximei-me, pois, do velho soldado e folheei-o ao acaso, como a um livro

incomum em montra de belchior.”21

Se a teoria da “cor” da crônica enunciada por Walter Benjamin, explicitada na

epígrafe desse ensaio, pode ser relacionada com a boutade lobatiana da falsidade azul da

história, a maneira de relacionar a narração dos velhos combatentes também pode

aproximar os dois autores, de resto tão distantes entre si.

Em seu célebre ensaio sobre Nicolai Leskov, o filósofo alemão também relacionou a

perda de experiências narráveis e transmissíveis aos horrores da guerra, justamente a

Grande Guerra de 1914 que nosso velho veterano de 1870 ouvia e comparava. Segundo

Benjamin, a forma narrativa origina-se a partir da possibilidade de transmissão de

experiências intercambiáveis. Os marinheiros, os comerciantes, os aprendizes migrantes das

oficinas medievais e os soldados que voltavam das batalhas constituem os tipos arcaicos

fundadores do “reino narrativo”. Mas a guerra moderna, a guerra da técnica que imita da

esfera da produção de massas a capacidade industrial de matar, matou também no soldado

sobrevivente aquelas experiências narráveis cujo caráter exemplar era o fundamento de sua

sabedoria:

21 Idem, ibidem, p. 36

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“No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha

não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável. E o que se difundiu dez

anos depois, na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em comum com uma

experiência transmitida de boca em boca. Não havia nada de anormal nisso. Porque nunca

houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela

guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela

guerra de material e a experiência ética pelos governantes.”22

O velho soldado narrador de Lobato insere-se nesse categoria, com as diferenças de

praxe. Afinal, sua experiência trágica de guerra antecede em décadas a experiência bélica

da guerra total européia à qual Benjamin se refere como marco. Não foram poucos aqueles

que assinalaram que a Guerra da Tríplice Aliança antecipou as guerras do século XX.

Também nesse sentido estávamos na vanguarda da decadência. Seja como for, Pedro

Alfaiate pode até ter muito o que contar, como veremos, mas tudo o que pode narrar de sua

experiência subordina-se a uma tragédia que se inscreve mais na ordem do inenarrável que

em qualquer outra que se possa alinhar na categoria das experiências exemplares. Notemos,

apenas de passagem, que a ausência de testemunhos, lendas e fábulas de homens comuns

sobre a Guerra do Paraguai não deve ser creditada apenas ao fato concreto de que a imensa

maioria das tropas era formada por analfabetos, escravos, etc. O fato de que um

acontecimento de tal magnitude na vida de milhares de pessoas tenha deixado pouquíssimas

22 BENJAMIN, W. “O Narrador – Considerações sobre a obra de Nicolai Leskov”. In: Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas de Walter Benjamin, v. 1. São Paulo, Brasiliense, 1986, p. 198.

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marcas na memória coletiva é sintomático desse estado de empobrecimento e falta de

sentido construtivo dessa experiência em nossa vida cotidiana desde então.

Mas voltemos ao narrador que Lobato encontrou como quem encontra um resto

arqueológico pronto a se perder para sempre. Como o rapaz de Araraquara que comoveu

Antonio Candido, o velho Pedro Alfaiate também conta que foi “para a guerra menino – 19

anos – mas com um gosto: voluntário de verdade”23:

“Não existe horror maior do que a guerra. A gente durante a peleja vira monstro e perde a

qualidade de homem. Matar, matar!... É um delírio, uma perfeita bebedeira de ferocidade.

Para que mentir? Nesse momento matar é uma delícia – matar, matar, matar... Enterrar o

ferro agudo na carne viva do inimigo, urrar ao vê-lo esguichando sangue e dobrado de dor,

arrancar o ferro da ferida, saltar por cima do ferido que se estorce, atirar-se a outro que vem

feito sobre nós, fugir-lhe ao golpe, retrucar, varar-lhe o peito...”24

Daí por diante, quase até o final, a história é apresentada em falas antecedidas por

travessões. Pedro Alfaiate deixa fluir sua memória. O interlocutor quase nunca intervém;

suas expressões e questionamentos são resumidos a um simples sinal de interrogação (“?”).

A discurso que segue ao sinal nos indica a pergunta suprimida: por exemplo, após a

descrição acima citada do horror da batalha, segue-se a interrogação; a resposta do

depoente começa por “– O Peor? Todos eram peores...”. Não se tratava de uma mera, e

brilhante, estratégia de síntese, mas da forma que Lobato encontrou de fazer fluir o rio da

23 LOBATO, Monteiro. “Veteranos do Paraguai”, op. cit, p. 36 24 Idem, p. 37.

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memória, expondo secamente o horror da lembrança do episódio e sua marca naquelas

terras desoladas.

De fato, é o horror que cerca tudo. Passado e presente, ligados pela aproximação da

guerra que encerrou o século XIX brasileiro e da que iniciava o século XX, a saber: a

Grande Guerra européia e sua conseqüência na América, em especial no mundo do interior,

em guerra contra o progresso e a “modernidade”, a mesma que engendrara ambos os

conflitos. Por isso a aproximação da técnica da batalha de ontem e de hoje é apresentada

como continuidade e paralelo. A descrição das trincheiras do Paraguai se aproxima

assombrosamente das famosas lutas de trincheiras da I Guerra Mundial, que o garoto lia

para o veterano cego:

“Abatizes são uma tranqueira tecida de ferros pontudo fincados no chão, paus apuados a

galhos dum espinheiro terrível que há muito por lá. Eles enredavam tudo isso em frente das

trincheiras, como dizem que hoje fazem na Europa com o arame farpado (...)”25.

Deixar falar a memória do homem simples era a estratégia lobatiana para dinamitar

os discursos da boa guerra e a força do heroísmo cívico que, como vimos, foram a duras

penas construídos desde a ironia cínica machadiana até o cinismo asséptico de Baptista

Pereira. O Jeca Tatú destroçado de Lobato era a contraprova da historiografia e da memória

cívica nacional. Era o testemunho definitivo que os positivistas procuravam mas não

podiam encontrar, pois seu olhar só via os documentos oficiais, os depoimentos solenes. A

cantiga infantil do “Itororó”, celebrizada na memória das crianças, como identificou

25 Idem, ibidem.

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Gilberto Freyre26 citado na introdução desse trabalho, também é confrontada pela fala do

velho cego, onde horror e tristeza se unem ao heroísmo inútil que tão sutilmente Antonio

Candido apresentou nas cartas de seu “tenentinho”27 que, se tivesse sobrevivido, poderia

estar fazendo companhia a Pedro Alfaiate em alguma pinguela do agora decadente mar de

cafezais que a vitória na Guerra ajudou a criar:

“Em Itororó... Que pensa que era Itororó? Uma pequena ponte de 4 a 5 metros de largo,

sem guardas laterais, armada sobre um ribeirão. Do outro lado, a cem metros, os paraguaios

assestaram a artilharia, de modo a varre-la a fio comprido. Era forçoso passar. Passamos.

Mas que carnificina! Os nosso vacilavam diante daquela morte certa e foi preciso que

Osório e Caxias se atirassem à frente, num completo desprezo pela vida (...); em certo

ponto a cavalaria abriu-se, os canhões despejaram metralha, fazendo uma brecha no

quadrado inimigo. Por ela a cavalaria entrou como um furacão, destroçando tudo. Terrível,

terrível!!...”28

Tudo era “terrível”, tudo era “triste”; a bravura, como a que se concede a Osório e

Caxias, a generosidade que o homem simples via no conde d’Eu, o heroísmo das tropas, até

mesmo do exército paraguaio que “deixava-se esmagar mas não cedia a razões”. Tudo

encaminhava para que a façanha fundadora da nacionalidade não fizesse sentido algum, a

não ser o de deixar feridas definitivas nos corpos e na lembrança: “Estou velho e cego, mas

vejo – vejo sempre o horripilante quadro. Meu Deus, que horrorosa coisa a guerra!...”. Só

26 Cf. FREYRE, Gilberto. Ordem e Progresso. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962. 27 CANDIDO, Antonio. “As cartas do Voluntário”. O Observador Literário. São Paulo, Conselho Estadual de Cultura/Comissão de Literatura, 1959. 28 LOBATO, Monteiro. “Veteranos do Paraguai”, op. cit, p. 38.

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lhe restava na memória a lembrança boa das roupas e alimento entregues a cerca de três mil

mulheres, rotas e famintas: “Foi bonito, foi, foi...”29

Nesse ponto, o depoimento, ou a história, de Pedro Alfaiate é interrompida. Uma

linha pontilhada demarca uma situação e outra, e a história toma outro rumo. O narrador

silencioso e interrogativo cede lugar a outro que fala e interpreta. Apresenta sua defesa do

“verdadeiro tipo do herói humilde, que o é sem saber”. À ele antepõe um outro, de cuja

identidade nada sabemos. O tom é de conclusão moral, inquisidora e exemplar. Esse novo

soldado é o oposto daquele porque é um covarde. Escondeu-se na enfermaria durante o

combate de Lomas Valentinas e de Estero Ballaco. Cínico, descreve assim sua passagem

por Tuiutí:

“– E em Tuiutí?

– Ah, gosei! Assisti à batalha inteira sem arredar pé do meu posto. Vi tudo e posso

descrever a coisa como a palminha das mãos.

– Assistiu-a da janela do hospital, com certeza...

– Não, Detráz dum belo cupim...”30

A covardia e o cinismo eram sua marca, por isso, ao contrário do outro, “era incapaz

de dar às suas narrativas uma impressão belicosa”. A anteposição entre o heroísmo do

homem simples e desse outro, cuja facilidade em esconder-se dos conflitos pode significar

tratar-se de alguém com certa patente e favores, além de simples malandragem, é evidente e

bastaria para encerrar a nota. Mas se pensarmos bem, podemos concluir que o heroísmo não

29 Idem, pp. 39-40. 30 Idem, ibidem.

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serviu ao Alfaiate mais do que a covardia ao anônimo. O herói e o desertor sobreviveram.

O primeiro destroçado, o segundo sem demostrar qualquer crise de consciência por seus

atos antipatrióticos. A desgraça que acometeu o primeiro dava certa razão ao segundo. O

herói tinha apenas aparentemente mais lembranças, mais experiências para relatar que o

covarde. Pois as experiências que trazia não podiam lhe ensinar nada mais que o fracasso e

o horror que experimentou. A destruição de sua humanidade lhe deixou a miséria e a

cegueira – imagem terrível de uma situação que condena o homem a viver dentro da

escuridão de suas lembranças pavorosas. A “pátria”, a “nação” pela qual lutou como

voluntário verdadeiro o abandonou na miséria das cidades mortas, também elas

abandonadas, velhas e cegas aos olhos do progresso que fazia história empilhando seus

derrotados.

Então, o covarde passa a ser visionário em sua recusa a participar dessa farsa, e o

herói apenas o personagem de um embuste que somente suas lembranças e suas trevas

podiam denunciar. O passado não era mais seu companheiro, tanto quanto não era para o

covarde. Seu fim era ouvir a mesma marcha arrasadora do progresso armado fazendo pelo

mundo, no desenrolar da guerra continental européia que a Guerra da Tríplice Aliança

antecipou, outras vítimas como ele próprio, obrigadas a sobreviver também ao martírio de

serem heróis sobreviventes. Nas cidades mortas de Monteiro Lobato, com seus personagens

fantasmagóricos, o sonho da redenção do progresso pelo conflito e o destino dos humildes

no mundo do capitalismo que orientaria todo o século XX se desfazia em pesadelo cego,

narrado em curto telegrama nas mãos de mais um menino, de mais uma criança que esse

tempo também levará.