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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS INSTITUTO DE PSICOLOGIA PÓS-GRADUAÇÃO EM TEORIA PSICANALÍTICA MILENE SANTIAGO NASCIMENTO AD HOMINI PER LITTERAS PULSÃO E LINGUAGEM DE FREUD A LACAN RIO DE JANEIRO 2008

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

INSTITUTO DE PSICOLOGIA PÓS-GRADUAÇÃO EM TEORIA PSICANALÍTICA

MILENE SANTIAGO NASCIMENTO

AD HOMINI PER LITTERAS PULSÃO E LINGUAGEM DE FREUD A LACAN

RIO DE JANEIRO

2008

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MILENE SANTIAGO NASCIMENTO

AD HOMINI PER LITTERAS (AO HOMEM ATRAVÉS DAS LETRAS)

PULSÃO E LINGUAGEM DE FREUD A LACAN

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria Psicanalítica.

ORIENTADORA: Profª. Drª. Regina Herzog CO-ORIENTADORA: Profª. Drª. Maria Isabel de Andrade Fortes

RIO DE JANEIRO 2008

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AD HOMINI PER LITTERAS PULSÃO E LINGUAGEM DE FREUD A LACAN

Milene Santiago Nascimento

Profª. Drª. Regina Herzog e

Profª. Drª. Maria Isabel de Andrade Fortes

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria Psicanalítica. Aprovada por: Profª. Drª. Regina Herzog Profª. Drª. Maria Isabel de Andrade Fortes Prof. Dr. Waldir Beividas

Rio de Janeiro Fevereiro/2008

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À minha irmã MELISE, mais uma vez, por caminhar lado a lado, em todos os caminhos sinuosos, oferecendo-me as mãos, olhos, ombros, ouvidos... À minha eterna professora Drª. ROSAURA OLDANI FÉLIX, pela persistência... Ao JÚNIOR, por suportar os momentos de insanidade, endossá-la e ao mesmo tempo, apaziguá-la... Aos meus PACIENTES e aos que virão, motivos de eterna dedicação...

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AGRADECIMENTOS

À UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO e ao PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEORIA PSICANALÍTICA, por me proporcionarem o acesso à

pesquisa.

À CAPES, pelo financiamento da pesquisa, sem o qual não chegaríamos até aqui.

À professora Drª MARIA ISABEL FORTES, que me acolheu no momento de maior angústia, com preciosas discussões, olhar criterioso, transformando as dúvidas e

paralisias em motor de trabalho.

À professora Drª REGINA HERZOG, sempre muito gentil, colocou-se como ponte neste caminho, oferecendo ricas colaborações para a pesquisa.

Ao professor Dr. WALDIR BEIVIDAS, pelo acolhimento inicial, leitura atenciosa,

criteriosa, pelo pensamento vasto, que desviou o tema desta dissertação para um mundo mais rico, e, ao mesmo tempo, muito obscuro. Significou referência teórica

fundamental na construção deste trabalho. Segundo Daniela, “não tem como não ver as mãos do Waldir neste trabalho”...

Aos meus pais MARCOS e SANDRA, pelo incansável incentivo e pelo olhar de carinho

nas horas de fraqueza...

À tia SUSY e à queridíssima NICOLE, pelos intermináveis sorrisos...

Às amadas vovós SOLANGE e LOLINHA, pelos mimos, abraços, e pela fala orgulhosa “é minha neta”...

Aos primos-irmãos... vocês sabem quem e o que são...

Às amizades construídas no mestrado, por estarem no mesmo barco, mas, mesmo

assim, ofereceram uma palavra de força: Dani, Carol e Fernanda.

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RESUMO

Esta dissertação se propõe articular a relação entre o conceito de pulsão e de significante, apontando a impossibilidade de se pensar em um fora da linguagem. Portanto, tal articulação permite inferir que não há como dissociar pulsão e linguagem, indicando-a como a incidência da linguagem no corpo. Considerando as características da pulsão e a noção lacaniana de significante, é possível postularmos que a pulsão é significante, à medida que é a força constante da pulsão que engendra o movimento da cadeia significante. O referencial teórico utilizado é a teoria psicanalítica de Freud e Lacan, e, como bibliografia complementar o pensamento estrutural a partir de Mauss e Lévi-Strauss. Utilizamos, ainda, as reflexões sobre o estruturalismo e a lingüística de M. Arrivé e W. Beividas. Palavras-chave: Psicanálise, pulsão, linguagem, significante.

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RESUMÉ

Cette dissertation se propose a articuler la relation parmé le concept de la pulsion e du signifiant, en montrant l’impossibilité de penser en une dehors du langage. Alors, tel articulation permis inferér que n’exist pas comment dissocier la pulsion et la langage, en l’indicant comme l’incidence du langage aux corps. En considérant les caractéristiques de la pulsion et du signifiant, c’est possible postuler que la pulsion est signifiant, puisque c’est la force constant de la pulsion que engendre le mouvement du signifiant. Le référentiel théorique utilisé est la théorie psychanalitique du Freud et Lacan, et, comment la bibliographie complémentaire est le pensée structurel en partant du Mauss et Lévi-Strauss. On utilisée, encore, les reflexiones sur le structuralisme et la linguistique du M. Arrivé et W. Beividas. Mot-clé: Psychanalyse, pulsion, signifiant, langage.

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SUMÁRIO

Introdução ............................................................................................................09

Capítulo I: A problemática da linguagem para a psic análise. .........................17

1.1 A psicanálise no solo da linguagem.....................................................19

1.2 As histéricas de Freud: um corpo que fala...........................................28

1.3 A linguagem e a dimensão da alteridade.............................................34

Capítulo II: O modelo da linguagem em Lacan ................. ...............................46

2.1 O pensamento estrutural.....................................................................48

2.2 Lacan: linguagem, simbólico e estruturalismo.....................................57

2.2.1 A linguagem e a lógica significante............................................63

Capítulo III: A gramática pulsional em Freud ...................................................71

3.1 A lógica pulsional até 1915...................................................................74

3.2 A pulsão a partir de 1920..................................................................... 93

Capítulo IV: A pulsão em Lacan: pulsão e significan te....................................99

4.1 Toda pulsão é pulsão de morte?........................................................100

4.2 O movimento pulsional.......................................................................118

4.2.1 A pulsão e a cadeia significante................................................118

4.2.2 O circuito pulsional e a alteridade..............................................121

Considerações finais .........................................................................................127

Referências ........................................................................................................131

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INTRODUÇÃO

“O problema não é inventar. É ser inventado hora após hora e nunca ficar pronta nossa edição convincente”.

(CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, 1984/2007:11)

A problemática do corpo na psicanálise tem sido tema de muitos trabalhos. Isto

porque esta questão envereda por caminhos interessantes, obscuros e por pontos de

intersecção com outras ciências. Destarte, traz inúmeras maneiras de concebê-lo, bem

como a possibilidade de variados enfoques.

Tal problemática do corpo não se delineia apenas na psicanálise. Ao longo do

percurso da ciência, verificamos desde Platão discursos sobre o corpo. Não apenas

discursos verbalizados, mas sociais, ou seja, historicamente verificamos diferentes

maneiras de se conceber essa problemática e inseri-la num discurso social. Este produz

a cada momento histórico-cultural, maneiras de manipular o corpo e utilizá-lo para fins

coletivos.

Na psicanálise, verificamos Freud afirmar o corpo com uma lógica de

funcionamento diferente da anátomo-fisiologia, não se reduzindo apenas a ela. O corpo

das histéricas; a dinâmica do narcisismo, que se traduz em formas diferentes de

corporeidade (do auto-erotismo ao corpo do narcisismo secundário); as pulsões

parciais; o corpo erógeno e a sexualidade perverso-polimorfa; o corpo que induz a um

questionamento simbólico da descoberta da diferença sexual... todos esses pontos são

indícios da relação do corpo com o psiquismo, à medida que denunciam a possibilidade

de subjetivação.

O que verificamos em Freud é um fato fundamental: o corpo é atravessado pela

linguagem. Não responde mais a uma ordem natural, não se trata do corpo do instinto,

mas de um corpo cortado, marcado, segundo Lacan, de uma carne cortada pela libido

(1960/1998:862). A linguagem ultrapassa o corpo e vai mais longe do que ele: o

significante marca o corpo, constituindo-o.

A proposta de estudar a pulsão percorreu um longo caminho até se delinear. A

pesquisa inicial objetivava o estudo do corpo, mais especificamente, das marcações

corporais na contemporaneidade. Partindo desse intento, buscamos compreender o

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estatuto do corpo na psicanálise, compreender a relação entre linguagem e corpo.

Deparamo-nos com alguns pontos. O primeiro deles é a questão do corpo simbólico,

marcado pela pulsão. O corpo da psicanálise é um corpo pulsional, desnaturalizado,

resultado de uma operação simbólica. O segundo refere-se à questão da alteridade, ou

seja, o corpo é constituído numa alteridade, a partir da intervenção do outro, que

inscreve o sujeito e o corpo na ordem simbólica. O terceiro remonta-se à distinção

muitas vezes encontrada entre o corpo imaginário, o corpo simbólico e o corpo real.

Tais pontos nos suscitaram algumas questões, que nos levaram a delinear nosso tema.

Considerando que o que se trata na psicanálise é o sujeito enquanto

desnaturalizado, inscrito nas leis da linguagem e o próprio estatuto simbólico do corpo,

levantamos a questão da impossibilidade de algo que estivesse fora das leis da

linguagem. Dessa forma, pensamos não haver sentido falar numa distinção entre corpo

simbólico, imaginário e real, mas sim, que se trata de um corpo em suas vertentes real,

simbólica e imaginária, sem que isso signifique que o real e o imaginário estejam fora

do registro simbólico e sem que se tratem de níveis distintos. Compreendemos que o

real do corpo e sua dimensão imaginária constituem-se a partir do simbólico. Outra

questão por nós levantada resultou da distinção entre pulsão e instinto, do postulado de

Freud de que a sexualidade humana seria perverso-polimorfa e do corpo erógeno

(1905). Estes pontos atestariam para a impossibilidade de dissociar pulsão e

linguagem. A partir daí, refletimos que não se poderia oferecer outro estatuto da pulsão

que não o da linguagem. Neste momento, deparamo-nos com a pulsão de morte. O fato

de esta estar relacionada com um além do princípio de prazer, com algo de primitivo do

aparelho psíquico, com a compulsão à repetição, nos levaria a acreditar que nossas

hipóteses cairiam por terra, à medida que a pulsão de morte não seria articulável à

cadeia significante e remeteria ao real. No entanto, o que verificamos com Freud, Lacan

e o estruturalismo é que se trata, nos três registros, de uma dinâmica de

complementaridade, sendo o real e o imaginário engendrados por uma operação

simbólica. A pulsão de morte seria, assim, concebida como resto desta operação,

podendo, com Lacan, ser articulada ao significante.

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Diante dessa configuração, vimos a insistência do problema da pulsão e da

relação entre os três registros sendo desenhada. Assim, dentro do campo do corpo, nos

aprofundamos especificamente no terreno das pulsões.

Muitas são as maneiras de se conceber a pulsão. Alguns adotam um ponto de

vista mais quantitativo, concebendo-a como pura intensidade; outros ressaltam sua

relação com o objeto; e terceiros concebem-na como um desvio das necessidades

naturais, ocasionado pela inscrição da linguagem. Decidimos adotar o ponto de vista de

Lacan e da lingüística, compreendendo a pulsão como uma dinâmica, na qual estão em

jogo a alteridade, das Ding e a força constante, que desembocam do que Lacan aponta

como fundamental: o circuito pulsional. Deste, uma conseqüência é extraída: a

impossibilidade de separar pulsão e linguagem, isto é, a pulsão é sempre do domínio

do significante. Por essa via, definimos compreender como ocorre a articulação pulsão

e significante como objetivo deste trabalho.

A meta desta pesquisa é demonstrar a impossibilidade de se pensar a pulsão

fora da linguagem e traçar alguns caminhos pelos quais podemos compreender a

articulação da pulsão como significante. Para tanto, utilizaremos o referencial teórico de

Freud e Lacan e, como bibliografia complementar, o estruturalismo de Mauss e Lévi-

Strauss e a lingüística, sobretudo Beividas.

O fio que conduz nossas pesquisas passa pela compreensão da relação entre

linguagem e psicanálise. Em seguida, propomos pensar, a partir do estruturalismo, a

relação entre os registros real, simbólico e imaginário, para afirmarmos a

impossibilidade de se propor um fora da linguagem. Feitas essas duas etapas,

pretendemos estudar a pulsão em Freud, para definir o conceito de pulsão e propor que

o autor a alocava no registro da linguagem. Partindo dos postulados freudianos,

pesquisaremos a pulsão em Lacan sob dois pontos: da ênfase na pulsão de morte e a

articulação com o significante. No primeiro, pretendemos trazer contribuições para

compreender os argumentos com os quais Lacan afirma que toda pulsão é pulsão de

morte. Não objetivamos trazer conclusões ou tomar esta afirmação como uma

assertiva, mas questioná-la e trazer caminhos por onde podemos pensar essa

articulação. Compreendendo o “monismo pulsional” trazido por Lacan, obtemos uma

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das vias pelas quais podemos enveredar no segundo ponto, que é relacionar pulsão e

significante.

No primeiro capítulo, trabalharemos o modelo da linguagem em Freud. Para essa

pesquisa, tomamos como texto central Contribuição à concepção das afasias, de 1891.

É a partir do postulado de Freud de que o aparelho psíquico é um aparelho de

linguagem e que ele apenas se constrói diante de outro aparelho de linguagem, que

buscaremos o gancho para o desenvolvimento de nossas hipóteses. Nesse sentido,

Freud já supunha os efeitos da linguagem e sua anterioridade na constituição do

sujeito. Aloca-a, de saída como motor dos fatores humanos, como aquilo que retira o

sujeito das condições animais, inscrevendo-o numa outra ordem. Apesar de se tratar de

um trabalho ainda neurológico, verificaremos que alguns autores o situam num lugar

limítrofe entre a neurologia e a psicanálise.

Já em 1891, Freud propõe que o aparelho é dinâmico, considerando a

associação entre as representações como algo da ordem de um processo. Assim, são

dois os pontos fundamentais presentes neste trabalho que conduzirão nossas

pesquisas: a linguagem como condição para a construção do aparelho psíquico e,

conseqüentemente, da psicanálise e a introdução da alteridade como fundamental

nessa constituição. Tais pontos terão como desdobramento os questionamentos acerca

dos três registros propostos por Lacan e a compreensão da pulsão como significante.

Portanto, o que constataremos com Freud é que já havia a noção de estrutura e

a idéia de uma máquina simbólica como metáfora do aparelho psíquico, tendo a

diferença como base da constituição psíquica. Para trabalhar esses conceitos, além de

utilizarmos o trabalho de Freud, tomaremos como bibliografia complementar e

estabeleceremos um diálogo entre Roland Kuhn (prefácio da edição francesa do texto

sobre as afasias), Jacques Nassif (Freud L’inconscient) e Joel Birman (“A psicanálise no

solo da linguagem”). Com este diálogo, trabalharemos o paralelismo psicofísico forjado

por Freud. As noções de processo e associação trazidas por Freud nos levam à

constatação de que não se separa corpo e linguagem, o que demarca esse paralelismo

como uma “concomitância dependente”. Freud fala, dessa forma, de uma

simultaneidade entre corpo e linguagem, entre pulsão e representação. Ainda no

trabalho sobre as afasias, verificaremos a concepção estrutural presente em Freud, que

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se inicia com a proposta de que o símbolo é o elemento mínimo do aparelho psíquico e

culmina no fato de que a pulsão é a causa ultima de toda atividade, ou seja, o elemento

último irredutível (1938/1996:161).

Tomando as diretrizes deixadas por Freud no trabalho das afasias, buscaremos

compreender como a psicanálise se constituiu no solo da linguagem, somando estas

diretrizes aos estudos sobre a histeria. É no momento em que Freud se depara com o

corpo das histéricas que repensa a lógica anátomo-fisiológica e verifica que algo

funciona para além dessa lógica, propondo o corpo simbólico, o corpo erógeno, o corpo

da pulsão. Nessa configuração abre-se espaço para a construção da teoria das pulsões

e suas formulações sobre o funcionamento do aparelho psíquico. Destarte, diante

desse quadro, buscaremos catalogar em Freud algumas passagens nas quais

verificamos a incidência da linguagem em seu discurso.

Trabalhada a linguagem em Freud, no segundo capítulo nos centraremos em

Lacan para verificar o modelo da linguagem utilizada por ele e os acréscimos

empreendidos com a lingüística e o estruturalismo.

Antes de trabalharmos o modelo da linguagem em Lacan, julgamos ser

necessário abordar o pensamento estrutural, apresentando ao leitor suas

características fundamentais. Para tanto, nos apoiaremos, sobretudo, em Mauss e Lévi-

Strauss. Em nosso desenvolvimento acerca das formulações centrais do estruturalismo,

muito nos ajudarão as pesquisas de Arrivé (1999) e Beividas (1995; 2002), que

situaram Freud como um dos precursores do estruturalismo, à medida que ele

propunha um aparelho como uma estrutura dinâmica, constituída pela diferença e a

pulsão como elemento último do psiquismo.

Partindo do estruturalismo, trabalharemos sobretudo os textos “Função e campo

da fala e da linguagem em psicanálise”, de 1953; “A instância da letra no inconsciente”,

de 1957 e “Observações sobre o relatório de Daniel Lagache: ‘Psicanálise e estrutura

da personalidade’”, de 1960. Buscaremos traçar uma linha entre esses momentos da

obra de Lacan a fim de articular os três registros e demarcar que o modelo da

linguagem é definido por sua anterioridade em relação ao real e o imaginário, como

uma relação de complementaridade. Nesse sentido, considerando tais argumentos,

somado ao estudo do significante lacaniano, uma das hipóteses que lançaremos nesta

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dissertação é a impossibilidade de se pensar num fora da linguagem. É a partir deste

ponto que podemos articular a pulsão, ou seja, em termos estruturais, para então

trabalharmos a segunda hipótese, ou seja, a pulsão como significante.

Para articularmos esse segundo viés de nosso trabalho, no terceiro capítulo

percorreremos Freud em sua teoria das pulsões a fim de compreendermos como ela é

concebida. Verificaremos que a pulsão é a marca do corpo da psicanálise, é a

incidência da linguagem no corpo. Freud busca diferentes artifícios para demarcar o

lugar central da pulsão na psicanálise. Ao nos falar da pulsão a partir do corpo erógeno,

da sexualidade perverso-polimorfa, do auto-erotismo, do narcisismo, da força constante,

da compulsão à repetição, Freud demarca o lugar da linguagem na psicanálise. O autor

aponta (1894/1996:238) que a pulsão apenas pode ser concebida como tal a partir de

sua inscrição no psiquismo e, nessa operação de inscrição psíquica, faz-se

imprescindível a presença do outro. Isto é, a pulsão apenas se constitui como tal no

registro do simbólico. Quando nos fala da pulsão na chamada virada dos anos 1920,

Freud enfatiza algo de mais estrutural, mais primitivo, constitutivo do sujeito, não

inscrito no princípio de prazer, o que não significa que esteja fora da linguagem. Este

algo se coloca como resultado da operação do princípio de prazer, pressionando por

encadeamento. A pulsão de morte opor-se-ia ao princípio organizador do eu, à medida

que destrói essa organização. Destrói porque pressiona por encadeamento, para

funcionar sob a lógica do princípio de prazer. Ela é, nesse sentido, estrutural, porque

coloca em movimento um encadeamento, o próprio funcionamento da pulsão. Em 1938,

identifica a pulsão como a causa última da atividade psíquica.

Lacan destaca a pulsão de morte em sua teoria. É sobre ela que se situa para

abordar a pulsão. Nos Seminários 7 e 11, como veremos, trabalha a pulsão de morte

como a única pulsão, pois ela seria o que é estruturante do sujeito, a energia livre que

coloca em movimento a cadeia significante.

A escolha por estes dois Seminários se orientou devido ao fato de Lacan

trabalhar exaustivamente a articulação entre pulsão e significante. Acreditamos ser

nesses Seminários que Lacan aborda explicitamente tal relação, mais ainda, descreve

o que seria o fundamental da pulsão, ou seja, seu circuito.

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Em nosso quarto capítulo, para trabalhar o tema da pulsão de morte e o

significante, estabeleceremos quatro vias: compreender a pulsão de morte a partir do

simbólico, não podendo ela ser dissociada dele; a relação entre o conceito de

Vorstellungrepräsentanz e o significante; compreender a pulsão como responsável pela

operatividade da cadeia significante e aproximar o circuito pulsional da cadeia

significante.

Para que possamos percorrer esse campo, buscaremos no Seminário 7: a ética

da psicanálise, 1959-60 os pontos nos quais Lacan isola o real compreendido a partir

do simbólico, bem como a prevalência da pulsão de morte como estrutural. Passaremos

pelo estudo de das Ding, à medida que é o furo deixado pela extração do objeto na

experiência de satisfação que confere o caráter repetitivo da pulsão, ou seja, que

engendra o movimento pulsional. O conceito de Vorstellungrepräsentanz nos permitirá

compreender a simultaneidade entre pulsão e significante, à medida que este conceito

desloca a representação de um referente externo e aloca numa mesma dinâmica

pulsão e representação. Vorstellungrepräsentanz é designado como um elemento

associativo, combinatório e pulsional, o que leva Lacan a indicar que se trata de um

laço indissociável entre pulsão e linguagem.

Para compreender a pulsão de morte como estrutural, procuraremos destrinchar

as associações que Lacan faz entre a sua dimensão história e sua dimensão

significante. Estes pontos estão intrincados quando pretendemos articular a pulsão

como significante. Primeiro, Lacan nos diz que apenas podemos falar em pulsão de

morte a partir do primado do significante. Segundo, partindo de sua dimensão histórica.

Debruçando-nos sobre tais pontos, traçaremos um caminho na relação entre a

primeiridade do significante e a pulsão de morte. Posteriormente, trabalharemos a

dimensão histórica da pulsão, estabelecendo um diálogo com Safatle. Em seu trabalho

“A teoria das pulsões como ontologia negativa” (2006), o autor articula a dimensão

histórica da pulsão com a possibilidade do sujeito de fazer uso da linguagem. A relação

entre pulsão de morte e significante estaria situada no fato de que o significante mata a

coisa. Sendo assim, a noção de morte existente no conceito de pulsão de morte,

enquanto linguagem, estaria referida à morte do objeto, do signo, à medida que não se

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trata do objeto na pulsão, mas de seu circuito, que contorna o furo deixado pelo objeto

perdido.

Esse ponto é minuciosamente trabalhado por Lacan no Seminário de 1964, Os

quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Aqui o autor enfatiza o circuito pulsional

como fundamental da pulsão, mais do que a força constante ou a satisfação parcial

com o objeto. Ele nos diz que a pulsão se satisfaz em seu circuito, no qual contorna o

objeto perdido, a hiância fundamental.

Outro ponto presente nesse Seminário sobre o qual nos concentraremos é a

idéia de que a pulsão se aproximaria do significante, pois coloca em operatividade a

cadeia significante. Isto será trabalhado a partir das articulações trazidas por Lacan

nesse Seminário e o texto freudiano de 1923, “O ego e o id”. O ponto de

entrecruzamento entre ambos os trabalhos será o fato de que Freud coloca o isso como

a sede das pulsões; e Lacan, em 1964, identifica o inconsciente ao isso. Assim, sendo

o inconsciente o lugar do significante, ao ser identificado ao isso, teria a pulsão como

motor da cadeia.

Nesse sentido, acreditaremos trazer alguns pontos que contribuem para o estudo

das pulsões, tema este que é freqüentemente evocado, à medida que se constitui como

um dos alicerces da teoria psicanalítica. Ao mesmo tempo, procuraremos contribuir

para ressaltar o pensamento estrutural e da lingüística. Tomando Beividas (2002:287-

8), que indica que resgatar a estruturalidade nos trabalhos de Lacan corresponderia a

um gesto de fundação da psicanálise, reafirmamos a importância de ressituar o lugar da

linguagem. O autor enfatiza que as relações entre psicanálise e lingüística devem ser

alocadas como a base primeira da teoria psicanalítica, independente de qual dos

registros ocupe o lugar de destaque. Este seria um gesto de situar a psicanálise no

paradigma “Semiótico”. Verificando a insistência de muitos psicanalistas em afirmar que

o real não se inscreveria em um discurso, Beividas ressalta que Lacan nunca deixou de

lado a primazia do significante. A ênfase em um real que estaria fora do registro da

linguagem resultaria do que ele chama de “atrofia” dos conceitos de significante e de

estrutura de linguagem no pensamento psicanalítico. Mais ainda, Beividas coloca que

ao imputar ao inconsciente uma parte fora da linguagem, corre-se o risco de deslocar a

psicanálise de sua pedra angular (2002:295-6). Dessa forma, é porque o significante

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lacaniano diferencia-se do significante saussureano e porque o real e o imaginário

apenas podem ser concebidos a partir do simbólico que é possível estabelecermos a

articulação entre pulsão e significante e a impossibilidade de se pensar em um fora da

linguagem.

CAPÍTULO I – A PROBLEMÁTICA DA LINGUAGEM PARA A PSI CANÁLISE

“E nós, psiquiatras, não podemos escapar à suspeita de que melhor entenderíamos e traduziríamos a língua dos sonhos se soubéssemos mais sobre o desenvolvimento da linguagem”.

(FREUD, 1910a/1996:166)

O estudo dos sonhos realizado por Freud tem como característica singular a

apresentação das leis do inconsciente. No texto de 1900, ele procede a um exame

pormenorizado dos sonhos para propor o mecanismo de funcionamento do aparelho

psíquico. O que nos salta aos olhos é, sobretudo, que tais leis do registro inconsciente

possuem a mesma estrutura do funcionamento da linguagem, o que é trabalhado

firmemente por Lacan em sua tese de que o inconsciente é estruturado como uma

linguagem. Assim, por que não nos perguntarmos qual é a pertinência da linguagem na

psicanálise? A fundação da psicanálise poderia ser remetida ao terreno da linguagem?

Nesse sentido, objetivamos, em nosso primeiro capítulo, assinalar a constituição

da psicanálise a partir do momento em que Freud entrevê uma outra lógica inerente à

dinâmica da doença mental. Isto o leva a se distanciar de uma visão pura e

simplesmente anátomo-fisiológica do sujeito. Dessa maneira, o autor introduz uma

ruptura com o dualismo cartesiano, no qual a consciência e o desenvolvimento são um

epifenômeno de um corpo bem nutrido e domado. Nessa visão, a mente ocuparia um

lugar secundário ao corpo. Acreditamos ser importante nos deter um momento neste

ponto.

O problema do dualismo mente x corpo já estava presente em Platão. A doutrina

moderna do paralelismo psicofísico remonta a Descartes e na tese de que “nenhuma

das propriedades da substância pensante é propriedade da substância extensa, e vice-

versa” (FERRATER-MORA, 1994a:2204). Entre Platão e Descartes há algo em comum:

a idéia de que corpo e alma são dois tipos distintos de realidade. Para se caracterizar

como dualismo, corpo e alma devem ser ontologicamente independentes. Isto é o que

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difere o dualismo do paralelismo (FERRATER-MORA, 1994b:589). O paralelismo se

refere a problematização das correlações entre duas substâncias. Partindo de

Descartes, que suscitou o problema, diferentes sistemas de pensamento foram

construídos na tentativa abordar as relações mente x corpo. Há o Ocasionalismo, que

entende uma correlação não causal entre corpos e espíritos; o sistema de Spinoza, que

propõe que corpo e espírito são modos da extensão e do pensamento, modos do

atributo de uma única e infinita substância. Leibniz, aproximando-se de Descartes,

afirma que não há separação entre corpo e alma, entre Natureza e Espírito, opondo-se

aos dois anteriores. Estas formulações de Leibniz contribuíram para a doutrina da

harmonia preestabelecida, que elimina a relação causal entre corpo e alma. Segundo

Ferrater-Mora, todos estes pontos de vista são situados numa perspectiva metafísica.

O paralelismo também pode ser situado em termos psicológicos ou

gnosiológicos, como nas doutrinas do século XIX. Nesse sentido, para Fechner, o físico

e o psíquico são faces de uma mesma realidade. Ferrater-Mora destaca algumas

críticas ao paralelismo. Bergson considera o paralelismo uma única hipótese oferecida

pela metafísica para resolver o problema das relações corpo e alma, sendo ele falho,

contudo, pois reduz tais questões a problemas de mecânica, respondendo aos anseios

da física. Nesse sentido, as três formas em que o paralelismo se apresenta – alma que

expressa certos dados do corpo; o corpo que expressa dados da alma e corpo e alma

como traduções de diferentes idiomas de um original que não se reduz nem a um nem

a outro – amortizam-se nessa tentativa de se chegar a uma maquinização dos

processos. Além de Bergson, existem as críticas das filosofias existenciais, indicadoras

de que o paralelismo não explica as experiências que envolvem o eu e as experiências

com o corpo próprio (FERRATER-MORA, 1994a:2204-5).

Freud subverte tal paralelismo, colocando corpo e mente numa mesma dinâmica,

em um mesmo patamar, indicando os efeitos da mente sobre o corpo. Isto porque ele

pode ser sugestionável, modificado, manipulado pela atividade psíquica, considerando

que o que importa na psicanálise é a representação psíquica do corpo:

“Parece destituído de significação querer saber o que acontece às intenções inibidas em relação

a vida ideativa normal. Poderíamos ser tentados a responder que elas simplesmente não existem. O estudo da histeria mostra que, não obstante, elas realmente existem, ou seja, que é mantida a

modificação física a elas correspondente e que elas são armazenadas e levam a vida insuspeitada

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numa espécie de reino das sombras, até emergirem como maus espíritos e assumirem o controle do corpo, que geralmente, esta sob as ordens da predom inante consciência do ego ”.

(FREUD, 1892/1996:169. Os grifos são nossos)

Da mesma maneira, o corpo também exerce influência sobre a subjetividade, à

medida que se coloca como suporte para a individuação, haja vista a experiência do

narcisismo e as conseqüências da diferença sexual. Desse modo, para Birman, o fato

de Freud apresentar um aparelho de linguagem nos estudos sobre as afasias implica

na idéia de que o registro psíquico é, especialmente, linguagem, e esta incide sobre o

corpo. Nesse sentido, ao deslocar o registro psíquico do campo da consciência e

inscrevê-lo no registro da linguagem, Freud inaugura um caminho metodológico para o

estudo do psiquismo (BIRMAN,1991:117).

Portanto, é neste ponto que nos situaremos: o eixo central de nossa discussão

neste primeiro capítulo é o trabalho de Freud sobre as afasias e, em seguida, os

estudos iniciais sobre a histeria. Nosso intuito é demonstrar o lugar da linguagem na

constituição da psicanálise e as modificações teórico-conceituais decorrentes desta. Tal

percurso terá como desdobramento um apontamento de como podemos verificar em

Freud um pensamento estrutural. O estruturalismo será identificado em seus postulados

acerca da noção de representação, associação, repetição e combinatória. O que está

em jogo em todas estas noções é a idéia de um diferencial, de um jogo relacional,

características basais do pensamento estrutural.

1.1 A psicanálise no solo da linguagem

Dizer que a psicanálise é fundada no solo da linguagem não é sem

conseqüências. Não podemos colocar sob a pena de Freud tais assertivas que

parecem, num primeiro momento, nossas, ou melhor, uma tentativa de desejar

encontrar em Freud aquilo que ansiamos. Com o receio de impelir a algumas

conclusões prematuras, tentaremos assinalar o lugar da linguagem na constituição da

psicanálise e como ambas são intrínsecas uma a outra. Em seguida, apontaremos as

conseqüências da incidência da linguagem para a concepção de sujeito/corpo na obra

freudiana.

Como dissemos, nosso ponto de partida é o trabalho de Freud intitulado

Contribuição à concepção das afasias, de 1891. Vale ressaltar, com Garcia-Roza, que,

20

apesar de Freud nos apresentar aqui um primeiro modelo de aparelho de linguagem e

isto ter conseqüências incalculáveis na constituição da psicanálise, não se trata esse de

um texto psicanalítico, muito menos uma recusa da neurologia (2001:68).

Roland Kuhn, no prefácio à edição francesa, demarca que a aparição da

psicanálise pode ser remontada historicamente a este período (1981), e, igualmente,

não identifica este trabalho como um texto neurológico. Afirma que se trata de uma

posição limítrofe entre a neurologia e a psicanálise. O autor denuncia ainda que é o

estudo da histeria e seu contato com Charcot o que começa a colocar em questão o

ponto de vista estritamente neurológico de Freud (1987:6).

Assim sendo, Freud se distancia de sua formação médica, porém sem esta

deixar de ser sua orientação fundamental. O que se delineia no trabalho de 1891 são

conceitos que provêm do conhecimento da anatomia cerebral, da fisiologia do sistema

nervoso e da neurologia. Entretanto, não deixamos de verificar que há aí uma ruptura

com o ponto de vista organicista, que centrava o corpo como causa maior e desprovia

os aspectos mentais de qualquer implicação, passando a uma concepção funcional-

tópica da afasia. Nassif pontua que o uso diferenciado do conceito de associação

efetuado por Freud depõe para uma articulação entre a dimensão tópica e funcional,

sem que isso pressuponha uma etiologia de uma ou outra. O que ocorre é da ordem de

um processo1 (1992:387).

Birman (1991:85-110) enumera alguns pontos em que podemos verificar a

situação histórica do momento onde o trabalho das afasias foi elaborado, pontos nos

quais é importante nos determos para compreendermos os argumentos de Freud.

O autor ressalta que o pensamento científico da época é centrado nas teorias

localizacionistas. Além disso, Birman indica que os estudos sobre as afasias

encontravam-se em um lugar estratégico dos discursos teóricos no final do século XIX,

pois poderiam delinear a linguagem e seu funcionamento. Todavia, segundo a crítica de

Freud (apud BIRMAN, 1991:85-98), as teorias localizacionistas consideravam apenas a

existência da linguagem automática, repetitiva e não espontânea. E, para Freud, o que

estava em jogo era a linguagem espontânea. Tal assertiva foi possível ser concebida

1 Debateremos tal concepção mais adiante.

21

por Freud a partir do momento em que escutou das histéricas2. Assim, a crítica à

concepção localizacionista foi o ponto de partida de Freud, permitindo repensar as

relações entre corpo e psiquismo e o lugar fundante da linguagem no psiquismo, como

veremos com a análise do trabalho sobre as afasias.

Ainda de acordo com Birman, o domínio no qual Freud se apóia para delinear o

campo da linguagem é o da filosofia empirista e pragmatista inglesa de base

elementarista de Stuart Mill. Além dele, a idéia de totalidade no discurso freudiano

coloca a linguagem não somente como forma de representação, mas também como um

sistema de localização, o que reinscreve as incidências do pensamento de Mill

(1991:101). A linguagem passa a ser, com Freud, um sistema de representação das

coisas e do corpo, algo da ordem de uma combinatória. A consideração da fala

espontânea oferece uma outra possibilidade para a linguagem: a criação simbólica. O

que leva Freud a reconfigurar a linguagem é a escuta das histéricas e o retorno aos

textos de Hugling Jackson (BIRMAN, 1991:110).

Após estas longas linhas introdutórias, situamos historicamente o trabalho sobre

as afasias. Logo, podemos passar à segunda parte desse item tendo em mente dois

pontos fundamentais para nossas análises: a linguagem como condição para a

construção do aparelho psíquico e conseqüentemente da psicanálise; e a implicação do

outro e sua configuração como uma combinatória, que terá como desdobramento os

questionamentos sobre o estruturalismo e significante.

“Nossa representação da estrutura do aparelho central de linguagem é aquela de uma área cortical contínua que ocupa o espaço situado entre as terminações dos nervos ótico, acústico, motor

craniano e periférico no hemisfério esquerdo” (FREUD: 1891/1987:117. A tradução e os grifos são nossos).

Os termos grifados explicitam nossas hipóteses: o postulado de Freud de que o

aparelho é uma estrutura contínua situada num espaço “entre”, depõe para uma

estrutura simbólica. Mesmo que Freud não o tenha formulado nesses termos, podemos

depreender de nossas análises que não se trata de algo material a ser buscado na

estrutura anatômica. Trata-se de uma máquina simbólica. Entendido como estrutura, o

2 No item 1.2 trabalharemos a histeria e linguagem, ponto de intersecção no qual se inaugura a psicanálise.

22

aparelho de linguagem apenas pode ser uma máquina que funciona a partir da

diferença entre seus elementos, o que caracteriza uma combinatória. O “entre”

demarcado por Freud indica que este aparelho funciona dinamicamente, o que significa

dizer que tem aberturas tanto para o exterior, quanto para o interior corpo3. Freud assim

afirma:

“Para a psicologia, a ‘palavra’ é a unidade de base da função da linguagem, que afirma ser uma

representação complexa, composta de elementos acústicos, visuais e cinestés icos ”. e

“Nós citamos geralmente quatro componentes da representação: ‘a imagem sonora’, ‘a imagem visual da letra’, ‘a imagem motora da linguagem’ e ‘a imagem motora da escrita’”.

(FREUD, 1891/1987:123. A tradução e os grifos são nossos.)

Ao propor as representações caracterizadas por uma associação de elementos,

Freud nos direciona para a idéia de uma combinatória, de um diferencial. Assim, afirma

que as operações da linguagem implicam em associação e combinações

(1891/1987:123-6). Freud, destarte, utiliza-se da noção de representação de maneira

diferente da concepção filosófica do termo. Esta última define-a como uma cópia fiel de

um referente externo, ao passo que Freud a compreende como resultado da

associação e diferenciação entre os elementos, definindo a relação entre a

representação e o referente externo de simbólica (1891/1987:128). Freud indica, dessa

forma, uma nova formulação do aparelho de linguagem: fatores topológicos e funcionais

atuam em sua dinâmica (1891/1987:152).

Nassif trata da problemática da associação e da representação. Isola três pontos

fundamentais nesse trabalho que resumem tal problemática: a dimensão de lugar; o

conceito de processo; e a causalidade psíquica (1992:261). A construção de um

aparelho de linguagem está intimamente ligada às noções de dinâmica, associação,

continuidade, combinatória e diferença. Pontos estes que nos são muito caros, pois

traduzem a idéia de estrutura, fundamentais para nosso trabalho.

O autor indica que o termo “aparelho” não foi utilizado por Freud desde o início,

momento em que explicava um princípio sobre o qual um tal funcionamento poderia se

3 Estaria, aqui, Freud lançando algumas bases sobre o que delinearia em 1923 a respeito do aparelho psíquico, que teria uma abertura para o corpo? Nesse sentido, em 1891 estamos diante de um aparelho que rompe com uma dicotomia mente x corpo, o que forja um novo paralelismo, como veremos mais adiante com a idéia de “concomitância dependente”.

23

constituir. É apenas quando Freud refuta as idéias de Wernicke que se abre espaço

para a introdução do termo (1992:267-71). Nassif demarca que, com o aparelho de

linguagem, Freud passa do modelo de esquema para aparelho, o que leva a inúmeras

conseqüências (1992:293): a idéia de um “aparelho de processo”; a “concomitância

dependente”; a construção do aparelho, que implica uma relação com o outro; e a

anterioridade da linguagem, que tem como resultado os “efeitos de sujeito”.

Trabalharemos tais pontos a seguir.

A concepção simbólica e estrutural do aparelho psíquico tem como resultado o

fato de que tais elementos supracitados não podem ser pensados isoladamente.

Tratam-se de elementos intrínsecos que se relacionam numa dinâmica baseada na

continuidade e na diferença, alicerce da noção de combinatória. Félix (1997:65), ao

analisar as relações entre o mito e o sonho, tendo como direção o estruturalismo,

pontua que a lógica que possibilita a ambos é o estabelecimento de relações

significantes. Assim, o que a autora demarca é que o jogo de combinação se realiza

num contínuo, através das diferenças significantes, até que o impulso que origina o jogo

se esgote.

Nesse sentido, Nassif (1992:270; 1992:298-300) insiste no ponto em que se

articulam representação e repetição, demarcando que tal articulação é da ordem da

associação. Portanto, representação e associação são indissociáveis no pensamento

freudiano. A representação é constituída pelas excitações dos quatro elementos

postulados por Freud (a imagem sonora, a imagem visual da letra, a imagem motora da

linguagem e a imagem motora da escrita) que deixam uma impressão. A associação

seria a articulação entre as representações. Destarte, o autor afirma que Freud subverte

o conceito de excitação e associação4 (NASSIF, 1992:299). A representação do ponto

de vista freudiano é marcada, assim, pela diferença entre duas séries de associações,

diferenciando-se do conceito de representação para a filosofia. Para que se concebam

4 Trata-se, aqui, de um ponto importante, no qual poderemos inferir os primórdios da pulsão. Como inferimos com Felix, o movimento da combinatória é constante, ponto no qual podemos associar os movimentos da pulsão: há uma excitação, que, significada, constitui a representação. Diante desse quadro, a associação entra em cena articulando as representações, fornecendo-lhes um destino. O interessante é que este é um processo contínuo e marcado pela repetição, que insere o outro nesse circuito, como veremos a seguir.

24

tais hipóteses, segundo Garcia-Roza (2001:37), o aparelho tem que ser compreendido

em termos estruturais.

O contínuo movimento das representações, nos lembra Nassif, permite a Freud

formular a concepção de que o aparelho de linguagem é um aparelho de processo:

“Uma lesão... ela recoloca em causa a mesma articulação do aparelho de processo como uma organização espacial das células nervosas, sendo bem observada que esta organização não coincide com a descrição puramente anatômica e a dimensão de lugar está, ela mesma subordinada, em sua

topologia, ao grupo de processo que coloca em jogo um aparelho de linguagem”. (NASSIF, 1992:302. A tradução é nossa.)

Portanto, esta citação caracteriza o que seria o “processo”, a respeito do qual

Freud nos fala: uma ruptura com a dimensão anatômica. A noção localizacionista

estaria aqui relacionada a uma dimensão topológica, sendo o processo aquilo que

coloca o aparelho de linguagem em funcionamento. Assim, os campos da associação e

da repetição determinam o território da linguagem (NASSIF, 1992:328). Garcia-Roza

(2001:24) acentua uma assertiva de Freud, demarcando que ele é de opinião de que

não há como buscar o substrato fisiológico da atividade mental na função de

determinada parte do cérebro, mas como resultado de processos, que abarcam o

cérebro em sua totalidade.

A noção de processo nos remete ao paralelismo forjado por Freud. Não se trata

mais da consciência em oposição ao corpo, mas de uma simultaneidade. A consciência

deixa de ser o epifenômeno do corpo, mas o funcionamento psíquico encontra-se numa

“concomitância dependente” dos fenômenos do corpo: não se separa corpo e

linguagem. Para Birman (1991:98), Freud inaugura uma forma de articulação entre

corpo e linguagem. A concepção da “concomitância” marca uma superação dos

impasses do paralelismo psicofísico, além disso, demarca o registro anatômico

subsumido ao funcional (BIRMAN, 1991:114-5).

Garcia-Roza comenta o paralelismo psicofísico inaugurado por Freud. O autor

afirma que o que Freud nos leva a fazer é repensar a questão da relação entre funções

e localizações e que isto implica em recusar a representação como cópia do mundo

externo. Portanto, pontua que o paralelismo de Freud exclui qualquer possibilidade de

reducionismo simplista, à medida que ele postula a impossibilidade de uma relação de

causalidade entre os processos fisiológicos e psíquicos. A noção de “concomitante

25

dependente”, como uma simultaneidade dos processos fisiológicos e psíquicos,

caracteriza o paralelismo de Freud. Não se trata mais de um efeito mecânico, do

processo psíquico como um epifenômeno do fisiológico, como aponta Garcia-Roza,

mas desemboca na concepção de processo (2001:29-33; e 2004:243).

A idéia de um aparelho de processo que deixa modificações no córtex cerebral,

possibilitando a recordação, prenuncia a noção de trilhamento (Bahnung) do “Projeto

para uma psicologia científica”, de 1895. Além disso, a partir desse postulado, não há

mais como separar representação de associação. Trata-se do mesmo processo,

segundo Freud. A indissociabilidade entre associação e representação implica também

na impossibilidade de dividir o aparelho psíquico. O tecido fisiológico serve de suporte

ao texto psíquico. Ambos são correlatos (GARCIA-ROZA, 2001:33-5).

O postulado de um “aparelho de processo” se coloca como central na teoria do

aparelho de linguagem. A partir dele se delineiam as demais características do

aparelho: sua construção, a anterioridade da linguagem e os “efeitos de sujeito”.

Para Freud, o aparelho não está pronto desde o início. Não se trata de um

aparelho que se edifica com o desenvolvimento genético. Ele é construído, “peça por

peça” a partir do processo de aprendizagem (NASSIF, 1992:339). Tal aprendizagem

implica necessariamente um outro aparelho de linguagem, que já erigido é capaz de

constituir simbolicamente o aparelho. De acordo com Garcia-Roza, a relação entre dois

aparelhos nos introduz no registro da troca simbólica5 (2001:40). Portanto, a linguagem

é uma “lei de formação do próprio aparelho” (GARCIA-ROZA, 2001:41). Sendo assim,

vemos, com Nassif e Garcia-Roza, ser postulada por Freud a anterioridade da

linguagem, como condição do aparelho psíquico e, conseqüentemente, do próprio

sujeito.

Nassif (1992:345) demarca, nesse ponto, que estão implicadas duas concepções

na construção do aparelho: a combinação (que seria a combinatória de elementos que

compõem a representação) e a associação (as associações do processo que

determinam as relações com outro aparelho de linguagem). Ambos os termos são

fundamentais para se compreender a lógica da linguagem, que por ser estrutural,

5 A proposta de uma troca simbólica é muito pertinente à nossa proposta de pesquisa, pois como veremos no segundo capítulo, constitui-se como característica do estruturalismo, que implica numa relação entre os elementos, onde a dissociabilidade é impensável.

26

implica na necessidade de vários elementos, uns remetidos aos outros para que se

definam por uma diferença. Assim, é apenas por referência a um outro termo que se

pode constituir o primeiro. Em nossa hipótese, podemos apontar que as dimensões real

e imaginária podem apenas ser inferidas por relação ao simbólico. Mas, neste

momento, desejamos apenas deixar apontada tal assertiva, que desenvolveremos mais

adiante.

Destarte, o aparelho psíquico está em constante construção, à medida que a

linguagem implica numa lógica de associação incessante, de remissão de um elemento

a outro. Há sempre a remissão a um outro aparelho de linguagem (NASSIF, 1992:348-

49). Garcia-Roza nos lembra que a combinatória de processos que caracteriza o

aparelho é denominada por Freud de “superassociação”, que é o que demarca a

relação com outro aparelho de linguagem (2001:44).

Nassif ressalta, que a aprendizagem através da qual se constrói o aparelho se

encontra escrava do signo e do símbolo, e ela implica num assujeitamento ao outro.

Essa inferência o permite postular os “efeitos de sujeito” como uma produção do

aparelho (1992:357-60). Isto nos leva a verificar a antecedência da linguagem em

relação ao sujeito e ao psiquismo, e a impossibilidade de pensar algo do sujeito fora

dela, à medida que o sujeito é efeito da linguagem, ou em termos lacanianos, do

significante. O que temos é uma perpétua incidência da linguagem, um movimento

constante dos significantes que exigem significação. Nassif nos remonta a uma

passagem de Freud, na qual ele aponta a linguagem como fundante do sujeito, à

medida que ele imputa à linguagem modos de expressão que são singulares e

caracterizam o sujeito: “O aparelho à linguagem dispõe de uma trama rica de modos

de expressão sintomáticos ...”6 (FREUD apud NASSIF, 1992:296. A tradução e os

grifos são nossos).

Neste movimento de constituição do sujeito está implicada a repetição, à medida

que o processo de subjetivação é constante, pois o sujeito sempre está remetido ao

outro. A linguagem não apenas coloca o sujeito em conexão com o outro, mas

igualmente, a partir do movimento de repetição e associação, tem a função de produzir

6 Diante deste postulado freudiano, Nassif pontua que Freud propõe um novo modo de clínica, na qual ele pode descrever o que é visível e audível, inaugurando um campo simbólico (1992:297).

27

significação. Este seria o movimento da cadeia: produzir significação (descarga) sempre

num a posteriori7 (NASSIF, 1992:375). A linguagem é sempre a primeira (lei fundante

do sujeito). Nassif ressalta:

“Do lado do lugar, como do lado do outro, há sempre já a linguagem”

(NASSIF, 1992:376. A tradução é nossa) e

“... a repetição que permite estabelecer que a estrutura do aparelho de linguagem assim implicada não constitui nada de outro que somente uma outra estrutura, aquela de um aparelho ao qual será imputada

não mais a produção de seqüências de linguagem, mas daquelas dos lapsos, do sonho e do sintoma”. (NASSIF, 1992:393-4. A tradução é nossa)

Por último, gostaríamos de analisar a concepção estrutural presente no texto

sobre as afasias8. Antes de iniciarmos, apresentaremos algumas considerações

interessantes de Winograd (2004). A autora nos fala sobre as relações entre o corpo e

o aparelho psíquico afirmando a impossibilidade de qualificar Freud somente de

monista, ou dualista, ou pluralista. Em suas pesquisas, Freud passeia em momentos

distintos por cada uma dessas posições, à medida que não propõe uma diferença

substancial entre corpo e psiquismo. Isto porque as relações entre ambos são

configuradas de forma diferente que somente algo da ordem de uma “influência”. Freud

trabalha com um materialismo e com a metapsicologia, com pares complementares,

mais do que opostos, e com a subjetivação, que é definida por uma composição desses

pares. Sendo assim, o que Freud considera é a relação entre os conceitos que ele

delineia. Alocar Freud apenas numa dessas posições é, para Winograd desconsiderar a

complexidade de sua obra. Dessa maneira, Freud é monista, dualista e pluralista ao

mesmo tempo (WINOGRAD, 2004:204).

A partir desse ponto, podemos pensar que esta lógica apresentada por Freud, -

que Winograd apresenta como monista, dualista e pluralista ao mesmo tempo - já seria

um indício do pensamento estrutural?

A concepção freudiana de representação e associação implica, como vimos, uma

diferença entre duas séries de associações ou elementos, isto é, possui como

7 Correlacionaremos, no capítulo quatro, estes pontos ao mecanismo pulsional, para sustentarmos a hipótese da pulsão como significante. 8 Não precisamos destacar aqui a obviedade do fato de que Freud desconhecia o estruturalismo, mas é impossível não lhe imputar um método estrutural, sobretudo a partir das análises que fizemos com Nassif e Garcia-Roza.

28

característica essencial uma relação entre termos, alicerce do pensamento estrutural.

Além disso, o fato de as representações se constituírem como uma combinatória de

elementos e que a função do aparelho é produzir significação, depõe para

compreendermos o aparelho como estrutura. Nesse sentido, não há como pensar tais

termos isoladamente, mas sempre por referência ao outro, em nosso caso, o psiquismo

com relação à linguagem.

Nassif (1992:384) afirma que na estrutura do aparelho de linguagem o símbolo

funciona como um teorema ou axioma. Segundo Beividas (1996:126), o paradigma

simbólico foi a marca do estruturalismo nos anos 50 e então, imperou nas ciências

humanas. Assim, podemos verificar outra característica do estruturalismo no

pensamento freudiano, que propôs o símbolo como elemento mínimo do aparelho

psíquico9. Com relação a isso, como já apontamos, Garcia-Roza nos diz que para

compreender o aparelho nesses termos de relação de objetos, há que se compreendê-

lo em termos estruturais.

Deste modo, o que pretendemos com estas poucas linhas acerca do

estruturalismo é inserir o leitor na discussão apresentada no próximo capítulo. Tais

argumentos são importantes à medida que embasam nossa proposta de verificar que o

real não está fora da linguagem, mas referido a ela. Não há como se pensar real,

simbólico e imaginário isoladamente.

O que verificamos neste capítulo é a noção trazida por Freud em 1891 da

linguagem como condição do aparelho, regida por um mecanismo combinatório. A partir

de Nassif e Garcia-Roza pudemos observar que sujeito, cultura e pulsão são efeitos da

linguagem, possíveis a partir de uma inscrição simbólica.

1.2 As histéricas de Freud: um corpo que fala

A formação médica de Freud o direcionava a desenvolver estudos de

neuropatologia, o que o levou a se candidatar a uma bolsa de estudos na Salpêtrière

para dar continuidade a suas pesquisas. No entanto, o trabalho neste hospital o fez

mudar de rumo. Em um relatório sobre tais estudos (1956[1886]), Freud declara os

9 “... a relação entre a representação da palavra e a representação de objeto me parece merecer mais o título de simbólico que aquela existente entre um objeto e uma representação de objeto” (FREUD, 1891/1987:128. A tradução é nossa).

29

motivos pelos quais seu curso foi desviado, apresentando, como principal fator, seu

encontro com Charcot.

No prefácio ao texto “Relatório sobre meus estudos em Paris e Berlim”

(1956[1886]/1996:37-38) o editor James Strachey o apresenta como um relatório que

mostra o desvio dos interesses de Freud da neurologia para o campo da psicologia.

Aponta que, ao se envolver com os estudos da histeria e da hipnose, Freud sai do

campo da neurologia e se volta para a psicopatologia.

Os trabalhos na Salpêtrière, sobretudo no espaço criado por Charcot, que

contemplava um estudo das doenças nervosas crônicas e sua base anátomo-

patológica, levaram Freud a ter maior contato com os pacientes. Freud aponta que

Charcot já considerava completo seu trabalho acerca da anatomia e do trabalho

relacionado às doenças orgânicas do sistema nervoso, colocando a necessidade de

uma maior abordagem das neuroses, principalmente a histeria. O período na

Salpêtrière contribuiu para que Freud direcionasse sua visão para além das relações

anátomo-fisiológicas da doença mental, percebendo que havia algo além disso, o que

lhe possibilitou oferecer um novo enfoque em sua concepção. No entanto, seu objetivo,

ainda neste momento, situava-se numa descrição fenomenológica, com explicações

fisiológicas para a histeria, concepção ainda muito arraigada na formação médica.

Tal concepção é explicitada em “Observação de um caso de hemianestesia em

um homem histérico” (1886/1996:65-6), no qual Freud se preocupava em oferecer uma

descrição dos fenômenos somáticos da histeria, mas já trazendo alguns interesses nos

fatores psicológicos. Isto se coloca no momento em que Freud verifica a possibilidade

de que algo diferente do biológico funciona nesse corpo, que não se trata de um corpo

pura e simplesmente biológico. Aponta que há algo de ordem “mental” que atua sobre

ele. Assim, demonstra preocupações em compreender como o corpo é inscrito no

psiquismo e, além disso, verifica que há algo psíquico atuando na constituição da

histeria. Outro fator importante já presente nesse trabalho é que Freud nos dá indícios

da possibilidade de se reconhecer que o corpo é pura alteridade, à medida que ele

constata o fato de que o corpo histérico envolve um estranhamento10.

10 Se nesse capítulo enfatizamos um corpo que fala, um corpo atravessado pela linguagem, no terceiro capítulo trabalharemos a questão da pulsão com a linguagem, o que nos conduzirá inevitavelmente a pensar a relação da pulsão com o corpo.

30

Outro fator importante nesse trabalho, é que Freud, com a concepção de que

algo da esfera mental atua na histeria, começa e verificar que a paralisia do membro

não tem correlatos fisiológicos, pois percebe que os movimentos são retomados sempre

que a atenção do paciente é dirigida unicamente para o objetivo do movimento

(1886/1996:65). Além disso, começa a perceber a singularidade da doença mental em

cada paciente, pois verifica diferenças individuais no conjunto dos sintomas do paciente

do caso.

Em 1888, com o trabalho intitulado “Histeria”, Freud mostra-se preocupado em

descrever a histeria, empreendendo um estudo sobre a história, definição da doença,

descrição da sintomatologia, evolução e possibilidades de tratamento. Embora ainda

esteja muito centrado em sua formação médica, acerca da sintomatologia, Freud

esboça a presença de fatores inconscientes como determinantes da doença.

Especificamente a respeito da paralisia, o autor observa que ela não leva em conta a

estrutura anatômica do sistema nervoso: “... a perna paralisada não se movimenta, na

articulação da coxa, em circundação, mas é arrastada como um apêndice morto”

(FREUD, 1888/1996: 82).

Não somente as paralisias, mas também outros sintomas, como afonia, os

distúrbios da sensibilidade, da atividade mental, contraturas, trazem para Freud a

possibilidade de verificar que o corpo com o qual se deparava não se equivalia ao

organismo, que possui mecanismos auto-reguladores. Se houvesse uma coincidência

destes conceitos, tais sintomas não poderiam ocorrer, pois são ilógicos do ponto de

vista anátomo-fisiológico. Somente um corpo que funciona sob outra lógica poderia

constituir tais sintomas. Freud verifica então que a somatização, a conversão histérica,

as contraturas e as afonias apontam para o fato de que o corpo não se reduz ao

biológico, o que determina um funcionamento para além da lógica anátomo-patológica,

o psíquico.

“Uma outra característica muito importante dos distúrbios histéricos é que estes de modo algum representam uma cópia das condições anatômicas do sistema nervoso. Pode-se dizer que a histeria é

tão ignorante da ciência da estrutura do sistema nervoso como nós o somos antes de tê-la aprendido... temos de descartar a idéia de que na origem da histeria esteja situado uma possível doença orgânica; e

não devemos apelar para as influências vasomotoras (espasmos musculares) como causa dos distúrbios histéricos”.

(FREUD, 1888/1996:85).

31

Freud propõe, dessa maneira, que há influência dos processos psíquicos sobre

os processos físicos. Isto o leva à necessidade de compreender o mecanismo de

funcionamento dos processos mentais.

Em “Esboços para a comunicação preliminar” (1940-41[1892]/1996:192-5), Freud

propõe a existência de uma dissociação da consciência na histeria, provocada por um

esquecimento da situação traumática, que é expulsa da consciência e constitui um novo

lugar, de onde pressiona, formando os sintomas. Aqui, podemos inferir que Freud,

mesmo sem formular nesses termos, considera a possibilidade de um registro diferente,

talvez o inconsciente, um lugar que comportaria o material esquecido, mas não

apagado. Deste lugar extrair-se-ia o material que constituiria os sintomas. E ainda,

indica que a histeria apenas pode ser compreendida à luz dessa dissociação.

Com isso, Freud afirma (1940-41[1892]/1996:194-5) que o conteúdo do ataque

histérico, isto é, os sintomas, consistem na reprodução alucinatória do evento que

causou a histeria, e podem também consistir em lembranças que não seriam capazes,

por si mesmas, de constituir traumas. Dessa maneira, pontua que o trauma se edifica

por uma associação com um momento em que a disposição histérica se encontra

patologicamente intensificada. Demarca, também, que as experiências psíquicas que

constituem um ataque histérico têm característica comum: são impressões que não

conseguiram encontrar descarga adequada e constituíram o trauma. Segundo Freud

isto ocorre porque o paciente se recusa a enfrentá-las ou porque se sente impedido de

agir. Portanto, Freud esboça aqui toda a concepção da existência de uma organização

psíquica, responsável pelos sintomas histéricos. Mais ainda, responsável pela

construção de um corpo que pode se paralisar, se contorcer, sendo assim, de um corpo

que não é um dado biológico, mas representado, que possibilita toda a sintomatologia

da histeria11.

11 Neste trabalho está o que mais tarde Freud desenvolve no “Projeto para uma psicologia científica”, de 1895 e em trabalhos posteriores que abordam a constituição do corpo, ou seja, as concepções de descarga de excitações, soma de excitação, divisão da consciência, que implica um novo lugar psíquico, princípio de inércia e constância.

32

Contudo, é no trabalho intitulado “Algumas considerações para um estudo

comparativo das paralisias motoras e histéricas” (1893[1988-1893]) que Freud leva às

últimas conseqüências a noção de que os corpos das histéricas têm uma lógica de

funcionamento dissonante do mecanismo anátomo-fisiológico. Indica que a paralisia

ocorre na “representação do membro”, e não no membro físico, o que confirma a

concepção de que o corpo é constituído psiquicamente. Sendo assim as paralisias da

histeria subjugam os princípios fisiológicos. Isto se traduz na inauguração da

psicanálise, pois Freud percebe que os tratamentos médicos não poderiam cessar os

sintomas histéricos. Adverte que o tratamento, aqui, deveria ser de uma outra ordem,

da ordem do psíquico, posto que há algo de “psíquico” que atua na histeria12. Este

ponto de vista leva Freud à necessidade de lançar mão de uma outra lógica de

compreensão destes fenômenos, sobretudo a compreender o mecanismo de

funcionamento do aparelho psíquico.

O que é importante isolarmos aqui, é o fato de que Freud verifica que a paralisia

histérica não está submetida à regra biológica ou neurológica das paralisias que se

conhece, ao compará-la a lógica das paralisias cerebral e periférica: “Pelo que sei, não

existe, por exemplo, uma paralisia cerebral do ombro, isoladamente, com a mão

conservando sua motilidade” (1893[1888-1893]/1996:204).

Freud remete-se aos seus estudos sobre as afasias (1891) para apontar que as

diferenças entre as paralisias periférico-medulares e as cerebrais devem ser

investigadas na estrutura do sistema nervoso. Isso o levou a postular que a paralisia

periférico-medular é uma paralisia em projeção e a paralisia cerebral é uma paralisia em

representação, pois a reprodução da periferia do córtex não é uma reprodução fiel,

ponto por ponto. Isto contribui para a compreensão da paralisia histérica (FREUD,

1893/1996:204-6).

Quando observa o fato de que as histéricas têm a capacidade de simular as mais

diferentes doenças nervosas orgânicas verifica que tal simulação é de paralisias

orgânicas em representação e não de periférico-medulares, que apresentam maior

dissociação. No entanto, o que diferencia as paralisias histéricas das cerebrais é que

elas não se aplicam às regras da segunda. Segundo Freud: “Na histeria, o ombro ou a

12 Trabalharemos este ponto no item 1.3.

33

coxa podem estar mais paralisados do que a mão ou o pé” (FREUD, 1893[1888-

1893]/1996:205) e “... podem-se encontrar com muita freqüência essas paralisias

isoladas, contrariando as regras da paralisia cerebral orgânica” (FREUD, 1893[1888-

1893]/1996:206).

Dessa maneira, Freud postula que a paralisia histérica tem uma lógica

independente, estando numa posição intermediária entre a paralisia em projeção e a

paralisia orgânica em representação: não possui todas as características de

dissociação e delimitação da primeira e não se submete às leis estritas que regem a

segunda. A paralisia histérica também é paralisia em representação, mas um tipo

especial de representação. Tal fator permite Freud a dar mais um passo no

conhecimento do mecanismo histérico.

Ao se questionar acerca de qual seria a natureza da lesão na paralisia histérica,

Freud propõe que não há como existir uma correlação, pois a paralisia histérica não

respeita localização da lesão ou anatomia do sistema nervoso. Assim sendo, marca

uma impossibilidade de situá-la no córtex. Freud nos diz: “... a histeria se comporta

como se a anatomia não existisse, ou como se não tivesse conhecimento desta”

(FREUD, 1893[1888-1893]/1996:212).

Tal afirmação se coloca como fundamental para inaugurar a teoria das

representações, pois a partir desta descoberta, Freud propõe que na histeria há uma

“lesão funcional ou dinâmica” (FREUD, 1893[1888-1893]/1996:212), demonstrando que

nela pode haver uma modificação funcional sem lesão orgânica concomitante. Com tal

afirmação, passa a abordar a histeria do ponto de vista dinâmico, constituindo a

psicanálise. A partir daí, Freud interessa-se em compreender o funcionamento psíquico

que rege o sujeito e o lugar ocupado pelo corpo para sua constituição.

Ainda neste mesmo trabalho, ao esboçar sua teoria da representação psíquica,

Freud propõe (1893[1888-1893]/1996:213) que na paralisia histérica o que está em

questão é a representação corrente, popular, dos órgãos do corpo. Esta é baseada na

percepção. Então, postula que na paralisia histérica a lesão é uma modificação na

representação da idéia da parte do corpo paralisada: esta modificação seria uma

retirada do investimento da representação do membro, não sendo investido como ego:

“... a concepção do braço não consegue entrar em associação com outras idéias

34

constituintes do ego, das quais o corpo da pessoa é parte importante” (FREUD,

1893[1888-1893]/1996:213).

Com isso, verificamos que Freud propõe uma diferença entre eu e corpo: a

representação do corpo é parte constituinte do ego, mas não o esgota, não o

representa completamente. Ao postular que o que está em jogo é o investimento da

representação, Freud aponta a possibilidade do inconsciente, do mecanismo do

recalque e princípio de constância. Sendo assim, o que permite que determinada

representação esteja disponível ou não ao livre curso das associações, é a cota de

afeto. Quanto mais afeto investido, menor a possibilidade de estar aberta à associação.

Isso é o que ocorre com a representação do membro paralisado. Altamente investido de

quantidade de afeto, não permite que esteja acessível às associações com outras

representações que possibilitariam que fosse investido como eu. O resultado é, então, a

paralisia, pois a representação em questão não se associa com outras idéias que

constituem o eu. Desse modo, concebe o órgão paralisado ou função motora abolida

envolvidos numa associação inconsciente revestida de grande carga de afeto. Freud

indica que o que poderia eliminar esse excesso de afeto seria uma descarga por meios

apropriados, ou seja, a ação específica13.

Assim, com a idéia de representação, Freud afirma que o membro paralisado

existe no substrato material, mas não está acessível à consciência, porque sua

associação está impregnada de uma associação inconsciente, com a representação do

evento que constituiu o trauma e produziu a paralisia. Dessa maneira, a paralisia se

constitui por uma associação posterior: entre o hiperinvestimento de afeto na

representação do membro e a representação do trauma recalcada (FREUD, 1893[1888-

1893]/1996:214-5).

Concluindo, então, vimos como Freud procurou compreender e postular o

mecanismo de funcionamento do aparelho mental, à medida que verifica a lógica dos

sintomas histéricos. Nesse sentido, o corpo na histeria, ao subjugar o funcionamento

anátomo-fisiológico, impõe a Freud a necessidade de compreender o que ocorre com

esse corpo, ou seja, sua inscrição no simbólico. O que verificamos na psicanálise é o

13 Mais uma vez verificamos um esboço da teoria pulsional. Podemos já aqui identificá-la ao mecanismo da associação e excitação que discutimos no item anterior (cf. acima, p.29), ou seja, um movimento constante que exige um destino.

35

corpo presente nas operações de construção da subjetividade, constituindo-se e

servindo como suporte para a diferenciação do Outro.

1.3 A linguagem e a dimensão da alteridade

Neste item, enumeraremos alguns momentos que julgamos fundamentais na

obra freudiana, em que verificamos a incidência da linguagem em seu discurso.

Buscaremos apresentá-los de forma didática, a partir de um percurso cronológico em

sua obra. Iniciaremos no “Projeto para uma psicologia científica”, de 1895 e

encerraremos nas formulações acerca do complexo de Édipo, num momento mais

tardio de sua obra. Como já tratamos anteriormente a histeria e a pulsão, pontos

fundamentais em que observamos a incidência da linguagem, neste momento não

retornaremos ao assunto, deixando para retomá-los no terceiro capítulo. Assim, este

item caracteriza-se por um complemento e um enriquecimento de nossa hipótese

central, adquirindo, assim, um valor secundário.

Sabemos que a linguagem perpassa toda a obra psicanalítica. Inclusive, nosso

trabalho foi este até o momento: demonstrar como a psicanálise se constituiu devido à

incidência da linguagem. Nosso intuito neste momento é tarefa quase impossível, posto

que identificar “algumas passagens” específicas em que verificamos a incidência da

linguagem é paradoxal. Isto porque sabemos que toda a obra é perpassada pela

linguagem. Por isso, explicitamos alguns pontos que mais nos saltaram aos olhos na

leitura da obra, pontos em que verificamos a psicanálise mais fortemente arraigada da

linguagem. Tomaremos tais pontos, como dissemos, cronologicamente, com caráter de

complemento de nossas hipóteses.

Iniciaremos, então, por 1895. Acreditamos não ser necessário dedicar linhas

para apresentar o “Projeto para uma psicologia científica”, pois o que dissermos

presumimos já ser de conhecimento do leitor. Gostaríamos nele, de destacar, a noção

de trilhamento ou facilitação (Bahnung) e o Nebenmesch.

A idéia do trilhamento, como vimos com Garcia-Roza14 já havia sido anunciada

por Freud no trabalho sobre as afasias. Ali Freud já pressupunha que a excitação que

percorria o aparelho deixava marcas que poderiam retornar como recordações. Aqui,

14 Cf. acima, p.25.

36

Freud retoma tais concepções, indicando que estas marcas constituem-se como vias

associativas, que podem estar facilitadas ou não. Estas marcas caracterizam a

memória. Podem ser reativadas a cada estado de urgência do aparelho, o Not des

lebens (1895/1996:368-9). Sendo assim, o que está em jogo aqui é a repetição. Essas

vias de condução que caracterizam a memória são retomadas por Garcia-Roza

(2001:99-101) para falar do caráter diferencial do aparelho. Sugere que o trilhamento

constitui uma “cadeia na qual os percursos são diferenciados”, e que, a memória

freudiana, que se faz pela diferença entre os trilhamentos, remete à idéia de diferença

pura (2001:111). No que ambos os pontos implicam é a possibilidade de pensar a

diferença como “princípio de constituição do aparato psíquico” (Garcia-Roza, 2001:137).

Sendo a diferença o princípio de constituição do aparelho, podemos asseverar

que estamos no domínio da linguagem, que enquanto lei, lógica, implica em diferença,

combinatória, e não em um pensamento excludente e nem se equivale a uma função do

aparelho.

O segundo ponto que isolamos foi a noção de Nebenmesch. Este termo é

introduzido por Freud quando elabora a experiência de satisfação. Muito do que propõe

acerca do Nebenmesch é uma retomada do que postulou em 1891 sobre a constituição

do aparelho de linguagem. Ali Freud colocava como condição sine qua non para a

constituição do aparelho, um outro aparelho de linguagem. Aqui ele propõe como

condição de diferenciação entre os registros do aparelho e sua conseqüente fundação a

intervenção de um outro. Este seria responsável pelos cuidados do bebê frente ao

estado de desamparo15, característica do ser humano ao nascer. O cuidador

promoveria a satisfação a cada estado de urgência e proporcionaria ao bebê a garantia

de sua integridade física, mas, sobretudo, o processo de subjetivação. Quando Freud

(1895/1996:369-70) aponta o grito da criança como um meio de descarga, indica

igualmente o grito como o prelúdio da comunicação, à medida que o outro exerceria o

papel de significar este grito, ao proporcionar a satisfação:

“... o estímulo só é passível de ser abolido por meio de uma intervenção que suspenda provisoriamente a descarga de Qn no interior do corpo; e uma intervenção dessa ordem requer a alteração no mundo

externo (fornecimento de víveres, aproximação do objeto sexual), que, como ação específica, só pode

15 Desamparo físico, mas, sobretudo simbólico.

37

ser promovida de determinadas maneiras. O organismo humano é, a princípio, incapaz de promover essa ação específica. Ela se efetua por ajuda alheia, quando a atenção de uma pessoa experiente é voltada

para um estado infantil por descarga por via da alteração interna (por exemplo pelo grito da criança). Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima função secundária da comunicação, e o

desamparo inicial dos seres humanos é a fonte principal de todos os princípios morais... A totalidade do evento constitui então a experiência de satisfação, que tem as conseqüências mais radicais no

desenvolvimento das funções do indivíduo”. (FREUD, 1895/1996:370)

Mais uma vez, Freud postula a linguagem como a condição para o sujeito, pois é

apenas por estar submetido à linguagem que o próximo é capaz de inserir o sujeito na

ordem simbólica. Essas “funções do indivíduo” e “motivos morais” remetem-se à

inscrição na ordem simbólica, ou seja,a constituição do sujeito.

Garcia-Roza nos diz que o choro da criança é uma demanda ao próximo, e, na

medida em que ele atende esta demanda, a criança passa a fazer parte da troca

simbólica. E, em tempo, essa demanda não é somente a este outro imaginário, que lhe

proporciona satisfação, mas, ao Outro. Assim, “a ajuda interna não se reduz à

satisfação da necessidade, ela introduz o sujeito na ordem simbólica” (GARCIA-ROZA,

2001:133).

Lacan, no Seminário 4: A relação de objeto (1956-57), preocupado em definir e

diferenciar o mecanismo do fetiche e o mecanismo da fobia, isola, sobretudo, o jogo

com o objeto. Nesse sentido, para abordar essa relação, enfatiza o mecanismo de

subjetivação, trabalhando as três formas de falta de objeto: castração, frustração e

privação. O mecanismo que é trabalhado tem grande importância para nós, pois retoma

o que Freud fala sobre a relação com o outro, a dimensão simbólica e a constituição do

sujeito. Lacan indica que a castração está ligada à ordem simbólica, por isso,

relacionada à lei. O objeto em jogo aqui é imaginário, o falo, significante da falta. A

frustração refere-se às relações pré-edipianas, que são significadas num a posteriori.

Para Lacan, a frustração é o terreno preparatório para o Édipo, momento em que se

inicia um questionamento quanto ao desejo dos pais, a partir do qual o conflito edipiano

poderá se infletir. A frustração introduz a questão do real. Aqui reside o ponto da

questão em que estamos trabalhando, pois a frustração, segundo Lacan, é um conjunto

de experiências vividas no período em que o objeto real está centrado na imago do seio

materno. O que Lacan irá nos mostrar é que este objeto passa de real a simbólico, e aí

se situa a constituição do sujeito. É a partir da relação com o objeto real que as demais

38

fases da libido poderão advir, e todas são marcadas por uma posição de ambivalência,

um jogo em que o sujeito ao mesmo tempo experiencia o lugar dele próprio e do outro.

A situação dual é fundamental, pois, sem ela, nenhuma outra posição seria possível,

inclusive a de sujeito (LACAN, 1956-57/1995:61-3).

A dinâmica com o objeto real é marcada por uma periodicidade. É a possibilidade

do objeto aparecer ou não, de responder ou não ao desejo da criança que se desenrola

todo o jogo de subjetivação. A presença ou ausência do objeto que permite a

diferenciação eu e não-eu. Esse jogo é articulado para o sujeito no nível do apelo, do

apelo ao outro, a onipotência do outro, que detém o objeto real, que poderia dar ou

negá-lo ao sujeito. Lacan afirma que o apelo não oferece toda a ordem simbólica, mas

mostra seu começo. Neste jogo presença-ausência e no apelo ao objeto, constitui-se a

possibilidade de conciliar a relação real com uma relação simbólica. O objeto se torna

simbólico quando a mãe se torna real, pois nessa dinâmica a criança não mais quer

reter os objetos de satisfação, mas a mãe, que é a marca da potência, aquilo que nunca

poderá ter. E, na dimensão da potência, esse jogo torna-se simbólico (LACAN, 1956-

57/1995:67-70).

Este é o jogo que Freud delineia desde 1895, quando fala do Nebenmesch,

isolando o grito como prelúdio da comunicação e o apelo ao outro, até 1920, quando

fala sobre o jogo do fort-da. Freud articula a linguagem e alteridade como essenciais à

constituição do sujeito.

Em “O mecanismo psíquico do esquecimento”, 1898, Freud igualmente nos traz

a dinâmica de funcionamento do aparelho psíquico. Quando nos conta sua experiência

de esquecimento e todas as artimanhas que busca para reencontrar o material

esquecido e sua análise posterior, nos fala do mecanismo psíquico como traduções,

substituições e deslocamentos. Mais uma vez, podemos inferir a lógica da linguagem.

Interessante é que em determinada passagem, Freud pontua que o modelo dos

processos patológicos que seria a etiologia das psiconeuroses, pode ser extraído do

mecanismo de esquecimento que ele descreve, em que está em jogo o recalcamento.

Sendo assim, demarca o recalque como um mecanismo presente tanto nas patologias

como em “sujeitos normais” (FREUD, 1898/1996:278-9).

39

Outro ponto que nos chama atenção neste texto é quando Freud caracteriza a

fala como a possibilidade de lembrar, permitindo a liberação de afeto. Segundo ele, a

liberação de afeto permite uma “dissolução de toda tensão”. Afirma que esta é a

eficácia da psicanálise, que visa “corrigir os recalques e deslocamentos”

(1898/1996:280). Neste momento, também retoma a memória do “Projeto”, nos dizendo

que a memória, como um “arquivo aberto”, nos momentos de esquecimento, fica sujeita

a restrições, o que demonstra que ela não é do domínio da vontade (1898/1996:281).

Assim, reafirma a memória como um circuito, uma cadeia que depende da facilitação e

dificultação das vias associativas.

Aliás, já em A interpretação de sonhos, observamos que a idéia freudiana é

elaborar do modo de funcionamento do aparelho psíquico, sobretudo as regras de

funcionamento de inconsciente. Afirma que o inconsciente não é caótico, mas sim

funciona sobre leis lógicas. O que é central no modo de funcionamento do inconsciente

são os mecanismos de condensação e o deslocamento. Tais leis nos interessam

particularmente aqui por se tratarem de uma regra lógica marcada pela associação e

diferença. Freud as apresenta como leis que articulam o material inconsciente. A

condensação é identificada pela omissão:

“... o sonho não é uma tradução fiel ou uma projeção ponto por ponto dos pensamentos do sonho, mas uma versão altamente incompleta e fragmentária deles”.

(FREUD, 1900/1966:307).

O deslocamento seria responsável pela distorção do desejo do sonho. Há,

segundo Freud, uma “transferência e deslocamento de intensidades psíquicas”

(1900/1966:333-4). Condensação e deslocamento são meios para driblar a censura. Ao

explicar o mecanismo pelo qual os sonhos se constituem, o que verificamos são as

regras da linguagem colocadas em prática. Assim, a hipótese do trabalho de Freud é

tomar o sonho como linguagem, o que o leva a assemelhar as regras de constituição e

conseqüentemente do funcionamento inconsciente às leis da linguagem:

“Depois de nos familiarizarmos com o abundante emprego do simbolismo que é feito para representar o material sexual dos sonhos... Quanto a esse ponto, há que dizer o seguinte: esse

simbolismo não é peculiar aos sonhos, mas característico da representação inconsciente, em particular

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no povo, e é encontrado no folclore e nos mitos populares, nas lendas, nas expressões idiomáticas, na sabedoria dos provérbios e nos chistes correntes em grau mais completo do que nos sonhos”.

(FREUD, 1900/1996:383) e

“Por outro lado, em outros casos, o curso da evolução lingüística facilitou muito as coisas para os sonhos, pois a linguagem tem sob seu comando toda uma gama de palavras que originalmente possuíam

um significado pictórico e concreto, mas são hoje empregadas num sentido descolorido do abstrato”. (FREUD, 1900/1996:440)

Freud demarca aqui que as operações inconscientes são organizadas por leis

semelhantes às da linguagem, enfatizando, assim, a ordem simbólica. Posto que,

quando cita as construções linguajeiras populares, ressalta não somente a articulação

da língua, mas o jogo relacional presente nestas construções. Para Garcia-Roza:

“... o sonho é uma escritura psíquica cujas imagens não devem ser consideradas em seu valor de imagem, mas em seu valor significante. A imagem não é portadora ela mesma de seu

significado. Significante e significado são duas ordens distintas, constituindo duas redes de articulação paralelas. Há um deslizamento incessante do significado sob o significante e é a rede do significante,

pelas suas relações de oposição, que vai constituir a significação do sonho”. (2002:96)

Isto é o que permite Lacan assimilar os mecanismos da condensação e do

deslocamento à metáfora e à metonímia16. Verificamos assim a linguagem como lei de

constituição e do funcionamento do aparelho psíquico.

Os próximos passos são os textos de 1904 e 1905, “Sobre a psicoterapia” e

“Tratamento psíquico (ou anímico)”. Em ambos os textos, encontramos Freud

descrevendo o trabalho proposto pela psicanálise. Reafirma, os processos psíquicos

como da ordem da linguagem e, por isso, a psicanálise apenas poderia se centrar na

fala. Esta se coloca como organizadora, possibilitando a elaboração e

conseqüentemente liberando o afeto que causaria o desprazer.

“Tratamento psíquico quer dizer... tratamento – seja de perturbações anímicas ou físicas – por

meios que atuam, em primeiro lugar e de maneira direta, sobre o que é anímico no ser humano. Um desses meios é sobretudo a palavra, e as palavras são também a ferramenta essencial do

tratamento anímico”. (FREUD, 1905/1996:271).

Freud estabelece uma crítica, em 1905 à proposta organicista, que coloca em

posição secundária os processos psíquicos. Demonstra que, ao se deparar com os

16 Em 1957, Lacan aponta tais mecanismos como as leis de funcionamento inconsciente, podendo formular que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Este trabalho será esmiuçado no próximo capítulo.

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sintomas psíquicos, que não possuíam correlatos anátomos-fisiológicos em sua

etiologia, impôs-se a necessidade de buscar a causa em outro lugar:

“... fez-se então a descoberta de que, pelo menos numa parcela desses enfermos os sinais da doença não provinham de outra coisa senão uma influência modificada da vida anímica sobre seu corpo,

devendo-se portanto buscar no anímico a causa imediata da perturbação”. (FREUD, 1905/1996:274)

Assim, Freud reafirma seu paralelismo, aquele que se caracteriza por uma

“relação recíproca entre corpo e a alma” (1905/1996:274). Podemos inferir que isto seja

apenas possível porque Freud presumia a existência de algo simbólico funcionando

como condição do aparelho psíquico.

E ainda, ao falar sobre a dinâmica do processo psicanalítico e ressaltar a fala

como fundamental, Freud pontua que a condição necessária ao processo é o que Lévi-

Strauss – como veremos no próximo capítulo – chama de eficácia simbólica. Esta seria

uma submissão e uma crença no processo e na figura do psicanalista (1898/1996:276-

9). Com essas considerações, verificamos a primeiridade da linguagem em relação à

constituição do sujeito.

Tal anterioridade da linguagem é afirmada por Freud em seus trabalhos sobre a

construção subjetiva (complexo de Édipo) e nos textos sobre a cultura – aqui

ressaltaremos “Totem e tabu”.

Em “Romances familiares”, (1909[1908]) Freud enfatiza a importância do

momento em que a criança elabora discursos, através de fantasias a respeito de sua

origem. Trata-se de uma dinâmica que insere a criança no desejo dos pais e um

movimento fundamental ao mecanismo de simbolização, à medida que ao fantasiar,

criando um mito individual, a criança se insere num mundo simbólico, através de jogo

de palavras. Interessante notar que não se trata de um jogo de palavras aleatório, mas

que obedece a certa lógica. Lógica esta que, segundo Freud, contribui para

compreendermos a natureza dos mitos, que como veremos a seguir, é uma reprodução

no macrocosmo do desenvolvimento intelectual infantil. Outro fator importante que

concerne a essa lógica é que nela está em jogo a diferença, isto é, ser ou não ser

desejado; ter uma origem natural ou simbólica, que implica a dicotomia natureza x

cultura; masculino x feminino. Assim, o que verificamos é uma lógica diferencial,

42

permitida pela entrada da linguagem no campo humano. A diferença pode então ser

colocada como condição para que o sujeito advenha.

“A significação antitética das palavras primitivas” (1910) é caracterizado por uma

relação entre filologia e psicanálise. Este texto ressalta o que havíamos acabado de

pontuar com o trabalho anterior, ou seja, a lógica diferencial, de oposição. Portanto,

podemos verificar aqui a lógica da linguagem e o pensamento estrutural em Freud.

Retornando às análises dos sonhos, Freud relembra de que não há contradição

e negação. Em seguida, retoma as análises empenhadas por Karl Abel (1884) a

respeito da língua egípcia, para correlacioná-las ao mecanismo do sonho. O que chama

a atenção de Freud é que nessas línguas as palavras compostas são construídas de

efeitos contraditórios, e que isto se dá de maneira intencional. O que ele demarca é a

necessidade fundamental das oposições para construir os conceitos. Assim, é por uma

diferença entre dois elementos que eles podem se construir: “Nossos conceitos devem

sua existência à comparações” (FREUD, 1910/1996:163).

A base do pensamento humano é a diferença, ou, se podemos assim dizer, o

significante. O que talvez tenha levado Freud a nos relembrar que o pensamento infantil

se dá por um jogo de diferenças: inverter o som das palavras; e ainda, o próprio

trabalho do sonho, que inverte o material representativo (inversão de imagens) para as

mais diferentes finalidades. Freud encerra o texto postulando o quanto seria importante

à psicanálise um maior conhecimento da linguagem.

Também em “Totem e tabu” (1913[1912-13]), verificamos a incidência da

linguagem. Trabalharemos as noções trazidas nesse texto juntamente com as

considerações acerca do complexo de Édipo. Primeiro, por acreditarmos na

impossibilidade de separação entre cultura e sujeito, como o próprio Freud nos falou, e,

segundo, porque ele mesmo coloca o desenvolvimento cultural correlacionado às fases

de desenvolvimento infantil, que marcam a construção da subjetividade.

Se efetuarmos um estudo estrutural do mito17, compreenderemos que Freud

utilizou dois mitos centrais para embasar suas teorias a respeito da constituição da

17 Para a análise destes mitos, nos apoiamos na antropologia estrutural de Lévi-Strauss, que empreendeu um estudo a respeito da estrutura do mito, isto é, de como seus elementos estão articulados, em detrimento da narrativa, pois esta é frágil, e não abarca a total dimensão do mito. O que Lévi-Strauss isola, assim como fez Saussure, é a lógica através da qual os elementos míticos se

43

cultura e do sujeito. Por se tratar de temas relacionados à origem, poderiam apenas ser

abordados a posteriori. E foi isso o que foi empreendido por Freud ao construir o mito

do assassinato do pai da horda primeva, apresentado em “Totem e Tabu” e utilizou a

tragédia de Édipo escrita por Sófocles (430 a.C.) em diversos artigos.

Com o mito do assassinato do pai da horda primeva18, Freud apresenta uma

narrativa que abarca o momento de ruptura entre o estado natural e a ordem cultural,

propondo que uma vez que esta se instaura é impossível voltar atrás, senão se

submeter à lei que ela impõe, pois garante a constituição do sujeito. Essa submissão,

segundo Freud, é marcada pela renúncia da satisfação de impulsos, que inaugura o

desejo, marca essencial do sujeito. É a partir do momento em que o membro do grupo

ou da horda primeva abre mão da sua satisfação que, segundo Freud, uma falta se

instaura, fundando, assim, o desejo, e o sujeito surge então como efeito da cultura,

tributário dela. Constitui-se, nesse sentido, um pacto simbólico, ou seja, a submissão a

uma lei que regula as relações na cultura em prol da garantia de seu estatuto de sujeito.

Assim, Freud acredita que o sujeito, por se submeter à cultura pelo medo da

morte, se alia ao pacto por interesses narcísicos, e não pelo bem da cultura. Tais

postulados são propostos por Freud principalmente em 1930 (1929).

O ponto principal apontado por Freud no mito apresentado em “Totem e Tabu”

(1913[1912-13/]1996:144-9) é o assassinato do macho mais velho da horda pelos

outros membros, cansados das proibições impostas por aquele: proibição de manter

relações sexuais com as fêmeas do grupo, as quais ele detinha, e a expulsão do

membro quando este atinge determinada idade. Entretanto, sua morte causou um

sentimento de culpa entre os membros, pois juntamente ao ódio investido ao pai,

encontrava-se o amor. O fato que levaria à uma legitimação de todas ações e

articulam, lógica análoga às leis da linguagem. Saussure em Curso de lingüística geral (2001), isolou as regras pelas quais os fenômenos lingüísticos se articulam. Ambos reduzem o fenômeno a um elemento central: para Lévi-Strauss são os mitemas (equações mínimas as quais podemos chegar com a análise estrutural do mito) e para Saussure é o algoritmo s/S (elemento mínimo do fenômeno lingüístico). Nenhuma destas teorias está distante do que Freud empreendeu, como vimos (Cf. acima, p. 41) em 1900. Freud propôs que o sonho deveria ser compreendido a partir de seu conteúdo latente, ou seja, através da lógica que o constituía. Dessa forma, ele pode postular os mecanismos pelos quais o inconsciente atua, propondo de se assentam em leis que, de acordo com Lacan, são análogas às leis da linguagem. Diante desta base teórica, Freud pôde construir o mito do assassinato do pai primevo apreendendo sua estrutura e tomar o mito de Édipo também em sua estrutura. 18 Este mito foi construído por Freud a partir de uma compilação de estudos antropológicos, sociológicos e psicanalíticos.

44

comportamentos possibilitando a satisfação plena dos impulsos levou, ao contrário, a

um novo estado de coisas. A culpa fez com que o lugar ocupado pelo pai se mantivesse

vazio e este, ainda que morto, continuou exercendo uma lei. Contudo, não mais uma

imposição, mas agora uma lei simbólica à qual todos os membros se submetem,

regulando seus impulsos em prol da sobrevivência de um novo estatuto: o de cultura e

o de sujeito. A este lugar ideal, foram destinados sentimentos de devoção. Em troca,

este pai protegia o grupo, dando origem ao totemismo, à religião (que segundo Freud é

conseqüência do totemismo), a lei da exogamia (que, segundo Freud, justifica o medo

de transgredir o tabu do incesto) e a lei do “não matarás”, devido ao medo de morrer.

Com o mito de Édipo, Freud aborda a dinâmica da constituição do sujeito, que de

maneira análoga à cultura, se constitui a partir de uma ruptura que o insere na

economia do simbólico, ou seja, submete-o às leis da cultura, ordenando seu desejo. O

que Freud percebe e o que o permite demonstrar uma sobreposição desses mitos, foi o

que ele isolou em “Totem e Tabu” (1913[1912-13]/1996:132-7): que é possível

encontrar as mesmas etapas lógicas da constituição do sujeito e da cultura. Dessa

forma, o elemento que Freud isolou como comum para a constituição de ambas foi a

castração, ou interdição do incesto.

Nos principais artigos referentes ao complexo de castração e ao complexo de

Édipo (“A organização genital infantil” [1923a]; “A dissolução do complexo de Édipo”

[1924] e “Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos”

[1925]) Freud aponta que o que está em jogo durante a fase fálica (período que ocorre

o complexo de Édipo), é a primazia do órgão sexual masculino, ou seja, é a descoberta

da diferença sexual e o complexo de castração. Freud utiliza-se de um drama

imaginário para explicar a entrada do sujeito na ordem simbólica. O que está em jogo

no Édipo é mais uma vez uma dicotomia entre ser ou não ser desejado; ser objeto ou

sujeito. A lógica diferencial encontra-se presente e é o que permite a criança ascender

como sujeito.

Freud propõe que o efeito do complexo de Édipo é a identificação com a figura

materna ou paterna que levará a criança a adotar uma posição feminina ou masculina,

uma posição homo ou heterossexual na escolha dos objetos sexuais. Ele propõe a

constituição da instância supereu como resultado do Édipo, responsável pela censura e

45

autoridade efeito da introjeção das normas paternas, ou da função paterna,

possibilitada pela castração (simbólica).

O que Freud postula, partindo da tragédia de Édipo, é a incidência da castração

para a constituição do sujeito, mostrando que o que está em jogo durante o Édipo não é

necessariamente o fato de ter ou não ter pênis, mas como o sujeito se posiciona diante

do falo, isto é, diante daquilo que marca o desejo da mãe.

O que verificamos tanto na dinâmica de constituição da cultura como do sujeito é

uma lógica diferencia: natureza x cultura; sujeito x objeto; pulsão x instinto. Trata-se da

lógica simbólica, que permeia a linguagem. Além disso, o que é fundamental em

ambos: o lugar vazio, a falta. Na constituição da cultura é o lugar ideal inaugurado pelo

pai morto que exerce a lei; e na constituição do sujeito, o lugar do falo, o significante da

falta, que interdita o desejo da mãe. Em ambos, há um a interdição do desejo, condição

de inscrição na ordem simbólica e condição do sujeito e da cultura.

Escusando-nos das necessárias digressões, acreditamos ter trazido aspectos

que, como dissemos, corroboram nossas hipóteses, ou seja, a linguagem está na

gênese do pensamento freudiano. Em todas estas passagens, encontramos-na como a

anterior e a condição necessária para pensarmos o aparelho psíquico e o sujeito.

Em nosso segundo capítulo, a partir de uma breve exposição do método

estrutural, compreenderemos a pregnância da linguagem na obra de Lacan, viés pelo

qual poderemos apontar a impossibilidade de separar pulsão e linguagem, tanto na

teoria freudiana, quanto na teoria lacaniana.

46

CAPÍTULO II - O MODELO DA LINGUAGEM EM LACAN

“Por paradoxal que possa parecer, resgatar a estruturalidade dos aforismos de Lacan significa antes de tudo admiti-los como gesto de fundação da psicanálise”.

(BEIVIDAS, 2002:287-8).

Ao nos propormos a estudar a linguagem em Lacan, nossa meta é demonstrar

os momentos em que este autor enfatiza o simbólico19 como a condição humana por

excelência, ou seja, a anterioridade da linguagem para a constituição do sujeito. Ao

estabelecer os três registros: simbólico, real e imaginário, coloca os dois últimos

referenciados ao primeiro.

Na conferência de 1953, sobre o simbólico, o imaginário e o real, Lacan profere

os três registros num jogo. Demarca o simbólico como a articulação do significante com

outro significante, que se equivale à estrutura da linguagem. Além disso, isola a

linguagem como uma função: constituir os grupo humanos, pois se trata de uma lei,

uma estrutura elementar. Destarte, é o que permite a organização tanto da cultura

quanto do universo mais particular, representado pelo drama do Édipo, colocando-se

como a condição humana (LACAN, 1953/2005:42). O simbólico enquanto estrutura é o

que engendra o automatismo de repetição, a partir do qual inferimos o imaginário e o

real. Daí a ênfase de Lacan no simbólico (1953/2005:26-8; 33-36). O imaginário é

situado pelo autor no dualismo das relações narcísicas, no registro do eu e do

semelhante, no nível da libido. O simbólico atravessa essa relação, permitindo a

assunção do sujeito. Permite a transação entre real e simbólico (LACAN, 1953/2005:

34-44). O real, segundo Lacan é “ou a totalidade, ou o instante desaparecido”20

(1953/2005:53. A tradução é nossa). Assim, é o que insiste. Sendo comparado a

repetição, e esta situada por Lacan no registro simbólico, o real é definido pelo

simbólico. Nesse sentido, nosso objetivo neste capítulo é verificar em alguns textos

19 Utilizaremos os dois termos indistintamente porque a linguagem é identificada por Lacan como a lei de funcionamento do simbólico. 20 Aqui Lacan utiliza a palavra “évanoui”, que também pode ser traduzida por evaporada, mais ainda no sentido do que é evanescente. Assim, o real como aquilo que se esvai, que nunca adquire representação.

47

lacanianos a ênfase no simbólico para então podermos inferir como não podemos

dissociar pulsão e linguagem.

No entanto, para depreendermos com Lacan a dinâmica entre os três registros e

compreender o real e o imaginário a partir do simbólico, há que se pensar em termos

estruturais. Beividas ressalta que no ensino de Lacan dos anos 50 e 60, uma

conceptualização estruturante foi esboçada, mas a suspensão da inspiração lingüística

o levou subitamente à topologia e aos matemas (2002:284). Nesse sentido, a

psicanálise, aos olhos deste lingüista perdeu seu rumo, saindo de seu eixo central

delineado por Freud. O fato de dissociar o estruturalismo da psicanálise oferece

margens a interpretações truncadas do trabalho de Lacan (como postular um fora da

linguagem e do significante) e quiçá (quando se remetem a ele, pois anda um pouco

esquecido em prol de uma repetição sem reflexão dos aforismos lacanianos) dos

postulados freudianos.

Beividas destaca, então, a necessidade de se retomar essa concepção

estruturalista em psicanálise como um gesto de fundação da psicanálise, pois se Lacan

formulou o inconsciente como estrutura, foi apenas porque isto já estava esboçado por

Freud21 (2002:286-7). Além disso, ao nos apresentar as três filosofias primeiras que

governaram a história do pensamento ocidental – a ontologia (de Aristóteles a

Descartes); a filosofia moderna (de Descartes a Husserl) e a Semiótica (de Frege,

Wittgenstein, Saussure e Peirce) – e considerar a viragem lingüística efetuada por

Lacan aos rumos da psicanálise freudiana, Beividas entende que esta atitude do

psicanalista representa o feito de inscrever a psicanálise no terceiro paradigma do

conhecimento. Isto porque a composição da psicanálise lacaniana situada nos três

registros (real, simbólico e imaginário) e a primazia do simbólico sobre o real e na

constituição do imaginário atualizam a psicanálise nesse novo paradigma (2002:293-4).

Beividas ressalta:

“... ‘dai-me dois significantes e uma relação e eu vos constituirei um sujeito’ é o modo como penso poder traduzir o sentido maior do engajamento lacaniano no paradigma simbólico...”

(1995:08)

21 Como vimos no capítulo anterior.

48

Isso já estava presente em Freud, como enfatiza Beividas, com a compreensão

simbólica do estatuto da histeria (1996:126). É a partir deste ponto que o autor propõe

um resgate do modelo estruturalista, a fim de retomar o fundamental da psicanálise e

não incorrer nos engodos de se pensar em oposição entre princípio de prazer e de

realidade, num real que estaria fora do simbólico, entre outros.

Por esta via, pretendemos, antes de passarmos aos trabalhos lacanianos,

apresentar brevemente o modelo de pensamento estrutural, para melhor discutirmos as

concepções trazidas por Lacan. E, a partir daí, abraçando a causa de Beividas, a

resgatar o pensamento estrutural, verificando que a pulsão não pode ser desvinculada

da linguagem.

2.1 O pensamento estrutural

O modelo estruturalista de pensamento foi sistematizado em um movimento da

década de 1950. No entanto, como já vínhamos apontando no capítulo anterior, um

pensamento marcado pela diferença singularizava o pensamento de Freud. Fortes

(2006:199) indica que a estrutura na psicanálise se inseriu no pensamento do

estruturalismo francês no final da Segunda Guerra Mundial. Dentre seus pensadores,

participaram do movimento Lévi-Strauss, Althusser, Barthes, Derrida, Foucault e Lacan.

O pensamento estrutural está vinculado às noções de troca, substituição e diferença,

bases de um pensamento relacional. Para apresentarmos os pontos fundamentais do

estruturalismo, caminharemos por duas vias: a partir de Marcel Mauss e Lévi-Strauss e

buscando identificar o estruturalismo na psicanálise. Antes de nos inserirmos nessa

jornada, é interessante notar, com Peed (1999:100), que ela identifica o pensamento

estrutural em Marx, a partir do estudo de Lacan22. Dessa maneira, podemos dizer que

22 A autora isola o tema “fetiche da mercadoria”, apresentado por Marx, no trabalho O Capital. Inserido no tema estão em jogo as noções de excesso, relações de trocas humanas e produtividade do social, que resulta no fetiche da mercadoria. Retornando à leitura de Marx a partir de Lacan, Peed entende que a concepção marxista de mercado já era estruturada como linguagem. Ela infere tal idéia, pois segundo Marx há uma conversão de objetos úteis em valores, e isto é uma produção social do homem. Assim a autora demarca que atribuir valores de mercado tem a função de laço social. O mercado é responsável pelo estabelecimento de uma lei que confere valor aos objetos, deixando estes de serem válidos apenas por sua serventia. Trata-se de uma lei homogeneizante e ao mesmo tempo opositiva. Homogeneizante, pois os artigos e serviços têm suas diferenças anuladas em prol de um único valor: o da troca; e opositiva, pois a mercadoria adquire uma materialidade singular, que é seu valor de troca (1999:101). Assim, o mercado, como a linguagem, é entendido como um movimento de ruptura, ou seja, estabelece

49

já existem esboços do pensamento estrutural anteriormente à década de 1950,

inclusive, como trazemos neste trabalho, já o encontramos em Freud.

Marcel Mauss, em Ensaio sobre a dádiva (1902) verifica os rituais presentes nos

grupos: dar, receber e retribuir. Além disso, percebe que os preços dos artigos não

eram fixos ou especificados. Havia algo para além dos bens presentes na troca. Assim,

o alicerce da pesquisa de Mauss reside no questionamento, que poderia ser entendido

como estruturalista, sobre o que estaria por trás destas trocas, qual seria a regra

existente que levaria às relações de troca (1902/1988:63-74)

O estudo de Mauss sobre os rituais de usos dos corpos e sobre a morte mágica

resulta na inferência de que a manipulação do corpo é uma prática social, ou seja, o

corpo é resultado de um discurso coletivo. Tanto que as variações de uso dos corpos e

os limiares de dor e excitação resultam mais de sanções culturais do que efeito de

particularidades individuais. O mesmo ocorre com a morte mágica, que envolve um

processo de des-sujetivação. Isto confere um estatuto simbólico ao corpo. É esse

estatuto que permite, igualmente, os rituais de cura xamanística. Assim, Mauss definia a

vida social como “um mundo de relações simbólicas” (apud LÉVI-STRAUSS, 1988:14).

A partir dessas inferências sobre o corpo, a cura xamanística e a morte, Mauss

se coloca contra a idéia da psicologia de uma oposição entre indivíduo e sociedade. O

antropólogo não cai na querela a respeito da existência de um homem bom corrompido

pela sociedade ou uma sociedade construída pelos homens. Afirma que não há sentido

tal discussão, à medida que as duas ordens não estão uma em relação à outra numa

dinâmica de causa e efeito, mas que a formação psicológica é uma tradução, no plano

psíquico, da estrutura sociológica. Assim, trata-se, para Mauss, de uma oposição não

excludente, mas diferencial. O simbólico é marcado pela diferença entre os elementos

(LÉVI-STRAUSS, 1988;15-6).

A cultura é considerada por Mauss como um conjunto de sistemas simbólicos,

dentre estes, sobretudo, estariam a linguagem, a arte, as regras matrimoniais, a ciência

e a religião. Tais sistemas expressam a relação entre a realidade física e social e a

relação que mantêm entre si. Eles marcam, nessa via, a relação direta entre sujeito e

um novo estado de coisas. Segundo Peed: “O que importa aqui é a materialidade relacional que define os elementos em jogo numa estrutura, um século antes do movimento estruturalista ” (1999:101).

50

cultura, sendo que uma modificação em um implica, necessariamente conseqüências

noutro. Os estados normais e patológicos são determinados por um discurso coletivo,

sendo, portanto, as perturbações mentais e as manipulações corporais características

de determinada cultura. Para Mauss, o mental e o social se confundem. Há uma relação

de complementaridade entre ambos, o psiquismo não reflete o grupo, nem o preforma:

um existe por relação ao outro. Daí surge a importância dos ritos, como um elemento de

equilíbrio social: há, portanto, uma relação direta entre a prática dos rituais e o contexto

psicopatológico (MAUSS 1902/1988:87-115). O que verificamos, destarte, são os

postulados de Mauss que caracterizam o registro simbólico: relação lógica de diferença

e complementaridade, como pontos determinantes dos elementos. Estamos, aqui, no

campo do estruturalismo, no qual temos uma lógica relacional de complementaridade

dinâmica. No que tange a sua definição de fato social, Mauss (apud LÉVI-STRAUSS,

1988:25-6) aponta a necessidade de dois termos para sua apreensão, ou seja, há

sempre a necessidade de, no mínimo, dois termos para que se defina um elemento. Por

exemplo: o sujeito apenas se define remetido a um objeto e vice-versa23.

O inconsciente é entendido por Mauss como um campo em que o subjetivo e o

objetivo se encontram. Apela ao inconsciente como fonte de caráter comum e

específico dos fatos sociais24. Tanto na magia, como na religião e na lingüística, são os

fenômenos inconscientes que agem. O mana é uma noção trazida por Mauss que

define o plano onde se confundem as noções de categoria inconsciente e categoria de

pensamento coletivo (apud LÉVI-STRAUSS, 1988:27).

Outro ponto fundamental é que Mauss identifica a representação das

propriedades mágicas marcadas por fenômenos semelhantes aos da linguagem. Se,

como acabamos de verificar, nas propriedades mágicas estão em jogo os fenômenos

inconscientes, o próprio inconsciente é marcado pelas regras da linguagem. Isto porque

a lingüística estrutural demarca que os fenômenos fundamentais da vida e do espírito

se situam no estádio de pensamento inconsciente. Este seria um termo mediador entre

23 Podemos nos estender e afirmar que os registros real e imaginário se definem por sua relação com o simbólico, não havendo uma ruptura entre eles, mas sim complementaridade. O mesmo seria, se tomássemos a pulsão de morte ou o objeto a de Lacan. Eles não são conceitos que estariam fora do registro simbólico ou da cadeia significante, mas aquilo que escapa de uma operação simbólica, resto dessa operação, portanto, remetidos ao simbólico, como veremos ao longo do trabalho. 24 Um fato social é uma significação coletiva de questões individuais (MAUSS apud LÉVI-STRAUSS, 1988:22-3).

51

eu e outro. O inconsciente é, nesse sentido, um sistema simbólico. Deste ponto partem

as críticas de Mauss a Jung, que compreende um inconsciente representacional, ou

seja, a tradução fiel em símbolos de um dado externo (apud LÉVI-STRAUSS, 1988:28-

9).

A partir destes argumentos corrobora-se a idéia de que há em Mauss a presença

do pensamento estrutural. Trata-se de um pensamento baseado na combinatória de

elementos. A mesma lógica utilizada por Mauss foi identificada na lingüística estrutural

e na antropologia estrutural: relações constantes entre os elementos, marcadas por

uma gama de combinações autorizadas e possíveis. O Ensaio sobre a dádiva (1902)

marca uma nova era para as ciências sociais. Lévi-Strauss compara a importância

deste trabalho de Mauss à combinatória para o pensamento matemático moderno e à

fonologia para a lingüística estrutural. Dentro deste contexto, Lévi-Strauss isola a noção

de função concebida por Mauss a partir da álgebra, que designa o fato de que os

elementos apenas são concebíveis em função de outros elementos. Há uma relação

constante entre os fenômenos. Podemos verificar, portanto, que a linguagem está, já

em Mauss, colocada numa posição de anterioridade fundadora (LÉVI-

STRAUSS,1988:30-3).

Lévi-Strauss nos chama a atenção para o fato de que o método estrutural é em

Mauss definido a partir de pensamento simbólico: das noções de troca, mana, hau25. A

noção de uma complementaridade entre significante e significado é forjada a partir do

caráter relacional do pensamento simbólico (1988:33). Situaria aqui o estruturalismo. O

caráter relacional do pensamento simbólico apenas pode ser concebido a partir da

concepção do surgimento da linguagem como um movimento de ruptura com a

natureza. A linguagem, como um sistema relacional está numa posição de fundadora

do sujeito. Há, destarte, segundo Lévi-Strauss uma oposição fundamental na história do

homem, oposição entre o simbolismo e o conhecimento. Isso tem como resultado a

constituição das categorias significante e significado de maneira simultânea e

solidariamente, a partir da lei de complementaridade. Esta seria a condição para o

25 O hau é “a forma consciente sob a qual homens de uma sociedade determinada, onde o problema tinha uma importância particular, apreenderam uma necessidade inconsciente cuja razão está noutro lado” (LÉVI-STRAUSS, 1988:34-5). Esta noção está em jogo na lógica da troca, sendo, talvez o cerne que move a troca.

52

exercício do pensamento simbólico. A lógica simbólica resume, nesse sentido, as leis

gerais da linguagem (LÉVI-STRAUSS,1988:41-4).

Simultaneamente às construções teóricas de Mauss, estava Saussure, lançando

seu Curso de lingüística geral (1906-07). Saussure é contra a linguagem como

nominalismo e cria a lingüística estrutural. Com a noção de signo lingüístico, as

relações diferenciais entre os elementos que a determinam passam a ser o ponto inicial

para as ciências da linguagem. O signo saussureano rompe com o plano da

representação, tendo como fundamento a diferença (1906-07/2002:79-81). Saussure

assim, aponta o valor como o princípio da teoria, na qual estão em jogo as diferenças

da língua (1906-07/2002:95). Isto o leva a conceber que o sentido do signo está em

função do outro. Saussure rompe com esta concepção clássica do signo, ou seja, uma

ligação entre a palavra e a coisa:

“Tudo o que precede equivale a dizer que na língua só existem diferenças. E mais ainda: uma diferença supõe em geral termos positivos entre os quais ela se estabelece; mas na língua há apenas diferenças sem termos positivos. Quer se considere o significado, quer o significante, a língua não comporta nem

idéias nem sons preexistentes ao sistema lingüístico, mas somente diferenças conceituais e diferenças fônicas resultantes deste sistema”.

(SAUSSURE, 1906-07/2002:139)

Nesse sentido, não há bom ou mau, nem melhor ou pior, qualitativamente pré-

determinado, mas apenas um jogo relacional que tem a diferença como princípio. Para

Saussure, o valor do termo pode modificar-se sem que haja modificação no sentido e

nos sons, mas porque o termo vizinho sofreu modificações. Assim, o fato de ser tudo

negativo refere-se aos significantes e significados tomados separadamente, pois o

significante se definiria por não ser o outro (SAUSSURE, 1906-07/2002:139).

Para Lévi-Strauss (1996:47-57), a fonologia, ocupou um papel renovador para as

ciências sociais, pois ela, ao ter como base de suas análises as relações entre os

termos, introduziu a noção de sistema. Rompendo, assim, com a proposta de tratar os

termos como entidades independentes. O autor nos apresenta a maneira similar de

análise do antropólogo e do lingüista fonólogo: ambos tratam seus objetos (relações de

parentesco e os fonemas) como elementos de significação. Esta apenas é possível se

tais objetos estiverem integrados aos sistemas. Ambos teóricos propõem pensar os

fenômenos sob os eixos sincrônico e diacrônico. Então, Lévi-Strauss afirma que uma lei

53

de estrutura pode ser atingida apenas a partir de uma análise dos fenômenos em

elementos diferenciais, que podem ser organizados em um ou vários pares de

oposições. O que se apresenta são as duas leis básicas do estruturalismo: a diferença

e os pares de oposição para definir um elemento.

Esta relação entre dois termos foi apresentada por Lévi-Strauss como mínima,

pois para que se tenha um discurso (o mito ou as relações de parentesco, formados

pela combinação), há necessidade de quatro termos. A relação dual define um

elemento, mas uma estrutura apenas pode ser defina por quatro termos inseridos num

jogo de oposição. O pensamento estrutural, contrariamente a sociologia tradicional,

considera a relação entre os termos da estrutura e não os termos. Estes podem ser os

mais variados, da ordem da narrativa. No entanto, como o que interessa é sua lei

estrutural, há que se considerar suas relações (1996:58-64).

Os estudos de Lévi-Strauss o levaram a algumas inferências a partir das quais

pôde sistematizar o pensamento estrutural e verificar a linguagem como a condição

humana, por excelência. São elas: as regras de aliança, normatizadas por uma lei que

se sobrepõe à natureza; a posição dupla (sujeito e objeto) da mulher no interior do

grupo, que lhe confere um caráter de sagrado ou tabu, bem como sua estreita relação

com algo da ordem da natureza (menstruação e a possibilidade de dar à luz); a morte

por enfeitiçamento; a cura xamanística, que envolve sempre três posições (condições

para o ritual): doente, o xamã e o grupo; a formação do xamã, que implica na

necessidade de ter passado por um processo de cura (aproximação com a formação do

psicanalista); submissão do sujeito ao discurso do grupo... em todos estes pontos

verificamos a primeiridade da linguagem em relação ao sujeito e a cultura, ou o que

Lévi-Strauss chama de eficácia simbólica (1996:221).

Diante desses motes, Lévi-Strauss define a estrutura como “... um sistema de

oposições e de correlações que integre todos os elementos de uma situação total...”

(1996:210). As leis de estrutura são intemporais, por isso, a elas não se aplica a

degenerescência do tempo. Elas são válidas em qualquer lugar, em qualquer discurso.

O que modifica, segundo cada cultura é a roupagem que veste. A estrutura é sempre a

mesma, meio pelo qual a função simbólica se realiza (LÉVI-STRAUSS, 1996:234-5).

54

Para Lévi-Strauss, o que interessa é a forma, que tem precedência sobre o

conteúdo do fenômeno. O conteúdo seria o discurso, a narrativa do fenômeno, sua

forma imaginária (os mitos, o pensamento mágico, os rituais), meios pelos quais o

sujeito se arruma diante da função simbólica:

“... a história da função simbólica permitiria a explicação desta condição intelectual do homem, de que o universo não significa jamais o bastante, e que o pensamento dispõe sempre de demasiadas

significações para a quantidade de objetos nos quais ele pode enganchá-las. Dilacerado entre esses dois sistemas de referência, o do significante e o do significado, o homem exige ao pensamento mágico que

lhe forneça um novo sistema de referência, no seio do qual os dados até então contraditórios possam se integrar”.

(LÉVI-STRAUSS, 1996:212-3)

A existência do sujeito lhe impõe impasses intelectuais com os quais ele deve se

a ver. Esses impasses são da ordem da origem, da sexualidade e da morte. Um

impasse geraria uma situação de não-sentido. Diante disso, o sujeito busca discursos

para encontrar uma significação coerente. Assim, estamos diante de dois pontos,

especificados por Lévi-Strauss na passagem supracitada: primeiro, a função simbólica,

condição inaugurada pela ruptura entre natureza e cultura. Como é da ordem de uma

lógica, de uma combinatória de elementos, estamos diante de significante. Segundo, se

é da ordem do significante, exige constantemente significação. No entanto, esta nunca

é plena, sempre está remetida à outra. Daí, o processo de encontrar significação ser

constante, infinito, não se cristalizando, o que justifica a produção intelectual humana.

Lévi-Strauss identifica estas leis da estrutura (significantes) ao inconsciente:

“O inconsciente deixa de ser o inefável refúgio das particularidades individuais, o depositário de uma história única, que faz de cada um de nós um ser insubstituível. Ele se reduz a um termo pelo qual nós

designamos uma função: a função simbólica, especificamente humana, sem dúvida, mas que, em todos os homens, se exerce segundo as mesmas leis; que se reduz, de fato, ao conjunto destas leis”.

(1996:234) É através da análise dos mitos que a formalização do pensamento estrutural é

levado às últimas conseqüências. Neste ponto, Lévi-Strauss estabelece todas as

características do pensamento estrutural, as quais podemos sintetizar em: não

obediência a um tempo cronológico; combinação entre os elementos; redução a um

55

elemento último; estes elementos últimos têm a natureza de uma relação, marcada por

uma oposição.

“Supomos, com efeito, que as verdadeiras unidades constitutivas do mito não são as relações isoladas, mas feixes de relações, e que é somente sob a forma de combinações de tais feixes que as unidades

constitutivas adquirem uma função significante. Relações que provêm do mesmo feixe podem aparecer em intervalos afastados, quando nos situamos no ponto de vista diacrônico, mas se chegarmos a

restabelece-las em seu agrupamento ‘natural’, conseguimos ao mesmo tempo organizar o mito em função de um sistema de referência temporal de um novo tipo, e que satisfaz às exigências da hipótese

inicial. Realmente, este sistema é de duas dimensões: ao mesmo tempo diacrônico e sincrônico, e reunindo assim as propriedades características da ‘língua’e as da ‘palavra”

(LÉVI-STRAUSS, 1996:243-4).

O que é possível verificarmos com Lévi-Strauss é que a função simbólica tanto é

lógica que o permitiu a transcrição os fenômenos em equações matemáticas. Estas,

como sabemos, levam ao infinito jogo de combinações, substituições, transformações,

que é a marca da lógica significante.

Peed ainda nos traz algumas considerações interessantes a respeito do campo

do estruturalismo. A autora indica, com Prado Coelho (1999:109), que o campo do

estruturalismo pode ser dividido em três: 1) o estruturalismo fenomenológico de Sartre e

Merlau-Ponty; 2) o estruturalismo genético de Piaget; 3) e o estruturalismo dos

“modelos” de Lacan, Barthes, Foucault e Althusser.

Há algumas propriedades que definem, portanto, o método estrutural. Peed as

enumera (1999:112-17) e as descreve. São elas: 1) o estatuto de uma lógica, ou de

uma razão mínima de funcionamento; 2) a consideração do aspecto relacional dos

elementos do campo em questão; 3) a existência a partir dos efeitos; 4) o vazio como

origem e como causa; 5) a dupla função de corte e proliferação discursiva; 6) a

produção de um sujeito disjunto de individualidade ou subjetividade; 7) a lógica mínima;

8) o aspecto relacional; 9) a existência a partir dos efeitos. Retomaremos algumas delas

a partir de Fortes (2006).

Nesse sentido, a autora (2006:200) enfatiza alguns critérios formais destacados

por Deleuze acerca da estrutura pelo movimento estruturalista francês: o simbólico, a

posição, o diferencial, a serie, a “casa vazia” e o sujeito. É a partir desses pontos que a

autora pode pensar a aproximação entre estruturalismo e a psicanálise.

56

Segundo Fortes (2006:200), foi Lacan quem importou o conceito de estrutura

para a psicanálise, a partir da lógica do significante e da apreensão do inconsciente

como transindividual. Por essa via, a psicanálise situa-se como uma das correntes

importantes do estruturalismo, tendo seus conceitos revistos a partir desse

pensamento.

Analisando os critérios supracitados, Fortes coloca o simbólico como um dos

elementos de maior importância no conceito de estrutura. Este se articula diretamente

ao registro da linguagem. O “critério de local” refere-se à ordem topológica que os

elementos ocupam na estrutura e por onde se definem, sendo esta ordem uma “ordem

de vizinhança”. O diferencial é o que define os elementos reciprocamente nas relações,

ou seja, os elementos referem-se sempre a outros para se determinarem. Esta noção é

fundamental na teoria psicanalítica. A diferenciação refere-se ao tempo, a atualização

das relações diferenciais (FORTES, 2006:200-1). Como vimos com Nassif26, os

conceitos de associação, representação em psicanálise respondem à critérios de

disposição topológica, ao conceito de processo e de causalidade psíquica. Assim,

constatamos em Freud prenunciados os conceitos que haveriam ainda de ser descritos

por Deleuze.

Quando Peed destaca “o estatuto de uma lógica, ou de uma razão mínima de

funcionamento”, verifica-se que um dos critérios do pensamento estrutural é reduzir as

relações a uma estrutura mínima, como por exemplo os mitemas de Lévi-Strauss.

Freud, em 1915, situa o recalque como a “pedra angular” a partir da qual se alicerça o

edifício teórico da psicanálise. Em 1938, no artigo “Esboço de psicanálise”, reduz a

realidade psíquica a um elemento último: a pulsão. Sendo assim, como não pensar num

pensamento estrutural em Freud?

Podemos, dessa forma, verificar que a teoria psicanalítica obedece aos critérios

que a inserem no pensamento estrutural. Consideramos, nesse sentido que Freud teria

antecipado as formulações do estruturalismo e da lingüística. Arrivé (1999:78-9), no

entanto, considera paradoxal esta afirmação. O autor toma a seguinte citação de Lacan,

em Radiophonia: “... enunciando que Freud antecipa a lingüística, digo menos do que

deveria dizer, e que é a fórmula que libero agora: o inconsciente é a condição da

26 Cf. acima. p. 27.

57

lingüística” (LACAN apud ARRIVÉ, 1999:79) e apresenta alguns argumentos lacanianos

que sustentariam tal afirmação. Porém, o que Arrivé enfatiza é que Saussure já havia

produzido seus primeiros escritos antes de Freud publicar o livro sobre o inconsciente.

Dessa maneira, haveria uma impossibilidade cronológica de Freud antecipar Saussure.

O que de fato Freud “antecipa”, e nesse ponto Arrivé pontua que Lacan não estaria

inteiramente errado é que Freud, ao propor um sujeito cindido, remeteria a um corte

inaugural entre significante e significado, ou seja, a “barra” que os separa. Tal idéia da

barra com a função de “corte” não estava presente em Saussure.

Arrivé, mesmo considerando esse postulado de Lacan como paradoxal, não

deixa de ressaltar que Freud, com os conceitos de pulsão, das Ding e, sobretudo, os

signos de percepção, a sincronia, o fort-da, a Vorstellungrepräsentanz explicitam uma

relação sincrônica de oposição, ou seja, o que está em jogo no pensamento freudiano é

uma lógica de diferença entre os elementos, entre os conceitos (1999:79-81). E isso

não somente na construção de seus conceitos, mas a própria subjetivação é marcada

por uma diferenciação.

2.2 Lacan: linguagem, simbólico e estruturalismo

Os trabalhos de Lacan, sobretudo nos anos 1950, são atravessados pelo

pensamento estrutural, no qual a linguagem ganha destaque. Este pensamento resulta

do movimento estruturalista, como verificamos no primeiro item deste capítulo e da

concepção freudiana, que o permitiu afirmar o inconsciente estruturado como as leis da

linguagem. Quando ele se propôs a retomar os textos de Freud, seu objetivo era

resgatar a dimensão simbólica na psicanálise, que estava se perdendo, resultado de

deturpações do pensamento freudiano pelos psicanalistas. Estes centravam a

psicanálise nas significações e no eixo imaginário, o que oferecia margens a

interpretações equivocadas do trabalho analítico, bem como de seus principais

conceitos. Assim, Lacan, ao ressituar o lugar da linguagem na psicanálise, ressalta o

fundamental que a caracteriza: a dinâmica pulsional, a sexualidade perverso-polimorfa

e a relação de objeto, resultados da submissão do homem às leis da linguagem, que o

retira do estado de natureza.

58

Para demarcarmos o lugar da linguagem no discurso lacaniano e,

conseqüentemente, apreendermos a lógica significante, escolhemos três trabalhos

centrais, nos quais nos deteremos detalhadamente. São eles: “Função e campo da fala

e da linguagem em psicanálise” (1953), “A instância da letra no inconsciente ou a razão

desde Freud” (1957) e “Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: ‘Psicanálise e

estrutura da personalidade’” (1960). A escolha destes trabalhos foi guiada por serem

textos fundamentais de Lacan, que tratam de linguagem e psicanálise, nos quais

verificamos fortemente arraigado o pensamento estrutural; e porque marcam

exatamente uma década, estando em três momentos distintos de sua obra, o que nos

leva a verificar Lacan reafirmando a cada momento a vertente teórica escolhida27.

O que gostaríamos de enfatizar, como demarcamos acima, são os pontos que

nos guiaram na leitura desses textos, no sentido de podermos articulá-los com a

problemática da linguagem: a pulsão, a sexualidade e a relação de objeto. É a partir

destes três pontos que verificamos a incidência da linguagem, ou melhor o seu lugar de

anterioridade constitutiva do sujeito. Óbvio que não precisamos mencionar que estes

trabalhos são muito mais ricos e densos, no entanto são estes pontos que julgamos

fundamentais para o escopo de nosso trabalho, ou seja, afirmar a pulsão como

significante.

Outro ponto de destaque, fundamental para que seja possível chegarmos a essa

afirmação, é a relação entre os registros real, simbólico e imaginário. Apenas

poderemos indicar que a pulsão é significante a partir do momento em que

compreendermos o real e o imaginário a partir do simbólico. É o simbólico que

engendra o retorno do real e atravessa o eixo imaginário, permitindo a saída da relação

dual, mortífera quando se mantém apenas nela. Deixemos estas formulações para um

pouco mais adiante.

É no chamado “Discurso de Roma” (“Função e campo da fala e da linguagem em

psicanálise”, 1953) que Lacan enfatiza o lugar da linguagem mais fortemente. Primeiro,

a necessidade da retomada da linguagem e da fala na prática analítica, à medida que a

27 É de opinião de alguns psicanalistas que um pouco depois de 1960, Lacan rompe com este pensamento estrutural e descentra a linguagem de um lugar de destaque, em prol das topologias e matemas.

59

psicanálise encontrava-se diante de alguns problemas: centralização da prática na

função imaginária, a noção de um processo que levaria à maturidade sexual e à

escolha adulta e sensata do objeto e os problemas do término da análise somada à

análise didática. De todos estes problemas Lacan isola um ponto em comum: um

abandono do fundamento da fala, o que levava os psicanalistas a procurar pistas da

incidência do inconsciente e do desejo em outros lugares, como por exemplo em

movimentos corporais, entre outros pontos para além da fala do paciente. Propõe,

portanto, o que é fundamental: o retorno do simbólico (1953/1998:243-5)

Cabe a nós perguntar de que se trata este simbólico, qual é o lugar cunhado a

ele por Lacan? As concepções lacanianas da linguagem são todas remetidas a Freud, o

que ele mesmo não deixa de reconhecer:

“Não há dúvidas de que esses efeitos – onde o psicanalista se aproxima do tipo de herói moderno ilustrado por façanhas derrisórias numa situação de descaminho – só poderiam ser corrigidos por um mero retorno ao estudo, no qual o psicanalista deveria tornar-se mestre / senhor, das funções da fala.

Mas parece que, desde Freud, esse campo central de nosso domínio ca iu no abandono ”. (LACAN, 1953/1998:245. Os grifos são nossos).

São dois pontos centrais aqui destacados pelo autor: primeiro a necessidade de

retomar, na prática analítica, a fala, não sendo nada mais importante do que ela e, o

que mais nos interessa aqui, a necessidade de se compreender o sujeito a partir do

simbólico, ou seja, seu papel na constituição do sujeito. Para tanto, há necessidade de

orientar os conceitos psicanalíticos no campo da linguagem (1953/1998:247). Portanto

a linguagem teria aqui dupla função: a fundação da psicanálise e seu esclarecimento

conceptual.

Lacan ressalta o valor de téssera, de troca da fala. Isso é fundamental para

compreendermos o simbólico. Sua lógica permite uma troca, colocando em jogo

elementos que estão num movimento contínuo, numa combinatória que não cessa.

Quando ele afirma a importância do discurso na prática analítica, enfatiza este jogo do

simbólico. Sendo o discurso a ferramenta para se chegar ao desejo inconsciente, para

que se possa ter acesso ao sujeito do inconsciente, cabe ao psicanalista isolar nas

entrelinhas, nos lapsos, nos atos falhos, os pontos em que este desejo comparece. O

discurso é, assim, uma superposição de significantes, o que engendra um significado.

60

Este é um movimento infinito, uma combinatória de elementos que tem como modelo a

espiral. Assim, enquanto Lacan isola a importância do discurso, nos demonstra o

mecanismo em funcionamento no simbólico. E, mais ainda, aponta o simbólico ao

mesmo tempo permitindo o discurso e atravessando-o, entrecortando o eixo imaginário,

onde o discurso se desenrola:

“Mesmo que não comunique nada, o discurso representa a existência da comunicação; mesmo que negue a evidência, ele afirma que a fala constitui a verdade; mesmo que se destine a enganar, ele

especula com a fé no testemunho”. (LACAN, 1953/1998:253).

Ao representar a existência da comunicação, verificamos que o discurso ocorre,

como dissemos, no eixo imaginário, mas que é possibilitado pelo simbólico, daí seu

valor. E, somente pelo discurso, chegamos à verdade, ao desejo inconsciente.

Nesse sentido, é por intermédio do discurso, da fala, que Lacan define o

simbólico, e coloca-o como constitutivo do sujeito. Através do discurso a história do

sujeito é escrita e reescrita quantas vezes forem necessárias, sempre num tempo

posterior. Sendo assim, o sujeito é constituído por um discurso. Nele está presente o

jogo com o outro, que conta esta história e o insere no discurso, permitindo sua

ascensão ao simbólico. Este é o cerne da psicanálise:

“É justamente essa assunção de sua história pelo sujeito, no que ela é constituída pela fala endereçada ao outro, que serve de fundamento ao novo método a que Freud deu o nome de psicanálise, não em

1904... porém em 1895”28. (LACAN, 1953/1998:258).

A anterioridade do simbólico, que possibilita o discurso, é indicada por Lacan

como um terceiro termo, aquele que provoca a saída da relação dual e permite a

inscrição no simbólico. No terceiro termo, Lacan identifica o inconsciente. Este se

constitui a partir da linguagem, como resultado do discurso que constitui a história do

sujeito. Assim, o inconsciente não é individual, mas transindividual, à medida que

resulta da linguagem. Lacan aponta que o inconsciente é o capítulo da história do

sujeito marcado por um branco, censurado, mas a verdade sempre aparece em outro

28 Pois é a partir do Nacträglich, o a posteriori, desenhado por Freud no “Projeto por uma psicologia científica”, que Lacan já reconhece a incidência do simbólico, ou da linguagem como fundadora do sujeito.

61

lugar: no corpo, no mito individual, na história da língua do sujeito, no supereu, nos

rastros do inconsciente que impregnam o sujeito (1953/1998:260-1). Com estas

formulações, Lacan está nos falando do significante. Sua teoria será mais detalhada em

1957, mas aqui já verificamos a identificação do jogo simbólico à cadeia significante. Ao

enumerarmos os pontos nos quais o inconsciente pode se inscrever, verificamos a

incidência do significante. Este não apenas é identificado ao som, mas aquilo que pode

remeter a outro significante e engendrar um significado29.

Sendo o inconsciente constituído no e pelo simbólico, Lacan o identifica como o

Outro, o “tesouro do significante”, formulando assim que o inconsciente é o discurso do

Outro, o que, segundo ele, já era apresentado por Freud (1953/1998:266). Verificamos,

dessa maneira, que o simbólico e a linguagem caminham juntos em Lacan, entendidos

como uma combinatória, um jogo em que os elementos se movimentam em espiral em

busca de significação. Postula, então, a necessidade de três elementos em jogo na

constituição do sujeito: ele próprio, o outro e o Grande Outro, esta máquina simbólica.

Assim, demarca que a lei do homem é a lei simbólica: a troca, o símbolo trocado, na

medida em que este implica em pacto. Tais símbolos são significantes do pacto que

constituem como significado. No entanto, os significantes em jogo na troca simbólica,

são desprovidos de qualquer utilidade. O que está em questão no simbólico é o puro

movimento do significante (1953-1998:273). Retornaremos a este ponto no último

capítulo, para relacionar o movimento do significante ao movimento pulsional.

Lacan enfatiza que o trabalho de Freud com a sexualidade perverso-polimorfa, a

teoria das pulsões e da relação de objeto demonstram as incidências da ordem

simbólica na natureza do homem, deixando esta em suspenso. A ordem simbólica

inaugura o mundo dos significantes, que permite a criação, resultado do seu próprio

movimento. Como este movimento é estabelecido a partir da diferença entre os

elementos, haja vista que o significante se define por se diferenciar de outro

significante, o modelo da espiral nos permite compreender que o movimento é um

movimento diferencial, que a remissão de um significante ao outro permite a

emergência de um significado, a emergência do novo. A criação está aí implicada

(1953/1998:277). A noção de diferença inerente à função simbólica é extraída por

29 Verificaremos as propriedades do significante com o texto de 1957.

62

Lacan a partir da lingüística, em seu papel na fonologia e na antropologia, nos quais

estão em jogo pares de oposição (1953/1998:286).

O simbólico ocupa o lugar dessa lei primordial, que retira o homem do estado de

natureza e constitui o sujeito e a cultura. Há uma superposição do reino da cultura ao

da natureza. Trata-se de uma lei idêntica à ordem da linguagem. Esta antecipa e

ultrapassa o sujeito:

“Os símbolos efetivamente envolvem a vida do homem numa rede tão total que conjugam, antes que ele venha ao mundo, aqueles que irão gerá-lo em carne e osso; trazem em seu nascimento, com os

dons dos astros, senão com os dons das fadas, o traçado de seu destino; fornecem as palavras que farão dele um fiel ou um renegado, a lei dos atos que o seguirão até ali onde ele ainda não está e para-

além de sua própria morte; e, através deles, seu fim encontra sentido no juízo final, onde o verbo absolve seu ser ou o condena – a menos que ele atinja a realização subjetiva de seu ser-para-a-morte”.

(LACAN, 1953/1998:280)

Constatamos, assim, a indicação de Lacan que o simbólico define desde os

lugares dos genitores, passando pela organização do mundo até a o lugar ocupado

pelo sujeito. Está aí demarcada a determinação simbólica, que o sujeito carrega até sua

morte. Segundo Lacan, é num jogo com o Outro, numa pergunta ao Outro que o sujeito

se constitui. É a partir do discurso do Outro, da sua resposta, que o sujeito recebe sua

insígnia (1953/1998:301). Destarte, como pensar que o sujeito, e com ele a pulsão, a

sexualidade e a relação objetal estejam fora do domínio da linguagem? Mais ainda,

como pensar o real e o imaginário por outro viés que não seja pelo simbólico?

“É realmente de uma linguagem que se trata, com efeito, no simbolismo exposto na análise. Essa linguagem... tem o caráter universal de uma língua que se fizesse ouvir em todas as outras línguas, mas

que, ao mesmo tempo, por ser a linguagem que capta o desejo no ponto exa to em que ele se humaniza , fazendo-se reconhecer, é absolutamente peculiar ao sujeito”

(LACAN, 1953/1998:294-5. Os grifos são nossos).

Assim, a linguagem em Lacan não é abordada no eixo nominalista, como

linguagem-signo, mas como efeitos de significante. É tomada, portanto, como estrutura,

ao compreendê-la como um jogo de oposições (1953/1998:297-8). O autor vai, ainda,

além disso: aponta que esta estrutura corresponde a um grupo relacional, que o

simbólico designa topologicamente como um anel. Este esquema topológico impede um

fim do movimento simbólico. Ruma para uma continuidade (1953/1988:321-2). Desse

modo, ao pensamos numa topologia, verificamos que não há oposição ou ruptura entre

63

real, simbólico e imaginário, mas que podemos passar de um a outro sem cortes, numa

dinâmica de complementaridade, na qual cada registro se define.

A partir dessa longa exposição da concepção de simbólico em Lacan,

retomaremos às propriedades da estrutura que indicamos acima30.

A primeira diz respeito ao vazio como origem e como causa. Como vimos ainda a

pouco, Lacan nos fala que o que interessa no simbólico é o movimento da

combinatória, da cadeia, não importando os elementos, mas a remissão de um

significante a outro. O que podemos observar é um vazio, um buraco, uma hiância na

origem. Essa hiância engendra o movimento e deixará sempre um sulco aberto, um

resto que escapa à cadeia. Daí, verificamos o significante como o que determina o

significado, e nesse movimento deixa sempre um resíduo. Podemos verificar, aqui, a

própria castração.

A segunda refere-se à produção de um sujeito disjunto de individualidade ou

subjetividade. Aqui, nesta segunda vertente, verificamos a incidência do significante no

infindável movimento de busca de significação. No entanto, nessa função de

significação, algo sempre resta, apontando para o real, pois a significação total é

impossível. Trata-se, portanto, de uma remissão ao real. No entanto, o próprio real, este

furo, a hiância que é fundamental é constituída pelo simbólico. Este, então, engendra o

retorno do real, à medida que é a máquina simbólica a responsável pelo movimento da

cadeia. Assim, o sujeito é puro significante, podendo dizer que estaria disjunto de

subjetividade, à medida que esta é resultado da operação significante.

Por último, temos a lógica mínima, o simbólico, fundamento da estrutura.

Segundo Peed (1999:113), esta propriedade responde por uma superação de uma

perspectiva que reduz o pensamento a uma dialética de oposição entre realidade e

imaginário, entre a Coisa e sua representação, entre o princípio de prazer e o princípio

de realidade. Assim, o registro simbólico não se oporia ao imaginário e ao real, mas os

constituiria.

A seguir, isolamos um sub-item para passarmos brevemente pelas formulações

de Lacan a respeito da lógica significante e que complementam as formulações

apresentadas nesse item.

30 Cf. acima. p.55.

64

2.2.1- A linguagem e a lógica significante

As formulações lacanianas acerca da concepção de que o inconsciente é

estruturado como linguagem são sistematizadas em 1957. “A instância da letra no

inconsciente ou a razão desde Freud” é um texto fundamental do pensamento

lacaniano, pois é o momento em que é apresentada a lógica significante, subvertendo o

signo lingüístico de Saussure. Foi a partir desse gesto que Lacan pôde esmiuçar todas

as conseqüências da incidência da linguagem no sujeito e, sobretudo, no inconsciente,

colocando, nesse sentido, o significante em primeiro plano e nos apresentando a sua

lógica de funcionamento. Este é o ponto no qual nos deteremos: apresentar a lógica

significante trazida por Lacan neste trabalho, para inferirmos o papel da linguagem na

psicanálise, bem como demonstrar toda a estruturalidade do pensamento de Lacan.

Para tanto, como dissemos no item precedente, utilizaremos ainda argumentos trazidos

em 1960, no texto “Observações sobre o relatório de Daniel Lagache: ‘Psicanálise e

estrutura de personalidade’”.

Em 1957, Lacan retoma alguns temas apresentados no “Discurso de Roma”

(1953), centrando-se no mesmo ponto: a anterioridade fundadora da linguagem. A

linguagem, enquanto estrutura que preexiste e determina o sujeito, não é o resultado de

um desenvolvimento psicomotor, mas a lei que constitui o sujeito. Não apenas o sujeito,

mas a cultura, o que permite as trocas, que seriam inconcebíveis fora da linguagem. Ao

impor suas leis, a linguagem substitui o pensamento dualista por uma concepção

ternária, permitindo uma combinatória de elementos. É neste ponto em que Lacan

insiste, para demonstrar que é a linguagem fator determinante do aparelho psíquico,

impondo suas leis. Nada diferente do que Freud já nos havia apresentado, contudo,

Lacan sistematiza o pensamento freudiano para nos falar em significante e significado

(1957/1998:498-500).

O signo lingüístico é tomado por Lacan como a unidade última da estrutura da

linguagem, pois representa um jogo relacional e, dali, são delineadas todas as

propriedades do significante. Estas são apresentadas por Lacan a partir de uma

concepção estruturalista.

65

A inversão do algoritmo, colocando o significante em lugar do destaque e

precedendo o significado, responde pelo que Lacan insiste em seus seminários: tomar

a estrutura, o eixo simbólico antes de tudo. Isto o faz considerar a lei que está em jogo,

o seu modo de funcionamento, o significante, e não o que já está elaborado,

significado. Como veremos, este será entendido como resultado do movimento

significante e não a estrutura.

Portanto, o primeiro ponto que Lacan apresenta com a inversão é o lugar de

destaque do significante, resistindo à significação, pois significante e significado são

separados por uma barra. Esta demarca a impossibilidade de uma relação fechada,

imutável e da ordem da representação, como se um significante pudesse ter apenas um

significado, ser representado por ele. Este seria o ponto de vista saussureano. Ao

contrário, o significante lacaniano nos abre para um movimento infindável, constante,

mutável, permitindo a criação, com o surgimento dos mais diferentes significados.

A significação é, nesse sentido, um efeito da remissão de um significante a outro.

Um significante sozinho nada significa. Ele não deve sua existência por ser

representado por uma significação, mas por sua remissão ao um outro significante.

Trata-se de um movimento constante (1957/1998:500-1). Isto é possível pois, a

linguagem, ao fundar a cultura e o sujeito, rompe com a ordem natural de uma

satisfação direta e completa das necessidades. Ela deixa uma hiância nesse

movimento de ruptura. E é essa hiância que impede uma harmonia com relação ao

objeto, deixando sempre um claudicar, uma dissonância. Inaugura, com a ruptura, um

movimento constante de busca de uma identidade de pensamento, o que é impossível.

Por isso, há esse movimento de remissão a um outro elemento da cadeia31.

Desse modo, nessa remissão, produz-se uma inesperada precipitação de

sentido. É nessa transferência que se revela toda a estrutura da lógica significante. É a

possibilidade de o significante ser articulado que se coloca como cerne da estrutura.

Assim, o significante responde pelo caráter de redução do pensamento estrutural: ele é

o elemento diferencial último, pois se define por se diferenciar de outro significante. A

diferença é o móbil da possibilidade de transferência. Lacan remonta-se aos fonemas,

31 Este ponto será um dos eixos fundamentais nos quais que nos deteremos no quarto capítulo para apresentar como a pulsão pode ser considerada significante. Muito do que será abordado neste item introduz-nos aos argumentos deste último capítulo.

66

não para dizer que o significante é apenas o som, mas uma lógica diferencial. Esta

seria a primeira propriedade do significante (1957/1998:504-5).

A segunda propriedade refere-se à composição do significante segundo leis,

que implica a necessidade de um suporte topológico. Este suporte caracteriza a cadeia

significante e impede de pensar em um reducionismo centrado em oposições e

exclusões. Ao contrário, refere-se a uma dinâmica de complementaridade e

continuidade. Há sempre uma antecipação de sentido por parte do significante, um

movimento constante de busca de significação. Essas são as condições estruturais que

regem a lógica significante. Lacan conclui:

“Donde se pode dizer que é na cadeia do significante que o sentido insiste, mas que nenhum dos elementos da cadeia consiste na significação de que ele é capaz nesse mesmo momento”.

(1957/1998:506)

A estrutura da cadeia significante permite uma possibilidade infindável de meios

de expressão e de significação. A função significante na linguagem é denominada por

Lacan de figuras de estilo, das quais ele isola a metonímia e a metáfora

(1957/1998:509).

A primeira vertente do campo efetivo que o significante constitui é a metonímia.

Nela está implicada a ocultação e superposição de significantes. Na metáfora, segunda

vertente, está em jogo a substituição de um significante por outro. Ambas encontram-se

conectadas. Tanto que Lacan as aproxima dos mecanismos inconscientes:

deslocamento e condensação, respectivamente. Esta é a via por onde o autor identifica

as leis da linguagem funcionando no inconsciente (1957/1998:510-15).

Ao retomar A interpretação de sonhos e analisar a concepção freudiana de que o

sonho é um rébus, Lacan identifica em seu mecanismo estas propriedades do

significante. No mecanismo é a noção de entstellung, traduzida por transposição,

precondição da função do sonho, que Lacan isola para demonstrar que se trata do

deslizamento de significante. As duas vertentes da incidência do significante

encontram-se na noção de transposição ou deslizamento significante (1957/1998:514-

6). Isto faz com que Lacan afirme que as formulações de 1900 antecipavam-se em

muito as formalizações da lingüística.

Com tais argumentos, Lacan pôde demonstrar que o inconsciente é estruturado

como linguagem, definindo a tópica do inconsciente pelo algoritmo S/s (Significante

67

sobre significado). Metáfora e metonímia, ao responderem pela transposição do

significante, permitem a emergência de sentido, que é o próprio lugar do sujeito

(1957/1998:518-21). O significante, assim, determina o sujeito e é a sua marca na

linguagem e, se podemos nos antecipar, identifica-se à pulsão, à medida que esta é o

elemento último da singularidade do sujeito da linguagem. Lacan enfatiza: “O

inconsciente não é o primordial nem o instintivo e, de elementar, conhece apenas os

elementos do significante” (1957/1998:526).

Destarte, na dinâmica dessa relação de inscrição do sujeito na linguagem, como

Lacan aponta a todo o momento do texto, há necessidade de três termos. O lugar

terceiro é o Outro, o da convenção significante, da linguagem. Temos apresentado por

Lacan o significante na origem e a própria marca da inscrição da linguagem.

Em 1960, no artigo “Posição do inconsciente”, Lacan reafirma essa estrutura, a

lógica combinatória que tem a diferença em seu alicerce, enfatizando que esta é,

sobretudo, a topologia. Gostaríamos de nos deter neste ponto.

Nesse trabalho, Lacan muito nos fala acerca da estrutura, situando-se em dois

pontos centrais: a topologia e a estrutura como máquina que coloca o sujeito em cena.

Interessante notar que Lacan compara a estrutura a uma máquina lógica, montada de

acordo com equações que colocam em movimento a combinatória dos significantes

(1960/1998:655).

Lacan indica que a noção de estrutura, presente desde Freud, vem sendo

utilizada para designar o mecanismo de constituição e funcionamento do aparelho

psíquico. Concebê-lo em termos estruturais e topologicamente; este é o cerne da

questão, à medida que concebemos um aparelho no qual está em jogo seu

funcionamento, sua dinâmica, um movimento de complementaridade dos registros. Isso

nos leva a pensar cada registro em função do outro. Mecanismo este que é a

singularidade do pensamento psicanalítico (1960/1998:656).

Nesse sentido, Lacan demarca que é impossível prescindir do significante,

característica dessa estrutura. Diz-nos que é para o suporte do significante que fomos

levados por Freud. Isola a pulsão como o ponto fundamental que singulariza a topologia

e a noção de estrutura. Sua constituição apenas é possível porque o simbólico faz

68

claudicar a relação com o objeto. Impossibilitando a satisfação plena, aponta para o

real, como aquilo que escapa à simbolização, pois este restou do movimento de

remissão do significante. Constitui a pulsão como resultado da linguagem. É o

apontamento ao real efetuado pelo simbólico que abre espaço para a pulsão

(1960/1998:661). Sendo assim, o real e a pulsão apenas podem ser admitidos a partir

do simbólico e não fora dele. De acordo com Lacan, “quando a linguagem se intromete

na história, as pulsões têm mais é que proliferar” (1960/1988:668). Portanto, uma das

hipóteses dessa dissertação é que se tomarmos este ponto de vista, ou seja, em termos

estruturais e topológicos, não há como se pensar num fora do simbólico. É a partir dele,

como o terceiro excluído, como vimos com o texto de 1957, que se constituem o real e

o imaginário.

Destarte, é em termos estruturais que se deve conceber a pulsão. A

combinatória está presente na desmontagem da pulsão: fonte, alvo, direção e objeto.

Não significa que tudo nela seja significante, mas, sim, estrutura (1960/1998:665). O

que pretendemos demonstrar ao longo do trabalho é que o mesmo mecanismo que

está presente na pulsão é o mecanismo significante. Daí poderemos estabelecer a

aproximação entre pulsão e significante.

A noção de estrutura implica, ainda, em escansão e precipitação. É a partir

destes termos que Lacan identifica, então, o lugar do sujeito e a constituição da pulsão

(1960/1998:671). A escansão é o furo deixado pela linguagem, um apontamento ao real

a partir do qual constituem-se a pulsão e o sujeito. A precipitação lógica é a emergência

de sentido, onde comparece o sujeito do inconsciente, como vimos com o texto de

1957. Essa precipitação é a função da lógica significante, que prima por significação,

bem como a pulsão, que prima por satisfação. Em ambas encontramos o mesmo

mecanismo de constância.

O lugar do sujeito na cadeia é o espaço de um significante a outro, na

precipitação que se produz e no resto desse movimento. Lacan diz que é no vazio

deixado no movimento de remissão. O que sobra dessa remissão é, como veremos no

quarto capítulo, o objeto a, que se constituirá como causa da cadeia e a marca do

sujeito. O objeto a, enquanto estrutura, é o padrão da troca, gerando a cadeia

significante e a pulsão. Constitui-se como a castração (1960/1998:689). Sendo assim, a

69

cadeia, o sujeito, o objeto a e a pulsão apenas podem ser concebidos na linguagem

(1960/1957:672):

“É a estrutura desse lugar que exige que o nada esteja no princípio da criação e que, promovendo como essencial em nossa experiência a ignorância em que se acha o sujeito, pelo real do

qual recebe sua condição, impõe ao pensamento psicanalítico ser criacionista, ou seja, não se contentar com nenhuma referência evolucionista. Pois a experiência do desejo em que lhe é preciso manifestar-se é justamente a da falta-a-ser pela qual todo ente poderia não ser outro, ou em outras palavras, é criada

como existente”. (1960/1998:673-4).

Lacan coloca, com essa citação, o vazio na origem, na constituição do sujeito.

Vazio este que marca o simbólico e engendra o real a partir do simbólico. Este vazio

cunhará o infindável movimento da cadeia significante, oferecendo inúmeras

possibilidades de significação. O sujeito aparece como corte, como Lacan exprime,

fading, pois o lugar do sujeito se dá na elisão do significante. O autor indica que o ideal

do eu surge no lugar simbólico como lei. A formação imaginária é o eu ideal, aquele que

resulta do estádio do espelho (1960/1998:684-5). Lacan enfatiza então uma concepção

de complementaridade entre simbólico, real e imaginário, sendo que o primeiro constitui

os demais. A linguagem em Lacan está referida à lei, ao simbólico, à estrutura, ao

significante, à topologia.

E assim, mais uma vez, reafirmamos que a psicanálise, ao se centrar no

simbólico, permite a concepção da pulsão, da sexualidade perverso-polimorfa e da

relação simbólica com o objeto. Destarte, a concepção do corpo em psicanálise ganha

uma forma original, ou seja, a partir da pulsão, como veremos no capítulo a seguir.

Para encerrar este item, gostaríamos apenas de ressaltar as propostas trazidas

por Beividas. A partir das formulações que apresentamos, podemos reafirmar a

importância de se enfatizar a estrutura. Beividas indica que a tese linguajeira de Lacan

significa trabalhar por uma semiotização do inconsciente32, trabalho implicitamente

32 Segundo Beividas, semiotizar o inconsciente significa “inaugurar uma exploração do inconsciente linguajeiro sob a perspectiva de uma teoria do discurso. Significa considerar lícita a experiência teórica de tentar extrair do inconsciente, tal como teorizado por Lacan, as possíveis estruturações que exibe para além do nível de contrastes fonêmicos (as homo/heterofonias já largamente exploradas por ele), para

70

esboçado desde Freud, e colocar o inconsciente estruturado como linguagem no

paradigma da Semiótica. Por isso, enfatiza Beividas, a necessidade de se retornar à

estrutura do inconsciente (2002:298). Daí, então, poderemos deixar de opor os registros

e compreender a pulsão indissociada do simbólico.

Beividas destaca a tendência dos pós-lacanianos de enfatizar o real em

detrimento do simbólico. O autor acredita que nessas orientações existe um espaço

teórico de investigação que exige que se retome a exploração das estruturas

linguajeiras do inconsciente. Há uma necessidade de se retornar ao registro simbólico

ou do significante e estipular a estrutura da linguagem do inconsciente como evidência

interna da psicanálise (2002:292).

Portanto, com o retorno à estrutura, poderemos afirmar, ainda com Beividas, que

a pulsão tem um estatuto eminentemente simbólico, o que possibilita descrever o cunho

psíquico ou anímico de Freud (1995:09-10). Pois, ao contrário, continuaremos num

embate irresoluto do dualismo corpo x mente, real x simbólico...

além do signo lingüístico (nível semiológico a que Lacan põe severas restrições), para além da estruturação frasal, enfim, até mesmo para além da linguagem estritamente verbal. Significa interceptar o inconsciente no nível de estruturas que se desenvolvem nas dimensões do discurso, seja ele verbal, visual, gestual” (2002:298-9). Este poderia ser considerado um argumento possível para um futuro questionamento, que poderia se desdobrar em um trabalho de doutorado.

71

CAPÍTULO III – A GRAMÁTICA PULSIONAL EM FREUD

“Um ‘instinto’ nos aparecerá como sendo um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático,

como o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida de exigência feita à mente no sentido de trabalhar em conseqüência de sua ligação

com o corpo”. (FREUD, 1915/1996:127)

“A ordem humana se caracteriza pelo seguinte – a função simbólica intervém em todos os momentos e em todos os níveis de sua existência”.

(LACAN, 1954-55/1985:44)

Articular a pulsão com o significante implica entender sua lógica de

funcionamento, muito mais do que suas características separadamente ou como uma

energia ou intensidade somente. Compreender esta lógica implica em diferenciá-la

completamente do instinto e aceitar a condição primeira da linguagem em relação ao

sujeito e a cultura. Considerando a pulsão como significante, estamos no domínio do

que trabalhamos no capítulo anterior com Fortes (2006), ou seja, o critério diferencial e

de diferenciação. Isto porque essa articulação apenas é possível se for concebida a

partir do pensamento estrutural. Nestes dois últimos capítulos, veremos que a lógica da

pulsão, assim como a lógica do significante, obedece a tais critérios, ou seja, definem-

se a partir de uma lógica de oposição e pela dinâmica constante. Foi isso que Freud

nos legou: a gramática pulsional. Os esforços freudianos para delimitar o conceito de

pulsão, inscrevendo-a no cerne da concepção psicanalítica, rumaram para apresentar a

lógica pulsional, ou seja, conceber a pulsão como um mecanismo, ou como uma

72

“montagem”, se utilizarmos os termos de Lacan (1960-64). Compreendê-la como uma

lógica, que engloba a dinâmica constante, a montagem, nos tira das querelas de se

pensar somente em termos quantitativos ou um fora do simbólico. Assim, nosso intento

neste capítulo é apresentar o pensamento de Freud que nos levam a compreender a

gramática pulsional, expondo sua dinâmica de funcionamento. Apenas deste modo,

poderemos, em nosso último capítulo, utilizando as concepções lacanianas, formular a

pulsão em termos de significante.

Que a característica central da pulsão é a força constante, não se discute.

Entretanto, o que nos interessa pensar a partir daí, é o funcionamento, a lógica

implicada nesta força constante. É isto que verificaremos nos momentos em que Freud

discorre sobre a pulsão. A ênfase recai sobre a força constante, responsável pelo seu

movimento, mais do que a representação, ou melhor, sua correspondência a uma

representação, que lhe ofereceria um destino. Como veremos, para Freud (1911), não

cabe a discussão da relação pulsão e representação num a posteriori, pois o que está

em jogo é a simultaneidade entre pulsão e representação. Daí, a ênfase recair sobre a

força constante. Em torno dessa lógica, vemos girar o corpo, a linguagem e o outro.

Nesse sentido, nossa proposta é demarcar a pulsão como a marca da incidência da

linguagem sobre o corpo. Por isso os postulados acerca da relação de objeto, o objeto

perdido, a sexualidade perverso-polimorfa e o movimento inesgotável da pulsão.

A pulsão é a marca do corpo na psicanálise. Submetido ao simbólico, o corpo

proposto pela psicanálise difere-se de circuitos anatômicos e não corresponde a

correlatos fisiológicos. O corpo de que a psicanálise fala é de outra ordem. Portanto,

podemos dizer que se trata de um corpo inscrito na ordem da linguagem.

Desnaturalizado, ele é resultado de uma ruptura com a ordem natural. Talvez, se é

possível dizê-lo, o corpo é um dos dados primordiais, se não o primordial, para verificar

a inscrição do sujeito às leis da linguagem. A leitura psicanalítica acerca das pulsões,

da representação, da castração da sexualidade perverso-polimorfa, do corpo histérico,

que responde a uma lógica distinta da anátomo-fisiologia, do corpo despedaçado da

psicose, do corpo que sofre no masoquismo, dentre outros, atestam para o corpo da

psicanálise. Ela nos traz aparatos para compreendermos como sujeito e corpo se

73

constituem numa alteridade. Nesse sentido, a concepção psicanalítica do corpo trazida

por Freud rompe com a configuração positivista da ciência da época.

Birman (2005:59) coloca que enquanto o organismo é submetido às regras da

Biologia, o corpo é atravessado por forças pulsionais. O organismo é solipsista, regido

por mecanismos automáticos de auto-regulação. O corpo é alteridade, constituído por

uma ruptura com a natureza. Dessa maneira, sujeito e corpo constituem-se

simultaneamente numa dinâmica de inscrição no simbólico. O desamparo original que

marca o sujeito do qual Freud nos fala no “Projeto para uma psicologia científica”

(1895), é mais um desamparo simbólico, do que físico. O que atesta para o fato de que

o que está em jogo na experiência de satisfação, bem como nas relações que envolvem

os cuidados maternos, é mais uma dinâmica de significantização do corpo do que

apenas a satisfação das necessidades vitais. É neste jogo em que se dá o circuito

pulsional, como veremos durante este capítulo.

Garcia-Roza (1990:18) argumenta que se a psicanálise toma a linguagem como

princípio, isto implica numa necessidade de forjar um corpo segundo referenciais que

são dela e não da biologia. Postular a condição humana sob outra lógica, que não a

biológica, implica em conceber a pulsão. Para Garcia-Roza, Freud funda “um novo

corpo e uma nova alma” (2004:9). Desse modo, o corpo não pode ser considerado

como um dado, mas, sim, construído. Não significa também que, com isso, a

psicanálise recuse a biologia. Ela considera a materialidade orgânica que compõe um

corpo. Entretanto, tal materialidade não coincide com uma totalidade do corpo, uma

organização do imaginário que é atravessada pelo simbólico. A materialidade é

secundária. A totalidade é efeito da inscrição simbólica, oferecida pela dinâmica com o

outro. O semelhante oferecerá ao sujeito meios para que tal inscrição ocorra. Nesse

sentido, estando o outro também atravessado pelo simbólico, o que está em jogo aqui é

o simbólico, esta ordem inaugurada pela linguagem.

Como vimos no primeiro capítulo, quando Freud afirma no trabalho sobre as

afasias (1891) que um aparelho de linguagem apenas se constitui com relação a outro

aparelho de linguagem, podemos verificar que essa relação inequívoca do sujeito com

a alteridade está sendo demarcada. Esse outro aparelho pode apenas ser suporte para

constituir um novo aparelho, porque ele mesmo está inscrito na linguagem. Além disso,

74

pudemos constatar, a partir de Nassif e Garcia-Roza, que Freud situava o sujeito como

efeito da linguagem.

Sendo, portando, a linguagem a condição do psiquismo na psicanálise,

pretendemos circunscrever a pulsão igualmente neste campo, sobretudo a partir das

formulações do estruturalismo, as quais trabalhamos no segundo capítulo.

Para nos organizarmos, adotamos didaticamente a divisão entre a primeira e a

segunda tópica. Assim, em nossa apresentação, preferimos dividir o conteúdo:

abordaremos as concepções até 1915, estabelecendo uma ponte até 1920, para então

introduzir as formulações a partir dessa virada.

3.1 A lógica pulsional até 1915

A linguagem, enquanto operadora da cultura e do sujeito, engendra uma

desnaturalização do corpo e da ordem da necessidade, impondo uma falta estrutural,

na qual se inscreve o desejo e a pulsão. A satisfação passa a ser parcial, pois envolve

sempre um resto, à medida que não há objeto pleno para a satisfação. Esta é a

condição da pulsão. Dessa maneira, é a linguagem que constitui a pulsão e ela mesma

implica no resto não satisfeito da pulsão, que leva ao seu movimento de repetição, na

busca do objeto perdido. São estes pontos que observaremos Freud delinear acerca da

pulsão. Neste item, percorreremos desde os primeiros estudos psicanalíticos até as

formulações das características da pulsão de 1915. Verificaremos a pulsão situada na

fenda deixada pela ruptura com a ordem natural efetuada pela linguagem.

A ruptura entre um estado de natureza e a constituição do sujeito e da cultura é

elucidada por Freud em “Totem e tabu” (1913 [1912-13]), com o mito do assassinato do

pai da horda primeva, que tem a castração como ponto central.

Ao nos falar de uma ruptura com a ordem natural, Freud aloca a pulsão na

hiância provocada pela inscrição do sujeito nas leis da linguagem33, ou seja, a pulsão

como um conceito limite entre o psíquico e o somático situa o sujeito num intervalo

entre natureza e cultura. Sendo assim, o corpo biológico passa a estar inscrito nas leis

33 Freud não utiliza tais termos. Ele postula a noção de um movimento de ruptura com a natureza, o que funda o sujeito e a cultura. A leitura lacaniana nos permite formular a proposta trazida por Freud acerca da constituição da cultura e do sujeito como atravessados pela linguagem.

75

da linguagem e, por isso, representado psiquicamente. Andrade comenta Birman,

indicando que o lugar limítrofe da pulsão se traduz num intervalo insuperável, que

permanece sempre aberto, justificando o movimento da pulsão (BIRMAN apud

ANDRADE, 2004:68).

Nesse momento, Freud articula o desencontro entre pulsão e objeto e demarca o

caráter incessante da pulsão, como condição inaugurada pelo advento da linguagem.

Assim, o que verificamos é a linguagem como condição da pulsão. Há a necessidade

de uma inscrição simbólica para se falar de pulsão, inclusive de sua parte não

representável, sua marca primordial. Além disso, ao discorrer sobre uma hiância, a

pulsão parcial, Freud nos fala sobre a castração. A leitura que Lacan faz da castração,

como veremos adiante, insere este conceito na problemática da Lei estrutural. Por isso,

a castração pode ser compreendida como motor do infindável retorno da pulsão.

Vejamos então como este conceito foi delineado.

Nosso percurso se inicia nos estudos entre 1886-1894 onde verificamos as

primeiras construções de Freud acerca do funcionamento psíquico. Aqui é importante

destacar alguns pontos. Esse período foi marcado pelo encontro de Freud com as

histéricas e seus corpos dissonantes do funcionamento anátomo-fisiológico, o que o

leva a inaugurar uma nova abordagem do corpo34, como foi desenvolvido mais acima.

Com os estudos sobre a histeria na Salpêtrière, Freud distancia-se da

neurologia, rumando para a psicologia. Percebendo que há algo de mental atuando

sobre o corpo, neste período já esboça a idéia de representação do corpo. Além disso,

defende a concepção de que o corpo é pura alteridade, ou seja, ele se constrói pelo

viés do outro, à medida que o corpo histérico envolve um estranhamento.

Os sintomas histéricos levam Freud a definir um corpo que não se equivale ao

organismo. Sendo assim, há algo diferente de instintos e necessidades orgânicas.

Trata-se de um corpo que funciona porque se submete ao psíquico. Passa a interessar

à psicanálise o corpo representado. Mente e corpo deixam de estar dissociados e

passam a influenciar-se mutuamente. Esta é a grande mudança estabelecida por

34 As primeiras formulações sobre o corpo e a linguagem efetuadas por Freud neste período foram por nós trabalhadas no item 1.2. Por hora, apenas indicaremos as conseqüências destas para o conceito de pulsão, enfatizando, nesse sentido, a relação linguagem e pulsão.

76

Freud: saímos de um campo organicista, de um paralelismo excludente e passamos a

um paralelismo marcado pela simultaneidade. Não podemos, a partir desse ponto

separar corpo e linguagem, ou pulsão e linguagem35.

O paralelismo marcado pela simultaneidade, concebido por Freud, aloca a

linguagem como condição humana, permitindo, ao autor pensar no aparelho psíquico

em termos topológicos, o que possibilita as noções de associação e representação, ou

seja, uma dinâmica de funcionamento. Consideraremos neste trabalho essa dinâmica

como fundamental para o conceito de pulsão. Além disso, nestes primeiros trabalhos,

averiguamos estar indicadas as noções do princípio de inércia e constância, bem como

as noções de soma de excitação e trauma, idéias intimamente ligadas ao conceito de

pulsão. Se podemos dizê-lo, estamos aqui observando os primórdios da pulsão. Isto

porque Freud nos fala em termos de uma excitação que insiste, que se mantém, que

busca descarga adequada e do trauma como algo disruptivo, não encadeado, que é

pura repetição (1940-41[1892]/1996:195-6):

“... as experiências psíquicas que formam o conteúdo dos ataques histéricos têm uma

característica que lhes é comum. Todas são impressões que não conseguiram encontrar uma descarga adequada, seja porque o paciente se recusa a enfrenta-las, por temos de conflitos mentais angustiantes, seja porque (tal como ocorre nos casos de impressões sexuais) o paciente se sente proibido de agir, por

timidez ou condição social, ou, finalmente, porque recebeu essas impressões num estado em que seu sistema nervoso estava impossibilitado de executar a tarefa de eliminá-las”

(FREUD, 1940-41[1892]/1996:196) e

“Chegamos, assim, também, a uma definição de trauma psíquico, que pode ser empregada na teoria da histeria: transforma-se em trauma psíquico toda a impressão que o sistema nervoso tem

dificuldade em abolir por meio do pensamento associativo ou da reação motora”. (Idem)

Com tais argumentos, constatamos o esboço da teoria das pulsões. Ainda não

nomeada, a pulsão se coloca como a marca do corpo da psicanálise, resultado de sua

submissão ao simbólico, por isso não pode ser separada dele. A partir dessas

inferências, convidamos o leitor a percorrer outros trabalhos de Freud para verificarmos

como essas noções foram trabalhadas.

O primeiro ponto em que devemos nos deter é a respeito da desnaturalização do

corpo e do determinismo da linguagem. Como trabalhado no primeiro capítulo, o texto

de 1891, Contribuição à concepção das afasias, já demonstra a impossibilidade de se

35 A noção do paralelismo foi por nós trabalhada no item 1.1.

77

pensar num fora da linguagem. Os fatos humanos apenas podem ser compreendidos a

partir dela. A dinâmica de constituição do aparelho de linguagem implica sempre um

outro que, por princípio, também está inscrito na ordem da linguagem. Isto é o

fundamental. É essa inscrição que permite que o semelhante possa significantizar os

impulsos provindos do corpo do bebê, oferecendo-lhe uma inscrição simbólica,

conferindo a possibilidade da pulsão. Se nos esforçarmos um pouco mais, podemos

observar que em 1891 Freud já postulava algo que podemos aproximar do significante:

“para a psicologia, a palavra é a unidade de base da função da linguagem, que se evidencia ser uma representação complexa, composta de elementos acústicos, visuais e cinestésicos...”

(FREUD, 1891/1987: 123). Estes serão os pontos nos quais nos centraremos no percurso proposto.

Pretendemos, portanto, circunscrever o surgimento do conceito de pulsão e suas

relações com o representante.

Os primeiros trabalhos sobre a histeria, bem como o texto sobre as afasias, já

abarcam um esboço do que Freud viria a formular no “Projeto para uma psicologia

científica” (1895). Neste, concebe um corpo distinto do biológico, fonte de sensações

com as quais o aparelho psíquico trava um embate, sensações estas que são

significantizadas pelo outro, transformadas em pulsão. Vejamos como se

desenvolveram tais noções em Freud.

O trabalho empreendido no “Projeto para uma psicologia científica” (1985) teve

como objetivo apresentar o funcionamento do aparelho psíquico em termos

termodinâmicos e topológicos. Estes recursos demarcavam a nova atitude científica de

Freud, que rompia com a ciência positivista da época e com a neurologia. O autor

utilizou-se de termos emprestados desta ciência, no entanto seu uso é completamente

hipotético, posto que o intento de Freud era oferecer à psicologia o caráter de ciência,

através da representação dos processos mentais em estados quantitativamente

determinados (1895/1996:347). Contudo, o “Projeto” é muito mais do que uma ideação

científica: Freud apresenta aqui o fundamento da psicanálise. Nele estão esboçadas

suas noções centrais, possíveis a partir da condição imposta pela linguagem. Dentre

essas noções, citamos algumas: o funcionamento do aparelho psíquico, os

trilhamentos, a quantidade / qualidade, a introdução do eu, os processos primários e

secundários e a vivência de satisfação; podemos dizer que todas essas noções

78

apresentadas por Freud no texto de 1895 serão mais tarde os alicerces que

possibilitarão a construção do conceito de pulsão.

Em 1895, Freud não nomeia a pulsão, mas propõe quantidades de excitação de

origem endógena, que não cessam, pois exigem descarga total e por isso não permitem

meios de fuga. Diante deles, apenas é possível a descarga adequada, ou seja, a ação

específica. O princípio de inércia neuronal explica a dicotomia estrutural dos neurônios

motores e sensoriais, que vivem em um embate entre a necessidade de descarga total

e a possibilidade de satisfação. Esta é administrada pela ação específica, que depende

de um certo acúmulo de excitação para que sobrevenha. Aqui entra em cena a lei da

constância. Trata-se, dessa forma, de um aparelho capaz de receber e transformar a

excitação, promovendo um destino a ela (1895/1996:347-50). Estamos aqui, e muitos

comentadores asseveram essa idéia, diante dos primórdios do conceito de pulsão:

“... o princípio da inércia explica a dicotomia estrutural (dos neurônios) em motores e sensoriais,

como um dispositivo destinado a neutralizar a recepção de Qn, através de sua descarga. O movimento reflexo torna-se compreensível agora como uma forma estabelecida de efetuar essa descarga: a origem

da ação fornece o motivo para o movimento reflexo”. (FREUD, 1895/1996:348).

Este mecanismo de descarga e retenção constitui o cerne do funcionamento do

aparelho psíquico. Não se tratando mais de um aparelho que responderia apenas à

qualidade das sinapses, mas que possui uma lógica, observamos um outro campo

sendo configurado: não mais dos instintos, estímulos e respostas, mas das pulsões. Há

uma dinâmica e uma lei a serem obedecidas, nas quais estão em jogo a repetição e a

diferença.

É partindo deste ponto que podemos tomar as formulações de Derrida (1971)

acerca da noção de diferença pura, para apontá-la como a condição de estruturação

do aparelho psíquico. Se falamos em capacidade de armazenamento e descarga de

excitação, estamos no campo de uma diferença de excitações e de lugares psíquicos,

cada qual com sua função determinada. Mais ainda, Freud concebe a idéia dos

trilhamentos ou vias que podem estar dificultadas em determinado sentido e facilitadas

em outros. Seria num movimento, numa dinâmica dessas vias, que a excitação

encontraria destino apropriado. A partir desse diferencial de caminhos, poder-se-ia

estabelecer a memória e a repetição (FREUD, 1895/1996:351-3).

79

É importante nos determos neste ponto. Cada estado de urgência exige uma

ação específica para que sobrevenha a satisfação. Quando isto ocorre, é deixada uma

marca, um traço de memória, ou seja, uma facilitação entre a necessidade e a ação que

proporcionou a satisfação. Diante de um novo estado de urgência, tal facilitação é

investida, ocasionando uma repetição em busca da satisfação anteriormente obtida.

Este mecanismo é regido pelo processo primário, no entanto, não engendra a

satisfação, mas a alucinação, pois não houve investimento em um objeto real. Dá-se,

nesse momento, a experiência de dor. A diferenciação entre os sistemas que compõem

o aparelho ocorrem a partir dessa dinâmica de investimento – dor – satisfação real. Isto

porque, frente à experiência de dor, impõe-se necessidade de uma satisfação efetiva

para garantir a manutenção da vida (FREUD, 1895/1996:368-73). Disso extraem-se

inúmeras conseqüências:

1) A saída de um estado disperso de excitações, de um caos para uma primeira

organização;

2) Esta primeira organização seria muito primitiva e corresponderia às primeiras

ligações das excitações, efetuadas pelo primeiro esboço de eu. A partir daí,

haveria uma mínima possibilidade de diferenciação entre uma alucinação e um

objeto real. Este seria o solo de funcionamento do processo secundário;

3) O apelo ao outro, pois no momento em que a satisfação falha com a alucinação,

há a necessidade de uma demanda ao outro, responsável pelas ações

específicas que permitiriam a satisfação. O outro entra no circuito da excitação

promovendo uma significantização delas, inserindo-as no registro simbólico;

4) À medida que o aparelho psíquico se estabelece a partir das diferenciações, aos

poucos vai se tornando capaz de empreender por si só a diferença entre uma

representação-lembrança (alucinação) e uma representação-percepção (objeto

real). Isto porque, na experiência de dor, um elemento perceptivo é extraído do

processo, mantendo-se como elemento perceptivo constante e ao mesmo tempo

a marca da estranheza, do diferencial perceptivo. Trata-se de das Ding. Este

seria o elemento que diz que qualquer outra percepção de demais objetos não é

idêntica ao objeto alucinado de satisfação, que marca a desarmonia entre os

objetos posteriores investidos pelo sujeito e o objeto que daria conta de uma

80

suposta satisfação plena. Como veremos mais adiante, engendraria o eterno

movimento repetitivo da pulsão;

5) Temos: 1º) Um estado de caos, de um disperso de excitações; 2º) a vivência de

satisfação seguida pelo investimento de um traço de memória (processo

primário), que produz a alucinação; 3º) a experiência de dor; 4º) o apelo ao outro

como veículo de introdução ao simbólico, transformando estas excitações em

pulsões36; e 5º) constituição do eu como responsável pelas primeiras ligações do

disperso de excitação.

Com essas operações, Freud nos apresenta pontos fundamentais da pulsão.

Trata-se, inicialmente, de um momento mítico de indiferenciação original, o auto-

erotismo, no qual as excitações encontram-se em estado bruto, dispersas. O eu advém

como uma organização proporcionando as primeiras ligações das excitações. Assim, no

auto-erotismo não há diferenciação entre o que é um disperso de excitações e o que

são os objetos. Esta primeira forma de organização do corpo se configura como um

amontoado de sensações descoordenadas e indistinguíveis, pois ainda não foi

erotizado. Quando advém uma primeira organização é do eu e não do corpo, no sentido

de promover a ligação das sensações dispersas, o que permite apenas uma primeira

possibilidade de distinguir entre interior e exterior do aparelho e não do corpo:

“... em Ψ se formou uma organização cuja presença interfere nas passagens (de quantidade) que, na primeira vez, ocorreram de determinada maneira (isto é, acompanhadas de satisfação ou dor). Essa

organização se chama “ego”. (FREUD, 1895/1996:375)

É a partir da vivência de satisfação que Freud aborda a constituição do eu no

“Projeto para uma psicologia científica”. Quando fala a respeito da relação do bebê com

o outro (1895/1996:370), propõe que este é fundamental, pois além de oferecer os

cuidados vitais frente ao estado de prematuração do bebê, possibilita, a partir da

manipulação de seu corpo na manutenção destes cuidados, sua erotização. Além

disso, caracteriza este momento como inaugural do aparelho psíquico, denominando-o

de complexo do semelhante. Freud ressalta que o grito da criança, resultante da

experiência de dor entra num circuito de comunicação com o semelhante. Esta

36 Retornaremos a este ponto mais adiante.

81

demanda é essencial, pois é apenas com a entrada do semelhante nesse circuito que é

possível a constituição do aparelho e do sujeito. Freud argumenta um estado de

desamparo original no qual todo ser humano nasce e que é responsável pelo

movimento de apelo ao outro para que seja possível a subjetivação:

“Suponhamos que o objeto que compõe a percepção se pareça com o sujeito – um outro ser

humano. Nesse caso, o interesse teórico [que lhe é dedicado] também se explica pelo fato de que um objeto semelhante foi, ao mesmo tempo, o objeto satisfatório [do sujeito], seu primeiro objeto hostil, além

de sua única força auxiliar. Por esse motivo, é em relação a seus semelhantes que o ser humano aprende a conhecer”.

(FREUD, 1895/1996:383) e

A inervação da fala é, a princípio, uma via de descarga para ψ, que atua como válvula de segurança, servindo para regular as oscilações de Qn; é uma parte da via que conduz à mudança interna, que representa a única descarga enquanto não se redescobre a ação específica. Essa via

adquire uma função secundária ao atrair a atenção da pessoa que auxilia (geralmente o próprio objeto de desejo) para o estado de anseio e aflição da criança; e, desde então, passa a servir ao propósito da

comunicação, ficando assim incluída na ação específica”. (FREUD, 1895/1996:421)

Sobre isso, Garcia-Roza (2001:130-3) nos aponta que, inicialmente, neste

momento de indiferenciação mítico por excelência, o bebê não faz diferença entre o que

é ele e o que é o outro. Isso faz com que o outro, ou partes do objeto sejam percebidas

como sendo parte de si. Dessa maneira, não há um corpo constituído, contornado por

limites originariamente, sendo impossível a distinção entre eu-mundo. Por isso, o bebê,

frente a um estado de urgência, ou seja, qualquer desconforto sentido, investe na

representação-lembrança do objeto que outrora lhe proporcionou satisfação, exercendo

uma descarga motora. No entanto, somente esta não é eficaz para a satisfação, pois

não está mediada pelo outro, sendo assim, ocorre uma alucinação. Como não houve

modificação interna, exigida pelo estado de urgência, o bebê chora. O choro do bebê é,

portanto, elemento fundamental para o apelo ao Outro. Garcia-Roza ressalta que o

choro deixa de ser mera agitação motora e passa a se inscrever num registro de

comunicação com o outro. Mais ainda, o desamparo de que Freud fala é um desamparo

simbólico, o ser humano nasce num estado de prematuração simbólica. O semelhante

com as respostas ao choro do bebê insere-o na ordem simbólica.

Esta constituição, que se inicia com a experiência alucinada de satisfação, retira

o sujeito do auto-erotismo, momento em que não existem estabelecidos limites entre eu

e mundo. Ela abarca não somente a constituição psíquica do sujeito, mas a constituição

82

do corpo, pois inicia seu esboço organizando a excitação nas pulsões parciais que

Freud concebe em 1905. O que antes era marcado por um organismo descoordenado,

não significantizado, inicia sua inscrição no Outro, a partir da dinâmica com o

semelhante.

O mecanismo da ligação, apresentado por Freud no “Projeto para uma psicologia

científica” atende a uma demanda de manutenção da vida37. Ele postula a necessidade

de uma saída do auto-erotismo para evitar que o aparelho sucumba. A primeira

estrutura que ali surge é o eu, estabelecendo as primeiras ligações e garante o

investimento em um objeto real, o que e impede a alucinação. Garcia-Roza (2001:149)

nos traz um importante ponto acerca da função do corpo neste momento. Aponta que

neste momento primitivo de organização, na experiência primária de satisfação deve

ser a ela atribuída um prazer. Não há aqui o princípio de prazer, mas o prazer do órgão,

que posteriormente se erige em princípio. Nesse sentido, o corpo serve aqui como

aquele que emana uma sensação, entendida psiquicamente como prazer. Esta

sensação prazerosa, através da função da ligação, passa ao princípio de prazer.

Constatamos, aqui, o corpo como fonte de sensações, que permite um esboço de

organização.

O conceito de pulsão é expressamente trazido por Freud em seus “Três ensaios

sobre a teoria da sexualidade” (1905), no qual, ao discorrer sobre as pulsões parciais e

a sexualidade infantil, nos possibilita compreender o mecanismo de erotização do

corpo. Outro ponto importante apresentado por Freud, e o que já vinha se delineando

desde o “Projeto para uma psicologia científica”, é o lugar do outro na dinâmica

pulsional.

Este trabalho de 1905 é marcado pela afirmação da perversão como presente na

vida sexual dos neuróticos e da existência da sexualidade infantil. Com isso, Freud

designa a sexualidade humana como perverso-polimorfa, separando a atividade sexual

da reprodução, o que demarca o esforço de retirar a concepção humana de um ponto

de vista biológico, centrando-a na linguagem.

37 Demanda que provém do princípio de inércia neuronal (baseada no modelo do arco-reflexo), a lei da constância (como reserva de quantidade para garantir a manutenção do vivo) e os processos primário e secundário (processos reguladores do aparelho).

83

“... há entre a pulsão sexual e o objeto sexual apenas uma solda, que corríamos o risco de não ver em conseqüência da uniformidade do quadro normal, em que a pulsão parece trazer consigo o

objeto. Assim, somos instruídos a afrouxar o vínculo que existe em nossos pensamentos entre a pulsão e o objeto. É provável que, de início, a pulsão sexual seja independente de seu objeto, e tampouco deve

ela sua origem aos encantos deste”. (FREUD, 1905/1996:140).

Isso tem inúmeras conseqüências, e talvez aí resida o cerne da pulsão. Vejamos

como.

Na “Conferência XXI” (1917[1916-17]/1996:327), Freud propõe que na

sexualidade infantil não existe uma centralização em parte específica do corpo para a

obtenção de prazer. Demarca que as pulsões parciais possuem iguais direitos, cada

uma delas buscam o prazer separadamente.

“... À sexualidade infantil, por outro lado, falando genericamente, falta essa centralização; seus instintos componentes separados possuem iguais direitos, cada um dos quais seguindo seus próprios

rumos na busca do prazer. Naturalmente, tanto a ausência como a presença da centralização harmonizam-se bem com o fato de que tanto a sexualidade pervertida como a normal surgiram da

sexualidade infantil”. (FREUD, 1917[1916-17]/1996:327-8)

Lacan (1959-60/1988:118) propõe que as zonas erógenas se limitam a pontos

eleitos, de hiância, constituindo-se “bocas na superfície do corpo”, de onde Eros extrai

sua fonte. Por isso e em decorrência deste corpo altamente excitável, da existência da

variabilidade de objetos e da parcialidade da satisfação, pôde conceber as pulsões

parciais. Há assim um correlato interessante entre o corpo como completamente

erotizado e a constituição psíquica da pulsão, ou seja, parcial. Freud, então, traça um

paralelo entre a constituição do corpo e a organização da pulsão. Afirma

(1905/1996:159) que as zonas erógenas adquirem um colorido específico em cada

possibilidade de corporeidade. Isto é, o corpo do auto-erotismo, no qual ele próprio é a

fonte e o objeto da pulsão (1905/1996:170); a fase oral, na qual o prazer é centrado na

boca, momento que Freud designa de fase canibalesca, pois é marcada pela introjeção

do objeto (1905/1996:187); a fase sádico-anal, no qual o ânus e a possibilidade do

controle dos esfíncteres e as fezes são produtores de prazer e a relação com o outro é

marcada pela possibilidade da criança se negar a ele. Entra em cena um jogo com o

outro (1905/1996:175); a fase fálica, quando há a descoberta da diferença sexual e a

ausência e presença do pênis, que leva a criança a investir em outros objetos

84

(1905/1996:176-7); o período de latência, no qual ocorre um amortecimento da

atividade pulsional, pois o corpo ainda não está preparado para a atividade sexual em

si. Abre-se então a possibilidade para o trabalho intelectual (1905/1996:166 e 193); e a

organização genital adulta, na qual há a possibilidade da relação sexual.

Com estas fases, Freud nos fala do corpo erógeno. Todo o corpo é uma zona

erógena. Não se trata de um todo corporal, mas de um prazer que é descentralizado,

ou melhor dizendo, as diferentes partes do corpo participam isoladamente na produção

do prazer. Além disso, Freud ressalta que mais do que as partes do corpo, está a

qualidade do estímulo num primeiro plano na possibilidade de obtenção de prazer:

“... podemos ainda deduzir várias coisas para a caracterização do que é uma zona erógena. Trata-se de uma parte da pele ou da mucosa em que certos tipos de estimulação provocam uma

sensação prazerosa de determinada qualidade. Não há dúvida de que os estímulos produtores de prazer estão ligados a condições especiais que desconhecemos. Entre elas, o caráter rítmico deve

desempenhar algum papel... Assim, a qualidade do estímulo mais do que a natureza das partes do corpo, é que tem a ver com a produção da sensação prazerosa”.

(FREUD, 1905/1996:172-3)

O fato de cada pulsão relacionar-se à determinada zona erógena, implica numa

organização, o que permite o estabelecimento de limites ao corpo. Trata-se de uma

organização do estado de dispersão pulsional. Freud (1905) descreve, assim, o

mecanismo de erotização do corpo. Nesta dinâmica, estão em jogo as zonas erógenas,

fontes das pulsões parciais e a relação com o semelhante. Retorna a noção de

desamparo, trazida no “Projeto”, para ressaltar a importância do outro, que manipula o

corpo da criança em seus cuidados vitais. Nessa manipulação, produz a erotização do

corpo, situando as pulsões, que inicialmente encontrava-se num estado de dispersão,

nas zonas erógenas. Freud postula que o mecanismo de erotização é uma fonte

infindável de excitação e satisfação sexual para a criança. Nesse sentido, o que Freud

afirma é o corpo erógeno, constituído pela manipulação do corpo da criança pelos

cuidados maternos. Essa erotização é a nomeação, significantização das sensações

corporais, circunscrevendo-o na linguagem. Na conferência sobre o simbólico, o

imaginário e o real (1953), Lacan apresenta a articulação entre os três registros. O que

ele nos fala muito se aproxima do que Freud postulou em 1905, ou seja, Lacan aborda

todo o tempo um jogo relacional entre imaginário e simbólico. Quando Freud discorre

85

sobre as zonas erógenas, a constituição do corpo erógeno e a dinâmica das pulsões

parciais, enfatiza o jogo com a alteridade e a submissão ao simbólico. É o que Lacan

trabalha nessa conferência, colocando o imaginário atravessado pelo simbólico. A libido

está no eixo imaginário, é no jogo com o outro que a libido corta a carne, significantiza o

corpo. No entanto, isto é possível apenas pelo atravessamento do simbólico (LACAN,

1953/2005:16-25).

Temos, então, em 1905, as implicações do conceito de pulsão: a sexualidade

perverso-polimorfa afasta o sexual do domínio da natureza e, conseqüentemente, da

finalidade exclusiva da reprodução. Destarte, aloca-a no registro da linguagem,

indicando a contingência dos objetos, ou seja, a variabilidade de objetos e maneiras

pelas quais a pulsão pode se satisfazer; o fato da pulsão ser parcial, o que torna todo o

corpo fonte da pulsão; a entrada do outro no circuito da pulsão; e o fato de que as

pulsões também servirem à conservação da vida. Freud introduz, então, a primeira

dicotomia pulsional: pulsões sexuais (que visam à satisfação e têm a libido como

energia) e as pulsões de autoconservação (que preservam a integridade do eu).

“Por pulsão podemos entender, a princípio, apenas o representante psíquico de uma fonte endossomática de estimulação que flui continuamente, para diferencia-la do estímulo, que é produzida

por excitações isoladas vindas de fora. Pulsão, portanto, é um dos conceitos da delimitação entre o anímico e o físico... O que distingue as pulsões entre si e as dota de propriedades específicas é sua

relação com suas fontes somáticas e seus alvos. A fonte da pulsão é um processo excitatório num órgão, e seu alvo imediato consiste na supressão desse estímulo orgânico”.

(FREUD, 1905/1996:159)

No entanto, esses termos somente foram formalizados em 1910, no trabalho “A

concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão”. Segundo Strachey

(1910/1996:219), é neste texto que Freud emprega pela primeira vez o termo pulsão do

eu, identificando-a à pulsão de autoconservação. Propõe a vida psíquica regida por um

embate dinâmico entre as pulsões sexuais e as pulsões do eu, o que enfatiza a pressão

por descarga da pulsão e explica, por esta via, o recalque e a neurose. Retomando,

assim, várias passagens dos “Três ensaios” para colocar o corpo como fonte infindável

das pulsões, sendo todo o corpo, considerado erogeneizável.

86

Em 1914, no trabalho intitulado “Sobre o narcisismo: uma introdução”, Freud

apresenta claramente a constituição do eu e, simultaneamente, a constituição do corpo,

demonstrando como ocorre a organização das pulsões parciais propostas em 1905.

Aqui, ele mantém algumas concepções que havia apresentado no “Projeto para

uma psicologia científica” acerca do auto-erotismo e da vivência alucinada de satisfação

como responsável pela inauguração do aparelho psíquico. No entanto, modifica sua

concepção a respeito da lógica da autoconservação. Concebe, aqui, uma distinção

entre as pulsões do eu e as pulsões do objeto, identificando a autoconservação como

uma pulsão do eu e o investimento objetal com as segundas. Dessa maneira, a

autoconservação deixa de estar relacionada com a conservação do organismo, do vivo,

e relaciona-a com a integridade do aparelho.

Neste momento Freud faz um acréscimo à sua teoria, nos apresentando,

didaticamente, as operações que constituirão o eu, exibindo um movimento de

sofisticação, que as tornarão necessárias à manutenção e à própria constituição do

aparelho psíquico.

Ao proferir sobre a saída do auto-erotismo, caracterizado por investimento no

organismo e pela impossibilidade de distinguir as sensações que dele provém, e a

entrada no narcisismo primário, Freud afirma que esta passagem se dá por uma

alteração no aparelho (1914/1996: 84). Tal movimento é essencial pois, ao impedir que

o bebê alucine a todo o momento, garante a integridade do aparelho, ou seja, o

impedimento da descarga frente a um objeto alucinado.

O narcisismo primário permite uma diferenciação mais eficaz, pois a dinâmica

com o outro, que significantiza as sensações corporais, permite que o bebê tenha uma

primeira percepção de corpo: despedaçado, descoordenado. Além disso, há uma

mínima possibilidade de diferenciação dos objetos prazerosos, dos que não

proporcionam prazer, introjetando os primeiros no eu. Assim, a cada novo estado de

urgência, o eu é investido, já que é a sede dos objetos que poderiam satisfazer a

pulsão. Freud denomina este eu de “puro prazer” (FREUD, 1914/1996:96-8).

Entretanto, mais uma vez a satisfação falha, pois, ao investir nos objetos “contidos” no

eu, e não em objetos reais, o desconforto reaparece, exigindo uma ação mais eficaz.

Constitui-se assim o narcisismo secundário.

87

Neste momento, os objetos que foram introjetados no eu são expulsos e

estabelecem o ideal de eu. A castração, ou melhor, os momentos em que ela foi

marcada para o sujeito quando apontava a impossibilidade de uma satisfação auto-

erótica, impõe ao aparelho a necessidade do investimento em um objeto real para a

garantia de sua integridade (FREUD, 1914/1996:100-2).

Neste trabalho, Freud nos traz alguns pontos fundamentais para

compreendermos a construção do corpo: a noção de um corpo despedaçado,

descoordenado; a concepção de Freud das pulsões de autoconservação, que agora

passam a estar relacionadas à manutenção da integridade do aparelho e não do corpo;

e o fato crucial de que é numa alteridade, ou seja, é a partir do desejo do outro que o

sujeito e o corpo se constituem. O sujeito é, nesse sentido, pura alteridade,

constituindo-se a partir do desejo do outro, que realiza as operações de erotização ao

introduzir a criança num discurso.

Assim, o que verificamos com as operações psíquicas postuladas no texto de

1914 é a constituição do eu alicerçada em mecanismos que ocorrem no corpo.

Portanto, o narcisismo traz, a partir da dinâmica de subjetivação, a passagem de um

corpo indiferenciado e despedaçado a um corpo que adquire seus limites onde estão

localizadas as pulsões. Trata-se aqui de um corpo que se coloca como índice de

separação do outro.

Aqui é importante nos determos. Com o texto sobre o narcisismo, Freud destaca

um ponto fundamental: a dimensão imaginária. Podemos inferi-la à medida que o eu se

constitui por intermédio da imagem do corpo e a partir de uma alteridade. É neste ponto

que pretendemos nos centrar, enfatizando que é por intermédio da dimensão imaginária

que ocorre a constituição do eu e do corpo. Para tanto, é importante apresentarmos

alguns pontos trazidos por Lacan em “O estádio do espelho como formador da função

do eu” (1949). Neste trabalho, Lacan aponta que o bebê nasce num estado de

prematuração, sobretudo de uma prematuração simbólica (1949/1998:100). Por isso,

demarca que todos os esforços do sujeito objetivam suprir tal prematuração. Para tanto,

é fundamental sua inscrição no simbólico. Como já vimos, o outro tem aqui importância

fundamental. Sendo assim, Lacan enfatiza a função imaginária.

88

O autor demarca (1949/1998:97-8) que o outro se coloca para o bebê como o

suporte para sua inscrição no simbólico. Suporte físico, pois além de exercer seus

cuidados, é ele quem segura o bebê diante do espelho. Suporte simbólico, pois é sua

palavra, assegurada pelo Outro, que lhe garante que aquele amontoado de pedaços

que o bebê vê diante do espelho é seu corpo. Dessa maneira, postula que o eu é

constituído pela assunção da imagem do corpo (1949/1998:97). Este eu que se

constitui, é um primeiro eu, anterior ao eu através do qual se relaciona com o outro e

antes de se constituir como sujeito. Portanto, é por intermédio da imagem do próprio

corpo, assegurada pela palavra do outro, que o sujeito se reconhece no espelho.

Este fenômeno de imagem que se impõe sobre o psiquismo já havia sido

postulado por Freud. Em 1925, com “Algumas conseqüências psíquicas da diferença

anatômica entre os sexos”, Freud marca, muito claramente, o corpo como suporte para

a construção da subjetividade. Propõe que é a partir do momento em que a criança

toma conhecimento da diferença sexual, que se coloca diante da questão marcada no

corpo de ter ou não ter pênis, que elabora a castração. É no drama do Édipo que a

criança pode organizar a castração. No entanto, mesmo esta diferença residindo no

corpo imaginário, o fato de se constituir como questão, já implica no simbólico. Trata-se

então de uma tentativa de significantização da castração38. Jaanus (1997:142) destaca

que é no eixo imaginário que a criança simboliza a castração, tomando como exemplo o

jogo do fort-da do neto de Freud. Demarca que os sons dos fonemas fort-da são

tratados pela criança como se fossem partes do próprio corpo. O jogo se dá numa

tentativa de obter aquilo que foi perdido, sendo caracterizado como uma subjetivação.

Fort-da era um jogo pulsional, a partir da linguagem, exercido no imaginário. Com isso a

autora afirma: “o inconsciente freudiano, estruturado como linguagem, ‘se engrena no

corpo’ no ponto da pulsão” (JAANUS, 1997:142). Nesse sentido, o que verificamos é a

pulsão como ponto entre o inconsciente e corpo, fato que o próprio Freud aponta em

vários momentos, formulando que a pulsão é apenas reconhecida a partir de seu

representante psíquico e, portanto, inserida na linguagem. Guardemos este ponto, pois

38 Freud e Lacan abordam momentos distintos de organização. O primeiro fala do corpo em um momento já posterior, organizado a partir da diferença sexual e sua simbolização, momento crucial para a constituição subjetiva. Lacan aborda um momento mais primitivo, uma primeira organização do corpo. O que queremos destacar aqui é que ambos enfatizam os fenômenos de imagem, alocando o corpo como um organizador.

89

será uma das questões discutidas a partir da análise que se seguirá a respeito da

pulsão em 1915.

É no texto de 1915 que Freud nos traz detalhadamente o estudo das pulsões.

Lacan (1964/1985:168) postula que para falar da pulsão Freud faz freqüentemente uso

dos recursos da língua, utilizando as três vias: ativa, passiva e reflexiva. Além disso,

marca o que é fundamental: o caráter circular do percurso da pulsão. É sobre este

caráter circular que se situam os pontos de 1915: a relação da pulsão com o objeto,

com o outro e o esboço da pulsão como repetição.

Freud, ao situar a pulsão na fronteira entre o psíquico e o somático, nos remete

ao seu estatuto de significante. Isto porque ela não se equivale ao instinto, não se situa

com relação ao organismo natural, apenas é possível pela ruptura efetuada pelo

significante com esse estado de natureza. Nesse sentido, a pulsão é o efeito da

linguagem, do significante sobre o sujeito, aqui, mais especificamente, ao corpo do

sujeito. O que nos chama atenção neste texto é que Freud situa (1915/1996:127-9), de

saída, as características da pulsão: força constante, finalidade, objeto e fonte. É em

torno destas características que Lacan se debruça (1964) para falar da pulsão como

significante, demarcando que o que está em jogo na pulsão não é a energia, mas seu

caráter circular, constante, de sua possibilidade efetuada pela linguagem, por isso é

significante. Em 1959-60 Lacan afirma, retomando Freud, que as pulsões são plásticas

e que se relacionam entre si como uma rede, relacionada à própria combinatória de

significantes.

Encontramos em Freud alguns pontos com os quais poderíamos nos adiantar

para pensarmos a pulsão como significante. A idéia da força constante como

característica fundamental da pulsão nos aproxima da lógica do significante que não

cessa, sempre em busca de satisfação. Ambos pressionam, a primeira pela busca de

satisfação, o segundo pela significação. A insistência é engendrada por um resto

deixado por cada operação. Na pulsão, a satisfação é sempre parcial, à medida que o

objeto encontrado não se equivale ao objeto perdido. No significante, pois na operação

de significação sempre há uma queda de algo que não pode ser significado. Veremos

do que se trata este resto no próximo item desse capítulo, a partir das formulações

sobre a pulsão de morte. Outro ponto que muito nos aproxima do significante é o fato

90

de que Freud postula a pulsão presente em pares de opostos, mas que há sempre a

remissão a um terceiro elemento, ao simbólico. É a partir desses pares que se torna

possível a gramática pulsional, ou seja, o mecanismo da pulsão.

Freud indica que a pulsão é “uma medida de exigência feita à mente no sentido

de trabalhar em conseqüência de sua relação com o corpo” (1915/1996:127). É nesse

sentido que verificamos a dimensão do corpo na psicanálise: trata-se de um corpo

pulsional. Nesse texto de 1915, Freud demarca que a função do aparelho psíquico é o

domínio da pulsão, ou seja, oferecê-la um destino. Daí, valorizamos a noção de ligação

como uma função fundamental no psiquismo, já que se coloca como uma das formas

de dominar a pulsão. Por isso, em 1915, Freud ressalta o traço da exigência de trabalho

feita ao psiquismo. Esta exigência pulsional é constante e obriga o psiquismo a realizar

ligações. Observamos aqui a importância da linguagem no campo da pulsão, na forma

de domínio das excitações. Isto porque a linguagem, como vimos, é marcada por

operações de encadeamento, de busca de significação, de ligação.

O corpo concebido pela psicanálise é apenas reconhecido enquanto fonte das

pulsões e em sua representação mental. É em função das pulsões que o corpo deve se

haver, remanejar-se sem cessar, constituindo-se. Ele sai de um estado de pura

dispersão pulsional, no auto-erotismo, a um corpo com continente, com a significação

da diferença sexual. O que está em jogo em cada um desses momentos é a dinâmica

pulsional. Esse corpo que se “arranja” a cada momento, esse corpo pulsional depõe

para compreendermos a incidência da linguagem, ou seja, podemos afirmar que o

corpo pulsional é o corpo simbólico, o corpo da linguagem. Assim, falar em erotização

do corpo e todo seu mecanismo marcado por Freud desde os “Três ensaios sobre a

teoria da sexualidade”, implica em proferir sobre esse corpo que se constrói, se

inscreve simbolicamente, em função da dinâmica pulsional.

Aqui devemos nos deter. Freud aponta que a pulsão é o representante psíquico

das excitações corporais (1915/1996:126-7). Nesse sentido, levantamos uma questão.

À medida que se trata de representante psíquico, implica numa inscrição na cadeia

significante, pois representante implica em significantização. No entanto, Freud aponta

que a pulsão nunca cessa de pressionar, pois seu caráter é de sempre obter satisfação

parcial. Diante de tal parcialidade, temos duas conseqüências: um resto da operação de

91

satisfação, que engendra uma repetição (movimento da pulsão), postulada em 1920; e

se considerarmos o conceito de representante psíquico e o resto da satisfação,

poderemos dizer que a pulsão engloba uma parte representada e um resto que se

mantém irrepresentável. Nesse sentido, nossa questão é: a pulsão apenas pode ser

concebida como tal, se representada, ou seja, a partir do simbólico (e esta é a hipótese

deste trabalho)? Se assim for, e aquele resto não representável, onde se insere?

Tentaremos responder a tais questionamentos a partir de trabalhos de Freud,

pois as propostas que lançaremos nos servirão de alicerce para continuarmos o intento

deste trabalho: compreender a pulsão como significante e a impossibilidade de separá-

la da linguagem. No entanto, em nosso ultimo capítulo, retomaremos esta questão com

a articulação entre a pulsão de morte e a linguagem.

Em 1894, no “Rascunho E” Freud formula a seguinte afirmação: a pulsão sexual

seria uma tensão endógena, assim como a fome e a sede, para as quais há

necessidade de ação específica que impeça o surgimento de nova excitação. Freud nos

fala de aumento e diminuição de tensão endógena, mas só fala de pulsão relacionada a

uma significação psíquica (1894/1996:238). Postula, ainda, sobre a existência de uma

tensão física, que não consegue penetrar no âmbito psíquico, permanecendo não

encadeada (1894/1996:240-1). Retoma tais formulações no Projeto, apontando que os

estímulos endógenos que se produzem de forma contínua apenas periodicamente se

transformam em estímulos psíquicos. Além disso, Freud ressalta que essa tensão gera

uma propensão à descarga motora que conduz a uma alteração interna

(1895/1996:368). Como nenhuma descarga pode produzir alívio, entra em cena o outro,

que significa esta tensão e promove a ação específica. Assim, a pulsão apenas se

constituiria, se assim podemos dizer, intermediada pelo outro (1895/1996:368-70).

Antes disso, trata-se de uma tensão. Importante ressaltar que não estamos dizendo que

se trata de instinto, mas que a pulsão depende que o outro a inscreva num registro

simbólico, tornando-a em representante psíquico. Este seria o mecanismo de

transformação da excitação em pulsão (representante psíquico do corpo, ou da

excitação proveniente do corpo), que havíamos já explanado no início do capítulo,

transformação esta proporcionada pela resposta do outro. No próximo item

92

compreenderemos, com a pulsão de morte, essa anterioridade da pulsão, enquanto

ainda não encadeada pelo princípio de prazer, ou representante psíquico.

A respeito das relações entre pulsão e representação, Garcia-Roza (2004:243)

coloca que a noção de representação permite a Freud propor a idéia de uma

simultaneidade entre representação e pulsão. Ressalta que Freud não postula a

representação como um efeito mecânico de um processo fisiológico, mas que “o

processo psicológico é paralelo ao fisiológico... algo da natureza de um processo”.

Destarte, o que podemos inferir do “Projeto para uma psicologia científica” é que não há

separação entre corpo e representação, em outras palavras, entre corpo e mente. À

medida que pulsão e representação constituem-se simultaneamente e a pulsão é que

nos aponta para o corpo da psicanálise, não há uma anterioridade do organismo para

posteriormente se tornar representação do corpo. Este já se constitui representado.

Garcia-Roza postula que a única anterioridade da psicanálise é a linguagem, sendo

esta quem permite admitir o corpo representado: “O ‘dado’ primeiro da psicanálise não

é o corpo biológico, mas a linguagem. O ovo mítico da psicanálise é o discurso”

(GARCIA-ROZA, 1990:61).

Esta relação entre pulsão e representação é trazida por Freud em 1911, com o

trabalho “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental”. Aqui ele

define os princípios a partir da necessidade de lidar com a força constante da pulsão.

Eles responderiam pela obrigação em transformar a pulsão, oferecendo-lhe um destino.

É a respeito da transformação da pulsão em representante psíquico que Freud nos fala.

Aponta que não há a pulsão primeiro para depois se constituir o correlato psíquico dela,

mas que ambos estão presentes simultaneamente. Se há pulsão, é porque já está

representada, e, representada, incluída numa rede, significantizada. Daí, Freud pode

falar em pensamento, atenção e memória, como meios de representação e,

conseqüentemente, descarga da pulsão. Como representante psíquico, a pulsão

encontraria um destino (1911/1996:238-42). Interessante notar que a função do outro

está sempre incluída nas entrelinhas do texto. Sendo a pulsão compreendida, de saída

já como representação psíquica, como pensar a pulsão separada da linguagem?

O que verificamos com estas formulações acerca da representação e da pulsão,

é a noção de energia ligada e energia livre, presentes no “Projeto” e que se estendem,

93

como veremos a seguir, até 1920. A energia ligada seria essa porção da pulsão que

encontrou representação, encadeamento a partir da incidência do outro. Está, nesse

sentido, inserida na cadeia de significantes. A outra porção, que não encontra via de

representação, que é a parte de que Freud fala que permanece no corpo, não

convertida em representante psíquico, é a energia livre. Esta nunca encontra lugar na

cadeia significante, é o irrepresentável, mas que repete, que pressiona para tentar

encadeamento, é a pulsão de morte. Inferimos esta energia livre a partir da pulsão de

morte, do trauma, da neurose de angústia, da repetição dos sonhos traumáticos, da

neurose de transferência, da angústia de castração. Nos termos de Freud, dizemos que

ela não funciona sob a lógica do princípio de prazer. Aqui teríamos a dimensão real

desenvolvida por Lacan, como sendo o domínio do inapreensível, do irrepresentável,

pois se constitui como resto da operação significante. Sendo sobra da inscrição

simbólica, uma das maneiras de formular o real é através do objeto a. O que

verificamos é que o real não está inscrito na cadeia significante, o que não é o mesmo

dizer que está fora da linguagem. Seria impossível pensar num fora da linguagem, à

medida que é a própria linguagem que gera esse descompasso e engendra o

irrepresentável. É a partir da linguagem, do simbólico, que podemos inferir sobre o real.

Trabalharemos no próximo item a pulsão na segunda tópica freudiana, ponto a partir do

qual poderemos compreender este resto que não se representa.

3.2 A pulsão a partir de 1920

A concepção freudiana das pulsões experimenta uma reviravolta a partir de

1920 com o texto “Além do princípio de prazer”. Este trabalho é marcado por diversos

questionamentos de Freud que levam à reformulação da teoria das pulsões e trazem

conseqüências consideráveis para a psicanálise. Traremos então, aqui, tais

questionamentos e a nova configuração da teoria das pulsões.

Este trabalho de 1920 possui dois argumentos centrais: a possibilidade de que

exista algo mais primitivo do que o princípio de prazer, que funcione para além dele e

que engendraria uma repetição, e o segundo argumento se refere à ruptura com a

lógica de autoconservação. Ambos guiam Freud na nova configuração da teoria das

pulsões.

94

Vimos que a teoria das pulsões se organizava da seguinte forma: com o

postulado, em 1905, da sexualidade perverso-polimorfa, Freud afirma que a pulsão é

parcial e apresenta a existência das pulsões sexuais em oposição às pulsões do eu,

responsáveis pela autoconservação. Com o trabalho sobre o narcisismo, Freud modifica

esta oposição, ao apontar que o eu é também libidinizado. Isto o leva ao dualismo libido

do eu, que ainda responderia pela autoconservação versus libido do objeto, que

possibilitaria o investimento objetal. Essa distinção se manteve até 1920, quando a

lógica da autoconservação não se coloca como fundamental para a organização

psíquica:

“A hipótese de instintos de autoconservação, tais como os atribuímos a todos os seres vivos,

alteia-se em acentuada oposição à idéia de que a vida instintual, como um todo sirva para ocasionar a morte. Vista sob essa luz, a importância teórica dos instintos de autoconservação, auto-afirmação e

domínio diminui grandemente”. (FREUD, 1920/1996:49)

Freud (1920/1996:49) entende, assim, que o “objetivo de toda vida é a morte”, aí

sim estaria situado o caráter conservador das pulsões. É a partir daí que ele substitui o

primeiro dualismo pulsional. À medida que não existe mais a possibilidade de

autoconservação e que o movimento do aparelho ruma para a morte, Freud opõe as

pulsões de vida, cujo motor é Eros, responsável pela possibilidade de investimento

objetal, agrupamentos, ligação, significação e as pulsões de morte, que têm a repetição

como motor. Faz-se necessário nos determos neste ponto.

Tais observações de Freud se iniciaram no momento em que ele se deparou

com a compulsão à repetição. Ele verifica que nem sempre a repetição está relacionada

a situações prazerosas. Os sujeitos repetiam exatamente as situações mais

angustiantes, como a neurose traumática e os sonhos penosos. Ao estudar tais

situações, Freud infere que a repetição é uma tentativa de encadear, encontrar um

destino a um impulso que irrompe o aparelho de maneira tão abrupta com o que ele

não tem como lidar. Assim, afirma a existência de algo que funciona no aparelho

psíquico, mas que não está articulado ao princípio de prazer: “... existe realmente na

mente uma compulsão à repetição que sobrepuja o princípio de prazer...” e “... a

hipótese de uma compulsão à repetição, algo que parece mais primitivo, mais

95

elementar e mais instintual do que o princípio de prazer que ela domina...” (FREUD,

1920/1996:33-4).

Com relação à compulsão à repetição, Freud relaciona o trauma, aquilo que é

angustiante, por isso, se repete. Afirma que o trauma seria uma quantidade de

excitação não encadeada que rompe as barreiras de proteção do aparelho psíquico,

exigindo, assim, um destino. Constituindo-se como ruptura, o trauma causa uma

suspensão da organização estrutural aparelho, engendrando uma necessidade de

reorganização deste:

“Um acontecimento como um trauma externo está destinado a provocar um distúrbio de grande

escala no funcionamento da energia do organismo e colocar em movimento todas as defesas possíveis. Ao mesmo tempo, o princípio de prazer é momentaneamente posto fora de ação. Não há mais

possibilidade de impedir que o aparelho mental seja inundado com grandes quantidades de estímulos; em vez disso outro problema surge, o problema de dominar as grandes quantidades de estímulos que

irromperam, e de vinculá-las no sentido psíquico, a fim de que delas se possa, então desvencilhar”. (FREUD, 1920/1996:40)

Freud está aqui nos situando na diferenciação entre energia livre e energia

ligada, já postulada no “Projeto”, em 1895. Esta é uma diferenciação fundamental para

a concepção da pulsão de morte. Freud propõe a existência de uma excitação que flui

livremente no sentido da descarga e uma quiescente. Sendo assim, a vinculação

psíquica estaria relacionada à passagem de um estado de fluxo livre para um estado

ligado (FREUD, 1920/1996:41). A repetição se colocaria então como um movimento

que objetiva tal ligação, encadeamento.

Os processos livres, segundo Freud (1920/1996:45), são características das

pulsões, que pressionam no sentido da descarga. A repetição engendra a novidade, à

medida que o esforço rumo à vinculação ou a descarga nunca é a mesma. Freud aloca,

então, a repetição como o “atributo universal das pulsões” (1920/1996:47). A repetição

caracteriza, desse modo, o movimento pulsional. Este pressiona para a descarga, para

atingir um estado de inércia, ou seja, a morte. Daí Freud pôde postular que o sentido da

vida é a morte. Com tal concepção Freud rompe com a lógica da autoconservação,

propondo a vida biológica dependente da vida pulsional.

O novo dualismo se instaura: pulsões de vida (eu e sexuais – responsáveis pela

ligação e o investimento objetal) versus pulsão de morte (repetição). Ora, se Freud já

96

deixa indicado que a repetição é o atributo universal das pulsões, a pulsão de morte é a

mais originária, mais primitiva, ou seja, toda pulsão é, antes de tudo, pulsão de morte.

Há que se fazer uma colocação importante: Freud fala de duas vertentes com

relação à repetição. A primeira refere-se à repetição que rumaria à destruição, um

movimento disruptivo. Destruição não quer dizer agressividade, mas um movimento de

ruptura. Daí, pode-se inferir sobre a segunda vertente: a criação. À medida que se

repete, repete-se sempre de um ponto diferente, o que ocasiona sempre algo diferente:

“... jamais cria, da segunda vez, uma impressão tão grande como da primeira... A

novidade é sempre a condição do deleite” (FREUD, 1920/1996:46). Podemos, nesse

sentido, falar em emergência de sentido (o que se equivaleria a encadeamento,

significação). A repetição é, então, um movimento pulsional. Podemos equivalê-la à

força constante, um movimento constante, engendrado pelo simbólico, devido a

impossibilidade de satisfação plena. A pressão constante da pulsão sob forma de

repetição é resultado da tentativa de oferecer um destino à pulsão, ou seja, a satisfação

plena (inércia, desejada pelo princípio de Nirvana (FREUD, 1920/1996:66)).

Freud (1920/1996:63) ainda ressalta que a distinção entre os dois tipos de

pulsões deve ser caracterizada como topográfica e não qualitativa, como anteriormente.

Isso quer dizer que se deve considerar a pulsão como um impulso de origem endógena

que exerce força constante, marcada pela repetição, no aparelho psíquico. A pulsão de

morte não funcionaria sob o regimento do princípio de prazer. Trata-se de uma

quantidade não encadeada, à medida que se coloca sempre como um resto do

movimento em busca da satisfação. Esse resto não satisfeito implica num eterno

retorno em busca de encadeamento, que é possível, apenas, por sua associação com

as pulsões de vida, que investem nos objetos parciais. Assim, a pulsão de morte

apenas é reconhecida a partir dessa associação, o que permite um mínimo de

organização:

“Se, portanto,não quisermos abandonar a hipótese dos instintos de morte, temos de supor que estão associados, desde o início, com os instintos de vida. Deve-se, porém, admitir que, nesse caso,

estamos trabalhando com uma equação de duas quantidades desconhecidas”. (FREUD, 1920/1996:67)

97

Chamamos atenção para a última frase. Quando Freud nos fala de uma

equação, nos remete à ordem simbólica. Trata-se de um jogo, de uma dinâmica de

repetição, associação e encadeamento. Mais ainda, equação remete-nos à idéia de

combinatória. Entendemos, portanto, que a pulsão apenas pode ser concebida no e

pelo simbólico.

Em 1923, no artigo “O ego e o id”, Freud retoma esta associação entre pulsão de

morte e de vida, em termos de fusão e desfusão das pulsões. Indica que ambas as

pulsões possuem o mesmo objetivo: inércia. Haveria uma fusão das pulsões com o

intuito de obtenção de satisfação, de encadeamento. Se trata-se apenas de descarga,

de algo disruptivo estamos no âmbito da desfusão. A fusão permitiria a novidade, que

Freud indica em 1920. A desfusão levaria apenas à descarga, sem encadeamento

(1923/1996:53-4). Vemos assim uma dança, uma combinatória no jogo das pulsões.

As noções de fusão e desfusão são possíveis a partir da inferência dos três

lugares psíquicos: isso, eu e supereu. Esta é a reorganização topológica do aparelho

psíquico a partir de 1923. Freud compreende o aparelho psíquico de forma circular,

alocando o eu (que é uma parte do isso modificada) com aberturas tanto para o interior

do aparelho, quanto para o exterior, ou seja, em comunicação com o corpo. A partir daí,

postula (1923/1996:39) o eu como, antes de tudo, corporal, pois se constitui a partir de

uma representação mental do corpo. As primeiras sensações descoordenadas

provenientes do corpo são “ligadas”, constituindo um primeiro esboço de eu, o eu-

corporal. É este eu que permite as primeiras diferenciações entre o interior e exterior,

diferenciações estas que se configuram da seguinte maneira: eu equivalendo aos

objetos prazerosos, que são percebidos como parte de si e os objetos externos são

entendidos como aqueles que não provocam prazer. É somente num a posteriori que o

eu se amplia para exercer suas demais funções. Segundo Freud, a percepção das

sensações corporais desorganizadas constituem o eu num primeiro momento,

promovendo um mínimo de diferenciação com os objetos. É apenas num segundo

momento que o corpo organizado se constitui (Freud, 1923/1996:39-40).

As pulsões partem do isso. No entanto, sendo o eu parte diferenciada dele, é

afetado igualmente pelas percepções e pulsões. Sendo assim, a pulsão percorre o

98

aparelho como um todo, diferenciando-se de acordo com a linguagem de cada lugar

psíquico. O objetivo do aparelho é proporcionar encadeamento para a pulsão.

A idéia de fusão e desfusão pulsionais é retomada em 1924, no trabalho “O

problema econômico do masoquismo”. A possibilidade da pulsão de morte concebida

em 1920 permite a Freud conceber o masoquismo primário, não mais secundário ao

sadismo. Propõe que o masoquismo primário é resultado da mescla entre as pulsões.

Enquanto o princípio de Nirvana expressa a tendência da pulsão de morte, o princípio

de prazer é porta-voz das exigências da libido e o princípio de realidade (como

modificação daquele) representa a influência do mundo externo (1924/1996:178). É a

partir da regência desses três princípios que Freud aborda a dinâmica pulsional,

delimitada a partir de 1920.

Essa dinâmica ocorre da seguinte forma: a libido (motor da pulsão de vida) tem a

função de domar a pulsão de morte. Tenta fazê-lo desviando a pulsão para fora,

através da descarga motora, e outra parte é colocada a serviço da pulsão sexual. Há

ainda uma terceira parte, que é retida dentro do corpo. É nesta parte que Freud aloca o

masoquismo originário (1924/1996:181). Há sempre, nesse sentido, a associação entre

as pulsões:

“No que concerne ao campo psicanalítico de idéias, só podemos presumir que se realiza uma fusão e amalgamação muito ampla, em proporções variáveis, das duas classes de instintos, de modo que jamais temos de lidar com instintos de vida puros ou instintos de morte puros, mas apenas com misturas deles,

em quantidades diferentes”. (FREUD, 1924/1996:181-2)

O masoquismo situa-se, então, como um momento em que não houve a fusão

entre Eros e a pulsão de morte, permanecendo esta em estado bruto (FREUD,

1924/1996:182).

O que verificamos, com a segunda tópica freudiana, é que Freud concebe a

pulsão sempre numa dinâmica. Situado no âmbito da topologia e do simbólico, Freud

nunca propõe uma dinâmica de oposições excludentes, mas sempre de

complementaridade, estando uma noção atrelada a outra, ou seja, definida a partir de

um jogo relacional. A dinâmica pulsional é um jogo constante de associações,

substituições, vinculações e combinatória, que buscam o encadeamento, uma

99

emergência de satisfação, ou sentido. No entanto, tal encadeamento pressupõe um

resto não satisfeito, o que engendra um retorno. Este é então o cerne da pulsão. Seu

movimento é encadeado pela impossibilidade de satisfação plena, condição da ordem

simbólica. A pulsão de morte é a pulsão em estado bruto, escapa dessa cadeia

simbólica, o que não significa que esteja fora dela. Ela se define pela linguagem.

Portanto, o que conferimos com Freud é a impossibilidade de se separar linguagem e

pulsão.

A partir da concepção da lógica pulsional em Freud, veremos, em nosso último

capítulo, a maneira como Lacan formulou a pulsão à luz da lingüística e do

estruturalismo: compreendendo-a como significante.

CAPÍTULO IV – A PULSÃO EM LACAN: PULSÃO E SIGNIFICA NTE

“A pulsão de morte deve ser situada no âmbito histórico, uma vez que ela se articula num nível que só é definível em função da cadeia significante...”

(LACAN, 1959-60/1988:258)

A proposta de nosso trabalho é demonstrar que a pulsão pode apenas ser

concebida a partir da linguagem. Para tanto, escolhemos o estruturalismo como viés

pelo qual podemos compreender a relação entre os registros real, simbólico e

imaginário, demarcando a anterioridade do simbólico ante os demais. A partir daí,

pudemos verificar o modelo da linguagem em Freud e Lacan, para constatar que desde

Freud já está afirmada a primeiridade do significante em relação ao sujeito e à cultura,

sendo o aparelho psíquico constituído na e pela linguagem. Passando ao segundo

momento de nossa dissertação, buscamos compreender a gramática pulsional em

Freud, concluindo que ele a concebe como uma exigência de trabalho feita ao

psiquismo, demarcando a relação deste com o corpo. Verificamos ainda que para falar

em pulsão há necessidade de se falar em alteridade, pois é o jogo com o outro que aí

está implícito. Devido a esses pontos, o que podemos observar é que não há como

dissociar a pulsão da linguagem. Na segunda teoria das pulsões, Freud postula uma

dinâmica existente entre a pulsão de vida e a pulsão de morte, sendo a característica

fundamental da pulsão seu caráter de insistência, de movimento permanente, de

repetição.

100

Neste momento, nosso objetivo, considerando o que foi até aqui pesquisado, é

verificar como se desenha a teoria das pulsões em Lacan. É a partir de suas

concepções que poderemos empreender a aproximação entre pulsão e significante.

Dentre os trabalhos de Lacan, escolhemos, para embasar nosso argumento central, o

Seminário 7: A ética da psicanálise (1959-60) e o Seminário 11: Os quatro conceitos

fundamentais da psicanálise (1964). Nossa escolha se orientou pela maneira pela qual

Lacan aborda a pulsão em ambos: articulando-a com o significante. Ainda, nestes

Seminários, verificamos como a pulsão de morte é enfatizada, meio pelo qual

constatamos a aproximação ao significante. Destes Seminários, extraímos quatro

pontos centrais que nortearão nossa tarefa de compreender a articulação da pulsão

como significante. São eles:

1- A ênfase, no Seminário 7, do conceito de pulsão de morte, considerada como a

única pulsão; partindo daí, poderemos verificar quais são os argumentos

utilizados por Lacan para abrir mão do dualismo pulsional em prol de um

“monismo pulsional”; e compreender como mesmo a pulsão de morte não pode

ser dissociada do simbólico;

2- A relação, também presente no Seminário 7, entre o conceito freudiano de

Vorstellungrepräsentanz, e o conceito lacaniano de significante;

3- A partir do postulado trabalhado no Seminário 11 de que o inconsciente é o isso,

compreender, considerando o texto “O ego e o Id” (FREUD, 1923), a pulsão

como responsável pela operatividade da cadeia significante;

4- Adotando a lógica da pulsão analisada por Lacan no Seminário 11, empreender

a aproximação entre a dinâmica pulsional e o significante.

Portanto, o caminho que percorreremos neste capítulo será primeiro

compreender porque Lacan propõe um monismo pulsional, diferenciando-se de Freud,

ou seja, a ênfase que o autor oferece ao conceito de pulsão de morte, isolando seu

circuito como fundamental. Ponto este que Lacan retoma no Seminário 11. Em seguida,

tomaremos a ênfase concedida à pulsão de morte, como a pulsão por excelência, para

compreender sua articulação com o significante, à medida que a linguagem, sendo

colocada de saída, necessariamente engendra a ‘morte da coisa’. Dessa maneira,

101

constitui-se como um puro movimento, e por isso Lacan ressaltar o circuito pulsional

como fundamental.

4.1- Toda pulsão é pulsão de morte?

Trouxemos a assertiva de Lacan “toda pulsão é virtualmente pulsão de morte”

(1960/1998:863) como um questionamento. Não estamos propondo interrogar Lacan,

mas sim, levantar essa discussão para traçar alguns caminhos pelos quais podemos

compreender tal articulação. Isso porque sabemos que se trata de um tema difícil de se

resolver, e porque podemos extrair dele inúmeras conseqüências, bem como maneiras

de compreendê-lo. Nossa proposta é lançar algumas luzes sobre o tema, pois temos aí

um dos pontos essenciais para articular a relação entre pulsão e significante. Como

veremos, o fio que conduz os argumentos de Lacan é a submissão do sujeito ao

significante. Se o sujeito é constituído pelo significante, o que o desnaturaliza, a morte

estaria na origem, no sentido de que o significante ‘mata a coisa’39. Saindo do estado

de natureza, o sujeito marcado pelo significante e pela pulsão, não mais pelo instinto,

toda pulsão seria pulsão de morte, à medida que se trata de um puro movimento em

busca de significação, ou satisfação. Ë dentro deste contexto que se situam os pontos

principais da assertiva lacaniana, os quais verificaremos como foram construídos.

Freud, em sua teoria das pulsões, delineia um dualismo entre as pulsões como

um embate. Estão presentes sempre em pares, realizando uma dinâmica de forças

constantes, sempre em busca de satisfação. Entremeiam neste campo o princípio de

prazer e de realidade e a noção de energia ligada e energia livre. O que está em jogo

nessa dinâmica é a possibilidade de satisfação parcial e a necessidade de fazer

sobrepujar o princípio de realidade como aquele que poderia garantir a manutenção do

aparelho.

A teoria freudiana das pulsões parte da idéia de pulsões sexuais e pulsões de

autoconservação; passa pela noção de libido do eu e libido do objeto para ressaltar a

importância da força constante e da exigência de trabalho, características da pulsão; e,

finalmente, em 1920, caracteriza-se como o dualismo pulsões de vida x pulsões de

39 Daí a metáfora da libido com a função de corte, como um instrumento que corta a carne significantizando-a.

102

morte. Estas últimas são enfatizadas como as mais primitivas, estruturais do aparelho,

responsáveis pela constituição do desejo e pelo próprio movimento do aparelho

psíquico. Isto porque se tratam de energia livre, não ligada, ou seja, que não funcionam

sob a lógica do princípio de prazer. Exatamente por se encontrarem excluídas da lógica

do princípio de prazer, surgem com a característica de traumáticas, sob o colorido da

angústia, pois, como energia livre, provocam no aparelho um movimento disruptivo,

desorganizador das estruturas. O movimento do aparelho é, então, de tentar ligar essa

energia, lançando mão de diferentes recursos, como, por exemplo, a repetição. Freud

afirma a possibilidade de realizar um certo amansamento, mas não total, devido à

impossibilidade de cessar completamente a pulsão. O movimento pulsional sempre se

mantém, marcado pela repetição, já que a satisfação da pulsão não é plena. Sendo

assim, a repetição se coloca como um mecanismo constitutivo e fundamental do

aparelho.

A noção de energia livre e energia ligada está presente desde o trabalho de

1985, o “Projeto para uma psicologia científica”, sendo a ligação situada como um

mecanismo estrutural do aparelho psíquico. Está referida à função do eu primitivo, do

primeiro esboço de eu. Este mantém como função, até o fim da obra de Freud, a busca

da organização, da sintetização, de individuação. Para tanto, tem ao seu lado a

dinâmica do princípio de prazer e de realidade. Freud situa aí a pulsão de vida, Eros,

que busca uma unidade narcísica e imaginária. A pulsão de morte está em outro nível,

antes do princípio de prazer, por isso a compulsão à repetição, como uma tentativa de

encadeamento. Este mecanismo suspende a unidade em operação no eu. Ao irromper

nesta organização, a pulsão de morte coloca-se como um mecanismo disruptivo, que

desorganiza. Por isso, é fonte da dinâmica pulsional, à medida que exige que um

trabalho seja empenhado para que esta unidade seja novamente alcançada. Em Freud,

a pulsão de morte aparece ainda com um caráter criativo, pois ao mesmo tempo em

que destrói a organização, empreende um movimento de reorganização, criação. Nesse

sentido, o dualismo pulsional marcado pela dicotomia entre Eros e pulsão de morte é

compreendido a partir da idéia de ligação e da necessidade de oferecer um destino

para a energia não ligada.

103

Lacan retoma essa dicotomia, no entanto, enfatizando apenas a pulsão de morte.

Cabe a nós perguntarmos quais os argumentos que ele utiliza para empreender tal

virada.

Como dissemos, o Seminário 7: A ética da psicanálise (1959-60) é atravessado

pelo conceito de pulsão. A problemática da ética discutida nesse seminário envolve

uma questão cultural e outra subjetiva, nas quais podemos situar a pulsão. Cultural

porque a psicanálise é datada historicamente. Surge num momento em que há uma

falência do referencial coletivo, uma queda da religião e da ciência. Isto faz com que o

sujeito se depare com as questões da finitude, da castração e do furo, da hiância que o

estrutura. Assim, a psicanálise surge para lidar com esse fracasso; depende, então, a

clínica da psicanálise, de uma conjunção histórico-cultural40. Isto porque à medida que

o sujeito se encontra lançado à castração, ao seu lugar de objeto do Outro, situa-se aí a

dimensão pulsional. É o outro, enquanto puro simbólico, que barra a necessidade e em

seu lugar constitui a pulsão. Esta é a marca da impossibilidade plena de satisfação, o

que engendra o movimento repetitivo (LACAN, 1959-60/1988:9-10).

Estando a psicanálise atrelada a determinado momento histórico-cultural,

podemos dizer que a pulsão também é histórica. Correlacionar pulsão e história nos

leva a verificar o caráter plástico, de significante da pulsão, posto que não se trata de

um circuito fechado, imóvel, acoplado a um significado. As análises de Lacan nesse

Seminário a respeito da sublimação, como uma satisfação parcial com objetos que são

socialmente reconhecidos e da Coisa como constitutiva do sujeito, nos levam a

compreender as relações entre a pulsão e a história, a pulsão e a coletividade: a pulsão

é a linguagem situada no corpo. Retomaremos este ponto mais detalhadamente um

pouco adiante.

A vertente subjetiva da pulsão é marcada pela maneira pela qual cada sujeito

sofre a lógica da psicanálise, ou seja, da pulsão. Está, nessa vertente, situado o

domínio ético, ou seja, como agir diante da hiância a que a pulsão se remete. No

Seminário 11, Lacan aponta que a individualização da pulsão estaria relacionada ao

“tamanho da goela”, ou seja, o impulso da pulsão seria constante em todos, mas a

40 A psicanálise depara-se a cada momento histórico com uma roupagem diferente das inibições, haja vista a histeria na época de Freud e a histeria dos dias atuais, por exemplo.

104

possibilidade de abertura de cada sujeito para se implicar nela dependeria desta

disponibilidade, de ter “maior ou menor goela” (1964/1985:162). Assim, a ética estaria

diretamente relacionada ao real, ao furo estrutural deixado pela linguagem. Contudo, o

questionamento moral é simbólico, constituído devido às possibilidades trazidas pela

linguagem (LACAN,1959-60/1988:10).

Dessa maneira, Lacan pensa o real e a pulsão de morte a partir do simbólico, ou

seja, ambos referem-se à constituição do sujeito, colocando-se como uma Lei resultante

da linguagem, entretanto, rechaçados da cadeia significante (1959-60/1988:21-2). É

neste ponto que nos situaremos para compreender que a pulsão não está fora da

linguagem, que é significante. Vejamos como isso ocorre.

O problema da ética da psicanálise surgiu porque algo resistia a ser inserido no

que Lacan chama de “dimensão de pastoral”. Algo resiste ao chamado processo

maturacional, ao primado do genital. Lacan abre mão dessa visão desenvolvimentista,

já que a pulsão não poderia ser inserida nesse âmbito. Há algo que resiste a este

campo e causa o mal-estar: “é algo que se apresenta imediatamente com um caráter

totalmente particular de maldade, de incidência má...” (1959-60/1988:113). Este algo

referido por Lacan como mau é a pulsão.

O caráter de insistência da pulsão é relacionado por Lacan ao das Ding. A coisa

freudiana foi apresentada em 1895, quando Freud a postulou como um elemento

perceptivo constante, mas que se colocava como estranho. Das Ding é o objeto

extraído da experiência de satisfação, e que, nos investimentos posteriores, colocar-se-

á como índice de exterioridade. Sendo assim, como índice da exterioridade, o objeto de

que se trata no momento não é o objeto almejado, ou seja, o objeto perdido. Leva,

então, o investimento a uma representação-percepção, ao invés de a uma

representação-lembrança, resultado da experiência de satisfação. Das Ding mantém-se

indicando uma satisfação possível, mas parcial. Trata-se, assim, de algo muito primitivo

e estrutural, que engendra o movimento pulsional. Em 1895, das Ding é o que causa o

movimento das bahnungen (trilhamentos). É algo que se constitui a partir do simbólico,

ou melhor, é puro movimento simbólico e, no entanto, não é algo que funcione sob o

princípio de prazer, ou na cadeia simbólica. É algo que restou da operação significante

(FREUD, 1895/1996:369-72; LACAN, 1959-60/1988:58-90).

105

Segundo Lacan (1959-60/1988:62), das Ding situa-se a partir do Not des lebens

(urgências da vida). É a partir da incidência da necessidade que se constitui das Ding.

Ele é originalmente isolado pela primeira experiência de satisfação, o Nebenmesch

(complexo do semelhante) como estranho. A qualidade do objeto constitui a

representação segundo a lógica do princípio de prazer-desprazer. O das Ding não se

situa nessa lógica. Como o primeiro índice de exterioridade, “orienta todo o

encaminhamento do sujeito” (LACAN, 1959-60/1988:69). Coloca-se como referência do

sujeito, enquanto o Outro absoluto é procurado, mas jamais reencontrado. Destarte, de

acordo com Lacan: “... o mundo da percepção nos é dado por Freud como que

dependendo dessa alucinação fundamental sem a qual não haveria nenhuma atenção

disponível” (1959-60/1988:69).

Lacan (1959-60/1988:71) indica que das Ding estaria fora-do-significado, o que

não é o mesmo que dizer que está fora do significante. Ele é resto da operação

significante e, ao mesmo tempo, orienta o movimento pulsional:

“No final das contas é concebível que seja como uma trama significante pura, como máxima universal, como a coisa mais despojada de relações com o indivíduo que os termos de das Ding devem

apresentar-se”. (LACAN, 1959-60/1988:72)

É em torno de das Ding que gira todo o movimento da representação, um

movimento que Lacan chama de “adaptativo”. Trata-se de um processo particular do

sujeito, visto que “o processo simbólico mostra-se aí inextricavelmente tramado”

(LACAN, 1959-60/1988:76). Nesse sentido, verificamos que, estando fora-do-

significado, das Ding remete ao real, no entanto, como Lacan demonstra, não está fora

do simbólico. Das Ding engendra um movimento de repetição, pois funda a orientação

do sujeito com relação ao objeto, ou melhor, a busca pelo reencontro com o objeto

perdido. Contudo, há uma impossibilidade desse reencontro, pois esse objeto,

enquanto Outro absoluto, nunca existiu. Tal busca é regulada pelo princípio de prazer,

no qual há uma transferência de quantidade de estímulos de representação em

representação, o que mantém uma distância daquilo em torno do qual se move. Há um

eterno retorno fixado. Regulando a relação com o objeto, das Ding regula o movimento

pulsional e o funda.

106

É importante notar que não se trata de representação, pois se o fosse, Lacan nos

diz, estaríamos no plano do pensamento: entre pré-consciente e consciente. Trata-se

de algo mais estrutural, no nível do significante, do Vorstellungrepräsentanz. Nesse

ponto, Lacan empreende uma diferenciação entre representação e significante:

“É entre percepção e consciência que a quilo que funciona no nível do princípio de prazer se insere. Ou seja, o que? – os processos de pensamento na medida em que regulam, pelo princípio do prazer, o investimento das Vorstellung e a estrutura na qual o inconsciente se organiza, a estrutura na qual a

subjacência dos mecanismos inconsciente se flocula, o que constitui o grumo da representação, ou seja, algo que tem a mesma estrutura – esse é o ponto no qual insisto – do significante. Isso não é

simplesmente Vorstellung, mas, como o escreve Freud mais tarde em seu artigo o Inconsciente, Vorstellungrepräsentanz, o que constitui a Vorstellung como um elemento associativo, combinatório.

Desse modo, o mundo das Vorstellung é desde então organizado segundo as possibilidades do significante como tal”. (1959-60/1988:80).

De acordo com Lacan a representação estaria encadeada, no nível dos processos

secundários. O significante é algo mais primitivo, portanto, Lacan identifica a ele o

conceito de Vorstellungrepräsentanz. Enquanto as representações, as Vorstellung

estariam no nível do discurso, as Vorstellungrepräsentanz, no nível das articulações

inconscientes (LACAN, 1959-60/1988:81). A questão é que Freud já diferenciava

Vorstellung e Vorstellungrepräsentanz. Ora, é óbvio que Freud não compreendia a

representação como a representação da metafísica e sim como um elemento mais

complexo. No entanto, quando ele fala em Vorstellungrepräsentanz remete-se a algo

mais complexo, tanto que utiliza um jogo de palavras ”representante-representativo”.

Em 1911, traz um ponto fundamental para compreendermos as

Vorstellungrepräsentanz: a simultaneidade representação e afeto. Essa simultaneidade

compõe uma via para articularmos pulsão e significante.

O Vorstellungrepräsentanz constitui a representação como um elemento

associativo e combinatório. Portanto, a representação é organizada de acordo com as

possibilidades do significante. Se tomarmos os textos freudianos de 1911 e 191541,

verificamos um ponto interessante: Freud já aproximava pulsão de significante. Ao dizer

que não se trata, no inconsciente, somente de representação, mas de

Vorstellungrepräsentanz, como representante-representativo, Freud desloca a idéia de

41 “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental”, “Repressão” e “O inconsciente”.

107

uma representação mental de um objeto externo, ou seja, separa significante e

significado. Trabalhando os conceitos de recalque, de princípio de prazer e realidade e

o funcionamento do inconsciente, diz que há uma simultaneidade entre pulsão e

representação. Não se trata de uma pulsão que posteriormente se transformará em

representação, mas o Vorstellungrepräsentanz aponta diretamente para a presença

simultânea de pulsão e significante, de um funcionamento engendrado entre os

Vorstellungrepräsentanz pelo movimento pulsional.

Portanto, se há uma simultaneidade, verificamos caminhar lado a lado a pulsão e

o significante. Mas a questão que se coloca é: o que movimenta a cadeia significante?

Sabemos que o movimento da pulsão é fundado por das Ding (e aqui podemos falar em

castração, falo, objeto a). Caminhemos um pouco mais.

Tal questão do significante é ainda mais trabalhada por Lacan. A simultaneidade

apresenta-se numa estrutura de quatro elementos: o “quadripartio”. Nesse jogo, há

necessidade de um termo que represente o furo, o Outro do Outro, o Outro absoluto, ou

seja, o real. Falando em das Ding, castração, falo, objeto a, estamos falando sobre real.

Contudo, o que Lacan nos diz é que esse real pode ser apenas concebido se remetido

ao simbólico (1959-60/1988:86-7).

Lacan retoma a lei da interdição do incesto, lei primordial, para nos falar de um

ponto central, irredutível entre natureza e cultura. É no lugar onde o significante se

insere, constituindo-se para fundar o sujeito e cultura, que se situa o nível da relação

inconsciente com das Ding. É a impossibilidade de satisfação plena do desejo, que

permite a assunção do sujeito e da cultura. Desse modo, o que Lacan nos mostra é que

não há um fora do simbólico, nem do significante.

Essa é uma formulação do que pudemos constatar do estruturalismo: o real e o

imaginário podem apenas ser concebidos a partir do simbólico. Lacan demonstra nesse

seminário que o real é concebível a partir do simbólico, por relação a ele, como um furo,

e não fora dele:

“Esse mundo subjetivo define-se assim – o significante é, no homem, desde logo entronizado no nível inconsciente, misturando suas referências com as possibilidades de orientação que seu funcionamento

de organismo natural de ser vivo lhe confere”. (LACAN, 1959-60/1988:91)

108

Assim, é por uma relação de diferença que o real se constitui, ou seja, por se

diferenciar do simbólico. A linguagem é uma anterioridade lógica ao inconsciente e ao

sujeito. A castração, ou das Ding, coloca-se, nesse sentido, como operadora estrutural

do sujeito barrado e do objeto perdido. Em 1958, “A significação do falo”, Lacan fala da

paixão do significante como condição humana (1958/1998:695). Além disso, aponta o

inconsciente como o lugar do significante, determinado pelo duplo jogo de combinação

e substituição do significante: metáfora e metonímia. O falo enquanto significante, funda

o desejo: “Ele então se torna a barra que, pela mão do demônio, cunha o significado,

marcando-o como a progenitura bastarda de sua concatenação significante” (LACAN,

1958/1998:699).

Quando falamos em das Ding, falo, castração, falamos de uma impossibilidade

imposta por eles: o significante puro, sem significação, que no registro real impõe uma

barra e impede a satisfação plena. O real, como um limite interno ao simbólico, é este

furo, que o significante puro aponta. Assim, o real é constituído pela operação

significante. Isso porque o significante lacaniano coloca-se como um significante sem

significação. Há uma ênfase na barra que impede a associação ente significante e

significado. À medida que a significação produz sentido, o significante puro nada

produz, a não ser apontar para o vazio. Há sempre a necessidade de uma remissão a

um outro significante. Ele é sempre colocado em relação a outro significante. Portanto,

o real comparece na falta de outro significante na cadeia: queda do objeto a, das Ding,

como hiância que produz angústia.

A estrutura significante é pensada em relação aos três registros: real (letra, resto

da operação simbólica); simbólico (articulado na cadeia) e imaginário (signos). Nesse

sentido, não há uma lógica de oposições exclusivas entre os registros, mas de

complementaridade. Se dissemos, com Lacan, até aqui que existe uma anterioridade

lógica do simbólico com relação ao real e ao imaginário, é porque ele institui os demais

registros. Contudo, não se trata de uma prevalência ou ênfase no simbólico. E Lacan

deixa clara essa relação na conferência “O simbólico, o imaginário e o real”, de 1953. A

estrutura topológica constituída pelos três registros está regida sob uma lógica de

complementaridade. Há o real, como um furo, como o inapreensível, inacessível, que

exige todo o tempo que o simbólico o recubra; o simbólico, como a lógica que constitui

109

essa relação, que estabelece as relações entre eles; e o imaginário, que traduz o

discurso. Por isso, nessa conferência afirma o imaginário, situado numa ordem

narcísica, atravessado pelo simbólico; e ao mesmo tempo, como uma ponte entre real e

simbólico (1953/2005:36-44). Sendo assim, um registro é incapaz de existir sem o

outro. Há necessidade dessa complementaridade. Topologicamente, passa-se de um

registro ao outro sem rupturas.

Falando aqui em das Ding, remetemo-nos ao objeto a formulado por Lacan em

1962-63. Neste Seminário sobre a angústia, Lacan coloca o objeto a como resultado

dessa operação simbólica. O furo deixado nos três registros. Como verificamos, a

noção de objeto a foi constituída a partir do conceito de das Ding, situando-se como

essa hiância, em torno da qual tudo gira:

“A função topológica que lhes apresentei permite formular com clareza o que é preciso introduzir para resolver esse enigma. É a idéia de um exterior de antes de uma certa interiorização, que se situa em a, antes que o sujeito, no lugar o Outro, capte-se em forma especular em x, forma esta que introduz para

ele a distinção entre o eu e o não-eu”. (LACAN, 1962-63/2005:115)

Lacan descreve aqui todo o jogo entre real, simbólico e imaginário, isolando o

objeto a como o furo que engendra o movimento e permite a assunção do sujeito, ou

seja, a própria subjetivação. Sendo o objeto a o furo deixado pela operação de

significação, coloca-se como o oposto ao significante, sendo assim, o oposto da pulsão.

No entanto, não se coloca como um oposto excludente, mas sim um oposto que

participa do próprio funcionamento da cadeia significante. Nesse Seminário está

enfatizado o pensamento topológico, ou seja, esse deslizamento entre os registros que

formam uma estrutura sem dobras, na qual não cabe uma ruptura. Isso é o que Lacan

retoma no Seminário 11 na figura do “oito interior”. Tal figura demonstra esse

pensamento topológico, ou seja, passa-se do interior ao exterior sem que se faça um

movimento de ruptura, mas um deslizamento a partir do qual não se sabe mais o que

seria o interior e o exterior. Além disso, há um furo central, um vazio que é contornado

pelo movimento pulsional. Seria a estrutura da banda de Moebius (LACAN,

1964/1988:148). Retomaremos este ponto mais adiante.

110

O que constatamos, assim, é o conceito de Vorstellungrepräsentanz

aproximando-se do significante, por se constituir como um elemento associativo,

combinatório e pulsional, e diferenciar-se do conceito de representação. Lacan indica

que essa relação se traduz num laço indissociável entre pulsão e linguagem: “Os

triebe42 foram descobertos e explorados por Freud no interior de uma experiência

fundada na confiança no jogo dos significantes, em seu jogo de substituição” (LACAN,

1959-60/1988:115).

Lacan indica que Freud, ao considerar as pulsões como plásticas, que se

comportam umas em relação às outras como uma rede, como canais comunicantes, as

colocariam no campo do significante, apontando o primado do significante:

“Sabemos isso de cor – o que não elimina em nada o caráter comunicante e, portanto, fugitivo, plástico, como ele mesmo se expressa, da economia das triebregungen43. Em suma, como lhes ensino

após longos anos, essa estrutura destina a libido humana do sujeito a deslizar no jogo dos signos, a ser subjugada pela estrutura do mundo dos signos, que é o único universal e primat44 dominante”.

(LACAN, 1959-60/1988:116)

Destarte, o conceito de Vorstellungrepräsentanz, somado ao de das Ding coloca

a pulsão ao lado do significante. Entretanto, apenas isso não é suficiente para embasar

o argumento que responderia ao nosso questionamento acerca da primazia da pulsão

de morte em Lacan. Continuemos caminhando.

A pulsão enquanto significante traz algumas conseqüências que podem ser

organizadas da seguinte forma:

1) O corpo erógeno é constituído a partir do significante;

2) Se o corpo é significantizado, o Outro está incluído no circuito pulsional;

3) A pulsão introduz um descompasso: à medida que o circuito pulsional contorna o

objeto (como veremos mais detalhadamente no próximo item) e retorna,

engendrando a repetição, determina a impossibilidade de uma almejada

maturação genital;

42 Pulsões. 43 Dinâmica pulsional. 44 Primado.

111

4) Para Lacan, com o conceito de pulsão, Freud insere a linguagem em nosso

corpo: “faz entrar o mundo inteiro em nós, recolocou-o definitivamente em seu

lugar, ou seja, em nosso corpo, e não alhures” (1959-60/1988:117).

Essas conseqüências norteiam o caminho de nossa pesquisa, pois colocam a

questão da alteridade e da linguagem em jogo na economia da pulsão. No Seminário 2:

O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954-55), ao definir a máquina

simbólica, alocando o inconsciente como pura linguagem, puro simbólico, como jogo

dos significantes, Lacan entende a pulsão como a própria estrutura significante, à

medida que a repetição coloca em movimento toda a cadeia significante. Para que isso

seja possível, há necessidade de que seja deixada, de saída, uma hiância. Nesse

sentido, Lacan afirma que é no nível de das Ding que se situa o lugar das pulsões

(1959-60/1988:138).

A questão central que se delineia a partir daí, não é o alvo da pulsão, mas algo

mais estrutural, anterior. Por isso, Lacan isola a sublimação como o mecanismo que

satisfaz a pulsão. Sua célebre definição: “É a fórmula mais geral que lhes dou da

sublimação é esta – ela eleva um objeto... à dignidade da coisa” (1959-60/1988:141)

aloca a sublimação como o mecanismo que mais se aproxima da característica de

variabilidade do objeto da pulsão. Isto porque a sublimação permite à pulsão uma

satisfação diferente do objeto parcial, pois aproxima a pulsão do que lhe é fundamental:

das Ding. A sublimação demarca o próprio caráter da pulsão: não há objeto. O que está

em jogo aqui é a pulsão enquanto estrutura (relação com das Ding) e o circuito

pulsional. E, enquanto estrutura, estamos falando do significante. É das Ding enquanto

coisa, objeto perdido que inaugura o movimento pulsional. Há uma estreita relação aqui

entre pulsão e significante: à medida que o significante não tem um significado

imediato, engendra um descompasso. O movimento pulsional coloca em atuação a

cadeia significante na busca de apreender um significado (através da remissão de um

significante ao outro). Há um movimento constante da cadeia, força constante da

pulsão para dar conta do furo deixado pela operação simbólica: real.

Encontramos, assim, um mecanismo presente tanto na pulsão como no significante:

ambos são caracterizados por um movimento constante, incessante, em busca, no caso

112

da pulsão, a satisfação e no caso do significante, a significação. Mas, vejam só: a

significação não seria uma possibilidade de satisfação, já que envolve uma ligação da

energia? Se assim for, temos já apontada uma relação intrínseca entre pulsão e

significante. Isso leva Lacan a postular a pulsão como uma noção ontológica,

fundamental, estrutural (1959-60/1988:159). Retornaremos a este ponto um pouco mais

adiante. Lacan coloca então: “É o que torna a dar eminentemente a primazia do âmbito

da linguagem, onde só lidamos deveras, em todos os casos com o significante” (1959-

60/1988:170).

A partir deste ponto, ao considerar o real a partir do simbólico, do significante,

igualmente a pulsão pode ser apenas compreendida a partir do simbólico, e não fora

dele. Com este argumento entramos no cerne de nossa questão.

Para compreendermos o contexto no qual Lacan está inserido ao postular que

toda pulsão é pulsão de morte, ou seja, que ela é a pulsão por excelência, é necessário

articularmos dois pontos: a historicidade da pulsão, como já foi indicado no início do

capítulo, e seu aspecto estrutural (compreender a pulsão de morte como significante e

a morte não no sentido de destruição ou agressividade, mas no sentido de morte do

objeto, do signo). Por essa via, trabalharemos a partir deste ponto a concepção trazida

por Lacan, acerca da pulsão como noção ontológica.

Primeiro, Lacan nos diz que o sujeito deve ser situado no significante: “isso fala”

(1959-60/1988:252). Quando nos fala que o “inconsciente é estruturado como

linguagem” (1953) nos remete ao campo do significante, do simbólico. Nesse sentido, a

articulação significante é colocada de entrada: “ela está aí, em estado inconsciente,

antes do nascimento de toda coisa referente à experiência humana” (1959-

60/1988:256).

Segundo, Lacan nos traz a dimensão histórica da pulsão. Esta dimensão é

marcada pela insistência com que ela se apresenta, posto que ela se refere a algo

memorável: “a rememorização, a historicização é coextensiva ao funcionamento da

pulsão no que se chama psiquismo humano” (1959-60/1988:256).

Para Safatle (2006:176-77), compreender a ênfase na pulsão de morte é

compreendê-la como significante. De acordo com o autor, a dimensão histórica está

situada no ponto em que a pulsão se relaciona ao universo lingüístico partilhado

113

intersubjetivamente. A pulsão está vinculada de maneira constitutiva àquilo que permite

aos sujeitos socializarem através do acesso à linguagem. É a mola que leva o sujeito a

articular o significante (SAFATLE, 2006:174).

Lacan formula, a partir da sublimação, em sua relação com a cultura, que a

pulsão deve ser colocada no registro cultural, à medida que os objetos da pulsão e o

mecanismo de satisfação são historicamente datados (1959-60/1988:135). Estão

estampados na dimensão histórica o caráter plástico e combinatório da pulsão.

É considerando esses dois pontos, ou seja, a primeiridade do significante em

relação ao sujeito e a dimensão histórica da pulsão que podemos compreender,

tomando o próprio caráter da pulsão de morte, a colocação de Lacan de que toda

pulsão é pulsão de morte.

Lacan inicia nos indicando que se tudo é pulsão de morte é porque há cadeia

significante (1959-60/1988:259). Essa proposição resulta em duas vertentes: aquela da

destruição da coisa, do objeto e a outra da criação, do recomeço (1959-60/1988:260).

De acordo com Lacan, como já vimos, a pulsão de morte está ligada diretamente a um

elemento estrutural, das Ding. Situa, dessa forma, o Princípio de Nirvana como um

elemento estruturante. A estruturalidade da pulsão de morte, em relação com das Ding,

faz colocar em movimento a cadeia significante. No entanto, está, ao mesmo tempo

para-além da cadeia: “o ex nihilo45 sobre o qual ela se funda e se articula como tal”

(1959-60/1988:260). A pulsão de morte, então, apenas se articula a partir do

significante, no entanto, está para-além da cadeia, antes dela, é estrutural, primitiva:

“Estou-lhes mostrando a necessidade de um ponto de criação ex nihilo do qual nasce o que é histórico da pulsão. No começo era o verbo, o que quer dizer, significante. Sem o significante no começo

é impossível articular a pulsão como histórica”. (LACAN, 1959-60/1988:261)

Constatamos, portanto, um ponto onde Lacan elabora a prevalência da pulsão de

morte: seu caráter estrutural. Agora, verificaremos como ele deixa esta posição mais

explícita com a lição do Seminário 7 intitulada “A função do belo”.

45 Lacan refere o ex nihilo ao nada, a Coisa que funda o movimento pulsional e o orienta em direção ao objeto. É o estrutural da pulsão.

114

Ao falar sobre a ética nesse seminário, Lacan aborda a questão da Lei moral

como aquela que remete diretamente ao real. O ponto de articulação proposto por

Lacan com a análise das éticas kantiana e sadiana é que ambas, apesar de se

apresentarem com roupagens opostas, chegam a um mesmo lugar: o real da

psicanálise. Isto faz com que Lacan trabalhe com as noções de das Ding, ex nihilo,

estrutura, significante e a contextualização da pulsão, que perpassa todo o seminário, já

que estas noções articulam-se à causa do movimento pulsional.

Em torno da questão da Lei, do simbólico, giram o significante e as

possibilidades da troca, bem como a relação desta com o prazer. Entretanto, o que

Lacan nos mostrará é que não é do prazer que se trata na pulsão: trata-se do gozo: “o

gozo... é a satisfação de uma pulsão” (1959-60/1988:256). É a maneira pela qual Lacan

delineia esta distinção, entre o que é da ordem do prazer e da ordem do gozo, que

podemos compreender a ênfase na pulsão de morte.

A ética nada tem a ver com as condutas que norteiam o bom caráter, ou a busca

do bem. O bem está relacionado ao princípio de prazer. A ética situa-se em outro ponto.

O bem do homem fez-se em função do princípio de prazer (LACAN, 1959-60/1988:270).

A relação princípio de prazer e princípio de realidade é articulada com um jogo

entre a satisfação e as possibilidades reais de obtenção, através do que é estabelecido

pelos trilhamentos do “Projeto para uma psicologia científica” (FREUD, 1895). O prazer

é engendrado pela dinâmica do par facilitação / dificultação das vias. Está ligado, nesse

sentido, à possibilidade de rememoração, repetição de experiências prazerosas,

situado na articulação da cadeia significante.

O bem está relacionado ao princípio de prazer e ao princípio de realidade. A

realidade é constituída com o prazer. Este ordena os caminhos pelos quais envereda-

se na realidade. Relaciona-se, ainda, ao utilitarismo, está do lado do prazer, da

satisfação obtida com os objetos parciais. É a satisfação de uma necessidade; é a

própria pulsão de vida, Eros. Situa-se no nível da cadeia significante, do imaginário, de

algo que pode ser articulável. Lacan afirma: “as necessidades do homem se alojam no

útil” (1959-60/1988:279). A pulsão de vida, dessa maneira, situar-se-ia no eixo

imaginário, narcísico, inteiramente submetido à articulação significante. A pulsão de

morte, como viemos observando, trata-se de outra coisa: é o significante puro, não

115

articulado, que não se remete a outro. É aquilo que sobra da cadeia significante, que

resta da operação. A pulsão de vida seria a energia ligada, que se presta ao

utilitarismo. A pulsão de morte corresponde à energia livre, não encadeada no

significante. Por isso, Lacan abre mão do dualismo em prol da pulsão de morte, que se

coloca como a característica mais originária da pulsão: a força constante, a pressão por

encadeamento. Toda pulsão é pulsão de morte porque a pulsão de vida está do lado do

prazer, enquanto a pulsão de morte é o que aponta para o além do princípio de prazer,

exigindo um destino para essa energia livre. Sendo assim, engendra todo o movimento

simbólico.

Lacan aborda este momento originário, estrutural, a partir do mito da lâmina.

Nele, Lacan propõe o modelo da libido como lâmina. A extração de das Ding na

experiência de satisfação promove a primeira diferenciação entre o bebê e o outro. O

que está em jogo aqui é a idéia da morte.

A pulsão de morte aponta para algo que não foi significantizado pelo processo de

subjetivação, algo não foi erotizado, por isso mantém-se no psiquismo num movimento

que se repete, o que move todo o aparelho.

No trabalho intitulado Posição do inconsciente (1960), Lacan se esforça por

realçar o peso da linguagem como causa do sujeito, demarcando que é por este viés

que se pode compreender o inconsciente, a pulsão, o desejo e a relação do sujeito com

o Outro. Para falar sobre a constituição do sujeito pela via da separação, evoca o mito

da lâmina que explica a perda envolvida nessa dinâmica. Lacan postula que desde a

concepção, na origem, já há uma perda envolvida. Isto porque a própria linguagem

implica nessa perda: “a letra mata, mas só ficamos sabendo disso pela própria letra”

(1960/1998:862-3). O autor demarca que já no nascimento se trata também de uma

perda real, um complemento anatômico (cordão umbilical, placenta e posteriormente os

seios, as fezes...). A lâmina é uma figura evocada para falar da libido como responsável

por este corte anatômico. Lacan situa a libido como um órgão, um órgão instrumento,

real, que corta o corpo e o ultrapassa. Nesse sentido, enquanto lâmina, tem a função de

corte de objetos que constituíam o organismo. A perda de tais objetos impõe a

impossibilidade de reencontro com eles e, conseqüentemente, a pulsão parcial. Mas

isso somente não explica sua assertiva, a de que toda pulsão é pulsão de morte. Esta é

116

justificada com o fato de que a libido tem um sentido mortífero, já que constitui uma

perda. Tal sentido mortífero é revelado pela própria relação do sujeito com a

sexualidade, pois a sexualidade humana, enquanto possibilitada pelo significante, é

mortífera. Assim, na constituição do sujeito, a morte está na origem. Isso porque a

entrada do significante barra a necessidade e marca a impossibilidade de satisfação

plena. Então, o significante estabelece a pulsão. Nesse sentido, se o significante tem a

morte implicada na origem, a pulsão é sempre pulsão de morte. As pulsões parciais

constituem-se também por efeito do corte, e têm por objetivo revolver, resgatar os

objetos perdidos (LACAN, 1960/1998: 859-63).

Safatle (2006) nos fala da morte como constitutiva. Seu artigo “A teoria das

pulsões como ontologia negativa” articula exatamente o ponto em que estamos

trabalhando: a pulsão de morte como significante e o monismo pulsional em Lacan. O

autor indica que estes dois pontos são impossíveis de serem dissociados se o objetivo

é compreendê-los. Aloca esta articulação a partir do ponto em que a morte é situada na

origem, daí pode discorrer, retomando Lacan, uma ontogênese negativa. Vejamos

como ele articula essa posição.

Empreendendo um percurso em Freud, na teoria das pulsões, Safatle situa o

texto de 1920 como fundamental para se compreender a articulação entre pulsão e

significante. Para ele, a distinção entre pulsão de vida e pulsão de morte é diferente de

falar somente na pulsão como um representante psíquico de uma fonte endossomática

de excitação constante. A morte que está em questão no conceito da pulsão de morte,

o retorno de que Freud fala a um estado anterior de coisas, permite a Safatle situar

neste mesmo ponto o monismo pulsional de Lacan. A morte, como energia livre, ao

suspender o processo organizador do eu, coloca todo o aparelho em funcionamento

para retornar à forma perdida. Por isso, é fonte da dinâmica pulsional, caracterizada

pela repetição. Nessa direção, Safatle aponta que Lacan reorienta a clínica a partir da

centralização da pulsão de morte, compreendendo-a para além da repetição

compulsiva do instinto de destruição (SAFATLE, 2006:168-76). É nessa perspectiva

que se pode pensar a questão do desejo na sua articulação com a teoria pulsional.

Lacan situa a pulsão de vida, como constatamos, ao lado do imaginário, e a

pulsão de morte para além da homeostase, da transferência de investimento de

117

representação em representação. Segundo Safatle (2006:173), esta distinção serve

para Lacan organizar algumas distinções entre o simbólico e o imaginário. O simbólico,

enquanto jogo dos significantes puros, marcaria tudo o que é da ordem humana. Desse

modo, nem a pulsão de morte, mesmo situada na dimensão do real, escaparia à ordem

significante:

“Nossa investigação levou-nos ao ponto de reconhecer que o automatismo de repetição (wiederholungszwang) extrai seu princípio do que havíamos chamado de insistência da cadeia

significante”. (LACAN, 1954-551998:13)

Nesse sentido, Lacan aloca do mesmo lado significante e repetição. Esta seria a

“manifestação do modo de funcionamento da estrutura simbólica que determina os

sujeitos” (SAFATLE, 2006:173).

Safatle indica, ainda, que a aproximação da cadeia significante ao automatismo

de repetição pode ser compreendida a partir do ponto em que a energia livre da pulsão

de morte produz os processos primários de condensação, deslocamento e figuração,

alicerces da dinâmica dos significantes. Assim, a pulsão colocaria em operatividade a

cadeia significante. Safatle aponta que há um impulso de negação próprio à pulsão de

morte, pois o significante anula a coisa, mata a coisa. A ontologia negativa própria à

pulsão de morte coloca a negação como causa. Isto porque vincula a pulsão de morte

com o que se satisfaz através da potência negadora da linguagem, que é o próprio

significante (SAFATLE, 2006:176-7). Verificamos, desse modo, que a ênfase na pulsão

de morte resulta em dois pontos: 1) estrutural, energia livre, repetição além do princípio

de prazer; 2) articulação como significante.

Outro ponto enfatizado por Safatle (2006:184), é que a satisfação da pulsão de

morte é marcada pela angústia: a negatividade da pulsão pode se satisfazer com o

gozo de um objeto que traz em si mesmo sua própria negação, que é a destruição de

si.

Daí, Safatle conclui (2006:186):

1) Lacan transforma a teoria das pulsões em teoria da pulsão;

2) Transforma a negação própria à pulsão de morte em negação ontológica,

negação como modo de manifestação da própria condição da pulsão;

118

3) Demonstra como esta negação pode determinar objetos, cuja manifestação se

dá sob o afeto da angústia.

Considerando o terreno deixado pelas formulações que trabalhamos a partir do

Seminário sobre a ética, passaremos ao próximo item, no qual pretendemos retomar o

que já foi por nós lançado neste primeiro momento sobre a pulsão como motor da

cadeia significante. Em seguida, procederemos à articulação da pulsão apresentada no

Seminário 11 para enfatizar o circuito pulsional e significante.

4.2 O movimento pulsional

A escolha do título deste item responde ao que é trabalhado por Lacan no

Seminário 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964) e, sobretudo,

nas lições sobre a pulsão e seu circuito. Ele nos mostra que, muito mais do que o alvo

ou a fonte, o circuito pulsional é o fundamental da pulsão. Nele estão inseridas as

noções de pressão constante e de alteridade. Nesse sentido, Lacan nos mostra a

dinâmica pulsional sendo construída, tendo como base alguns elementos: a lógica da

oposição e a alteridade. Estes são os pontos nos quais nos debruçaremos.

Além disso, outra questão trabalhada por Lacan e que constituirá um dos pontos

deste item, é a compreensão de que o inconsciente é o isso, desenvolvida nas lições

sobre o inconsciente e a repetição. Partindo daí, considerando o artigo “O ego e o id”

(FREUD, 1923), trabalharemos o que já havia sido por nós indicado no item anterior, ou

seja, que a pulsão coloca em operatividade a cadeia significante.

Por esta via, o que estamos enfatizando aqui é o movimento pulsional, ou seja,

seu movimento primitivo, que é articular a cadeia significante e a lógica deste

movimento, isto é, o circuito pulsional. A partir daí, acreditamos ter conseguido alcançar

nosso objetivo: compreender a pulsão como significante ou, minimamente, trazer alguns

pontos por onde podemos caminhar.

4.2.1 A pulsão e a cadeia significante

“O inconsciente é estruturado como linguagem”, aforismo apresentado por Lacan

em 1953 e mantido por ele até o final de sua obra. Lacan remete-se a ele em diversas

119

passagens de seu ensino, para demonstrar primeiro que existem leis de organização do

inconsciente, que são semelhantes às da linguagem:

“Elipse e pleonasmo, hipérbato ou silepse, regressão, repetição, aposição, são esses os deslocamentos

sintáticos, e metáfora, catacrese, antonomásia, alegoria, metonímia, sinédoque, as condensações semânticas...”

(1953/1998:269)

Os esforços de Lacan são para demonstrar que o trabalho do inconsciente se dá

com os significantes puros. Estes são os mecanismos de funcionamento dos

significantes no inconsciente. Ele nos diz que algo organiza esse campo do

inconsciente, ou seja, a interdição do incesto, que chama de Lei fundamental,

associando-a à castração e à lógica simbólica:

“Antes ainda que se estabeleçam relações que sejam propriamente humanas, certas relações já são determinadas. Elas se prendem a tudo que a natureza possa oferecer como suporte, suportes que se

dispõem de temas de oposição. A natureza fornece, para dizer o termo, significantes, e esses significantes organizam de modo inaugural as relações humanas, lhes dão as estruturas e as modelam.”

(LACAN, 1964/1985:26)

Segundo Lacan, é o significante que oferece seu estatuto ao inconsciente. E ele

mesmo nos mostra que há uma diferença entre o inconsciente freudiano e o seu. O

inconsciente freudiano aponta para uma hiância, ele se situa na claudicação. No lugar

dessa hiância há um não-realizado. E Lacan insere nela a lei do significante. A questão

que está presente tanto em Freud quanto em Lacan e este enfatiza tal ponto, é que no

inconsciente há algo homólogo a tudo que se passa ao nível do sujeito: “isso fala”

(LACAN, 1964/1985:29). E isso fala porque quer realizar-se, há algo que busca essa

realização:

“Tropeço, desfalecimento, rachadura. Numa frase pronunciada, escrita, alguma coisa se estatela. Freud fica siderado por esses fenômenos, e é neles que vai procurar o inconsciente. Ali, alguma outra

coisa quer se realizar – algo que parece como intencional, certamente, mas de uma estranha temporalidade. O que se produz nessa hiância,no sentido, pleno de termo produzir-se, se apresenta

como um achado. É assim, de começo, que a exploração freudiana encontra o que se passa no inconsciente.”

(LACAN, 1964/1985:30)

120

Algo organiza e coloca em jogo os significantes, e tem como resultado o que

Freud chamou de formações do inconsciente: sonhos, atos falhos, chistes, lapsos...

momentos evanescentes nos quais o inconsciente se apresenta. No entanto, como

Lacan indica, o inconsciente como um reachado está prestes a escapar de novo,

instaurando a perda (1964/1985:30), isto é, essa realização nunca é plena, mas da

ordem de uma parcialidade. Assim, Lacan identifica a função do inconsciente como

pulsativa, ou seja, como um movimento de fazer algo com o real, que pulsa, sair desse

lugar do significante puro e articulá-lo na cadeia (1964/1985:46). O inconsciente é

pulsativo, pois, enquanto uma hiância, um corte, engendra um movimento para dar

conta dessa fenda, movimento este que aqui identificamos com a pulsão.

Ora, se tomarmos o trabalho de Freud de 1923, “O ego e o id”, verificaremos que

colocar o inconsciente como pulsativo é identificá-lo ao isso. Retornemos a Freud. Lá

ele nos diz que algo se torna consciente quando há uma vinculação da representação-

coisa com a representação-palavra, ou seja, há necessidade de um movimento para

que isso ocorra. E o movimento do aparelho psíquico é empreender esta ligação para

que se possa conseguir a fuga do desprazer, gerado pela energia livre. Essa energia

livre vem do isso. Freud demonstra que o isso envolve tanto o eu (como uma parte que

se constituiu por diferenciação) e o recalcado (1923/1996:34-8). E ainda, Freud nos diz

mais: ele identifica o isso como o reservatório da libido (1923/1996:42).

Nesse sentido, se Lacan identifica o inconsciente como pulsativo, ele está nos

dizendo que o inconsciente é o isso, enquanto evasivo, pulsação, temporal, “trieb por

vir” (1964/1985:61). O significante, então, no inconsciente é pura pulsação, dinâmica.

Se, como dissemos no item anterior, é a pulsão que permite ao sujeito fazer uso do

significante, e aqui constatamos que o inconsciente é o isso, sendo assim, pulsão, é ela

quem coloca em atividade a cadeia significante. Nesse sentido, a pulsão é significante,

é um fazer algo com o significante puro, com o real. Daí todo o movimento de repetição

da cadeia significante. Isto porque a repetição é próprio mecanismo da pulsão, fundada

pela hiância que é a marca do inconsciente.

A pulsão é linguagem, ela possui uma vertente real (pulsão de morte,

significante puro), simbólica (enquanto lei, estrutura, enquanto fundada pela linguagem)

e imaginária (nos movimentos de constituição do corpo erógeno e sua relação com os

121

objetos). É a partir da consideração da linguagem enquanto compreendida nos três

registros, que podemos compreender que a pulsão é linguagem e não pode ser

dissociada dela.

4.2.2 O circuito pulsional e a alteridade

Os esforços de Lacan, como verificamos, foram repensar a psicanálise,

ressituando-a dentro dos postulados de Freud, tentando exterminar os ruídos que lhe

foram atribuídos pelos pós-freudianos. Nesse sentido, constatamos ao longo desse

trabalho a ênfase de Lacan na linguagem, colocando-a como uma anterioridade

constituinte do sujeito e da cultura. No sub-item anterior, trabalhamos o aforismo “o

inconsciente é estruturado como linguagem” para demonstrarmos a articulação da

pulsão com o significante.

Neste momento, nossa proposta é abordar o circuito pulsional, já considerando a

pulsão como significante, inclusive compreender a similaridade entre o movimento

pulsional e a cadeia significante, posto que averiguamos que a pulsão coloca em

movimento a cadeia significante.

O ponto de partida de Lacan, quando se propõe a analisar a pulsão no Seminário

11, é a proposta de que a realidade do inconsciente é sexual (1964/1985:143-4). Disso

ele pôde tirar algumas conseqüências: ressaltar a separação entre a sexualidade e a

reprodução; indicando aí a questão da relação entre a sexualidade e o significante.

Lacan demarca que a questão de ser macho ou fêmea reside num ponto de vista

biológico, mas que no psiquismo não há nada que indique ao sujeito como se situar

como macho ou fêmea. No psiquismo só existem os equivalentes, atividade ou

passividade. A atividade é manifestada através da pulsão e a passividade na relação do

sujeito com o exterior (1964/1985:194). Assim, Lacan delineia uma distinção entre a

sexualidade biológica e a sexualidade social, esta marcada pela combinatória de

significantes. Propõe que o significante se faz pela realidade sexual. A pulsão é

introduzida por Lacan mais uma vez, colocando-a como motor dessa combinatória:

122

“...uma combinatória – que opera em alguns de seus tempos pela expulsão de restos”

(1964/1985:144), ou seja, é pelo resto implicado na satisfação parcial da pulsão que o

movimento da cadeia é interminável.

Este ponto da pulsão, que engendra o jogo dos significantes, é exemplificado por

Lacan através da figura do “oito interior”. A pulsão estaria situada no campo em que o

inconsciente recobre a realidade sexual. Este espaço constitui-se como vazio:

“A libido seria assim o que pertence aos dois – o ponto de intersecção, como se diz lógica. Mas é justamente o que isto não quer dizer. Pois este vetor em que os campos parecem recobrirem-se é, se

vocês virem o perfil verdadeiro da superfície, um vazio”. (LACAN, 1964/1985:148)

Esse vazio refere-se ao real, como Lacan o considera, separado do princípio de

prazer, dessexualizado. Assim, prima pelo encadeamento no jogo significante, pois foi

resultado dele. É neste âmbito que Lacan situa o que é essencial da pulsão: seu

circuito. Obviamente que ele considera as características da pulsão, a força constante,

o alvo, o objeto e a fonte. No entanto, nos diz que não é somente cada um deles, mas o

essencial da pulsão é o circuito, o que engendra sua dinâmica e o movimento que

contorna o objeto. A satisfação da pulsão é sempre parcial, pois, como vimos no item

anterior, o que poderia satisfazer a pulsão seria o encontro com o objeto perdido, que

nunca existiu, pois é estrutural, das Ding. Daí o fato de que a pulsão sempre contorna o

objeto e retorna ao estado inicial, pois este é o vazio, o real, o lugar deixado pela

extração de das Ding:

“A pulsão apreendendo seu objeto, aprende de algum modo que não é justamente aí que ela se satisfaz. Pois se distingue, no começo da dialética da pulsão o Not e o Bedürfnis, a necessidade e a

exigência pulsional – é justamente porque nenhum objeto de nenhum Not, necessidade, pode satisfazer a pulsão”.

(LACAN, 1964/1985:159)

O que Lacan nos mostra é que a pulsão não se satisfaz no objeto, mas no

próprio movimento pulsional. Este contorna o objeto e utiliza o significante na produção

do novo. Além disso, há possibilidade da aproximação de das Ding, que seria a

satisfação almejada pela pulsão. Esta aproximação seria possível como o mecanismo

da sublimação que, como verificamos, é o que mais caracteriza a pulsão, pois é um

123

fazer com o significante e mais se aproxima de das Ding. Daí a representação da

pulsão com uma montagem (LACAN, 1964/1985:157-63).

É pela possibilidade de desmontagem da pulsão, no momento em que analisa

suas características isoladamente para verificar o que lhe é fundamental, que Lacan

fala da pulsão como uma montagem. Nessa, estão em jogo, sobretudo, o circuito

pulsional e a alteridade, o cerne do conceito de pulsão.

Lacan indica que a pulsão é uma montagem pela qual a sexualidade é

representada e atua no psiquismo, considerando a hiância, estrutura própria do

inconsciente. É a pulsão que desloca a sexualidade da reprodução, do instinto, pois, ao

se constituir na hiância deixada pela linguagem, desnaturaliza a sexualidade,

inscrevendo-a no significante. Lacan se expressa dessa maneira:

“Se a sexualidade, em forma de pulsões parciais, não se tivesse manifestado como dominando toda a economia desse intervalo46, nossa experiência se reduziria a uma mântica à qual o termo de

energia poderia então convir, mas onde faltaria o que constitui ali a presença, o Dasein, da sexualidade”. (LACAN, 1964/1985:167)

Nesse sentido, o que Lacan está nos indicando é que a sexualidade retira a

pulsão da idéia de energia e se constitui como o ponto de onde podemos falar da

pulsão como significante. Isso porque nela estão implícitos o circuito pulsional e a

alteridade, por isso ela expressa as pulsões parciais. Não nos cabe aqui extrair as

conseqüências para a clínica a partir desta citação; apenas queremos demonstrar como

Lacan distancia a economia pulsional de uma energética, situando-a no significante.

Como a questão da sexualidade passa pelo significante, ela apenas se realiza pela

operação das pulsões parciais. E aqui Lacan nos diz que são parciais em relação à

finalidade biológica da sexualidade, que é a reprodução. Portanto, a sexualidade não

implica em reprodução, à medida que as pulsões parciais retiram-na desse registro,

pois se trata de satisfação parcial e variabilidade de objetos. É o que Freud deixa

explícito em 1905, com os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (LACAN,

1964/1985:167).

46 “Entre o recalcado e a interpretação” (LACAN, 1964/1985:167)

124

Considerando o significante, satisfação parcial, a variabilidade de objetos e a

dimensão da alteridade, Lacan ressalta o caráter circular do percurso da pulsão como

fundamental:

“O que a pulsão integra de saída em toda a sua existência, é uma dialética do arco, diria mesmo do arco e da flecha. Por aí, podemos situar seu lugar na economia psíquica”.

(LACAN, 1964/1985:168) e

“O que é fundamental, no nível de cada pulsão, é o vaivém em que ela se estrutura”.

(Idem)

Ao propor o vaivém da pulsão, Lacan (1964/1985:168) está destacando que

Freud postula sempre três termos, utilizando os recursos da língua, as três vias: ativa,

passiva e reflexiva. É no retorno da pulsão, depois que ela contorna o objeto, que

aparece, ou não, o terceiro tempo, mas ele sempre está aí. Este seria o aparecimento

do sujeito. É no curso circular da pulsão que ele aparece, mas somente a partir do

outro, porque o sujeito é o outro. Destarte, Lacan pontua a alteridade como a condição

para que se exerça a pulsão, como o que completa seu caráter circular: “É somente

com sua aparição no nível do outro que pode ser realizado o que é da função da

pulsão” (LACAN, 1964/1985:169).

Nessa forma circular, que Lacan define a pulsão, estão incluídos: a fonte, Quelle,

a zona erógena da pulsão, a superfície, a borda, de onde se constitui a Drang, ou força

constante. O circuito, então, se inicia na borda, contorna o objeto a e retorna. A

característica central da tensão da pulsão é que ela não pode ser dissociada do seu

retorno, caráter que Lacan chama de “fecho” (1964/1985:169). Daí podemos extrair

ainda o corpo erógeno, o corpo que é pulsante, que emana a pulsão e sofre seu

retorno. É nesse retorno, possibilitado pela ação do outro, que o corpo erógeno se

constitui. É pela introdução do outro que a pulsão aparece em sua forma invertida, em

seu retorno (LACAN, 1694/1985:173).

Interessante notar que Lacan não fala de uma insatisfação da pulsão, mas uma

satisfação parcial. Por isso é pulsão parcial, pois se satisfaz sem atingir aquilo que seria

o objeto de uma totalização biológica. Dessa maneira, seu alvo não é o objeto, mas o

retorno em circuito. Lacan ainda nos diz que isso já está em Freud, quando ele postula

125

que o modelo ideal de auto-erotismo seria uma boca que beijaria a si mesma

(1964/1985:170).

No entanto, mesmo considerando a importância do retorno sobre si mesmo,

Lacan não deixa de articular que isto apenas é possível pela dimensão de alteridade.

Somente pela intervenção da demanda do Outro que o circuito é possível e a

passagem de uma pulsão parcial à seguinte ocorre. Não se trata de uma relação de

engendramento ou transformação de uma pulsão em outra, mas da operação do Outro,

enquanto tesouro dos significantes (LACAN, 1964/1985:171).

Esse movimento circular da pulsão é construído, não está pronto na origem. O

que existe inicialmente são as impressões, o que Freud postulava no “Rascunho E”

(1894). Existe algo como uma tensão endógena, que apenas é percebida quando

atinge certo limiar. Aí sim pode adquirir significação psíquica. É apenas quando se

insere no âmbito psíquico que podemos falar em pulsão (FREUD, 1894/1996:238-40).

Isso é, apenas quando o outro intervém que se torna possível o circuito pulsional. Entra

em cena, a partir daí, o jogo atividade-passividade.

Lacan (1964/1985:183) insere nesse ponto o mito da lâmina, para metaforizar

essa intervenção do outro. O vazio deixado pelo objeto a, o qual a pulsão contorna, é

entendido por Lacan como um órgão. Este seria inapreensível e exatamente o que

permite a inscrição da pulsão.

Vimos no item precedente o mito da lâmina do ponto de vista de um corte, da

morte do objeto. Agora, gostaríamos de abordar o que Lacan traduz a partir dele a

constituição do circuito pulsional.

A lâmina representaria, de um lado, aquilo que o sujeito perde por estar inscrito

na sexualidade, no campo da linguagem. Lacan diz que a lâmina é um órgão, a libido.

Esta, para Lacan, é o puro instinto de vida, que é subtraído pelo corte da lâmina. Os

objetos posteriores são os substitutos disso que se perde, que é cortado, disso que

chamamos anteriormente de extração de das Ding. A pulsão se constitui nessa

extração, com a morte. Lacan nos diz:

“Explico assim a afinidade essencial de toda pulsão com a zona da morte, e concilio as duas faces da pulsão – que, ao mesmo tempo, presentifica a sexualidade no inconsciente e representa, em

sua essência, a morte”. (LACAN, 1964/1985:188)

126

A pulsão parcial é, para Lacan, fundamentalmente, a pulsão de morte.

Representa a parte da morte no sujeito da linguagem, ao mesmo tempo em que é o

representante no psiquismo das conseqüências da sexualidade (1964/1985:194-5). É o

corte efetuado pela libido que permite a constituição do circuito pulsional. Lacan aponta

que é o mito da lâmina que permite designar a libido como órgão e não como um

campo de forças. Trata-se de um órgão irreal, entretanto, não se equivale ao

imaginário. O irreal se articula ao real, que escapa, por isso exige uma representação

mítica, a lâmina. É isso o que nos interessa: a libido, como uma lâmina, corta a carne, o

corpo real, o organismo, o corpo dos instintos e instaura o corpo significante, pulsional.

Lacan não se cansa de enfatizar a superfície do corpo, suas comparações das zonas

erógenas como bocas que se abrem e fecham para o mundo externo. Sendo assim, a

figura do corpo como uma superfície que é cortada pela libido inaugura o corpo pulsão,

o corpo significante (1964/1985:194-6).

Tais formulações nos permitem verificar a presença constante do corpo: o corte

efetuado pela libido se faz em sua superfície, o movimento realizado pela lâmina

permite a libidinização do corpo que, para se constituir como pulsional, faz-se

necessário uma dinâmica de perda. A pulsão, por ser significante, nunca cessa, o que

leva Lacan apontar que o ímpeto constante da pulsão se deve às zonas erógenas, às

quais a libido se relaciona e que estabelecem as pulsões parciais. E ainda, o

escoamento da pulsão é resultado do vaivém de um órgão (libido), que é real e não é

nunca simbolizado (1960/1998: 861). O mito da lâmina surge aí para simbolizar este

real, este corte da libido.

O que verificamos, portanto, com as articulações entre a pulsão e o significante é

o corte que a linguagem faz no corpo. Nesse sentido, podemos afirmar a

impossibilidade de se pensar num fora da linguagem, à medida que ela inaugura a

pulsão e engendra seu movimento. Sendo significante, a pulsão mata a coisa, deixando

apenas seu puro movimento, o que interessaria ao conceito de pulsão. Isso porque

Lacan propõe que a satisfação da pulsão se faz nesse movimento circular, no vaivém,

muito mais do que no objeto. A pulsão é, portanto, a incidência da linguagem no corpo.

127

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A linha mestra que guiou este trabalho foi a impossibilidade de se pensar um fora

da linguagem e a articulação da pulsão como significante. Como desdobramento,

trouxemos um ponto que não poderia ser deixado de fora: a necessidade de se retomar

o eixo do estruturalismo trazido por Lacan para sair dos impasses irresolutos real x

simbólico, corpo x psíquico.

Empreendemos um diálogo entre a psicanálise, o estruturalismo e a lingüística,

para resgatar o viés pelo qual podemos pensar na impossibilidade de dissociar pulsão e

linguagem. Ao estudar o paralelismo psicofísico traçado por Freud, verificamos como

Lacan pôde indicar o laço indissociável, estabelecido pelo primeiro, entre pulsão e

linguagem. Para compreender tal articulação, tomamos Lacan nos anos 1959-60 e

1964, momentos em que explicita esta relação entre pulsão e linguagem.

Foi nosso interesse desenvolver que as formulações freudianas acerca da

pulsão, sobretudo da pulsão de morte, enfatizam seu caráter estrutural, irredutível,

alicerce da teoria psicanalítica. Vimos que Freud está, ao longo de sua obra,

reformulando sua teoria das pulsões. Ele a esboça em 1895, com a idéia de uma

tensão de origem endógena, da qual o aparelho psíquico não possui meio de fuga, e,

por isso, deve lhe oferecer um destino. A ênfase nas primeiras formulações acerca da

pulsão está centrada, em 1905, nas noções de o corpo erógeno, a sexualidade

perverso-polimorfa e pulsões parciais. Em seguida, Freud passa da dicotomia pulsões

sexuais x pulsões do eu para libido do eu e libido do objeto, em 1914. Em 1915, nos

apresenta claramente as características da pulsão: força constante, alvo, objeto e fonte

da pulsão, além disso, ressalta a relação entre o corpo e o psiquismo, ao postular a

pulsão como o representante psíquico de fontes endossomáticas.

128

Com estas formulações, Freud desloca completamente o conceito de pulsão do

instinto, alocando o sujeito no registro da linguagem. Como constatamos, este trabalho

já vinha sendo feito por Freud desde 1891, nos estudos sobre as afasias. O postulado

de um aparelho de linguagem, dinâmico, que trabalha através de processos, nos

mostrou indícios do pensamento estrutural e da ênfase da linguagem no discurso

freudiano. Com isso pudemos afirmar que a psicanálise se fundou sobre o solo da

linguagem. Foi nesse sentido que pudemos compreender a concepção freudiana da

pulsão e verificar a impossibilidade de algo que funcionasse fora da linguagem.

A pulsão de morte, como algo fora do princípio de prazer, poderia nos colocar em

dúvida quanto a tais formulações. No entanto, Freud nos mostra que ela se constitui

como uma energia livre, não inserida na lógica prazer-desprazer, que pressiona por

encadeamento, organização. Aloca-a como algo primitivo, estrutural do aparelho

psíquico, por isso fundada pela linguagem.

O que observamos em Freud são seus esforços por deslocar a pulsão do objeto,

centrando-se em seu movimento e na alteridade, como condição de seu funcionamento.

Freud nos mostra algo da ordem de um discurso bem montado, articulado, o que levou

Lacan em 1964 a falar na pulsão como uma montagem, empenhando-se em enfatizar

que o que está em jogo na pulsão é seu movimento.

Sendo assim, Lacan, ao enfatizar o movimento pulsional, e relacioná-la ao que

há de fundamental no aparelho, ou seja, das Ding, ressalta a pulsão de morte como a

única pulsão. Sendo a pulsão de vida energia ligada, já estaria inscrita na cadeia

significante. A pulsão de morte, como energia livre, seria portanto, estrutural, anterior, e

regeria todo o movimento da cadeia. Por esta via, buscamos compreender a ênfase na

pulsão de morte, e, a partir daí, articulá-la ao significante.

Nos desdobramentos destas idéias, verificamos em Lacan, no Seminário sobre A

ética da psicanálise, 1959-60, a formulação do real a partir do simbólico, constituindo-se

como resto da operação simbólica, como significante puro. A pulsão de morte estaria

assim situada ao lado do real, mas não fora da linguagem. Ela se constitui como uma

operação da linguagem, engendrada por uma hiância deixada pela expulsão de das

Ding da experiência de satisfação. Assim, a pulsão de morte moveria todo o circuito

pulsional. Nesse sentido, a satisfação não estaria centrada na possibilidade de encontro

129

com o objeto, mas no puro movimento, que contorna o objeto perdido. A pulsão de

morte é, portanto, estrutural do aparelho, o que leva Lacan a afirmar que toda pulsão é

pulsão de morte. Safatle (2006) nos fala de um monismo pulsional em Lacan, em uma

ontologia negativa, à medida que a morte seria a causa primeira para a constituição do

aparelho psíquico.

O próprio Lacan afirma que a pulsão de morte apenas pode ser compreendida à

luz do significante, bem como de sua dimensão histórica. Por essa via, compreendemos

uma das maneiras pelas quais podemos articular a pulsão ao significante: o significante

‘mata a coisa’, não necessita do referente externo. A idéia de morte existente no

conceito de pulsão de morte referiria igualmente à morte da coisa, à negativização da

coisa, à medida que não é do objeto que se trata na pulsão. O que estaria em jogo aqui

é o puro movimento, bem como o que é fundamental na cadeia significante. A pulsão

de morte igualada ao significante puro seria aquilo que restou da operação da cadeia,

ao mesmo tempo em que este movimento é o que engendra o movimento significante.

No Seminário 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, 1960, Lacan

leva estas formulações às últimas conseqüências, ao identificar o inconsciente ao isso.

Se Freud (1923) situou o isso como o reservatório das pulsões e Lacan nos diz que o

inconsciente é constituído pelo significante, ao equivaler o inconsciente ao isso, nos

leva à concluir que a pulsão é responsável pela cadeia significante.

Por isso, o que podemos constatar é que não pode ser outra coisa que não o

circuito pulsional o fundamental da pulsão. Ao repetir, a pulsão de morte pressiona pela

inscrição na cadeia significante. Ao mesmo tempo em que promove um movimento

disruptivo, abre espaço para o novo. É exatamente porque o encontro com o objeto é

impossível que se torna viável o funcionamento psíquico. E isto apenas foi possível ser

formulado por Freud e Lacan a partir da concepção da anterioridade da linguagem em

relação ao sujeito. É porque tudo está submetido ao registro da linguagem que o

movimento pulsional se torna possível, bem como estabelecer esta articulação com o

significante.

Esta foi nossa proposta ao estudar a pulsão. Primeiro, a partir do pensamento

estrutural compreender que ela é indissociável da linguagem, à medida que o

estruturalismo nos apresenta um jogo de oposições que não são excludentes, mas de

130

oposições que se complementam. Destarte, os registros real e imaginário apenas são

concebíveis à luz do simbólico. Sendo assim, a pulsão de morte apenas pode ser

concebida na e pela linguagem. Outro fator fundamental aqui, também permitido pelo

estruturalismo e pela lingüística, é verificar que a pulsão é significante, posto que ‘mata

a coisa’ e engendra o movimento significante. Nesse sentido, foi muito cara a nós a

explanação acerca do pensamento estrutural.

Não deixamos de reconhecer que há ainda muito o que se dizer e estudar sobre

a pulsão. O que pretendemos com este trabalho foi trazer alguns caminhos para se

pensar a pulsão, sobretudo sua articulação com o significante. Nesse caminho

estivemos sempre estimulados pelos esforços de Lacan, Arrivé e Beividas em retomar o

eixo do estruturalismo e da lingüística na psicanálise.

Abre-se caminho para uma futura pesquisa que poderia se tornar tema para

doutoramento, ou seja, pensar o chamado segundo ensino de Lacan com relação ao

estruturalismo e a lingüística e as modificações na teoria da pulsão. Poderíamos

questionar se este modelo do estruturalismo e da lingüística se mantém no segundo

ensino ou se, de fato, Lacan rompe definitivamente com esta lógica, tendo como

direção as diretrizes trazidas por Beividas (2002), que seria resgatar a estruturalidade

dos conceitos lacanianos.

131

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