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1 CORÍNTIOS Introdução Plano do livro Capítulo 1 Capítulo 5 Capítulo 9 Capítulo 13 Capítulo 2 Capítulo 6 Capítulo 10 Capítulo 14 Capítulo 3 Capítulo 7 Capítulo 11 Capítulo 15 Capítulo 4 Capítulo 8 Capítulo 12 Capítulo 16 INTRODUÇÃO I. CONTACTOS DE PAULO COM A CIDADE DE CORINTO O evangelho alcançou a cidade de Corinto, a principal da Acaia, cerca de vinte anos após a crucifixão de Jesus. A população era constituída de gregos nativos, colonos romanos e de judeus. A cidade estava situada na principal rota comercial entre o Leste e o Oeste, por isso havia uma corrente ininterrupta de comerciantes de espírito inquieto e vivaz. Nas próprias cartas aos coríntios descobre-se o efeito de tal atmosfera na vida dos crentes dali. Somos informados a respeito de duas visitas de Paulo a Corinto em At 18 e At 20.1-3. Ele também manteve correspondência com aquela igreja em várias ocasiões, como recebia também cartas e informações dos crentes. (Veja-se 1Co 7.1; 2Co 2.4). As relações do apóstolo com a Igreja de Corinto revelam um caráter muito íntimo e pessoal. Ele foi o pioneiro na evangelização da cidade, (1Co 3.6 e 4.15) e acompanhava o crescimento daquela igreja com vivo interesse. Ali existiam dificuldades peculiares. Havia muito entusiasmo de mistura com muita propensão ao erro, algumas vezes o espírito sectário tomava vulto e parece que o Apóstolo teve seus detratores que procuraram minar sua influência. Isto se constata muito facilmente na segunda epístola. A primeira visita a Corinto verificou-se no que chamamos de segunda viagem missionária de Paulo. Ali chegou ele após sua visita a

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NOVO COMENTÁRIO DA BÍBLIA Intervarsity Press (Leicester, Inglaterra)

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1 CORÍNTIOS Introdução Plano do livro Capítulo 1 Capítulo 5 Capítulo 9 Capítulo 13 Capítulo 2 Capítulo 6 Capítulo 10 Capítulo 14 Capítulo 3 Capítulo 7 Capítulo 11 Capítulo 15 Capítulo 4 Capítulo 8 Capítulo 12 Capítulo 16

INTRODUÇÃO I. CONTACTOS DE PAULO COM A CIDADE DE CORINTO O evangelho alcançou a cidade de Corinto, a principal da Acaia,

cerca de vinte anos após a crucifixão de Jesus. A população era constituída de gregos nativos, colonos romanos e de judeus. A cidade estava situada na principal rota comercial entre o Leste e o Oeste, por isso havia uma corrente ininterrupta de comerciantes de espírito inquieto e vivaz. Nas próprias cartas aos coríntios descobre-se o efeito de tal atmosfera na vida dos crentes dali.

Somos informados a respeito de duas visitas de Paulo a Corinto em At 18 e At 20.1-3. Ele também manteve correspondência com aquela igreja em várias ocasiões, como recebia também cartas e informações dos crentes. (Veja-se 1Co 7.1; 2Co 2.4). As relações do apóstolo com a Igreja de Corinto revelam um caráter muito íntimo e pessoal. Ele foi o pioneiro na evangelização da cidade, (1Co 3.6 e 4.15) e acompanhava o crescimento daquela igreja com vivo interesse. Ali existiam dificuldades peculiares. Havia muito entusiasmo de mistura com muita propensão ao erro, algumas vezes o espírito sectário tomava vulto e parece que o Apóstolo teve seus detratores que procuraram minar sua influência. Isto se constata muito facilmente na segunda epístola.

A primeira visita a Corinto verificou-se no que chamamos de segunda viagem missionária de Paulo. Ali chegou ele após sua visita a

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 2 Atenas, logo pregando na sinagoga (At 18.4). Paulo enfrentou tal oposição da parte dos judeus, que foi levado a declarar: “Sobre a vossa cabeça o vosso sangue! eu dele estou limpo, e desde agora vou para os gentios”. (At 18.6). Tais palavras parecem sugerir controvérsia sobre a culpa da crucifixão de Jesus. Que o apóstolo fez da Cruz seu assunto fundamental em Corinto, prova-o o que encontramos na primeira carta: “Porque decidi nada saber entre vós, senão a Jesus Cristo, e este crucificado», (1Co 2.2). Talvez a experiência do apóstolo em Atenas o tivesse levado a esta decisão, o que é bem possível.

Ao mesmo tempo houve alguns convertidos de entre os judeus. O primeiro foi Áquila e sua esposa Priscila. Não eram naturais de Corinto, mas residiam ali e Paulo morou com eles (At 18.1-3). Depois vem Crispo, principal da sinagoga. (At 18.8). Este creu no Senhor com toda sua família. A seguir, vem Sóstenes (1Co 1.1) que pode ser o mesmo referido em At 18.17, como o “principal da sinagoga”. Se assim é, ele também recebeu a fé em Jesus Cristo. Mais tarde viajou com Paulo e esteve com ele em Éfeso, pois seu nome está na relação daqueles da Igreja de Corinto aos quais Paulo envia saudações na primeira carta (1Co 1.1). Todavia, o êxito mais importante de Paulo foi entre os próprios coríntios, a respeito dos quais se diz: “muitos dos coríntios... criam” (At 18.8). Também Deus lhe assegurou por meio de uma visão: “tenho muito povo nesta cidade” (At 18.10). Os judeus hostis continuaram a perseguir o apóstolo e, eventualmente, o trouxeram perante Gálio, lugar-tenente ou procônsul romano da Acaia (At 18.12). Gálio não deu atenção a esses judeus e o incidente refluiu sobre a cabeça de Sóstenes, que era o principal da sinagoga, isto através de uma demonstração antijudaica por parte da população grega (At 18.17). A menção do nome de Gálio como procônsul dá-nos razão de colocar a primeira visita de Paulo a Corinto entre os anos 50 a 55 do primeiro século, pois o consulado de Gálio é colocado no verão, ano 51, ou o mais tardar no ano 52. O apóstolo demorou-se ali cerca de dezoito meses (At 18.11), o que lhe deu excelente oportunidade para estabelecer a igreja naquela cidade. Não foi

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 3 a sua maior permanência em um só lugar, pois lemos de sua estada por dois anos, mais tarde, em Éfeso (At 19.10).

II. AS VISITAS DE PAULO A CORINTO Quantas vezes o apóstolo ainda visitou Corinto? Somente mais

uma visita está registrada em At 20.1-3. Não há pormenores, mas foi uma visita anterior à sua última viagem a Jerusalém e, por isso, pode ser considerada como sua última visita a Corinto. Desse modo, temos em Atos o registro da primeira e da última visitas. Nas epístolas que ora estudamos, o apóstolo fala como se esta última visita fosse realmente uma terceira (2Co 13.1). Neste particular, não há dúvida que existe certa ambigüidade, visto como foi cancelada uma visita que havia sido prometida (2Co 1.23). Se outra visita foi realizada, não há referência explícita, o que torna difícil encontrar solução segura sobre a questão. O que sabemos é que Paulo teve de escrever com certo rigor aos coríntios sobre a conduta deles (2Co 2.4), e adiou sua prometida visita a fim de que não estivesse presente para repreendê-los mais severamente do que por meio da sua carta (2Co 1.23). Se a visita prometida não foi realizada, então não houve uma visita intermediária.

III. A DATA DAS EPÍSTOLAS O valor da discussão deste assunto está simplesmente em

reconstituir as circunstâncias que se relacionam com a redação de 1 e 2 Coríntios. Sabemos que Paulo demorou por dezoito meses em Corinto, na sua primeira visita, viajando depois, por mar, até Éfeso; visitou Jerusalém e Antioquia, percorreu os lugares da Ásia Menor onde, anteriormente, fizera trabalho missionário, voltando então a Éfeso onde demorou dois anos (At 18.11,18-23-19.1). Escreveu de Éfeso a primeira carta aos Coríntios, talvez um ano após sua chegada ali, no ano 55 A. D. A carta foi escrita, em parte para condenar o espírito faccioso existente entre eles, fato que lhe chegou ao conhecimento por intermédio dos membros da família de Cloe (1Co 1.11) e, em parte, para repreender os

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 4 coríntios por motivo de um ato de baixa imoralidade cometido por um membro daquela igreja e contra quem eles não tomaram as medidas radicais que o caso exigia (1Co 5.1-8); e também foi escrita para responder a respeito de certas questões, sobre as quais lhe haviam solicitado conselhos (1Co 7.1). Parece que Timóteo já estava viajando para Corinto, quando Paulo escreveu esta carta (1Co 16.10) de modo que esta foi levada diretamente a Corinto por algum outro portador.

Sabemos com segurança que pouco tempo após Paulo haver escrito esta carta (embora não fosse a primeira que escrevera aos coríntios, como vemos em 1Co 5.9), ele mesmo partiu para Corinto via Macedônia (1Co 16.5). Embora tenha sido este o plano que ele estabeleceu finalmente, já havia previamente falado em ir primeiro a Corinto e, então, à Macedônia, voltando após a Corinto. Faz referência a esta intenção declarada antes (2Co 1.15-16) porque parece que alguns ficaram ofendidos por causa da modificação do plano, e tentaram, fazendo referências aviltantes, solapar sua influência entre os coríntios. Poderíamos ainda supor que o portador que levou a primeira carta aos coríntios regressou logo a Éfeso, com informações sérias a respeito do estado daquela igreja.

Em conseqüência disso, Paulo, em vez de visitar Corinto imediatamente escreveu às pressas uma carta (que não chegou até nós), na qual repreendeu os coríntios um pouco severamente, carta que enviou a Corinto pelas mãos de Tito. (Veja-se 2Co 2.3-4,9 e 7.5-16). Isto deixou o apóstolo muito preocupado e muito ansioso por saber, logo que possível, como os coríntios tinham reagido a tal reprovação. Tito tinha de voltar pela Macedônia; e Paulo deixou Éfeso e foi primeiro a Trôade e, depois, à Macedônia, no intuito de encontrar Tito o mais breve possível. Quando o encontrou ficou muitíssimo alegre em saber, por intermédio dele, que aquela carta severa tivera efeito benéfico, e que os coríntios haviam reconhecido plenamente o ponto de vista do apóstolo (2Co 2.12-14). Em conseqüência disto escreveu a carta que chamamos 2 aos Coríntios e enviou Tito de volta com a mesma, juntamente com

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 5 outros dois irmãos (2Co 8.16-24). Esses entregaram a epístola e também completaram o recolhimento de uma coleta que tinha sido levantada em Corinto para os crentes pobres em Jerusalém (2Co 8.11). 2 Coríntios foi portanto escrita da Macedônia e expressou a alegria de Paulo sobre os resultados alcançados em Corinto. Nela, todavia, o apóstolo também não hesitou em ministrar-lhes as lições a respeito da “discórdia” sobre a qual se deteve nos últimos quatro capítulos (10.1-13.10).

Esta reconstituição é apenas conjectural e não é aceita por muitos. Alguns admitem que essa carta tão severa e mencionada em 2Co 2.3 é a mesma 1 Coríntios; outros sugerem que 2 Coríntios, como a possuímos, é constituída de duas ou três divisões tomadas de epístolas diferentes, escritas por Paulo aos coríntios em diferentes ocasiões. Tais divisões distintas seriam 1 a 9, exceção feita de 6.14-7.1, e 10.1-13.10. Tal possibilidade não pode ser desdenhada e a ela nos referiremos depois. Tal ponto de vista, porém, não é absolutamente necessário, e excelentes argumentos podem ser alinhados em favor da unidade de 2 Coríntios, como esta se apresenta. Em qualquer caso, porém, a autoria de Paulo quanto ao conteúdo total é indisputável.

Eventualmente, o próprio Paulo chegou a Corinto partindo da Macedônia, onde se demorou, por três meses. Uma vez mais teve de escapar à perseguição dos judeus e deixou Corinto por terra em vez de viajar por mar, como era sua intenção a princípio (At 20.3). Até onde é possível verificar-se, o apóstolo jamais voltou a Corinto.

IV. EVIDÊNCIA EXTERNA Muito tempo depois, Clemente de Roma enviou uma carta à Igreja

de Corinto, escrita daquela cidade. Isto ocorreu mais ou menos no ano 95 A. D. e nessa carta Clemente faz referência a uma epístola de Paulo que pode ser identificada com a 1Coríntios. Essa referência posterior torna 1 Coríntios uma das mais bem autenticadas epístolas do Novo Testamento. Possivelmente a referência mais remota a 2 Coríntios é encontrada nos

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 6 escritos de Irineu e Clemente de Alexandria, já nos fins do segundo século, mas a genuinidade da epístola jamais foi posta em dúvida.

V. A IGREJA EM CORINTO A Igreja em Corinto foi formada a princípio de uns poucos judeus

e muitos gentios, como já foi dito. Seus pontos fracos e fortes podem ser notados através do estudo das cartas que Paulo lhe endereçou. Em nenhuma dessas epístolas, contudo, nem no relato das visitas de Paulo encontrado nos Atos, nos é referido exatamente o que aconteceu na igreja e que deu lugar à severa repreensão que lhes foi aplicada. Somos informados de um caso de incesto peculiarmente vergonhoso (1Co 5.1-5); houve também um caso de um «que fez o mal» (2Co 7.12), se é que se trata de duas pessoas diferentes. Mas deduzimos que houve um motivo mais geral, além dos referidos, que inquietou o apóstolo, como algum movimento que lançava dúvidas sobre o seu apostolado, e lhe contrapunha um rival (2Co 11.1-6). Não temos bastante luz sobre este assunto para, com exatidão, traçar o curso dos acontecimentos.

Tentemos chegar a uma conclusão até onde possível. Do livro de Atos sabemos que Apolo também visitou a Acaia (e certamente Corinto, a capital) e pregou ali com bastante aceitação (At 18.28). Ele é também mencionado por Paulo elogiosamente, em 1 Coríntios – "Apolo regou” - (3.6). E é interessante observar que o nome de Apolo foi um dos escolhidos para líder de um partido - “Eu sou de Apolo” - (1Co 1.12). Do que lemos a seu respeito em Atos, parece ter sido um judeu culto que se tornou cristão e orador eloqüente. Evidentemente não era responsável pela criação do partido que tinha o seu nome como bandeira, nem tampouco Paulo pelo outro que tinha o seu. Timóteo, Tito e Suas também trabalharam com Paulo em Corinto (Veja-se At 18.5 e 1 e 2 Coríntios, onde se fala deles).

Tem-se especulado se Pedro fez alguma visita a Corinto, e isto por causa da referência ao «Partido de Cefas» (1Co 1.12). Em todo o Novo Testamento não se pode descobrir qualquer referência ou idéia de ter

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 7 ocorrido tal visita. Que representaria, em particular, esse partido de Cefas? É um problema para o qual não se tem resposta certa; mas devido ao fato de o próprio Paulo em sua epístola aos Gálatas declarar: «Resisti a Pedro face a face» (Gl 2.11), é possível que notícias dessa desavença entre eles em assunto de tanta seriedade tivessem chegado a Corinto e ali alguns ficassem do lado de Pedro. O caso teria sido, então, a estrita observância da lei judaica por todos os cristãos.

VI. PROPÓSITO DE PAULO EM ESCREVER A índole do povo de Corinto, devido à população ser constituída

de raças diversas, prestava-se a divisões partidárias. Até mesmo os crentes foram atingidos por esse espírito sectarista, ostentando os nomes dos líderes mais destacados, até mesmo o do próprio Cristo, para fazer sobressair suas várias divisões. Contra isto o apóstolo tinha de escrever de maneira muito forte, e os primeiros quatro capítulos de 1 Coríntios são destinados a salientar o mal do espírito sectário entre os cristãos. Paulo atribui a causa dessas divisões a uma falsa concepção de sabedoria, de um lado, e do ministério cristão, do outro.

Essas divisões na igreja eram um mal, não somente por causa da amargura que produziam, mas também porque os mestres, cujos nomes os diversos partidos adotavam, não viviam a se opor mutuamente. Isto acontecia entre a população pagã de Corinto, onde existiam mestres de opiniões opostas. Por exemplo, Públio Élio Aristides, do segundo século informa que “em cada rua de Corinto pode-se encontrar um ‘sábio’ que tem sua própria solução para os problemas da vida”. Esse partidarismo pode ser atribuído à natural tendência entre os gregos para certa inconstância mental; também uma curiosidade em torno de mistérios, a qual se satisfazia com muitas explicações possíveis, sem necessariamente decidir sobre qual era a verdadeira (cf. At 17.21). Para que a comunidade cristã não seguisse tal tendência, o apóstolo escreveu energicamente: “Está Cristo dividido? Foi Paulo crucificado em favor de vós?” (1Co 1.13).

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 8 Todavia, temos apenas considerado os nomes dos partidos

mencionados em 1 Coríntios. Todos esses nomes eram de homens genuinamente bons, e a dificuldade não foi causada por eles, mas pelos próprios coríntios que usavam os nomes deles para fins sectaristas.

Em 2 Coríntios encontramos uma situação diferente, porque agora um grupo de outros “apóstolos” surgiu, solapando a influência de Paulo, que a eles se refere nos últimos quatro capítulos dessa epístola. Quando os menciona, é levado a usar de grande clareza de linguagem. Mostra a atitude deles. Diziam: “Suas cartas (de Paulo), com efeito, são graves e fortes, mas a presença dele é fraca, e a palavra, desprezível” (2Co 10.10). Contra estes Paulo tem de falar acerca de si próprio, de uma maneira que, obviamente, o fere. “Mas o que faço, e farei, é para cortar ocasião àqueles que a buscam” (2Co 11.12); e “o que falo, não o falo segundo o Senhor e, sim, como por loucura nesta confiança de gloriar-me” (2Co 11.17). E segue uma relação de experiências de sua própria vida, que não teríamos conhecido, se esses semeadores de desordens na igreja de Corinto não tivessem dado lugar a isso. Assim, do mal resultou o bem. O que nos inspira maior interesse, ao contemplarmos esses acontecimentos, é o fato de o apóstolo ter-se conservado em comunhão com tal grupo de crentes sectaristas. Não se separou deles, como se fossem gente intratável, mas cumpriu a ordem de nosso Senhor «não desesperando de ninguém» (ver Lc 6.35). E em meio a essas palavras de controvérsia pessoal, podemos sentir o espírito do amor cristão e a operação do princípio proclamado em 1Co 13. «Eu de boa vontade me gastarei e ainda me deixarei gastar em prol das vossas almas. Se bem que tanto mais vos ame, tanto menos seja amado por vós» (2Co 12.15).

VII. DUAS CARTAS, OU TRÊS? Façamos aqui uma digressão a fim de considerar se esses capítulos

(2Co 10 a 13), na posição que ocupam atualmente, não estão deslocados, devendo então ser considerados como uma carta separada, e mesmo como a carta referida em 2Co 2.3-4. Vejamos como Paulo a descreve:

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 9 “E isto escrevi para que, quando for, não tenha tristeza da parte

daqueles que deveriam alegrar-me; confiando em todos vós de que a minha alegria é também a vossa. Porque no meio de muitos sofrimentos e angústias de coração vos escrevi, com muitas lágrimas, não para que ficásseis entristecidos, mas para que conhecêsseis o amor que vos consagro em grande medida”.

Agora, se passarmos diretamente destas palavras para o cap. 10, podemos apreciar a força do argumento acima apresentado. O cap. 10 assim começa:

“E eu mesmo, Paulo, vos rogo, pela mansidão e benignidade de Cristo, eu que, na verdade, quando presente entre vós, sou humilde; mas, quando ausente, ousado para convosco, sim, eu vos rogo que não tenha de ser ousado, quando presente, servindo-me daquela firmeza com que penso devo tratar alguns que nos julgam como se andássemos em disposições de mundano proceder”.

Mais adiante, em 11.2-3, lemos: “Porque zelo por vós com zelo de Deus; visto que vos tenho

preparado para vos apresentar como virgem pura a um só esposo, que é Cristo. Mas receio que, assim como a serpente enganou a Eva, com a sua astúcia, assim também sejam corrompidas as vossas mentes, e se apartem da simplicidade e pureza devidas a Cristo”.

Tais sentimentos, pensam alguns, ajustam-se tão bem à descrição que Paulo faz da referida carta, que muitos comentadores concluem constituírem estes capítulos a carta em questão e, portanto, devem ser cronologicamente colocados antes de 1 a 9. A atual colocação, porém, é encontrada em todos os manuscritos e não aparece qualquer evidência que indique não pertencerem os quatro últimos capítulos originalmente aos primeiros nove. Portanto, a questão só pode ser discutida do ponto de vista da evidência interna, não se conseguindo unanimidade de opinião. Em defesa da correção da ordem atual pode-se argumentar que os caps. 1 a 9, embora registrem alegria, também contêm reprimenda (veja-se por exemplo 1.23). Isto indica que a reprimenda não está inteiramente fora

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 10 do pensamento do autor, por isso o tom de advertência dos últimos quatro capítulos pode seguir apropriadamente a matéria dos nove primeiros. Demais disto, o tom ou linguagem de 10 a 13 não é todo de hostilidade; e pode-se dizer não ser bastante severo para justificar a alegação feita de ser uma carta de repreensão. Amor genuíno e profundo interesse assinalam esses capítulos (veja-se por exemplo 12.20): “Temo, pois, que, indo ter convosco, não vos encontre na forma em que vos quero, e que também vós me acheis diferente do que esperáveis, e que haja entre vós contendas, invejas, iras, porfias, detrações, intrigas, orgulho e tumultos”. Quando se consideram essas qualidades de cada divisão, o teor geral de cada seção não é tão diferente que a última não possa vir em seguimento da primeira.

Teria o apóstolo conseguido reatar suas boas relações cristãs com a Igreja de Corinto, e também entre os membros da própria Igreja? Aqueles que colocam os caps. 10 a 13 antes dos caps. 1 a 9 podem responder: Sim. Se achamos que a ordem desses capítulos deve ser como se apresenta na carta, podemos ainda crer que Paulo, pelo Espírito Santo, teria sido uma vez mais “consolado e confortado” como o fora nas ocasiões anteriores (veja-se 2Co 1.1-14).

VIII. O ENSINO DESTAS EPÍSTOLAS A igreja de Corinto era, a um só tempo, fonte de alegria e de

ansiedade para o apóstolo. As duas epístolas que estudamos são caracterizadas por um espírito de interesse pessoal intenso, da parte do autor, pelos crentes dali. Este interesse impediu-o de desenvolver uma linha de doutrina, como, por exemplo, na epístola aos Gálatas; ou uma apresentação sistemática do caminho da salvação em Cristo Jesus, como é o caso de Romanos (embora seja interessante recordar que a carta aos Romanos foi escrita em Corinto). Muitos tópicos doutrinários são abordados, alguns de capital importância para a compreensão da fé cristã. Certas divisões tratam da natureza da sabedoria humana e da sabedoria divina (1Co 1 a 4); a doutrina da conduta crista (1Co 5; 6; 8; 9

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 11 e 11); o conceito cristão do casamento (1Co 7; cf. 2Co 6.14-7.1); a instituição e significação da Ceia do Senhor (1Co 10 e 11.17-34). Ha também o ensino relativo à unidade da Igreja (1Co 12-13; 16.1-9 e 2Co 8 e 9); sobre os dons espirituais (1Co 14); sobre a Ressurreição (1Co 15) e o ministério cristão (2Co 3.1-6.10; 10.1-13.13). Desta relação pode se constatar que uma perda muito grande a Igreja teria sofrido se estas epístolas não tivessem sido escritas ou preservadas.

PLANO DO LIVRO

I. INTRODUÇÃO - 1.1-9 a) Saudação aos crentes de Corinto (1.1-3) b) Gratidão pela graça que lhes foi dada (1.4-7) c) Confiante esperança neles (1.8-9) II. DIVISÕES NA IGREJA - 1.10-4.21 a) Exposição dos fatos (1.10-17) b) A raiz das divisões: uma concepção errônea de sabedoria (1.18-3.4) e uma concepção errônea do ministério cristão (3.5-4.13) c) Último apelo para pôr fim às divisões (4.14-21) III. DELITOS MORAIS NA VIDA DA IGREJA - 5.1-6.20 a) Frouxidão no caso de incesto (5.1-13) b) Questões levadas a juízes pagãos (6.1-11) c) O pecado da sensualidade (8.12-20) IV. RESPOSTAS A PERGUNTAS - 7.1-14.31 a) Acerca do casamento (7.1-40) b) Acerca de carnes sacrificadas aos ídolos (8.1-11.1) c) Culto público - os princípios em jogo (11.2-14.40)

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 12 V. O EVANGELHO DA RESSURREIÇÃO - 15.1-58 a) Sumário dos fatos (15.1-19) b) Conseqüência dos fatos (15.20-34) c) A natureza do corpo ressurreto (15.35-49) d) A imortalidade (15.50-58) VI. INSTRUÇÕES FINAIS - 16.1-24 a) Contribuição sistemática (16.1-9) b) Acerca de Timóteo, Apolo e Estéfanas (16.10-18) c) Saudações e bênção final (16.19-24)

COMENTÁRIO I. INTRODUÇÃO - 1.1-9 1 Coríntios 1 a) Saudações aos crentes de Corinto (1.1-3) O apóstolo adota a forma usual de saudação grega, na qual o nome

do escritor vem no princípio. Apresenta-se ele como alguém que foi chamado pela vontade de Deus para ser apóstolo de Jesus Cristo (1). Estava bem cônscio de que Deus agira na sua chamada. Conhecendo a narrativa da conversão de Paulo (veja-se At 9.1-16), podemos apreciar por que ele constantemente a ela se refere, seja diretamente (veja-se v. g. At 22.1-16), seja indiretamente nas saudações de suas epístolas. Podemos também inferir que Paulo tinha interesse em sublinhar sua missão e autoridade apostólicas, de Deus recebidas, especialmente quando escrevia a igrejas onde, como no caso de Corinto, havia certa tendência da parte de alguns para desacreditá-las.

O irmão Sóstenes (1). Tem prazer em juntar ao seu o nome de outro crente, pensando sempre em termos de companheirismo com

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 13 outros no evangelho (cf. 2Co 1.1 e as outras epístolas suas). (A respeito de Sóstenes, veja-se a Introdução).

A Igreja de Deus, que está em Corinto (2) é a maneira notável como o apóstolo fala do grupo de crentes, homens e mulheres, de Corinto - os representantes locais da única Igreja de Deus.

Santificados em Cristo Jesus (2), isto é, separados ou dedicados a Deus, por sua união com Cristo Jesus. O tempo do verbo no grego, correspondente à palavra “santificados”, indica um estado contínuo, resultante de uma experiência anterior de santificação. Chamados para ser santos (2) mais uma vez indica que a posição do crente procede de Deus e não é ganha por méritos próprios (veja-se nota sobre Fp 1.1).

Com todos os que, em todo lugar, invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo (2). A Igreja de Cristo é universal, “católica”, e contudo há um sentimento íntimo entre as respectivas partes, entre todos os indivíduos e Cristo - Senhor deles e nosso (2). Podemos considerar as frases descritivas no verso 2, que seguem as palavras igreja de Deus, como expositivas da doutrina da Igreja e como maneira de descrever os seus membros. Observe-se a seqüência – “de Deus”, “santificados”, “chamados”, “invocam”, “deles e nosso”.

A Igreja é criação de Deus, que Ele por Sua vontade criou para Si. Seus membros são santificados, postos à parte para uso de Deus; são chamados - também significando potenciados - para ser santos; e eles continuamente invocam o nome de Jesus Cristo, cientes de que outros, em outros lugares, fazem o mesmo, não se considerando eles, portanto, como sendo a Igreja toda, ou que somente eles estão de posse de Cristo.

Graça... paz (3); a primeira é a fonte de onde emana a nossa salvação; a segunda é a recompensa da confiança pessoal em Deus.

Deus nosso Pai, e... o Senhor Jesus Cristo (3). A associação do nome de Jesus com o de Deus o Pai, em frases incidentais como esta, oferece-nos uma garantia da fé apostólica na deidade de Jesus Cristo, mais do que o fariam declarações formais. A doutrina da Santíssima Trindade não decorre de textos isolados; cremos que ela permeia todo o

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 14 Novo Testamento. Teremos outras ocasiões de lhe fazer referência, à medida que prosseguirmos (vejam-se especialmente as notas sobre o cap. 15).

b) Gratidão pela graça que lhes fora dada (1.4-7) O apóstolo afirma que rende graças a Deus continuamente pelos

resultados da pregação do evangelho em Corinto, através da qual a graça divina foi aceita por muitos (4). Deus lhe havia dito: “tenho muito povo nesta cidade” (At 18.10), o que se tornou para ele uma fonte de grande alegria.

Graça, que vos foi dada (4), o que indica uma experiência definida, no passado. Resultou isto no enriquecimento (5), de acordo com o testemunho que o apóstolo dera de Cristo, o que foi então confirmado neles (6). Os crentes coríntios demonstravam plena fé cristã e viviam na expectação da volta de Cristo (7). O apóstolo desse modo teria querido ensinar-nos a considerar esta expectação como expressão máxima da fé cristã. E é mesmo; hoje, a negligência generalizada por este assunto indica até onde vai o nosso desvio da fé apostólica da Igreja. Cf. a atitude dos “escarnecedores”, em 2Pe 3.3-4.

Agradecendo a Deus a graça concedida aos coríntios, notamos que o apóstolo refere a “palavra” e o “conhecimento” como dons especiais outorgados aos crentes daquela cidade. Isto é significativo à luz do que se lê adiante nesta epístola.

Por exemplo, ficamos sabendo no cap. 14 o que entendia ele a respeito de falar línguas. Anima antes os coríntios a “profetizar”, isto é, a dar expressão à mensagem do evangelho. Outrossim, nesta epístola discutem-se o verdadeiro e o falso “conhecimento” (vejam-se os vv. 18 e segs.). Os coríntios, pois, por sua atividade intelectual estavam provocando a discussão de novidades, sobre as quais havia necessidade de orientação apostólica.

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 15 c) Confiante esperança neles (1.8-9) Jesus Cristo vos confirmará até ao fim (7-8). «Confirmar»

significa fortalecer a graça já concedida, de modo a fazê-la durar até ao fim. O resultado será tornarem-se eles irrepreensíveis, inatacáveis, no dia de nosso Senhor Jesus Cristo (8), isto é, quando Cristo voltar como juiz.

Fiel é Deus (9). Podemos confiar plenamente nas promessas divinas. Esta é a razão pela qual a confiança em Deus é a pedra de toque e a alegria do verdadeiro cristão. Fostes chamados (9). A certeza de que é Deus quem nos chama para a comunhão do Seu Filho Jesus Cristo (9) remove muitos temores oriundos da confiança própria. Este pensamento tem sido objeto da atenção de muitos mestres cristãos. A frase comunhão do Seu Filho é um modo de referir à Igreja, e seu uso aqui é significativo em vista dos sentimentos sectaristas que haviam surgido em Corinto, a respeito dos quais o apóstolo vai já tratar com seriedade. Os crentes devem estar em comunhão uns com os outros porque cada um deles está nessa relação para com Cristo.

II. DIVISÕES NA IGREJA - 1.10; 4.21\ a) Exposição dos fatos (1.10-17) Os vv. 10-17 são algo chocantes. Os “santos” estão brigando uns

com os outros! Como explicar isto? A santidade, no Novo Testamento, significa em primeiro lugar um estado diante de Deus, mas deve também manifestar-se em santidade de vida. Isto requer exercício voluntário e autodisciplina.

Pelo (ou “mediante” o) nome de nosso Senhor Jesus Cristo (10). Trazer à lembrança o Mestre divino, eis o meio de fazer alguém envergonhar-se dos seus próprios pecados. Aliás Paulo não ousou corrigir os santos por sua própria autoridade. Antes sejais inteiramente

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 16 unidos, na mesma disposição mental e no mesmo parecer (10). “Mente” e “parecer” talvez se diferenciem em aquela significar acordo de pensamento, e este querer dizer acordo em decisão ou propósito.

Fui informado pelos da casa de Cloe (11). Alguns cristãos de Corinto estavam contristados com as atitudes sectaristas dentro de sua igreja, e apelaram a Paulo. Cloe não se menciona mais em parte alguma.

Eu sou de Paulo; e eu de Apolo, e eu de Cefas; e eu de Cristo (12). Qual fosse o ensino particular, ou ponto de vista, de cada um destes partidos, não se pode determinar com certeza. Talvez se tratasse apenas de preferências pessoais, mas neste caso é difícil explicar a razão de ser do partido de Cristo. Várias sugestões têm sido apresentadas - que os de Paulo eram um grupo que talvez mais do que este apóstolo dava ênfase à libertação de sob o jugo da lei judaica; os de Apolo eram aqueles influenciados por sua retórica, provindos de Alexandria, centro de retórica judaica; os de Cefas podiam ser oponentes dos Paulinos, homens que se firmavam na lei e no cerimonialismo dos judeus (ver a Introdução); e os de Cristo podiam ser cristãos que arrogavam para si, de um modo exclusivo, o nome do Salvador. Tudo isto, porém, é conjectura, e em qualquer caso não interfere com a principal mensagem da seção que é evitar distinções sutis que levam a meras diferenças verbais (Veja-se outra vez 2Co 10.7-18).

O apóstolo enfrenta a situação de modo muito eficaz. Acaso Cristo está dividido? foi Paulo crucificado em favor de

vós? (13). A união dos cristãos entre si está em Cristo, e nunca será conseguida por acordo em torno de teorias. Fostes porventura batizados em nome de Paulo? (13). O rito do batismo podia ser mal interpretado como algo que o seu ministro pudesse realizar por virtude própria (veja-se o verso 15). O apóstolo rende graças (nas presentes circunstâncias) por haver batizado muito poucos.

Não me enviou Cristo para batizar, mas para pregar o evangelho (17). O intuito destas palavras não é depreciar o batismo, mas dar ênfase ao fato de que a pregação de Cristo, levada a efeito por ele,

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 17 Paulo, não podia dar ocasião a ninguém dizer que, por ela, o apóstolo granjeava convertidos para si. E tal pregação era desataviada de retórica mundana, sabedoria de palavras (17), que era, nos dias de Paulo, o critério pelo qual se reconhecia quem falava bem. Ele, porém, se absteve disso, porque a força salvadora de sua mensagem não estava em sabedoria de palavras, mas na cruz de Cristo (17).

b) A causa (raiz) das divisões: uma concepção errônea de

sabedoria (1.18; 3.4) e do ministério cristão (3.5-4.13) 1. CONTRASTADAS A VERDADEIRA E A FALSA SABEDORIA

(1.18-2.5) - A pregação da cruz é loucura para os que se perdem (18). O homem natural, isto é, como nasce no mundo, não pode crer na séria conseqüência do pecado, e por isso não se pode compenetrar da necessidade de receber a Cristo, que foi feito pecado por nós (2Co 5.21). Uma coisa parece loucura ao homem natural, quando não se ajusta às suas idéias preconcebidas. Para nós, que somos salvos, é poder de Deus (18). O grego tem os verbos destas duas frases assim: “Os que estão perecendo... nós que estamos sendo salvos”. Cada frase representa uma classe. O Novo Testamento ensina que os “santos”, isto é, os verdadeiros crentes, estão na classe dos salvos, contudo ainda não estão plenamente santificados. A santificação é um processo.

O apóstolo agora passa a considerar a natureza e o valor da sabedoria do mundo, contrastando-a com a natureza e o valor da sabedoria que se acha em Cristo Jesus.

Não tornou Deus louca a sabedoria do mundo? (20). Todos os sistemas filosóficos da lavra do homem, que se alheiam de Deus ou O definem segundo a imaginação humana, acabam em nada, em loucura. “Porventura, pesquisando, poderás encontrar Deus?” (Jó 11.7).

Por sua própria sabedoria o mundo não O conheceu (21). Na última parte de Rm 1, o apóstolo discorre longamente sobre os falsos caminhos palmilhados pelo homem. Podia-se fazer um confronto das

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 18 duas passagens. Tanto é verdade que Deus é manifestado pelo universo em si (esta é a mensagem de Rm 1) como é verdade que o homem não pode ter um verdadeiro conhecimento de Deus só pelos dons naturais (é esta a mensagem de 1Co 1).

A loucura da pregação (21). Pregação aqui, no grego, significa a “mensagem”. Refere-se aos simples fatos, como podíamos dizer, da história cristã, o conteúdo do evangelho. Este conteúdo parecia “loucura” (porque muito fora do comum; como o nascimento virginal, a ressurreição) aos gregos contemporâneos do apóstolo. Ainda parece loucura a muitos hoje, porque a mentalidade grega (mais ou menos racionalista) persiste na Europa. Os que crêem (21). “Crer” no Novo Testamento não implica comumente assentimento intelectual em primeiro lugar; antes é confiança pessoal adicionada a obediência. Aceitando-se os fatos do evangelho como provindos de Deus e, portanto, confiando-se neles plenamente, entra-se num estado de salvação.

Os judeus... sinais, os gregos... sabedoria (22). Temos aí a suma das características raciais de cada classe numa palavra. Os judeus eram caçadores de milagres. Lembramo-nos da atitude de nosso Senhor para com os ditos milagres. Aliás, procurava ocultá-los. A sabedoria dos gregos era uma atividade intelectual. Ninguém nega a elevada percepção intelectual dos filósofos gregos, nem a superioridade de muitos de seus escritos. Todavia nada disto tem poder salvador para o gênero humano em sua generalidade. Algo mais é necessário, na presença do qual as lucubrações humanas mais sublimadas se mostram de nenhum poder.

Esse algo é Cristo crucificado (23), que é pedra de tropeço (23) para os judeus, por várias razões. Em si mesma a cruz é sinal de ignomínia e derrota. Além disso, feria a sensibilidade da consciência judaica. Era o reverso da vitória do Messias, a estabelecer um «reino glorioso, aqui e agora».

É loucura (23) para os gregos, porque não parece ter explicação intelectual. Houve porém alguns judeus e gregos que acharam ser ela o poder e a sabedoria de Deus (24). Poder de Deus porque o pecado, até

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 19 aí adversário invicto do homem, foi por ela vencido; sabedoria de Deus porque mostra que Ele conhecia a verdadeira natureza do fracasso do homem e fez provisão para o mesmo.

E o apóstolo conclui declarando triunfantemente que a loucura de Deus (como assim julgam) é mais sábia do que os homens; e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens (25).

À vista disso, não é de surpreender que não foram chamados muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de nobre nascimento (26). As idéias deles estavam já fixas em outro canal. Pelo contrário, Deus «exaltou os humildes e os mansos».

Ele escolheu as coisas loucas... as coisas fracas.... as coisas humildes... e as desprezadas, e aquelas que não são (27-28) para mostrar Seu poder. Se Deus pode exaltar coisas que os homens rejeitaram como inúteis - tanto coisas como pessoas - então Ele é onipotente.

A fim de que ninguém se vanglorie em Sua presença (29). O primeiro passo para a recuperação do gênero humano é descobrir que, fora de Deus, o homem não tem qualquer base para existir.

Os vv. 30 e 31 resumem o pensamento do apóstolo. Podiam ser parafraseados assim: “Vós, cristãos, entretanto, reconheceis de fato vossa dependência de Deus, porque sois filhos de Deus em Cristo Jesus, isto é, mediante Seus méritos e vossa relação com Ele. Jesus Cristo é para nós a verdadeira sabedoria que vem de Deus; Ele também representa absoluta justiça e santidade, e completa restauração ao estado de perfeição, em nosso favor. Por conseqüência seguimos a verdade, como está escrito. Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor” (Veja-se Jr 9.23-24).

1 Coríntios 2 O apóstolo Paulo mesmo procedia assim. Quando fui ter

convosco... não o fiz com ostentação de linguagem, ou de sabedoria (2.1). Absteve-se de toda capacidade ou poderes naturais. Seu propósito era declarar o testemunho de Deus (1). Outros MSS gregos trazem

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 20 “mistério de Deus”. A palavra “mistério” no Novo Testamento grego traz o sentido de algo que está sendo revelado - não, como entre nós, alguma coisa que nos mistifica. A idéia aqui do ensino de Paulo é que Deus Se revela aos que dEle se aproximam em Cristo - sendo este, naturalmente, o tema de todo o Novo Testamento. O conhecimento de Deus é, pois, “misterioso” no sentido de que o homem natural, agindo por suas próprias faculdades, não pode recebê-lo (veja-se ainda sobre o verso 14). O vocábulo “testemunho”, que ocorre em outros manuscritos gregos, dá ênfase antes à operação do conhecimento de Deus na vida de Paulo. A obra deste apóstolo em Corinto, como evangelista, assinalou-se por ausência de encenação - foi feita em fraqueza, temor e grande tremor (3). Ocupou-se inteiramente em apresentar a Pessoa de Cristo (pelas razões já enumeradas em 1.30) e Sua obra por nós na cruz - o evento da vida de Cristo que exigia o máximo de compreensão.

A minha palavra e a minha pregação não consistiram em linguagem persuasiva de sabedoria (4). Os coríntios não compreendiam um pregador sem oratória. Tinham ainda que reconhecer a vaidade de toda sabedoria humana, por um lado, e o poder convincente do Espírito (4), de outro. A fraqueza do apóstolo era de fato um auxílio para que o poder do Espírito se demonstrasse (veja-se também 2Co 12.9 – “Meu poder se aperfeiçoa na fraqueza”). Teve o mérito de evitar que os coríntios fossem levados a exaltar a Paulo em lugar de Deus - para que a vossa fé não se apoiasse em sabedoria humana, e, sim, no poder de Deus (5).

2. DEFINIÇÃO DA VERDADEIRA SABEDORIA (2.6-13) -

Expomos sabedoria entre os experimentados (perfeitos) (6). Paulo está falando das coisas de Deus ao povo de Deus. A verdadeira sabedoria origina-se em Deus, e todo o seu conteúdo deriva-se dEle. “O temor do Senhor é o princípio da sabedoria”. (Veja-se também Jó 28.28). A sabedoria humana, pelo contrário, tem numerosos pontos de partida e igualmente diversos conteúdos, de modo que não há nela unidade.

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 21 Experimentados (perfeitos) é um termo aplicado no Novo Testamento aos crentes. Pode ser considerado quase como um termo técnico. O crente é “perfeito” porque é nova criatura em Cristo, de cuja perfeição participa aos olhos de Deus. Não implica impecabilidade enquanto ele estiver na carne. “Se dissermos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos nos enganamos” (1Jo 1.8). A palavra é provavelmente introduzida neste contexto para dar ênfase ao fato de que, em Cristo, o crente tem experiência das realidades finais.

Príncipes deste mundo (6). “Poderosos desta época” (ARA). A palavra é “governadores”, e o pensamento pode ser a maneira pela qual o povo do mundo acompanha o aparato dos que estão em autoridade. Tais aparatos logram larga publicidade, mas eventualmente se reduzem a nada (6). (Alguns comentadores acham que “príncipes deste mundo” significa anjos. Satanás algumas vezes é assim chamado).

Pelo contrário, a sabedoria de Deus é oculta (7), é falada em mistério (veja-se 2.1). Está oculta na própria natureza do universo, preordenada desde a eternidade (7) com vistas à nossa glória (7), isto é, levando-nos à glória e trazendo glória para nós.

Nenhum dos príncipes deste mundo conheceu (8) tal glória, porque se eles a conhecessem sua atitude para com Cristo teria sido diferente - não teriam crucificado o Senhor da glória (8). Note-se este título de Cristo. “Glória” é outro termo técnico no Novo Testamento que significa um atributo de Deus que Ele concede aos crentes.

No verso 9 se diz que é algo além da capacidade natural que o homem tem de concebê-la - O olho não viu, etc. Estas palavras não se acham no Velho Testamento exatamente como estão citadas aqui, porém parecem ser uma combinação de Is 64.4 e 65.16-17. Temos aqui uma ilustração instrutiva do conhecimento que Paulo tinha do Velho Testamento, e do livre uso que dele fazia.

Deus no-las revelou pelo seu Espírito (10). Este versículo declara a necessidade que temos da direção do Espírito para a compreensão das coisas de Deus. Assim como alguém compreende seu

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 22 companheiro mediante a participação de um espírito que lhes é comum (11), assim o homem só pode compreender a Deus por meio da comunhão do Espírito de Deus (11). Este verso é interessante por apresentar a idéia de comunicação mediante um “espírito” comum.

A palavra “espírito” na Bíblia não é facilmente definida, significando às vezes pouco mais do que “influência”, mas outras vezes é usada de um modo que indica plena e distintamente a terceira Pessoa da Santíssima Trindade. O verso 11 podia ser usado como ponto de partida de uma investigação deste assunto.

Nós não temos recebido o espírito do mundo, e, sim, o Espírito que vem de Deus (12). Aqui, no grego, a palavra “mundo” é diferente da que foi usada no verso 7, acima. Lá o sentido é de “época”; aqui a significação é de “universo ordenado”. A frase espírito do mundo quer dizer o espírito ou modo de ver, concepção de nossa humana civilização.

Foi-nos dado gratuitamente (12). A revelação de Deus foi-nos dada completamente no Jesus histórico; é pois um acontecimento do passado, mas com potencialidades sempre presentes.

Falamos esta verdadeira sabedoria de Deus, não em palavras ensinadas pela sabedoria humana, mas ensinadas pelo Espírito (13). É um tipo de sabedoria de todo em todo diferente, contendo concepções diferentes e assim se expressando de modo diferente. Conferindo coisas espirituais com espirituais (13). Dentro do âmbito desta sabedoria espiritual há oportunidade para comparações de uma parte com outra.

3. POR QUE TANTOS FALHAM EM COMPREENDER (2.14-3.4) – O homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus

(14). No “homem natural” não há o Espírito de Deus que o capacite a compreender.

O homem espiritual (15). Temos aí o contrário do “homem natural”. O contraste é entre o homem como ser inteligente (mas caído) e o homem como ser espiritual (regenerado pelo Espírito). Julga todas as coisas, mas ele mesmo não é julgado por ninguém (15). O regenerado

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 23 tendo em si o Espírito de Deus, tem capacidade de julgar todas as coisas sob uma verdadeira luz - a luz de verdade; mas ele próprio esta fora do alcance da compreensão do homem natural. Moffatt tem: “Ninguém pode ler o que ele é”.

A razão é que o homem natural não conhece a mente do Senhor (16), mas os crentes têm a mente de Cristo (16), porquanto Cristo neles habita pela fé (veja-se Cl 3.16).

1 Coríntios 3 O apóstolo põe de parte esse tema elevado e volta-se para os seus

leitores, os cristãos coríntios. Estes ainda não estão inteiramente entregues à operação do Espírito Santo.

São carnais, crianças em Cristo (3.1). Teve de alimentá-los com leite, e não com sólido (2) e continuam precisando deste gênero de alimento. Ainda sois carnais: porquanto, havendo entre vós ciúmes, etc. (3). A existência de lutas partidárias era índice de que o Espírito Santo não dominava inteiramente aquela igreja. A forma grega da palavra “carnal” difere ligeiramente no verso 1 e no verso 3. No verso 1 a palavra significa “carnal”, “feito de carne”; no verso 3 quer dizer “carnal no caráter”, “de mentalidade carnal”. Os recém-nascidos do Espírito ainda conservam seus desejos naturais por mais ou menos tempo. Isto não é censurável, porém, sim, permanecer mentalmente carnal, isto é, conservar o critério pelo qual o mundo julga as coisas. Proceder assim é andar segundo o homem (3).

E o mundo vai sempre atrás de vozes de partido - Eu sou de Paulo... Eu sou de Apolo (4).

Esta seção, em sua inteireza (1.18-3.4) ensina que o Espírito dá ao crente o poder de julgar todas as coisas. Todavia não implica que a religião cristã é uma forma de experiência ou de pensamento que se opõe às operações das faculdades naturais do homem, tais como a razão e o sentimento. Mais adiante, nos caps. 12 e 14, o apóstolo adverte seus leitores contra uma atitude anti-racionalista no que concerne a fatos

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 24 espirituais. Além do que, o ensino aqui, enquanto sustenta que a vida cristã é vivida no Espírito, não implica entretanto que é uma vida de misticismo, divorciada dos interesses humanos e ordinários. Paulo era possivelmente, dos apóstolos, o de mentalidade mais prática.

4. OS MINISTROS, EM SI, NADA SÃO (3.5-9) - O apóstolo

agora considera a segunda causa das divisões. Não apenas têm uma concepção errônea de sabedoria: do ministério também fazem um conceito errado.

Servos por meio de quem crestes (5). O ministro nada é em si, e de fato é erro perigoso ele agigantar-se no horizonte visual dos crentes, atraindo para si as atenções, porquanto ele é apenas aquilo que Deus o fez ser - conforme o Senhor concedeu a cada um (5). Eu plantei, Apolo regou; mas o crescimento veio de Deus (6). Os dois primeiros verbos, no grego, indicam ação completa no passado, enquanto o terceiro (veio) está no pretérito imperfeito, denotando ação continuada. A mudança do tempo do verbo é digna de nota.

São um (8). Paulo e Apolo não dissentem entre si; aliás, os ministérios deles para Deus, embora diferentes no caráter, são partes de um mesmo processo. Cada qual, porém, tem sua parte a realizar, e receberá o seu galardão (8).

Lavoura de Deus, edifício de Deus (9). São duas metáforas favoritas da doutrina cristã, e vale a pena ponderá-las. Deus é o Mestre-Jardineiro, o supremo Arquiteto.

Apolo, que é mencionado aqui, é também referido em At 18.24-28. Alexandrino culto, com algum conhecimento do Cristianismo, veio a Éfeso onde foi mais instruído por Áquila e Priscila, amigos íntimos de Paulo. Parece que ele almejava, de modo particular, ir a Corinto, de onde Paulo, Áquila e Priscila saíram havia pouco, sendo recomendado por carta aos irmãos dali. Logo começou a ensinar na sinagoga de Corinto que Jesus era o Messias. Devia ser um orador distinto, para que um partido, naquela igreja, tomasse o seu nome. Será que ele, sem o querer,

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 25 fez surgir ali o espírito de partido? Paulo não indica que Apolo se lhe opusesse - o que planta e o que rega são um - de modo que não podemos admitir esta idéia. No caso, a falta não estava nos ministros. A menção que o apóstolo faz aqui ao seu nome e ao de Apolo pode ser apenas para servirem de exemplo: o verso 4.6 possivelmente o indica.

5. OS MINISTROS SÃO RESPONSÁVEIS PELA NATUREZA

DA OBRA QUE EXECUTAM (3.10-17) - Segundo a graça que me foi dada (10). Embora a si mesmo chame de mestre-construtor (10), recebe de Deus instruções e força. A obra é de Deus, pensamento este que tanto acalma ansiedade excessiva da parte do ministro, como também o inspira lembrando-lhe a alta dignidade de seu ofício.

Lancei o fundamento... que é Jesus Cristo (10-11). Cf. Ef 2.20 n. O único fundamento do Cristianismo é Jesus Cristo. Nenhuma teoria ou sistema, de idéias, mesmo aquele que dê um lugar a Jesus Cristo, pode substituir esse fundamento.

Se alguém edificar... (12). Empregando a metáfora da construção, o apóstolo compara as obras dos ministros cristãos a ouro, prata... (12) Algumas obras são preciosas duráveis; outras não têm valor e não resistem à prova.

Será revelada pelo fogo (13). Ouro, prata e pedras preciosas podem passar ilesos pelo fogo; madeira, feno, palha são por ele consumidos. Assim, as obras de alguns ministros resistem; as de outros desaparecem. Note-se a mudança que Paulo faz da metáfora, passando de edifício para os materiais que ilustram durabilidade ou o inverso, quando submetidos ao fogo. O dia a demonstrará (13). Provavelmente o apóstolo queria dizer somente o dia da prova, não o dia de Juízo. Cf. Rm 14.10-12.

Receberá galardão... sofrerá dano (14-15). Quando estamos “em Cristo Jesus” (veja-se Rm 8.1), podemos executar trabalho para Deus, que Ele avaliará e recompensará conforme for de justiça; a natureza da recompensa não está revelada aqui.

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 26 Esse mesmo será salvo, todavia, como que através do fogo (15).

Paulo se empenha por fazer distinção entre o ministro e sua obra. Esta pode perder-se - como palha consumida no fogo; mas o ministro crente será salvo “todavia como que através do fogo”. Esta frase pode ser mero provérbio dos gregos significando “escapar por um triz”, sendo coincidência que a figura do fogo se empregue aí para descrever a prova da obra, e a mesma palavra se encontre nesta frase proverbial. O apóstolo considera digno de lástima o cristão que não tem obras para exibir, visto perder o gozo do serviço do Mestre.

Estes vv. 13-15, admite-se, soam estranho à primeira vista, e têm sido interpretados de outras maneiras que não a acima indicada. As idéias decisivas são apresentadas pelas palavras o dia (13) e salvos através do fogo (15). Trata-se do Dia do Juízo? Em caso afirmativo, “fogo” aí seria o juízo divino; e tal metáfora, com efeito, usa-se no Velho Testamento, e ainda por nosso Senhor ao referir-se à Geena. Perfilhando esta idéia, a Igreja Romana usa o verso 15 em apoio de sua doutrina acerca do Purgatório. Mas como acontece tantas vezes com hipotéticos apoios bíblicos que ela apresenta para suas doutrinas distintivas, a frase salvos pelo fogo está inteiramente deslocada do seu contexto. Este contexto é o Dia do Julgamento (se tal suposição for aceita), e não um estado intermediário entre a morte e o juízo. Não é possível a passagem em questão apresentar a doutrina de uma purificação dos crentes após a morte.

A explanação oferecida acima é muito simples, e baseia-se no ponto de vista de que “o dia” significa algo como sejam as ocasiões de prova que ocorrem cada dia; “fogo” emprega-se então aí em dois sentidos um como simples ilustração de algo que submete a um teste severíssimo, e o outro sentido deriva-se de um provérbio grego.

Em todo o Novo Testamento encontram-se exortações aos crentes para que se dêem às boas obras a começar com o ensino de nosso Senhor, assim quando disse, “Brilhe de tal modo a vossa luz diante dos homens que eles vejam vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai que

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 27 está no céu”. Outrossim, a concessão de recompensas a tais boas obras foi referida por nosso Senhor – “de modo algum perderá seu galardão” - e outras vezes mencionada nos escritos apostólicos. Conseqüentemente a passagem em lide enquadra-se perfeitamente no ensino geral do Novo Testamento; apenas sua fraseologia é peculiar.

Vós sois santuário de Deus (16). Em outro lugar o apóstolo diz que o crente é habitado pelo Espírito Santo - "vosso corpo é santuário do Espírito Santo” (1Cr 6.19), mas aqui ele o diz da Igreja de Corinto inteira.

Se alguém o destruir... Deus o destruirá (17). É o oposto do pensamento do verso 15, onde se diz que o obreiro cristão faltoso é salvo, embora sua obra seja destruída. Aqui, o que danificar o santuário de Deus será por Deus destruído. Podemos comparar este pensamento com a doutrina de nosso Senhor acerca dos tropeços posto diante de um crente (veja-se Mt 18.6).

6. AVISO CONTRA A JACTÂNCIA E O JUÍZO (3.18-4.5) - Se

alguém se tem por sábio (18). Este verso é um bom exemplo do modo franco de Paulo falar. Podia dirigir-se aos que se vangloriavam da educação que tinham, porque ele próprio tivera uma “educação universitária”. Conhecia de experiência a vaidade da especulação humana concernente ao sentido real da vida e do universo. Faça-se estulto (18). Seu conselho é que se ponha de lado, decididamente, tal sabedoria humana.

Porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus (19). Parte da penalidade da queda é a corrupção de toda atividade humana - tudo quanto o homem faz «antes da graça de Cristo» (veja-se o Artigo nº XIII dos Artigos de Religião da Igreja Episcopal) está manchado de pecado. Seguem-se duas citações; a primeira é citação livre de Jó 5.13 - a única citação direta desse livro no Novo Testamento - e a segunda (verso 20) é do Sl 94.11.

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 28 Ninguém se glorie nos homens (21). Como o verso seguinte

mostra, Paulo ainda tem no pensamento as lutas partidárias referidas em 1.12 e 3.4. Cada grupo arrogava-se claramente o monopólio da verdade e da sabedoria, vangloriando-se no líder particular de sua preferência. Estes grandes líderes, porém, são realmente servos, e cada um deles pertence à igreja toda. Permitindo que tais grupos sectários ergam o colo no meio deles, os cristãos coríntios mostram não perceber a extensão do que possuem em Cristo. Têm um Mestre em quem se gloriar, Cristo Jesus ao qual pertencem. O próprio Jesus pertence a Deus. (Quanto a esta última frase e Cristo de Deus, veja-se nota sobre o cap. 15.24-28). A advertência contra o “culto dos heróis” deve ser observada com cuidado. A glorificação do homem é a raiz de muito sectarismo que há.

1 Coríntios 4 Ministros... e despenseiros (4.1). O pensamento do apóstolo

passa de um aspecto do caso para outro. Depois de dizer que os ministros em si nada são, e que é tolice alguém se proclamar adepto de um mestre humano, passa a considerar que ele e Apolo são ministros de Cristo - o nome de Jesus dá-lhes uma posição que não deve ser subestimada. Emprega a metáfora da mordomia. O mordomo (ou despenseiro), tendo irrestrito acesso aos haveres de seu patrão, precisa ser honesto tanto quanto leal ao mesmo patrão (1).

A única pessoa cuja apreciação o mordomo valoriza (ou teme) é o seu senhor - a mim mui pouco se me dá de ser julgado por vós.... pois quem me julga é o Senhor (3-4). O mordomo nem sequer pode confiar no juízo que faz de si mesmo; pode não estar cônscio de suas próprias falhas (4).

O conselho do apóstolo, portanto, aos cristãos é no sentido de desistirem de emitir juízo uns sobre os outros, deixando o exercício desse julgamento para Cristo, quando vier, e então cada um receberá o seu louvor da parte de Deus (5). É parte significativa do evangelho apresentado por Paulo o fato de o Senhor vir para julgar. Uma cláusula

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 29 do Credo Niceno conserva-nos de sobreaviso com relação a esta verdade - “Creio... que Ele virá em glória, para julgar os vivos e os mortos”.

Deste modo o apóstolo enfatiza seu ensino concernente aos ministros cristãos. Todo o seu conceito repousa em Cristo, de quem eles são ministros. Todos os crentes pertencem a Cristo; os ministros foram instrumentos por meio dos quais creram (3.5).

7. O EXEMPLO DOS APÓSTOLOS (4.6-13) - Apliquei a mim e

a Apolo (6). Desde a primeira referência às várias divisões em 1.12, Paulo omitiu qualquer alusão a líderes, exceto ele mesmo e Apolo. De 16.12 podemos inferir que o assunto fora discutido com Apolo, e este, sem dúvida, concordou com a decisão de Paulo de usar os dois como ilustração de fragilidade humana, a fim de mostrar aos coríntios que não deviam ultrapassar o que estava escrito (6). Aí provavelmente se refere às Escrituras e significa que a opinião que fazemos do homem deve ser bíblica. Podíamos ainda entender daí que “na apreciação que fazemos dos homens não devemos ir além do que se acha escrito (isto é, manifesto) no caráter deles”. Exaltando um (digamos Paulo) em detrimento de outro (como Apolo) incentivavam o orgulho deles, coríntios. A tolice de tal orgulho é evidenciada nos versos seguintes.

Que tens tu que não tenhas recebido? (7). Este pensamento corta pela raiz toda vanglória.

Já estais fartos.... (8). Paulo fala ironicamente. Tal vanglória de si mesmos como crentes não é compatível com a verdadeira espiritualidade. Oxalá reinásseis (8). E uma súplica fervorosa pelo advento do reino de Deus, que torna ainda mais vívida a descrição que adiante faz dos seus sofrimentos presentes.

Espetáculo (9); é referência às disputas dos gladiadores na arena. Ele figura o mundo inteiro e até os anjos como espectadores, ao passo que os apóstolos, um grupinho fraco, são por fim introduzidos em cena para combaterem até à morte. Com certa ironia ele contrasta ainda mais

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 30 as pretensões dos coríntios com a experiência atual dos apóstolos, que são desprezados e tratados como escravos.

E nos afadigamos, trabalhando com as nossas próprias mãos (12). Veja-se At 18.2-3 e cf. 1Ts 2.9 e 2Ts 3.8. Cf. também 1Cr 9.18. (12). O apóstolo põe em prática o ensinamento de nosso Senhor no Sermão do Monte. Veja-se Mt 5.44. A atitude dos coríntios, na aparência, era muito diferente. Veja-se 6.7. Os termos lixo e escória, no verso 13, trazem a idéia de sacrifício. Tamanha degradação Paulo pode querer dizer que é em favor dos outros. Toda esta passagem revela a profunda simpatia do apóstolo e seu grande interesse pelos cristãos coríntios.

c) Último apelo para pôr fim às divisões (4.14-21) Escrevo para vos admoestar como a filhos meus amados (14).

Isto mostra verdadeira simpatia de Paulo pelos coríntios. Eu pelo evangelho vos gerei em Cristo Jesus (15). Aqui ele

reclama explicitamente para si ter sido o primeiro a pregar o evangelho em Corinto. Provavelmente o mesmo aconteceu com a Grécia de modo geral. Veja-se At 16.6-11; 18.1-18.

Pode, portanto, exigir deles justificadamente atenção e lealdade - que sejais meus imitadores (16). Com efeito enviou-lhes Timóteo para lhes lembrar o que dele haviam aprendido, o que evidentemente vieram a esquecer (17).

Ensoberbeceram-se (18). Esta palavra aliás é distintiva desta epístola, onde ocorre seis vezes (4.6,18-19; 5.2; 8.1; 13.4). Indica uma atitude de superioridade sobre os outros, verdadeira antítese do espírito cristão.

Não a palavra, mas o poder (19). A atitude do apóstolo para com esses tais é desafiadora. Que sejam provados e vejamos se a força de agir é tão grande como a jactância deles quer sugerir.

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 31 O reino de Deus consiste não em palavra mas em poder (20). O

que revela que somos membros desse reino é o poder de Deus em nossa vida, e não mera profissão de lábios.

Irei a vós outros com vara (21). O apóstolo assume atitude autoritária dispondo-se a aplicar medidas disciplinares contra eles, caso seja necessário. Esta deliberação, no entanto, procede não do desejo de dominá-los, mas de real ansiedade pelo bem estar espiritual deles, como se vê das palavras seguintes, ou com amor e espírito de mansidão (21). A eles cabia escolher.

III. DELITOS MORAIS NA VIDA DA IGREJA - 5.1-6.20 1 Coríntios 5 a) Frouxidão no caso de incesto (5.1-13) O apóstolo passa de súbito a comentar a frouxidão moral dos

cristãos coríntios. Primeiro é o caso notório do crente que tomou a mulher de seu próprio pai. Podemos supor que o pai já houvesse morrido; contudo, esse ato era contrário às leis matrimoniais do Velho Testamento, as quais ainda obrigavam a Igreja. Além disso era um ato que nem os gentios toleravam (veja-se o verso 1). Mas o que mais admirava era a igreja ali aceitar a situação sem discuti-la!

Andais ensoberbecidos e não chegastes a lamentar (2). Eu... já sentenciei (3), diz ele. Este é um dos casos em cuja

condenação ninguém deve hesitar; não é possível haver circunstâncias que o atenuem.

Com palavras muito solenes o apóstolo instrui a igreja como deve proceder - Em nome do Senhor Jesus... seja ele entregue a Satanás para a destruição da carne (4-5). A igreja devia convocar uma assembléia solene e, cônscia do poder do Senhor Jesus Cristo (note-se o título completo) no seu meio, entregasse a Satanás o irmão escandaloso. Paulo mesmo estaria com eles, e o meu espírito (4). Pode significar que empregaria o tempo em fervente oração por eles.

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 32 Seja entregue a Satanás (5). O Novo Testamento ensina que

Satanás é o “príncipe deste mundo” (veja-se Jo 12.31). Contudo tem poder apenas sobre a “carne” (Jó 2.5-6; Lc 13.16; 2Co 12.7). Em 1Tm 1.20 lemos: “Himeneu e Alexandre, os quais entreguei a Satanás para que aprendam a não blasfemar”. Estas passagens mostram que Satanás tem permissão de Deus para infligir sofrimento físico aos homens, o que pode resultar no arrependimento deles.

Devemos admitir que hesitaríamos muito, hoje em dia, em fazer precisamente o que o apóstolo mandou que os coríntios fizessem. Podíamos desculpar-nos lembrando que a Igreja dos tempos apostólicos tinha de agir de modo especial em determinadas circunstâncias, a fim de, inequivocamente, estabelecer a autoridade do Senhor ressuscitado. Demais disto, a Igreja apostólica era uma corporação pequena, relativamente, e por conseqüência sua vida era muito mais intensa em assuntos espirituais (ou era capaz de o ser, sob a direção apostólica).

Mas, embora hoje possamos achar difícil pensar nos termos precisos aqui usados pelo apóstolo, não há razão para não tomarmos a sério e pormos em prática o conselho que ele dá, a saber, excluir da congregação os que são malfeitores notórios. Olhando o verso 11 adiante, vemos ali uma lista de pecados que devem ser tratados desse modo. Qualquer membro da igreja que peque dessa forma deve ser francamente condenado em face da congregação, fazendo-se ver a ele que Satanás o tem preso em tais práticas, afastando-se do seu convívio os outros crentes, na esperança de que venha a descobrir a gravidade de sua situação e se arrepender, de modo que seu espírito se salve no dia do Senhor Jesus (5).

Fermento (6). Aqui o termo é empregado como símbolo da natureza humana corruptível. Se um elemento de corrupção for tolerado na igreja, toda ela se corromperá.

Lançai fora o velho fermento (7). O uso que faz dessa palavra lembra-lhe a cerimônia da páscoa, na religião do Velho Testamento, e

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 33 pelo Espírito é levado a ver na mesma uma ilustração da dispensação cristã. Cristo é nossa páscoa (7) e foi imolado por nós (7).

Por isso celebremos a festa... com sinceridade e verdade (8). Os israelitas na antiguidade ficaram de sobreaviso e se prepararam, espiritual e moralmente, para a observância da páscoa. Assim também devem estar os cristãos, em todo o tempo da presente era da páscoa de Cristo.

Acrescenta o apóstolo, no verso 9, que já lhes aconselhara, numa epístola anterior, a não se associarem com os impuros. Esclarece agora o que quis significar: não deviam admitir pessoas impuras como membros na igreja. Reconhece que os crentes, em suas relações com o mundo, não podem evitar o contacto dos impuros, avarentos ou roubadores (10).

Mas, se alguém que se diz irmão for impuro, com esse tal nem ainda comais (11). Esta referência a uma carta anterior é muito interessante. Ao que saibamos, nada ficou dessa carta, que chegasse ao nosso conhecimento, a não ser (como alguns pensam) que 2Co 6.14-7.1 seja parte da mesma.

O apóstolo termina sublinhando outra vez a necessidade que a Igreja tem de manter disciplina para os seus membros - os de fora Deus os Julgará (13). E assim, insiste com os coríntios que expulsem do seu meio o malfeitor (13).

1 Coríntios 6 b) Questões levadas a juízes pagãos (6.1-11) Esta passagem ensina que se os crentes têm pendências uns com

os outros, devem levá-las ao conhecimento de outros crentes, para serem por estes julgadas e não levá-las aos juízes pagãos (1). Mas a só existência de tais animosidades entre irmãos é índice de falta de compreensão espiritual. Os crentes que forem injuriados devem sofrer isso, e não procurar desforra (7). Cf. 4.12-13 onde, sem dúvida, ele teve esta situação em mente.

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 34 Os santos hão de julgar o mundo (2). Havemos de julgar os

próprios anjos (3). Tais afirmações surpreendentes não são invencionices de Paulo. Nosso Senhor ensina no Evangelho de Mateus que os apóstolos se sentarão “em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel” (Mt 19.28). Veja-se ainda Ap 20.4, “Vi também tronos e nestes sentaram-se aqueles aos quais foi dada autoridade de julgar”. Esse julgamento a cargo dos santos será também exercido nos anjos, ou seres espirituais. A crença nos anjos está, naturalmente, presente em toda a Escritura e tem sido mantida pelos cristãos através dos séculos. Hb 1 e 2 trata da função e posição deles.

Constituís um tribunal daqueles que não têm nenhuma aceitação na Igreja! (4). Estas palavras têm sido interpretadas de vários modos. Podiam ser irônicas. E podiam significar que mesmo os crentes menos aceitos são mais dignos de julgar do que os pagãos. Podiam referir-se aos pagãos, “que nenhuma aceitação” tinham na igreja. Este escritor aceita a primeira hipótese, porque o apóstolo prossegue orientando os coríntios na escolha de pessoas sensatas (5) entre eles para exercerem juízo. Pareceria, a julgar pelo procedimento estulto desses coríntios, que tais homens eram com efeito de nenhuma aceitação entre eles.

O apóstolo prossegue avisando-os que, se continuam nos pecados que os caracterizavam antes de se converterem, não herdarão e reino de Deus (9-10). Os pecados enumerados aqui indicam o baixo padrão moral da vida em Corinto, antes da chegada do evangelho.

Mas vós vos lavastes... fostes santificados.... justificados (11). O evangelho, porém, ergueu os que o aceitaram para uma nova posição diante de Deus. Entretanto os velhos pecados apegavam-se firmemente neles e alguns não se haviam ainda aproveitado do poder do Espírito Santo que opera na vida dos crentes, para lançarem fora tais pecados. Pode haver aqui uma referência ao rito do batismo (cf. At 22.16). Santificação e justificação são aspectos da regeneração.

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 35 c) O pecado da sensualidade (6.12-20) O verso 12 contém toda a filosofia a atitude cristã para com as

coisas terrenas. (Usamos a palavra “terrenas” em lugar de «mundanas». A primeira significa o que por natureza pertence a esta vida aqui na terra; a segunda significa civilização humana desenvolvida pelo homem sem referência a Deus). Todas as coisas são lícitas, diz o apóstolo, mas nem todas convêm, ou não são proveitosas; e mais, embora lícitas, ele tem cuidado para não se deixar dominar por elas. Pode, portanto, não convir, às vezes, participar de algumas dessas coisas terrenas; e em tempo algum a condescendência com elas deve levar à escravização.

Ora, é claro que os folguedos e a impureza se associavam intimamente à idolatria; os que usavam sua liberdade com relação a uma dessas coisas podiam reclamar igual liberdade a respeito de outra. Paulo então mostra que o princípio de liberdade, apresentado no verso 12, não se aplica a coisas definidamente ruins em si mesmas. Com relação ao alimento, este e o corpo foram feitos um para o outro, e ambos eventualmente perecerão ou “serão reduzidos a nada” (gr. lit.). Comer ou não comer é, pois, matéria neutra. A impureza, entretanto, pertence a um gênero de todo diferente.

O corpo não foi feito para ela, mas para o Senhor (13), como se prova pelo fato de Deus nos levantar na ressurreição (14).

Os corpos dos crentes são de fato membros de Cristo (15), por uma união espiritual com Ele (17), pelo que devem ser instrumentos para o Seu uso. Como pode um crente condescender na entrega do seu corpo a uma meretriz? Porque a impureza é nada menos que isso (16). Fugi, pois, da impureza, diz o apóstolo (18). Todo outro pecado é fora do corpo, mas este o atinge, cumprindo ter cuidado especial para evitá-lo. Em outras palavras, o crente é habitação do Espírito Santo e no sentido mais profundo não se pertence a si mesmo (19). Um resgate de alto preço foi pago por ele; deve pois glorificar a Deus por isso, fazendo-se, no corpo e no espírito, instrumento de Deus (20). Note-se como o

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 36 apóstolo repete a frase não sabeis? (15-16,19), lembrando-lhes assim o orgulho que tinham da plenitude do seu conhecimento e sabedoria cristã.

Esta passagem proporciona-nos a doutrina cristã a respeito do corpo e prepara-nos para a crença na sua ressurreição, que nos é apresentada cabalmente no cap. 15. Também esboça o princípio de liberdade cristã, assunto que volta a ser tratado no cap. 8 (veja-se). O fato básico, que governa o exercício da liberdade cristã, é que o crente foi remido pelo precioso sangue de Cristo, e assim Lhe pertence. Sua dedicação a Cristo é mais profunda do que anteriormente ao «mundo», ao qual pertenceu antes de ser resgatado.

IV. RESPOSTAS A PERGUNTAS - 7.1-14.31 1 Coríntios 7 a) Casamento (7.1-40) 1. A OPINIÃO PARTICULAR DO APÓSTOLO SOBRE O

CASAMENTO (7.1-9) - Passa o apóstolo a responder perguntas formuladas pela igreja dos coríntios. A primeira delas diz respeito ao casamento e aos deveres recíprocos de marido e mulher.

Afirma claramente ser bom o homem não tocar mulher (1). Para ele, o companheirismo que em Cristo tinha com os demais crentes satisfazia plenamente a necessidade humana de companhia, a que o casamento normalmente supre. Com efeito, ficava mais do que satisfeita, porque para o apóstolo o companheirismo cristão ou espiritual era até mesmo mais profundo do que o casamento.

Contudo, reconhece que “por causa da tentação para a imoralidade” (2) existente numa cidade pagã como Corinto, havia fortes razões pelas quais seus sentimentos pessoais nessa questão deviam ser desatendidos. Paulo, aqui, não faz um conceito menos digno do matrimônio. Está escrevendo na contextura de um estado de coisas existente. O que ele diz deve ser interpretado dentro dessa contextura.

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 37 Passa a dar conselho concernente ao estado matrimonial. Um homem e uma mulher ligados pelo casamento têm o dever de atentar para as necessidades um do outro. Um falso ascetismo pode realmente dar oportunidade a Satanás de levar um ou outro ao pecado.

Isto vos digo como concessão (6). Na ARC se lê “por permissão”. Não quer ele dizer que tem permissão, porém não mandamento, do Espírito para dizer isto; senão que sua sugestão, para que os homens e as mulheres se casem, não deve ser vista como ordem, e sim apenas como permissão. Seu verdadeiro desejo é declarado no verso 7. Contudo aqui novamente ele observa que os homens e as mulheres têm capacidades e dons variados, de modo que ele seria o último a julgar um irmão ou a insinuar, por pouco que fosse, sua própria superioridade.

É melhor casar do que viver abrasado (9). O apóstolo declara aqui graus de moralidade cristã - é melhor casar, porém o melhor é ficar solteiro, de modo a pessoa poder dedicar-se inteiramente a Cristo. Daí teólogos católicos terem elaborado a teoria do “padrão duplo”, isto é, um padrão para os cristãos comuns, e outro para os “experimentados”. O sistema monástico nasce desta concepção. O ponto de vista evangélico de Cristianismo prefere não fazer tal distinção, porque ela conduz inevitavelmente à crença de que os “religiosos” adquirem méritos, o que é contrário ao princípio básico da redenção, como compreendido pelos evangélicos. Embora não se negue que o sistema monástico tem levado alguns dos seus membros a um grau elevado de santidade e à realização de obras admiráveis por Cristo, a opinião evangélica é que, apuradas as contas, o sistema resvala para o lado oposto. O fato de a Igreja Romana ensinar abertamente haver méritos no monasticismo parece justificar a opinião evangélica sobre esta matéria. Embora não tenhamos que hesitar em dizer com Paulo que certo modo de agir é superior espiritualmente a outro, devemos evitar a sistematização e a formação de institutos de gente “superior”. A discussão destes assuntos constitui o escopo da teologia moral e ascética.

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 38 2. MANDAMENTO DIVINO CONTRA O DIVÓRCIO (7.10-11)

- O apóstolo declara, em termos categóricos, que o voto do matrimônio vigora por toda a vida. E tem o cuidado de lembrar aos coríntios o ensino de Cristo sobre esta questão. A mulher não se separe do marido (se, porém, ela vier a separar-se, que não se case)... o marido não se aparte de sua mulher (pensando em casar com outra). O apóstolo interpreta o ensino de nosso Senhor, portanto, como permitindo a separação, porém não o divórcio.

3. ACERCA DE CÔNJUGES INCRÉDULOS (7.12-16) - Digo

eu, não o Senhor (12). Paulo agora passa a tratar de um problema que não fora objeto de nenhum mandamento específico de nosso Senhor. Que fazer quando um cônjuge é crente e o outro ainda é pagão? Devia haver muitos casos desses em Corinto, como ocorrem hoje constantemente no campo missionário. Aconselha os cristãos a não se separarem do cônjuge incrédulo, a não ser que este voluntariamente vá embora (12,13,15). Tal conselho nos impressiona de pronto, por sua caridade e espírito cristão.

O apóstolo tece outros comentários: O marido incrédulo é santificado no convívio da esposa, e a esposa incrédula é santificada no convívio do marido crente. Doutra sorte os vossos filhos seriam impuros; porém, agora, são santos (14).

Os comentadores não são acordes sobre o sentido destas palavras. Quererão dizer que o incrédulo ou a incrédula em razão de sua união conjugal com uma crente ou um crente, participa com o cônjuge fiel de uma posição de santidade diante de Deus e, além disso, que os filhos nascidos de tal união (e a fortiori, da união de dois crentes) são de algum modo santos (i. e., isentos da mancha do pecado original)? Significarão que, por serem santificadas as relações com o cônjuge inconverso, no mundo subjetivo do pensamento e vida do crente, nada há de mal em manter tais casamentos já existentes, aos quais se refere? Se as relações, dessa forma, não fossem santificadas, então os filhos, por

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 39 igual, seriam uma ofensa a Deus (impuros), porém agora são santos, isto é, não há mal que lhes pegue por serem filhos de tal casamento «misto». Ou, ainda, significarão simplesmente que, por ser Cristo mais forte que Satanás, o cônjuge fiel exercerá uma influência dominadora no lar, introduzindo, neste, dose elevada de santidade, de modo que, de fato, os filhos que aí se criem são santos? Este escritor subscreve esta terceira alternativa, visto a mesma estimular os cônjuges crentes à evangelização dos seus familiares.

Se, no entanto, o cônjuge infiel deliberar se apartar, que se aparte (15), diz o apóstolo. O vínculo matrimonial não exige do crente um esforço por conservar essas relações sob tais circunstâncias. Não há certeza de resultar daí a salvação do marido ou da esposa descrente (16). Conclui reconhecendo que se deve decidir cada caso individual à luz dos dons e da vocação recebida de Deus, de sorte que essa decisão seja tomada, por fim, entre o indivíduo e seu Senhor (17). Vejam-se os versículos 7,20 e 24 onde o mesmo pensamento aparece.

4. É NECESSÁRIO PERMANECER NO ESTADO EM QUE

FOMOS CHAMADOS (7.17-24) - Paulo ensina: cada indivíduo tem seu próprio dom ou posição na sociedade que a divina providência lhe concedeu. Deve procurar viver para a glória de Deus no lugar em que o Senhor o colocou, e não procurar ou esperar grande mudança porque se tornou cristão. E vêm como exemplos: circuncisão ou incircuncisão (18); servo (escravo) ou livre (20).

A atitude cristã é permanecer a pessoa no seu estado particular, no que concerne à aparência exterior, porém permanecer nele diante de Deus (24). Isto é o que faz toda a diferença, relativamente ao sentido que o “estado” tem para a pessoa em causa. A circuncisão, por exemplo, nada é em si, nem a incircuncisão é impedimento algum. O essencial é observar os mandamentos como apresentados por Cristo (19). Outrossim, aquele que ao ser chamado era escravo, não se preocupe com isto; embora que, se lhe oferecerem liberdade, deve aproveitar-se da

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 40 oportunidade. Esta questão de posição social não é o que importa. Porque o escravo cristão é espiritualmente livre em Cristo, e o livre faz-se voluntariamente servo de Cristo quando se torna crente.

Por preço fostes comprados; não vos torneis escravos de homens (23). As primeiras palavras são um eco de 6.20. Uma vez que pertencem a Cristo, os crentes não mais seguem servilmente o juízo humano em assuntos que tais. O espírito cristão transcende os empecilhos terrenos, ciente de que as circunstâncias da vida estão todas sob a direção de Deus.

3. UM PROBLEMA ESPECIAL: O CASAMENTO DE VIRGENS

(7.25-40) - Existe alguma dificuldade em descobrir se Paulo se dirige aqui a pessoas casadas que se abstiveram da consumação física do casamento, ou se responde à pergunta “Devem os pais cristãos dar as filhas em casamento?” o que parece ser o sentido.

Vejam-se especialmente os vv. 36-38. Se a passagem for interpretada do primeiro modo a resposta é a seguinte: o homem que acha ser mais prudente casar tem toda a liberdade de fazê-lo. Se, entretanto, pode permanecer firme no seu propósito - e sua consorte também então faz melhor (38) Este escritor, no entanto, vê na passagem a resposta à pergunta atinente à responsabilidade dos pais na questão do casamento de suas filhas. Respondendo, Paulo aproveita a oportunidade de lembrar e repetir o que disse antes sobre o casamento em geral e acerca da necessidade de se glorificar a Deus naquela condição de vida em que Ele nos encontrou.

Estás casado? não procures separar-te. Estás livre de mulher? não procures casamento (27). Este princípio aplica-se às mulheres tanto quanto aos homens, e nos versos seguintes é desenvolvido em sua dupla aplicação. O celibato deve ser preferido, contudo o apóstolo percebe perfeitamente que todos não receberam esse dom. Se todas as circunstâncias sugerirem que a uma filha se deve dar consentimento para

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 41 casar, que se case. Todavia as que forem capazes de ficar solteiras, farão melhor (36-38).

O ensino da passagem, no seu todo, é bastante claro. Desestimula para o casamento, no interesse de maior serviço cristão. O apóstolo que, naturalmente, estava bem informado sobre como marido e mulher podiam colaborar, cada qual adornando o serviço do outro, torna claro que está exprimindo sua opinião pessoal - dou minha opinião (25) - tendo o cuidado de não ser dogmático ou de estabelecer regras fixas e rígidas.

O tempo se abrevia (29), isto se refere provavelmente à esperança da volta de nosso Senhor e certamente encerra a idéia de que a oportunidade de servi-lo cedo passará.

Os vv. 30 e 31 desenvolvem o pensamento de que aqueles que servem ao Reino devem se desvencilhar de cuidados e ambições mundanas. Choramos por causa de perdas ou contrariedades. Alegramo-nos porque de alguma forma alcançamos êxito. Compramos e acumulamos conforto e riqueza para nós mesmos. De todas estas maneiras demonstramos que nossas afeições estão postas em coisas da terra. A ordem de Paulo, aqui, é exatamente a mesma que foi dada aos cristãos de Colossos: “Pensai nas coisas lá do alto” (Cl 3.2). Os valores e qualidades espirituais é o que de fato perdura. A aparência deste mundo passa (31), todas aquelas coisas exteriores em que tanto nos interessamos.

Este não é tempo de cuidar das coisas do mundo (33-34) e de dar primazia à mulher ou ao marido, como fazem as pessoas casadas. Trabalho pioneiro muitas vezes demanda sacrifícios especiais, havendo ainda tarefas, no campo missionário da atualidade, que só podem ser executadas por pessoas livres de laços ou responsabilidades de família.

A seção conclui respondendo outra pergunta a respeito de novo casamento das viúvas. Enquanto o marido vive, a mulher está ligada a ele. É esta a posição legal, e presumivelmente se estende ao caso da separação sugerida no verso 15. Mas, se o marido morre, a mulher fica

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 42 livre para casar de novo. Contudo, mesmo assim, não se deve precipitar. Seu novo casamento deve ser feito no Senhor (39). E no entender de Paulo, não somente será ela mais feliz evitando novo consórcio, porém ele dá este conselho como quem está convencido de que isto é o que o Espírito Santo quer que ele ensine.

b) Carnes sacrificadas aos ídolos (8.1-11.1) 1 Coríntios 8 1. O PRINCÍPIO ENUNCIADO (8.1-13) - Neste capítulo o

apóstolo trata de um problema nascido das circunstâncias dos tempos em que os coríntios viviam, a respeito do qual lhe fizeram indagações por carta. Os alimentos vendidos publicamente no mercado podiam ter-se relacionado antes com o culto dos ídolos. Era direito os cristãos se servirem de tais alimentos? Paulo aproveita a ocasião para enunciar um princípio, a saber: embora a vida se derive de Deus, restrições que se lhe imponham podem ser necessárias ao crente, com o fito de se evitar escândalo para um irmão mais fraco, isto é, evitar que ele tropece.

O saber ensoberbece, mas o amor edifica (1). Estudantes de filosofia estarão familiarizados com várias teorias sobre o saber. O apóstolo, como universitário que fora, estava a par de tais teorias correntes no seu tempo. Mas nos primeiros três versos deste capítulo indica que a fé em Deus entra como fator de nosso modo de pensar, o qual determina toda a nossa atitude para com a vida. O mero saber enche de soberba, mas genuíno amor pelos outros leva a pessoa a procurar a edificação deles. Sem este amor, o saber é um fator anti-social.

Demais disto, deve-se ter o cuidado de reconhecer que ninguém pode saber tudo com perfeição (verso 2), porque todas as coisas têm sua última essência em Deus, e o finito não pode abarcar o infinito. Todavia, embora não possamos conhecer a Deus perfeitamente, podemos amá-lo. Donde se segue a certeza de que Ele nos conhece, com tudo quanto este conhecimento implica (3).

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 43 O ídolo nada é (4). Feita a advertência o apóstolo volta ao ponto

referido no verso 1. Têm razão em ensinar que todos os ídolos e, com efeito, todos os chamados deuses e senhores, nada são (4).

Há um só Deus (6). Este verso é qual uma declaração formal de fé, e muitas vezes se usa como exemplo de credo da igreja primitiva. Contudo, é dificilmente um credo, como hoje entendemos o termo, isto é, uma declaração formal de fé, expendida autorizadamente pela Igreja. Com o fim de enfrentar este problema particular e sob a inspiração do Espírito Santo, Paulo resume com estas palavras, para os seus leitores, a unicidade do Pai do Filho. De quem... pelo qual (6). Ele distingue a relação do Pai e a do Filho para com a criação. O Pai é a origem de tudo; o Filho dá sentido a todas as coisas. Nesta conexão, veja-se Cl 1.16-17.

Não há esse conhecimento em todos (7). Os que não têm esse conhecimento sobre a unicidade de Deus reagirão de modo diferente diante de um ídolo. Uma vez que acreditam neste, suas consciências ficarão turbadas e com razão, se eles usarem alimentos que lhe foram oferecidos.

Toda esta passagem se dirige aos que se regozijavam em estar emancipados dessa escravidão.

Com o fim de demonstrarem sua liberdade (9), provavelmente se sentiam seguros para se afastar da norma e servir-se dessa carne, julgando que esse testemunho os recomendava a Deus. Paulo opõe-se a esta idéia: a participação ou a abstenção não fará melhores ou piores aqueles que estão livres de superstição (8). Contudo, sua liberdade pode vir a ser um tropeço para os fracos (9). Uma advertência entretanto devia ser feita. Irmãos ainda não bem firmes na fé podem ver um companheiro cristão sentado a comer no templo dos ídolos e se persuadirem, contra sua própria consciência, a participar também dessas coisas oferecidas aos ídolos (10). Para eles isto equivaleria a participar do culto idolátrico. Deste modo sua vida e seu testemunho cristãos se arruinariam (11).

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 44 Fazer um crente manchar sua consciência desta forma é pecar

contra Cristo que por ele morreu (11-12). Por isso é que se a comida serve de escândalo a meu irmão, nunca mais comerei carne (13).

O ponto levantado neste capítulo, embora se refira à situação particular em Corinto, é de interesse permanente para os crentes. Lança luz, por exemplo, sobre a questão do jejum. O apóstolo podia ensinar claramente que o simples jejum, desacompanhado de uma disposição espiritual para com Deus, é inútil. Ele próprio jejuara muito - «em jejum muitas vezes» (2Co 11.27) - mas fora por necessidade, no curso de seu trabalho para o Reino. Também se aplica esse princípio com referência, por exemplo, a prazeres ou entretenimentos - que para nós são inocentes, mas que podem escandalizar os crentes “novos”. Se com o nosso comportamento descuidado ofendemos a consciência deles, pecamos contra Cristo (12). É sério pensar nisto.

1 Coríntios 9 2. LIBERDADE DISCIPLINADA (9.1-27) - Este capítulo deve

ser considerado como parte da seção maior agora em estudo (8.1-11.1), em que o apóstolo trata de uma pergunta que lhe foi feita pelos coríntios.

A pergunta, à primeira vista parecia simplesmente dizer respeito ao consumo de carnes oferecidas aos ídolos. Mas somos como que compelidos a inferir que os coríntios, fazendo a pergunta, teceram alguns comentários inamistosos com relação a Paulo e seu modo de vida quando estivera entre eles. O apóstolo não hesita em falar muito claro, quando enfrenta essa tendência de amesquinharem o seu apostolado de porem em dúvida sua atitude em aceitar recompensa material pela pregação do evangelho, e de lançarem dúvida, talvez, sobre o êxito de sua pregação.

Em resposta, ele reivindica vigorosamente seu caráter de apóstolo e sua liberdade pessoal, liberdade de viver como os outros apóstolos. Ele também vira ao Senhor, e ele mesmo levara o evangelho a Corinto (1), de modo que o fato de serem cristãos era uma prova do seu apostolado

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 45 (2). Quanto ele sentiu a agudeza da crítica vê-se pela presteza de sua réplica, com que se defende nos vv. 4-6.

A seguir enuncia o princípio: os que pregam o evangelho vivam do evangelho (14). Os que seguem a carreira militar, ou os que se dedicam à agricultura ou pecuária, todos recebem salário (7), e com justiça (8). Até ao boi permitia a lei que comesse, em paga do seu trabalho, sendo isto um sinal ao fazendeiro de que a esperança de colher, que o estimula a semear, não será frustrada (9-10). Paulo então aplica este último pensamento ao seu trabalho como pregoeiro do evangelho. Semeia-se semente espiritual, porém isto não quer dizer que não há para o caso uma recompensa material (11). No serviço do templo, em Jerusalém, os sacerdotes eram sustentados pelas ofertas e sacrifícios que para ali se levavam (13). É pois perfeitamente claro que o trabalhador da seara de Deus é digno do seu salário.

Foi assim que Cristo ordenou (14), quando enviou os setenta (veja-se Lc 10.7). Parecia que o apóstolo não se aproveitara destes privilégios no passado, e nem pretendia aproveitá-los no futuro (12 e 15). Não fora porque tivesse dúvidas sobre o seu apostolado, mas para poder continuar proclamando de graça o evangelho (18) a todos quantos o quisessem ouvir. Era nisto que ele se gloriava, não na pregação em si. Pois havia uma urgência divina que o incitava a proclamar a mensagem de Deus.

Ai de mim se não pregar o evangelho! (16). Num sentido ele não tem que escolher, porque, disse, «a responsabilidade de despenseiro está-me confiada» (17). Mas, uma vez que também executa a tarefa voluntariamente (e um sinal disto é sua recusa de aceitar pagamento), tem o grande galardão de ver o evangelho proclamado sem estorvo, no tocante a dinheiro.

O apóstolo revela-nos alguns métodos de trabalho do seu ministério. Já vimos que ele propunha de graça o evangelho (18); também se fazia escravo de todos (19); aproximava-se dos grupos respeitando a posição de cada um - os judeus, sob a lei, e os sem lei, os

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 46 fracos (20-22); fez-se tudo para com todos (22). Quando fala dos que não têm lei, descreve sua própria posição como - não estando sem lei para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo (21). Vale a pena lembrar esta frase como conceito que contrabalança a liberdade propriamente cristã.

Finalmente, ele compara a obra do ministério cristão a uma corrida, de que todos participam, mas somente um leva o prêmio (24).

Para alcançarmos êxito, é preciso que sejamos moderados em tudo (25), decididos a agir, não como desferindo golpes no ar (26).

E diz: reduzo meu corpo à escravidão (27); não deixa que ele desempenhe nenhum papel importante em sua vida. Para que... não venha eu mesmo a ser desqualificado (27). Este termo em Rm 1.28 traduz-se por “reprovável”, e seu sentido é “estando cheios de toda injustiça, impureza, maldade”. Assim, pois, ensina ele a necessidade de autodisciplina na vida cristã, do contrário as paixões do corpo voltarão a dominar-nos e nos tornaremos como os irregenerados. Esta declaração do apóstolo levanta a questão da “segurança” do crente, isto é, uma vez a pessoa estando regenerada em Cristo, poderá vir a perder-se?

A Escritura, em sua generalidade, assegura-nos muitas vezes que, visto como aceitamos Cristo, Ele nos guardará até ao fim (cf. Rm 8.38-39, para citarmos uma declaração sobre isto pelo mesmo apóstolo). Ao mesmo tempo, a passagem que estudamos agora ensina-nos a necessidade de constante vigilância para não voltarmos às práticas dos ímpios. (Outras passagens semelhantes são 1Co 10.12; Gl 5.4; Hb 4.11; 10.38-39). Alguns comentadores interpretando a palavra «rejeitado» ou «desqualificado» (isto é, para o prêmio, cf. verso 24), consideram a passagem como significando apenas que sob certas circunstâncias, alguém que tenha ministrado aos outros pode perder seu galardão. (Veja-se 3.10-15, onde se ensina que o crente pode perder seu prêmio). A metáfora, tomada de empréstimo aos jogos olímpicos, apelava de pronto aos leitores gregos.

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 47 1 Coríntios 10 3. COMO VENCER AS TENTAÇÕES (10.1-15) - O apóstolo

prossegue, exortando à luta decidida pelo domínio das paixões carnais, e faz uma referência à primitiva história judaica, no tocante às peregrinações no deserto. Mostra como Deus teve necessidade de castigar os que se desencaminharam, apesar de terem participado dos sinais externos de pertencerem a Israel. Note-se a repetição da palavra “todos”.

Todos sob a nuvem, e todos passaram pelo mar... todos comeram... todos beberam... entretanto, Deus não se agradou da maioria deles (1-5). Que advertência a membros de igreja, que só o são de nome! Podemos notar ainda que o apóstolo chama a esses primitivos israelitas nossos pais (1). Israel e a Igreja têm ancestrais em comum. Sob a nuvem (1). Veja-se em Êx 14.19 e segs. a narrativa do incidente.

Batizados... comeram... beberam (2-3). Vê ele analogias dos dois sacramentos cristãos, batismo e Ceia do Senhor, nas experiências de Israel.

Pedra que os seguia (4). Não precisamos pensar que Paulo subscreve aqui a lenda rabínica de haver a pedra de Refidim, de que jorrou água, acompanhado os israelitas em sua viagem. Isto é inconcebível. É possível, entretanto, que ele alude à citada fantasia, dando-lhe uma interpretação espiritual, como figura de Cristo sob forma alegórica. Lightfoot comenta que foram as correntes de água que os seguiram, e não a pedra.

Exemplos para nós (6) (também no verso 11, como exemplos). A história do Velho Testamento não vale somente como registro de fatos passados, mas também como instrução no conhecimento de Deus. Paulo urge com os seus leitores que se acautelem à vista do que aconteceu aos filhos de Israel, e assim não cometam os mesmos pecados.

Sobre quem os fins dos séculos têm chegado (11). A palavra “séculos”, aqui, significa “eras”. O pensamento pode ser uma série de épocas, ou pode relacionar-se a vários períodos da história como “a era

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 48 de Israel”, a “era dos gentios”. Neste caso, “fins dos séculos” significaria algo como clímax ou conseqüência da história passada.

Veja que não caia (12). Idéia semelhante à de 9.27. Note-se que a advertência é para quem pensa estar em pé. Tal confiança deve-se estear nas promessas de Deus e na fiel aderência às condições nelas implícitas. A tentação sempre forceja por afastar-nos do modo correto de vida. Deus porém guarda o crente neste particular, e se esse crente se apoiar em Deus, achará meio de escapar, mostrado pelo Senhor (13).

Fugi da idolatria (14). Volta o apóstolo à questão das carnes oferecidas aos ídolos. Seu aviso é no sentido de se evitarem familiaridades idolátricas. As palavras Falo como a criteriosos (15), que se consideram como final desta seção, indicam que ele deseja estimulá-los mentalmente nesta matéria e despertar-lhes a atenção.

4. A CEIA DO SENHOR E FESTAS PAGÃS (10.16-22) - Passa o

apóstolo a falar agora da Ceia do Senhor e a ensinar que a participação nela deve excluir inteiramente qualquer idéia de participação dos sacrifícios pagãos. Esta seção dá-nos uma descrição escriturística, autorizada, do que é a Ceia do Senhor.

O cálice da bênção... é a comunhão do sangue de Cristo. O pão... é a comunhão do corpo de Cristo (16). Estas palavras devem ser decoradas por todo crente. Participar da Ceia do Senhor, então, é entrar em contacto espiritual com o sacrifício de Cristo no Calvário. A unidade dos crentes é também simbolizada na Ceia do Senhor - nós... somos unicamente um pão, um só corpo (17). O apóstolo ilustra ainda a matéria referindo Israel segundo a carne (18), isto é, o Israel histórico. Comendo dos sacrifícios, como faziam nos tempos do Velho Testamento, todos ficavam unificados pelo altar (18). Podia tirar-se idêntica ilustração dos sacrifícios gentílicos? Sim, embora o ídolo nada fosse em si, tais sacrifícios eram claramente oferecidos aos demônios, não a Deus, estando envolvido no caso o mesmo princípio de unificação dos participantes. Portanto, os cristãos não devem participar dos

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 49 sacrifícios gentílicos (20). Eles se unem ao redor da mesa do Senhor (21). (Note-se este título; contrasta-se com o altar do Velho Testamento (18), tanto quanto com a mesa dos demônios). Do contrário, correm o perigo de provocar zelos no Senhor (22). Quanto ao emprego da palavra «zelos» nesta conexão, veja-se o segundo mandamento (Êx 20.4-6).

Esta passagem apresenta-nos um elevado conceito do sacramento em questão; nenhum cristão deve nem sequer imaginar outro ensino a respeito. Falsa doutrina sobre ele surge somente quando se fazem tentativas de definir este sacramento em termos de mudança das substâncias do pão e do vinho; ou quando uma classe particular de ministros reivindica poder para si, em contraposição às outras pessoas. Nada destas coisas a Escritura refere nem de longe. A própria e devida ordem de administrar a Ceia do Senhor é outro assunto.

5. A CONSCIÊNCIA PRÓPRIA E A ALHEIA (10.23-11.1) - O

apóstolo volta a considerar o tópico da consciência alheia, de que já tratou no cap. 8, agora dando-lhe ênfase referindo uma reunião social (27).

Comei de tudo o que for posto diante de vós (27). Se, todavia, alguém declarar que aquilo foi oferecido em

sacrifício (28), não comais, porque aquele que revela esse fato associa a comida ao culto dos ídolos. A questão do uso de bebidas alcoólicas, ou da abstinência delas, pode ser considerada à luz deste versículo. O apóstolo se absteria por amor à consciência do seu amigo, mas obviamente sublinha o princípio da liberdade - liberdade sob o domínio da graça de Deus (30 e 31). O que foi expresso negativamente em 8.12, expressa-se positivamente no verso 31.

Judeus... gentios... a igreja de Deus (32). Tríplice divisão da humanidade, que ainda vigora. Em Corinto essa divisão haveria de ser facilmente percebida.

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 50 1 Coríntios 11 Meus imitadores, como também eu sou de Cristo (11.1). Os

outros deviam imitá-lo nisto: em ser ele imitador de Deus nesta questão de não dar escândalo, a fim de que muitos fossem salvos.

c) Culto público - os princípios em jogo (11.2-14.40) 1. HOMENS E MULHERES NA CONGREGAÇÃO - SUAS

DIFERENTES POSIÇÕES (11.2-16) - Nesta seção Paulo dá instruções a respeito da conduta própria dos cristãos, homens e mulheres. Embora à primeira vista algumas de suas declarações sejam difíceis de compreender (veja-se verso 10), todavia, se refletirmos na passagem, podemos ver a importância do seu ensino geral e sua necessidade hoje. Os costumes sociais que fornecem o fundo de cena para o pensamento dele são, naturalmente, diferentes dos nossos; mas os fatores envolvidos são os mesmos, a saber, modéstia, propriedade, ordem.

Cristo é o cabeça de todo homem (3). Este verso coloca a matéria toda em sua perspectiva própria. Paulo enuncia um princípio, grande e básico, da ordem da criação, e aplica-o na solução da matéria em apreço.

Cabeça coberta (4). Cobrir a cabeça é sinal de sujeição. O homem, criado à imagem de Deus (7), não precisa «cobrir-se» na presença das outras criaturas (talvez inclusive os anjos), mas é apropriado às mulheres fazerem assim, visto que, por desígnio de Deus, ela é sujeita ao homem.

Rapada (6). Uma mulher rapar a cabeça naqueles tempos, era sinal de vergonha ou desgraça, indicativo de que a tal era adúltera.

A mulher para o homem (9). O conceito que a Escritura faz do casamento é tal que, apesar de a mulher dever obediência a seu marido, os deveres deste para com sua esposa defendem-na de ser dominada arbitrariamente por ele (veja-se v. g. 1Pe 3.7).

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 51 Portanto deve a mulher trazer véu na cabeça (10), como “sinal

de autoridade” (ARA). Tem havido muitas interpretações para este verso difícil. A mais simples parece também ser a mais natural. O verso precedente declarou que a mulher se originou do homem e foi criada por causa dele. Cobrir a cabeça era um modo de reconhecer (ou era um “sinal” de) esta ordem divina na obra da criação, símbolo da autoridade do seu marido.

Por causa dos anjos (10). Para nós é uma frase de sentido obscuro, mas provavelmente era bem compreendida pelos cristãos coríntios da época. Alguns relacionam este verso com a narrativa da união dos “filhos de Deus” com “as filhas dos homens” em Gn 6 (onde a Septuaginta tem angeloi pelos “filhos de Deus”), mas a razão de tal referência aqui não é muito clara. Uma interpretação mais simples é a que vê aqui uma referência ao fato de os judeus e a Igreja Cristã primitiva pensarem que os anjos estavam presentes em suas reuniões de culto. Onde estiverem reunidos, santa e ordenadamente, cada adorador deve mostrar que reconhece a ordem da criação divinamente estabelecida. Paulo reforça seu argumento apelando para o costume natural e o senso comum.

Não vos ensina a própria natureza (14). Devemos pois traduzir seu conselho em termos aplicáveis aos costumes de hoje em dia, a fim de garantirem condições que, semelhantemente, produzam modéstia, propriedade e ordem.

2. A OBSERVÂNCIA DA CEIA DO SENHOR (11.17-34) -

Paulo agora passa ao importante assunto do modo de observar a Ceia do Senhor na Igreja. Nos tempos apostólicos era, com regularidade, precedida da “festa do amor” (gr. agape), a fim de, sem dúvida, estabelecerem um confronto mais estreito com a última Ceia. Como era de praxe, cada membro levava sua comida. Contrastando com as reuniões sociais costumeiras, ricos e pobres se juntavam nessas festas cristãs, de modo que tinha de haver considerável disparidade nas

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 52 quantidades de alimento que uns e outros forneciam. Mas, ao invés do repartirem os alimentos com todos, cada qual conservava para si a parte que tinha levado, com o vergonhoso resultado descrito no verso 21. E assim as tais festas, que tinham o intuito de fomentar sociabilidade, falhavam inteiramente neste objetivo, e o apóstolo a bem dizer aconselhou a suspensão delas (veja-se o verso 22).

Por causa desses abusos, Paulo declara que não pode louvar os coríntios nesse particular (17), em contraste com o elogio que lhes fez por observarem as ordenanças (tradições) que lhes entregara (veja-se o verso 2).

Volta a referir à existência de partidos entre eles (18), acrescentando: até mesmo importa que haja partidos (heresias) entre vós para que também os aprovados se tornem conhecidos em vosso meio (19). Heresia não é somente sustentar uma opinião errônea, mas é escolhê-la definitivamente e tomar posição a seu lado. O propósito de Deus, consentindo essas facções, é tornar manifestos aqueles que são aprovados por Ele. Paulo então declara: o que eles fazem, quando se reúnem, não é absolutamente celebrar com propriedade a Ceia do Senhor (20). Permitindo excessos, deixando que, alguns saiam dali com fome, e envergonhando os membros mais pobres da congregação, com isto menosprezam a Igreja de Deus (22). Esta frase pode ser relacionada com o verso 29, tendo-se em mente que esta outra vos reunis na Igreja (18) não se refere, naturalmente, a ajuntamento num templo, mas descreve a natureza especial e solene dessa reunião. O que se condena em toda esta passagem é deixar de discernir ou formar opinião sobre o corpo (isto é, a Igreja) quanto ao seu verdadeiro valor.

A narrativa completa que o apóstolo faz da instituição da Ceia do Senhor (note-se que ele declara tê-la recebido do Senhor) é a fórmula que a Igreja desde então tem usado na celebração desse rito (23-25). O vocábulo “eucaristia” vem da palavra grega que significa dar graças (24) e às vezes se emprega em lugar de Santa Comunhão. Isto é o meu corpo (24). Toda idéia “carnal” de participação fica excluída pelo fato

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 53 de o Senhor estar vivo quando disse essas palavras, isto é, foi antes de sua morte. O corpo e o sangue de Cristo são recebidos de uma maneira espiritual. Fazei isto (24). Estas palavras não estão em Mateus e Marcos; a ordem fundamenta-se, pois, no testemunho de Paulo. Suas palavras pressupõem que a prática vigorava na Igreja e compreende-se que procederam do próprio Senhor.

Em memória de mim (24-25). A repetição é impressionante e nos dá a razão escriturística para a observância da Ceia do Senhor. Sua finalidade é fazermos recordação do Salvador, em todos os eventos de sua vida, mas principalmente de sua morte por nós na cruz; e, em recordá-lo, sentirmos sua presença conosco. A santa Ceia é, pois, uma “recordação” de Cristo e uma “comunhão” com Ele.

Testamento (25) é o mesmo que “concerto”. Os termos “Velho Testamento” e “Novo Testamento” derivam-se deste versículo.

Anunciais (26). É o mesmo verbo usado em 9.14. A celebração desta ordenança é, portanto, o “grande anúncio da morte de Cristo” e um testemunho ao mundo a respeito da devoção dos cristãos ao seu Senhor, e da confiança deles na Sua morte até que Ele venha (26).

Réu do corpo... (27). Este verso é um solene aviso contra os que participam irrefletidamente da Ceia do Senhor. Essas palavras significam que esses tais são réus de um crime cometido contra a santidade do corpo e do sangue do Senhor, colocando-se destarte do lado dos inimigos de Cristo, que o crucificaram.

Este memorial nos foi dado pelo próprio Cristo; o abuso dele leva à condenação (29) ou “juízo”. Deve-se notar que indignamente (27-29) é uma coisa, “indignos” é outra, e tais nunca deixaremos de ser.

O sentido exato do verso 30 é obscuro. Pode ser interpretado metaforicamente, como a descrever a incompetência espiritual deles, coríntios; ou pode relacionar-se com o “juízo” do verso 29 e interpretar-se como descrição dos males físicos que resultam dos excessos deles, sendo sinais externos do juízo de Deus. O verso 31 urge que estejamos atentos sobre nós mesmos - nossos motivos e pensamentos - sendo

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 54 castigados (disciplinados), porém não condenados (32). O apóstolo termina exortando que dirijam aquelas reuniões da Igreja de um modo decente e ordeiro, prometendo-lhes que discutirá ainda o assunto quando da próxima visita que lhes fizer (33-34).

O fato de Paulo ter dedicado tanto espaço à doutrina concernente à Ceia do Senhor mostra sua importância na vida cristã. Ao mesmo tempo, façamos dela uma idéia justa, sem exagero. Fora dos Evangelhos e desta Epístola, há muito poucas referências a esta ordenança. Sua instituição por nosso Senhor e o mandamento para que a celebremos em sua memória leva-nos a colocá-la no centro da nossa vida cristã. Contudo, concentrar nela nossa vida devocional é subverter o equilíbrio espiritual e, como sabemos da história da Igreja, isso conduz a erro grave e superstição.

1 Coríntios 12 3. OS DONS ESPIRITUAIS E SEU EMPREGO NA

CONGREGAÇÃO (12.1-31) - Este capítulo fornece-nos uma visão do funcionamento da Igreja como corpo de muitos membros, que têm diferentes encargos, porém todos em harmonia, visto serem unificados por “um só Espírito” (13). Este é o Espírito Santo. Antes, quando eram gentios, deixavam-se levar de um lado para outro, sem alvo ou objetivo na vida (2); porém agora, o fato de chamarem Jesus de “Senhor” prova que são guiados pelo Espírito; e, inversamente, é só por ser guiado assim que alguém pode reconhecer a Jesus como o Senhor; o Espírito Santo, e somente Ele, dá testemunho de Cristo (3).

O que os cristãos devem aprender é que o Espírito Santo usa diferentes homens de diferentes modos, repartindo diferentes dons a cada um (4). De igual maneira em Jesus Cristo (o Senhor do verso 5) há diferentes ministérios por Ele exercidos junto aos homens, e em Deus Pai há diferentes operações que Ele empreende no mundo (6). Porém as diversidades em cada caso procedem de uma única Pessoa divina (cf. Ef 4.4-7).

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 55 Se a interpretação dada aqui, destes versículos, for aceita, é claro

que temos aí uma importante declaração sobre a doutrina da Trindade. Mas o pensamento do apóstolo é altamente sugestivo, e esse pode não ser o único modo de entendê-lo. Por exemplo, pode-se considerar os termos Espírito, Senhor e Deus como se referindo todos eles ao Espírito Santo, de modo a apresentar uma doutrina completa de Sua personalidade distinta e de Sua natureza como deidade.

Cada um, pois, aproveite-se da manifestação do Espírito em si, e também a use em proveito de toda a Igreja (verso 7 e segs.). Este princípio de «partilha» é muito enfatizado no Novo Testamento, não somente por Paulo, como pelos outros escritores. A Igreja, como vai mostrar, é um corpo no qual essa parceria íntima deve ser manifesta. Alguns dons do Espírito vêm relacionados nos vv. 8-10 e podem ser comparados com a lista do verso 28.

Note-se o contraste entre sabedoria e conhecimento (8) e o modo pelo qual muitos dos dons parecem convir às necessidades particulares da Igreja primitiva. Profecia (10) não é tanto predição do futuro, como é proclamação da verdade em geral.

No verso 12 o apóstolo praticamente dá à Igreja o título de «o Cristo» (a ARA e a ARC põem de parte o artigo definido que está explícito no grego), embora no verso 27 venha isto ampliado no título mais familiar, o corpo de Cristo. Batizados em um corpo (13). A alusão aqui é feita ou ao ato do batismo como confissão de fé, ou ao ato do Espírito Santo pelo qual os crentes, independente de raça ou classe social, são constituídos em um corpo.

Os vv. que se seguem parecem antes confirmar o segundo destes significados, visto que é o Espírito Santo a fonte invisível de unidade do agrupamento visível dos batizados.

Beber de um só Espírito (13). Não é impossível aí uma referência à Ceia do Senhor. As duas ordenanças evangélicas eram ritos notáveis na Igreja apostólica e devia-se cogitar muito a respeito delas. Aliás destaca-

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 56 se aí a idéia de cada convertido ser participante do Espírito Santo (cf. Hb 6.4).

Os vv. 14-26 voltam a apresentar a idéia da Igreja como corpo (veja-se o verso 12) e a desenvolvem numa espécie de parábola. O objetivo de Paulo é ainda dar ênfase ao pensamento de unidade essencial, e o faz por uma tríplice reductio ad absurdum. Primeiro mostra quão insensato seria qualquer membro rebelar-se e reivindicar independência (14-16); segundo, evoca o absurdo de um corpo consistir só de um olho ou de um ouvido (17); terceiro, e em conseqüência disso, mostra como seria ridículo se nenhum dos membros pudesse se distinguir dos demais, porém fossem todos uma coisa só (19). A Igreja, tal como o corpo, é um organismo vivo, não uma organização mecânica, e cada membro tem um papel necessário a desempenhar. Em face do “espírito divisionista” existente em Corinto, é interessante notar a ênfase do apóstolo à interdependência das várias partes, tanto no sofrimento como na alegria (26), a necessidade dos membros que parecem ser mais fracos (22), e a harmonia entre o honroso e o menos honroso, o decoroso e o menos digno (23-24). Damos muito maior honra (23). A alusão pode ser ao uso de roupa com que cobrimos aquelas partes do corpo fora da cabeça, mãos e pés.

A uns estabeleceu Deus na Igreja (28). A Igreja é de Deus e, portanto, Ele mesmo é quem ordena a seu respeito. Em vista disso, claro que é erro haver disputas ou ciumadas em torno dos ofícios a serem exercidos nela. Com o verso 28 cf. vv. 8-10 e Ef 4.11-13. A lista é instrutiva e mostra uma relação entre os ofícios e a situação naquela época. Apóstolos, por exemplo, passaram desde então. Profetas; veja-se nota sobre o verso 10. Mestres podiam ser os que instruíam os novos convertidos. Socorros; talvez “intérpretes de línguas” (cf. verso 10 e 14.27-28), porém a palavra é suscetível de aplicação muito mais geral. Governos; “administradores”. É pertinente observar que nenhum ofício de sacerdócio, tal como veio a ser concebido adiante na história da Igreja, é contemplado aqui ou em Ef 4.

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 57 Ambicionai zelosamente os melhorem dons (31). O perigo que

surge, quando se dá ênfase à interdependência e ao igual valor de todos os membros, é a possibilidade de extinguir-se a ambição própria e legítima. Porém é óbvio que tal “ambição” deve ser orientada num espírito de amor cristão, e este pensamento o apóstolo passa a desenvolver no capítulo seguinte.

1 Coríntios 13 4. A BASE DE TUDO É O AMOR (13.1-13) - Todo este capítulo

é realmente um parêntese, voltando o apóstolo ao principal tema do seu argumento no cap. 14. A idéia do caminho sobremodo excelente, que parece lhe haver surgido repentinamente no espírito, no final do cap. 12, é desenvolvida em linguagem arrebatada, formando um “Hino ao Amor”, no qual salienta que mesmo os dons do Espírito, a que já fez referência em 12.8-10,28-30, não valem nada, se falta o amor. Em 13.1-3 refere alguns deles, dos quais apresenta uma lista, talvez pela ordem da importância que os coríntios lhes davam.

Nos vv. 4-8a desenvolve a significação da palavra amor, descrevendo o que ele faz e o que não faz. O contraste com o código de ética prevalecente em cidades tais como Corinto deve ter sido impressionante. A lista sofre também a influência, sem dúvida, da recente conduta da igreja, que ele procurou corrigir nos primeiros capítulos. Nos vv. 8-13 passa a comparar os dons que eles valorizavam tanto com as virtudes que, por seus atos, menosprezavam. Aqueles se restringem pelas limitações humanas, valem somente enquanto servem à Igreja aqui na terra, e passarão com a vinda do Reino. As virtudes são eternas em qualidade. Ilustra seu pensamento comparando a experiência espiritual e presente deles com a infância e seu modo imperfeito de expressar-se e seu fraco poder de apreensão e raciocínio.

Quando vier o que é perfeito (10), será como a passagem para o estado de adulto. O mesmo pensamento é desenvolvido em outra ilustração. É como se, presentemente, olhássemos para um espelho de

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 58 metal a certa distância. A imagem imprecisa, e procurar discerni-la é tentar decifrar um enigma. Porém então (reportando-se ao verso 10) veremos claramente, face a face.

Agora permanecem (13). A referência não é ao tempo, como no versículo precedente, mas ao ponto a que chegou em seu argumento. A maior destas (13). O amor não somente é superior aos dons considerados há pouco, mas é supremo também entre as virtudes.

A tradução de agape por caridade (ARC) não é feliz, em vista do sentido atual desta palavra. (Veja-se o verso 3a). Amor, no pensamento do apóstolo, é uma atitude do coração, da mente e da vontade. Em outras palavras, ele atua na personalidade inteira do homem. Deve ser distinto de mero sentimento e, naturalmente, de afeição humana, como é ordinariamente conhecida. O amor cristão é possível somente em quem vive no poder de Cristo habitando no íntimo ser. Este tema é desenvolvido com ênfase e pelo Apóstolo João em seus escritos. Veja-se 1Jo 3.13-24; 4.7-21.

1 Coríntios 14 5. FALAR EM OUTRAS LÍNGUAS (14.1-40) - Essa praxe de

falar em outra língua era aparentemente comum em Corinto e obviamente era um dom altamente cobiçado. Outras referências a este assunto só se encontram em Atos, embora não seja certo que o que Lucas descreve, como em At 2.4-11, fosse uma manifestação do Espírito exatamente igual ao dom aqui referido.

A ARC inserindo a palavra estranha (que não se encontra no grego), dá a impressão de que o falar era numa linguagem ou linguagens estranhas àquele que falava. Mais provavelmente Paulo está referindo elocuções extáticas, a expressarem sentimentos antes que pensamentos lógicos, o que se tornava completamente ininteligível aos ouvintes (2), a não ser que fosse “interpretado” (5). Com efeito, o que falava podia ele mesmo não saber o significado do que dizia, donde o apóstolo encorajar que orasse pedindo capacidade para interpretar (13). Se nem ele nem

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 59 outro pudesse interpretar, devia guardar silêncio nas reuniões da igreja, e empregar o dom somente em sua comunhão íntima com Deus (28). Nada há que sugira que esse dom capacitava pregar o evangelho em outras línguas.

O alvo do apóstolo é mostrar que, atribuindo excessiva importância a esse dom, era de esperar que eles (como igreja) perdessem aquela edificação, exortação e consolo (3) que, resultam do exercício do dom da profecia. Não deprecia o dom de línguas, porque ele mesmo o possui em maior medida (18). Mas por motivos muito práticos, urge com eles para que desejem antes aquele dom que habilita seu recipiente a revelar as verdades do evangelho e a ensinar doutrinas sãs. Com isto a igreja lucra (6).

Usa três ilustrações para esclarecer seu ponto de vista. Tratando-se de diferentes instrumentos musicais, cada qual tem som diferente dos outros; do contrário seria impossível distinguir um do outro (7). Demais disto, cada instrumento, a trombeta por exemplo, deve ser tocada inteligivelmente, de outro modo ninguém compreenderá ou apreciará a música (8). Em terceiro lugar, se duas pessoas querem trocar idéias, só podem fazê-lo usando palavras compreendidas por ambas. Todas as palavras têm algum sentido (10), mas se o sentido das palavras empregadas for desconhecido (11), será o mesmo que tentar manter uma conversação com um estrangeiro.

A aplicação disso vem nos vv. 12-19. Paulo põe de lado o contraste do dom de línguas com o de profecia, a fim de dar instruções práticas sobre o seu uso. Seu único interesse é que a igreja seja edificada. Obviamente só se obterá esse resultado se o ministério for compreendido por todos os presentes, inclusive “qualquer um a quem falte o dom” (16, Weymouth).

Faz uma pausa por um momento para lhes lembrar que mesmo neste particular há graus de compreensão. Aliás introduz aqui uma pequena exortação moral, “na malícia sede crianças” (20). Então volta ao primeiro tema e contrasta mais uma vez o profetizar com o falar em

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 60 línguas. A citação no verso 21, referida como a constar na lei é de fato tirada de Is 28.11-12. A “Lei e os Profetas” constituíam para os judeus um sistema compacto de revelação, sendo que o termo lei é aqui empregado em sentido amplo. Alude-se aí ao uso que Deus fez dos assírios como sinal para o Seu povo, depois de haver este recusado ouvir a mensagem clara dos profetas.

O verso 22 deve ser interpretado dentro deste contexto limitado. As línguas constituem um sinal... para os incrédulos (22), convencendo-os do poder de Deus, porém não lhes trazendo nenhuma mensagem de esperança. Por outro lado, a profecia... é para os crentes (22). Com os corações preparados, ouvem a voz de Deus e lhe obedecem.

De maneira de todo diferente aborda o assunto nos três versículos seguintes. O incrédulo do verso 23 é realmente a mesma pessoa crente do verso 22, porém numa fase anterior. Paulo mostra como chega à fé, não mediante o uso do dom de línguas, mas pelo poder convincente do evangelho pregado com clareza. O pecador endurecido do verso 22, que é comparado com os filhos de Israel que não queriam ouvir (21), está fora de cogitação nos vv. 23-25.

Que fazer, pois, irmão? (26). “Que lições devemos tirar de tudo isto?”. Resumindo, o apóstolo procura estabelecer um pouco de ordem na confusa o costumeira das reuniões deles. Relativamente às línguas, não mais de dois ou três exerçam esse dom numa reunião, e cada qual por sua vez. Ainda assim, deve isto ser feito se houver quem interprete (27-28). Semelhantemente, os profetas devem estar preparados para se submeter ao julgamento dos outros e a dar lugar um ao outro. Dominando seu próprio espírito (32), entretanto, um profeta pode aprender a esperar sua vez de falar. Cf. o verso 40 com o verso 33.

As mulheres conservem-se caladas na igreja (34). Estas palavras devem ser relacionadas à última cláusula do verso 33. Por cima da confusão descrita no verso 26, a igreja de Corinto estava permitindo que as mulheres tomassem parte nas reuniões públicas, no que ia de encontro ao costume da Igreja em geral. Com certo sarcasmo o apóstolo

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 61 pergunta no verso 36 se eram eles os originadores do evangelho. Estes versos provavelmente se referem às principais reuniões públicas da igreja, e a proibição deve ser compreendida à luz da doutrina já exposta (veja-se o cap. 11) sobre a ordem observada na criação. Também podia estar na mente do apóstolo o perigo de opróbrio e descrédito para a Igreja, ocasionados pelo mau uso da liberdade, contrário ao costume local. Em 11.5 deu a entender que as mulheres podiam profetizar e orar em público, mas podia tratar-se de reuniões menores e mais informais, como as de oração que se realizavam na casa da mãe de Marcos (At 12.12).

No verso 37 ele claramente sustenta que é inspirado. A prova do conhecimento espiritual de alguém está em aceitar estes mandamentos.

O verso 38, sugere que se alguém recusa admitir estas instruções, é deliberadamente ignorante por tal forma que Paulo se nega a perder tempo com ele. Uma variante aparece assim: “Se alguém não reconhece isto, esse tal não é reconhecido”. Compare-se com 8.2-8. Os versos finais voltam à matéria de 12.31 e 14.1 e a resumem.

1 Coríntios 15 V. O EVANGELHO DA RESSURREIÇÃO - 15.1-58 a) Sumário dos fatos (15.1-19) O apóstolo agora vai tratar de um dos mais gloriosos temas de

todos os seus escritos - a certeza da ressurreição dos crentes. O evangelho (1). Notem-se seus pontos cardeais. A morte de

Cristo pelos nossos pecados (3). Sua sepultura e ressurreição (4). O tempo do verbo no grego indica o estado de Cristo presentemente ressurreto.

Estes eventos são fatos da história que aconteceram segundo as Escrituras (3-4), isto é, em cumprimento de profecias do Velho Testamento.

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 62 A menos que tenhais crido em vão (2). Isto antecipa o argumento

que ele vai apresentar. Essa declaração é puramente hipotética e vem expressa mais amplamente no verso 17.

A multidão de testemunhas da ressurreição (porque foi uma multidão em relação com o que se exige ordinariamente para que um testemunho seja válido) é trazida à lembrança (5-8). Esta passagem é a declaração escrita mais antiga que possuímos da evidência histórica da ressurreição de Cristo.

Depois disso (6-7); depois de todos (8). A relação das testemunhas parece estar em ordem cronológica.

Os Evangelhos registram nove aparições distintas do Senhor ressuscitado. Não há, fora daqui, outra referência bíblica à aparição aos quinhentos de uma vez e à outra a Tiago. Visto que nos Evangelhos nosso Senhor não foi reconhecido por seus irmãos e, nos Atos, Tiago aparece como apóstolo, a referência a esta aparição especial é significativa.

Um nascido fora de tempo (8). Paulo contrasta sua conversão com a dos outros apóstolos. A conversão destes foi o resultado de longa convivência com Cristo. A dele foi uma experiência súbita e esmagadora.

Não sou digno de ser chamado apóstolo (9). Cf. Ef 3.8. A uma palavra de sentido arrependimento pela perseguição que antes movera à Igreja segue-se o gozo maior na graça de Deus que o habilitou a trabalhar muito mais do que todos os outros.

O que sou (10); não «quem sou». Parece que ele se refere a caráter e dotes adquiridos.

Como afirmam alguns dentre vós que não há ressurreição de mortos? (12). Chegara ao conhecimento de Paulo que se ensinava uma falsidade na igreja sobre o assunto em foco. Cf. 2Tm 2.17-18. Sabemos que os atenienses rejeitaram a idéia da ressurreição (veja-se At 17-32), e Corinto podia ter recebido a influência dessa atitude dos gregos. Entre os convertidos judeus, também, podia haver alguns que se tinham deixado

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 63 influenciar pela atitude dos saduceus. Cf. At 23.8. O objetivo de Paulo é mostrar que essa negação é contrária aos fatos e indicar quais são as implicações lógicas da mesma.

Se Cristo não ressuscitou (14). Ou melhor, “Se Cristo não foi levantado”, e assim em toda esta passagem. A ressurreição faz parte do evangelho (4-12). Mas negar a ressurreição humana envolve negar a de Cristo (16). Mostra-se claramente o que isso implica para eles e para os apóstolos. Sua esperança de salvação é vã (14-17; cf. o verso 2) e os seus mestres, em cuja palavra confiaram, não apenas estavam enganados, porém deliberadamente apresentaram um falso testemunho (15).

De Deus (15); no gr. kata, “contra”. Paulo quer dizer que ele estava atribuindo a Deus uma falsidade, interpretando-O mal, e assim apresentando algo “contra” Ele. Além do que, se não há ressurreição, os que morrem confiados em Cristo estão realmente no mesmo nível dos animais brutos que perecem (18). Temos também de admitir que Deus nos deixa esperar de Cristo o que nunca será realizado - situação esta deplorável.

Os mais infelizes de todos (19). Quer dizer que os crentes nesta vida negam a si o que o povo chama prazer, e no além não gozam de nenhuma felicidade.

b) Conseqüências dos fatos (15.20-34) Mas agora Cristo ressuscitou (20). Paulo arreda de si aquelas

hipóteses e volta ao fato sólido da ressurreição. Em Adão... em Cristo (22). Este contraste entre o velho e o novo,

entre Adão como representante da humanidade caída, e Cristo como cabeça de todos os remidos, é um tema favorito de Paulo. De uma forma ou de outra aparece em certo número de suas epístolas (cf. Rm 5.12-19; Ef 4.22-24; Cl 3.8-11). Mais adiante neste capítulo ele volta a este pensamento.

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 64 Cada um por sua própria ordem (23). Paulo indica uma

seqüência nos acontecimentos que leva ao fim (cf. 1Ts 4.13-17), porém não indica intervalos de tempo.

Nos vv. 24-28 ele conduz nossas mentes além das fronteiras do espaço e do tempo para a vitória final de Cristo a culminar em Deus sendo tudo em todos (28). Note-se como o pronome pessoal “ele” nestes versos às vezes se refere a Deus o Pai, outras vezes se refere a Deus o Filho. “Convém que ele (Cristo) reine, até que ele (Deus) haja posto todos os inimigos debaixo dos seus pés (dele, Cristo)... Claro é que (Deus) está excetuado, o qual pôs tudo sob (Cristo)... O próprio Filho se sujeitará a (Deus) que tudo pôs sob (Cristo)”.

A relação entre Cristo e o Pai, expressa nesta passagem, é do maior valor para nós na formulação da doutrina da Santíssima Trindade. Temos aí uma amostra da subordinação do Filho - para usarmos o termo teológico - mas isto não colide de modo algum com a crença na plena deidade de Cristo, o qual participa com o Pai da substância da Divindade. A subordinação diz respeito ao ofício, não à pessoa. A referência é à obra de Cristo como Redentor e como Rei no reino de Deus. Ele foi designado para essas funções pelo Pai (27). Cf. 1Co 3.23.

Os que se batizam pelos mortos (29). Esta é uma frase difícil, que tem sido interpretada de muitas maneiras. Alguns vêem aqui referência a um costume local, de pessoas se batizarem vicariamente, em favor de algum parente ou amigo que morrera crente em Cristo, mas sem ter recebido o batismo. Sabe-se que tais batismos houve no segundo século. Entretanto, relacionavam-se principalmente com seitas heréticas, não havendo referência a tal prática nos dias do apóstolo. Se é este o sentido, deve-se notar que Paulo de modo algum se associa a esses batismos, nem seus leitores. Refere-se na terceira pessoa àqueles que praticam esse rito, e seu objetivo é simplesmente mostrar que o que eles ensinam (isto é, negando a ressurreição) está em contradição com o que fazem (visto que os mortos não se aproveitam desse auxílio).

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 65 Outros explicam interpretando a frase assim: “os que se batizam

por causa dos mortos”, isto é, como resultado do testemunho que deram enquanto vivos, ou ao morrerem. Então a inconsistência estaria no próprio ato do batismo, e a ênfase seria ao seu simbolismo de morte e ressurreição.

Sentido semelhante se obtêm caso suponhamos que neste versículo Paulo está pensando no simbolismo do batismo, e não se está referindo absolutamente aos que morreram fisicamente. A pessoa que se batiza reconhece que está morta com Cristo, e neste sentido o batismo é apenas “pelos mortos” (Cf. Rm 6.1-11, onde este pensamento é desenvolvido). Segundo este parecer, a frase pelos mortos é aí colocada por Paulo somente porque ele quer fazer, por força, os leitores recordar esse simbolismo.

A esperança da ressurreição também explica a disposição dos

cristãos de suportar sofrimentos neste mundo. Dia após dia morro! (31). O corolário, aí implícito, é que ele

também, dia após dia, ressurge para a vida. Contraste-se isto com o amanhã morreremos (32) e a concepção

materialista e epicurista da vida, que Paulo ironicamente sugere que teríamos de adotar, caso a ressurreição não fosse um fato.

Como homem (32); “humanamente falando”. Lutei com feras (32). Sem dúvida o sentido aqui é figurado, da feroz oposição que ele enfrentou. No grego a palavra é uma só – “lutar com feras”.

Más conversações (33). É citação de um poeta grego, Menandro. Ou melhor: “As más companhias corrompem os bons costumes”. Reconhecendo bem a natureza corruptora da doutrina que ele está combatendo, Paulo encerra a seção apelando para uma vida justa.

Alguns ainda não têm conhecimento de Deus (34), o que é evidência de uma igreja “mesclada” ou confusa.

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 66 c) A natureza do corpo ressurreto (15.35-49) O apóstolo usa fatos muito conhecidos da natureza para mostrar a

razoabilidade da crença numa forma mais elevada de vida no estado de ressurreição. Raciocina “por analogia”. Deve-se compreender bem que ele não procura provar a ressurreição nestes versículos. Trata do caso da pessoa que concorda com a lógica do seu argumento anterior, mas se inquieta com as indagações apresentadas no verso 35.

Insensato! (36). Com três analogias, mostra que a identidade da matéria é preservada numa variedade de formas. O trigo continua sendo trigo, quer sob a forma de semente, quer sob a de planta; a carne continua sendo carne, seja humana, seja de alguma outra espécie de animal; a matéria é a mesma, quer exista na terra, quer no sol, na lua ou nas estrelas. Toma a última ilustração para dar ênfase ao ponto. A diferença só existe na forma, em glória (41). Assim também o corpo ressurreto difere do corpo natural. Como se semeia a semente, assim o homem nasce; como morre a semente, assim o homem; como a semente passa a nova vida como planta, assim o homem ressurge em glória.

Os termos natural e espiritual não devem ser entendidos como expressão da «substância» de que os corpos são feitos, mas como a dar ênfase à sua adaptabilidade. O “corpo espiritual” de algum modo germina do “corpo natural”, embora que o desenvolvimento seja glorioso além de nossa compreensão, e o “corpo espiritual” é perfeitamente adaptado à vida plena de um espírito glorificado.

Este contraste entre a vida natural e a espiritual leva-o outra vez a contrastar Adão, ser vivente, com Cristo, espírito vivificante (45).

O contraste é traçado com alguns pormenores (45-49). O verso 49 pode ser lido como na ARA “devemos trazer também a imagem do celestial”. Isto combina com o método de Paulo de insistir que comecemos logo a “vestir-nos de Cristo”, e a perfazer sua analogia com esta aplicação prática.

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 67 d) Imortalidade (15.50-58) As duas esferas havendo sido claramente discernidas, resta

estabelecer a antítese entre elas e mostrar como vencê-las. Digo-vos um mistério (51); isto é, algo que esteve oculto, mas

agora está revelado. Paulo deixa aqui a esfera do conhecimento natural, onde a analogia é possível, e descreve a futura vinda de Cristo do ponto de vista de um crente aqui na terra (cf. 1Ts 4.13-18). Por analogia ele já mostrou que os que morreram serão ressuscitados incorruptíveis.

Por revelação, apresenta o corolário disso, a saber, os que estiverem vivos à vinda de nosso Senhor serão transformados (52).

Trombeta (52). Usava-se a trombeta para transmitir ordens, como hoje se usa o clarim. É empregada aqui metaforicamente, mas com referência ao seu uso no Velho Testamento (veja-se Êx 19.16).

Tragada foi a morte pela vitória (54). É citação de Is 25.8. A morte é pintada aqui como um monstro, incapaz de reter suas vítimas, vendo-se frustrada no seu intento com relação aos que estiverem vivos na vinda de Cristo. Esta vitória em que Paulo se regozija, considerando-a já presente, vem por nosso Senhor Jesus Cristo (57).

O aguilhão da morte (56). Veja-se Os 13.14. Leia-se Rm 4 e 5, onde Paulo desenvolve seu ensino referente ao pecado, à lei e à morte. O pecado dá à morte o seu poder, e ele mesmo deriva da lei a sua força.

Sede firmes (58). Outra vez aqui a aplicação prática da doutrina. As palavras em vão reportam-nos à sua hipótese original. Porque os coríntios não tinham crido em vão (cf. verso 2), podem ficar certos de que o seu trabalho, no Senhor, não será debalde. A fé na ressurreição, portanto, torna-se a maior proteção contra a instabilidade e o maior incentivo para o serviço.

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 68 1 Coríntios 16 VI. INSTRUÇÕES FINAIS - 16.1-24 a) Contribuição sistemática (16.1-9) A coleta para os santos (1). Destinava-se aos pobres de

Jerusalém e fora idealizada com prazer pelo apóstolo. Cf. 2Co, cujos capítulos 8 e 9 tratam largamente deste assunto. Veja-se também At 24.17.

No primeiro dia da semana (2). Parece que esse dia já tinha significação especial para os cristãos. Ponha de parte e vá juntando. Ou colocassem de parte, em casa, uma quantia proporcional ao que tivessem recebido, ou por outra a trouxessem à tesouraria central da igreja. Em qualquer caso, é claro que a insistência é pela contribuição regular e proporcional.

Aqueles que aprovardes (3). A razão desse cuidado é exposta em 2Cr 8.20-21.

Devo percorrer a Macedônia (5). O apóstolo não refere o local onde está, ao escrever esta carta. Esse local é dado como sendo Éfeso, no verso 8, onde, apesar de todas as dificuldades, havia tremendas oportunidades que demandavam sua presença.

b) A respeito de Timóteo, Apolo e Estéfanas (16.10-18) Os vv. 10 e 11 lançam luz sobre o caráter de Timóteo, do qual

temos uma idéia estudando as cartas que Paulo lhe escreveu. O apóstolo mostra-se muito solicito pelo bem-estar do seu «filho muito amado». O verso 12 mostra que, apesar das divisões na igreja, Paulo de modo algum desconfiava de Apolo. Talvez este se mantivesse à distância, para que sua posição não se agravasse. Veja-se também a Introdução.

Sede vigilantes... (13-14). Estas palavras soam como exortação final da Epístola. Voltando à idéia de que tudo se faça com amor, mostra

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1 Coríntios (Novo Comentário da Bíblia) 69 estar convencido que nisso está a solução de todas as dificuldades práticas daquela igreja.

Estéfanas... Fortunato... Acaico (17); membros da comunidade cristã de Corinto, os quais haviam trazido notícias dessa igreja, e podem ter sido os portadores da carta que continha as várias perguntas a que Paulo procurou responder. Regressando, devem ser reconhecidos como auxiliares de Paulo e seus colaboradores no evangelho.

c) Saudações e oração final (16.19-24) O apóstolo é um traço de união entre os cristãos de diferentes

lugares; transmitindo saudações de um grupo para outro, dá ênfase à solidariedade que mantêm entre si. Áquila e Priscila estiveram com ele em Corinto e agora lhe fazem Companhia em Éfeso.

Ósculo santo (20). Era um método oriental de saudação, que aquela Igreja adotava. Ainda é usado, em ocasiões especiais, na Igreja Ortodoxa Oriental.

De próprio punho (21). Parece que era costume de Paulo acrescentar por último uma saudação de seu próprio punho, como para autenticar suas cartas.

Se alguém não ama ao Senhor (22). Amor pessoal a Jesus Cristo é a essência do Cristianismo. Anátema (22). Palavra grega que significa “posto de lado”, ou, com maior ênfase, “amaldiçoado”. Maranata (22). É provavelmente palavra aramaica, significando “Vem, nosso Senhor!”. A bênção final é distintamente paulina.

W. C. G. Proctor