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1 III Congresso Brasileiro de Direito de Família Ouro Preto – MG – Outubro de 2001. DIREITO SUCESSÓRIO DOS COMPANHEIROS Zeno Veloso – professor de Direito Civil na Universidade Federal do Pará e de Direito Civil e Direito Constitucional na Universidade da Amazônia – tabelião – integrante da Comissão que elaborou o Anteprojeto de Consolidação de leis de Família e Sucessões – membro fundador e Diretor Regional Norte do IBDFAM. SUMÁRIO 1. Apresentação do tema. 2. Sucessão dos cônjuges – das Ordenações Filipinas ao Código Civil de 1916. 3. Sucessão entre companheiros – Leis n os 8.971/94 e 9.278/96. 4. Sucessão dos cônjuges no novo Código Civil – direito comparado. 5. Sucessão entre companheiros no novo Código Civil – crítica. 6. Proposta de reforma legislativa. 1. Pretendo, nesta exposição, criticar o Projeto do Novo Código Civil pela solução, a meu ver avelhantada e discriminatória, que deu ao direito sucessório entre companheiros. Trata-se de um ponto que, urgentemente, ainda na fase da vacatio legis do Código, deve ser modificada, para que ele não comece a vigorar com esta mácula. Não por acaso, mas porque tudo tem a ver, dada a paridade de situações, começo fazendo uma abordagem histórica sobre o direito sucessório dos cônjuges, mostrando como a legislação in fieri regulou a matéria. 2. As Ordenações Filipinas prescreviam que se o falecido não deixou parentes até o 10 o grau da linha colateral, seria chamado à sucessão o cônjuge sobrevivente, se ao tempo da morte do outro viviam juntos, habitando a mesma casa.

1 III Congresso Brasileiro de Direito de Família Ouro ... · a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou

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III Congresso Brasileiro de Direito de Família Ouro Preto – MG – Outubro de 2001.

DIREITO SUCESSÓRIO DOS COMPANHEIROS

Zeno Veloso – professor de Direito Civil na Universidade Federal do Pará e de Direito Civil e Direito Constitucional na Universidade da Amazônia – tabelião – integrante da Comissão que elaborou o Anteprojeto de Consolidação de leis de Família e Sucessões – membro fundador e Diretor Regional Norte do IBDFAM.

SUMÁRIO

1. Apresentação do tema.

2. Sucessão dos cônjuges – das Ordenações Filipinas ao Código Civil de 1916.

3. Sucessão entre companheiros – Leis nos 8.971/94 e 9.278/96.

4. Sucessão dos cônjuges no novo Código Civil – direito comparado.

5. Sucessão entre companheiros no novo Código Civil – crítica.

6. Proposta de reforma legislativa.

1. Pretendo, nesta exposição, criticar o Projeto do Novo Código Civil pela solução, a

meu ver avelhantada e discriminatória, que deu ao direito sucessório entre

companheiros. Trata-se de um ponto que, urgentemente, ainda na fase da vacatio legis

do Código, deve ser modificada, para que ele não comece a vigorar com esta mácula.

Não por acaso, mas porque tudo tem a ver, dada a paridade de situações,

começo fazendo uma abordagem histórica sobre o direito sucessório dos cônjuges,

mostrando como a legislação in fieri regulou a matéria.

2. As Ordenações Filipinas prescreviam que se o falecido não deixou parentes até o

10o grau da linha colateral, seria chamado à sucessão o cônjuge sobrevivente, se ao

tempo da morte do outro viviam juntos, habitando a mesma casa.

2 Na Consolidação das Leis Civis, Teixeira de Freitas teve de guardar fidelidade

ao direito anterior, e estabeleceu (art. 959) que a sucessão se defere na seguinte

ordem: aos descendentes; na falta de descendentes, aos ascendentes; na falta de uns

e outros, aos colaterais até o 10o grau por Direito Civil; na falta de todos ao cônjuge

sobrevivente; ao Estado em último lugar. O art. 973 da Consolidação complementava:

“Na ordem dos cônjuges, a herança é deferida ao sobrevivente, sendo que, ao tempo

da morte, vivessem juntos habitando na mesma casa”.

Criticando essa vocação dos colaterais até o 10o grau, Clóvis Beviláqua observa

que, nesse grau, não há mais consciência da unidade da família, não há mais essa

afeição simpática dos parentes entre si, concluindo: “não se distingue mais o parente do

conterrâneo”.

E era só depois deste parente em grau afastadíssimo, deste mero “conterrâneo”,

que seria chamado o cônjuge sobrevivente à sucessão do finado. Com certeza,

pouquíssimas vezes chegou a vez do cônjuge, para suceder ab intestato, diante desta

legislação rigorosa, que, praticamente, o excluía da herança, embora devamos ter

presente que o regime legal supletivo, nessa época, era o da comunhão universal de

bens, também chamado “por carta de ametade” (Ordenações Filipinas, Liv. 4, Tít. 46

princ.; Consolidação das Leis Civis, de Teixeira de Freitas, art. 111; Decreto n. 181, de

1890, art. 57; Código Civil de 1916, art. 258, caput, na redação original).

No começo do século XX, ocorreu uma notável alteração quanto à ordem da

vocação hereditária, invertendo-se a posição do cônjuge e dos colaterais, ficando o

cônjuge sobrevivente em terceiro lugar, depois dos descendentes e dos ascendentes, e

os colaterais em quarto. A mudança foi determinada pelo Dec. no 1.839, de 31 de

dezembro de 1907 (conhecido como Lei Feliciano Penna, em homenagem ao seu autor,

senador mineiro).

Além disto, a Lei Feliciano Penna limitou o chamamento dos colaterais ao 6o

grau, o que, na época, foi considerado uma inovação importante.

O Código Civil de 1916 manteve as soluções da Lei Feliciano Penna, expondo,

no art. 1.603, a ordem da vocação hereditária, afirmando, no art. 1.611, que à falta de

descendentes ou ascendentes será deferida a sucessão ao cônjuge sobrevivente, se,

ao tempo da morte do outro, não estavam desquitados (após a Lei do Divórcio, o

3 dispositivo passou a dizer: “se não estava dissolvida a sociedade conjugal”). O art.

1.612, em sua versão original, previa: “Se não houver cônjuge sobrevivente, ou ele

incorrer na incapacidade do artigo 1.611, serão chamados a suceder os colaterais até o

sexto grau”. Este art. 1.612 foi sucessivamente alterado: o decreto-lei no 1.907, de

26/12/1939, limitou o direito hereditário dos colaterais ao 2o grau (irmãos); o dec.-lei no

8.207, de 22/11/1945, determinou que a vocação hereditária dos colaterais ia até o 3o

grau (tios, sobrinhos); por último, o dec.-lei no 9.461, de 15/07/1946, fixou a vocação

dos colaterais até o 4o grau (tio-avô, sobrinho-neto, primos).

Clóvis Beviláqua pondera que, unidos pelo mais íntimo dos laços, pela comunhão

de afetos e de interesse, era uma necessidade moral indeclinável conceder, ao cônjuge

sobrevivo, direito sucessório preferente ao dos colaterais, embora achasse que o

Código devia ter ido um pouco além. Em comentários ao art. 1.603, o civilista emérito

propõe: “Em rigor, o cônjuge supérstite deveria fazer parte das duas primeiras classes

de sucessíveis, salvo se pelo regime do casamento lhe coubesse levantar a metade do

patrimônio da família, porque, então, já estaria, economicamente, amparado” (Código

Civil, 3a ed., 1933, Francisco Alves, v. VI, p. 59).

Caio Mário da Silva Pereira (Instituições de Direito Civil, 11a ed., 1997, Forense,

v. VI, no 447), na mesma linha, expõe que conferido ao cônjuge o direito sucessório

preferente aos colaterais, de nada lhe valeria em face da liberdade de testar

reconhecida ao outro cônjuge: “Formando embora uma unidade psicofísica, não tem

qualquer deles meios de evitar que a disposição de última vontade, ainda que mal

dirigida e mal inspirada, conduza a outras mãos os haveres matrimoniais. Somente a

qualificação do cônjuge na condição de herdeiro necessário pode defender a sua quota

reservatária”.

Pelo visto, o cônjuge sobrevivente, no Código de 1916, é herdeiro legítimo, mas

facultativo, não necessário, ocupando o terceiro lugar na ordem da vocação hereditária.

Todavia, para melhorar a situação da viúva e do viúvo, atendendo a uma aspiração

generalizada no corpo social, a Lei no 4.121, de 27/08/1962 (Estatuto da Mulher

Casada), acrescentou dois parágrafos ao aludido art. 1.611, prevendo a sucessão do

cônjuge em usufruto e no direito real de habitação. É nítido o caráter protetivo e

assistencial da inovação, merecedora dos maiores aplausos, e, no que tange à

4 sucessão usufrutuária, parece ter raiz longínqua nas Novelas 53 e 117, de Justiniano,

do séc. VI de nossa Era, quando o Imperador garantiu à viúva pobre e sem dote o

direito de concorrer com os herdeiros do de cujus, para o fim de ser beneficiada com

uma parte do usufruto dos bens da herança (quarta uxória).

Assim, se o regime do casamento não era o da comunhão universal, terá direito

o cônjuge sobrevivente, enquanto durar a viuvez, ao usufruto da quarta parte dos bens

do cônjuge falecido, se houver filhos deste ou do casal, e à metade, se não houver

filhos, embora sobrevivam ascendentes do de cujus (art. 1.611, § 1o).

Estabeleceu o legislador de 1962, portanto, concorrência do cônjuge supérstite

com os descendentes e com os ascendentes do falecido, competindo a nua-

propriedade desses parentes na linha reta com o usufruto vidual. E isto em todos os

regimes matrimoniais, exceto no da comunhão universal de bens.

A jurisprudência, todavia, tem moderado o texto legal, conferindo-lhe uma

interpretação teleológica e construtiva. Já se decidiu, por exemplo, que o cônjuge

sobrevivente fica excluído do benefício se foi contemplado em testamento do de cujus,

com usufruto ou propriedade de bens, em quantia igual ou superior àqueles sobre os

quais recairia o usufruto legal (RT, 437/204; 484/73; 713/219). O STJ, confirmando

decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, deixou assentado: “Reconhecida a

comunhão dos aqüestos, não tem a viúva-meeira, ainda que casada sob regime diverso

do da comunhão universal de bens, direito ao usufruto vidual previsto no art. 1.611, §

1o, do Código Civil. Precedente do STF. Recurso Especial não conhecido” (RSTJ,

64/210; RT, 710/178).

Se o regime de bens era o da comunhão universal, afastado, portanto, o usufruto

vidual, o cônjuge sobrevivente, enquanto viver e permanecer viúvo, sem prejuízo da

participação que lhe caiba na herança, exercerá o direito real de habitação

relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único bem

daquela natureza a inventariar (Código Civil de 1916, art. 1.611, § 2o).

São necessários dois requisitos para que o direito real de habitação seja

atribuído: o casamento sob o regime da comunhão universal de bens – sempre critiquei

que o benefício tivesse tal restrição, entendendo que devia ser instituído

independentemente do regime de bens do casamento –, e que o espólio tenha somente

5 este imóvel residencial. Portanto, se no inventário houver outro ou outros bens

residenciais, o cônjuge sobrevivente não exercerá o direito real de habitação.

3. Com o advento da Constituição de 1988, entrou em vigor seu art. 226, § 3o, que

enuncia: “Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o

homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em

casamento”.

Convém esclarecer que a Constituição, ao sinalizar que a lei deve facilitar a

conversão da união estável em casamento, não está estabelecendo hierarquia,

precedência ou preferência entre essas duas formas de constituição de família. Uma

conclusão neste sentido não tem base histórica ou sociológica e se choca com os

fundamentos, o todo orgânico, o próprio ideário, liberal, igualitário, solidário e

democrático da Carta Magna. O que ela quer, simplesmente, é que, se os conviventes

resolverem casar, que este objetivo seja facilitado, dispensando-se os que já vivem

juntos, em união estável, como entidade familiar, de algumas exigências que são

prescritas para os que não exibem esta condição.

Em nível infraconstitucional, regulando e explicitando o estatuído na Carta

Magna, vigoram no país duas leis: Lei n. 8.971, de 29 de dezembro de 1994, e Lei n.

9.278, de 10 de maio de 1996. A primeira tratou da sucessão entre companheiros; a

segunda, em complemento, previu o direito real de habitação.

É preciso observar, preliminarmente, que o legislador definiu o direito sucessório

entre companheiros à imagem e semelhança do direito sucessório dos cônjuges. A

aproximação é notória.

Assim, na forma do art. 2o da Lei n. 8.971/94:

I – o (a) companheiro (a) sobrevivente terá direito, enquanto não constituir nova união, ao usufruto de quarta parte dos bens do de cujus, se houver filhos deste ou comuns; II – o (a) companheiro (a) sobrevivente terá direito, enquanto não constituir nova união, ao usufruto da metade dos bens do de cujus, se não houver filhos, embora sobrevivam ascendentes; III – na falta de descendentes e de ascendentes, o (a) companheiro (a) sobrevivente terá direito à totalidade da herança.

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Por sua vez, o art. 7o, parágrafo único, da Lei n. 9.278/96 dispõe que, dissolvida

a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de

habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao

imóvel destinado à residência da família.

Conforme a situação, o companheiro sobrevivente sucede em propriedade,

usufruto e habitação, copiando-se o regime do Código Civil de 1916 para o cônjuge

supérstite, com uma importante diferença, todavia: o companheiro sobrevivente pode

cumular os direitos de usufruto e de habitação; já a viúva ou o viúvo terá um benefício

ou outro, não podendo somá-los, tudo dependendo do regime de bens do casamento

(cf. §§ 1o e 2o do art. 1.611 do Código Civil de 1916).

Embora tenha participado da luta pelo reconhecimento das uniões familiares

constituídas fora do casamento, que teve como paladino o saudoso Nélson Carneiro, e

aplaudido as soluções constitucionais e legais a respeito do tema, não posso deixar de

registrar (como já fiz em meu livro, União Estável, Editora Cejup, Belém, 1997) que o

usufruto legal e o direito real de habitação foram concedidos aos companheiros com

maior amplitude, sem os requisitos e restrições com que foram conferidos aos cônjuges,

sendo estes tratados, afinal, de forma menos liberal e benevolente, e isto, sem dúvida,

é inadmissível.

4. O novo Código Civil (que designarei, em seguida, pelas iniciais C.C.), ainda na

fase de vacatio legis, seguindo uma tendência universal, melhorou substancialmente a

posição do cônjuge na sucessão legítima, considerando-o, inclusive, herdeiro

necessário, com os descendentes e ascendentes (art. 1.845). Segue-se a esteira do

BGB, art. 2.303; do Código Civil espanhol, art. 807; do Código Civil argentino, art.

3.593; do Código Civil italiano (art. 536, com a Reforma de 1975) e do Código Civil

português (art. 2.157, com a Reforma de 1977), valendo chamar a atenção de que no

art. 1.884 do Projeto primitivo, elaborado em 1899 pelo venerando Clóvis Beviláqua, já

era considerado o cônjuge herdeiro necessário, o que ocorreu, também, no art. 785 do

Anteprojeto de Código Civil, apresentado em 1963, por Orlando Gomes. Segundo o art.

1.846 do C.C., pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens

da herança, constituindo a legítima.

7 Porém, o C.C. não erigiu o cônjuge à condição de herdeiro necessário, apenas,

mas a de herdeiro necessário privilegiado, pois concorre com os descendentes e com

os ascendentes do de cujus, portanto, ora está na 1a classe dos herdeiros legítimos,

concorrendo com os descendentes, ora na 2a classe sucessória, concorrendo com os

ascendentes, e ocupa, sozinho, a 3a classe dos sucessíveis. Esta posição sucessória

reconhecida ao cônjuge sobrevivente é um dos grandes avanços do novo Código Civil,

que edita:

Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; II – aos ascendentes, em concorrência com cônjuge; III – ao cônjuge sobrevivente; IV – aos colaterais.

A remissão feita no inciso I ao art. 1.640, parágrafo único, não está correta,

devendo ser ao art. 1.641. Observe-se que somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge

sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente,

nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa

convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente (C.C., art. 1.830). No

direito comparado, apresentam restrições semelhantes à vocação hereditária do

cônjuge o art. 755 do Código Civil francês; o art. 1.933 do BGB; o art. 585 do Código

Civil italiano; o art. 945 do Código Civil espanhol; os arts. 3.574 e 3.575 do Código Civil

argentino; o art. 2.133, 3, do Código Civil português.

A exclusão da herança do cônjuge sobrevivente que estava separado de fato do

falecido constava nas Ordenações Filipinas (Livro 4, Tít. 94), e Teixeira de Freitas, no

art. 973 da Consolidação das Leis Civis, consignou que, na ordem dos cônjuges, a

8 herança será deferida ao sobrevivente, desde que, ao tempo da morte, “vivessem

juntos habitando a mesma casa”, como vimos antes.

É interessante registrar que, diante do estatuído no L. 4, Tít. 94, das

Ordenações, havia escritores e praxistas entendendo que, mesmo estando divorciados

os cônjuges (e as questões de divórcio pertenciam ao Juízo Eclesiástico), o sobrevivo

devia herdar do falecido, se este é que tinha dado causa e era responsável pela

separação (Barbosa, Portugal, Mello Freire, Coelho da Rocha, Gouvea Pinto). Contra

esta doutrina insurgiram-se Liz Teixeira e o nosso Teixeira de Freitas (v. nota 25 ao art.

973 da Consolidação das Leis Civis). Clóvis Beviláqua opina que aqueles autores, que

pretenderam dar uma interpretação extensiva, beneficiando o cônjuge inocente, não

tinham razão, “em face da letra claríssima da Ordenação citada” (Direito das

Sucessões, 5a ed., 1955, Francisco Alves, § 47, p. 118). No entanto, aquela

interpretação construtiva dos antigos praxistas, embora sem corresponder ao texto

expresso das Ordenações Filipinas, de 1603, como observa Beviláqua, acabou

ressurgindo, e sendo de alguma forma aproveitada no novo Código Civil brasileiro (art.

1.830), já no século XXI.

O C.C. não menciona os casos de o vínculo matrimonial ter sido dissolvido pelo

divórcio, ou de ter havido a anulação ou a declaração de nulidade do casamento. Nem

precisava! Nessas hipóteses, sem dúvida, nem há cônjuge, que pudesse ser chamado

à sucessão, embora se deva alertar para a controvertida questão do casamento

putativo (C.C., art. 1561; Código Civil de 1916, art. 221). Se a anulação ou a declaração

de nulidade do casamento deu-se após o falecimento do cônjuge, estando o cônjuge

sobrevivente de boa-fé, este não perde a qualidade de herdeiro, pois a sentença

anulatória não tem efeito retroativo. Em caso de bigamia – contrariamente ao que

dispõe o art. 584, 2a alínea, do Código Civil italiano –, a maioria da doutrina brasileira

opina que a herança será dividida, em partes iguais, entre o cônjuge legítimo e o

cônjuge putativo. A matéria é complexa, extensa, desbordando dos limites desta

explanação, devendo ser consultados: Virgílio de Sá Pereira (Direito de Família, 2a ed.,

1959, Freitas Bastos, p. 353); Yussef Said Cahali (O Casamento Putativo, 2a Ed., 1979,

RT, n. 63, p. 136); Alípio Silveira (O Casamento Putativo no Direito Brasileiro, 1972,

Universitária de Direito, pp. 137 e 158); Pontes de Miranda (Tratado de Direito Privado,

9

2a ed., Borsoi, t. VIII, § 827, p. 24), que sentencia: “Se morre o cônjuge bígamo antes

de se inscrever a sentença constitutiva da nulidade do casamento, ou de anulação, há

duas mulheres, ou dois maridos, com direito à sucessão, desde que se trate de

casamento putativo”.

A concorrência do cônjuge sobrevivente com os descendentes vai depender do

regime de bens do casamento, não acontecendo se o regime foi o da comunhão

universal, ou o da separação obrigatória. Se o regime foi o da comunhão parcial, a

concorrência dar-se-á se o autor da herança houver deixado bens particulares (C.C.,

art. 1.829, I).

Admitida a concorrência do cônjuge sobrevivente com os descendentes do de

cujus, observando o que acima foi exposto, caberá a ele quinhão igual ao dos que

sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte de herança,

se for ascendente dos herdeiros com que concorrer (C.C., art. 1.832). Esta solução se

inspirou no art. 2.139, n. 1, do Código Civil português.

Pelo exposto, se o falecido deixou até três filhos, a partilha se faz por cabeça,

dividindo-se a herança, em partes iguais, entre os filhos e o cônjuge. No caso de o de

cujus possuir quatro filhos, ou mais, e tendo de ser reservada a quarta parte da

herança à viúva ou ao viúvo, os filhos repartirão o restante. Por exemplo: o autor da

herança tem quatro filhos. Neste caso, o cônjuge sobrevivente fica com um quarto da

herança, e os três quartos restantes são destinados aos quatro filhos.

Mas esta reserva hereditária mínima (1/4), conferida ao cônjuge sobrevivente,

pressupõe que este cônjuge seja também ascendente dos herdeiros com que

concorrer, requisito que não é previsto no art. 2.139, n. 1, do Código Civil lusitano. Se o

de cujus deixou descendentes, dos quais o cônjuge sobrevivente não é ascendente,

será obedecida a regra geral: ao cônjuge sobrevivente caberá um quinhão igual ao dos

descendentes que sucederem por cabeça.

E se o falecido possuía filhos com o cônjuge sobrevivente, mas tinha-os,

também, com outra pessoa? Quid juris? É hipótese que o C.C. não resolveu,

expressamente, e que a doutrina e jurisprudência deverão esclarecer. Neste caso, o

cônjuge sobrevivente não é ascendente de todos os herdeiros com que está

concorrendo. Parece que, assim sendo, a quota hereditária mínima (1/4) não é cabível.

10Na falta de descendentes, são chamados à sucessão os ascendentes, em

concorrência com o cônjuge sobrevivente (C.C., art. 1.836). Na concorrência com os

ascendentes, já não se apresentam aquelas restrições decorrentes do regime de bens

do casamento (C.C., art. 1.829, I). Mas a quota hereditária é variável: concorrendo com

ascendente em primeiro grau, ao cônjuge tocará um terço da herança; caber-lhe-á a

metade desta se houver um só ascendente, ou se maior for aquele grau (C.C., art.

1.837).

Em falta de descendentes e ascendentes, será deferida a sucessão por inteiro ao

cônjuge sobrevivente (C.C., art. 1.838). Pelo sistema do novo Código Civil, como vimos,

o cônjuge já concorre com os descendentes (art. 1.832) e com os ascendentes (art.

1.837) do de cujus. E não havendo tais parentes na linha reta, o cônjuge sobrevivente é

chamado à totalidade da herança, excluindo, portanto, os parentes colaterais. Este art.

1.838 corresponde ao art. 1.611, caput, do Código Civil de 1916, que copiou o art. 1o da

Lei Feliciano Penna, de 1907. Neste sentido, dispõem o art. 1.931, al. 2, do BGB; o art.

944 do Código Civil espanhol; o art. 2.144 do Código Civil português; o art. 3.572 do

Código Civil argentino. O Código Civil italiano, todavia, art. 582, redatado por força da

Reforma do Direito de Família, de 1975, enuncia que, mesmo não havendo

descendentes, nem ascendentes, o cônjuge concorre com irmãos e irmãs do falecido,

embora tenha direito a dois terços da herança. Antes desta Reforma, o cônjuge

concorria com colaterais até o 4o grau.

Além desta sucessão em propriedade, do qual o cônjuge saiu em posição

privilegiada, como vimos, o C.C. estatui, ainda, o direito real de habitação:

Art. 1.831. Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar.

O art. 1.611, § 2o, do Código Civil de 1916 institui o direito real de habitação para

o cônjuge sobrevivente. Todos apontam o caráter assistencial desse direito. O

legislador quer manter o status, as condições de vida do viúvo ou da viúva, garantir-lhe

o teto, a morada. Porém, não há razão para que o favor legal seja mantido se o cônjuge

11sobrevivente constituir nova família. O cônjuge já aparece bastante beneficiado no

novo Código. Não parece justo que ainda continue exercendo o direito real de habitação

sobre o imóvel em que residia com o falecido, se veio a fundar nova família, mormente

se o dito bem era o único daquela natureza existente no espólio. O interesse dos

parentes do de cujus deve, também, ser observado. Enfim, o art. 1.831 do C.C. precisa

ser modificado, para prever que o direito personalíssimo do cônjuge sobrevivente, neste

caso, é resolúvel, extinguindo-se, se a viúva ou o viúvo voltar a casar ou constituir união

estável.

Para efeito comparativo, façamos uma ligeira visita ao direito português. No

Código Civil desse país, Livro do Direito de Família, Título V – Dos Alimentos, Capítulo

II – Disposições Especiais, há o art. 2.018, que trata do apanágio do cônjuge sobrevivo.

Falecendo um dos cônjuges, o viúvo tem direito a ser alimentado pelos rendimentos dos

bens deixados pelo de cujus. São obrigados, neste caso, à prestação de alimentos os

herdeiros ou legatários a que tenham sido transmitidos os bens, segundo a proporção

do respectivo valor. O art. 2.019 edita que cessa o direito a alimentos se o alimentado

contrair novo casamento ou se tornar indigno do benefício pelo seu comportamento

moral.

O direito de apanágio independe da posição sucessória do cônjuge sobrevivente,

e pressupõe a necessidade que possa ter a viúva ou o viúvo a alimentos.

Já no Direito das Sucessões, Capítulo X – Partilha da Herança, Seção II –

Atribuições Preferenciais, aditada pelo Dec.-lei no 496, de 25 de novembro de 1977, o

art. 2.103-A do Código Civil português determina que o cônjuge sobrevivo tem direito a

ser encabeçado, no momento da partilha, no direito de habitação da casa de morada da

família e no direito de uso do respectivo recheio, devendo tornas aos co-herdeiros se o

valor recebido exceder o da sua parte sucessória e meação, se a houver. O art. 2.103-C

considera recheio o mobiliário e demais objetos ou utensílios destinados ao cômodo,

serviço e ornamentação da casa.

Veja-se que se trata de mera atribuição preferencial, por ocasião da partilha. O

direito de habitação não é um benefício a mais; não aumenta o quinhão do cônjuge,

tanto assim que este tem de pagar tornas aos co-herdeiros por ter ficado com tal direito,

12se o valor do mesmo exceder o da sua parte na sucessão do finado, acrescido da

meação, se a houver.

Este direito de habitação da casa de morada da família é um direito real de gozo

sobre coisa alheia. Se a casa integrar a meação ou o quinhão hereditário do cônjuge, a

situação já estará resolvida: o cônjuge é dono, e não há que se falar em direito de

habitação. José de Oliveira Ascensão explica: “É categórico o artigo 2.103-A, que não

atribui a casa ou o recheio, mas o direito de habitação da casa de morada ou o direito

de uso do recheio. Por isso, se na partilha a titularidade destes bens pertencer ao

cônjuge, dá-se a consunção dos direitos de uso e habitação, pelo que não haverá que

entrar então em conta com estas atribuições” (Direito Civil-Sucessões, s/d, Coimbra, no

244, p. 486).

5. Voltando ao direito brasileiro, e tratando, diretamente, do tema desta exposição,

verificamos que no Projeto de Código Civil, aprovado, com emendas, em 1984, pela

Câmara dos Deputados, não havia nenhum dispositivo que regulasse a sucessão entre

companheiros. Quando tramitava no Senado, o senador Nélson Carneiro apresentou a

emenda n. 358, claramente inspirada no art. 668 do Projeto Orlando Gomes (revisto por

Orosimbo Nonato e Caio Mário da Silva Pereira), com vistas a suprir a lacuna. A

emenda tem data anterior à promulgação da Constituição de 1988 e, obviamente, à

entrada em vigor das Leis ns. 8.971/94 e 9.278/96. O relator-geral, senador Josaphat

Marinho, deu parecer favorável à emenda, mas apresentou subemendas, e o texto foi

aprovado pelo Senado, na forma seguinte:

Art. 1.802. Na vigência da união estável, a companheira, ou o companheiro, participará da sucessão do outro, nas condições seguintes: I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma cota equivalente à que por lei for atribuída ao filho; I – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles; III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;

13IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.

Em obediência ao art. 65, parágrafo único, da Constituição Federal, o Projeto de

Código Civil foi enviado, em 16 de dezembro de 1997, à Câmara dos Deputados (Casa

iniciadora). O relator-geral na Câmara, deputado Ricardo Fiuza, apresentou proposição

com vistas a mudar o caput do artigo aprovado pelo Senado, para inserir a locução

“quanto aos bens adquiridos na vigência da união estável”, e não ofereceu qualquer

modificação aos quatro incisos do mesmo artigo, aprovados pelo Senado. O caput do

dispositivo, que teve a numeração alterada, ficou assim:

Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos na vigência da união estável, nas condições seguintes: I – (............); II – (............); III – (............); IV – (............).

Inicialmente, é estranhável a colocação do art. 1.790 e seus incisos, regulando a

sucessão entre companheiros, no Capítulo denominado “Disposições Gerais”, da

sucessão em geral. Numa conclusão que poderia ter sido do conselheiro Acácio,

personagem de Machado de Assis, não devia o art. 1.790 estar nas “Disposições

Gerais” porque de disposições gerais não trata. O art. 1.790 tinha de ficar no Capítulo

que regula a ordem da vocação hereditária. Mas este é um problema menor. O art.

1.790 merece censura e crítica severa porque é deficiente e falho, em substância.

Significa um retrocesso evidente, representa um verdadeiro equívoco.

Quando o senador Nélson Carneiro apresentou a emenda que, em linhas gerais,

resultou no art. 1.790, era outra a realidade social. Nem mesmo a Constituição de 1988

estava em vigor. A longa tramitação do Projeto, as transformações sociais e as

mudanças legislativas que ocorreram no período, enfim, a evolução e o avanço

verificados no direito positivo com relação à matéria tornaram aquela emenda – liberal e

progressista no tempo em que apareceu – desatualizada e precária na época presente.

14Vimos que as Leis ns. 8.971/94 e 9.278/96 regularam o direito sucessório entre

companheiros imitando as soluções já existentes para os cônjuges. Mas as referidas

leis não apresentaram para os conviventes alguns requisitos e limitações que, para as

mesmas hipóteses, vigoravam para as pessoas casadas, previstos não só no artigo

1.611 do Código Civil de 1916, como indicados na jurisprudência que se formou em

torno da matéria, inclusive dos Tribunais superiores.

Muitos autores afirmaram que tal discrepância era desarrazoada, não havendo

base para que o companheiro sobrevivente fique numa situação mais benéfica e

vantajosa do que a do cônjuge supérstite. A doutrina propugnava por uma alteração

legislativa que estabelecesse o equilíbrio, a paridade das situações. O conserto

dependia de uma moderada intervenção; o ajuste carecia de pequena modificação.

Contrariando estas expectativas, o C.C. promove um recuo notável. O panorama

foi alterado, radicalmente. Deu-se um grande salto para trás. Colocou-se o

companheiro em posição infinitamente inferior com relação à que ostenta o cônjuge.

A sucessão do companheiro, para começar, limita-se aos bens adquiridos na

vigência da união estável. Quanto aos bens adquiridos onerosamente, durante a

convivência, o companheiro já é meeiro, conforme o art. 1.725 do C.C., inspirado no art.

5o da Lei n. 9.278/96, e que diz: “Na união estável, salvo convenção válida entre os

companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da

comunhão parcial de bens”.

Não se deve confundir meação com direito hereditário. A meação decorre de

uma relação patrimonial – condomínio, comunhão –, existente em vida dos

interessados, e é estabelecida por lei ou pela vontade das partes. A sucessão

hereditária tem origem na morte, e a herança é transmitida aos sucessores conforme as

previsões legais (sucessão legítima) ou a vontade do hereditando (sucessão

testamentária).

Alguém pode ser meeiro e herdeiro, como pode ser meeiro sem ser herdeiro, ou

herdeiro sem ser meeiro, e estas posições jurídicas têm causa diversa, são diferentes, e

se baseiam em motivos e regras distintas.

Se os bens são comuns, o companheiro sobrevivente tem direito à meação. Mas

este direito não tem origem na morte do outro convivente. O meeiro já é dono de sua

15parte ideal antes da abertura da sucessão, por outro título. Trata-se de situação que

decorre do Direito de Família, não do Direito das Sucessões. A meação do falecido é

que vai ser objeto da sucessão, juntamente com outros bens, de propriedade exclusiva,

se houver.

Restringir a incidência do direito sucessório do companheiro sobrevivente aos

bens adquiridos pelo de cujus na vigência da união estável não tem nenhuma razão,

não tem lógica alguma, e quebra todo o sistema, podendo gerar conseqüências

extremamente injustas: a companheira de muitos anos de um homem rico, que possuía

vários bens na época em que iniciou o relacionamento afetivo, não herdará coisa

alguma do companheiro, se este não adquiriu outros bens durante o tempo da

convivência. Ficará esta mulher – se for pobre – literalmente desamparada, mormente

quando o falecido não cuidou de beneficiá-la em testamento, ou foi surpreendido pela

morte antes de outorgar o testamento que havia resolvido fazer. O problema se mostra

mais grave e delicado se considerarmos que o C.C. nem fala no direito real de

habitação sobre o imóvel destinado à residência da família, ao regular a sucessão entre

companheiros, deixando de prever, em outro retrocesso, o benefício já estabelecido no

art. 7o, parágrafo único, da Lei n. 9.278/96.

Uma questão que poderá surgir, futuramente, é a de que, mesmo com o início da

vigência do novo Código Civil, continuaria vigorando o parágrafo único do art. 7o da Lei

no 9.278/96, que confere o direito real de habitação ao companheiro sobrevivente.

Realmente, este preceito não é incompatível com qualquer norma do novo Código,

podendo-se argumentar que ele sobreviverá, até porque está na linha determinada pela

Constituição Federal, de reconhecimento e proteção à união estável, como entidade

familiar paralela à que é fundada no matrimônio.

A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja

com ela incompatível, ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei

anterior. O C.C., art. 2.046, edita: “Revogam-se a Lei no 3.071, de 1o de janeiro de 1916

– Código Civil, a Parte Primeira do Código Comercial, Lei no 556, de 25 de junho de

1850, e toda a legislação civil e mercantil abrangida por este Código, ou com ele

incompatível, ressalvado o disposto no presente Livro”.

16O Código Civil tem de ser abrangente, mas não pode ser exclusivo. Como se

sabe, o Código não contém toda a legislação civil; não é – e nem que o quisesse seria –

o estatuto completo da vida privada. Ao contrário, vivemos a “Idade da descodificação”,

para usar o título sugestivo do livro de Natalino Irti. Sem contar a legislação

extravagante, proliferam, ao lado dos Códigos, microssistemas legais (cf. Orlando

Gomes, Novos Temas de Direito Civil, 1983, Forense, cap. 3, p. 40; Francisco Amaral,

Direito Civil – Introdução, 2a ed., 1998, Renovar, p. 148, que cita os microssistemas das

sociedades por ações, o estatuto da terra, o do mercado de capitais, o da legislação

bancária, o do inquilinato, o da responsabilidade civil, o dos direitos autorais, o dos

seguros, o da propriedade industrial, o da proteção ao consumidor).

No art. 2.046, o novo Código revoga expressamente o anterior, toda a legislação

civil que abrange , ou que com ele seja incompatível. Porém, a matéria que não foi nele

inteiramente regulada, ou que com ele não é inconciliável, continua vigorando, e o

princípio já estava previsto no Digesto (Liv. I, tít. III, frags. 26 e 28): posteriores legis ad

priores pertinent, nisi contrariae sint.

A própria Constituição, que é a norma superior, o comando supremo, que

confere o fundamento de validade a todo o ordenamento jurídico, não desconhece ou

revoga, automaticamente, a legislação ordinária anterior. Ao contrário, esta continua

vigorando, se não for incompatível com a nova Constituição, que lhe confere novo

fundamento de validade. Hans Kelsen explica o fenômeno, em passagem magistral: o

que existe não é uma criação de Direito inteiramente nova, mas recepção de normas

de uma ordem jurídica por uma outra (Teoria Pura do Direito, 4a ed., 1976, Coimbra,

trad. de João Baptista Machado, no 34, p. 290).

Quanto ao direito real de habitação, beneficiando o companheiro sobrevivente,

embora o novo Código Civil não tenha se referido ao assunto, deixando de repetir o

que estatui a Lei no 9.278/96, não havendo, todavia, revogação expressa, nem

ocorrendo contradição, é possível, teoricamente, a subsistência da lei especial e da lei

geral posterior, regendo o mesmo assunto.

Mas não se pense que o caso será resolvido, facilmente. A revogação tácita ou

indireta representa um dos mais tormentosos problemas que o intérprete tem de

enfrentar. Sobre a questão, basta advertir que se pode indagar se o C.C. apresenta,

17mesmo, uma omissão, se houve um esquecimento, se se trata, realmente, de uma

lacuna por imprevisão do legislador, ou estamos diante de uma exclusão intencional, de

um “silêncio eloqüente”, o beredtes Schweigen do direito alemão? (cf. Karl Larenz,

Metodologia da Ciência do Direito, 3a ed., 1997, trad. José Lamego, Fundação Calouste

Gulbenkian, Lisboa, p. 525).

Observada aquela criticada limitação quanto aos bens que serão objeto da

sucessão, o C.C., art. 1.790, I, dispõe que, se concorrer o companheiro sobrevivente

com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente a que por lei for atribuída ao

filho. Se concorrer com descendentes só do autor da herança, diz o art. 1.790, II, tocará

ao companheiro sobrevivente a metade do que couber a cada um daqueles. Se

concorrer com outros parentes sucessíveis (ascendentes, colaterais), terá direito a um

terço da herança (C.C., art. 1.790, III). Finalmente, não havendo parentes sucessíveis,

isto é, se o de cujus não tiver descendentes, nem ascendentes, nem colaterais até o 4o

grau, o companheiro sobrevivente terá direito à totalidade da herança (C.C., art. 1790,

IV).

A “totalidade da herança”, mencionada no inciso IV do art. 1.790, é da herança a

que está autorizado o companheiro sobrevivente concorrer. Mesmo no caso extremo de

o falecido não ter parentes sucessíveis, cumprindo-se a determinação do caput do art.

1.790, o companheiro sobrevivente só vai herdar os bens que tiverem sido adquiridos

na vigência da união estável. Se o de cujus possuía outros bens, adquiridos antes de

iniciar a convivência, e não podendo esses bens integrar a herança do companheiro

sobrevivente, passarão para o Município ou para o Distrito Federal, se localizados nas

respectivas circunscrições, ou à União, quando situados no Território Federal (C.C., art.

1.844). Não há quem possa, em sã consciência, defender ou sustentar esta decisão

legal, que chega às raias do absurdo. O art. 1.790 do C.C. é um dispositivo cruel e

inconseqüente.

Quando o art. 1.790, caput, foi emendado, restringindo a herança do

companheiro sobrevivente aos bens adquiridos durante a união estável, deviam ter sido

reescritos e adaptados à nova ordem os incisos do referido artigo e outras disposições

que regulam a matéria.

18 O operador do Direito tem de compreender a sucessão dos companheiros

diante do comando imperativo, da regra geral do art. 1.790, caput, que subordina todas

as demais prescrições a respeito do tema. A não ser que, para escapar da esdrúxula e

injusta solução do novo Código Civil, dê-se ao assunto um entendimento que desborde

da interpretação – mesmo construtiva –, que é admissível e até louvável, ingressando

no campo da criação normativa, o que ao intérprete é vedado, ao próprio juiz é proibido,

porque estará tomando o lugar e exercendo função do Legislativo, praticando um

excesso, uma usurpação, um abuso de poder.

O C.C., art. 1.839, admite o chamamento para a sucessão dos colaterais até o

quarto grau. No Projeto de Código Civil (revisto) de Orlando Gomes, apresentado em

1965, art. 698, ficou estabelecido que na falta de cônjuge sobrevivente – e não havendo

descendentes, nem ascendentes – seriam chamados a suceder os parentes colaterais

até o terceiro grau. Fico com a opinião do professor Sílvio Rodrigues, de que a vocação

dos colaterais até o 4o grau revela uma generosidade do legislador, e a sucessão dos

colaterais não deve ir além do 3o grau (Direito Civil, 24a ed., 2001, Saraiva, v. 7, n. 41,

p. 83). Não obstante, o Código Civil português (art. 2.147), o espanhol (art. 954), o

argentino (art. 3.585), admitem a vocação dos colaterais até o 4o grau. No Código Civil

italiano (art. 572), o chamamento da parentela vai até o 6o grau. O Código Civil francês,

de 1804, na versão original de seu art. 755, afirmava que não sucedem os parentes

além do 12o grau. A Lei de 31 de dezembro de 1917 modificou este dispositivo, cuja

primeira alínea, agora, prevê: “Les parents collatéraux au-delà du sixième degré ne

succèdent pas, à l’exception, toutefois, des descendants des frères et soeurs du défunt”

= “Os parentes colaterais além do sexto grau não sucedem, com exceção, todavia, dos

descendentes dos irmãos e irmãs do defunto”. Na segunda alínea, o art. 755 do Code

Napoléon edita: “Não obstante, os parentes colaterais sucedem até o décimo-segundo

grau, quando o defunto não era capaz de testar e não estava sujeito a interdição civil”.

Tenho acompanhado, há mais de vinte e cinco anos, desde o começo de sua

tramitação, na Câmara dos Deputados, o Projeto que redundou no Código Civil

brasileiro, de 2001. Escrevi até um livro sobre ele, intitulado Emendas ao Projeto de

Código Civil (Editora Grafisa, Belém, 1985). Creio que o novo Código, sem ser perfeito,

que nenhuma obra humana é acabada e completa, atende às aspirações da

19comunidade jurídica e de toda a gente. Devemos nos orgulhar do resultado. E o

mérito não é somente dos que redigiram o Anteprojeto, eminentes juristas brasileiros

(alguns deles já tendo partido desta vida terrena), mas, igualmente, de muitos

deputados federais e senadores que, ao longo do tempo em que a proposição foi

discutida no Congresso Nacional, apresentaram centenas de emendas, com vistas a

melhorá-la, atualizá-la, especialmente diante das grandes transformações e avanços

ditados pela Constituição de 1988.

Sinto-me à vontade, portanto, para reagir contra o modo com que foi disciplinado

o direito sucessório dos que vivem em união estável.

Tanto é entidade familiar a que se funda no casamento, como é entidade familiar

a que resulta da união estável, quanto é entidade familiar a comunidade formada por

qualquer dos pais e seus descendentes (C.F., art. 226, §§ 3o e 4o).

As famílias constituídas por essas formas têm a mesma dignidade, a mesma

importância, são merecedoras de igual respeito, consideração, acatamento. Acabou-se

o tempo em que, com base em preconceitos aristocráticos, concepções reacionárias,

passadistas, e argumentos repletos de hipocrisia, as famílias eram classificadas – como

os produtos nas prateleiras das mercearias – em famílias de primeira classe, de

segunda classe, e, até, de classe nenhuma. O jurista precisa ter gravada, na alma e no

coração, a advertência de Virgílio de Sá Pereira, de que a família é um fato natural, não

é criada pelo legislador, como o jardineiro não cria a primavera, valendo transcrever as

sábias lições do saudoso mestre pernambucano: “Agora, dizei-me: que é que vedes

quando vedes um homem e uma mulher, reunidos sob o mesmo teto, em torno de um

pequenino ser, que é o fruto do seu amor? Vereis uma família. Passou por lá o juiz, com

a sua lei, ou o padre, com o seu sacramento? Que importa isto? O acidente

convencional não tem força para apagar o fato natural” (Direito de Família, cit., p. 90).

Se o princípio da igualdade obriga a que se coloque no mesmo plano tanto a

família constituída pelo casamento, como a que decorre da convivência pública,

contínua e duradoura; se o cônjuge é herdeiro, e herdeiro necessário, concorrendo,

inclusive, com descendentes e ascendentes do falecido, como se pode admitir tamanha

discriminação no tratamento conferido aos companheiros?

20Estava assentada, pacificamente, em nosso direito, a posição do companheiro

sobrevivente similar à do cônjuge supérstite. Salvo a necessidade de alguns ajustes,

não se via na doutrina pátria nenhuma objeção mais profunda sobre a forma como a

matéria foi disciplinada. Não há, portanto, razão jurídica, motivo histórico, fundamento

ético ou moral, causa sociológica que justifique mudança tão intensa e radical.

As concepções atuais do povo a respeito da sociedade familiar, que a

Constituição de 1988 reconheceu, avocou e subscreveu em normas de hierarquia

máxima, não estão minimamente atendidas na acanhada colocação a que o

companheiro sobrevivente está relegado no C.C. Enquanto o cônjuge passou à

categoria de herdeiro necessário, e em situação privilegiada, o companheiro é

considerado herdeiro facultativo, e em posição bisonha e tímida, muito inferior à que

ocupava na legislação que vigorará até que o C.C. comece a viger.

Ainda que se queira prestigiar os cônjuges, incentivar o casamento, enaltecer as

famílias matrimonializadas, tem algum sentido, alguma razão, alguma base econômica,

social, cultural ou moral estatuir que o companheiro sobrevivente vai concorrer com

colaterais até o 4o grau do de cujus, e só tendo direito a um terço da herança? . . .

Alerte-se, mais uma vez, que, embora falando os incisos I a III do art. 1.790 em

quotas da herança , tais incisos, obviamente, estão conectados e presos ao caput do

dispositivo, e, segundo este, a sucessão do companheiro não considera o patrimônio

todo deixado pelo falecido. O companheiro sobrevivente, nos termos do duro preceito

do art. 1.790, só participará da sucessão do de cujus "quanto aos bens adquiridos na

vigência da união estável”.

No direito sucessório brasileiro, já se mostrava consolidado e quieto o

entendimento de que, na falta de parentes em linha reta do falecido, o companheiro

sobrevivente deve ser o herdeiro, afastando-se os colaterais e o Estado.

Neste tempo em que vivemos, a concepção de família está se contraindo, para

compreender, praticamente, o homem, a mulher, e os filhos, vivendo no lar conjugal ou

no lar doméstico. A família, hoje, é muito diferente da família patriarcal. É menor, menos

hierarquizada. Fala-se em família nuclear, na qual predominam os laços da afetividade

e os princípios da liberdade e igualdade. O legislador não pode dar as costas para este

fato social.

21Na sociedade contemporânea, já estão muito esgarçadas, quando não

extintas, as relações de afetividade entre parentes colaterais de 4o grau (primos, tios-

avós, sobrinhos-netos). Em muitos casos, sobretudo nas grandes cidades, tais parentes

mal se conhecem, raramente se encontram. E o novo Código Civil brasileiro, que vai

começar a vigorar no 3o milênio, resolve que o companheiro sobrevivente, que formou

uma família, manteve uma comunidade de vida com o falecido, só vai herdar, sozinho,

se não existirem descendentes, ascendentes, nem colaterais até o 4o grau do de cujus.

Temos de convir: isto é demais! Para tornar a situação mais grave e intolerável,

conforme a excessiva restrição do caput do art. 1.790, que foi analisado acima, o que o

companheiro sobrevivente vai herdar sozinho não é todo o patrimônio deixado pelo de

cujus, mas, apenas, o que foi adquirido na constância da união estável.

Haverá alguma pessoa, neste país, jurista ou leigo, que assegure que tal solução

é boa e justa? Por que privilegiar a este extremo vínculos biológicos, ainda que

remotos, em prejuízo dos vínculos do amor, da afetividade? Por que os membros da

família parental, em grau tão longínquo, devem ter preferência sobre a família afetiva

(que em tudo é comparável à família conjugal) do hereditando?

Sem dúvida, neste ponto, o C.C. não foi feliz. A lei não está imitando a vida, nem

se apresenta em consonância com a realidade social, quando decide que uma pessoa

que manteve a mais íntima e completa relação com o falecido, que sustentou com ele

uma convivência séria, sólida, qualificada pelo animus de constituição de família, que

com o autor da herança protagonizou, até a morte deste, um grande projeto de vida,

fique atrás de parentes colaterais dele, na vocação hereditária. O próprio tempo se

incumbe de destruir a obra legislativa que não seguiu os ditames do seu tempo, que

não obedeceu as indicações da história e da civilização.

Aliás, no próprio C.C., no texto mesmo da nova legislação civil, é flagrante a

discrepância, notória a disparidade com que os companheiros são tratados, e isto se

conclui à simples leitura do que consta no Direito de Família e no Direito das

Sucessões. Naquele, foi dedicado um título especial à união estável – arts. 1.723 a

1.727 –, e a matéria está regulada convenientemente, prestigiando-se a união estável

entre o homem e a mulher, com o objetivo de constituição de família. Os direitos e

deveres dos companheiros estão bem distribuídos, imitando-se o estatuto dos cônjuges,

22atendendo, enfim, as melhores expectativas da comunidade jurídica. No Direito das

Sucessões, aparece o tenebroso art. 1.790, afrontando o que antes havia sido dito e

afirmado, colidindo com o ordenamento dos companheiros, parecendo, até, que o art.

1.790 é norma de outro Código, de outra Nação, porque não guarda corrrespondência

alguma (muito ao contrário) com as que o novo Código Civil brasileiro, no livro do

Direito de Família, dedicou às entidades familiares formadas por uniões estáveis.

6. Aproveitando que o C.C. está na vacatio legis, urge que seja reformado na parte

que foi objeto deste estudo.

Se a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado; se a união

estável é reconhecida como entidade familiar; se estão praticamente equiparadas as

famílias matrimonializadas e as famílias que se criaram informalmente, com a

convivência pública, contínua e duradoura entre o homem e a mulher, a discrepância

entre a posição sucessória do cônjuge supérstite e a do companheiro sobrevivente,

além de contrariar o sentimento e as aspirações sociais, fere e maltrata, na letra e no

espírito, os fundamentos constitucionais.

Temos de mudar isto. Já e já!

Consciente de que a crítica doutrinária, científica, tem de ser isenta, ponderada,

respeitando, sobretudo, o trabalho e o esforço dos que escreveram o Projeto do Novo

Código Civil, é preciso, ademais, oferecer alternativa, expor as próprias idéias para o

conhecimento e análise de todos. Assim, cabe-me oferecer emenda substitutiva ao

mencionado art. 1.790 do novo Código Civil brasileiro, advertindo que precisam ser

alterados, ainda, os arts. 1.831 e 1.839.

Inicialmente, é necessário, até por imperativo de técnica legislativa, deslocar o

art. 1.790, e inseri-lo no Título II – Da Sucessão Legítima , Capítulo I – Da Ordem da

Sucessão Hereditária , em seguida do art. 1.838, que trata da sucessão do cônjuge

sobrevivente.

O art. 1.839 deve ser alterado, passando a ter a seguinte redação: “Se não

houver cônjuge sobrevivente, nas condições estabele cidas no art. 1.830, nem

companheira ou companheiro, na forma do artigo ante cedente, serão chamados a

suceder os colaterais até o quarto grau” .

23O art. 1.831 também deve ser modificado, para estabelecer, como faz o art.

1.611, § 2o, do Código Civil de 1916, que o direito real de habitação só persiste

enquanto o cônjuge sobrevivente permanecer viúvo ou não constituir união

estável .

Então, com base nos arts. 1.829, 1.831, 1.832, 1.837 e 1.838 do C.C., que

editam normas sobre a sucessão dos cônjuges, o artigo que regula a sucessão dos

companheiros, com nova localização e outro número, deve ficar redigido assim:

Art. . . . A companheira ou o companheiro participa rá da sucessão do outro,

com quem convivia ao tempo do falecimento, nas cond ições seguintes:

I – se concorrer com descendentes, terá direito a um quinhão igual ao dos

que sucederem por cabeça, salvo se tiver havido com unhão de bens durante a

união estável e o autor da herança não houver deixa do bens particulares, ou se o

casamento dos companheiros, se tivesse ocorrido, fo sse pelo regime da

separação obrigatória (art. 1.641), observada a sit uação existente no começo da

convivência;

II – concorrendo com ascendente em primeiro grau, toc ar-lhe-á um terço da

herança; caber-lhe-á metade desta se houver um só a scendente, ou se maior for

aquele grau;

III – não havendo descendentes nem ascendentes, terá d ireito à totalidade

da herança.

Parágrafo único. Ao companheiro sobrevivente, sem p rejuízo da

participação que lhe caiba na herança, enquanto não constituir nova união ou

casamento, será assegurado o direito real de habita ção relativamente ao imóvel

destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a

inventariar.

--- x --- x --- x ---

Esta emenda não cria fatos, não inventa soluções, não dá pulos, não introduz

grandes novidades. Simplesmente, procura resgatar o que a Constituição e as leis,

atendendo as esperanças e aos sentimentos sociais, já tinham estabelecido, sem que

24se vislumbre motivo algum para que o quadro fosse mudado. Reside aí, talvez, o

mérito que a proposta possa ter. Esta emenda, singelamente, quer fazer justiça aos

brasileiros e brasileiras que constituem famílias respeitáveis e dignas, com base nos

laços da afetividade, da compreensão, da solidariedade, da lealdade, da mútua

assistência moral e material, formando uniões estáveis que merecem o mesmo

tratamento dispensado às famílias fundadas no casamento.