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12 1 INTRODUÇÃO Na ética pragmático-liberal, vigorante em nosso atual mundo dito globalizado, o corpo humano é frequentemente rebaixado à posição de coisa submissa à lógica mercadológica; sua importância tem que estar em conformidade com o padrão de beleza física, estandardizado no mercado e na mídia, para que atenda as necessidades do consumo em voga. Nesta esteira, a corporeidade é aviltada na sua dignidade de partícipe do composto humano, por ser reduzida ao setor material disponível no comércio. Preocupando-nos com o estado de decadência imposto avassaladoramente à dimensão somática do homem, desejamos pôr em evidência os princípios éticos da dignidade humana. E para isto, acercamo-nos da produção filosófica de Karol Wojtyła. Sendo assim, a pergunta é: Qual é a contribuição de Karol Wojtyła para o resgate da dignidade da corporeidade humana? Para responder a esta questão, seguir-se-á a metodologia de revisão de literatura de natureza analítica, descritiva e crítica sobre a temática da somaticidade humana e seu resgate no pensamento de Wojtyła, com o objetivo de pôr em destaque um pensamento que evidencie a dignidade da pessoa humana na perspectiva da ética do amor. A fim de chegar às conclusões necessárias, será efetivada a pesquisa literária em livros e outros periódicos, disponíveis em meios, impresso e eletrônico. Perante a impostação da moral utilitarista, que defende a utilização de qualquer meio desde que se obtenha o máximo de prazer, mantida em nossa atual cultura hiper-consumista, a pessoa imerge no anonimato da massa humana donde tenta se singularizar e destacar sua subjetividade através do ter e do aparecer, em detrimento do cultivo do ser pessoa. Há aqui uma redução da perenidade de sua essência à fugacidade existencial. Neste contexto atual é preocupante o culto à formosura corporal e a instrumentalização da pessoa. Tal instrumentalização está muito ligada a busca de satisfação prazerosa como fim. Daí a exploração sexual, a prostituição e o tráfico humano, o enfraquecimento nas relações interpessoais, sobretudo, como quer trabalhar a nossa pesquisa, nas relações afetivas entre homem e mulher, que, na questão do namoro e matrimônio, ficam reduzidas ao uso do outro em vista da paixão sentida e do prazer almejado.

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1 INTRODUÇÃO

Na ética pragmático-liberal, vigorante em nosso atual mundo dito

globalizado, o corpo humano é frequentemente rebaixado à posição de coisa

submissa à lógica mercadológica; sua importância tem que estar em conformidade

com o padrão de beleza física, estandardizado no mercado e na mídia, para que

atenda as necessidades do consumo em voga. Nesta esteira, a corporeidade é

aviltada na sua dignidade de partícipe do composto humano, por ser reduzida ao

setor material disponível no comércio. Preocupando-nos com o estado de

decadência imposto avassaladoramente à dimensão somática do homem,

desejamos pôr em evidência os princípios éticos da dignidade humana. E para isto,

acercamo-nos da produção filosófica de Karol Wojtyła. Sendo assim, a pergunta é:

Qual é a contribuição de Karol Wojtyła para o resgate da dignidade da corporeidade

humana? Para responder a esta questão, seguir-se-á a metodologia de revisão de

literatura de natureza analítica, descritiva e crítica sobre a temática da somaticidade

humana e seu resgate no pensamento de Wojtyła, com o objetivo de pôr em

destaque um pensamento que evidencie a dignidade da pessoa humana na

perspectiva da ética do amor. A fim de chegar às conclusões necessárias, será

efetivada a pesquisa literária em livros e outros periódicos, disponíveis em meios,

impresso e eletrônico.

Perante a impostação da moral utilitarista, que defende a utilização de

qualquer meio desde que se obtenha o máximo de prazer, mantida em nossa atual

cultura hiper-consumista, a pessoa imerge no anonimato da massa humana donde

tenta se singularizar e destacar sua subjetividade através do ter e do aparecer, em

detrimento do cultivo do ser pessoa. Há aqui uma redução da perenidade de sua

essência à fugacidade existencial.

Neste contexto atual é preocupante o culto à formosura corporal e a

instrumentalização da pessoa. Tal instrumentalização está muito ligada a busca de

satisfação prazerosa como fim. Daí a exploração sexual, a prostituição e o tráfico

humano, o enfraquecimento nas relações interpessoais, sobretudo, como quer

trabalhar a nossa pesquisa, nas relações afetivas entre homem e mulher, que, na

questão do namoro e matrimônio, ficam reduzidas ao uso do outro em vista da

paixão sentida e do prazer almejado.

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Assim, encontramos o problema do pouco amor ou do não amor, no

sentido de preocupar-se e agir com fim na realização do outro, sempre nessa esfera

de relação amorosa entre homem e mulher, com a consequência do

empobrecimento do ser-pessoa do outro. Então, temos uma relação frustrante e

passageira que não se sustenta, dado que se move conforme a lógica da

instrumentalização e exploração da pessoa-coisificada. Ora, nenhuma pessoa gosta

de ser explorada e diminuída na sua dignidade de pessoa humana. Com a

mentalidade utilitarista em vigor, que tolhe o amor e o engrandecimento do ser

humano, este é concebido no mesmo nível das coisas e outras espécies vivas, isto

obscurece sua liberdade. Assim, não é de admirar que haja o desmoronamento do

matrimônio e da família, a desumanização e o desrespeito a vida humana, da

concepção até seu declínio natural.

Esta realidade hodierna se torna problema para quem almeja resgatar o

valor da pessoa humana em sua essência, a genuína felicidade alcançada pela

vivência do amor e os valores da corporeidade e das relações amorosas entre

homem e mulher, numa ética filosófica que auxilie nas respostas aos problemas

citados. Desse modo, deparamo-nos com a rica contribuição do filósofo polonês

Karol Jozef Wojtyła (1920–2005), no que se refere ao personalismo cristão, esse

que inclusive como papa da Igreja Católica Romana, de 1978 a 2005, trouxe à luz

seus pensamentos filosóficos no campo teológico.

O presente trabalho monográfico está estruturado em cinco capítulos, nos

quais se apresenta uma síntese biográfica de Karol Wojtyła, uma abordagem sobre

a questão da desvalorização do corpo humano no mundo atual, uma pesquisa

acerca do confronto entre as éticas de Max Scheler e de Karol Wojtyła, a exposição

da ética wojtyliana do amor e, por fim, a evidenciação da dignidade do corpo da

pessoa humana, com base na ética e na antropologia, wojtylianas.

No capítulo “KAROL WOJTYŁA: dramaturgo, poeta e filósofo”, há uma

biografia da vida intelectual de Karol Wojtyła, enfatizando a sua nacionalidade

polonesa e o amor que ele nutriu pela cultura de seu povo que o levou a enveredar o

caminho da literatura poética e da arte dramatúrgica; mais à frente, destaca-se o seu

percurso filosófico intimamente associado à sua vida de clérigo da Igreja católica.

Em “A PROBLEMÁTICA DO CORPO HUMANO NO MUNDO ATUAL”,

evidencia-se a cisão Corpo-alma na compreensão do ser humano ao longo da

história da filosofia, a imposição da ética utilitarista pelo poder mercadológico às

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pessoas massificadas pelos meios de comunicação e a redução da compreensão

acerca do ser humano à materialidade somática.

No capítulo seguinte, “KAROL WOJTYŁA E A ÉTICA DE MAX

SCHELER”, mostra-se a tentativa de Karol Wojtyła de aproximar fenomenologia e

moral cristã, ao pesquisar a possibilidade de basear a ética cristã no sistema ético

de Max Scheler e, concluída a impossibilidade desta empresa, a resultante síntese

entre linguagem fenomenológica e o pensamento tomista, que caracterizam a

filosofia wojtyliana.

Em “A ÉTICA WOJTYLIANA DO AMOR”, apresentam-se três obras de

nosso pensador, que dizem respeito à vivência ética do amor entre homem e

mulher; são o teatro “A loja do ourives”, a obra ética “Amor e responsabilidade” e a

obra teológica “Homem e mulher o criou”, que constituem fundamentos essenciais

para se compreender a abordagem sobre o amor humano no pensamento de Karol

Wojtyła.

Enfim, o capítulo “A DIGNIDADE PESSOAL DO CORPO HUMANO”,

baseando-se no pensamento antropológico de Karol Wojtyła, sobretudo na sua obra

“Pessoa e ação”, enfatiza a integração da reatividade corporal na personalidade

humana por meio da administração dos gestos corporais pela vontade, sempre

motivada pela consciência que visa o bem de toda a pessoa humana, dado que o

ser humano é criado à imagem e semelhança de Deus.

Assim, segue-se este trabalho monográfico que tendo por objetivo

evidenciar a dignidade da pessoa humana com o seu corpo, mostra a perenidade do

pensamento wojtyliano como orientação ética embasada na fé e no amor que

propicia uma educação de toda a pessoa humana em vista do bem comum na

família e na sociedade em geral.

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2 KAROL WOJTYLA: dramaturgo, poeta e filósofo

Karol Josef Wojtyła (1920-2005) é mais conhecido como “João Paulo II”, o

carismático e diplomata papa polonês que guiou a Igreja Católica Romana de 1979

até 2005. Wojtyła, como dramaturgo, poeta e filósofo, deu suas contribuições para a

antropologia e para a ética escrevendo vários textos, os quais foram produzidos

antes de ser eleito Sumo Pontífice.

As principais fontes literárias utilizadas para a elaboração desta

abordagem acerca da vida intelectual de Karol Wojtyła são: o artigo “A filosofia

personalista de Karol Wojtyła”, de Juan Burgos; a biografia de Wojtyła escrita por

Bernstein e Politi: “Sua santidade: João Paulo II e a História oculta de nosso tempo”;

e o livro “Dom e mistério”, escrito por Wojtyła no exercício de seu pontificado à frente

da Igreja Católica Romana.

2.1 A experiência teatral

Aos 14 anos, quando cursava o ginásio em Wadowice (Polônia), Wojtyła

atuou no teatro. Nesse período ginasial, ele se dedica à leitura e encenação de

peças teatrais e de poesias românticas, junto a um grupo de outros jovens atores,

em meio aos quais acumulou os encargos de diretor e cenógrafo do grupo.

Ainda em Wadowice, ele encontrou pela primeira vez o professor polonês

Mieczysław Kotlarczyk (1908-1978), grande incentivador do teatro e da literatura, e

mentor da “Palavra Viva” no teatro polonês. Sobre Kotlarczyk, afirma Bernstein e

Politi (1996, p. 70):

Kotlarczyk aspirava a criar um teatro das profundezas interiores ‘no qual, mais do que apenas assistir a uma apresentação, a pessoa ouve’. O ator, aprendeu Wojtyła, precisa seguir o verso e não abafá-lo na tragédia. Seu objetivo deve ser o de gravar seu personagem na percepção do espectador.

Em 1938, Wojtyła se muda com seu pai - o tenente Wojtyła - para

Cracóvia, onde frequenta o curso de Filologia e Literatura polonesa pela

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Universidade Jaguelônica, bruscamente interrompida, no ano seguinte, com o

estouro da II Guerra Mundial (1939-1945) e com a invasão nazista, que tomou o

poder na Polônia e impôs grandes restrições à Igreja Católica, à comunidade judaica

e à cultura local.

Nesse período, Wojtyła assume um ideal cristão e romântico, participando

do grupo clandestino Rosário vivo, sob a orientação disciplinar de Jan Tyranowski

(1901-1947)1; debruça-se sobre a literatura mística dos santos espanhóis, João da

Cruz e Teresa de Ávila2; produziu três peças teatrais, intituladas: David, Jó, e

Jeremias. Por fim, toma ainda parte ativa no grupo de teatro clandestino Studio 39,

engajado na manutenção da cultura patriótica da Polônia. De acordo com Bernstein

e Politi (1996, p. 62):

O teatro se transformou então numa arma na defesa da cultura polonesa e da pátria polonesa diante do implacável ataque nazista. Com este espírito de resistência de inspiração religiosa, Wojtyła começou a fazer apresentações clandestinas com um grupo de amigos que se denominava Studio 39.

Em 1940, por determinação da ocupação nazista sobre a obrigatoriedade

do trabalho juvenil, Wojtyła começa a trabalhar na pedreira Zakrzówek da Solvay e,

mais tarde, é transferido para o manuseio de produtos químicos na fabrica em Borek

Fałęcki, experimentando os rigores que os ocupantes infligiam ao povo polonês de

uma forma mais intensa. No ano seguinte, reencontra o professor Kotlarczyk, com

quem elabora o Teatro Rapsódico, o qual tem como característica a palavra

declamada que o cenário.

1 Sobre Tyranowski, comenta em “Dom e mistério”, Karol Wojtyła como papa João Paulo II (1996,

p.32): “Era um operário, apesar de ter escolhido trabalhar na alfaiataria do pai. Afirmava que o trabalho de alfaiate lhe facilitava a vida interior. Era um homem de uma espiritualidade particularmente profunda. Os padres salesianos, que naquele período difícil, tinham voltado a animar a pastoral juvenil, haviam-lhe confiado o encargo de travar contatos com os jovens, no âmbito do chamado ‘rosário vivo’”. 2 São João da Cruz (1542-1591) e Santa Teresa de Ávila (1515-1582) são dois místicos espanhóis

que foram amigos pessoais e promoveram uma reforma nos ramos masculino e feminino da ordem carmelita. Foram redigidas, entre outros escritos, por João da Cruz as obras: “Subida ao monte Carmelo”, “Chama viva de amor” e “Cântico espiritual”, ao passo que Teresa de Ávila escreveu: “O Livro da Vida”, “As sete moradas ou Castelo interior”, “Caminho de Perfeição”, entre outras obras.

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2.2 A via poética

A sensibilidade poética de Karol Wojtyła é predominante em sua vida.

Constata-se isto desde a sua juventude, quando se apaixona pela literatura

polonesa, até à sua senilidade, quando publicou o livro de poemas “Tríptico romano

- Meditações” (2003).

As composições poéticas de Wojtyła, todas coerentes com o seu

pensamento filosófico, põem em evidência a pessoa humana na sua ação; como

afirma Bogdan Piotrowski (2007, p.97): “E, sempre, sua expressão lírica se

fundamenta decididamente na ética, buscando o bem da pessoa e o bem comum”3.

Os temas recorrentes dos poemas de Wojtyła estão intrinsecamente vinculados à

dimensão teatral, ao romantismo em voga na literatura polonesa no período da

juventude de nosso pensador-poeta e à sua experiência religiosa, enquanto

manifestação da transcendência humana. Neste sentido, vale ressaltar a grande

influência mística que Karol Wojtyła hauriu da leitura dos escritos de São João da

Cruz.

Concordando com a tendência literária da “palavra-viva”, Wojtyła dá às

suas composições uma propriedade cultural polonesa, no sentido de conservar o

espírito eslavo durante o domínio nazista sobre sua nação, dominação política que

também prejudicava a vivacidade da cultura de seu povo.

Característico da pulsão humana presente na via poética empreendida

por Karol Wojtyła são as duas versões do poema “Mousiké”, pois neste, nosso poeta

busca uma originalidade poética que se funda na Grécia clássica; assim, esclarece

Piotrowski (2007, p.88): “[...] os gregos chamavam mousiké a toda a arte, em sua

tríplice configuração de poesia, música e dança”.4 Peculiaridades estas, também

presentes nos seus demais poemas, como em “Matéria”, do qual citamos duas

estrofes, que Wojtyła assina como papa João Paulo II (1996, p. 15):

Ouve! o ritmo cadenciado dos martelos, bem / conhecido, projeto-o nos homens, para pro - / var a força de cada pancada.

3 Fonte em espanhol:.“Y, siempre, su expresión lírica se fundamenta decididamente en la ética,

buscando el bien de la persona y el bien común”. 4 Fonte em espanhol: “[...] los griegos llamaban mousiké a toda el arte, en su triple configuración de

poesía, música y danza”

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Ouve! Uma descarga elétrica corta o rio de / pedra, / dentro de mim, cresce um pensamento, dia / após dia: / toda a grandeza do trabalho está dentro do / homem...

Em Wojtyła, a palavra viva se manifesta ao modo de bondade, beleza e

verdade, num caminho poético que convoca o aparecimento do fundamento

transcendente da linguagem artística, como manifestação da vida da pessoa

humana.

2.3 O itinerário filosófico

Em sua juventude, conforme redigiram Bernstein e Politi, Karol Wojtyła já

havia lido com o auxílio de seu pai as obras: Crítica da Razão Pura, de Immanuel

Kant; e O Capital, de Karl Marx5, ambas em alemão, a língua original. Porém, sua

formação filosófica mais densa, sobretudo no campo da metafísica aristotélico-

tomista, se deu no biênio filosófico, enquanto estava no seminário clandestino,

preparando-se para ser padre. A construção de seu pensamento filosófico foi

também influenciada pelas esferas fenomenológica, que evidenciaremos mais a

frente, e personalista6.

Depois da ordenação sacerdotal, especializou-se em Teologia e Filosofia,

doutorando-se com as teses: “A fé segundo São João da Cruz”, em Teologia (1948);

e a “Valoração sobre a possibilidade de construir a ética cristã sobre as bases do

sistema de Max Scheler”, em Filosofia (1954).

Juan Manuel Burgos, em seu artigo intitulado “A Filosofia Personalista de

Karol Wojtyła” (2006), agrupa o desenvolvimento do pensamento filosófico de

Wojtyła em quatro períodos, a saber: a escola ética de Lublin; o amor humano em

“Amor e responsabilidade” (1960); a antropologia em “Pessoa e ação” (1969); e o

caminho impedido nas áreas das filosofias interpessoal e social.

5 Immanuel Kant (1724-1804) e Karl Marx (1818-1883) são filósofos alemães. Kant é vinculado ao

pensamento idealista alemão e à Teoria do conhecimento ao passo que Marx pertence a corrente do materialismo dialético. 6 O Personalismo consiste num movimento filosófico nascido na França do século XX, fundado por

Emmanuel Mounier (1905-1950), vinculado à revista “Esprit” que surgiu em 1932. O Personalismo, aliado aos ideais cristãos, afirma o valor intrínseco da pessoa humana, que está vinculado à dimensão comunitária; combatendo o capitalismo e o marxismo.

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2.3.1 A escola ética de Lublín

No contexto da escola ética de Lublín, Karol Wojtyła se baseia na

metafísica de santo Tomás de Aquino, no empirismo de Hume, no Imperativo

categórico de Kant e na ética valorativa dos modelos, de Max Scheler. Fá-lo para

realizar sua síntese entre Tomismo e Fenomenologia, além de recorrer à noção de

“experiência moral”. Seu objetivo era defender a ética cristã das ameaças que

constituem o pensamento hedonista, positivista e apriorista kantiano. Tal escola

centrava-se no objetivo de re-fundar as bases da ética clássica através da

perspectiva fenomenológica. Assim, a ética lubliniana se funda na experiência moral

em sentido realista, pautada no dever de fazer o bem e evitar o mal. Sobre isto

escreveu Juan Burgos (2006):

Wojtyła recorre com profundidade à noção de experiência moral. A ética, explica, não surge de nenhuma estrutura externa ao sujeito, não é uma construção mental gerada por pressões sociológicas, nasce de um princípio real e originário: a experiência moral, a experiência do dever, porém não entendido de modo kantiano, como a estrutura formal da razão prática, senão em um sentido profundamente realista, como a experiência que todo sujeito possui – em cada ação ética concreta – de que deve fazer o bem e deve evitar o mal.

7

2.3.2 O amor humano em “Amor e responsabilidade”

O livro Amor e responsabilidade (1960), como afirma Karol Wojtyła, surgiu

da necessidade pastoral de orientar os jovens que se preparavam para o

matrimônio, bem como os recém-casados. De fato, João Paulo II, numa entrevista

concedida a Vittorio Messori, diz:

7 Fonte em espanhol: “Wojtyła recurre con profundidad y originalidad a la noción de experiencia

moral. La ética, explica, no surge de ninguna estructura externa al sujeto, no es una construcción mental generada por presiones sociológicas, nace de un principio real y originario: la experiencia moral, la experiencia del deber, pero no entendido en modo kantiano, como la estructura formal de la razón práctica, sino e muy sentido profundamente realista, como la experiencia que todo sujeto posee – en cada acción ética concreta – de que debe hacer el bien y debe evitar el mal”.

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Naqueles anos, a coisa mais importante para mim se tornaram os jovens, que me colocaram não tanto perguntas sobre a existência de Deus, mas questões precisas sobre a forma de viver, ou seja, sobre a maneira de resolver e enfrentar os problemas do amor, e do matrimônio, bem como os relacionados com o mundo do trabalho. (MESSORI; JOÃO PAULO II, 1994, p.185-186).

“Amor e responsabilidade” é uma obra ética que prioriza a integração da

sexualidade e as relações interpessoais entre homem e mulher; também é uma obra

na qual Wojtyła enfrenta a ética utilitarista, contrapondo a esta o conceito de “Norma

personalista”. Este conceito foi formulado a partir do preceito cristão da caridade

mútua e, também, a partir do princípio kantiano de não instrumentalização do sujeito,

que afirma: “O imperativo prático será pois o seguinte: Age de tal maneira que uses

a humanidade, tanto na tua pessoa, como na pessoa de qualquer outro, sempre e

simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”(KANT, 1992, p.69).

Além do mais, esta obra evidencia o matrimônio como a realização máxima do amor

entre homem e mulher.

2.3.3 A antropologia em “Pessoa e ação”

Por seu turno, na obra Pessoa e ação (1969), Wojtyła apresenta bases

antropológicas em suas pesquisas relativas à ética e sintetiza Tomismo e

Fenomenologia, numa abordagem Personalista. Acentuando a experiência humana,

ele destaca que é a ação que faz aparecer a pessoa e que o ato da pessoa permeia

todas as dimensões antropológicas do sujeito: “Para nós, a ação revela a pessoa, e

vemos a pessoa através de sua ação [...]. A ação nos oferece o melhor acesso para

penetrar na essência intrínseca da pessoa e nos permite conseguir o maior grau

possível de conhecimento da pessoa”( WOJTYŁA apud SILVA, 2005, p.28). Para

Wojtyła, a consciência como lugar do discernimento moral e sinal da liberdade

humana se manifesta por meio da escolha e autodeterminação. “À consciência

compete que se forme a experiência da pessoa e permite a ela experienciar a

própria subjetividade. A consciência subjetiva o objetivo” (SILVA, 2005, p.32).

Wojtyła concebe o ser humano como um conjunto integrado de corpo (soma) e alma

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(psique). Para ele, “[...] a alma é distinta do corpo, porém no homem formam uma

unidade, e se condicionam mutuamente” (WOJTYŁA, 2011, p.320)8.

De 1975 a 1978, com o auxílio da Dra. Anna-Teresa Tymieniecka, Wojtyła

revisou a obra Pessoa e ação e deu-lhe os devidos acabamentos. Foi publicada no

décimo volume da revista Analecta Husserliana, em língua inglesa. Como registram

Bernstein e Politi (1996, p.141): “Em essência, ela foi colaboradora e editora. Até a

presença dela na vida do cardeal, ele tinha sido ignorado e até mesmo rejeitado pela

comunidade filosófica”.

2.3.4 O caminho impedido nas filosofias, interpessoal e social

Juan Burgos aponta a eleição de Karol Wojtyła para o encargo de Sumo

pontífice da Igreja católica e a consequente interrupção de sua carreira acadêmica

como justificativas para a ausência de grandes produções filosóficas que tratem das

relações interpessoais e da filosofia social nos escritos filosóficos de Wojtyła. Sem

estes fatos nosso filósofo poderia não constar na lista dos pensadores personalistas.

Com isso, Burgos expressa o não alheamento de Wojtyła das questões

interpessoais e sociais, respaldado nos artigos de nosso filósofo, como “A pessoa:

sujeito e comunidade” (1976); artigo este no qual Wojtyła evidencia as relações

interpessoais entre sujeitos humanos, denominadas “Eu-tu” e as relações sociais em

vista do bem comum, chamadas “Nós”.

Mesmo tendo encerrado sua produção estritamente filosófica após ter

assumido o encargo de papa, com o nome de João Paulo II; o papa Wojtyła

embasou os seus documentos pontifícios, inclusive suas “Catequeses sobre o amor

humano” as quais abordaremos mais a frente, nos conceitos antropológicos e éticos

que trabalhou nas suas produções filosóficas.

8 Fonte em espanhol: “La psique es distinta del soma, pero en el hombre forman una unidad, y se

condicionan mutuamente”

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3 A PROBLEMÁTICA DO CORPO HUMANO NO MUNDO ATUAL

Com o avanço da economia capitalista, ainda no século XX, chegamos a

uma sociedade de “hiper-consumo”, como a denomina Gilles Lipovetsky, a partir da

consolidação do Fordismo9 e a consequente submersão do indivíduo humano na

massa ou uniformidade humana, em busca de uma felicidade proveniente do

consumo, da busca do luxo, divulgado pelo marketing comercial. Segundo

Lipovetsky (2007, p.36): “A sociedade de consumo criou em grande escala a

vontade crônica dos bens mercantis, o vírus da compra, a paixão pelo novo, um

modo de vida centrado nos valores materialistas”.

Tal busca de felicidade centra-se no prazer de viver a existência ladeada

por apetrechos mais que necessários para a manutenção da vida humana, aparatos

que sejam luxuosos, donde vem à tona a tendência hedonista de busca do prazer

pelo prazer mediante a atenuação da dor e incremento no cultivo do lúdico da vida,

bem como do gozo oriundo da utilização das coisas e até das pessoas.

A tendência fordista da produção automobilística norte-americana de

uniformização das unidades de uma determinada série de produção conforme o

paradigma de um modelo é identificado com a tendência de “turvamento” do

indivíduo, na generalidade de um grupo, o que constitui a massificação sob a égide

da marca. Conforme Lipovetsky (2007, p.29): “Padronizados, empacotados em

pequenas embalagens, distribuídos nos mercados nacionais, desde então os

produtos vão ter um nome, o que lhes foi atribuído pelo fabricante: a marca”.

Da imersão no anonimato da massa, os indivíduos humanos procuram

aparecer e adquirir o reconhecimento dos demais indivíduos, mediante a ascensão

social, sobretudo pela via da aquisição de bens que lhe garantam uma vida luxuosa,

conforme os padrões incentivados pela economia capitalista, dado que esta divulga

uma vida luxuosa como meta de status social, derivando disto o incentivo ao

consumismo, como busca de realização.

Na esteira da tendência consumista, as coisas e até as pessoas são

desejadas conforme suas utilidades, para que proporcione o alcance dessa

9 Teoria da organização industrial do norte-americano Henry Ford (1863-1947), aplicada na sua

própria indústria automobilística. Defende a dedicação exclusiva de cada indústria a produção de um único produto, com especialização do trabalhador em determinadas áreas do processo de fabricação, e a fabricação massificada e em larga escala do mesmo modelo produzido.

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felicidade objetivada pelas pessoas no referido contexto econômico e cultural. Aqui

vigora uma ética vinculada ao prazer oriundo da utilização de coisas e até de

pessoas como meios para se atingir o fim prazeroso ou incentivado pelo marketing

comercial, conforme os princípios do utilitarismo. Como afirmou Karol Wojtyła (1982,

p.35):

Quando aceito os postulados do utilitarismo, devo considerar-me sujeito, o qual quer experimentar no plano afetivo-emocional o maior número de sensações e vivências positivas e ao mesmo tempo como objeto, o qual pode ser usado para provocar essas sensações e vivências. Inevitavelmente, considero do mesmo modo qualquer outra pessoa que se torna assim um meio apto para fazer-me obter o máximo de prazer.

Neste ponto, deparamo-nos com o problema social da competição entre

pessoas humanas e, sobretudo, da redução do sujeito humano ao nível das coisas

ou objetos, que são utilizados como meios para atingir determinada finalidade

almejada pelo sujeito que usa ou pelo grupo que empreende a utilização. Neste

sentido a dignidade de cada pessoa humana submetida ao uso não é valorizada, já

que a subjetividade pessoal é reduzida à objetividade existencial.

Para o contexto em questão, a felicidade desejada é fluída, consoante à

mobilidade do mundo existente, onde o caráter de modernidade “passou a significar,

como significa hoje em dia, ser incapaz de parar e ainda menos capaz de ficar

parado” (BAUMAN, 2001, p.37); logo é essa uma felicidade passageira que deve

continuamente ser buscada e conquistada, caindo-se num círculo vicioso que

mantêm este contexto de pós-modernidade.

Com a superestima existencial das coisas materiais em detrimento do

aspecto ontológico, reforçado pelo capitalismo selvagem, o ser humano é reduzido à

sua aparência somática. Prima-se pela proporção das formas, consoante padrões de

beleza estabelecidos para os corpos masculino e feminino, pelo mercado que

também instaura os modelos de trajes conforme a afirmação da moda. “Eis o

significado imanente da re-descoberta do corpo: nos gestos e, portanto, toda a

sedução imiscuída neles se transformou em mercadoria, a soldo apesar de nós

mesmos” (CODO; SENNE, 1985, p.10).

Dado que o ser humano é reduzido, conforme a tendência utilitarista, a

meio ou objeto que se instrumentaliza por outrem a fim de que se enlace

determinado ideal, inclusive o prazer, absolutizando a dimensão materialista, este

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mesmo ser humano é conceituado conforme siga ou não o padrão corporal

estabelecido modalmente.

É adequando seu corpo aos padrões modais em vigor que a pessoa

humana mais se entrega à “lógica” de ser instrumentalizada até chegar à venda

corporal, a fim de proporcionar o prazer alheio, sobretudo no campo afetivo-sexual,

conforme queremos sublinhar em nossa pesquisa.

3.1 A relação corpo-alma na Antropologia Filosófica

O corpo humano é naturalmente inerente à constituição do ser humano de

modo que não podemos pensar atualmente uma Antropologia filosófica sem

reconhecer a devida importância à somaticidade humana, que põe a presença

atuante da alma e do espírito humanos no mundo e de forma pessoal, com os

outros, pois “[...] o mundo é sempre o mundo compartilhado com os outros. O mundo

da presença é mundo compartilhado” (HEIDEGGER, 2009, p.175). Evidenciar a não

valorização do corpo humano é remontar à História da Filosofia, sobretudo às visões

antropológicas mais estritamente ligadas à negação do corpo em Platão de Atenas

(c.428/27–c.348/47 a. C), na Grécia clássica, e de René Descartes (1596-1650), na

modernidade, que fundamentam a cisão entre alma e corpo e mais, dessacralizando

o corpo, pois “[...] o dualismo afirma que o homem se ‘compõe’ de duas substâncias

heterogêneas completas. Importante é o adjetivo ‘completas’, isto é, que bastam a si

mesmas para existir e somente por acaso, acidentalmente, estão unidas no homem”

(RABUSKE, 2001, p.31). Resultando tais inferências do pensamento na negação

prática da dignidade do corpo da pessoa humana, na atualidade, quando aparece o

corpo humano como objeto de uso com a finalidade no prazer e no aparecer, em

tempos denominados por Bauman e Lipovetsky, respectivamente de “pós-

modernidade” de uma sociedade de “hiper-consumo”.

Fundando nossa reflexão nas contribuições da Antropologia filosófica,

deparamo-nos com a importância devolvida ao ser humano com o seu corpo, que

por si é pessoalmente humano. De fato, é com o seu corpo que a pessoa humana se

situa espacio-temporalmente no mundo, entre as coisas e relacionando-se com os

demais seres humanos; “[...] a autocompreensão do homem encontra seu núcleo

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germinal na compreensão de sua condição corporal” (VAZ, 2004, p.158). Assim, o

corpo põe a pessoa de forma dinâmica no mundo, onde essa se diferencia dos

reinos, mineral, vegetal, animais irracionais, protista, monera, dos fungos, e demais

organismos estudados pela ciência biológica; a partir da percepção de seu corpo

existente no mundo, que o ser humano percebe sua singularidade e perante os

outros humanos, tem suporte para pensar a si mesmo a partir da experiência que se

dá imprescindivelmente por sua dimensão somática: “[...] o corpo é a condição da

possibilidade de manifestação humana. A pessoa expressa e manifesta a sua

intimidade precisamente através do corpo” (STORK; ECHEVARRIA, 2005, p. 88).

É refletindo a si mesmo no mundo com os outros que o homem elabora

sua cultura e nesta, para sobreviver, trabalha na natureza, adaptando-a ao seu

mundo cultural, bem como se adaptando a ela para sobreviver. É no corpo que a

linguagem humana gestual nasce ligada à satisfação das necessidades básicas da

vida humana, tais como: preservação da vida, perpetuação da espécie, amor,

sentimentos e reflexão, desembocando na sistematização oral, conceituação e

estabelecimento de normas; ademais, “[...] a manifestação da pessoa é o mostrar-se

ou expressar-se a si mesma as ‘novidades’ que nascem dela. A manifestação da

intimidade se realiza através do corpo, da linguagem e da ação” (STORK;

ECHEVARRIA, 2005, p. 87).

Ao contrário dos animais irracionais, que já nascem preparados para a

sua sobrevivência em seu habitat, inclusive com as habilidades sensitivas e motoras

já determinadas e acabadas, propiciando os seus modos de vida, o ser humano

nasce aberto à necessidade de adaptação e altamente necessitado de seus pais e

demais adultos a fim de sobreviver no mundo, como escreveu Edvino Rabuske

(2001, p.25):

[...] o homem tem o seu meio ambiente que, porém, não é estruturalmente fixado nem limitado por especialização biológica. Deve-se aqui falar de mundo. O comportamento humano se caracteriza biológicamente por ser plástico, não-especializado: é diferenciável, flexível, adaptável.

Neste sentido, a plasticidade do ser humano ao nascer, expressa no

corpo do recém-nascido a própria natureza humana aberta à reflexão e acerca do

sentido da existência, bem como à cultura e ao amor.

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Para compreender o problema da desvalorização somática da pessoa, é

preciso tomar conhecimento das causas desse fenômeno, investigando na História

do pensamento ocidental, porque é o pensamento que move a cultura e esta

legitima os costumes sociais. Assim, o modo de pensar atual no ocidente, através do

Pragmatismo ou Utilitarismo e do Hedonismo, dá azo à desvalorização do corpo

humano, tendência esta que é difundida em todo o mundo pela globalização

capitalista.

Nesta senda do pensamento, estão dois eminentes filósofos que

contribuíram para o rebaixamento do sentido do corpo: Platão e René Descartes.

Para Platão, pensador do século IV a. C, existem três realidades, a saber: a

realidade do Uno-Bem, a realidade das ideias perfeitas e a realidade sensível ou

material. A matéria é imperfeição e sombra da realidade ideal, que é regida pelo

Uno-Bem. Assim, a realidade material e temporal se constitui como cópia das ideias

eternas. Neste itinerário intelectual, o corpo humano é a prisão da alma que anela

por ascender ao mundo ideal, a fim de contemplar racionalmente o Uno-Bem. Para

Platão, a Filosofia é caminhada para a morte, compreendida como remédio da alma

no ato do abandono da prisão corporal. Ele afirma: [...] os verdadeiros filósofos

trabalham durante toda a sua vida na preparação de sua morte e para estar mortos,

sendo assim, seria ridículo que, depois de ter perseguido este único fim, sem

descanso, retrocedessem e tremessem diante da morte (PLATÃO, 1981, p. 109).

Desse modo, o corpo é concebido como julgo e peso, castigo do homem

e empecilho à felicidade do ser humano, que no pensamento platônico é

essencialmente alma (psique). Tal negação platônica do corpo influenciará

fortemente o pensador Plotino (205-270), pertencente à corrente neoplatônica, que

nas suas Enéadas, de modo próximo à visão platônica, concebe o mundo nos

estágios hierárquicos: Uno, Intelecto, Alma do mundo e matéria. Plotino, por seu

turno, influenciou o pensamento medieval.

A modernidade se caracterizou pelo paradigma da subjetividade posto por

René Descartes. Descartes principia sua filosofia colocando em dúvida tudo o que

lhe fora transmitido pela cultura clássica. Duvida da própria existência, bem como da

de Deus, do mundo e dos outros. Com isto, chega à conclusão fundante de seu

pensamento: “Cogito, ergo sum”, que significa: “Se penso, logo existo”, certamente

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inspirado na formula de Santo Agostinho10: “Se duvido, existo”. Escreve Descartes

(1999, p.63): “[...] ao perceber que nada há no eu penso, logo existo, que me dê a

certeza de que digo a verdade, salvo que vejo muito claramente que, para pensar, é

preciso existir, concluí que poderia tomar por regra geral que as coisas que

concebemos muito clara e distintamente são todas verdadeiras”.

Com o “Cogito” cartesiano, põe-se no pensamento subjetivo o

fundamento da própria existência, bem como do mundo concreto, dos outros e de

Deus. Assim, a alma racional é altamente valorada na modernidade em detrimento

do corpo, que é dessacralizado desde que dele se ausente a subjetividade, como no

caso da morte, servindo inclusive para experimentos e estudos da ciência, o que

fora inconcebível no período medieval.

3.2 Os tempos hodiernos e a instrumentalização do corpo humano

Tocando nos tempos hodiernos do mundo capitalista, destaca-se o corpo

separado de sua dignidade pessoal11. Este contexto atual é estudado de maneira

crítica pelos pensadores Zigmunt Bauman e Gilles Lipovetsky. Bauman, pensador

polonês, apresenta a “liquidez”, ou “fluidez”, como características basilares da

vigente ordem social; aqui a moralidade é instantaneamente mutável, adaptando-se

10

Santo Aurélio Agostinho de Hipona (354-430), nasceu em Tagaste, África. Após adesão ao maniqueísmo e ao ceticismo, converteu-se ao cristianismo, chegando a ser bispo de Hipona. Legou-nos uma rica produção filosófica e teológica. Autor das obras: “Confissões”, “A cidade de Deus”, “O livre-arbítrio”, “Solilóquios”, entre outras. 11 Tratando do problema da degradação do corpo e cristianismo, o papa Bento XVI (Joseph Ratizinger) escreveu na sua encíclica “Deus caritas est “(2005), nº.5 : “Hoje não é raro ouvir censurar o cristianismo do passado por ter sido adversário da corporeidade; a realidade é que sempre houve tendências neste sentido. Mas o modo de exaltar o corpo, a que assistimos hoje, é enganador. O eros degradado a puro « sexo » torna-se mercadoria, torna-se simplesmente uma « coisa » que se pode comprar e vender; antes, o próprio homem torna-se mercadoria. Na realidade, para o homem, isto não constitui propriamente uma grande afirmação do seu corpo. Pelo contrário, agora considera o corpo e a sexualidade como a parte meramente material de si mesmo a usar e explorar com proveito. Uma parte, aliás, que ele não vê como um âmbito da sua liberdade, mas antes como algo que, a seu modo, procura tornar simultaneamente agradável e inócuo. Na verdade, encontramo-nos diante duma degradação do corpo humano, que deixa de estar integrado no conjunto da liberdade da nossa existência, deixa de ser expressão viva da totalidade do nosso ser, acabando como que relegado para o campo puramente biológico. A aparente exaltação do corpo pode bem depressa converter-se em ódio à corporeidade. Ao contrário, a fé cristã sempre considerou o homem como um ser uni-dual, em que espírito e matéria se compenetram mutuamente, experimentando ambos precisamente desta forma uma nova nobreza. Sim, o eros quer-nos elevar « em êxtase » para o Divino, conduzir-nos para além de nós próprios, mas por isso mesmo requer um caminho de ascese, renúncias, purificações e saneamentos”.

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aos interesses das estruturas do capitalismo neoliberal. Nessa “modernidade

líquida”, os laços entre as pessoas humanas são frouxos, desde que não se deseje

assumir compromissos com pessoas e instituições que prendam a mobilidade dos

seres humanos num mundo descartável e reciclável; predomina nessa cultura, as

“[...] quebra e descarte de sucessivos obstáculos ‘sólidos’ que limitam o voo livre da

fantasia e reduzem o ‘princípio do prazer’ ao tamanho ditado pelo ‘princípio da

realidade” (BAUMAN, 2001, p. 89); isto põe os seres humanos numa interminável

busca por prazer e por felicidades imediatas e passageiras. Nesta trilha, o pensador

francês Gilles Lipovetsky, no seu livro A felicidade paradoxal, enfatiza a configuração

de uma economia de hiperconsumo, vinculada à vivência de passageiros momentos

de prazer, porém que não chegam à estável felicidade humana. Para Lipovetsky

(2007, p.36), a“[...] sociedade de consumo criou em grande escala a vontade crônica

dos bens mercantis, o vírus da compra, a paixão pelo novo, um modo de vida

centrado nos valores materialistas”.

Neste paradigma, o amor comprometido passa a ser evitado como

dispendioso e valora-se, entretanto, o prazer de consumir e participar da moda, o

que expressa uma profunda busca de autoafirmação e inclusão social; as relações

sexuais são cada vez mais desvinculadas da instituição matrimonial, tornando-se

uma espécie de brincadeira, na qual duas pessoas, ou mais, que se sentem

sexualmente atraídas pela formosura corporal da outra, consentem em

reciprocamente se utilizarem como meio para se alcançar o máximo de prazer

sexual, consoante a voga utilitarista: “[...] o utilitarismo coloca o acento na utilidade

da ação. Ora, tudo o que dá prazer e exclui o sofrimento é útil, porque o prazer é o

fator essencial da felicidade humana” (WOJTYŁA, 1982, p. 34).Esta moda vale para

o corpo visto como objeto de uso para se obter um prazer egoísta e

descomprometido com o bem do outro, como moda incentivada pela cultura

publicitária do mercado.

Então, o corpo humano - nessa cultura de “hiper-consumo” – não está

devidamente iluminado pela transcendência da dignidade humana, o que se torna

porta de destruição para o homem, para o seu sentido existencial e para o amor

autêntico. Wojtyła reflete sobre isto.

Devido a esta conceituação do ser humano reduzido ao corpo, ao objeto,

ao aparente, nota-se que a união sexual entre homem e mulher vem sendo

empobrecida.

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O amor, portanto, pela essência mesma de tal ponto de vista, é uma aparência, que se deve cuidadosamente cultivar, para que não apareça o que realmente se esconde dentro dela: o egoísmo, e o egoísmo dos mais vorazes, que explora a outra pessoa para si, para o próprio “máximo prazer” (WOJTYŁA, 1982, p.37).

Neste rumo, as tradicionais fases do amor entre homem e mulher,

chamadas namoro, noivado e matrimônio, são atualmente ignoradas quanto ao seu

significado e minimizadas às convenções sociais. Assim, as relações heterossexuais

são niveladas ao prazer, à esfera sensual. Isto leva ao descarte do outro apenas a

pretérita lembrança do gozo que não mais existe.

Com este esquema, a união matrimonial, se não for pautada no

conhecimento, aceitação e cuidado para com a manutenção da reciprocidade no

amor esponsal, este logo se enfraquecerá diante das dificuldades existenciais.

Portanto, os fenômenos negativos que são contrários aos princípios da ética cristã,

tais como: as uniões conjugais sem o matrimônio, o divórcio, a violência na família, o

adultério, o incesto, a pederastia, o aborto e a eutanásia são comportamentos

negativos que ocorrem com maior frequência quando na sociedade se degenera o

sentido do amor e doação recíprocos no matrimônio e na família; é isto o que

caracteriza a crise matrimonial na contemporaneidade.

Buscando soluções para os sobreditos problemas, sobretudo em relação

ao corpo e ao amor humano no matrimônio, têm-se a abordagem filosófica de Karol

Josef Wojtyła, clérigo católico engajado na corrente do Personalismo cristão,

elaborando colocações no setor da ética e da antropologia.

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30

4 KAROL WOJTYŁA E A ÉTICA DE MAX SCHELER

Max Scheler (1875-1928) é um pensador vinculado à corrente

fenomenológica e discípulo direto de Edmund Husserl (1859-1938), o pai da

Fenomenologia. Scheler levou à frente o método de Husserl, construindo seu próprio

pensamento nos setores antropológico e ético. “Duas coisas o ligaram à

fenomenologia: ‘a aversão pelas construções abstratas e a capacidade de captar

intuitivamente a verdade da essência’” (REALE; ANTISERI, 1991, p.567).

A importância de Max Scheler para a compreensão do pensamento ético

de Karol Wojtyła se dá no fato de Wojtyła ter fundamentado seu pensamento na

produção scheleriana, além da de Santo Tomás de Aquino (1205-1274); prova disto

é a sua tese de doutorado em Filosofia: “Valoração sobre a possibilidade de

construir a ética cristã sobre as bases do sistema de Max Scheler” (1954).

A Fenomenologia parte da análise dos fenômenos, colocando-os entre

parêntesis a fim de chegar-se à sua essência. Este método é denominado “epoché”.

De fato, o objetivo da redução fenomenológica é chegar às coisas mesmas. Assim, o

sujeito se abre para apreender o objeto na sua essência. “No acto de ver o

fenómeno puro, o objeto não está fora do conhecimento, fora da ‘consciência’ e, ao

mesmo tempo, está dado no sentido da absoluta autopresentação de algo

puramente intuído” (HUSSERL, 2000, p.69).

Max Scheler, enfileirando-se na defesa do paradigma da subjetividade em

sua antropologia filosófica, concebe o ser humano enquanto pessoa e sujeito que se

difere do mundo animal desde sua plasticidade e adaptabilidade para sobreviver no

mundo.

O homem é o x que pode se comportar ‘abertamente para o mundo’ em uma medida ilimitada [...] O animal não tem nenhum ‘objeto’: ele vive estaticamente em meio ao seu mundo, um mundo que, enquanto estrutura, ele carrega por toda parte por onde vai [...] O animal não consegue levar a cabo este peculiar afastamento, este distanciamento que converte o ‘meio ambiente’ em ‘mundo’ (ou em símbolo do mundo), um distanciamento de que o homem é capaz (SCHELER, 2003, p.38).

Scheler concebe o homem como ser de sentimentos, para além da razão;

neste sentido o amor e, seu oposto, o ódio são imprescindíveis para a constituição

da personalidade humana. As emoções são, desse modo, preponderantes para a

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vivência das relações humanas, que propiciam a formação da personalidade.

Quanto às relações interpessoais, Scheler evidencia o primado do seguimento. “O

seguimento vincula-se ao amor pela pessoa do Mestre modelo; amor que deve ser,

no discípulo e seguidor, mais forte que o amor pelas pessoas mais próximas”

(WOJTYŁA, 1993, p.52). O seguimento se constitui ao modo de vínculos

interpessoais, mediante a imitação do comportamento de uma pessoa-modelo, que

se destaca na sociedade por seus valores, recebendo o papel de modelo pessoal,

através da emoção amorosa de seus seguidores. Desse modo, é o amor a uma

pessoa-modelo que impulsiona os seus seguidores a imitar os seus valores,

formando uma comunidade de pessoas.

4.1 Scheler e a ética valorativa

Presuposta a importância do seguimento de modelos, como relação que

constitui a personalidade humana, ingressa-se na esfera da ética scheleriana.

Max Scheler constrói sua ética numa posição contrária à ênfase ao dever,

dada na filosofia kantiana. Sendo o dever estritamente vinculado à racionalidade,

esse se apresenta enquanto obrigação dada ao ser humano, sem respeitar o sujeito

humano na sua emotividade. Dessa forma, Scheler nega o dever e erige o valor

como integrante de sua ética. Para Scheler, o valor concorda com o caráter pessoal

do ser humano. “A experiência de viver estes valores tem, segundo Scheler, caráter

sobretudo emocional, dado que são o objeto do amor que é o que enriquece e

amplia seu mundo, ou do ódio que restringe esse mundo e o empobrece”

(WOJTYŁA, 2010, p.262)12.

Scheler apresenta o fundamento do valor no amor a uma pessoa-modelo

e, consequentemente, no seu seguimento que enseja as relações interpessoais com

o modelo pessoal e com os demais membros da comunidade de seguidores, que se

acomunam ao vivenciarem os mesmos valores. A moral valorativa de Max Scheler

está construída sobre o princípio do amor nas relações humanas. Então, é esta uma

12

Fonte em espanhol: “La experiência de vivir estos valores tiene, según Scheler, carácter sobre todo emocional, dado que son el objeto del amor que es el que enriquece y amplia su mundo, o del odio que restringe ese mundo y lo empobrece”.

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moral subjetiva, dada na emoção. “Enquanto sujeito espiritual, o homem é pessoa,

ou seja, centro de atos intencionais. A pessoa não é o eu transcendental, mas

individuo concreto, é a unidade orgânica de sujeito espiritual que se serve do corpo

como instrumento para realizar esses valores” (REALE; ANTISERI, 1991, p.569-

570). Para tanto, o ser humano possui a intuição sentimental como instrumento inato

que aprende a objetividade dos valores, estabelecendo uma hierarquia entre eles:

1. Valores sensoriais – do gozador;

2. Valores de civilização – do técnico;

3. Valores vitais – do herói;

4. Valores culturais ou espirituais – do gênio; esta classe se subdivide em:

a) Valores estéticos – do artista; b) Valores ético-jurídicos – do legislador;

c) e Valores especulativos – do sábio.

5. e Valores religiosos – do santo.

Sabendo da preferência de Wojtyła por construir sua reflexão ética sobre

o pensamento de Max Scheler, comparando-o à moralidade cristã, para respaldar

esta ética religiosa numa moral filosófica, aparece a questão: Que motivou Wojtyła a

preferir o sistema ético scheleriano?

A resposta para este questionamento nos dá o próprio Wojtyła e está

profundamente vinculada à gênese de sua obra “Amor e Responsabilidade”. “O

presente livro surgiu em grande parte da necessidade de justificar as normas da

ética sexual católica, e de justificá-las de maneira o mais definitiva possível, a partir

das verdades morais mais elementares e indiscutíveis e para os valores ou bens

mais fundamentais” (WOJTYŁA, 1982, p.10). A motivação de Karol Wojtyła provém

de seu ministério pastoral de orientação de jovens e casais, por sua condição de

sacerdote da Igreja católica. Deste modo, o Padre Wojtyła perante os problemas

vivenciados por essas pessoas, às quais ele se dirigia espiritualmente, procurou dar

uma base ética que os ajudasse. E para isso, ele fez uso de uma linguagem ética

que correspondesse ao contexto daqueles jovens do século XX. Estes que “[...] com

suas dúvidas e com suas perguntas, em um certo sentido, indicaram o caminho

também para mim. Pelos nossos contatos, pela participação nos problemas de sua

vida, nasceu um estudo cujo conteúdo eu sintetizei no título Amor e

responsabilidade” (MESSORI; JOÃO PAULO II, 1994, p.186).

As problemáticas vivenciadas por aqueles jovens poloneses estavam

dadas a partir da ética cristã sobre o amor esponsal, ou seja, sobre a vivência do

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matrimônio; dado que a moral cristã está associada aos conceitos escolásticos e ao

primado do dever, tornou-se problema para aqueles jovens a aceitação daquela

linguagem para justificar o ethos cristão do amor esponsal em pleno mundo

contemporâneo. A questão que surge para Wojtyła é justificar o dever cristão do

matrimônio contra o discurso da moral utilitarista. “O erro essencial está em admitir

só o prazer como único e supremo bem, ao qual devem subordinar-se todos os

outros bens da atividade do homem e da sociedade humana” (WOJTYŁA, 1982,

p.34).

Para isso, Karol Wojtyła encontra no sistema ético de Max Scheler um

discurso próximo àqueles jovens da contemporaneidade, tendo grande possibilidade

de justificar o dever cristão do amor esponsal, mediante o vínculo matrimonial e,

simultaneamente, possa rechaçar a tendência utilitarista em promoção de um

personalismo cristão.

4.2 Linguagem e paradigmas gnosiológicos

Quanto à justificativa de qual a razão da linguagem cristã na ética do

amor esponsal e do dever não está sendo compreendida, conforme os princípios

transmitidos na pastoral da igreja, naquele caso de jovens e casais poloneses,

acompanhados pelo então Padre Wojtyła. Para esta problemática encontramos a

resposta nos paradigmas gnosiológicos, de verdade objetiva e verdade subjetiva,

que se sucederam ao longo da história do pensamento ocidental.

Na antiguidade Clássica e na Idade Média, vigorara a concepção de

verdade objetiva como “adequação do intelecto às coisas”, fora nesse sistema

gnosiológico que ocorrera a Revelação cristã e a sistematização da ética cristã nas

correntes filosóficas da Patrística e da Escolástica.

Assim como o bem designa o termo para o qual tende o apetite, assim, a verdade, o termo para o qual tende o intelecto [...] Do mesmo modo, a verdade, estando no intelecto enquanto este se conforma com a cousa inteligida, necessariamente a noção da verdade deriva para essa cousa, de

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maneira que também esta se chama verdadeira, enquanto se ordena, de certo modo para o intelecto – S. Th. : Q, 16; A,1

13 (AQUINO, 1980, p.165).

No advento da modernidade, a partir do “Cogito, ergo sum” de René

Descartes; o paradigma da verdade objetiva é invertido dando lugar à verdade

subjetiva, para o qual o objeto do conhecimento tem que ser compreendido

conforme o que pensa o sujeito cognoscente, para que seja considerado verdadeiro.

Então, de acordo com este paradigma é cada sujeito humano, na sua

individualidade, que diz o que é o objeto cognoscível – sejam coisas ou pessoas,

conforme a conveniência subjetiva. Resultado deste modelo é que cada sujeito

passa a construir sua visão de mundo como lhe apraz, não tendo necessidade do

dever objetivo, se não for útil à sua liberdade individual. De acordo com este modelo,

apresenta-se a moral do Utilitarismo, em detrimento da moral cristã, especialmente

no que toca à sexualidade humana e ao amor esponsal.

Nesta perspectiva de verdade subjetiva, por exemplo, o pensador Arthur

Schopenhauer (1788-1860) escreveu sua “Metafísica do amor”, na obra “O mundo

como vontade e como representação” (1819), com acentos típicos de uma visão

pessimista e trágica quando expressa o amor entre homem e mulher como calculo

da Vontade – noumênica14 – que rege o mundo das Representações – fenomênicas

-, para perpetuar a existência da espécie humana no mundo. Neste sentido,

Schopenhauer evidencia a ascese, a começar pela abstinência sexual, como forma

única dos seres humanos escaparem do trágico destino imposto pela Vontade, para

que não sejam manipulados como fantoches por ela e afirmem-se como seres livres.

“Enquanto fenômeno, o homem é um elo da cadeia causal do mundo fenomênico.

Mas, reconhecendo a vontade como coisa em si, esse conhecimento age sobre ele

como arquitetante do seu desejo. E é assim que o homem se torna livre, se redime e

entra naquilo que os cristãos chamam de ‘estado de graça’” (REALE; ANTISERI,

1991, p.234). Para Schopenhauer, prazer e felicidade são ilusões, diante da

realidade de dor, que deve ser abraçada. Este pensador também nega o matrimônio,

ao afirmar que homens e mulheres se casam, e logo começam a se odiar. “A

participação da mulher na geração é, em certo sentido, bem mais isenta de culpa do

13 Quanto às siglas entre parêntesis, após o hífen, significam respectivamente: Suma Teológica (S.Th.), questão (Q.), e artigo (A.). 14

Do pensamento kantiano, na Crítica da razão pura (1781): “Noumeno”, refere-se às ideias das realidades metafísicas, ao passo que “Fenômeno”, diz respeito as coisas que aparecem na existência e são possíveis ao conhecimento.

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que a do homem; na medida em que este fornece ao ser gerado a vontade, que

constitui o primeiro pecado e, portanto é a fonte de todo o mal e

perversidade”(SCHOPENHAUER, 1980, p.230). Como solução que livra o ser

humano do fado da Vontade, Shopenhauer indica ainda a arte para a relação com o

mundo, a simpatia para a relação com os outros e a ascese na relação com a

Vontade metafísica.

Embasado no pensamento de Schopenhauer é o pensador

contemporâneo Friedrich Nietzsche (1844-1900). Na obra “Assim falou Zaratustra”

(1885), ele põe o personagem Zaratustra como profeta e asceta que se retira para o

deserto, para o fundo da caverna, para o extremo da escuridão e da fragilidade

humana, donde retorna pregando o entranhado “amor fati”, ou amor à vida.

“Zaratustra não permanece no Não, mesmo sagrado e transmutante. Participa

plenamente da afirmação dionisíaca, ele é já a ideia desta afirmação” (DELEUZE,

2001, p. 39). Particularmente na obra “Genealogia da moral” (1887), Nietzsche ao

criticar a modernidade, o cristianismo e a ciência, registrando sua crítica à moral do

dever, negando-o pelo valor, apresenta o preceito do amor cristão, a caridade, como

ressentimento de escravos, pressuposto que as primeiras comunidades cristãs,

oriunda do povo judeu, também foram formadas em grande parte por escravos e

pelo que seria a “escória” do Império romano. Escreve este pensador: “Fé em quê?

Amor a quê? Esperança de quê? - Esses fracos - também eles desejam ser os fortes

algum dia, não há dúvida, também o seu ‘reino’ deverá vir algum dia – Chamaram-

no simplesmente ‘o Reino de Deus’” (NIETZSCHE, 1998, p.39-40). Contra esta

crítica à caridade e aos demais valores cristãos se opõe Max Scheler em “O

ressentimento na construção das morais”, defendendo o amor cristão, como

verdadeira virtude. Ademais, Scheler busca reabilitar as virtudes enquanto

autênticos valores, em detrimento da habilidade que fora colocada pela

modernidade, usurpando o lugar da virtude. Escreve ele sobre a cultura moderna:

“[...] coisas muito divertidas, olhadas por homens muito tristes, que não sabem

começar nada a partir delas: este é o ‘sentido’ de nossa cultura do divertimento,

cosmopolita” (SCHELER, 1994, p.164). Ainda nesta obra, Scheler crítica a cultura

lúdica da contemporaneidade, pois esta tolhe a criatividade humana, detendo-se nos

meios da ação humana, ao invés dos fins das mesmas.

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36

4.3 A ética wojtyliana como síntese entre Tomás de Aquino e Scheler

Em “Max Scheler e a ética cristã”, Karol Wojtyła investiga a possibilidade

de fundamentar a moral cristã na abordagem valorativa de Max Scheler; dado este

pensamento estar muito presente nas correntes fenomenológica e personalista

contemporâneas. Wojtyła almeja impostar a linguagem da perene ética cristã,

levando-a ao homem do século XX, que pensa conforme o modelo subjetivo de

verdade.

Wojtyła, porém, conclui a impossibilidade de fundamentar a ética cristã no

sistema valorativo de Max Scheler, dado que a revelação cristã (ou seja, o Novo

testamento, que transmite os ensinamentos de Jesus Cristo), acentua a importância

do mandato e dos conselhos no campo moral e, Scheler não aceitar qualquer moral

do dever (inclusive critica, a ética do dever de Kant), porém, somente aceita os

conselhos. “Scheler sustenta que o amor não pode ser objeto de mandamento

algum. Por isto, no ‘mandamento do amor’ vê uma simples proposição que sentencia

acerca do mais alto valor ético” (WOJTYŁA, 1993, p.131). A moral scheleriana prima

pela não agressão dada na imposição do dever à pessoa humana; deste modo, Max

Scheler só aceita o valor que nasce da experiência e da agradabilidade sentimental

do sujeito, ao passo que a moral cristã é objetiva, pois ela se mostra como

instituição divina, ou seja, provindo de fora do homem; nesta moral, não é o homem

que se dá uma lei (autonomia), escolhendo sem maiores consequências os valores

condizentes com a sua vida emocional, porém a lei cristã é dada por Deus e o

homem fiel a aceita e a vive como dever, dando o seu assentimento embasado na fé

da Igreja, da qual comunga. “Somente uma participação de Deus [...] constitui o

fundamento da felicidade definitiva da pessoa humana em Deus segundo a doutrina

revelada, enquanto sua privação é o fundamento da desgraça final da pessoa

humana pelo repúdio de Deus” (WOJTYŁA, 1993, p.163).

Apesar de Wojtyła concluir a impossibilidade de fundamentar a ética cristã

no sistema valorativo de Scheler, ele não rejeita de todo o pensamento scheleriano.

Isto o levou a uni-lo à perenidade do pensamento cristão de Santo Tomás de

Aquino.

Wojtyła concorda com Scheler ao admitir que a ética cristã seja fundada

no princípio do seguimento pessoal do modelo máximo, Jesus Cristo. De fato, os

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37

discípulos seguem Jesus porque o amam e, deste modo, aderem à imitação dos

valores cristãos. Neste caminho os discípulos não ferem suas emoções pessoais.

Porém, dado que os cristãos amam a Jesus Cristo e dão a Ele o seu assentimento

de fé, também aceitam o mandamento de Cristo na sua exigência imperativa,

enquanto caminho de aperfeiçoamento da pessoa humana. “Assim, nas fontes

reveladas da ética cristã, o bem e o mal moral estão subordinados à relação

religiosa do homem com Deus. Toda esta subordinação se manifesta somente na

ordem prática, isto é, quando o homem realiza o bem e o mal moral em atenção a

Deus” (WOJTYŁA, 1993, p.144).

Essa aceitação do dever está baseada filosoficamente no pensamento

cristão, sobretudo no de Tomás de Aquino que alicerçado na verdade objetiva,

evidencia Deus com o “Sumo bem”, único capaz de unir essência e existência nos

entes criados e em quem, unicamente, existência e essência são a mesma coisa.

Para Tomás de Aquino (1980, p.26): “Deus é, não somente, a sua essência [...] mas

também a sua existência [...] Ora, Deus nada tendo de potencial, como

demonstramos, resulta que a sua essência não difere da sua existência e, portanto,

são idênticas” – S.Th. Q,3; A, 4 -. Assim Deus é quem doa a verdade aos seres

humanos e aos mundos, material e espiritual, enquanto entes criados do nada pela

vontade divina; de fato, sobressai-se a perenidade do pensamento tomista por ser,

alicerçado na Revelação cristã; “[...] com razão que santo Tomás pode ser definido

‘apóstolo da verdade’. Porque se consagrou sem reservas à verdade, no seu

realismo soube reconhecer a sua objetividade. A sua filosofia é verdadeiramente

uma filosofia do ser, e não do simples aparecer” – FR. 4415 (JOÃO PAULO II, 2009,

p.63).

Compreende-se o porquê de Karol Wojtyła primar pela abordagem de

Tomás de Aquino, no fato de Wojtyła ser um clérigo da igreja católica que teve como

objetivo construir sua ética para resolver a problemática pastoral da catequização

sobre o amor cristão no matrimônio.

15

Lê-se: Carta encíclica “Fides et ratio”, número 44.

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38

5 A ÉTICA WOJTYLIANA DO AMOR

A ética do amor, na filosofia de Karol Wojtyła, concentra-se no amor

esponsal entre homem e mulher, e tem por base a inviolável dignidade da pessoa

humana e o preceito cristão de amar ao próximo. Este preceito é sintetizado no

conceito de Norma personalista. O conceito wojtyliano de Norma personalista é

desenvolvido em Amor e responsabilidade (1960). Nessa obra Wojtyła trata da ética

personalista a partir do amor entre homem e mulher, primando pela interioridade da

pessoa, dada por Deus mediante a maturidade e a responsabilidade, ressaltadas na

visão realista do amor. Merecem destaque neste capítulo, as produções de Karol

Wojtyła que precederam e sucederam a obra Amor e responsabilidade. Tais são: “A

loja do ourives” (1960), no campo artístico, e a Teologia do corpo (1979 – 1984), no

campo teológico, por estarem intimamente associadas à ética do amor esponsal e

ao enfoque dado ao corpo humano, pelo filósofo polonês.

5.1 “A loja do ourives”: teatro do amor

Trata-se de uma peça teatral de Wojtyła, composta no estilo do teatro

rapsódico e publicada em 1960, sob o pseudônimo Andrzej Jauwien. Esta peça

teatral é constituída por três atos, intitulados, respectivamente: Os avisos; O esposo;

e Os filhos. Cada personagem da trama, declama os fatos que experimentou na sua

história de vida.

Em Os Avisos, os personagens Teresa e André contam como noivaram.

Relembram, como se conheceram, a atração que surgiu entre ambos e, que foram

amadurecendo enquanto amigos, inclusive citando fragmentos das suas cartas.

Relembram um passeio com o grupo de amigos, numa tarde pelas montanhas,

quando se depararam com um fenômeno que interpretaram como aviso ou

presságio. Expressam, também, o momento em que foram à loja do ourives

encomendar as alianças para o seu casamento, quando escutaram as palavras do

ourives:

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O peso destas alianças de ouro/ - disse - não é o peso do metal./ É o peso específico do ser humano,/ de cada um de vocês/ e de vocês dois juntos./ Ah! O peso próprio do homem,/ o peso específico dum ser humano!/ [...] É este o peso da gravidade constante/ ligada ao nosso breve vôo (WOJTYŁA, 1980, p.20).

O coro declama, em seguida, o enlace amoroso de Teresa e André,

quando a vitrine da ourivesaria adquire uma dimensão de eternidade para os noivos.

O Esposo é o segundo ato. Neste, Ana fala do arrefecimento de seu amor

por seu marido, Estevão; expressando a indiferença de seu marido para consigo,

mesmo depois de terem três filhos. Quando Ana passeia pelas ruas em busca de um

novo amor, encontra Um Interlocutor Casual, que se denomina Adão, com quem fala

de sua situação amorosa. Então, Adão lhe dá conselhos a respeito do amor

humano. Este encontro se dá depois de uma tentativa fracassada, na qual Ana

tentou vender sua aliança nupcial para o velho ourives. Após esta frustrada tentativa,

Ana tenta chamar a atenção de outros homens, que possam lhe dar afeto, porém

Adão “a acorda” desta fantasia, lembrando-lhe, a parábola evangélica das virgens,

umas prudentes e outras imprudentes16, com suas lâmpadas a espera do esposo.

Então Adão se refere ao esposo que passa pela rua, em quem Ana reconhece a

face de Estevão:

Oh! Ana, como será que vou conseguir persuadi-la de que, além de todos estes amores que nos enchem a vida – existe o Amor. O Esposo passa por esta rua e passa por todas as ruas! Como será que vou conseguir persuadi-la de que a Esposa é você?( WOJTYŁA, 1980, p.45).

16 Segue-se, na integra, o texto desta parábola, extraído do evangelho segundo Mateus (Mt. 25, 1-13), na tradução Nova versão internacional: “O Reino dos céus, pois, será semelhante a dez virgens que pegaram suas candeias e saíram para encontrar-se com o noivo. Cinco delas eram insensatas, e cinco eram prudentes. As insensatas pegaram suas candeias, mas não levaram óleo consigo. As prudentes, porém, levaram óleo em vasilhas juntamente com suas candeias. O noivo demorou a chegar, e todas ficaram com sono e adormeceram. "À meia-noite, ouviu-se um grito: ‘O noivo se aproxima! Saiam para encontrá-lo! ’ "Então todas as virgens acordaram e prepararam suas candeias. As insensatas disseram às prudentes: ‘Dêem-nos um pouco do seu óleo, pois as nossas candeias estão se apagando’. "Elas responderam: ‘Não, pois pode ser que não haja o suficiente para nós e para vocês. Vão comprar óleo para vocês’. "E saindo elas para comprar o óleo, chegou o noivo. As virgens que estavam preparadas entraram com ele para o banquete nupcial. E a porta foi fechada. "Mais tarde vieram também as outras e disseram: ‘Senhor! Senhor! Abra a porta para nós! ’ "Mas ele respondeu: ‘A verdade é que não as conheço! ’ "Portanto, vigiem, porque vocês não sabem o dia nem a hora!”

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O Coro e Estevão fazem um intervalo ao declamarem um poema sobre o

amor humano, onde se ressalta as figuras das virgens e do esposo, bem como as,

de Ana e de Estevão. Ana conclui o ato, com palavras de esperança, derivadas de

ter reconhecido no rosto do esposo, a face do seu marido.

O ultimo ato, denominado Os Filhos, traça a história de amor entre

Cristovão, filho de Teresa e André, e Mônica, filha de Ana e Estevão. Teresa

expressa sua preocupação com o namoro de seu filho com Mônica, que aparenta

ser tímida e ensimesmada; Teresa se preocupa, sobretudo, por ter sido mãe e pai

para Cristovão, após a morte de André na guerra. Tal ato mostra a problemática de

Mônica, que recebe o reflexo da crise matrimonial de seus pais. No entanto, com o

amor de Cristovão, Mônica tem a possibilidade de passar do tímido medo ao dom do

amor, um amor que a cura.

No casamento de Mônica e Cristovão, Adão aparece como amigo íntimo

do falecido André e, por conseguinte, de sua família, ali reencontra Ana e transmite-

lhe novos conselhos a respeito do amor. Estevão se dá conta das negativas

consequências, oriundas da frieza de seu amor para com Ana, na problemática

afetiva de Mônica, que a partir do seu casamento se torna livre para amar. Diz

Estevão:

Naquele momento – pela primeira vez em tantos anos – senti que era necessário dizer alguma coisa em que pusesse toda a minh’alma. Queria dizê-lo exatamente a Ana (isto seria talvez uma prova de auto-acusação, ou melhor, uma prova da divisão da culpa entre nós dois). (WOJTYŁA, 1980, p. 72).

Estevão reaproxima-se de Ana, confessando que ambos perderam muitas

oportunidades ao esquecerem, ou deixarem esfriar, o seu amor de outrora.

5.2 A obra ética “Amor e responsabilidade”

A obra ética “Amor e responsabilidade”, publicada por Karol Wojtyła em

1960, é fruto da necessidade pastoral de justificar a moral católica a respeito da

convivência matrimonial do casal cristão, numa linguagem condizente com o pensar

do homem do século XX. Primando pelo conceito cristão de amor, tal obra trata da

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ética sexual, de modo a fazê-la depender do valor grandioso que é a pessoa

humana, pois a “[...] ordem pessoal é a única plataforma apropriada para todas as

reflexões no campo da ética sexual” (WOJTYŁA, 1982, p.11). Para tanto, no prefácio

à segunda edição dessa obra, Wojtyła faz a distinção entre os conceitos de moral e

de ética. Assim, a moralidade está vinculada às ações voluntárias e racionais da

pessoa humana ao passo que a ética se circunscreve no campo do pensamento

filosófico como um ponderar sobre a bondade ou maldade dos fatos morais.

A moral é a esfera distinta da existência humana, e particularmente da atividade humana relacionada com o uso da razão e da livre vontade. Os atos humanos, com base no uso da razão e na livre vontade, têm o valor moral, são moralmente bons ou maus. A ética, como a esfera distinta do pensar filosófico, baseia-se no fato da moral para buscar, antes de tudo, a fundamentação para o bem e para o mal moral (WOJTYŁA, 1982, p.14).

Wojtyła sistematizou a obra “Amor e responsabilidade” em cinco capítulos,

intitulados respectivamente: A pessoa e o impulso sexual; Pessoa e amor; Pessoa e

castidade; Justiça em relação ao Criador; e Sexologia e ética. Como textos mais

condizentes com o interesse da presente pesquisa, dar-se-á enfoque nos dois

capítulos iniciais dessa obra ética.

5.2.1 A pessoa e o impulso sexual

Ao analisar a palavra “usar” Wojtyła parte da incomunicabilidade e da

inalienabilidade da pessoa humana. Estas características se originam da

interioridade do ser humano, manifestada na autodeterminação e no livre arbítrio,

pois “Ninguém pode querer em meu lugar. Ninguém pode substituir o meu ato de

vontade pelo seu” (WOJTYŁA, 1982, p.22). Partindo da evidencia da pessoa

humana como sujeito e objeto da ação, Wojtyła evidencia dois significados da

palavra “usar”.

No primeiro significado, usar equivale à instrumentalização de qualquer

coisa para se alcançar um fim visado na ação; quanto ao emprego desta

instrumentalização nas pessoas humana, o filósofo Immanuel Kant (1724-1804) já

formulara na obra “Fundamentação da metafísica dos costumes”, o princípio de não

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instrumentalização do sujeito se refere à pessoa humana sempre como fim de toda

ação humana; este princípio é reformulado de modo positivo por Wojtyła para

fundamentar todas as ideias de liberdade humana, que sejam corretamente

concebidas, escrevendo: “todas as vezes que no teu procedimento uma pessoa é

objeto da tua ação, deves lembrar que não podes trata-la como instrumento, mas

deves considerar que ela mesma tem ou deveria ter o seu próprio fim” (WOJTYŁA,

1982, p.27). Esta reformulação positiva põe a pessoa humana, sempre como fim em

si mesmo e dá azo, nas relações interpessoais ao vinculo do bem comum e ao amor

que se opõe a este primeiro conceito da palavra usar, dado que “[...] o amor se

identifica com uma particular disposição de subordinar-se ao bem, que [...] constitui ‘

a humanidade’, e mais precisamente o valor da pessoa humana” (WOJTYŁA, 1982,

p. 30).

O segundo significado da palavra “usar”, está associado à vivência do

prazer ou do enlevo, que em várias modalidades está vinculado à ação. Deste

modo, na convivência sexual do casal humano, o outro jamais poderá ser reduzido a

instrumento para se alcançar o prazer, inclusive no seu corpo, porém deve está na

relação sempre como fim digno de ser amado na sua personalidade; caso contrário,

ele estaria sendo ferido em seu valor pessoal. Vinculado à este segundo significado,

se encontra a ética utilitarista que “[...] na sua formulação definitiva, o princípio da

utilidade (principium utilitatis) exige o máximo de prazer e o mínimo de sofrimento

para o maior número possível de homens” (WOJTYŁA, 1982, p.34).

Nesta lógica utilitarista, cada pessoa humana deve estar como sujeito que

instrumentaliza o outro, para obter o máximo de prazer, mas, simultaneamente,

também é objeto a ser instrumentalizado pelos outros a fim de lhes conferir prazer.

Nesta forma ética, o prazer é considerado sinônimo de felicidade, mas esta é uma

felicidade subjetiva. Wojtyła critica ferrenhamente o princípio utilitarista,

sobremaneira quando aplicado nas relações amorosas entre homem e mulher, pois

o utilitarismo afirma implicitamente que o amor só existe na satisfação hedônica do

sujeito que instrumentaliza a outra pessoa na relação amorosa. Esta prática dá azo

ao egoísmo e degenera a relação amorosa entre o casal humano, que logo se

transformará em ódio.

Para Wojtyła, o amor só é perene se fundado na objetividade do bem

comum resultante da comunhão pessoal. “Este objetivo é o fundamento do amor, e

as pessoas que o escolhem a ele se subordinam simultaneamente. Graças a ele

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unem-se entre si com o vínculo objetivo do amor, que lhes permite libertar-se do

subjetivismo e do inevitável egoísmo que nele se oculta. O amor é a comunhão das

pessoas”( WOJTYŁA, 1982, p.36).

Fundamenta-se, Wojtyła no mandamento do amor dado por Jesus Cristo

aos seus discípulos, exigente do amor recíproco entre as pessoas, incluindo aos

inimigos, que devem ser perdoados. Um amor que se funda na perfeição de Deus

que concede o bem a todos, sejam justos ou ímpios, sem fazer distinção de

pessoas, o que é a perfeição moral17. Trata-se para nosso filósofo, de uma norma

de alto nível, encontrada em patamar mais excelente em comparação ao do

princípio utilitarista. Sobre este fundamento, Karol Wojtyła formula o princípio e a

norma, personalistas, quando afirma:

Esta norma, no seu conteúdo negativo, afirma que a pessoa é um bem, o qual não está de acordo com a utilização, tendo em vista que não pode ser tratada como objeto de uso, portanto como um meio. Paralelamente aparece o conteúdo positivo da norma personalista: a pessoa é um bem tal que só o amor se relaciona com ela própria e plenamente (WOJTYŁA,

1982, p.38).

Neste sentido, ao colocar a pessoa humana como fim em si de todos os

atos da alteridade e absolutamente digna de ser amada, por seu caráter pessoal,

Wojtyła pensa que seguir tal norma é estabelecer, nas relações humanas, a justiça

para com a pessoa.

Interpretando o impulso sexual, Wojtyła distingue os conceitos de

“instinto” e de “impulso”; é, pois, o “instinto” um modo de agir peculiar dos animais

irracionais; este modo de ação é caracterizado pela espontaneidade e pela

irreflexão. Por outro lado, o “impulso”, interpretado de maneira mais próxima à

realidade, “[...] é uma orientação natural e inata das tendências humanas, em virtude

do qual todo o seu ser se desenvolve e aperfeiçoa interiormente” (WOJTYŁA, 1982,

17 Seguem-se as citações bíblicas que justificam esta apresentação da moral cristã, pesquisadas da tradução bíblica Nova versão internacional, conforme afirma Jesus Cristo, nas narrações dos evangelhos segundo João e Mateus: "Um novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros; assim como eu vos amei a vós, que também vós vos ameis uns aos outros. Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros". (João 13, 34-35), e "Ouvistes que foi dito: Amarás ao teu próximo, e odiarás ao teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai aos vossos inimigos, e orai pelos que vos perseguem; para que vos torneis filhos do vosso Pai que está nos céus; porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons, e faz chover sobre justos e injustos [...] Sede vós, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso Pai celestial" (Mateus 5, 43-45. 48).

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p.43). Assim, na pessoa humana, o impulso sexual corresponde aos fatos da vida

afetiva e sensitiva, que não sofrem interpretação da vontade.

O impulso sexual, quando tem sua orientação natural na pessoa humana,

visa outra pessoa do sexo oposto, na sua totalidade pessoal. Nisto, o impulso sexual

traz a “possibilidade de amar” dado que o amor é próprio do ser pessoal . Nesta

senda o impulso sexual deve ser orientado pela própria pessoa através da faculdade

de autodeterminação para possibilitar a superação do “determinismo biológico”,

assente que o impulso sexual no campo psicológico, não consegue determinar

totalmente o ser humano, deixando espaço à ação de sua liberdade, para que ele

mesmo se determine.

A finalidade natural do impulso sexual18 é a procriação, como viva

concretização da finalidade do amor entre homem e mulher. Nisto, o objetivo deste

impulso é a perpetuação da existência humana, tema este que transcende os

conhecimentos biológico e psicológico, tornando-se objeto de reflexão para a

filosofia e para a teologia. “Homem e mulher, pela procriação, pelo fato de

participarem na obra do nascimento dum novo ser participam também, a seu modo,

na obra da criação [...] A relação sexual entre o homem e a mulher é basicamente

uma relação corporal, embora deva ter como origem um amor espiritual” (WOJTYŁA,

1982, p.50).

Assim, é sempre no amor – conforme a norma personalista – que os

cônjuges devem procriar, contribuindo com o Criador para a existência de uma nova

pessoa humana. Esta fecundidade do amor esponsal deve ser continuada na obra

da personalização do novo ser humano filho do casal, através da educação

alicerçada no amor, tomando por base que a educação é peculiar a natureza

humana. “A educação é uma criação que tem como objeto a pessoa [...] tudo o que

18

O impulso sexual é um dos impulsos que constituem o inconsciente do ser humano, a nível psicológico. Baseado nas teorias da Psicanálise com Sigmund Freud e em Joseph Nuttin (1909-1988), João Mohana (1925-1995) escreve acerca de três níveis de impulsos do Inconsciente, que também é denominado Id ou Impulso de desenvolvimento global: "Diariamente nós realizamos atos que se situam no nível psico-biológico da nossa vida; atos que se situam no nível psico-social; e atos que se situam no nível psico-espiritual. Nesses três níveis de nossa vida o impulso de desenvolvimento global se expande e aí desencadeia nosso comportamento. [...] No nível psico-biológico temos dois impulsos: o impulso de auto-conservação e o impulso sexual. [...] No nível psico-social de nossa vida temos dois impulsos: o impulso de sociabilidade e o impulso de auto-afirmação. [...] No nível psico-espiritual [...] também dois impulsos se manifestam: o impulso de cogitação do sentido da existência (que Victor Frankl denomina vontade de significação) e o impulso de auto-transcedência"(MOHANA,1968, p.16-18).

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se encontra naturalmente no homem, objeto de educação, constitui para os

educadores a matéria que o seu amor deve plasmar” (WOJTYŁA, 1982, p.51).

Karol Wojtyła se opõe as interpretações extremistas ao impulso sexual.

Representadas, estas, primeiro pelo rigorismo, ou puritanismo, de matriz religiosa

que concebe o Criador como instrumentalizador da espécie humana, inclusive para

o fim da continuidade da existência humana pelo impulso sexual, o que daria

legitimidade para que o homem instrumentalizasse a mulher, com o fim de conseguir

a prole. A segunda é representada pela teoria psicanalítica de Sigmund Freud

(1856-1939), alicerçando-se no princípio do impulso para a deleição (líbido-trieb) no

ser humano, colocando o prazer como fim primaz do impulso sexual e relegando a

procriação a segundo plano. Esta interpretação nega a existência da interioridade

pessoal e acaba por nivelar o ser humano ao patamar do psiquismo animal.

Associada a esta interpretação, está a doutrina malthusiana, de Tomás Malthus

(1766-1834), que salientou a questão do aumento da população mundial e o

problema da escassez de alimentos para a mesma população, promovendo, a partir

disto, a campanha a favor do controle de natalidade e, ao mesmo tempo,

fortalecendo a interpretação freudiana sobre o impulso sexual, colocando-o numa

esfera técnica ao invés da esfera ética, conforme o princípio utilitarista. Esta situação

é decisivamente combatida pela moral cristã – na Igreja católica, com a qual está de

acordo o pensamento ético de Wojtyła.

5.2.2 Pessoa e amor

No segundo capítulo, Wojtyła faz a análise geral da palavra “amor”.

Tomando como ponto inicial o fato de que “[...] o amor é sempre uma relação

recíproca entre pessoas, que, por sua vez, é baseada na atitude individual e comum

delas a respeito do bem” (WOJTYŁA, 1982, p.67). Neste rumo, nosso pensador

aplica esta análise geral do amor, nas relações entre homem e mulher.

O amor manifesta-se como “agrado”, quando a pessoa agradável é vista

sempre como um bem, e se este amor nasce dos sentimentos, vinculando o

conhecimento e a vontade. Deste modo na relação entre homem e mulher, quando o

homem é o sujeito do agrado é porque “[...] a mulher se apresenta no campo da

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visão do homem como um bem, que suscitou o agrado” (WOJTYŁA, 1982, p.69). As

emoções dão orientação aos atos cognoscitivos, isto pode dar margem ao

subjetivismo, quando o sujeito do agrado constrói ideias não correspondentes à

realidade a respeito da pessoa que é objeto do seu agrado; tornando-se – este

subjetivismo – prejudicial ao desenvolvimento do amor. No sentido verdadeiro, que

dá lugar à própria beleza, afirma nosso filósofo: “‘agradar’ significa apresentar-se

como um bem, mais ainda: como o bem que se é” (WOJTYŁA, 1982, p.72).

O amor como “concupiscência”, constitui-se como “[...] uma cristalização

da necessidade objetiva de um ser orientado para o outro, por ver nesse outro um

bem e um objeto de desejo” (WOJTYŁA, 1982, p.73). Deste modo, o amor

concupiscível nasce da solidão e da incompletude que experimentam tanto o homem

como a mulher, um necessitando do outro para completar o próprio ser. Nesta

orientação, a concupiscência aparece como desejo de possuir a pessoa de sexo

adverso, dado que ela é vista como um bem agradável. Tal relação dar margem a

um comportamento utilitário, em face da pessoa que é objeto de desejo; porém se

esta utilidade prescindir do valor do outro enquanto pessoa, este amor se torna

inautêntico.

No amor como “benevolência”, apesar deste não acabar com o caráter

concupiscível do amor entre homem e mulher, leva o eros19 ao estado de perfeição,

negando-se como egoísmo e se assumindo genuinamente como amor. Pois na

benevolência, nunca “[...] é suficiente desejar somente a pessoa como um bem para

si; é necessário, além disso – e acima de tudo -, desejar ao mesmo tempo o bem

dela” (WOJTYŁA, 1982, p.75). Nesta relação benevolente, a pessoa amada só será

um bem para a pessoa que a ama, se aquela o quiser. A benevolência manifesta

que a atitude concupiscível jamais esgota o sentido do amor. A partir da atitude

benevolente, entre homem e mulher se pode pensar no amor recíproco entre eles.

Quando esta benevolência é mútua, afirma Wojtyła, não são mais dois amores que

existem, no entanto os amores que partem do homem e da mulher se fundem num

vínculo de amor, que se constitui como bem comum dos amantes. A harmonia no

amor conduz ao estabelecimento da mútua confiança, reveladora da maturação dos

amantes que, por seu turno, superaram o ciúme, este que é oriundo da

19

Nome em grego da espécie de amor que Wojtyła conceitua como “concupiscível”. Sobre o amor-eros, escreveu o papa Bento XVI (Joseph Ratzinger) na encíclica “Deus caritas est” (2005), nº.3: “Ao amor entre homem e mulher, que não nasce da inteligência e da vontade mas de certa forma impõe-se ao ser humano, a Grécia antiga deu o nome de eros”.

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concupiscência. “Para que o amor alcance a sua plenitude, é preciso que o caminho

que conduz da mulher ao homem se cruze com o que vai do homem à mulher. Um

amor recíproco cria uma base mais imediata para que de dois ‘eus’ surja um ‘nós’.

Nisto consiste o seu dinamismo natural” (WOJTYŁA, 1982, p.77).

Tratando da simpatia, camaradagem e amizade, na relação pessoal entre

homem e mulher, o pensador polonês, diz que a simpatia está alicerçada na emoção

e na afetividade, quando une homem e mulher, porém sem maior intervenção da

decisão e da vontade, o que pode levar esta relação a cair no subjetivismo e na

efemeridade. Para que isto não ocorra é necessária a existência da amizade ao lado

da simpatia, pois a amizade “[...] consiste num compromisso maduro da vontade em

relação a outra pessoa visando o seu bem” (WOJTYŁA, 1982, p.82). Deste modo,

colocar a amizade lado-a-lado com a simpatia resulta na reta educação do amor,

inclusive pondo a vontade e a decisão ao lado do vínculo afetivo-emocional para

conferir objetividade e maturidade à relação. A camaradagem, ao contrário da

simpatia, é dada na vida comunitária e na objetividade; quando se travam relações

de coleguismo ao se desempenhar atividades num mesmo grupo social, são os

casos do trabalho e do estudo escolar.

O amor esponsal, incluindo e aperfeiçoando os anteriores níveis de amor

evidenciados acima, consiste na livre entrega do próprio ser ao outro-amado. De

fato, é neste amor entre homem e mulher que se baseia o matrimônio. “Consiste na

entrega da própria pessoa. A sua essência é a entrega de si mesmo, do próprio

‘eu’[...] ‘Dar-se’ é algo mais do que só ‘querer-bem’, ainda que, por causa disto, o

outro ‘eu’ se tornasse quase o meu próprio, como na amizade” (WOJTYŁA, 1982,

p.85). No amor esponsal, tem-se a vigência de um paradoxo, no qual as pessoas,

naturalmente inalienáveis e tendentes ao próprio aperfeiçoamento, entregam-se

mediante o amor esponsal à pessoa amada, saindo do seu próprio “eu” e, ao mesmo

tempo, enriquecendo-se e desenvolvendo-se no ato dessa entrega. Nesta esteira, o

matrimônio aperfeiçoa o amor esponsal, conduzindo homem e mulher à maturidade,

e exigindo a fidelidade entre os cônjuges.

Fazendo a análise psicológica do amor heterossexual, Wojtyła ressalta os

preponderantes papéis da percepção e da emoção nesta relação. A percepção

relaciona-se à apreensão da imagem do objeto pessoal do amor, ao passo que a

emoção, vincula-se sensitivamente ao valor deste objeto pessoal. Percepção e

emoção dão ensejo à sensibilidade, enfocando o corpo do outro como possível

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objeto de uso que satisfaça o impulso sexual. Porém, não sendo pura a

sensualidade, ela é sempre aberta à transformação dada a partir dos valores; isto

não impossibilita a vivência da norma personalista como orientadora da

sensualidade, pois o corpo participa do composto humano, não se alheando do valor

e da dignidade humanas.

A sensualidade em si, não é amor. “A orientação para o valor sexual, do

‘corpo’ como objeto de uso, exige sem dúvida uma interrogação: deve ser inserida

num relacionamento integral e maduro a respeito da pessoa. Sem isso não há amor”

(WOJTYŁA, 1982, p.96). A afetividade, ao contrário da sensualidade, aparece como

ausência da concupiscência num primeiro momento. No amor afetivo se exterioriza

as ações afetuosas e surge entre as pessoas envolvidas o desejo de se estar a sós

e sempre juntos, dado a agradabilidade do afeto recíproco. Existe, então, uma

influência recíproca entre as esferas: amor afetivo, de um lado e, memória e

imaginação, de outro; dando, inclusive, margem ao subjetivismo. Porém o amor

afetivo conserva o aspecto da permuta e da criação de valores entre as pessoas

envolvidas nele.

Karol Wojtyła se expressa sobre a questão da integração do amor entre o

casal. Amor este, que é dado sobre os alicerces da verdade objetiva e da liberdade

pessoal – que levam tal amor à maturidade que vigora no compromisso do bem

comum dos amantes e dinamiza-se pela autodeterminação das pessoas

comprometidas entre si. Deste modo, “a capacidade de conhecer a verdade

possibilita ao homem a autodeterminação, ou seja, a decisão autônoma sobre o

caráter e a orientação dos próprios atos, em que consiste precisamente a liberdade”

(WOJTYŁA, 1982, p.101).

Elaborando uma análise ética do amor do casal humano, Wojtyla o faz à

luz da verdade objetiva. Ele dá, a princípio, ênfase à vivência da virtude no amor,

posto que o sentido ético deva orientar sempre a direção psicológica do amor, a fim

de que esta esteja sempre associada ao verdadeiro bem. Este bem genuíno se

manifesta no compromisso virtuoso do amante para com a pessoa amada,

autodeterminando-se e assumindo a obrigação da responsabilidade para com o

outro no bem comum do casal, inclusive podendo se definir naturalmente no

matrimônio.

Esta instituição se fundamenta na primazia do valor da pessoa humana,

sobretudo no que diz respeito à sua interioridade. Pois, “o valor da pessoa está

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ligado ao seu ser total e não apenas à sexualidade, que é somente a propriedade do

ser” (WOJTYŁA, 1982, p.107). Dizendo respeito a isto, o amor esponsal acontece

não apenas como sentimento, porém, como virtude fundada na vontade. Neste

sentido, o matrimônio tira as pessoas de sua peculiar intangibilidade, pelo fato de

quererem se doar totalmente à pessoa amada, na reciprocidade do amor e da

pertença, que se expressa, sobretudo na mútua entrega de si no ato sexual-

procriativo. A este, Wojtyła chama “convivência matrimonial”, por considerá-lo

legítimo apenas dentro do matrimônio. Posto que o matrimônio institua publicamente

o amor esponsal do casal, com os compromissos de fidelidade e responsabilidade,

recíprocos.

Nesta esfera ética, o amor se afirma como objetividade que orienta a

subjetividade dada no âmbito psíquico do casal. Desta verdade do amor esponsal,

emanam as necessidades de educação da prole e da juventude em geral para a

acertada vivência do amor entre homem e mulher, pautando-se na vontade livre que

se torna responsável à medida que prioriza o valor da pessoa humana mediante o

compromisso ético, dado que

[...] há no amor uma responsabilidade, assumida com a pessoa que se atrai à estreita comunhão do ser e do agir e que, por causa de sua entrega, passa a ser de algum modo a nossa propriedade. E por isso também se assume uma responsabilidade pelo próprio amor [...] Mas só pode compreendê-la aquele que possui a plena consciência do valor da pessoa (WOJTYŁA, 1982, p.113-114).

Por tudo isso, o amor esponsal, no sentido genuíno, está alicerçado nos

valores espirituais e tem a missão de zelar pelo valor da pessoa na sua totalidade –

corpo, alma e espírito. Nisto, o amor do casal, de modo autêntico, está fundado na

objetividade das coisas e das pessoas humanas, que recebem seus, ser e existir do

próprio Deus. Decorrendo disto que, para o amor esponsal e a instituição

matrimonial se consolidarem é indispensável a prioridade que os cônjuges, e a partir

deles a família, devem dar ao próprio Deus, que é Amor20, como concorda Wojtyła.

20

Esta definição da essência divina, encontramo-la na primeira carta de João presente na Sagrada Escritura. Citamo-la conforme a tradução bíblica Nova versão internacional (I João 4, 16): “Assim conhecemos o amor que Deus tem por nós e confiamos nesse amor. Deus é amor. Todo aquele que permanece no amor permanece em Deus, e Deus nele”.

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5.3 O papa Wojtyła e a “Teologia do corpo”

Nos primeiros anos de pontificado de Karol Wojtyła, como papa João

Paulo II, à frente da Igreja Católica Romana, este pontífice-filósofo deu continuidade

à ênfase ao amor entre o casal cristão; privilegiando, a partir de seu ministério de

Sumo pontífice, a linguagem teológica, sem se desfazer da contribuição da filosofia,

como se observa em seus pronunciamentos e documentos, pontifícios; nestes o

papa Wojtyła sempre recorreu aos conceitos que outrora elaborou nas suas

reflexões e publicações filosóficas.

No tocante ao tema “amor conjugal”, sobressaem-se as reflexões de João

Paulo II em quatro publicações mais enfáticas, a saber: a exortação apostólica

Familiaris Consortio (1981), sobre a missão da família cristã no mundo atual; as

catequeses sobre o amor humano, Homem e mulher o criou (1985), as quais o

mesmo pontífice também intitulou “Teologia do corpo”; a carta encíclica sobre a

dignidade e a vocação da mulher na Igreja e no mundo, Mulieris Dignitatem(1988) e

a Carta às famílias(1994), emanada por ocasião da celebração do Ano da família, na

Igreja Católica.

Para acenarmos às reflexões sobre o corpo e, o amor esponsal, no

magistério de João Paulo II, faz-se interessante privilegiarmos as “Catequeses sobre

o amor humano”, que sintetizam o pensamento de nosso pontífice-filósofo sobre

esta temática. Este documento é composto por 129 discursos do papa Wojtyla,

proferidos nas tradicionais audiências pontifícias das quartas-feiras, que foram

compreendidas no período de 5 de setembro de 1979 à 28 de novembro de 1984.

Para o estudioso da Teologia do corpo, João Petrini (2005, p.13), “Homem e Mulher

o Criou esboça a imagem do homem e da mulher, com extraordinária aderência à

realidade. O autor consegue elucidar a condição humana, a grandeza e a dignidade

do homem e da mulher e os caminhos para uma realização possível, ainda durante

a aventura terrena”.

As “Catequeses sobre o amor humano” são sistematizadas em seis ciclos,

a saber: O princípio (I); A redenção do corpo (II); A ressurreição da carne (III); A

virgindade cristã (IV); O matrimônio cristão (V) e; Amor e fecundidade (VI).

No ciclo “O princípio”, João Paulo II se remonta as narrativas bíblicas do

livro do Gênesis quando Deus criou o homem e a mulher e os abençoa como casal

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para que administrem com zelo a criação, cresçam e multipliquem-se. É uma

figuração muito significativa, o próprio Deus plasmar da terra o corpo de Adão – o

primeiro homem – conferindo dignidade pessoal a este corpo frágil, proveniente da

terra na sua matéria, quando insufla em suas narinas o hálito divino que dá a vida.

Na criação de Eva, a primeira mulher, que é destinada a constituir uma só

carne21 com Adão, evidencia-se que a mulher, “Mãe dos viventes”, fora plasmada

pelo Criador a partir do lado, ou do coração de Adão, donde fora tirada por Deus

durante o profundo sono do primeiro homem, ou seja, na vivência onírica dele, onde

se dão os desejos mais profundos do seu Inconsciente, conforme a Psicanálise.

É, para João Paulo II, proeminente que antes da criação da mulher, o

homem estava solitário e triste, no jardim do Édem. Não obstante estando Adão em

constante relação com Deus e com a criação, apenas ficara feliz quando contemplou

a mulher, esta que lhe arrancara da sua solidão existencial, através da fecundidade

no amor, que lhe conferiu a identidade pessoal. Tem-se a hermenêutica desta

passagem bíblica:

“Esta, sim, é osso de meus ossos e carne de minha carne! Ela será chamada ‘mulher’ porque foi tirada do homem” (Gn. 2,23). Deste modo o homem (masculino) manifesta, pela primeira vez, alegria e até exultação, sendo que anteriormente não tinha motivo para isso, por causa da falta dum ser semelhante a si. (JOÃO PAULO II, 2005, p.80)

22.

A partir do encontro de Adão com Eva, mediante a própria benevolência

do Criador, o ser humano é feito semelhante a Deus através da “comunhão

pessoal”, pois Deus se revela como comunhão de três pessoas divinas, sendo a

terceira o próprio amor. Portanto, na narração bíblica de Gênesis, Adão e Eva são

duas pessoas, homem e mulher, unidos reciprocamente no amor esponsal. Ainda

neste ciclo, Sua Santidade dá ênfase ao corpo como sacramento de doação pessoal

na comunhão entre homem e mulher, ou seja, ressalta o significado esponsal do

corpo humano, como dom: “O corpo, que exprime a feminilidade ‘para a

masculinidade e, vice-versa, a masculinidade ‘para’ a feminilidade, manifesta a

reciprocidade e a comunhão das pessoas. Exprime-a por meio do dom como

característica fundamental da existência pessoal” (JOÃO PAULO II, 2005, p.98).

21

Esta figura de linguagem diz respeito à união matrimonial e à procriação. 22 Na citação, a sigla Gn. refere-se ao livro de Gênesis, na Sagrada Escritura.

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No ciclo catequético “A redenção do corpo”, João Paulo II trata da

redenção do homem e da mulher dada em Cristo, após o pecado original. A partir do

modelo Jesus cristo que se doou inteiramente, no drama da cruz, para redimir a

Igreja – sua esposa; os cônjuges têm o exemplo a seguir no seu amor esponsal.

Para tanto, homem e mulher devem se educar a partir do paradigma voluntário da

redenção do coração para atuarem administrando seu impulso concupiscível,

orientando-se para a lógica do se fazer dom na fidelidade conjugal, aí a Teologia do

corpo assumiria, na pratica, um caráter pedagógico.

Se o apelo de Cristo ao “coração” humano e, ainda antes, a sua referência ao “princípio” nos permite construir ou pelo menos esboçar uma antropologia, que podemos chamar “teologia do corpo”, tal teologia é ao mesmo tempo pedagogia. A pedagogia tende a educar o homem, pondo diante dele as exigências, motivando-as, e indicando os caminhos que levam às suas realizações (JOÃO PAULO II, 2005, p.258).

O ciclo “A ressurreição da carne”, aborda a presença cristã da

ressurreição da pessoa humana na sua totalidade – corpo, alma e espírito; como

fruto e participação na morte e ressurreição de Jesus Cristo. Na doutrina do apóstolo

Paulo, no tocante ao corpo, trata-se de uma passagem dum corpo fraco que se

tornará em Cristo, um corpo cheio de força ou corpo glorificado.

Assim, portanto, a antinomia “fraco-cheio de força” refere-se, explicitamente, não tanto ao corpo considerado na sua corporeidade. Só no quadro de tal constituição pode o corpo tornar-se “espiritual”; e tal espiritualização do corpo será a fonte da sua força e incorruptibilidade (ou imortalidade) (JOÃO PAULO II, 2005, p.308).

No ciclo “A virgindade cristã”, põe-se o celibato clerical e o voto de

castidade, não como uma negação do amor esponsal entre homem e mulher,

porém, antes como uma realização deste amor esponsal numa entrega

transcendente: uma entrega total da pessoa a Deus. Tal entrega a Deus, não se

distancia da vocação pessoal a ser dom aos outros, que se realiza no corpo; porque

a pessoa consagrada entrega a sua vida pelo bem da comunidade cristã, em vista

da construção do Reino de Deus, que é regido pelo princípio do amor que se

entrega em vista do bem dos outros.

Neste sentido a renuncia, efetuada pela pessoa consagrada, ao

casamento manifesta aos casais cristãos que eles não se bastam a si mesmos para

preencherem o vazio existencial que possuem e serem felizes; pois mesmo no

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matrimônio, continua essa carência interior tanto no homem como na mulher23. Pois

esta carência humana só pode ser suprida por Deus, na eternidade da glória eterna,

assim é Deus o verdadeiro esposo da alma humana24. Assim, o celibato apostólico

ou a virgindade consagrada, “[...] adquiriu o significado de um ato de amor esponsal,

isto é, de uma doação esponsal de si, a fim de retribuir de modo particular o amor

esponsal do Redentor; uma doação de si, entendida como renuncia, mas feita sobre

tudo por amor” (JOÃO PAULO II, 2005, p.345).

O quinto ciclo, “O matrimônio cristão”, fundamenta a união esponsal dos

cônjuges como imagem das alianças entre Deus e seu povo, tanto no Antigo como

no Novo Testamento25, neste quando o amor entre cristo e a sua Igreja, tornam-se o

paradigma da união matrimonial entre os cristãos. Assim, João Paulo II, fala da

linguagem do corpo que no casal humano mostra a vocação de fazer-se doação na

entrega de si, de maneira total e recíproca pelo vinculo de amor, conforme o

princípio da norma personalista, o que faz os esposos se descobrirem como imagem

de Deus. “A ‘linguagem do corpo’ relida na verdade deve ser vista em concomitância

com a descoberta da interior inviolabilidade da pessoa” (JOÃO PAULO II, 2005,

p.454).

Por fim, o ciclo denominado “Amor e fecundidade”, em concordância com

o magistério do Papa Paulo VI na encíclica Humanae Vitae26, coloca a

23

O papa Wojtyła tem esta convicção, fundamentado no testemunho dos casais que orientou desde o seu ministério sacerdotal. 24 O nosso Papa-filósofo hauriu esta convicção da doutrina mística de São João da Cruz. Sobre esta,

escreveu Wojtyła em sua tese de doutorado em teologia, A fé segundo São João da Cruz (1948): “[...] esta união é uma comunicação que consiste na conformidade de vontades, progride pelo amor e pelo amor expressa seu aspecto psicológico. Tal amor possui, simultaneamente, capacidade transformadora. Que entenderemos por ‘transformação’? São João da Cruz afasta imediatamente a possibilidade de uma interpretação panteísta: não se trata de uma transformação substancial ou essencial, mas de uma transformação participada. [...] toda a teologia da comunicação sobrenatural pela graça e amor e da transformação participada. De maneira análoga, pois, a alma participa da comunicação sobrenatural pela graça e pelo amor e, em virtude deles acaba por transformar-se, por participação, na mesma luz de Divindade [...] Vemos que o Doutor Místico apresenta a união como o fim de todos os desejos da alma, como uma participação sobrenatural com Deus, como uma participação da Divindade por graça e amor. E que a força inata desta é capaz de crescer até a transformação, isto é, até a união transformadora com Deus.” 25

Quanto a Sagrada Escritura, constituída por Antigo e Novo, testamentos, ensina a Igreja Católica na constituição Dei Verbum (1965), nº.11: “As coisas reveladas por Deus, contidas e manifestadas na Sagrada Escritura, foram escritas por inspiração do Espírito Santo. Com efeito, a santa mãe Igreja, segundo a fé apostólica, considera como santos e canônicos os livros inteiros do Antigo e do Novo Testamento com todas as suas partes, porque, escritos por inspiração do Espírito Santo , têm Deus por autor, e como tais foram confiados à própria Igreja.” 26 O papa Paulo VI (Giovanni Montini), que governou a Igreja Católica de1963 a 1978, emanou esta polêmica encíclica sobre a vida humana e o controle de natalidade em 1968, evidenciando a postura

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espiritualidade conjugal advindo do respeito pela obra de Deus. Deste modo o ato

conjugal une intrinsecamente as finalidades, unitiva e procriativa; donde promanam

o respeito absoluto pela pessoa e pela vida humana e a exigência da castidade no

matrimônio, ao modo de períodos de continência, para proteger a dignidade do ato

conjugal, dado no corpo humano.

moral da Igreja contra o aborto e os métodos contraceptivos artificiais, entre outras posições acerca da moral sexual defendida pela Igreja. Karol Wojtyła/João Paulo II construiu sua ética do amor e a teologia do corpo de modo coerente com este documento pontifício de seu antecessor.

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6 A DIGNIDADE PESSOAL DO CORPO HUMANO

Partindo da ética do amor de Karol Wojtyła, este capítulo põe em

destaque a dignidade do corpo humano. Segundo o pensamento antropológico de

Wojtyła, o corpo da pessoa humana é o “corpo próprio” do ser humano – de acordo

com a fenomenologia; mais que um simples instrumento a serviço da alma, como

entendera a filosofia clássica.

Na antropologia wojtyliana o corpo é integrado na ação da pessoa pela

liberdade de autodeterminação humana, mesmo com a reatividade corpórea e os

impulsos, que são ligados ao corpo. Neste sentido, a pessoa humana participa com

a sua ação da construção do mundo e da sociedade e, comportando-se com o pudor

que é o cuidado próprio do corpo, abre-se ao cuidado dos outros na alteridade,

mediante a orientação presente na norma personalista.

6.1 Do corpo instrumento ao corpo próprio

Na concepção clássica do corpo humano, representada pelo paradigma

platônico, o corpo é conceituado como “instrumento da alma”, dado que o corpo é

perecível e a alma é eterna. Então, a alma deve impor uma ética ao corpo a fim de

que o ser humano seja justo e sua alma, pela felicidade alcançada na vivência das

virtudes, seja digna de uma feliz recompensa após a morte, quando a alma se liberta

do “cárcere” corporal.

O corpo, no pensamento aristotélico, é tudo o que se estende no espaço

e pode ser dividido em qualquer direção. Esta noção fora tomada por René

Descartes, que afirmara que o corpo é “substância extensa” distinta da alma, a

“substância pensante”. Da conceituação da extensão corporal, presente nos

pensamentos clássico e moderno, a diferenciação que existe é que para Descartes o

corpo é uma substância distinta da alma, ao passo que para Platão, o corpo está

submetido, dependendo da alma.

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Na contemporaneidade, a partir das correntes filosóficas, Fenomenologia

e Existencialismo, o pensador Gabriel Marcel (1887-1973)27 criticou as concepções

de corpo como instrumento e objeto, e defendeu a concepção de “corpo próprio”, a

partir da cinestesia que acontece na vivência humana em meio ao mundo, mediante

o corpo. Comenta Abbagnano (2007, p.249):

Marcel criticou a ideia de corpo objeto e de corpo instrumento. O meu corpo não pode ser um objeto porque é constantemente percebido como próprio (cinestesia) por parte do sujeito. Será preciso dizer, então, que “sou meu corpo” (Jornal Métaphysique, 1927, p.252) e que existir equivale a “estar encarnado”.

Com esta orientação panorâmica, na história da filosofia, acerca da

concepção de corpo humano, compreende-se o pensamento antropológico de Karol

Wojtyła no que toca à dimensão somática da pessoa humana, como uma síntese

das concepções clássica (Corpo instrumento) e contemporânea (Corpo próprio),

quando expõe a integração do corpo na ação pessoal.

6.2 Integração do corpo na ação

Na obra “Pessoa e ação”, Karol Wojtyła evidencia a integração do corpo

na ação da pessoa. A dinâmica do corpo é coordenada pelo princípio de reatividade

peculiar ao corpo animado; este princípio da reação corporal é vinculado aos

impulsos de autoconservação e de perpetuação da espécie, que no ser humano se

liga à afirmação da existência.

O dinamismo do homem, puramente somático, pode ser considerado reativo. A potencialidade que se encontra, em sua raiz, pode ser denominada reativa [...]. A ideia de reação se aplica a diversos elementos da conduta do homem e a diversas formas de atuar. Esse fato implica que o fator da reatividade do corpo se encontra profundamente na raiz de todo atuar da pessoa humana (SILVA, 2005, p.83).

27 Filósofo francês vinculado ao chamado “Existencialismo cristão”. Marcel fundamentou seu pensamento nas filosofias tomista, hegeliana e fenomenológica. Dentre suas obras se destacam: “Jornal metafísico” (1927), “Ser e ter” (1935) e “Homo viator” (1944).

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Na antropologia wojtyliana a ação corporal deve ser orientada para se

tornar “ação da pessoa”. Assim, a ação do homem é tipicamente pessoal quando

obedece a autodeterminação da pessoa dada na vontade consciente, através do

querer que administra a ação da pessoa no mundo, orientando a reatividade

somática. Deste modo, dá-se a integração do corpo humano na ação pessoal, como

afirma Wojtyła (2011, p. 276): “No conceito de autopossessão está incluído a pessoa

como alguém que se possui a si mesmo, ao mesmo tempo que é possuído por si

mesmo [...] a ideia de autodomínio inclui a pessoa tanto como alguém que se

governa a si mesmo e se subordina a si mesmo”28.

Karol Wojtyła concebe a sua ideia de integração do corpo à ação pessoal,

mediante a integração da reatividade, que é junção de corpo e ação, na

personalidade humana, através da sujeição do corpo ao querer consciente da

pessoa humana. Deste modo, para que se vivencie o corpo como próprio, na

antropologia wojtyliana, a ação corporal deve ser coerente com as decisões

pessoais, manifestando deste modo a transcendência da pessoa.

6.3 Norma personalista e pudor

Se há a integração da ação corporal na personalidade humana, mediante

a autodeterminação, a pessoa humana está em condições favoráveis de se dar a

norma personalista wojtyliana, visando o bem de todas as pessoas, inclusive o seu.

O corpo integrado na ação pessoal corresponde à exigência da dignidade

da pessoa humana, ressaltada na ética do amor de Karol Wojtyła. Neste rumo, o

“corpo próprio” ou “corpo pessoal”, assim como a pessoa toda, é objeto da norma

personalista. Isto implica a exigência do pudor sexual como zelo peculiar ao corpo

da pessoa, que mostra a pessoa humana na sociedade. Para Karol Wojtyła (1982,

p.160):

O valor da pessoa está estritamente vinculado à sua inviolabilidade, por ser ela mais que um “objeto de uso”. O pudor sexual, de certo modo,

28

Fonte em espanhol: “En el concepto de autoposeción está incluida la persona como alguien que se posee a si mismo, a la vez que es poseído por si mismo [...] la idea de autodominio incluye a la persona tanto como alguien que se gobierna a si mismo y se subordina a si mismo”.

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instintivamente defende esta colocação, portanto defende também o valor da pessoa. Mas não se trata apenas de defender. Trata-se de revelar, por assim dizer, este valor, e precisamente revelá-lo junto com os valores sexuais que estão ligados à pessoa.

O pudor sexual visa a preservação da dignidade pessoal do corpo

humano para que a exposição dos membros corporais que despertam o desejo

sexual seja restrita à convivência matrimonial, evitando que o corpo da pessoa seja

considerado, assim como a pessoa, como meio a ser utilizado, ao invés do que

realmente é: fim em si.

Este cuidado para com o corpo, além de visar a própria dignidade

pessoal, também impõe a preservação da dignidade das demais pessoas, seja no

modo de se trajar, seja nas expressões artísticas. A aplicação da norma personalista

vinculada ao pudor sexual visa sempre o bem da alteridade.

6.4 Participação versus alienação

Na convivência comunitária o ser humano vivencia a integração das

ações corporais na sua personalidade, mediante a autodeterminação, possuindo a si

mesmo no processo de “participação” nas relações interpessoais. Karol Wojtyła

(2005, p.119), assim conceitua a “participação”:

A atualização do esquema “eu mesmo – o outro” deriva de ser consciente do fato da humanidade em um determinado ser humano diferente de mim, um dos outros, porém sucede por ter experiência do outro “eu” como pessoa. A participação indica a personalização fundamental da relação de um ser humano com outro ser humano

29.

A participação se dá nas relações interpessoais, acentuando o respeito

entre as pessoas e a dignidade presente em cada pessoa humana que exige a

prática da norma personalista. Nesta visão, participação é o oposto de “alienação”.

Com efeito, diz Wojtyła (2005, p.125):

29 Fonte em espanhol: “La actualización del esquema “yo mismo-el outro” deriva de ser consciente del hecho de la humanidad en un determinado ser humano diferente de mi, uno de los otros, pero sucede al tener experiencia del outro “yo” en cuanto persona. La participación indica la personalización fundamental de la relación de un ser humano con outro ser humano”.

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A alienação não é, [...]senão o contrário da participação, a debilitação ou inclusive a anulação da possibilidade de experimentar outro ser humano como “outro eu”, é ele a causa de uma certa deformação do esquema “eu–outro” [...] com a palavra alienação se caracteriza uma situação ou condição de um ser humano que não se permite experimentar outro ser humano como “outro eu”

30.

O processo de “alienação” acontece em não considerar o outro na sua

humanidade e personalidade, o que impede uma autêntica relação interpessoal,

impossibilitando a vivência da norma personalista e minando os alicerces do

matrimônio e da vida comunitária.

Então, partindo dos princípios metafísicos e éticos da norma personalista,

sempre visando o bem da pessoa humana, a “participação” é sempre o processo

adequado que oportuniza a vivência das relações interpessoais, constituindo a

família e a sociedade.

6.5 Abertura à alteridade

No artigo intitulado “Pessoa: sujeito e comunidade” (1976), Karol Wojtyła

pensa as relações interpessoais e as relações comunitárias, conceituando a primeira

por “Eu–tu” e a segunda por “nós”, como modo de levar em consideração as

contribuições dadas à antropologia no realismo escolástico de Severino Boécio (480-

524)31, que conceitua o homem como “substância individual de natureza racional”, e

as contribuições dadas pela gnosiologia moderna que concebe o ser humano como

“sujeito”. Deste modo na relação “eu–tu” para Wojtyła (2005, p.81): “O ‘tu’ é outro

‘eu’ distinto de mim. Pensando e dizendo ‘tu’, eu expresso ao mesmo tempo uma

30

Fonte em Espanhol: “La alienación no es, em efecto, sino lo contrario de la participación, la debilitación o incluso la anulación de la posibilidad de experimentar otro ser humano como ‘outro yo’, y ello a causa de uma cierta deformación del esquema ‘yo – outro’ [...] con la palabra alienación se caracteriza uma situación o condición de um ser humano que no le permite experimentar outro ser humano como ‘outro yo’”. 31 Filósofo medieval que fora cônsul do rei ostrogodo Teodorico. Estudou em Atenas, onde obteve um conhecimento enciclopédico. Sua principal obra, que trata da divina providência, é intitulada “Sobre a consolação pela filosofia”. É considerado como o primeiro pensador escolástico.

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relação que de algum modo se projeta fora de mim, porém que ao mesmo tempo

retorna também a mim”32.

Na relação “eu-tu”, ocorre o encontro participativo entre dois sujeitos

humanos, dando azo ao reconhecimento da dignidade pessoal presente em ambos.

Alicerçada nesta relação se erige a relação denominada “nós”, que origina a

vitalidade comunitária e a sociedade. Como escreveu Wojtyła (2005, p. 90):

O “nós” indica, sobretudo, uma coletividade; esta coletividade, que podemos chamar sociedade, grupo social, etc., não possui em si um ser substancial, sem embargo [...] o que deriva da acidentalidade, das relações entre os homens-pessoas, apresenta-se em primeiro plano, fornecendo a base de um juízo, em primeiro lugar, sobre todos, e, em segundo lugar, sobre cada um nesta coletividade

33.

Desta maneira, a vivência da participação em todas as relações

interpessoais (eu-tu) é o que fundamenta a participação social, seja no matrimônio,

seja na comunidade. De fato, na relação “nós” há uma síntese entre as concepções

escolástica e moderna acerca do ser humano, pois, o homem não é mais visto

unilateralmente como “substância individual de natureza racional”, ou apenas como

“sujeito”, porém ele é contemplado na sua integridade de pessoa humana; não

somente é conceituado deste modo, mas vivencia a sua personalidade, participando

com os outros na construção do mundo. Desta maneira, o seu corpo personalizado é

integrado, mediante os gestos pessoais, na comunidade humana, visando toda

pessoa humana sempre como bem em si mesmo, conforme a prática do amor.

32

Fonte em Espanhol: “El ‘tú’ es otro ‘yo’ distinto a mi. Pensando y diciendo ‘tú’, yo expreso a la vez una relación que de algún modo se proyecta fuera de mi, pero que al mismo tiempo retorna también a mi”. 33 Fonte em Espanhol: “El ‘nosotros’ indica, sobre todo, una colectividad; esta colectividad, que podemos llamar sociedad, grupo social, etc., no posee en si un ser sustancial, si embargo [...] lo que deriva de la accidentalidad, de las relaciones entre los hombres-personas, se presenta como en un primer plano, suministrando la base de un juicio, en primer lugar, sobre todos, y, en segundo lugar, sobre cada uno en esta colectividad”.

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8 CONCLUSÃO

Na ética do amor de Karol Wojtyła, o corpo humano encontra sua

dignidade e corresponde ao que realmente é, ou seja, corpo pessoal. E o é a medida

que exprime concretamente a ação da pessoa humana perante o outro, seja no

matrimônio ou na comunidade. Afinal a “lógica” da vocação da pessoa humana é

fazer-se dom ao outro, na medida do amor.

Sabemos que o rebaixamento do corpo à coisa ou instrumento de uso,

dissociado da espiritualidade do ser humano, constitui resultado de uma mentalidade

que se assenta no primado do “eu”, ou seja, na verdade subjetiva, que dá azo para

que o homem, através da ciência e da técnica, usurpe o lugar de Deus e no seu

modo de conhecer e de agir deturpe a realidade conforme lhe apraz. Esta afirmação

do ego chega ao extremo de utilizar a outra pessoa como meio para se alcançar um

fim agradável àquele que instrumentaliza.

A instrumentalização do outro, fere-lhe a sua dignidade pessoal que,

conforme a ética wojtyliana, se dá no amor oblativo34, coerente com o preceito

cristão e na liberdade de autodeterminação pessoal de decisão para se fazer dom

ao outro. Certamente a pessoa humana exerce sua liberdade com relação ao seu

corpo, não quando sofre a alienação dele, mas quando participa com ele na

construção do bem da alteridade.

Nesta participação, a pessoa humana atua perante o outro, ou perante a

comunidade, com os gestos corporais que expressam a livre decisão de sua

consciência. É, pois, na consciência que reconhece segundo a verdade objetiva, que

se pode tomar a decisão por fazer de si um dom ao outro através da vivência do

amor, entregando-se pelos gestos corporais, coerentes com a consciência pessoal.

No tocante ao corpo na relação de amor entre homem e mulher, a

finalidade vivenciada deste amor é a união dos amantes que desejam integrar-se

numa unidade, aparecendo no ato do amor conjugal a busca por este anseio do

casal.

34

O amor oblativo, seguindo o modelo de Jesus Cristo que se entregou no sacrifício da cruz pela redenção da humanidade, consiste em amar ao ponto de doar-se a si mesmo, inclusive entregando a vida se necessário, pelo bem da pessoa, ou causa, amada.

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A via unitiva dos cônjuges manifesta o corpo na sua dignidade pessoal à

medida que os amantes agem conscientemente, logo de maneira voluntária, jamais

se apossando do outro como se fosse um objeto – o que caracteriza o egoísmo-,

mas recebendo a pessoa amada como dom e reciprocamente se entregando a ela.

Aí, a vocação das pessoas que se casam se manifesta pelo corpo enquanto entrega

recíproca de abertura e procriação. Este ato mútuo constitui uma convergência de

homem e mulher no vínculo do amor esponsal, que responsavelmente se tornam

fiéis entre si, vendo o cônjuge como bem em si mesmo.

A pessoa humana é sempre um bem em si mesmo porque é criada e

querida por Deus, à imagem e semelhança Dele. Deus, na revelação cristã é amor

que se doa para o bem dos seres humanos, habitando na interioridade de cada

pessoa humana, o que faz o cristianismo acreditar no corpo da pessoa como templo

do Espírito Santo, ou seja, morada sagrada do próprio Deus, que é amor.

Esta visão cristã acerca da sacralidade do corpo da pessoa está em

sintonia com o pensamento patrístico e com o realismo da filosofia tomista. Aqui

Deus é a verdade absoluta ou Sumo bem doador da essência e da existência do ser

humano e demais criaturas.

Segundo esta visão, pois, quando o casal humano, homem e mulher se

entre olham, a fim de que se amem com justiça, ambos transcendem a aparência

física e contemplam a presença viva de Deus no interior da pessoa amada e na sua

mútua união. Esta divina presença é manifestada na autenticidade dos atos

pessoais, sobretudo dos atos que se dão pelos gestos do corpo. Percebe-se que a

pessoa só é adequadamente amada quando nela se vislumbra a presença do amor

eterno, que é Deus.

Este mesmo princípio de justiça que se vive no genuíno amor esponsal, é

o que confere autenticidade às relações interpessoais, ou comunitárias. O outro só é

considerado justamente, respeitando-se a sua integridade pessoal – corpo, alma e

espírito.

Desta maneira, o outro é acolhido na comunidade como dom, querido e

amado por Deus porque se precisa da alteridade para que o ser humano se

relacione com seus pares e se constitua como pessoa que encontra na vivência da

justiça, através da vivência da “norma personalista”, o caminho da felicidade que

consiste na participação pessoal e realista na comunidade humana.

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O corpo da pessoa só aparece realmente nestas vivências do amor

esponsal e da integração comunitária, que se assentam na verdade expressa na

“norma personalista”. Toda vivência que se alheia disto reduz a pessoa humana

aquilo que ela não é, constituindo um pseudo modo de conhecer e oportunizando a

frustração dos seres humanos mediante a imposição da moral utilitarista que

inflaciona o ego do ser humano, fazendo-o desejar usurpar o ser Deus.

Na visão ausente do fundamento da “norma personalista”, o que temos

do corpo é uma ilusão. Então o corpo é reduzido à coisa porque o ser humano é

violentamente alienado de si, da sua condição pessoal que lhe revela a verdade.

A mentalidade anti-personalista é divulgada fortemente pela cultura

mercadológica, propagando o individualismo e o hedonismo nos meios de

comunicação social. Assim, o mercado capitalista “vende” ao ser humano a própria

frustração existencial, tolhendo a sua capacidade de ver a realidade como de fato é,

e impossibilitando a autenticidade da sua participação pessoal com os outros.

Esta alienação imposta à pessoa humana, sob a égide do mercado, fixa

na mentalidade e no comportamento das pessoas a ética utilitarista, sendo uma

“pedra de tropeço” para a humanidade, impedindo o ser humano de alcançar a

excelência que consiste na autenticidade de sua liberdade pessoal. O jogo do

mercado para se manter com o domínio sobre o mundo é o mecanismo da injustiça

e da ilusão que alvita o caráter de sacralidade da pessoa.

Solução para este problema existencial do ser humano, pode consistir na

resistência e combate às ideologias mercadológica e utilitarista, pelo víeis da

educação de toda a pessoa humana. Pois no contexto atual, as pessoas precisam

ser libertadas da miopia ideológica estabelecida sobre a concepção subjetiva de

verdade, fortalecida hodiernamente no jogo do capitalismo pragmático, e ser

conduzidas à contemplação da verdade que se dá no realismo, em particular no

realismo cristão, e na formação do homem para assumir-se como pessoa humana,

constituindo e participando da comunidade humana através de uma atuação

consciente.

Esta solução apresentada exige da pessoa a educação para o amor, de

acordo com o princípio da caridade contido na “norma personalista” de Karol

Wojtyła. Esta norma proporciona a abertura transcendente do ser humano à

presença do Ser divino no interior de toda a pessoa humana, suscitando no homem

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o amor oblativo pelo outro, o que dá sólido fundamento ao matrimônio e à

comunidade humana.

Então, o corpo humano aparece tal como é: corpo da pessoa, que se

expressa atuando coerentemente com a consciência ao se fazer dom para o bem do

outro, zelando sempre pela integridade da personalidade de todo ser humano.

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