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7/14/2019 1. JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL - Barroso http://slidepdf.com/reader/full/1-jurisdicao-constitucional-barroso 1/50 JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL: A TÊNUE FRONTEIRA ENTRE O DIREITO E A POLÍTICA  Luís Roberto Barroso 1  Sumário: I  –  Introdução. II - A Ascensão institucional do Judiciário. 1. A jurisdição constitucional. 2. A judicialização da política e das relações sociais. 3. O ativismo judicial. 4. Críticas à expansão da intervenção judicial na vida brasileira. 4.1. Crítica político-ideológica. 4.2. Crítica quanto à capacidade institucional. 4.3. Crítica quanto à limitação do debate. 5. Importância e limites da jurisdição constitucional nas democracias contemporâneas. III - Direito e política: a concepção tradicional. 1. Notas sobre a distinção entre Direito e política. 2. Constituição e poderes constituídos. 3. A pretensão de autonomia do Judiciário e do Direito em relação à política. 3.1. Independência do Judiciário. 3.2. Vinculação ao Direito posto e à dogmática jurídica. 3.3. Limites da separação entre Direito e política. IV - Direito e política: o modelo real. 1. Os laços inevitáveis: a lei e sua interpretação como atos de vontade. 2. A interpretação jurídica e suas complexidades: o encontro não marcado entre o Direito e a  política. 2.1. A linguagem aberta dos textos jurídicos. 2.2. Os desacordos morais razoáveis. 2.3. As colisões de normas constitucionais. 2.4. A interpretação constitucional e seus métodos. 3. O juiz e suas circunstâncias: influências políticas em um julgamento. 3.1. Valores e ideologia do juiz. 3.2. Interação com outros atores políticos e institucionais. 3.2.1. Preservação ou expansão do poder da Corte. 3.2.2. Relações com outros Poderes, órgãos e entidades estatais. 3.3. Perspectiva de cumprimento efetivo da decisão. 3.4. Circunstâncias internas dos órgãos colegiados. 3.5. A opinião pública. 4. A autonomia relativa do Direito em relação à política e a fatores extrajudiciais. V  –  O Supremo Tribunal Federal: contramajoritário e representativo. VI - Conclusão: entre a razão e a vontade. I. I  NTRODUÇÃO O presente capítulo está dividido em três partes principais. Na primeira, narra-se a ascensão institucional do Judiciário nos últimos anos, no Brasil e no mundo. São apresentados, assim, os fenômenos da jurisdição constitucional, da judicialização e do ativismo judicial, bem como as críticas à expansão do Judiciário na vida brasileira. O tópico se encerra com a demonstração da importância e dos limites da jurisdição constitucional nas democracias contemporâneas. A segunda parte é dedicada à concepção tradicional das relações entre Direito e política, fundada na separação plena entre os dois domínios. A Constituição faz a interface entre o universo político e o jurídico, instituindo o Estado de 1  Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Mestre pela Yale Law School . Doutor e Livre-Docente pela UERJ. Pesquisador Visitante na Harvard Law School . Ministro do Supremo Tribunal Federal.

1. JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL - Barroso

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  • JURISDIO CONSTITUCIONAL:

    A TNUE FRONTEIRA ENTRE O DIREITO E A POLTICA

    Lus Roberto Barroso1

    Sumrio: I Introduo. II - A Ascenso institucional do Judicirio. 1. A jurisdio constitucional. 2. A judicializao da poltica e das relaes sociais. 3. O ativismo judicial. 4.

    Crticas expanso da interveno judicial na vida brasileira. 4.1. Crtica poltico-ideolgica.

    4.2. Crtica quanto capacidade institucional. 4.3. Crtica quanto limitao do debate. 5.

    Importncia e limites da jurisdio constitucional nas democracias contemporneas. III -

    Direito e poltica: a concepo tradicional. 1. Notas sobre a distino entre Direito e poltica.

    2. Constituio e poderes constitudos. 3. A pretenso de autonomia do Judicirio e do Direito

    em relao poltica. 3.1. Independncia do Judicirio. 3.2. Vinculao ao Direito posto e

    dogmtica jurdica. 3.3. Limites da separao entre Direito e poltica. IV - Direito e poltica: o

    modelo real. 1. Os laos inevitveis: a lei e sua interpretao como atos de vontade. 2. A

    interpretao jurdica e suas complexidades: o encontro no marcado entre o Direito e a

    poltica. 2.1. A linguagem aberta dos textos jurdicos. 2.2. Os desacordos morais razoveis.

    2.3. As colises de normas constitucionais. 2.4. A interpretao constitucional e seus

    mtodos. 3. O juiz e suas circunstncias: influncias polticas em um julgamento. 3.1. Valores

    e ideologia do juiz. 3.2. Interao com outros atores polticos e institucionais. 3.2.1.

    Preservao ou expanso do poder da Corte. 3.2.2. Relaes com outros Poderes, rgos e

    entidades estatais. 3.3. Perspectiva de cumprimento efetivo da deciso. 3.4. Circunstncias

    internas dos rgos colegiados. 3.5. A opinio pblica. 4. A autonomia relativa do Direito em

    relao poltica e a fatores extrajudiciais. V O Supremo Tribunal Federal: contramajoritrio e representativo. VI - Concluso: entre a razo e a vontade.

    I. INTRODUO

    O presente captulo est dividido em trs partes principais. Na primeira,

    narra-se a ascenso institucional do Judicirio nos ltimos anos, no Brasil e no mundo. So

    apresentados, assim, os fenmenos da jurisdio constitucional, da judicializao e do

    ativismo judicial, bem como as crticas expanso do Judicirio na vida brasileira. O tpico

    se encerra com a demonstrao da importncia e dos limites da jurisdio constitucional nas

    democracias contemporneas. A segunda parte dedicada concepo tradicional das

    relaes entre Direito e poltica, fundada na separao plena entre os dois domnios. A

    Constituio faz a interface entre o universo poltico e o jurdico, instituindo o Estado de

    1 Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ.

    Mestre pela Yale Law School. Doutor e Livre-Docente pela UERJ. Pesquisador Visitante na Harvard Law School. Ministro do Supremo Tribunal Federal.

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    direito, os poderes constitudos e fazendo a distino entre legislar, administrar e julgar. A

    atuao de juzes e tribunais preservada do contgio poltico por meio da independncia do

    Judicirio em relao aos demais Poderes e por sua vinculao ao Direito, que constitui um

    mundo autnomo, tanto do ponto de vista normativo quanto doutrinrio. Essa viso, inspirada

    pelo formalismo jurdico, apresenta inmeras insuficincias tericas e enfrenta boa quantidade

    de objees, em uma era marcada pela complexidade da interpretao jurdica e por forte

    interao do Judicirio com outros atores polticos relevantes.

    A terceira parte introduz uma questo relativamente nova no debate

    jurdico brasileiro: o modelo real das relaes entre Direito e poltica. Uma anlise sobre o

    que de fato ocorre no exerccio da prestao jurisdicional e na interpretao das normas

    jurdicas, e no um discurso convencional sobre como elas deveriam ser. Trata-se de uma

    especulao acerca dos elementos e circunstncias que motivam e influenciam um juiz, para

    alm da boa aplicao do Direito. Com isso, procura-se superar a persistente negao com que

    os juristas tradicionalmente lidam com o tema, proclamando uma independncia que no

    desse mundo. Na construo do argumento, examinam-se algumas hipteses que produzem os

    chamados casos difceis, que exigem a atuao criativa de juzes e tribunais; e faz-se,

    igualmente, uma reflexo acerca dos diferentes mtodos de interpretao e sua utilizao em

    funo do resultado a que se quer chegar. Por fim, so identificados diversos fatores

    extrajurdicos relevantes, capazes de repercutir em maior ou menor medida sobre um

    julgamento, como os valores pessoais do juiz, as relaes do Judicirio com outros atores

    polticos e a opinio pblica, dentre outros.

    Entre o ceticismo do realismo jurdico e da teoria crtica, que equiparam

    o Direito ao voluntarismo e poltica, e a viso idealizada do formalismo jurdico, com sua

    crena na existncia de um muro divisrio entre ambos, o presente estudo ir demonstrar o

    que j se afigurava intuitivo: no mundo real, no vigora nem a equiparao nem a separao

    plena. Na concretizao das normas jurdicas, sobretudo as normas constitucionais, Direito e

    poltica convivem e se influenciam reciprocamente, numa interao que tem complexidades,

    sutilezas e variaes2. Em mltiplas hipteses, no poder o intrprete fundar-se em

    elementos de pura razo e objetividade, como a ambio do Direito. Nem por isso, recair

    2 O termo poltica utilizado nesse trabalho em uma acepo ampla, que transcende uma

    conotao partidria ou de luta pelo poder. Na acepo aqui empregada, poltica" abrange qualquer influncia extrajurdica capaz de afetar o resultado de um julgamento.

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    na discricionariedade e na subjetividade, presentes nas decises polticas. Entre os dois

    extremos, existe um espao em que a vontade exercida dentro de parmetros de

    razoabilidade e de legitimidade, que podem ser controlados pela comunidade jurdica e pela

    sociedade. Vale dizer: o que se quer balizado pelo que se pode e pelo que se deve fazer.

    II. A ASCENSO INSTITUCIONAL DO JUDICIRIO3

    1. A jurisdio constitucional

    O Estado constitucional de direito se consolida, na Europa continental,

    a partir do final da II Guerra Mundial. At ento, vigorava um modelo identificado, por vezes,

    como Estado legislativo de direito4. Nele, a Constituio era compreendida, essencialmente,

    como um documento poltico, cujas normas no eram aplicveis diretamente, ficando na

    dependncia de desenvolvimento pelo legislador ou pelo administrador. Tampouco existia o

    controle de constitucionalidade das leis pelo Judicirio ou, onde existia, era tmido e pouco

    relevante. Nesse ambiente, vigorava a centralidade da lei e a supremacia do parlamento. No

    Estado constitucional de direito, a Constituio passa a valer como norma jurdica. A partir

    da, ela no apenas disciplina o modo de produo das leis e atos normativos, como estabelece

    determinados limites para o seu contedo, alm de impor deveres de atuao ao Estado. Nesse

    novo modelo, vigora a centralidade da Constituio e a supremacia judicial, como tal

    entendida a primazia de um tribunal constitucional ou suprema corte na interpretao final e

    vinculante das normas constitucionais.

    A expresso jurisdio constitucional designa a interpretao e

    aplicao da Constituio por rgos judiciais. No caso brasileiro, essa competncia

    exercida por todos os juzes e tribunais, situando-se o Supremo Tribunal Federal no topo do

    sistema. A jurisdio constitucional compreende duas atuaes particulares. A primeira, de

    aplicao direta da Constituio s situaes nela contempladas. Por exemplo, o

    3 A Parte I deste trabalho, especialmente os captulos II e III, beneficia-se da pesquisa e de algumas

    passagens de texto anterior de minha autoria, Judicializao, ativismo judicial e legitimidade democrtica, publicado na Revista de direito do Estado 13:71, 2009.

    4 V. Luigi Ferrajoli, Pasado y futuro Del Estado de derecho. In: Miguel Carbonell (org.),

    Neoconstitucionalismo(s), 2003, p. 14-17; e Gustavo Zagrebelsky, El derecho dctil: ley, derechos, justicia, 2005, p. 21-41.

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    reconhecimento de que determinada competncia do Estado, no da Unio; ou do direito do

    contribuinte a uma imunidade tributria; ou do direito liberdade de expresso, sem censura

    ou licena prvia. A segunda atuao envolve a aplicao indireta da Constituio, que se d

    quando o intrprete a utiliza como parmetro para aferir a validade de uma norma

    infraconstitucional (controle de constitucionalidade) ou para atribuir a ela o melhor sentido,

    em meio a diferentes possibilidades (interpretao conforme a Constituio). Em suma: a

    jurisdio constitucional compreende o poder exercido por juzes e tribunais na aplicao

    direta da Constituio, no desempenho do controle de constitucionalidade das leis e dos atos

    do Poder Pblico em geral e na interpretao do ordenamento infraconstitucional conforme a

    Constituio.

    2. A judicializao da poltica e das relaes sociais 5

    Judicializao significa que questes relevantes do ponto de vista

    poltico, social ou moral esto sendo decididas, em carter final, pelo Poder Judicirio. Trata-

    se, como intuitivo, de uma transferncia de poder para as instituies judiciais, em detrimento

    das instncias polticas tradicionais, que so o Legislativo e o Executivo. Essa expanso da

    jurisdio e do discurso jurdico constitui uma mudana drstica no modo de se pensar e de se

    praticar o Direito no mundo romano-germnico6. Fruto da conjugao de circunstncias

    5 Sobre o tema, v. o trabalho pioneiro de Luiz Werneck Vianna, Maria Alice Resende de Carvalho,

    Manuel Palacios Cunha Melo e Marcelo Baumann Burgos, A judicializao da poltica e das relaes sociais no Brasil, 1999. V. tb., Giselle Cittadino, Judicializao da poltica, constitucionalismo democrtico e separao de Poderes. In: Luiz Werneck Vianna (org.), A democracia e os trs Poderes no Brasil, 2002. Vejam-se, ainda: Luiz Werneck Vianna, Marcelo Baumann Burgos e Paula Martins Salles, Dezessete anos de judicializao da poltica, Tempo Social 19:39, 2007; Ernani Carvalho, Judicializao da poltica no Brasil: controlo de constitucionalidade e racionalidade poltica, Anlise Social 44:315, 2009, e Em busca da judicializao da poltica no Brasil: apontamentos para uma nova abordagem, Revista de Sociologia Poltica 23:115, 2004; Rogrio Bastos Arantes, Judicirio: entre a justia e a poltica, In: http://academico.direito-rio.fgv.br/ccmw/images/9/9d/Arantes.pdf, e Constitutionalism, the expansion of justice and the judicialization of politics in Brazil. In: Rachel Sieder, Line Schjolden e Alan Angell, The judicialization of politics in Latin America, 2005, p. 231-62; Martonio MontAlverne Barreto Lima, Judicializao da poltica e comisses parlamentares de inqurito um problema da teoria constitucional da democracia, Revista Jurdica da FIC 7:9, 2006; Luciano da Ros, Tribunais como rbitros ou como instrumentos de oposio: uma tipologia a partir dos estudos recentes sobre judicializao da poltica com aplicao ao caso brasileiro contemporneo, Direito, Estado e Sociedade 31:86, 2007; e Thais Florencio de Aguiar, A judicializao da poltica ou o rearranjo da democracia liberal, Ponto e Vrgula 2:142, 2007.

    6 V. Alec Stone Sweet, Governing with judges: constitutional poltics in Europe, 2000, p. 35-36 e 130.

    A viso prevalecente nas democracias parlamentares tradicionais de ser necessrio evitar um governo de juzes, reservando ao Judicirio apenas uma atuao como legislador negativo, j no corresponde prtica poltica atual. Tal compreenso da separao de Poderes encontra-se em crise profunda na Europa continental.

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    diversas7, o fenmeno mundial, alcanando at mesmo pases que tradicionalmente

    seguiram o modelo ingls a chamada democracia ao estilo de Westminster , com soberania

    parlamentar e ausncia de controle de constitucionalidade8. Exemplos numerosos e

    inequvocos de judicializao ilustram a fluidez da fronteira entre poltica e justia no mundo

    contemporneo, documentando que nem sempre ntida a linha que divide a criao e a

    interpretao do Direito. Os precedentes podem ser encontrados em pases diversos e distantes

    entre si, como Canad9, Estados Unidos

    10, Israel

    11, Turquia

    12, Hungria

    13 e Coreia

    14, dentre

    muitos outros. No incio de 2010, uma deciso do Conselho Constitucional francs e outra da

    Suprema Corte americana produziram controvrsia e a reao poltica dos dois presidentes15

    .

    Na Amrica Latina16

    , o caso da Colmbia um dos mais significativos17

    .

    7 Para uma anlise das condies para o surgimento e consolidao da judicializao, v. C. Neal Tate

    e Torbjrn Vallinder (eds.), The global expansion of judicial power, 1995, p. 117.

    8 V. Ran Hirschl, The new constitutionalism and the judicialization of pure politics worldwide, Fordham

    Law Review 75:721, 2006-2007, p. 721. A referncia envolve pases como Canad, Israel, Nova Zelndia e o prprio Reino Unido.

    9 Deciso da Suprema Corte sobre a constitucionalidade de os Estados Unidos fazerem testes com

    msseis em solo canadense. Este exemplo e os seguintes vm descritos em maior detalhe em Ran Hirschl, The judicialization of poltics. In: Whittington, Kelemen e Caldeira (eds.), The Oxford handbook of law and politics, 2008, p. 124-5.

    10 Deciso da Suprema Corte que definiu a eleio de 2000, em Bush v. Gore.

    11 Deciso da Suprema Corte sobre a compatibilidade, com a Constituio e com os atos

    internacionais, da construo de um muro na fronteira com o territrio palestino.

    12 Decises da Suprema Corte destinadas a preserver o Estado laico contra o avano do

    fundamentalismo islmico.

    13 Deciso da Corte Constitucional sobre a validade de plano econmico de grande repercusso

    sobre a sociedade.

    14 Deciso da Corte Constitucional restituindo o mandato de presidente destitudo por impeachment.

    15 Na Frana, foi anulado o imposto do carbono, que incidiria sobre o consumo e a emisso de gases

    poluentes, com forte reao do governo. V. Le Monde, 12 jan. 2010, http://www.lemonde.fr/politique/article/2010/01/12/m-devedjian-je-souhaite-que-le-conseil-constitutionnel-soit-a-l-abri-des-soupcons_1290457_823448.html. Nos Estados Unidos, a deciso em Citizens United v. Federal Election Commission, invalidando os limites participao financeira das empresas em campanhas eleitorais, foi duramente criticada pelo Presidente Barak Obama. V. New York Times, 24 jan. 2010, p. A-20.

    16 Sobre o fenmeno na Amrica Latina, v. Rachel Sieder, Line Schjolden e Alan Angell, The

    judicialization of politics in Latin America, 2005.

    17 De acordo com Rodrigo Uprimny Yepes, Judicialization of politics in Colombia, International Journal

    on Human Rights 6:49, 2007, p. 50, algumas das mais importantes hipteses de judicializao da poltica na Colmbia envolveram: a) luta contra a corrupo e para mudana das prticas polticas; b) conteno do abuso das autoridades governamentais, especialmente em relao declarao do estado de emergncia ou estado de exceo; c) proteo das minoriais, assim como a autonomia individual; d) proteo das populaes estigmatizadas ou aqueles em situao de fraqueza poltica; e e) interferncia com polticas econmicas, em virtude da proteo judicial de direitos sociais.

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    H causas de naturezas diversas para o fenmeno. A primeira delas o

    reconhecimento da importncia de um Judicirio forte e independente, como elemento

    essencial para as democracias modernas. Como consequncia, operou-se uma vertiginosa

    ascenso institucional de juzes e tribunais, assim na Europa como em pases da Amrica

    Latina, particularmente no Brasil. A segunda causa envolve certa desiluso com a poltica

    majoritria, em razo da crise de representatividade e de funcionalidade dos parlamentos em

    geral. H uma terceira: atores polticos, muitas vezes, preferem que o Judicirio seja a

    instncia decisria de certas questes polmicas, em relao s quais exista desacordo moral

    razovel na sociedade. Com isso, evitam o prprio desgaste na deliberao de temas divisivos,

    como unies homoafotetivas, interrupo de gestao ou demarcao de terras indgenas18

    .

    No Brasil, o fenmeno assumiu proporo ainda maior, em razo da constitucionalizao

    abrangente e analtica constitucionalizar , em ltima anlise, retirar um tema do debate

    poltico e traz-lo para o universo das pretenses judicializveis e do sistema de controle de

    constitucionalidade vigente entre ns, em que amplo o acesso ao Supremo Tribunal Federal

    por via de aes diretas.

    Como consequncia, quase todas as questes de relevncia poltica,

    social ou moral foram discutidas ou j esto postas em sede judicial, especialmente perante o

    Supremo Tribunal Federal. A enunciao que se segue, meramente exemplificativa, serve

    como boa ilustrao dos temas judicializados: (i) instituio de contribuio dos inativos na

    Reforma da Previdncia (ADI 3105/DF); (ii) criao do Conselho Nacional de Justia na

    Reforma do Judicirio (ADI 3367); (iii) pesquisas com clulas-tronco embrionrias (ADI

    3510/DF); (iv) liberdade de expresso e racismo (HC 82424/RS caso Ellwanger); (v)

    interrupo da gestao de fetos anenceflicos (ADPF 54/DF); (vi) restrio ao uso de

    algemas (HC 91952/SP e Smula Vinculante n 11); (vii) demarcao da reserva indgena

    Raposa Serra do Sol (Pet 3388/RR); (viii) legitimidade de aes afirmativas e quotas sociais e

    raciais (ADI 3330); (ix) vedao ao nepotismo (ADC 12/DF e Smula n 13); (x) no-

    18 V. Rodrigo Uprimny Yepes, Judicialization of politics in Colombia, International Journal on Human

    Rights 6:49, mimeografado, 2007, p. 57. V. tb. Jos Ribas Vieira, Margarida Maria Lacombe Camargo e Alexandre Garrido Silva, O Supremo Tribunal Federal como arquiteto institucional: a judicializao da poltica e o ativismo judicial. In: Anais do I Forum de Grupos de Pesquisa em direito Constitucional e Teoria dos direitos, 2009, p. 44: Em casos politicamente custosos, os poderes Legislativo e Executivo podem, de um modo estratgico, por meio de uma inrcia deliberada, abrir um espao para a atuao ativista dos tribunais. Temas profundamente controvertidos, sem perspectiva de consenso na sociedade, tais como a abertura dos arquivos da ditadura militar, unies homoafetivas, aborto, entre outros, tm os seus custos polticos estrategicamente repassados para os tribunais, cujos integrantes no precisam passar pelo crivo do voto popular aps suas decises.

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    recepo da Lei de Imprensa (ADPF 130/DF). A lista poderia prosseguir indefinidamente,

    com a identificao de casos de grande visibilidade e repercusso, como a extradio do

    militante italiano Cesare Battisti (Ext 1085/Itlia e MS 27875/DF), a questo da importao

    de pneus usados (ADPF 101/DF) ou da proibio do uso do amianto (ADI 3937/SP). Merece

    destaque a realizao de diversas audincias pblicas, perante o STF, para debater a questo

    da judicializao de prestaes de sade, notadamente o fornecimento de medicamentos e de

    tratamentos fora das listas e dos protocolos do Sistema nico de Sade (SUS)19

    .

    Uma observao final relevante dentro deste tpico. No Brasil, como

    assinalado, a judicializao decorre, sobretudo, de dois fatores: o modelo de

    constitucionalizao abrangente e analtica adotado; e o sistema de controle de

    constitucionalidade vigente entre ns, que combina a matriz americana em que todo juiz e

    tribunal pode pronunciar a invalidade de uma norma no caso concreto e a matriz europia,

    que admite aes diretas ajuizveis perante a corte constitucional. Nesse segundo caso, a

    validade constitucional de leis e atos normativos discutida em tese, perante o Supremo

    Tribunal Federal, fora de uma situao concreta de litgio. Essa frmula foi maximizada no

    sistema brasileiro pela admisso de uma variedade de aes diretas e pela previso

    constitucional de amplo direito de propositura. Nesse contexto, a judicializao constitui um

    fato inelutvel, uma circunstncia decorrente do desenho institucional vigente, e no uma

    opo poltica do Judicirio. Juzes e tribunais, uma vez provocados pela via processual

    adequada, no tm a alternativa de se pronunciarem ou no sobre a questo. Todavia, o modo

    como venham a exercer essa competncia que vai determinar a existncia ou no de

    ativismo judicial.

    3. O ativismo judicial

    Ativismo judicial uma expresso cunhada nos Estados Unidos20

    e que

    foi empregada, sobretudo, como rtulo para qualificar a atuao da Suprema Corte durante os

    19 V. http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaSaude.

    20 A locuo ativismo judicial foi utilizada, pela primeira vez, em artigo de um historiador sobre a

    Suprema Corte americana no perodo do New Deal, publicado em revista de circulao ampla. V. Arthur M. Schlesinger, Jr., The Supreme Court: 1947, Fortune, jan. 1947, p. 208, apud Keenan D. Kmiec, The origin and current meanings of judicial activism, California Law Review 92:1441, 2004, p. 1446. A descrio feita por Schlesinger da diviso existente na Suprema Corte, poca, digna de transcrio, por sua atualidade no debate contemporneo: Esse conflito pode ser descrito de

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    anos em que foi presidida por Earl Warren, entre 1954 e 196921

    . Ao longo desse perodo,

    ocorreu uma revoluo profunda e silenciosa em relao a inmeras prticas polticas nos

    Estados Unidos, conduzida por uma jurisprudncia progressista em matria de direitos

    fundamentais22

    . Todas essas transformaes foram efetivadas sem qualquer ato do Congresso

    ou decreto presidencial23

    . A partir da, por fora de uma intensa reao conservadora, a

    expresso ativismo judicial assumiu, nos Estados Unidos, uma conotao negativa,

    depreciativa, equiparada ao exerccio imprprio do poder judicial24

    . Todavia, depurada dessa

    crtica ideolgica at porque pode ser progressista ou conservadora25 a ideia de ativismo

    diferentes maneiras. O grupo de Black e de Douglas acredita que a Suprema Corte pode desempenhar um papel afirmativo na promoo do bem-estar social; o grupo de Frankfurter e Jackson defende uma postura de auto-conteno judicial. Um grupo est mais preocupado com a utilizao do poder judicial em favor de sua prpria concepo do bem social; o outro, com a expanso da esfera de atuao do Legislativo, mesmo que isso signifique a defesa de pontos de vista que eles pessoalmente condenam. Um grupo v a Corte como instrumento para a obteno de resultados socialmente desejveis; o segundo, como um instrumento para permitir que os outros Poderes realizem a vontade popular, seja ela melhor ou pior. Em suma, Black-Douglas e seus seguidores parecem estar mais voltados para a soluo de casos particulares de acordo com suas prprias concepes sociais; Frankfurter-Jackson e seus seguidores, com a preservao do Judicirio na sua posio relevante, mas limitada, dentro do sistema americano.

    21 Sobre o tema, em lngua portuguesa, v. Lus Roberto Barroso, A americanizao do direito

    constitucional e seus paradoxos. In: Temas de direito constitucional, t. IV, p. 144 e s. (O legado de Warren: ativismo judicial e proteo dos direitos fundamentais). Para uma interessante biografia de Warren, bem como um denso relato do perodo, v. Jim Newton, Justice for all: Earl Warren and the Nation he made, 2006.

    22 Alguns exemplos representativos: considerou-se ilegtima a segregao racial nas escolas (Brown

    v. Board of Education, 1954); foram assegurados aos acusados em processo criminal o direito de defesa por advogado (Gideon v. Wainwright, 1963) e o direito no-auto-incriminao (Miranda v. Arizona, 1966); e de privacidade, sendo vedado ao Poder Pblico a invaso do quarto de um casal para reprimir o uso de contraceptivos (Griswold v. Connecticut, 1965). Houve decises marcantes, igualmente, no tocante liberdade de imprensa (New York Times v. Sullivan, 1964) e a direitos polticos (Baker v. Carr, 1962). Em 1973, j sob a presidncia de Warren Burger, a Suprema Corte reconheceu direitos de igualdade s mulheres (Richardson v. Frontiero, 1973), assim como em favor dos seus direitos reprodutivos, vedando a criminalizao do aborto at o terceiro ms de gestao (Roe v. Wade).

    23 Jim Newton, Justice for all: Earl Warren and the Nation he made, 2006, p. 405.

    24 V. Randy E. Barnett, Constitututional clichs, Capital University Law Review 36:493, 2007, p. 495:

    Normalmente, no entanto, ativismo judicial empregado para criticar uma prtica judicial que deve ser evitada pelos juzes e que merece a oposio do pblico. Keenan D. Kmiec, The origin and current meanings of judicial activism, California Law Review 92:1441, 2004, p. 1463 e s. afirma que no se trata de um conceito monoltico e aponta cinco sentidos em que o termo tem sido empregado no debate americano, no geral com uma conotao negativa: a) declarao de inconstitucionalidade de atos de outros Poderes que no sejam claramente inconstitucionais; b) ignorar precedentes aplicveis; c) legislao pelo Judicirio; d) distanciamento das metodologias de interpretao normalmente aplicadas e aceitas; e e) julgamentos em funo dos resultados.

    25 Como assinalado no texto, a expresso ativismo judicial foi amplamente utilizada para estigmatizar

    a jurisprudncia progressista da Corte Warren. bem de ver, no entanto, que o ativismo judicial precedeu a criao do termo e, nas suas origens, era essencialmente conservador. De fato, foi na atuao proativa da Suprema Corte que os setores mais reacionrios encontraram amparo para a segregao racial (Dred Scott v. Sanford, 1857) e para a invalidao das leis sociais em geral (Era

  • 9

    judicial est associada a uma participao mais ampla e intensa do Judicirio na concretizao

    dos valores e fins constitucionais, com maior interferncia no espao de atuao dos outros

    dois Poderes. Em muitas situaes, sequer h confronto, mas mera ocupao de espaos

    vazios.

    No Brasil, h diversos precedentes de postura ativista do STF,

    manifestada por diferentes linhas de deciso. Dentre elas se incluem: a) a aplicao direta da

    Constituio a situaes no expressamente contempladas em seu texto e independentemente

    de manifestao do legislador ordinrio, como se passou em casos como o da imposio de

    fidelidade partidria e o da vedao do nepotismo; b) a declarao de inconstitucionalidade de

    atos normativos emanados do legislador, com base em critrios menos rgidos que os de

    patente e ostensiva violao da Constituio, de que so exemplos as decises referentes

    verticalizao das coligaes partidrias e clusula de barreira; c) a imposio de condutas

    ou de abstenes ao Poder Pblico, tanto em caso de inrcia do legislador como no

    precedente sobre greve no servio pblico ou sobre criao de municpio como no de

    polticas pblicas insuficientes, de que tm sido exemplo as decises sobre direito sade.

    Todas essas hipteses distanciam juzes e tribunais de sua funo tpica de aplicao do

    Direito vigente e os aproximam de uma funo que mais se assemelha de criao do prprio

    Direito.

    A judicializao, como demonstrado acima, um fato, uma

    circunstncia do desenho institucional brasileiro. J o ativismo uma atitude, a escolha de um

    modo especfico e proativo de interpretar a Constituio, expandindo o seu sentido e alcance.

    Normalmente, ele se instala e este o caso do Brasil em situaes de retrao do Poder

    Legislativo, de um certo descolamento entre a classe poltica e a sociedade civil, impedindo

    que determinadas demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva. O oposto do ativismo

    Lochner, 1905-1937), culminando no confronto entre o Presidente Roosevelt e a Corte, com a mudana da orientao jurisprudencial contrria ao intervencionismo estatal (West Coast v. Parrish, 1937). A situao se inverteu no perodo que foi de meados da dcada de 50 a meados da dcada de 70 do sculo passado. Todavia, depois da guinada conservadora da Suprema Corte, notadamente no perodo da presidncia de William Rehnquist (1986-2005), coube aos progressistas a crtica severa ao ativismo judicial que passou a desempenhar. V. Frank B. Cross e Stefanie A. Lindquistt, The scientific study of judicial activism, Minnesota Law Review 91:1752, 2006-2007, p. 1753 e 1757-8; Cass Sunstein, Tilting the scales rightward, New York Times, 26 abr. 2001 (um notvel perodo de ativismo judicial direitista) e Erwin Chemerinsky, Perspective on Justice: and federal law got narrower, narrower, Los Angeles Times, 18 mai. 2000 (ativismo judicial agressivo e conservador).

  • 10

    a auto-conteno judicial, conduta pela qual o Judicirio procura reduzir sua interferncia

    nas aes dos outros Poderes26

    . A principal diferena metodolgica entre as duas posies

    est em que, em princpio, o ativismo judicial legitimamente exercido procura extrair o

    mximo das potencialidades do texto constitucional, inclusive e especialmente construindo

    regras especficas de conduta a partir de enunciados vagos (princpios, conceitos jurdicos

    indeterminados). Por sua vez, a autoconteno se caracteriza justamente por abrir mais espao

    atuao dos Poderes polticos, tendo por nota fundamental a forte deferncia em relao s

    aes e omisses desses ltimos.

    4. Crticas expanso da interveno judicial na vida brasileira

    Diversas objees tm sido opostas, ao longo do tempo, expanso do

    Poder Judicirio nos Estados constitucionais contemporneos. Identificam-se aqui trs delas.

    Tais crticas no infirmam a importncia do papel desempenhado por juzes e tribunais nas

    democracias modernas, mas merecem considerao sria. O modo de investidura dos juzes e

    membros de tribunais, sua formao especfica e o tipo de discurso que utilizam so aspectos

    que exigem reflexo. Ningum deseja o Judicirio como instncia hegemnica e a

    interpretao constitucional no pode se transformar em usurpao da funo legislativa.

    Aqui, como em quase tudo mais, impem-se as virtudes da prudncia e da moderao27

    .

    4.1. Crtica poltico-ideolgica

    Juzes e membros dos tribunais no so agentes pblicos eleitos. Sua

    investidura no tem o batismo da vontade popular. Nada obstante isso, quando invalida atos

    do Legislativo ou do Executivo ou impe-lhes deveres de atuao, o Judicirio desempenha

    um papel que inequivocamente poltico. Essa possibilidade de as instncias judiciais

    sobreporem suas decises s dos agentes polticos eleitos gera aquilo que em teoria

    26 Por essa linha, juzes e tribunais (i) evitam aplicar diretamente a Constituio a situaes que no

    estejam no seu mbito de incidncia expressa, aguardando o pronunciamento do legislador ordinrio; (ii) utilizam critrios rgidos e conservadores para a declarao de inconstitucionalidade de leis e atos normativos; e (iii) abstm-se de interferir na definio das polticas pblicas.

    27 V. Aristteles, tica a Nicmaco, 2007, p. 70 e 77: Em primeiro lugar, temos que observar que as

    qualidades morais so de tal modo constitudas que so destrudas pelo excesso e pela deficincia. (...) [O] excesso e a deficincia so uma marca do vcio e a observncia da mediania uma marca da virtude....

  • 11

    constitucional foi denominado de dificuldade contramajoritria28

    . A jurisdio constitucional

    e a atuao expansiva do Judicirio tm recebido, historicamente, crticas de natureza poltica,

    que questionam sua legitimidade democrtica e sua suposta maior eficincia na proteo dos

    direitos fundamentais29

    . Ao lado dessas, h, igualmente, crticas de cunho ideolgico, que

    veem no Judicirio uma instncia tradicionalmente conservadora das distribuies de poder e

    de riqueza na sociedade. Nessa perspectiva, a judicializao funcionaria como uma reao das

    elites tradicionais contra a democratizao, um antdoto contra a participao popular e a

    poltica majoritria30

    .

    4.2. Crtica quanto capacidade institucional

    Cabe aos trs Poderes interpretar a Constituio e pautar sua atuao

    com base nela. Mas, em caso de divergncia, a palavra final do Judicirio. Essa primazia

    no significa, porm, que toda e qualquer matria deva ser decidida em um tribunal. Para

    evitar que o Judicirio se transforme em uma indesejvel instncia hegemnica31

    , a doutrina

    constitucional tem explorado duas ideias destinadas a limitar a ingerncia judicial: a de

    28 Alexander Bickel, The least dangerous branch, 1986, p. 16-23: A questo mais profunda que o

    controle de constitucionalidade (judicial review) uma fora contramajoritria em nosso sistema. (...) [Q]uando a Suprema Corte declara inconstitucional um ato legislativo ou um ato de um membro eleito do Executivo, ela se ope vontade de representantes do povo, o povo que est aqui e agora; ela exerce um controle, no em nome da maioria dominante, mas contra ela. (...) O controle de constitucionalidade, no entanto, o poder de aplicar e interpretar a Constituio, em matrias de grande relevncia, contra a vontade da maioria legislativa, que, por sua vez, impotente para se opor deciso judicial.

    29 Um dos principais representantes dessa corrente Jeremy Waldron, autor de Law and

    disagreement, 1999, e The core of the case against judicial review, Yale Law Journal 115:1346, 2006. Sua tese central a de que nas sociedades democrticas nas quais o Legislativo no seja disfuncional, as divergncias acerca dos direitos devem ser resolvidas no mbito do processo legislativo e no do processo judicial.

    30 V. Ran Hirschl, Towrds juristocracy: the origins and consequences of the new constitutionalism,

    2004. Aps analisar as experincias de Canad, Nova Zelndia, Israel e frica do Sul, o autor conclui que o aumento do poder judicial por via da constitucionalizao , no geral, um pacto estratgico entre trs partes: as elites polticas hegemnicas (e crescentemente ameaadas) que pretendem proteger suas preferncias polticas contra as vicissitudes da poltica democrtica; as elites econmicas que comungam da crena no livre mercado e da antipatia em relao ao governo; e cortes supremas que buscar fortalecer seu poder simblico e sua posio institucional (p. 214). Nos Estados Unidos, em linha anloga, uma corrente de pensamento referida como constitucionalismo popular tambm critica a ideia de supremacia judicial. V., dentre muitos, Mark Tushnet, Taking the constitution away from the courts, 1999, p. 177, onde escreveu: Os liberais (progressistas) de hoje parecem ter um profundo medo do processo eleitoral. Cultivam um entusiasmo no controle judicial que no se justifica, diante das experincias recentes. Tudo porque tm medo do que o povo pode fazer.

    31 A expresso do Ministro Celso de Mello. V. STF, DJ, 12 mai.2000, MS 23.452/RJ, Rel. Min. Celso

    de Mello.

  • 12

    capacidade institucional e a de efeitos sistmicos32

    . Capacidade institucional envolve a

    determinao de qual Poder est mais habilitado a produzir a melhor deciso em determinada

    matria. Temas envolvendo aspectos tcnicos ou cientficos de grande complexidade podem

    no ter no juiz de direito o rbitro mais qualificado, por falta de informao ou de

    conhecimento especfico33

    . Tambm o risco de efeitos sistmicos imprevisveis e indesejveis

    podem recomendar uma posio de cautela e de deferncia por parte do Judicirio. O juiz, por

    vocao e treinamento, normalmente estar preparado para realizar a justia do caso concreto,

    a microjustia34

    , sem condies, muitas vezes, de avaliar o impacto de suas decises sobre um

    segmento econmico ou sobre a prestao de um servio pblico35

    .

    4.3. Crtica quanto limitao do debate

    O mundo do Direito tem categorias, discurso e mtodos prprios de

    argumentao. O domnio desse instrumental exige conhecimento tcnico e treinamento

    especfico, no acessveis generalidade das pessoas. A primeira consequncia drstica da

    judicializao a elitizao do debate e a excluso dos que no dominam a linguagem nem

    tm acesso aos locus de discusso jurdica36

    . Institutos como audincias pblicas, amicus

    32 V. Cass Sunstein e Adrian Vermeulle, Intepretation and institutions, Public Law and Legal Theory

    Working Paper No. 28, 2002: Ao chamarmos ateno para as capacidades institucionais e para os efeitos sistmicos, estamos sugerindo a necessidade de um tipo de virada institucional no estudo das questes de interpretao jurdicas (p. 2). Sobre o tema, v. tb. Adrian Vermeule, Foreword: system effects and the constitution, Harvard Law Review 123:4, 2009.

    33 Por exemplo: em questes como demarcao de terras indgenas ou transposio de rios, em que

    tenha havido estudos tcnicos e cientficos adequados, a questo da capacidade institucional deve ser sopesada de maneira criteriosa. 34

    Ana Paula de Barcellos, Constitucionalizao das polticas pblicas em matria de direitos fundamentais: o controle poltico-social e o controle jurdico no espao democrtico, Revista de Direito do Estado 3:17, 2006, p. 34. Tambm sobre o tema, v. Daniel Sarmento, Interpretao constitucional, pr-compreenso e capacidades institucionais do intrprete. In: Cludio Pereira de Souza Neto, Daniel Sarmento e Gustavo Binenbojm (coords.), Vinte anos da Constituio Federal de 1988, 2008, p. 317: [U]ma teoria hermenutica construda a partir de uma imagem romntica do juiz pode produzir resultados desastrosos quando manejada por magistrados de carne e osso que no correspondam quela idealizao....

    35 Exemplo emblemtico nessa matria tem sido o setor de sade. Ao lado de intervenes

    necessrias e meritrias, tem havido uma profuso de decises extravagantes ou emocionais em matria de medicamentos e terapias, que pem em risco a prpria continuidade das polticas pblicas de sade, desorganizando a atividade administrativa e comprometendo a alocao dos escassos recursos pblicos. Sobre o tema, v. Lus Roberto Barroso, Da falta de efetividade constitucionalizao excessiva: direito sade, fornecimento gratuito de medicamentos e parmetros para a atuao judicial. In: Temas de direito constitucional, tomo IV, 2009.

    36 V. Jeremy Waldron, The core case against judicial review, The Yale Law Journal 115:1346, p. 133:

    A judicializao tende a mudar o foco da discusso pblica, que passa de um ambiente onde as

  • 13

    curiae e direito de propositura de aes diretas por entidades da sociedade civil atenuam mas

    no eliminam esse problema. Surge, assim, o perigo de se produzir uma apatia nas foras

    sociais, que passariam a ficar espera de juzes providenciais37

    . Na outra face da moeda, a

    transferncia do debate pblico para o Judicirio traz uma dose excessiva de politizao dos

    tribunais, dando lugar a paixes em um ambiente que deve ser presidido pela razo38

    . No

    movimento seguinte, processos passam a tramitar nas manchetes de jornais e no na

    imprensa oficial e juzes trocam a racionalidade plcida da argumentao jurdica por

    embates prprios da discusso parlamentar, movida por vises polticas contrapostas e

    concorrentes39

    .

    5. Importncia e limites da jurisdio constitucional nas democracias

    contemporneas

    A jurisdio constitucional pode no ser um componente indispensvel

    do constitucionalismo democrtico, mas tem servido bem causa, de uma maneira geral40

    .

    Ela um espao de legitimao discursiva ou argumentativa das decises polticas, que

    coexiste com a legitimao majoritria, servindo-lhe de contraponto e complemento41. Isso

    razes podem ser postas de maneira aberta e abrangente para um outro altamente tcnico e formal, tendo por objeto textos e ideias acerca de interpretao (traduo livre e ligeiramente editada).

    37 Rodrigo Uprimny Yepes, Judicialization of politics in Colombia, International Journal on Human

    Rights 6:49, 2007, p. 63: O uso de argumentos jurdicos para resolver problemas sociais complexos pode dar a impresso de que a soluo para muitos problemas polticos no exige engajamento democrtico, mas em vez disso juzes e agentes pblicos providenciais.

    38 Exemplo emblemtico de debate apaixonado foi o que envolveu o processo de extradio do ex-

    militante da esquerda italiana Cesare Battisti. Na ocasio, assinalou o Ministro Eros Grau: "Parece que no h condies no tribunal de um ouvir o outro, dada a paixo que tem presidido o julgamento deste caso". Sobre o ponto, v. Felipe Recondo e Maringela Galluci, Caso Battisti expe crise no STF. In: Estado de So Paulo, 22.11.2009.

    39 Em 22 abr.2009, diferentes vises sobre a relao Judicirio, mdia e sociedade levaram a uma

    rspida discusso entre os Ministros Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa. V. http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2009/04/22/na-integra-bate-boca-entre-joaquim-barbosa-mendes-179585.asp.

    40 V. Dieter Grimm, Jurisdio constitucional e democracia, Revista de Direito do Estado 4:3, 2006, p.

    9: A jurisdio constitucional no nem incompatvel nem indispensvel democracia. (...) [H] suficientes provas histricas de que um estado democrtico pode dispensar o controle de constitucionalidade. (...) Ningum duvidaria do carter democrtico de Estados como o Reino Unido e a Holanda, que no adotam o controle de constitucionalidade. Sobre o tema, inclusive com uma reflexo acerca da posio de Dieter Grimm aplicada ao Brasil, v. Thiago Magalhes Pires, Crnicas do subdesenvolvimento: jurisdio constitucional e democracia no Brasil, Revista de direito do Estado 12:181, 2009, p. 194 e s.

    41 Eduardo Bastos de Mendona, A constitucionalizao da poltica: entre o inevitvel e o excessivo,

    p. 10. Artigo indito, gentilmente cedido pelo autor. Para uma defesa do ponto de vista de que as

  • 14

    se torna especialmente verdadeiro em pases de redemocratizao mais recente, como o

    Brasil, onde o amadurecimento institucional ainda se encontra em curso, enfrentando uma

    tradio de hegemonia do Executivo e uma persistente fragilidade do sistema representativo42

    .

    As constituies contemporneas, como j se assinalou, desempenham dois grandes papis:

    (i) o de condensar os valores polticos nucleares da sociedade, os consensos mnimos quanto a

    suas instituies e quanto aos direitos fundamentais nela consagrados; e (ii) o de disciplinar o

    processo poltico democrtico, propiciando o governo da maioria, a participao da minoria e

    a alternncia no poder43

    . Pois este o grande papel de um tribunal constitucional, do Supremo

    Tribunal Federal, no caso brasileiro: proteger e promover os direitos fundamentais, bem como

    resguardar as regras do jogo democrtico. Eventual atuao contramajoritria do Judicirio

    em defesa dos elementos essenciais da Constituio se dar a favor e no contra a

    democracia44

    .

    Nas demais situaes isto , quando no estejam em jogo os direitos

    fundamentais ou os procedimentos democrticos , juzes e tribunais devem acatar as escolhas

    legtimas feitas pelo legislador, assim como ser deferentes com o exerccio razovel de

    discricionariedade pelo administrador, abstendo-se de sobrepor-lhes sua prpria valorao

    poltica45

    . Isso deve ser feito no s por razes ligadas legitimidade democrtica, como

    cortes constitucionais deve servir como instncias de fortalecimento da representao poltica, v. Thamy Pogrebinschi, Entre judicializao e representao. O papel poltico do Supremo Tribunal Federal e o experimentalismo democrtico brasileiro, mimeografado, 2009.

    42 Um dos principais crticos da judicial review, isto , possibilidade de cortes de justia declararem

    a inconstitucionalidade de atos normativos, Jeremy Waldron, no entanto, reconhece que ela pode ser necessria para enfrentar patologias especficas, em um ambiente em que certas caractersticas polticas e institucionais das democracias liberais no estejam totalmente presentes. V. Jeremy Waldron, The core case against judicial review, The Yale Law Journal 115:1346, p. 1359 e s.

    43 Lus Roberto Barroso, Curso de direito constitucional contemporneo, 2009, p. 89-90.

    44 Para uma crtica da viso do Judicirio como instncia de proteo das minorias e de defesa das

    regras democrticas, v. Luciano da Ros, Tribunais como rbitros ou como instrumentos de oposio: uma tipologia a partir dos estudos recentes sobre judicializao da poltica com aplicao ao caso brasileiro contemporneo, Direito, Estado e Sociedade 31:86, 2007, p. 100-1, onde averbou: Pode-se afirmar que tribunais so instituies que operam rigorosamente dentro dos limites que a dinmica das outras foras polticas e institucionais lhes impem, raramente decidindo fora do crculo de preferncias dos atores polticos. A idia de que tribunais salvaguardam a democracia e a Constituio contra tudo e contra todos, como muitas vezes se veicula nos crculos acadmicos, pode ser considerada ingnua.

    45 Na jurisprudncia norte-americana, o caso Chevron o grande precedente da teoria da deferncia

    administrativa em relao interpretao razovel dada pela Administrao. De fato, em Chevron USA Inc. vs. National Resources Defense Council Inc. (467 U.S. 837 (1984) ficou estabelecido que, havendo ambiguidade ou delegao legislativa para a agncia, o Judicirio somente deve intervir se a Administrao (no caso, uma agncia reguladora) tiver atuado contra legem ou de maneira irrazovel.

  • 15

    tambm em ateno s capacidades institucionais dos rgos judicirios e sua impossibilidade

    de prever e administrar os efeitos sistmicos das decises proferidas em casos individuais. Os

    membros do Judicirio no devem presumir demais de si prprios como ningum deve,

    alis, nessa vida , supondo-se experts em todas as matrias. Por fim, o fato de a ltima

    palavra acerca da interpretao da Constituio ser do Judicirio no o transforma no nico

    nem no principal foro de debate e de reconhecimento da vontade constitucional a cada

    tempo. A jurisdio constitucional no deve suprimir nem oprimir a voz das ruas, o

    movimento social, os canais de expresso da sociedade. Nunca demais lembrar que o poder

    emana do povo, no dos juzes.

    III. DIREITO E POLTICA: A CONCEPO TRADICIONAL

    1. Notas sobre a distino entre Direito e poltica

    A separao entre Direito e poltica tem sido considerada como

    essencial no Estado constitucional democrtico. Na poltica, vigoram a soberania popular e o

    princpio majoritrio. O domnio da vontade. No Direito, vigora o primado da lei (the rule of

    law) e do respeito aos direitos fundamentais. O domnio da razo. A crena mitolgica nessa

    distino tem resistido ao tempo e s evidncias. Ainda hoje, j avanado o sculo XXI,

    mantm-se a diviso tradicional entre o espao da poltica e o espao do Direito46

    . No plano

    de sua criao, no h como o Direito ser separado da poltica, na medida em que produto

    do processo constituinte ou do processo legislativo, isto , da vontade das maiorias. O Direito

    , na verdade, um dos principais produtos da poltica, o trofu pelo qual muitas batalhas so

    disputadas47

    . Em um Estado de direito, a Constituio e as leis, a um s tempo, legitimam e

    limitam o poder poltico.

    J no plano da aplicao do Direito, sua separao da poltica tida

    como possvel e desejvel. Tal pretenso se realiza, sobretudo, por mecanismos destinados a

    evitar a ingerncia do poder poltico sobre a atuao judicial. Isso inclui limitaes ao prprio

    46 V. Larry Kramer, The people themselves: popular constitutionalism and judicial review, 2004, p. 7.

    47 V. Keith E. Whittington, R. Daniel Kelemen e Gregory A. Caldeira (eds.), The Oxford handbook of

    law and politics, 2008, p. 3.

  • 16

    legislador, que no pode editar leis retroativas, destinadas a atingir situaes concretas48

    . Essa

    separao potencializada por uma viso tradicional e formalista do fenmeno jurdico. Nela

    se cultivam crenas como a da neutralidade cientfica, da completude do Direito e a da

    interpretao judicial como um processo puramente mecnico de concretizao das normas

    jurdicas, em valoraes estritamente tcnicas49

    . Tal perspectiva esteve sob fogo cerrado ao

    longo de boa parte do sculo passado, tendo sido criticada por tratar questes polticas como

    se fossem lingusticas e por ocultar escolhas entre diferentes possibilidades interpretativas por

    trs do discurso da nica soluo possvel50

    . Mais recentemente, autores diversos tm

    procurado resgatar o formalismo jurdico, em uma verso requalificada, cuja nfase a

    valorizao das regras e a conteno da discricionariedade judicial51

    .

    2. Constituio e poderes constitudos

    A Constituio o primeiro e principal elemento na interface entre

    poltica e Direito. Cabe a ela transformar o poder constituinte originrio energia poltica em

    estado quase puro, emanada da soberania popular em poder constitudo, que so as

    instituies do Estado, sujeitas legalidade jurdica, rule of law. a Constituio que

    institui os Poderes do Estado, distribuindo-lhes competncias diversas52

    . Dois deles recebem

    48

    Dieter Grimm, Constituio e poltica, 2006, p. 13.

    49 O termo formalismo empregado aqui para identificar posies que exerceram grande influncia

    em todo o mundo, como a da Escola da Exegese, na Frana, a Jurisprudncia dos Conceitos, na Alemanha, e o Formalismo Jurdico, nos Estados Unidos, cuja marca essencial era a da concepo mecanicista do direito, com nfase na lgica formal e grande desconfiana em relao interpretao judicial.

    50 Para Brian Z. Tamahana, Beyond the formalist-realist divide: the role of politics in judging, 2010, a

    existncia do formalismo jurdico, com as caractersticas que lhe so atribudas, no corresponde realidade histrica. Segundo ele, ao menos nos Estados Unidos, essa foi uma inveno de alguns realistas jurdicos, que se apresentaram para combater uma concepo que jamais exisitiu, ao menos no com tais caractersticas: autonomia e completude do direito, solues nicas e interpretao mecnica. A tese refoge ao conhecimento convencional e certamente suscitar polmica.

    51 V. Frederick Schauer, Formalism: legal, constitutional, judicial. In: Keith E. Whittington, R. Daniel

    Kelemen e Gregory A. Caldeira (eds.), The Oxford handbook of law and politics, 2008, p. 428-36; e Noel Struchiner, Posturas interpretativas e modelagem institucional: a dignidade (contingente) do formalismo jurdico. In: Daniel Sarmento (coord.), Filosofia e teoria constitucional contempornea, 2009, p. 463-82. Sobre as ambiguidades do termo formalismo, v. Martin Stone, verbete formalismo. In: Jules Coleman e Scott Shapiro (Eds), The Oxford handbook of jurisprudence and philosophy of law, 2002, p. 166-205.

    52 O poder constituinte, titularizado pelo povo, elabora a Constituio. A Constituio tem por

    propsito submeter a poltica ao direito, impondo a ela regras procedimentais e determinados valores substantivos. Isso no significa, todavia, quer a judicializao plena quer a supresso da poltica, mas a mera existncia de limites, de uma moldura, como referido por Dieter Grimm, que acrescentou:

  • 17

    atribuies essencialmente polticas: o Legislativo e o Executivo. Ao Legislativo toca,

    precipuamente, a criao do direito positivo53

    . J o Executivo, no sistema presidencialista

    brasileiro, concentra as funes de chefe de Estado e de chefe de governo, conduzindo com

    razovel proeminncia a poltica interna e externa. Legislativo e Executivo so o espao por

    excelncia do processo poltico majoritrio, feito de campanhas eleitorais, debate pblico e

    escolhas discricionrias. Um universo no qual o ttulo principal de acesso o voto: o que

    elege, reelege ou deixa de fora.

    J ao Poder Judicirio so reservadas atribuies tidas como

    fundamentalmente tcnicas. Ao contrrio do chefe do Executivo e dos parlamentares, seus

    membros no so eleitos. Como regra geral, juzes ingressam na carreira no primeiro grau de

    jurisdio, mediante concurso pblico. O acesso aos tribunais de segundo grau se d por via

    de promoo, conduzida pelo rgo de cpula do prprio tribunal54

    . No tocante aos tribunais

    superiores, a investidura de seus membros sofre maior influncia poltica, mas, ainda assim,

    est sujeita a parmetros constitucionais55

    . A atribuio tpica do Poder Judicirio consiste na

    aplicao do Direito a situaes em que tenha surgido uma disputa, um litgio entre partes. Ao

    decidir a controvrsia esse o entendimento tradicional , o juiz faz prevalecer, no caso

    concreto, a soluo abstratamente prevista na lei. Desempenharia, assim, uma funo tcnica

    de conhecimento, de mera declarao de um resultado j previsto, e no uma atividade

    criativa, suscetvel de influncia poltica56

    . Mesmo nos casos de controle de

    constitucionalidade em tese isto , de discusso acerca da validade abstrata de uma lei , o

    [U]ma poltica totalmente judicializada estaria no fundo despida de seu carter poltico e por fim reduzida administrao (Constituio e poltica, 2006, p. 10).

    53 Note-se que no mbito da atuao poltica do Legislativo inclui-se, com destaque, a fiscalizao do

    governo e da administrao pblica. Importante ressaltar, igualmente, que nos pases presidencialistas e no Brasil, especialmente , o chefe do Executivo tem participao destacada no processo legislativo, seja pela iniciativa seja pelo poder de sano ou veto. Sobre o tema, v. Clmerson Merlin Clve, A atividade legislativa do Poder Executivo, 2000, p. 99-118.

    54 Salvo no tocante ao chamado quinto constitucional, em que h participao do chefe do Executivo

    na designao de advogados e membros do Ministrio Pblico para o tribunal (CF, art. 94).

    55 Nos tribunais superiores Superior Tribunal de Justia, Tribunal Superior Eleitoral, Tribunal

    Superior do Trabalho e Superior Tribunal Militar , a indicao de seus ministros feita pelo Presidente da Repblica, com aprovao do Senado Federal (exceto no caso do TSE). Ainda assim, existem balizamentos constitucionais, que incluem, conforme o caso, exigncias de notrio saber jurdico e reputao ilibada, idade e origem funcional. V. CF, arts. 101, 104, 119, 111-A e 123.

    56 Sobre a interpretao jurdica como mera funo tcnica de conhecimento, v. Michel Troper,

    verbete Interprtation. In: Denis Alland e Stphane Rials Dictionnaire de la culture juridique, 2003, p. 843.

  • 18

    Judicirio estaria fazendo prevalecer a vontade superior da Constituio sobre a deciso

    poltica majoritria do Legislativo.

    3. A pretenso de autonomia do Judicirio e do Direito em relao poltica

    A maior parte dos Estados democrticos do mundo reserva uma parcela

    de poder poltico para ser exercido pelo Judicirio, isto , por agentes pblicos que no so

    eleitos. Quando os rgos judiciais resolvem disputas entre particulares, determinando, por

    exemplo, o pagamento de uma indenizao por quem causou um acidente, decretando um

    divrcio ou o despejo de um imvel, no h muita polmica sobre a legitimidade do poder que

    exerce. A Constituio confere a ele competncia para solucionar os litgios em geral e disso

    que se trata. A questo ganha em complexidade, todavia, quando o Judicirio atua em disputas

    que envolvem a validade de atos estatais ou nas quais o Estado isto , outros rgos de

    Poder seja parte. o que ocorre quando declara inconstitucional a cobrana de um tributo,

    suspende a execuo de uma obra pblica por questes ambientais ou determina a um hospital

    pblico que realize tratamento experimental em paciente que solicitou tal providncia em

    juzo. Nesses casos, juzes e tribunais sobrepem sua vontade de agentes pblicos de outros

    Poderes, eleitos ou nomeados para o fim especfico de fazerem leis, construrem estradas ou

    definirem as polticas de sade.

    Para blindar a atuao judicial da influncia imprpria da poltica, a

    cultura jurdica tradicional sempre se utilizou de dois grandes instrumentos: a independncia

    do Judicirio em relao aos rgos propriamente polticos de governo; e a vinculao ao

    Direito, pela qual juzes e tribunais tm sua atuao determinada pela Constituio e pelas

    leis. rgos judiciais, ensina o conhecimento convencional, no exercem vontade prpria,

    mas concretizam a vontade poltica majoritria manifestada pelo constituinte ou pelo

    legislador. A atividade de interpretar e aplicar normas jurdicas regida por um conjunto de

    princpios, regras, convenes, conceitos e prticas que do especificidade cincia do

    Direito ou dogmtica jurdica. Este, portanto, o discurso padro: juzes so independentes da

    poltica e limitam-se a aplicar o direito vigente, de acordo com critrios aceitos pela

    comunidade jurdica.

    3.1. Independncia do Judicirio

  • 19

    A independncia do Judicirio um dos dogmas das democracias

    contemporneas. Em todos os pases que emergiram de regimes autoritrios, um dos tpicos

    essenciais do receiturio para a reconstruo do Estado de direito a organizao de um

    Judicirio que esteja protegido de presses polticas e que possa interpretar e aplicar a lei com

    iseno, baseado em tcnicas e princpios aceitos pela comunidade jurdica. Independncia e

    imparcialidade como condies para um governo de leis, e no de homens. De leis, e no de

    juzes, fique bem entendido57

    . Para assegurar que assim seja, a Constituio brasileira, por

    exemplo, confere magistratura garantias institucionais que incluem autonomia

    administrativa e financeira e funcionais, como a vitaliciedade, inamovibilidade e

    irredutibilidade de remunerao58

    . Naturalmente, para resguardar a harmonia com outros

    Poderes, o Judicirio est sujeito a checks and balances e, desde a Emenda Constitucional n

    45, de 2004, ao controle administrativo, financeiro e disciplinar do Conselho Nacional de

    Justia. Em uma democracia, todo poder representativo, o que significa que deve ser

    transparente e prestar contas sociedade. Nenhum poder pode estar fora do controle social,

    sob pena de se tornar um fim em si mesmo, prestando-se ao abuso e a distores diversas59

    .

    3.2. Vinculao ao direito posto e dogmtica jurdica

    O mundo do Direito tem suas fronteiras demarcadas pela Constituio e

    seus caminhos determinados pelas leis. Alm disso, tem valores, categorias e procedimentos

    prprios, que pautam e limitam a atuao dos agentes jurdicos, sejam juzes, advogados ou

    membros do Ministrio Pblico. Pois bem: juzes no inventam o Direito do nada. Seu papel

    o de aplicar normas que foram positivadas pelo constituinte ou pelo legislador. Ainda quando

    57 Registre-se a aguda observao de Dieter Grimm, ex-juiz da Corte Constitucional alem: A

    garantia constitucional de independncia judicial protege os juzes da poltica, mas no protege o sistema constitucional e a sociedade de juzes que, por razes distintas da presso poltica direta, esto dispostos a desobedecer ou distorcer a lei (Dieter Grimm, Constitutions, constitutional courts and constitutional interpretation at the interface of law and politics. In: Bogdan Iancu (ed.), The law/politics distinction in contemporary public law adjudication, 2009, p. 26).

    58 V. Constituio Federal, arts. 95 e 99. Sobre o tema, v. Lus Roberto Barroso, Constitucionalidade e

    legitimidade da criao do Conselho Nacional de Justia, Interesse Pblico 30:13, 2005.

    59 Em texto escrito anteriormente criao do Conselho Nacional de Justia, e tendo como pano de

    fundo disputas politizadas ligadas privatizao e aos planos econmicos, escreveu Carlos Santiso, Economic reform and judicial governance in Brazil: balancing independence with accountability. In: Siri Gloppen, Roberto Gargarella e Elin Skaar, Democratization and the judiciary, 2004, p. 172 e 177: Excessiva independncia tende a gerar incentivos perversos e insular o Judicirio do contexto poltico e econmico mais amplo, convertendo-o em uma instituio autrquica, incapaz de responder s demandas sociais. (...) Independncia sem responsabilidade poltica (accountability) pode ser parte do problema e no da soluo.

  • 20

    desempenhem uma funo criativa do Direito para o caso concreto, devero faz-lo luz dos

    valores compartilhados pela comunidade a cada tempo. Seu trabalho, portanto, no inclui

    escolhas livres, arbitrrias ou caprichosas. Seus limites so a vontade majoritria e os valores

    compartilhados. Na imagem recorrente, juzes de direito so como rbitros desportivos: cabe-

    lhes valorar fatos, assinalar faltas, validar gols ou pontos, marcar o tempo regulamentar,

    enfim, assegurar que todos cumpram as regras e que o jogo seja justo. Mas no lhes cabe

    formular as regras60

    . A metfora j teve mais prestgio, mas possvel aceitar, para no

    antecipar a discusso do prximo tpico, que ela seja vlida para qualificar a rotina da

    atividade judicial, embora no as grandes questes constitucionais.

    No est em questo, portanto, que as escolhas polticas devem ser

    feitas, como regra geral, pelos rgos eleitos, isto , pelo Congresso e pelo Presidente. Os

    tribunais desempenham um papel importante na vida democrtica, mas no o papel principal.

    Dois autores contemporneos utilizaram expresses que se tornaram emblemticas para

    demarcar o papel das cortes constitucionais. Ronald Dworkin referiu-se a frum de

    princpios. Em uma sociedade democrtica, algumas questes decisivas devem ser tratadas

    como questes de princpios morais ou polticos e no como uma questo de poder

    poltico, de vontade majoritria. So elas as que envolvem direitos fundamentais das pessoas,

    e no escolhas gerais sobre como promover o bem-estar social61

    . J John Rawls explorou a

    idia de razo pblica. Em uma democracia pluralista, a razo pblica consiste na

    justificao das decises polticas sobre questes constitucionais essenciais e sobre questes

    de justia bsica, como os direitos fundamentais. Ela expressa os argumentos que pessoas

    com formao poltica e moral diversa podem acatar, o que exclui, portanto, o emprego de

    60 Em uma das audincias que antecederam sua confirmao como Presidente da Suprema Corte

    americana, em setembro de 2005, John G. Roberts Jr. voltou a empregar essa metfora frequente: Juzes so como rbitros desportivos (umpires). Eles no fazem as regras; eles as aplicam. O papel de um rbitro, assim como o de um juiz, muito importante. Eles asseguram que todos joguem de acordo com as regras. Mas um papel limitado. A passagem est reproduzida em Week in review, New York Times, 12 jul. 2009. V. a ntegra do depoimento em http://www.gpoaccess.gov/congress/senate/judiciary/sh109-158/55-56.pdf.

    61 V. Ronald Dworkin, A matter of principle, 1985, p. 69-71. A fiscalizao judicial assegura que as

    questes mais fundamentais de moralidade poltica sero apresentadas e debatidas como questes de princpio, e no apenas de poder poltico. Essa uma transformao que no poder jamais ser integralmente bem-sucedida apenas no mbito do Legislativo. Por exemplo: a igualdade racial, a igualdade de gnero, a orientao sexual, os direitos reprodutivos, o direito do acusado ao devido processo legal, dentre outras, so questes de princpio, e no de poltica.

  • 21

    doutrinas abrangentes, como as de carter religioso ou ideolgico62

    . Em suma: questes de

    princpio devem ser decididas, em ltima instncia, por cortes constitucionais, bom base em

    argumentos de razo pblica.

    3.3. Limites da separao entre Direito e poltica

    Direito , certamente, diferente da poltica. Mas no possvel ignorar

    que a linha divisria entre ambos, que existe inquestionavelmente, nem sempre ntida, e

    certamente no fixa63

    . Do ponto de vista da teoria jurdica, tem escassa adeso, nos dias que

    correm, a crena de que as normas jurdicas tragam sempre em si um sentido nico, objetivo,

    vlido para todas as situaes sobre as quais incidem. E que, assim, caberia ao intrprete uma

    atividade de mera revelao do contedo preexistente na norma, sem desempenhar qualquer

    papel criativo na sua concretizao. H praticamente consenso, na doutrina contempornea,

    de que a interpretao e aplicao do Direito envolvem elementos cognitivos e volitivos. Do

    ponto de vista funcional, bem de ver que esse papel de intrprete final e definitivo, em caso

    de controvrsia, desempenhado por juzes e tribunais. De modo que o Poder Judicirio e,

    notadamente, o Supremo Tribunal Federal, desfruta de uma posio de primazia na

    determinao do sentido e do alcance da Constituio e das leis, pois cabe-lhe dar a palavra

    final, que vincular os demais Poderes. Essa supremacia judicial quanto determinao do

    que o Direito envolve, por evidente, o exerccio de um poder poltico, com todas as suas

    implicaes para a legitimidade democrtica64

    .

    IV. DIREITO E POLTICA: O MODELO REAL

    1. Os laos inevitveis: a lei e sua interpretao como atos de vontade

    62

    John Rawls, Political liberalism, 1996, p. 212 e s., especialmente p. 231-40. Nas suas prprias palavras: (A razo pblica) se aplica tambm, e de forma especial, ao Judicirio e, acima de tudo, suprema corte, onde haja uma democracia constitucional com controle de constitucionalidade. Isso porque os Ministros tm que explicar e justificar suas decises, baseadas na sua compreenso da Constituio e das leis e precedentes relevantes. Como os atos do Legislativo e do Executivo no precisam ser justificados dessa forma, o papel especial da Corte a torna um caso exemplar de razo pblica. Para uma crtica da viso de Rawls, v. Jeremy Waldron, Public reason and justification in the courtroom, Journal of Law, Philosophy and Culture 1:108, 2007.

    63 V. Eduardo Mendona, A insero da jurisdio constitucional na democracia: algum lugar entre o

    direito e a poltica, Revista de direito do Estado 13:211, 2009, p. 212.

    64 Sobre o conceito de legitimidade e sua evoluo, v. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, 2008,

    Quatro paradigmas do direito administrativo ps-moderno, p. 33-47.

  • 22

    No mundo romano-germnico, comum fazer-se referncia ao Direito

    como uma cincia. A afirmao pode ser aceita, ainda que com reserva, se o termo cincia for

    tomado no sentido de um conjunto organizado de conhecimentos, que guarda uma lgica

    interna e tem princpios, conceitos e categorias especficos, unificados em uma terminologia

    prpria. Mas intuitiva a distino a ser feita em relao s cincias da natureza. Essas

    ltimas so domnios que lidam com fenmenos que se ordenam independentemente da

    vontade humana, seja o legislador, o pblico em geral ou o intrprete. So cincias que se

    destinam a explicar o que l j est. Sem pretender subestimar complexidades

    epistemolgicas, so domnios em que o anseio cientfico por objetividade e comprovao

    imparcial se realiza mais intensamente. J o Direito se insere no campo das cincias sociais e

    tem, sobretudo, uma pretenso prescritiva: ele procura moldar a vida de acordo com suas

    normas. E normas jurdicas no so reveladas, mas, sim, criadas por decises e escolhas

    polticas, tendo em vista determinadas circunstncias e visando determinados fins. E, por

    terem carter prospectivo, precisaro ser interpretadas no futuro, tendo em conta fatos e casos

    concretos.

    Como consequncia, tanto a criao quanto a aplicao do Direito

    dependem da atuao de um sujeito, seja o legislador ou o intrprete. A legislao, como ato

    de vontade humana, expressar os interesses dominantes ou, se se preferir, o interesse

    pblico, tal como compreendido pela maioria, em um dado momento e lugar. E a jurisdio,

    que a interpretao final do Direito aplicvel, expressar, em maior ou menor intensidade, a

    compreenso particular do juiz ou do tribunal acerca do sentido das normas. Diante de tais

    premissas, possvel extrair uma concluso parcial bastante bvia, ainda que frequentemente

    encoberta: o mantra repetido pela comunidade jurdica mais tradicional de que o Direito

    diverso da poltica exige um complemento. distinto, sim, e por certo; mas no isolado

    dela. Suas rbitas se cruzam e, nos momentos mais dramticos, se chocam, produzindo

    vtimas de um ou dos dois lados: a justia e a segurana jurdica, que movem o Direito; ou a

    soberania popular e a legitimidade democrtica, que devem conduzir a poltica. A seguir se

    exploram diferentes aspectos dessa relao. Alguns deles so ligados teoria do Direito e da

    interpretao, e outros s circunstncias dos juzes e rgos julgadores.

    2. A interpretao jurdica e suas complexidades: o encontro no marcado entre

    o Direito e a poltica

  • 23

    2.1. A linguagem aberta dos textos jurdicos

    A linguagem jurdica, como a linguagem em geral, utiliza-se de signos

    que precisam ser interpretados. Tais signos, muitas vezes, possuem determinados sentidos

    consensuais ou de baixo grau de controvrsia. Embora nem sempre as coisas sejam simples

    como parecem, h pouca dvida do que signifique municpio, oramento ou previdncia

    complementar. Mas a Constituio se utiliza, igualmente, de inmeras clusulas abertas, que

    incluem conceitos jurdicos indeterminados e princpios. Calamidade pblica, relevncia e

    urgncia ou crime poltico so conceitos que transmitem uma ideia inicial de sentido, mas que

    precisam ser integrados luz dos elementos do caso concreto. E, em relao a eles, embora

    possam existir certezas positivas e negativas sobre o que significam ou deixam de significar,

    indiscutvel que h uma ampla rea de penumbra que se presta a valoraes que no podero

    refugir a algum grau de subjetividade. O fenmeno se repete com maior intensidade quando

    se trate de princpios constitucionais, com sua intensa carga axiolgica, como dignidade da

    pessoa humana, moralidade administrativa ou solidariedade social. Tambm aqui ser

    impossvel falar em sentidos claros e unvocos. Na interpretao de normas cuja linguagem

    aberta e elstica, o Direito perde muito da sua objetividade e abre espao para valoraes do

    intrprete. O fato de existir consenso de que ao atribuir sentido a conceitos indeterminados e a

    princpios no deve o juiz utilizar-se dos seus prprios valores morais e polticos no elimina

    riscos e complexidades, funcionando como uma bssola de papel.

    2.2. Os desacordos morais razoveis

    Alm dos problemas de ambiguidade da linguagem, que envolvem a

    determinao semntica de sentido da norma, existem, tambm, em uma sociedade pluralista

    e diversificada, o que se tem denominado de desacordo moral razovel65

    . Pessoas bem

    intencionadas e esclarecidas, em relao a mltiplas matrias, pensam de maneira

    radicalmente contrria, sem conciliao possvel. Clusulas constitucionais como direito

    vida, dignidade da pessoa humana ou igualdade do margem a construes hermenuticas

    distintas, por vezes contrapostas, de acordo com a pr-compreenso do intrprete. Esse

    65 Sobre o tema, na literatura mais recente, v. Christopher McMahon, Reasonable disagreement: a

    theory of political morality, 2009; e Folke Tersman, Moral disagreement, 2006.

  • 24

    fenmeno se revela em questes que so controvertidas em todo o mundo, inclusive no Brasil,

    como, por exemplo, interrupo de gestao, pesquisas com clulas-tronco embrionrias,

    eutansia/ortotansia, unies homoafetivas, em meio a inmeras outras. Nessas matrias,

    como regra geral, o papel do Direito e do Estado deve ser o de assegurar que cada pessoa

    possa viver sua autonomia da vontade e suas crenas. Ainda assim, inmeras complexidades

    surgem, motivadas por vises filosficas e religiosas diversas.

    2.3. As colises de normas constitucionais

    Constituies so documentos dialticos e compromissrios, que

    consagram valores e interesses diversos, que eventualmente entram em rota de coliso. Essas

    colises podem se dar, em primeiro lugar, entre princpios ou interesses constitucionalmente

    protegidos. o caso, por exemplo, da tenso entre desenvolvimento nacional e proteo do

    meio-ambiente ou entre livre-iniciativa e represso ao abuso do poder econmico. Tambm

    possvel a coliso entre direitos fundamentais, como a liberdade de expresso e o direito de

    privacidade, ou entre a liberdade de reunio e o direito de ir e vir (no caso, imagine-se, de

    uma passeata que bloqueie integralmente uma via de trnsito essencial). Por fim, possvel

    cogitar de coliso de direitos fundamentais com certos princpios ou interesses

    constitucionalmente protegidos, como o caso da liberdade individual, de um lado, e a

    segurana pblica e a persecuo penal, de outro. Em todos esses exemplos, vista do

    princpio da unidade da Constituio, o intrprete no pode escolher arbitrariamente um dos

    lados, j que no h hierarquia entre normas constitucionais. De modo que ele precisar

    demonstrar, argumentativamente, luz dos elementos do caso concreto, mediante ponderao

    e uso da proporcionalidade, que determinada soluo realiza mais adequadamente a vontade

    da Constituio, naquela situao especfica.

    Todas essas hipteses referidas acima ambiguidade da linguagem,

    desacordo moral e colises de normas recaem em uma categoria geral que tem sido referida

    como casos difceis (hard cases)66

    . Nos casos fceis, a identificao do efeito jurdico

    decorrente da incidncia da norma sobre os fatos relevantes envolve uma operao simples,

    de mera subsuno. O proprietrio de um imvel urbano deve pagar imposto predial. A

    66 Sobre o tema, v. Ronald Dworkin, Taking rights seriiusly, 1997, p. 81 e s.; e Aharon Barak, The

    judge in a democracy, 2006, p. xiii e s.

  • 25

    Constituio no permite ao Chefe do Executivo um terceiro mandato. J os casos difceis

    envolvem situaes para as quais no existe uma soluo acabada no ordenamento jurdico.

    Ela precisa ser construda argumentativamente, por no resultar do mero enquadramento do

    fato norma. Pode um artista, em nome do direito de privacidade, impedir a divulgao de

    sua biografia, escrita por um pesquisador? Pode o autor de uma ao de investigao de

    paternidade exigir que o indigitado pai se submeta coativamente a exame de DNA? Em

    ambos os casos, que envolvem questes constitucionais privacidade, liberdade de expresso,

    direitos da personalidade, liberdade individual a soluo para a disputa no encontrvel

    pr-pronta no sistema jurdico: ela precisa ser desenvolvida justificadamente pelo intrprete.

    2.4. A interpretao constitucional e seus mtodos

    Em todas as hipteses referidas acima, envolvendo casos difceis, o

    sentido da norma precisar ser fixado pelo juiz. Como se registrou, so situaes em que a

    soluo no estar pronta em uma prateleira jurdica e, portanto, exigir uma atuao criativa

    do intrprete, que dever argumentativamente justificar seu itinerrio lgico e suas escolhas.

    Se a soluo no est integralmente na norma, o juiz ter de recorrer a elementos externos ao

    direito posto, em busca do justo, do bem, do legtimo. Ou seja, sua atuao ter de se valer da

    filosofia moral e da filosofia poltica. Mesmo admitida esta premissa a de que o juiz, ao

    menos em certos casos, precisa recorrer a elementos extrajurdicos , ainda assim se vai

    verificar que diferentes juzes adotam diferentes mtodos de interpretao. H juzes que

    pretendem extrair da Constituio suas melhores potencialidades, realizando na maior

    extenso possvel os princpios e direitos fundamentais. H outros que entendem mais

    adequado no ler na Constituio o que nela no est de modo claro ou expresso, prestando

    maior deferncia ao legislador ordinrio67

    . Uma pesquisa emprica revelar, sem surpresa, que

    67 Cass Sunstein, Radicals in robes, 2005, identifica quatro abordagens no debate constitucional:

    perfeccionismo, majoritarianismo, minimialismo e fundamentalismo. O perfeccionismo, adotado por muitos juristas progressistas, quer fazer da Constituio o melhor que ela possa ser. O majoritarianismo pretende diminuir o papel da Suprema Corte e favorecer o processo poltico democrtico, cujo centro de gravidade estaria no Legislativo. O minimalismo ctico acerca de teorias interpretativas e acredita em decises menos abrangentes, focadas no caso concreto e no em proposies amplas. O fundamentalismo procura interpretar a Constituio dando-lhe o sentido que tinha quando foi ratificada. Para uma dura crtica ao minimalismo defendido por Sunstein, v. Ronald Dworkin, Looking for Cass Sunstein, The New York Review of Books 56, 30 abr. 2009 (tambm disponvel em http://www.nybooks.com/articles/22636).

  • 26

    os mesmos juzes nem sempre adotam os mesmos mtodos de interpretao68

    . Seu mtodo ou

    filosofia judicial mera racionalizao da deciso que tomou por outras razes69

    . E a surge

    uma nova varivel: o resultado baseado no no princpio, mas no fim, no resultado70

    .

    Nesse ponto, impossvel no registrar a tentao de se abrir espao para

    o debate acerca de uma das principais correntes filosficas do Direito contemporneo: o

    pragmatismo jurdico, com seu elemento constitutivo essencial, que o consequencialismo.

    Para essa concepo, as consequncias e resultados prticos das decises judiciais, assim em

    relao ao caso concreto como ao sistema como um todo, devem ser o fator decisivo na

    atuao dos juzes e tribunais71

    . O pragmatismo jurdico afasta-se do debate filosfico em

    geral, seja moral ou poltico inclusive o que mobilizou jusnaturalistas e positivistas em torno

    da resposta pergunta o que o direito? e se alinha a um empreendimento terico

    distinto, cuja indagao central : como os juzes devem decidir?72. No o caso, aqui, de

    68 Sobre o ponto, v. Alexandre Garrido da Silva, Minimalismo, democracia e expertise: o Supremo

    Tribunal Federal diante de questes polticas e cientficas complexas, Revista de direito do Estado 12:107, p. 139: importante destacar que no h um magistrado que em sua prtica jurisdicional seja sempre minimalista ou perfeccionista. Nos casos da fidelidade partidria, da clusula de barreira e da inelegibilidade, por exemplo, o Min. Eros Grau assumiu um posicionamento nitidamente minimalista e formalista, ao passo que no caso do amianto aproximou-se, conforme foi visto, do modelo perfeccionista.

    69 Para essa viso ctica, v. Richard A. Posner, How judges think, 2008, p. 13, onde registrou que as

    filosofias judiciais so ou racionalizaes para decises tomadas por outros fundamentos ou armas retricas.

    70 V., ainda uma vez, Alexandre Garrido da Silva, Minimalismo, democracia e expertise: o Supremo

    Tribunal Federal diante de questes polticas e cientficas complexas, Revista de Direito do Estado 12:107, p. 139: Frequentemente, os juzes tendem a fazer um uso estratgico dos modelos anteriormente descritos tendo em vista fins previamente escolhidos, ou seja, optam pragmaticamente pelo modelo mais adequado para a resoluo do problema enfrentado no caso concreto. Sobre o consequencialismo isto , o processo decisrio fundado no resultado , v. Diego Werneck Arguelles, Deuses pragmticos, mortais formalistas: a justificao consequencialista das decises judiciais, dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em direito Pblico da Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ, mimeografado, 2006.

    71 Sobre o pragmatismo filosfico, v. Richard Rorty, Consequences of pragmatism, 1982. Sobre o

    pragmatismo jurdico, no debate norte-americano, vejam-se, dentre muitos: Richard Posner, Law, pragmatism and democracy, 2003; e Jules Coleman, The practice of principle: in defence of a pragmatic approach to legal theory, 2001. Em lngua portuguesa, v. Diego Werneck Arguelhes e Fernando Leal, Pragmatismo como [meta] teoria normativa da deciso judicial: caracterizao, estratgia e implicaes. In: Daniel Sarmento (coord.), Filosofia e teoria constitucional contempornea, 2009; Thamy Pogrebinschi, Pragmatismo: teoria social e poltica, 2005; e Cludio Pereira de Souza Neto, A interpretao constitucional contempornea entre o construtivismo e o pragmatismo. In: Maia, Melo, Cittadino e Pogrebinschi (orgs.), Perspectivas atuais da filosofia do direito, 2005.

    72 Sobre esse ponto especfico, v. Diego Werneck Arguelhes e Fernando Leal, Pragmatismo como

    [meta] teoria normativa da deciso judicial: caracterizao, estratgia e implicaes. In: Daniel Sarmento (coord.), Filosofia e teoria constitucional contempornea, 2009, p. 175 e 187.

  • 27

    se objetar que uma coisa no exclui a outra. A realidade incontornvel, na circunstncia

    presente, que o desvio que conduz ao debate sobre o pragmatismo jurdico no poder ser

    feito no mbito desse trabalho. E isso no apenas por afast-lo do seu eixo central, como

    tambm pela complexidade da tarefa de qualificar o que seja pragmatismo jurdico e de

    sistematizar as diferentes correntes que reivindicam o rtulo.

    3. O juiz e suas circunstncias: influncias polticas em um julgamento73

    No modelo idealizado, o Direito imune s influncias da poltica, por

    fora de diferentes institutos e mecanismos. Basicamente, eles consistiriam: na independncia

    do Judicirio e na vinculao do juiz ao sistema jurdico. A independncia se manifesta, como

    assinalado, em garantias institucionais como a autonomia administrativa e financeira e

    garantias funcionais dos juzes, como a vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade de

    subsdios. Como regra geral, a investidura e a ascenso na carreira da magistratura se d por

    critrios tcnicos ou por valoraes interna corporis. Nos casos em que h participao

    poltica na nomeao de magistrados para tribunais, ela se esgota aps a posse, pois a

    permanncia vitalcia do magistrado no cargo j no depender de qualquer novo juzo

    poltico. A autonomia e especificidade do universo jurdico, por sua vez, consistem em um

    conjunto de doutrinas, categorias e princpios prprios, manejados por juristas em geral a

    includos juzes, advogados, membros do Ministrio Pblico e demais participantes do

    processo jurdico e judicial que no se confundem com os da poltica. Trata-se de um

    discurso e de um cdigo de relao diferenciados. Julgar distinto de legislar e de

    administrar. Juzes no criam o Direito nem definem as aes administrativas. Seu papel

    aplicar a Constituio e as leis, valendo-se de um conjunto de institutos consolidados de longa

    data, sendo que a jurisprudncia desempenha, crescentemente, um papel limitador dessa

    atuao, pela vinculao aos precedentes. Direito e poltica, nessa viso, constituem mundos

    apartados.

    H um modelo oposto a esse, que se poderia denominar de modelo

    ctico, que descr da autonomia do Direito em relao poltica e aos fenmenos sociais em

    geral. Esse o ponto de vista professado por movimentos tericos de expresso, como o

    73 As ideias que se seguem beneficiaram-se, intensamente, das formulaes contidas em Barry

    Friedman, The politics of judicial review, Texas Law Review 84:257, 2005.

  • 28

    realismo jurdico, a teoria crtica e boa parte das cincias sociais contemporneas. Todos eles

    procuram descrever o mundo jurdico e as decises judiciais como so, e no como deveriam

    ser. Afirmam, assim, que a crena na objetividade do Direito e a existncia de solues

    prontas no ordenamento jurdico no passam de mitos. No verdade que o Direito seja um

    sistema de regras e de princpios harmnicos, de onde um juiz imparcial e apoltico colhe as

    solues adequadas para os problemas, livre de influncias externas. Essa uma fantasia do

    formalismo jurdico. Decises judiciais refletem as preferncias pessoais dos juzes, proclama

    o realismo jurdico; so essencialmente polticas, verbera a teoria crtica; so influenciadas

    por inmeros fatores extrajurdicos, registram os cientistas sociais. Todo caso difcil pode ter

    mais de uma soluo razovel construda pelo intrprete, e a soluo que ele produzir ser,

    em ltima anlise, aquela que melhor atenda a suas preferncias pessoais, sua ideologia ou

    outros fatores externos, como os de natureza institucional. Ele sempre agir assim, tenha ou

    no conscincia do que est fazendo.

    O modelo real, como no difcil de intuir, ter uma dose razovel de

    cada uma das vises extremas descritas acima. O Direito pode e deve ter uma vigorosa

    pretenso de autonomia em relao poltica. Isso essencial para a subsistncia do conceito

    de Estado de direito e para a confiana da sociedade nas instituies judiciais. A realidade,

    contudo, revela que essa autonomia ser sempre relativa. Existem razes institucionais,

    funcionais e humanas para que seja assim. Decises judiciais, com frequncia, refletiro

    fatores extrajurdicos. Dentre eles incluem-se os valores pessoais e ideolgicos do juiz, assim

    como outros elementos de natureza poltica e institucional. Por longo tempo, a teoria do

    Direito procurou negar esse fato, a despeito das muitas evidncias. Pois bem: a energia

    despendida na construo de um muro de separao entre o Direito e a poltica deve voltar-se

    agora para outra empreitada74

    . Cuida-se de entender melhor os mecanismos dessa relao

    intensa e inevitvel, com o propsito relevante de preservar, no que essencial, a

    especificidade e, sobretudo, a integridade do Direito75

    . Pois justamente este o objetivo do

    presente tpico: analisar alguns desses elementos metajurdicos que influenciam ou podem

    influenciar as decises judiciais. Confira-se a sistematizao a seguir.

    74 V. Barry Friedman, The politics of judicial review, Texas Law Review 84:257, 2005, p. 267 e p. 269,

    onde averbou: Se, como os juristas vm crescentemente reconhecendo, direito e poltica no podem ser mantidos separados, ainda precisamos de uma teoria que possa integr-los, sem abrir mo dos compromissos com o Estado de direito que esta sociedade tanto preza.

    75 Sobre a ideia de direito como integridade, v. Ronald Dworkin, O imprio do direito, 1999, p. 271-

    331.

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    3.1. Valores e ideologia do juiz

    Como assinalado, o realismo jurdico, um dos mais importantes

    movimentos tericos do Direito no sculo XX, contribuiu decisivamente para a superao do

    formalismo jurdico e da crena de que a atividade judicial seria mecnica, acrtica e unvoca.

    Enfatizando que o Direito tem ambiguidades e contradies, o realismo sustentava que a lei

    no o nico e, em muitos casos, sequer o mais importante fator a influenciar uma

    deciso judicial. Em uma multiplicidade de hipteses, o juiz que faz a escolha do resultado,

    luz de suas intuies, personalidade, preferncias e preconceitos76

    . Em linha anloga, mas

    dando proeminncia absoluta ao elemento poltico, a teoria crtica77

    , no mundo romano-

    germnico, e os critical legal studies, nos Estados Unidos, sustentaram que decises judiciais

    no passam de escolhas polticas, encobertas por um discurso que procura exibir

    neutralidade78

    . Tanto o realismo quanto a teoria crtica refluram drasticamente nas ltimas

    dcadas, mas deixaram uma marca indelvel no pensamento jurdico contemporneo79

    . Mais

    recentemente, um conjunto de estudos empricos, oriundos, sobretudo, da cincia poltica,

    recolocaram no centro do debate