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O contrato de COLONIA na Madeira: ambiguidade entre a parceria e a enfiteuse?
A colonização da Madeira funcionou como um processo experimental de
transposição da estrutura jurídico-social continental portuguesa para um contexto
insular despovoado. O grau de especificação dos direitos de propriedade e o
desenvolvimento de institutos de posse da terra peculiares à Madeira carece de
explicação.
O contrato de colonia da Madeira colocou dificuldades aos reformadores liberais.
A aproximação da colonia à enfiteuse ocorrida entre 1854 e 1867 foi rejeitada. A
sua aceitação teria dado garantias aos senhorios quanto às benfeitorias: a
indivisibildade em transmissões sucessórias dos colonos e direito de opção em caso
de alienação e oneração (hipoteca) pelo colono. Os colonos perdiam a possibilidade
de partilhar as benfeitorias entre os seus herdeiros e tinham de efectuar a consulta
prévia ao senhorio em caso de oneração ou alienação das benfeitorias.
Introdução
A reflexão sobre o papel exercido pela herança institucional ganha peso no caso da
Madeira por esta ter tido um processo de povoamento num espaço inabitado. A adopção
de instrumentos jurídicos conhecidos e familiares aos povoadores tendeu a ser adoptada
numa perspectiva path dependancy1.
Os factores económicos convencionais foram frequentemente usados pela historiografia
para explicar as sociedades saídas de processos de colonização. Num enfoque recente,
recriou-se a abordagem da dotação de factores (condições iniciais), concebida em
sentido lato. A perspectiva é comparada e centra-se em analisar como é que as
diferenças ambientais existentes nos locais de fixação europeia geraram sociedades
com diferentes graus de desigualdade, como é que estas foram preservadas pela
evolução de instituições económicas e como é que o crescimento económico foi
1 Jonathan R.T. Hughes (1976) Social Control in the Colonial Economy, Charlottesville,Va. p.45 in Lee Alston and Bernardo Mueller (2003), Property Rights in Land , in Joel Mokyr (editor) The Oxford Encyclopedia of Economic History, Oxford University Press, New York, p.276.
2
assim afectado. As condições ambientais importam para se perceber se eventualmente
tiveram “um impacto duradouro e profundo na evolução institucional e no
desenvolvimento económico de longo prazo”2.
Ao abordar-se a evolução institucional ganha relevo a política sobre a terra pelas
implicações que tem com o padrão de povoamento e com o grau de concentração de
propriedade da terra. O interesse do caso da Madeira prende-se com o facto de a
transposição das instituições se ter efectuado sem resistências humanas para um espaço
inabitado e com a necessidade de se encontrar soluções para problemas de âmbito local
e para a evolução registada na dotação de recursos. Estas soluções evoluíram no sentido
de criar especificidades institucionais. O programa de reforma liberal português tendeu
a lidar mal com as especificidades regionais. O contrato agrícola – a colonia – existente
na Madeira, ao encerrar uma ambiguidade entre os contratos de parceria e de enfiteuse,
gerou um imbróglio que está na origem da sua falta de regulamentação.
De modo a introduzirmos a especificidade do contrato de colonia, abordaremos o
contexto histórico anterior ao seu surgimento. Em 2.1. referimos as primeiras
instituições criadas para estabelecer direitos de propriedade e de uso da terra e qual a
sua evolução. Em 2.2. analisaremos se os argumentos da escassez de terra, das
condições ambientais e das actividades agrícolas explicam a necessidade de
especificação de dois níveis direitos de propriedade na colonia. Em 2.3 tratar-se-á dos
factores políticos e direitos de propriedade e afloraremos as implicações da intervenção
do programa de reforma liberal nos equilíbrios até então existentes. Em 3.1 traçaremos
as características da economia durante a tentativa de reforma da colonia entre 1850 e
1867; em 3.2 analisaremos as dificuldades da reforma e a ambiguidade patenteada pela
colonia. A conclusão evidencia a ambiguidade que não favoreceu a regulamentação
pelos reformadores liberais, tendo como o resultado o excessivo parcelamento da
exploração agrícola.
2 Kenneth L. Sokoloff and Stanley L. Engerman, History Lessons. Institutions (2000) Factor Endowments, and Paths of Development in the New World, Journal of Economic Perspectives, 14 (3), p. 220.
3
2.1. As instituições e o povoamento
O carácter experimental da colonização da Madeira foi acentuado por Virginia Rau e
Borges de Macedo. Estava em causa o primeiro ensaio de adaptação de homens,
técnicas, estruturas políticas, jurídicas e sociais provenientes de condições continentais a
um espaço insular atlântico despovoado3. Baseados numa fonte – o mais antigo cálculo
de produção conhecido Livro do Almoxaifado dos açuquares da parte do Funchal
(1494) – defenderam a tese que a cultura da cana sacarina foi organizada em regime de
média e pequena propriedade. Neste enquadramento, prevaleceu “uma classe média de
proprietários de disponibilidades limitadas” sem capacidade de “sustentar um sistema
de produção baseado no esclavagismo”. Isto é, o sistema de plantação propiciador de
economias de escala associadas à monitorização de trabalho escravo não era susceptível
de utilização na Madeira.
A historiografia acentua o processo path dependanccy inerente e a circunstância de as
capitanias hereditárias terem tido sucesso na Madeira e terem falhado no Brasil4. Uma
capitania caracteriza-se pela sua jurisdição – envolve delegações amplas de poder por
parte da coroa num capitão donatário – e pela sua delimitação territorial. Os “donatários
de bens da Coroa, senhores de jurisdição” recebiam rendas e privilégios mas não
3 Virgínia Rau e Jorge de Macedo (1962) O açúcar da Madeira nos fins do século XV.
Problemas de Produção e Comércio, Junta Geral do Distrito do Funchal, 1962, p. 9 e p. 10..A referência à réplica do ensaio no Brasil baseia-se em Vitor Viana «Formação económica do Brasil» in Roberto Cochrane Simonsen (1957) História Económica do Brasil (1500-1820), 3ªed, Sao Paulo : Ed. Nacional, p. 98. O conceito de adaptação assenta no desafio e resposta de Toynbee. A discussão do tema da modelação medieval das instituições foi afastado (p.12).
4 Lee Alston and Bernardo Mueller (2003), p.277.
4
detinham “a terra correspondente à área da sua jurisdição”. Tal como a outros
beneficiários foram-lhes concedidas terras em sesmaria5.
A oferta ampla de terra fez da sesmaria a receita para o arroteamento e cultivo nos
arquipélagos atânticos, em África e no Brasil. A instituição sesmeira permitiu
explorações de dimensões diversas de acordo com a capacidade de trabalho disponível
na unidade familiar (que podia incluir criados). A sesmaria destaca-se, também, por
constituir uma forma de aquisição de domínio real da propriedade da terra.
2.2 Escassez de terra e divisão entre domínio útil e domínio real.
A co-exploração da terra foi encarada como uma possibilidade na economia madeirense
do final do século XV. Virgínia Rau e Borges de Macedo, nas sugestões de investigação,
incluíram as questões do regime de propriedade do solo e a co-exploração da terra que
reputaram de fundamental para incluir as ilhas na “grande história”6.
Ao invés, Azevedo e Silva atribuiu à tendência para a escassez de terra, resultante do
processo de evolução demográfica registado na Madeira entre os séculos XVI e XVII, a
explicação para a emergência de instrumentos jurídicos que mantiveram a separação
entre domínio real e domínio útil. Os antigos sesmeiros vincularam a terra em resposta à
5 Nelson Veríssimo (1999), Relações de poder na sociedade madeirense do século XVII,
Funchal, Secretaria Regional do Turismo e Cultura, Direcção Regional dos Assuntos Culturais, 99-100. Na Madeira foram criadas duas capitanias. A centralização acompanhou o processo de ocupação e estruturação do espaço (José Manuel Azevedo e Silva (1995), A Madeira e a construção do mundo atlântico (século XV-XVII), Funchal, Secretaria Regional do Turismo e Cultura, Centro de Estudos de História do Atlântico, p.79).
6 Virgínia Rau e Jorge de Macedo (1962), p. 20, sublinhado nosso e ver ainda p. 18-19.
5
escassez de terra - constituíndo capelas e morgados – e alienaram o seu domínio útil7.
Isto é passou-se das sesmarias para a colonia.
Apesar de não ter conseguido estabelecer uma relação entre a propriedade vinculada e
não vinculada para os séculos XVI e XVII, admitiu que a Madeira, face ao continente,
dispunha de um maior peso da instituição vincular8. A importância de muitos vínculos –
especialmente capelas – do ponto de vista económico, era modesta, e do ponto de vista
da sua composição social, incluía diversos ofícios mecânicos.
Merece destaque o facto de a Madeira dos séculos XVI e XVII se distinguir do
continente – onde o aforamento a prazo ou em vidas era expressivo9 – por ter seguido a
fórmula do aforamento perpétuo (também chamado fateusim, enfateusim ou enfatiota).
O investimento fixo envolvido nas construções e nas plantas (vinha) bem como a
necessidade da sua manutenção explicam os incentivos e garantias dada ao detentor do
domínio útil – a posse e transmissibilidade das benfeitorias realizadas através de
“contratos perpétuos como são a colonia e a enfiteuse”. A tese do autor é a de que a
colonia aparentou ter sido uma “evolução da enfiteuse”10.
Este autor contesta Álvaro Rodrigues de Azevedo (anotador das Saudades da Terra) que
apresentou o contrato de colonia como uma viciação do contrato de sesmaria, mista de
parceria agrícola e enfiteuse que surgira subordinada ao morgadio. Além de não
defender esta subordinação também não encontrou uma associação desde o início entre
a colonia e as instituições vinculares. Pelo contrário, o contrato de colonia generalizou-
7 José Manuel Azevedo e Silva (1995), p. 192 e p.183-184.. 8 José Manuel Azevedo e Silva (1995) p. 195. 9 Ver nota 30. 10 José Manuel Azevedo e Silva (1995) p. 196-198. Na linha de uma certa corrente jurídica
defendeu que a colonia foi um caso peculiar no ordenamento jurídico português devido ao facto do colono deter a propriedade real das benfeitorias. O colono surge “como o titular de um direito real menor” (Oliveira Ascensão, Direitos Reais, Lisboa, Editorial Minerva, 1971, p.513).
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-se no século XVII com a propagação da cultura da vinha11. A tese de Freitas Branco
aponta do sentido da subordinação entre morgadio e colonia12.
Em nosso entender, o acesso à terra na Madeira fazia-se, no passado, através de
vários tipos de contratos. No entanto, a forte incidência da propriedade vinculada foi
apontada como sendo a tónica da situação em meados do século XIX. O predomínio do
número de lavradores face à escassa representação dos jornaleiros ressalta da estimativa
fornecida em 1847 pelo Governador do Funchal donde constavam 20.253 lavradores,
4.404 jornaleiros e 1153 proprietários13.
A constatação de que as terras enfitêuticas tinham colonos cria dificuldades à
tese referida de Azevedo e Silva de a colonia constituir uma evolução da enfiteuse14. A
título de exemplo, o grande senhorio e herdeiro de dois morgadios, Agostinho de
Ornelas e Vasconcelos (1860-1901), era ele próprio enfiteuta numa terra no Funchal
onde tinha colonos.
11 José Manuel Azevedo e Silva (1995) p.198. 12 Em seu entender, o Pombalismo reforçou a concentração da propriedade e acentuou um
processo histórico de relacionamento social assente no dualismo – senhorios versus colonos (Jorge de Freitas Branco (1987), Camponeses da Madeira. As bases materiais do quotidiano no Arquipélago (1750-1900), Lisboa, Don Quixote, p. 153-156). Este autor considera a colonia um regime próximo da enfiteuse (idem, p.158). Outro autor contesta que a lei das sesmarias seja a causa da colonia e considera linear filiá-la nos morgadios ou na enfiteuse. A colonia típica existia nos contratos do século XVIII tendo o seu surgimento ocorrido no século XVII (João José de Sousa (1994) História Rural da Madeira: A Colonia, Funchal, Direcção Regional dos Assuntos Culturais, p.17-31.). Detecta uma coincidência entre a expansão da viticultura (princípios do século XVI) e a divulgação do “contrato de meias” – implicava divisão do produto, pagamento de um foro (galinha), a terra não podia ser partida ou dividida e carecia de licença de venda e outorga com pagamento de quarentena por parte do senhorio (idem, p.276-280) 13 José Silvestre Ribeiro anotava a incidência da propriedade vinculada (Sérvulo Drumond de Meneses, Uma época administrativa, vol. II, Funchal, Typografia Nacional, 1850). 14 José Pereira de Sanches e Castro (1860), Lembranças de um Juiz de Direito, Typografia do Panorama, Lisboa, p.130-135.Caso de aforamento da Quinta da Boa Vista no Funchal entre 1817 e 1859.
7
2.3 Factores políticos e direitos de propriedade
Para Azevedo e Silva, durante o século XVII, na Madeira ganhou terreno a alienação do
domínio útil contra a percepção de uma renda estabelecida “no contrato de aforamento,
de arrendamento, de parceria agrícola ou de colonia”15. A alienação do domínio útil foi
atribuída à escassez de terra originada pelo crescimento populacional em associação à
necessidade de manutenção constante das plantas (vinha) e das construções16.
Sem subscrever nem a tese da alienação do domínio útil nos termos referidos nem a
evolução entre colonia e enfiteuse, consideramos que foram invocados argumentos
susceptíveis de ajudar a explicar o que passamos a designar por necessidade de
especificação da coexistência de dois direitos de propriedade num mesmo espaço
imobiliário. A escassez de terra é uma das condições que explica a necessidade de
especificação de direitos de propriedade. Para além disso, este processo possui custos.
Lee Alton e Bernardo Muller referem que um conjunto de direitos de propriedade só
têm valor na medida em que são feitos cumprir – por indivíduos, normas sociais ou
governos. Em sociedades mais populosas e desenvolvidas todos desempenham um
papel17.
Na Madeira há indícios de que a evolução da actividade agrícola, ocorrida após meados
do século XIX (após a deflagração do oídium na vinha), tenha abalado o equilíbrio
prevalecente durante o Antigo Regime entre os detentores de direitos de propriedade
15 José Manuel Azevedo e Silva (1995) p. 196 e ver p.195. Anote-se que os quatro tipos de
contrato são tratados uniformemente de forma incorrecta. Na parceria e na colonia não há lugar a renda mas a partilha do produto e não existe alienação do domínio útil.
16 José Manuel Azevedo e Silva (1995) p.669-670 e Nelson Veríssimo (2000) p. 28-33. 17 Lee Alston and Bernardo Mueller (2003), Property Rights in Land , in Joel Mokyr (editor) The
Oxford Encyclopedia of Economic History, Oxford University Press, New York, vol. 4 p. 275 e 278 . Os autores mostram que a evolução da Amérca do Norte e do Brasil foi diversa desde o povoamento, à política de emigração e ao papel que o governo teve nas fases de maior (pressão para) redistribuição da terra. As diferenças redundaram numa maior conflitualidade no segundo em relação ao primeiro.
8
num mesmo espaço. Resta saber se o programa de reforma liberal, por via quer de
medidas legislativas quer por via da acção dos tribunais, soube dar resposta aos pedidos
de reforço de direitos de propriedade exigidos por cada uma das partes.
Acresce que uma parte da explicação para o equilíbrio de forças pré-existente durante o
Antigo Regime residia no funcionamento e composição das instituições. Nessa altura,
na base do poder político estava uma élite concentrada18. Se avaliarmos a evolução
ocorrida na composição da vereação da Câmara do Funchal notamos alguma evolução.
Na segunda metade de setecentos, o município foi governado por uma elite “fidalga,
abastada (…) e ligada entre si por laços de parentesco”19. Em 1854, na sua composição
prevalecem as profissões liberais e os negociantes que dispunham de uma capacidade
eleitoral inferior à de um reduzido número de proprietários20. Este tema da composição
dos órgãos de poder ganha interesse por se prender com a abordagem sobre a forma
como o Estado Liberal se ligou às elites locais21.
18 Daren Acemoglu, Simon Johnson, James A. Robinson (2002), Reversal of Fortune: Geography
and Institutions in the Making of the Mordern World Income Distribution, The Quarterly Journal of Economics, vol.117, nº 4, p.1263.
19 Ana Madalena Trigo de Sousa, A vereação do Município do Funchal na segunda Metade de Setecentos: Perfil Sócio-Económico de uma Élite, Congresso Internacional de Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime, Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011.
20 Em 1854, a vereação da Câmara Municipal do Funchal apresentava um presidente com a profissão de médico (António da Luz Pitta) e dispondo de uma capacidade eleitoral avaliada em 2.000 réis. Nos vereadores encontramos dois negociantes com capacidade eleitoral de 2.000 e de 1.800 réis respectivamente, um professor de Liceu com 500 réis, um advogado com 600 réis e um proprietário com 800 réis de capacidade eleitoral (A.R.M., Camara Municipal do Funchal, Vereações. Microfilme 34, Livro 1376, fls 49 v e 50 e fls 200 v e 201). O recenseamento de eleitores e elegíveis não contempla negociantes com capacidade eleitoral mais elevada mas inclui 7 proprietários com capacidades eleitorais entre 2.500 e 6.000 réis (ARM, Câmara Municipal, Eleitores e Ilegíveis, Livro 905). A Junta Geral do Distrito é outro organismo que carecia duma apreciação idêntica, embora em 1837 a presidência deste órgão fosse exercida pelo proprietário Aires de Ornelas e Vasconcelos.
21 Nuno Miguel Lima analisa como foram estabelecidas - entre 1839 e 1842 e confirmadas pelo Código Administrativo de 1842 - as prerrogativas que tornaram os maiores contribuintes elementos importantes das comunidades locais ( (2009) Os «Homens Bons» do Liberalismo, Lisboa, Banco de Portugal).
9
Patrick O’Brien questionou se dados os contrastes regionais característicos do antigo
regime, a execução do programa de reforma dos liberais - que classifica de monolítico –
em realidades diversas não acabou por apresentar resultados diferenciados22. Na mesma
linha, Rui Feijó defendeu que as preocupações reformistas liberais se concentraram em
questões formais dos direitos de propriedade e descuraram os problemas e as condições
específicas da posse da terra. A esta secundarização atribuiu a subsistência das práticas
tradicionais23. Neste sentido, a peculiaridade do contrato de colonia explica que os
reformadores tivessem acabado por o ignorar.
3.1. Características da economia da Madeira entre finais do século XVIII e finas da década de sessenta do século XIX
A área agrícola da Madeira circunscreve-se a 31,3 % da área total (72,800
hectares). O grau de declive e a configuração dos socalcos ao dificultaram a substituição
do trabalho humano encarecerem os custos de produção. A partir de meados do século
XVIII, a situação acentuou-se com o alargamento da área de vinha se ter efectuado
mediante a conquista de terra à montanha.
O negócio do vinho na Madeira foi impulsionado pela aliança entre Portugal e a
Inglaterra (1660) que favoreceu os mercadores ingleses e foi ainda ajudado pelas tarifas
discriminatórias no mercado britânico contra os vinhos franceses. Entre meados do
século XVIII e 1820, os preços estimularam a plantação de vinhas. Até à deflagração do
22 Rui Graça Feijó, (s.d.) Liberalismo e Transformação Social. A Região de Viana do Antigo
Regime a finais da Regeneração, Lisboa, Editorial Fragmentos, p. 10 23 Rui Graça Feijó, p. 147-148 e p.13. O autor destaca que só na aparência é que a enfiteuse
esteve nos antípodas do modelo ideológico liberal uma vez que os decretos mais importantes desse período (privatização dos baldios em 1860) impuseram a enfiteuse.
10
oidium (1852) não obstante a queda dos preços, a vinha continuou a ser a cultura
comercial principal. Em seguida, passou a conviver com a cana sacarina.
As décadas de 1850 e de 1860 marcaram uma viragem na actividade agrícola em
paralelo com a aplicação do programa de reforma liberal sobre a propriedade e os
contratos agrícolas. No plano institucional, os senhorios passaram a ter necessidade de
aumentar o grau de supervisão nos contratos agrícolas. Tudo indica – a auscultação
efectuada apontou nesse sentido – que alguns senhorios tomaram posições através dos
órgãos políticos locais sobre a tentativa de classificação da colonia tentada pela câmara
dos deputados.
3.2. Reforma e ambiguidades da colonia: enfiteuse versus parceria
3.2.1. Enfiteuse e o condicionamento das estruturas agrárias
Um conjunto de historiadores, em abordagens comparadas, tem alertado para
que contratos análogos (enfiteuse) em contacto com diferentes estruturas sociais tenham
tido resultados diversos, como nos casos da Galiza e de Valência24. Em Portugal, o
mesmo regime surgiu associado no norte e no sul respectivamente à pequena e à grande
propriedade.
Os eventuais efeitos das leis liberais sobre a fragmentação da terra em resultado
de interferir sobre as formas tradicionais de herança, posse e propriedade da terra
marcaram presença na historiografia portuguesa. Para o Norte de Portugal e, em
24 Ramon Villares (1988) “Los foros de Galícia : Algunos problemas y comparaciones (Galicia, Portugal y Valencia)”, Ler História (12) , p. 66.
11
particular, no Minho, esse aspecto não foi comprovado pelos estudos locais
efectuados25.
A historiografia portuguesa tem mostrado que a enfiteuse tem estado mais
associada à pequena propriedade mas que também coexistiu bem com a grande
propriedade no sul do país. Recentemente, colocou-se uma interrogação, numa
perspectiva de longo prazo, sobre o âmbito da causa e da consequência. Nessa linha,
acrescentou-se, a título de hipótese, adentro de um esquema interpretativo genérico, que
seria importante averiguar se nos locais onde a enfiteuse era mais forte a grande
propriedade conseguiu resistir melhor. A explicação residiria na indivisibilidade dos
bens do prazo em caso de transmissão por herança26.
No contrato de colonia existia a particularidade de a terra e as benfeitorias terem
proprietários diversos. As benfeitorias eram bens específicos (plantas ou construções)
do prédio rústico. Em 1853, uma sentença judicial defendia, referindo-se sobretudo à
reparação de uma parede de suporte de um socalco, que o senhorio não podia impedir o
colono de efectuar reparações27. A necessidade de manutenção continuada servia de
base para explicar a vantagem de serem propriedade dos colonos. Outras construções,
como casas, armazéns e palheiros, explicam-se por o grau de declive dificultar e
encarecer os transportes e as deslocações.
25 Fátima Brandão (1994) Terra, Herança e Família no Noroeste de Portugal. O caso de Mosteiro no século XIX, Porto, Edições Afrontamento, p.12-15. 26 José Vicente Serrão (2000), Os Campos da Cidade. Configuração das estruturas fundiárias da região de Lisboa nos finais do Antigo Regime, Lisboa, ISCTE (mimeo) p. 478-480). O autor aventa que a situação detectada no final do Antigo Regime tivesse sido o desembocar de processos de realocação de recursos que remontavam à reconquista. 27 José Pereira Sanches de Castro (1860) Lembranças de um Juiz de Direito, Lisboa, p.72-73.
12
3.2.2. Sistema de herança das benfeitorias Colonia versus enfiteuse.
A interpretação da eventual relação entre a colonia e a promoção da divisão das
propriedade das benfeitorias antes mesmo da vigência das leis liberais apresenta
dificuldades. Este tema foi objecto de debate nas décadas de 1850 e 1860. A Câmara
Municipal do Funchal, em 1850, estimava existir um terço de terra vinculada e defendia
que, em qualquer terra, sujeita ou não a vinculação, a condição para estarem bem
agricultadas dependia de estas terem água e de “as benfeitorias não estarem muito
divididas entre os seus herdeiros”28. Este ponto mostra que a divisão das benfeitorias
não só era anterior ao Código (1867) como não era generalizada.
Em 1854, o projecto de Lei sobre a colonia propunha tornar extensiva à colonia
a legislação reguladora da sucessão na enfiteuse (Livro 4º, título 96º § 23º e § 24º) para
impedir o retalhamento infinito das terras que, por sua vez, teria como consequência a
anulação do direito de propriedade do senhorio29. A explicação do acolhimento dado a
este projecto requer a análise da evolução do tratamento dado à enfiteuse no Código
Civil.
Até o Código Civil de 1867 a experiência portuguesa da enfiteuse contemplava
uma distinção importante entre a duração perpétua dos prazos fateusins (que
permaneciam para sempre nas mãos do enfiteuta e seus sucessores) e os prazos de
vidas que revertiam para o senhorio findo o número de vidas estipulado (o mais comum
28 Ofício acerca da abolição dos vínculos, Arquivo Regional da Madeira (A.R.M.), Câmara Municipal do Funchal, Livro 193, fl.156-7. 29 Projecto de Lei da autoria de José Silvestre Ribeiro (ex-governador e deputado pela Madeira), Diário da Câmara os Senhores Deputados, sessão nº 15, 17 de Março de 1854.
13
era de três). A impossibilidade de dividir o prédio sem consentimento do senhorio era
comum a qualquer das modalidades30.
Na colonia, as benfeitorias eram propriedade do colono. Em 1759, segundo o
governador, o incentivo para os senhorios sem colonos passarem a ter vinha plantadas
nas serras de rocha passava pela exacta avaliação das plantas de vinha. Esta servia
para os colonos garantirem quer o “princípio de não perderem” as benfeitorias que
compraram quer o “fim” de aumentarem o seu “cabedal”31. Em 1822, referia-se que
a forma de efectuar a avaliação das benfeitorias-plantas se baseava no seu valor actual e
não no custo de plantação, porque senão as plantações de vinha cessariam e as paredes
deixariam de ser reformuladas e a Madeira ficaria reduzida a pedras e baldios32.
A dimensão de melhoria do prédio através da realização de benfeitorias
constava das características da enfiteuse da fase anterior ao Código Civil 33 . Esta
dimensão era comum à colonia. A benfeitoria configurou-se ainda como a trave mestra
de uma colaboração de longo-prazo, com os desequilíbrios inerentes aos interesses
envolvidos. A necessidade de supervisão por parte do senhorio aumentou a partir 1850’s
e 1860’s e pode ter estado na origem desse desequilíbrio.
30 António Menezes Cordeiro (2010), Da Enfiteuse: Extinção e Sobrevivência, Estudos em Homenagem ao Prof Doutor Martim de Albuquerque, vol. I, , Lisboa, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, p. 108-110. 31 A.H.U., Cx 1, doc nº 174, Ofício do Governador José Correa de Sá, 7 de Julho de 1759. Este texto indicia o modo de expansão da colonia nas zonas altas e pobres (terras de rocha). A enfiteuse já era praticada e conviveu com a colonia. 32 Representação da Junta da Fazenda Nacional da Madeira ao Congresso, 30 de Março de 1822, Arquivo Histórico Ultramarino (A.H.U.), Caixa XIX, doc. 6476. O ministro mandou avaliar com base no rendimento. A representação contesta a medida. Anote-se que o colono ou fazia as benfeitorias ou comprava-as. O senhorio raramente era dono de benfeitorias, mas quando o era e dava uma terra a cultivar vendia-as ao colono. 33 António Ribeiro Liz Teixeira (1848), Curso de Direito Civil Portuguez, 3º vol, p. 85 e segs in António Menezes Cordeiro (2010), p. 110.
14
3.2.3. Investimentos em melhorias (benfeitorias). Colonia versus parceria
A agricultura, na segunda metade do século XIX, passou a ter características
diversas da agricultura tradicional que lhe antecedeu. As doenças e pragas que
deflagraram na vinha encareceram esta cultura. A necessidade de comparticipação
financeira e de aconselhamento técnico por parte do senhorio aumentou. Os senhorios
incumbiam-se frequentemente de fazer viveiros de plantas para disponibilizar. A função
de coordenação do senhorio, fosse na apanha fosse no transporte das colheitas, ganhou
destaque.
O contrato de colonia era um contrato tendencialmente de longo prazo que tinha
a particularidade de o senhorio o poder fazer cessar em qualquer momento com a
condição de mandar avaliar as benfeitorias e proceder ao seu pagamento. Um panfleto
anónimo [1850’s ou início 1860’s], defensor da extinção do contrato de colonia,
advogava que se o senhorio não tinha dinheiro para indemnizar o colono que lhe
pagasse com terra34.
Em 1854, o governador do Funchal (Silvestre Ribeiro) estava preocupado com a
necessidade de replantar as terras com culturas comerciais após o oidium. A falta de
dinheiro do senhorio para indemnizar os colonos é então atribuída à perda do “pleno
domínio sobre a sua propriedade35. Dez anos depois, na mesma linha, outro responsável
defendia que para que fosse possível voltar a haver “melhoramento da cultura” era
essencial que o senhorio decidisse sobre qual a melhor cultura a adoptar. Este impasse
34 O Contrato de colonia [1850-1860], p.14.
35 Diário da Câmara os Senhores Deputados, sessão nº 15, 17 de Março de 1854.
15
adviera da falta de conveniência ou de possibilidades do senhorio em pagar as
benfeitorias ao colono36.
O entendimento da propriedade do colono em relação às benfeitorias
apresentava-se como a grande dificuldade colocada pelos princípios presentes no
Código Civil. O facto de o colono ser proprietário das benfeitorias dificultou a inserção
da colonia no catálogo dos direitos reais. O problema que se colocava residia em saber
como é que esta propriedade se encaixava na propriedade do terreno. Estava em causa
considerar se as benfeitorias cediam ou não ao solo.
Um comentador do Código Civil (Dias Ferreira) defendeu que os colonos “estão
sujeitos a regras gerais” de não poderem adquirir quinhão nos prédios
benfeitorizados, que não possuem em nome próprio; e apenas têm direito a
indemnização pelas benfeitorias conforme o direito comum37. Esta argumentação
subentende que a posse dos prédios em nome próprio é a única que conta .
Numa perspectiva oposta (Cunha Gonçalves), apresentava-se o contrato de
colonia como uma “parceria perpétua” por os usos locais constituírem cláusulas
tácitas do contrato quanto às benfeitorias rústicas (plantas) e urbanas (construções e
paredes de suporte). Nesta perspectiva, os direitos de propriedade dos colonos e dos
senhorios tinham valor idêntico38.
Esta problemática decorre de o Código Civil ter assentado numa matriz
ideológica liberal onde as relações jurídicas em matéria de propriedade foram sujeitas a
36 Relatório Apresentado à Junta Geral … (1864), p.43-44.
37 Dias Ferreira, Código Civil Anotado, Coimbra, 1895, vol. II, p.516.
38 Luís da Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1933, vol.VII, p.370 e vol. IX, p.55 e 216-218. Posições idênticas foram defendidas pelo advogado Pedro Pitta, O contrato de “Colonia” na Madeira, 1929.
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um crivo contratual39. Esta visão transparece na forma como o Código tratou a enfiteuse
no título dos contratos e não no das “propriedades imperfeitas” que contemplavam os
“direitos reais menores”40 . Face a um determinado bem existiam duas posições: o
detentor do domínio útil que tinha o usufruto do bem contra o pagamento de um foro
(pensão anual) e o detentor do domínio directo ou eminente. O proprietário pleno, antes
da constituição da enfiteuse, reservava para si o domínio directo através do direito de
opção, do laudémio e do comisso. O Regime censítico, apesar de envolver também o
pagamento de uma pensão anual (censo) implicava na prática a transferência do bem
para o censuário que o podia alienar sem audição prévia e sem pagar laudémio41.
O Código Civil modernizou e simplificou a enfiteuse ao considerá-la perpétua
(1654.º) – os contratos celebrados por tempo limitado passavam a ser equiparados a
arrendamentos –, ao fixar o pagamento da pensão anual designada de foro ou canon
numa prestação certa e determinada (artº1656.º) e ao eliminar os encargos
extraordinários (artº1658.º). Não obstante a ter considerado hereditária não admitiu
que pudesse ser dividida em glebas, excepto mediante autorização do senhorio
(artº1662º) 42.
39 António Hespanha (2005) Instituições e quadro legal, Pedro Lains e Álvaro Ferreira da Silva, História Económica de Portugal 1700-2000. O Século XIX, vol II. Lisboa. Instituto de Ciências Sociais, p. 432 e p. 426. 40 O Código, no capítulo XIII do Livro II, no “contrato de emprazamento”, tratava dos “direitos que se adquirem por facto próprio e de outrem conjuntamente” e da “aquisição de direitos na parte II” (António Menezes Cordeiro (2010), Da Enfiteuse: Extinção e Sobrevivência, Estudos em Homenagem ao Prof Doutor Martim de Albuquerque, vol. I, Lisboa, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, p. 111-112. Sobre a filiação do entendimento da enfiteuse como contrato em juristas da primeira metade do século XIX tais como Joaquim José Caetano de Sousa e Alberto Carlos de Meneses ou numa visão da enfiteuse como uma espécie de direito de propriedade perfilhada por Pascoal de Mello Freire ver José Vicente Serrão (2000) p. 432-33. 41 José Vicente Serrão (2000), p. 434-5.
42 António Menezes Cordeiro (2010), p. 110-111.
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O debate instalou-se na Madeira na década de 1850’s em torno da reforma da
colonia. O Parlamento apreciou um pedido de inquérito ao Governo sobre o
funcionamento da colonia. Durante o debate sobre este pedido opuseram-se tentativas
de confundir a colonia quer com o arrendamento (ou direito de colónia) quer com a
parceria. A legislação nacional, anterior ao Código, previa as situações abordadas no
inquérito. O alvará de 3 de Novembro de 1757 estipulava que, em contratos superiores a
dez anos, deixava de haver transferência do direito de propriedade (o domínio) do
senhorio para o arrendatário ou para o parceiro porque a duração perdera importância
em favor da origem do contrato. A transferência do contrato para os herdeiros só
acontecia em contratos de arrendamento feitos por “tempo certo”, os restantes
extinguiam-se por morte do arrendatário43.
Na argumentação usada, pretendia-se retirar a especificidade ao contrato de
colonia, aliás, invocada pelo autor do inquérito, e, corroborada pelo Ministro do Reino
presente. O relevante é que, na década de 1850, a Junta Geral do Distrito havia sido
ouvida sobre o Projecto-Lei apresentado na Câmara de Deputados em 17 de Março
1854. Apesar deste organismo o ter votado favoravelmente e por maioria, o projecto não
avançou44. Em 1864, três anos antes da entrada em vigor do Código Civil – presume-se
que decorria uma fase de auscultação ao mesmo –, a Junta Geral do Distrito propôs a
criação de uma comissão para estudar o “assunto nas suas diferentes relações”. Depois
43 O Inquérito foi efectuado por José Silvestre Ribeiro que definiu a colonia como um direito consuetudinário. Mello Soares confundiu a colonia madeirense com direito de colónia (arrendamento) e Moraes de Carvalho associou-a à parceria prevista no liv 4º tit.45 das ordenações. O Ministro do Reino (Fonseca Magalhães) concordou com Silvestre Ribeiro em fazer um inquérito de consulta informal dada a especificidade das práticas insulares “espécie de legislação agrária” onde as “ideias da propriedade da terra, e da propriedade do cultor, são singularmente entendidas” (Diário da Câmara dos Senhores Deputados, nº 17, 25 de Fevereiro de 1855).
44 Diário da Câmara dos Senhores Deputados, sessão nº 15, 17 de Março de 1854 (da autoria de José Silvestre Ribeiro Ex-governador pela Madeira) e Relatório Apresentado à Junta Geral do Distrito do Funchal na sessão ordinária (1864), Lisboa, Imprensa Nacional, p. 43-45.
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de debatido, pretendia-se conseguir uma “reforma meditada e conveniente aos interesses
públicos”45. Na sequência desta diligência, em 1867, no âmbito desta instituição coube a
um júri proceder à apreciação de um Projecto de Lei sobre a colonia.
Entre a anuência dada, pela Junta Geral, à aplicação das regras de transmissão
hereditária da enfiteuse à colonia prevista no projecto de 1854 e a tomada de posição em
1867 ocorreram mudanças importantes. O Código modernizou a enfiteuse ao
considerá-la um contrato perpétuo. O projecto de 1867 sobre a colonia (da autoria de
dois bacharéis em direito, Trindade de Vasconcelos e José de Almada, o último com
experiência notarial) definiu a colonia como um contrato de parceria com fundamento
no Código Civil (artº1299º e artº1301º) e nas ordenações (L.4º tit.45). Mais importante,
ainda, afirmou não presumir a colonia como perpétua por não haver transferência
de domínio para o colono. Neste contexto, coincidente com a entrada em vigor do
Código, o alvará 3 de Novembro de 1757 não foi invocado, como sucedeu no debate de
1855, mas a base da argumentação era a mesma.
Em 1888, defendeu-se a retoma do regime previsto no artº 7º da Carta de Lei de
1 de Julho de 1867 – embora o prazo de cinco anos tivesse expirado – que determinava
que a nomeação de uma comissão de jurisconsultos para ampliarem as disposições dos
artigos 1299º e 1303º do Código Civil, “em termos a dar à parceria agrícola na Madeira,
lei por que se rejam as relações entre senhorios e colonos” e que se complemente o
modo de avaliar as benfeitorias46. O projecto de Lei dos dois bacharéis tentara-o sem
nunca ter sido aprovado em sede parlamentar.
45 Relatório Apresentado à Junta Geral … (1864), p. 45. 46 Inquérito sobre a situação económica da Ilha da Madeira e medidas convenientes para a melhorar ordenado por Decreto de 31 de Dezembro de 1887 (1888), Lisboa, Imprensa Nacional, p. 91.
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A colonia podia, indubitavelmente, ser transmitida por sucessão aos herdeiros
antes de 1867. O Código Civil de 1867, no caso de hipoteca ou venda de benfeitorias
entre colonos sem audiência prévia do senhorio dificultou a consulta prévia do senhorio
sobre a idoneidade do novo colono47. Isto é, a capacidade de intervenção do senhorio e a
capacidade de fazer valer os seus direitos ficou assim reduzida.
A colonia nunca foi regulada por quaisquer normas do direito escrito mas a
jurisprudência foi-lhe aplicando princípios consagrados no Código Civil. Em 1929, um
advogado afirmava que lhe eram aplicadas “normas gerais, comuns aos contratos” e de
acordo com a circunstância, também se invocavam disposições respeitantes ou ao
arrendamento ou à parceria48. O tempo recriou a ambiguidade que o debate ocorrido no
Parlamento em 1854 deixara transparecer.
3.3.4 Expulsão vs enfiteuse perpértua
A partir do final do século XIX a manutenção de uma agricultura produtiva
passou a significar impedir a fragmentação das benfeitorias49. Em 1867, a solução de
aplicar à colonia as regras da indivisibilidade das glebas em caso de sucessão hereditária
que vigorava na enfiteuse não vingou. A diferença reside no modo de funcionamento
47 Benedita Câmara (2006) The portuguese Civil Code and Colonia tenancy contract in Madeira (1867-1967), Continuity and Change 21(2) 213-233. 48 Pedro Pitta (1929), O Contrato de “Colonia”, na Madeira. Comunicação feita à classe de letras da Academia das Sciencias de Lisboa em 9 de Maio, Lisboa, A Peninsular Editores, p.14, p.21 e p.83. 49 Fátima Brandão (1994) p.302 e 303. Em 1888, dava-se como assente a divisão da propriedade da terra mas sobretudo a propriedade das benfeitorias dos colonos (Inquérito Sobre a Situação Económica da Ilha da Madeira e Medidas Convenientes para a Melhorar ordenado por Decreto de 31 de Dezembro de 1887 (1888), Lisboa, Imprensa Nacional, p.92. Em 1947, manifestava-se a preocupação com a fragmentação das benfeitorias que era superior à excessiva divisão da propriedade (Ramon Honorato Corrêa Rodrigues (1947), A colonia da Madeira. Problema Rural e Económico, Funchal, Typ. Esperança, p.142). Em 1965, já se tinha verificado a viragem para a auto-exploração em minifúndio. (Recenseamento das Explorações Agrícolas das Ilhas Adjacentes, Lisboa, INE, 1965, p. 3, p. 7 e p. XIX).
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dos dois contratos e no entendimento que o Código Civil de 1867 deu ao contrato
enfitêutico.
Na colonia, as benfeitorias do colono, entendidas como um direito “real menor”,
embora “não firme”, baseavam-se no poder que assistia ao senhorio de fazer reverter o
direito do colono em qualquer momento. Através da reversão procedia-se à reunificação
da titularidade do solo e da superfície gerando-se a perfeição da propriedade50 . A
reversão podia fazer-se por acordo amigável (provada por contratos com intervenção
notarial) ou por via litigiosa (comprovada por processos judiciais). A colonia era um
contrato de longo prazo mas sem termo porque os colonos e os senhorios se
responsabilizam por si e pelos seus herdeiros pelas condições previstas no contrato
enquanto este durasse. Entre as condições previstas, os colonos aceitavam que ao dono
da terra assistia o direito de, em qualquer momento, desse por terminado o contrato
desde que indemnizasse o colono pelas benfeitorias realizadas.
A literatura sobre contratos agrícolas discute a forma de operar dos contratos de
expulsão. Nos contratos de longo prazo a capacidade que senhorio dispõe de pôr fim ao
contrato é discutida em termos dos incentivos que produz e dos custos que ocorrem
quando os incentivos deixam de funcionar 51 . O vocábulo “expulsão” foi usado no
projeto de lei sobre a colonia de 186752.
50 O contrato de colonia foi considerado o mais complexo direito real existente na ordem jurídica portuguesa (Oliveira Ascensão, 1971, p.515). A propósito das medidas sobre a consolidação dos domínios directo e útil nos períodos Pombalino e Mariano ver José Vicente Serrão (2000) p. 444. 51 Bhaskar Dutta, Debraj Ray and Kunal Sengupta (1989) Contracts with Eviction Repeated Principal-Agent Relationships, apud Bardham, P., The Economic Theory of Agrarian Institutions, Oxford, Clarendon Press, 1989, p.94; Oriana Bandiera, Contract Duration and Investment Incentives: Evidence from Land Tenancy Agreements, Department of Economics, London School of Economics Paper, July 2003, p.6 and p. 10. 52 J. R. Trindade de Vasconcelos and J. A. de Almada, 1867, p.9 and p. 25-26
21
O Código Civil de 1867 tornou a enfiteuse perpétua e hereditária embora
previsse igualmente a possibilidade de o senhorio directo (artº 1672º) poder reaver o
prédio ao foreiro na hipótese de este o deteriorar. A deterioração prevista ficava
circunscrita ao caso do valor do prédio cair para um valor inferior ao do foro mais um
quinto53. Esta última forma de avaliar a deterioração era insusceptível de ser invocada
para a colonia não só por não se poder condicionar a avaliação a um foro inexistente
mas sobretudo por na enfiteuse a determinação da decisão sobre a cultura a adoptar
competir ao enfiteuta e na colonia competir ao senhorio.
Aliás, o grande desafio do senhorio, durante o período de discussão das leis
liberais sobre a propriedade, consistiu justamente em conseguir manter a prerrogativa de
ser ele a decidir sobre a cultura a adoptar. A intensificação da produção agrícola, que
caracterizou a segunda metade do século XIX, resultou do crescimento da população
num quadro fixo de terra onde as alternativas ocupacionais fora da agricultura eram
quase inexistentes. Em consequência, os colonos tanto podiam deixar de cumprir cabal
ou parcialmente aquela decisão, como podiam pender para colaborar com o senhorio. O
apelo às culturas de subsistência prevalecia no primeiro caso. As doenças e as pragas
que assolaram a agricultura neste período - ao darem relevo ao papel do senhorio quer
ao nível dos contributos da produção quer na própria gestão – tornaram plausível a
predisposição para a colaboração em culturas comerciais.
Um grande senhorio madeirense, Agostinho de Ornelas e Vasconcelos (1860-
1901), nos contratos da zona do Caniço, não autorizou quaisquer benfeitorias ao colono.
A explicação reside no facto de nessa zona quase não se ter cultivado vinha ou cana
sacarina mediante partilha do produto. Diversamente, na Ponta do Sol, em contratos de
53 António Meneses Cordeiro (2010, p.112.
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plantação de cana sacarina com partilha do produto, já admitia que o colono fizesse
benfeitorias por sua conta. Nesta zona, deu autorizações de construção de palheiros para
gado e de casas. Neste caso, a manutenção da fertilidade da terra exigia colaboração de
longo prazo e a autorização para a construção de benfeitorias era a expressão por
excelência de que existia necessidade e condição para essa colaboração. As benfeitorias
– aumentavam o preço da expulsão – mas eram o preço da colaboração de longo prazo.
4. Conclusão.
A actividade agrícola comercial, baseada na co-exploração, foi importante na Madeira
desde uma fase remota. A necessidade de especificação de direitos de propriedade num
mesmo espaço imobiliário – colonia - acabou por contribuir para a criação de um
instituto jurídico peculiar à Madeira.
Dificilmente as leis do período Pombalino e Mariano sobre a consolidação permitiram à
Madeira um resultado diverso do continente onde não permitiu uma evolução no sentido
do seu aumento favorecendo o proprietário directo (senhorio). A proporção das terras
dadas de colonia podem ter aumentado mas não é crível que a maioria das terras
disponíveis passasse para a alçada do morgadio. Dificilmente o morgadio e a colonia
apresentaram entre si (antes e durante o século XVIII) um laço umbilical.
Outra questão é a da desigualdade e da persistência dos níveis de desigualdade. Esta
questão carece de investigação no que concerne à implementação de reformas que
incidiram sobre a propriedade: a capacidade dos liberais para articularem as
especificidades típicas da posse e propriedade no seio de contratos locais, como a
colonia, com o seu programa reformador; a capacidade do Estado para providenciar
uma estrutura de incentivos ao uso eficiente da terra em culturas comerciais em
simultâneo com a capacidade de responder às pressões no sentido quer da maior
23
especificação quer de distribuição dos direitos de propriedade; a evolução da
composição da élite concentrada durante a implementação destas reformas em conexão
com o entretecimento da ligação do Estado liberal com as élites locais.
O tema da subdivisão das propriedades-benfeitorias e o tema da decisão do senhorio
sobre o tipo de cultura a efectuar estiveram umbilicalmente ligados enquanto se discutiu
a aplicação das leis liberais à colonia. A decisão de não aplicar as regras da
indivisibilidade das glebas do prazo enfitêutico em caso de transmissão por via
sucessória à colonia prende-se com o tratamento dado à enfiteuse. Esta contemplava
uma fórmula reversível e outra perpétua. O Código Civil simplificou este instituto
jurídico classificando a primeira de arrendamento e definindo a segunda como contrato
perpétuo. A enfiteuse antes do Código Civil valorizava muito a dimensão das melhorias
e dos investimentos a que estava associada. Na colonia os melhoramentos eram a chave
do contrato por a sua manutenção continuada constituir uma necessidade. As
benfeitorias serem apenas titularizadas em propriedade pelo senhorio – a única fórmula
que o Código Civil estipulou em relação à parceria, caracterizou o programa de reforma
liberal que foi incapaz de equacionar a dimensão dos melhoramentos da colonia. Os
indícios das auscultações efectuadas às elites locais apontam para que a reforma da
colonia, proposta por Silvestre Pinheiro Ferreira, não foi adoptada porque os senhorios
quiseram continuar a seguir a via da agricultura comercial e os colonos corresponderam
ao apelo no curto prazo. De 1867 a 1967, o parcelamento excessivo das benfeitorias
acentuou-se em paralelo com a divisão da propriedade à medida que sistema de auto-
exploração se divulgou (ajudado pela desamortização e pela extinção do morgadio).
Com escassas alternativas de emprego fora da agricultura o parcelamento das
benfeitorias e da terra não estimulou a criação de formas inovadoras para adaptar a
actividade agrícola aos desafios da modernização.