23
1 O contrato de COLONIA na Madeira: ambiguidade entre a parceria e a enfiteuse? A colonização da Madeira funcionou como um processo experimental de transposição da estrutura jurídico-social continental portuguesa para um contexto insular despovoado. O grau de especificação dos direitos de propriedade e o desenvolvimento de institutos de posse da terra peculiares à Madeira carece de explicação. O contrato de colonia da Madeira colocou dificuldades aos reformadores liberais. A aproximação da colonia à enfiteuse ocorrida entre 1854 e 1867 foi rejeitada. A sua aceitação teria dado garantias aos senhorios quanto às benfeitorias: a indivisibildade em transmissões sucessórias dos colonos e direito de opção em caso de alienação e oneração (hipoteca) pelo colono. Os colonos perdiam a possibilidade de partilhar as benfeitorias entre os seus herdeiros e tinham de efectuar a consulta prévia ao senhorio em caso de oneração ou alienação das benfeitorias. Introdução A reflexão sobre o papel exercido pela herança institucional ganha peso no caso da Madeira por esta ter tido um processo de povoamento num espaço inabitado. A adopção de instrumentos jurídicos conhecidos e familiares aos povoadores tendeu a ser adoptada numa perspectiva path dependancy 1 . Os factores económicos convencionais foram frequentemente usados pela historiografia para explicar as sociedades saídas de processos de colonização. Num enfoque recente, recriou-se a abordagem da dotação de factores (condições iniciais), concebida em sentido lato. A perspectiva é comparada e centra-se em analisar como é que as diferenças ambientais existentes nos locais de fixação europeia geraram sociedades com diferentes graus de desigualdade, como é que estas foram preservadas pela evolução de instituições económicas e como é que o crescimento económico foi 1 Jonathan R.T. Hughes (1976) Social Control in the Colonial Economy, Charlottesville,Va. p.45 in Lee Alston and Bernardo Mueller (2003), Property Rights in Land , in Joel Mokyr (editor) The Oxford Encyclopedia of Economic History, Oxford University Press, New York, p.276.

1 O contrato de COLONIA na Madeira: ambiguidade entre a

  • Upload
    vonhan

  • View
    220

  • Download
    2

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: 1 O contrato de COLONIA na Madeira: ambiguidade entre a

1

O contrato de COLONIA na Madeira: ambiguidade entre a parceria e a enfiteuse?

A colonização da Madeira funcionou como um processo experimental de

transposição da estrutura jurídico-social continental portuguesa para um contexto

insular despovoado. O grau de especificação dos direitos de propriedade e o

desenvolvimento de institutos de posse da terra peculiares à Madeira carece de

explicação.

O contrato de colonia da Madeira colocou dificuldades aos reformadores liberais.

A aproximação da colonia à enfiteuse ocorrida entre 1854 e 1867 foi rejeitada. A

sua aceitação teria dado garantias aos senhorios quanto às benfeitorias: a

indivisibildade em transmissões sucessórias dos colonos e direito de opção em caso

de alienação e oneração (hipoteca) pelo colono. Os colonos perdiam a possibilidade

de partilhar as benfeitorias entre os seus herdeiros e tinham de efectuar a consulta

prévia ao senhorio em caso de oneração ou alienação das benfeitorias.

Introdução

A reflexão sobre o papel exercido pela herança institucional ganha peso no caso da

Madeira por esta ter tido um processo de povoamento num espaço inabitado. A adopção

de instrumentos jurídicos conhecidos e familiares aos povoadores tendeu a ser adoptada

numa perspectiva path dependancy1.

Os factores económicos convencionais foram frequentemente usados pela historiografia

para explicar as sociedades saídas de processos de colonização. Num enfoque recente,

recriou-se a abordagem da dotação de factores (condições iniciais), concebida em

sentido lato. A perspectiva é comparada e centra-se em analisar como é que as

diferenças ambientais existentes nos locais de fixação europeia geraram sociedades

com diferentes graus de desigualdade, como é que estas foram preservadas pela

evolução de instituições económicas e como é que o crescimento económico foi

1 Jonathan R.T. Hughes (1976) Social Control in the Colonial Economy, Charlottesville,Va. p.45 in Lee Alston and Bernardo Mueller (2003), Property Rights in Land , in Joel Mokyr (editor) The Oxford Encyclopedia of Economic History, Oxford University Press, New York, p.276.

Page 2: 1 O contrato de COLONIA na Madeira: ambiguidade entre a

2

assim afectado. As condições ambientais importam para se perceber se eventualmente

tiveram “um impacto duradouro e profundo na evolução institucional e no

desenvolvimento económico de longo prazo”2.

Ao abordar-se a evolução institucional ganha relevo a política sobre a terra pelas

implicações que tem com o padrão de povoamento e com o grau de concentração de

propriedade da terra. O interesse do caso da Madeira prende-se com o facto de a

transposição das instituições se ter efectuado sem resistências humanas para um espaço

inabitado e com a necessidade de se encontrar soluções para problemas de âmbito local

e para a evolução registada na dotação de recursos. Estas soluções evoluíram no sentido

de criar especificidades institucionais. O programa de reforma liberal português tendeu

a lidar mal com as especificidades regionais. O contrato agrícola – a colonia – existente

na Madeira, ao encerrar uma ambiguidade entre os contratos de parceria e de enfiteuse,

gerou um imbróglio que está na origem da sua falta de regulamentação.

De modo a introduzirmos a especificidade do contrato de colonia, abordaremos o

contexto histórico anterior ao seu surgimento. Em 2.1. referimos as primeiras

instituições criadas para estabelecer direitos de propriedade e de uso da terra e qual a

sua evolução. Em 2.2. analisaremos se os argumentos da escassez de terra, das

condições ambientais e das actividades agrícolas explicam a necessidade de

especificação de dois níveis direitos de propriedade na colonia. Em 2.3 tratar-se-á dos

factores políticos e direitos de propriedade e afloraremos as implicações da intervenção

do programa de reforma liberal nos equilíbrios até então existentes. Em 3.1 traçaremos

as características da economia durante a tentativa de reforma da colonia entre 1850 e

1867; em 3.2 analisaremos as dificuldades da reforma e a ambiguidade patenteada pela

colonia. A conclusão evidencia a ambiguidade que não favoreceu a regulamentação

pelos reformadores liberais, tendo como o resultado o excessivo parcelamento da

exploração agrícola.

2 Kenneth L. Sokoloff and Stanley L. Engerman, History Lessons. Institutions (2000) Factor Endowments, and Paths of Development in the New World, Journal of Economic Perspectives, 14 (3), p. 220.

Page 3: 1 O contrato de COLONIA na Madeira: ambiguidade entre a

3

2.1. As instituições e o povoamento

O carácter experimental da colonização da Madeira foi acentuado por Virginia Rau e

Borges de Macedo. Estava em causa o primeiro ensaio de adaptação de homens,

técnicas, estruturas políticas, jurídicas e sociais provenientes de condições continentais a

um espaço insular atlântico despovoado3. Baseados numa fonte – o mais antigo cálculo

de produção conhecido Livro do Almoxaifado dos açuquares da parte do Funchal

(1494) – defenderam a tese que a cultura da cana sacarina foi organizada em regime de

média e pequena propriedade. Neste enquadramento, prevaleceu “uma classe média de

proprietários de disponibilidades limitadas” sem capacidade de “sustentar um sistema

de produção baseado no esclavagismo”. Isto é, o sistema de plantação propiciador de

economias de escala associadas à monitorização de trabalho escravo não era susceptível

de utilização na Madeira.

A historiografia acentua o processo path dependanccy inerente e a circunstância de as

capitanias hereditárias terem tido sucesso na Madeira e terem falhado no Brasil4. Uma

capitania caracteriza-se pela sua jurisdição – envolve delegações amplas de poder por

parte da coroa num capitão donatário – e pela sua delimitação territorial. Os “donatários

de bens da Coroa, senhores de jurisdição” recebiam rendas e privilégios mas não

3 Virgínia Rau e Jorge de Macedo (1962) O açúcar da Madeira nos fins do século XV.

Problemas de Produção e Comércio, Junta Geral do Distrito do Funchal, 1962, p. 9 e p. 10..A referência à réplica do ensaio no Brasil baseia-se em Vitor Viana «Formação económica do Brasil» in Roberto Cochrane Simonsen (1957) História Económica do Brasil (1500-1820), 3ªed, Sao Paulo : Ed. Nacional, p. 98. O conceito de adaptação assenta no desafio e resposta de Toynbee. A discussão do tema da modelação medieval das instituições foi afastado (p.12).

4 Lee Alston and Bernardo Mueller (2003), p.277.

Page 4: 1 O contrato de COLONIA na Madeira: ambiguidade entre a

4

detinham “a terra correspondente à área da sua jurisdição”. Tal como a outros

beneficiários foram-lhes concedidas terras em sesmaria5.

A oferta ampla de terra fez da sesmaria a receita para o arroteamento e cultivo nos

arquipélagos atânticos, em África e no Brasil. A instituição sesmeira permitiu

explorações de dimensões diversas de acordo com a capacidade de trabalho disponível

na unidade familiar (que podia incluir criados). A sesmaria destaca-se, também, por

constituir uma forma de aquisição de domínio real da propriedade da terra.

2.2 Escassez de terra e divisão entre domínio útil e domínio real.

A co-exploração da terra foi encarada como uma possibilidade na economia madeirense

do final do século XV. Virgínia Rau e Borges de Macedo, nas sugestões de investigação,

incluíram as questões do regime de propriedade do solo e a co-exploração da terra que

reputaram de fundamental para incluir as ilhas na “grande história”6.

Ao invés, Azevedo e Silva atribuiu à tendência para a escassez de terra, resultante do

processo de evolução demográfica registado na Madeira entre os séculos XVI e XVII, a

explicação para a emergência de instrumentos jurídicos que mantiveram a separação

entre domínio real e domínio útil. Os antigos sesmeiros vincularam a terra em resposta à

5 Nelson Veríssimo (1999), Relações de poder na sociedade madeirense do século XVII,

Funchal, Secretaria Regional do Turismo e Cultura, Direcção Regional dos Assuntos Culturais, 99-100. Na Madeira foram criadas duas capitanias. A centralização acompanhou o processo de ocupação e estruturação do espaço (José Manuel Azevedo e Silva (1995), A Madeira e a construção do mundo atlântico (século XV-XVII), Funchal, Secretaria Regional do Turismo e Cultura, Centro de Estudos de História do Atlântico, p.79).

6 Virgínia Rau e Jorge de Macedo (1962), p. 20, sublinhado nosso e ver ainda p. 18-19.

Page 5: 1 O contrato de COLONIA na Madeira: ambiguidade entre a

5

escassez de terra - constituíndo capelas e morgados – e alienaram o seu domínio útil7.

Isto é passou-se das sesmarias para a colonia.

Apesar de não ter conseguido estabelecer uma relação entre a propriedade vinculada e

não vinculada para os séculos XVI e XVII, admitiu que a Madeira, face ao continente,

dispunha de um maior peso da instituição vincular8. A importância de muitos vínculos –

especialmente capelas – do ponto de vista económico, era modesta, e do ponto de vista

da sua composição social, incluía diversos ofícios mecânicos.

Merece destaque o facto de a Madeira dos séculos XVI e XVII se distinguir do

continente – onde o aforamento a prazo ou em vidas era expressivo9 – por ter seguido a

fórmula do aforamento perpétuo (também chamado fateusim, enfateusim ou enfatiota).

O investimento fixo envolvido nas construções e nas plantas (vinha) bem como a

necessidade da sua manutenção explicam os incentivos e garantias dada ao detentor do

domínio útil – a posse e transmissibilidade das benfeitorias realizadas através de

“contratos perpétuos como são a colonia e a enfiteuse”. A tese do autor é a de que a

colonia aparentou ter sido uma “evolução da enfiteuse”10.

Este autor contesta Álvaro Rodrigues de Azevedo (anotador das Saudades da Terra) que

apresentou o contrato de colonia como uma viciação do contrato de sesmaria, mista de

parceria agrícola e enfiteuse que surgira subordinada ao morgadio. Além de não

defender esta subordinação também não encontrou uma associação desde o início entre

a colonia e as instituições vinculares. Pelo contrário, o contrato de colonia generalizou-

7 José Manuel Azevedo e Silva (1995), p. 192 e p.183-184.. 8 José Manuel Azevedo e Silva (1995) p. 195. 9 Ver nota 30. 10 José Manuel Azevedo e Silva (1995) p. 196-198. Na linha de uma certa corrente jurídica

defendeu que a colonia foi um caso peculiar no ordenamento jurídico português devido ao facto do colono deter a propriedade real das benfeitorias. O colono surge “como o titular de um direito real menor” (Oliveira Ascensão, Direitos Reais, Lisboa, Editorial Minerva, 1971, p.513).

Page 6: 1 O contrato de COLONIA na Madeira: ambiguidade entre a

6

-se no século XVII com a propagação da cultura da vinha11. A tese de Freitas Branco

aponta do sentido da subordinação entre morgadio e colonia12.

Em nosso entender, o acesso à terra na Madeira fazia-se, no passado, através de

vários tipos de contratos. No entanto, a forte incidência da propriedade vinculada foi

apontada como sendo a tónica da situação em meados do século XIX. O predomínio do

número de lavradores face à escassa representação dos jornaleiros ressalta da estimativa

fornecida em 1847 pelo Governador do Funchal donde constavam 20.253 lavradores,

4.404 jornaleiros e 1153 proprietários13.

A constatação de que as terras enfitêuticas tinham colonos cria dificuldades à

tese referida de Azevedo e Silva de a colonia constituir uma evolução da enfiteuse14. A

título de exemplo, o grande senhorio e herdeiro de dois morgadios, Agostinho de

Ornelas e Vasconcelos (1860-1901), era ele próprio enfiteuta numa terra no Funchal

onde tinha colonos.

11 José Manuel Azevedo e Silva (1995) p.198. 12 Em seu entender, o Pombalismo reforçou a concentração da propriedade e acentuou um

processo histórico de relacionamento social assente no dualismo – senhorios versus colonos (Jorge de Freitas Branco (1987), Camponeses da Madeira. As bases materiais do quotidiano no Arquipélago (1750-1900), Lisboa, Don Quixote, p. 153-156). Este autor considera a colonia um regime próximo da enfiteuse (idem, p.158). Outro autor contesta que a lei das sesmarias seja a causa da colonia e considera linear filiá-la nos morgadios ou na enfiteuse. A colonia típica existia nos contratos do século XVIII tendo o seu surgimento ocorrido no século XVII (João José de Sousa (1994) História Rural da Madeira: A Colonia, Funchal, Direcção Regional dos Assuntos Culturais, p.17-31.). Detecta uma coincidência entre a expansão da viticultura (princípios do século XVI) e a divulgação do “contrato de meias” – implicava divisão do produto, pagamento de um foro (galinha), a terra não podia ser partida ou dividida e carecia de licença de venda e outorga com pagamento de quarentena por parte do senhorio (idem, p.276-280) 13 José Silvestre Ribeiro anotava a incidência da propriedade vinculada (Sérvulo Drumond de Meneses, Uma época administrativa, vol. II, Funchal, Typografia Nacional, 1850). 14 José Pereira de Sanches e Castro (1860), Lembranças de um Juiz de Direito, Typografia do Panorama, Lisboa, p.130-135.Caso de aforamento da Quinta da Boa Vista no Funchal entre 1817 e 1859.

Page 7: 1 O contrato de COLONIA na Madeira: ambiguidade entre a

7

2.3 Factores políticos e direitos de propriedade

Para Azevedo e Silva, durante o século XVII, na Madeira ganhou terreno a alienação do

domínio útil contra a percepção de uma renda estabelecida “no contrato de aforamento,

de arrendamento, de parceria agrícola ou de colonia”15. A alienação do domínio útil foi

atribuída à escassez de terra originada pelo crescimento populacional em associação à

necessidade de manutenção constante das plantas (vinha) e das construções16.

Sem subscrever nem a tese da alienação do domínio útil nos termos referidos nem a

evolução entre colonia e enfiteuse, consideramos que foram invocados argumentos

susceptíveis de ajudar a explicar o que passamos a designar por necessidade de

especificação da coexistência de dois direitos de propriedade num mesmo espaço

imobiliário. A escassez de terra é uma das condições que explica a necessidade de

especificação de direitos de propriedade. Para além disso, este processo possui custos.

Lee Alton e Bernardo Muller referem que um conjunto de direitos de propriedade só

têm valor na medida em que são feitos cumprir – por indivíduos, normas sociais ou

governos. Em sociedades mais populosas e desenvolvidas todos desempenham um

papel17.

Na Madeira há indícios de que a evolução da actividade agrícola, ocorrida após meados

do século XIX (após a deflagração do oídium na vinha), tenha abalado o equilíbrio

prevalecente durante o Antigo Regime entre os detentores de direitos de propriedade

15 José Manuel Azevedo e Silva (1995) p. 196 e ver p.195. Anote-se que os quatro tipos de

contrato são tratados uniformemente de forma incorrecta. Na parceria e na colonia não há lugar a renda mas a partilha do produto e não existe alienação do domínio útil.

16 José Manuel Azevedo e Silva (1995) p.669-670 e Nelson Veríssimo (2000) p. 28-33. 17 Lee Alston and Bernardo Mueller (2003), Property Rights in Land , in Joel Mokyr (editor) The

Oxford Encyclopedia of Economic History, Oxford University Press, New York, vol. 4 p. 275 e 278 . Os autores mostram que a evolução da Amérca do Norte e do Brasil foi diversa desde o povoamento, à política de emigração e ao papel que o governo teve nas fases de maior (pressão para) redistribuição da terra. As diferenças redundaram numa maior conflitualidade no segundo em relação ao primeiro.

Page 8: 1 O contrato de COLONIA na Madeira: ambiguidade entre a

8

num mesmo espaço. Resta saber se o programa de reforma liberal, por via quer de

medidas legislativas quer por via da acção dos tribunais, soube dar resposta aos pedidos

de reforço de direitos de propriedade exigidos por cada uma das partes.

Acresce que uma parte da explicação para o equilíbrio de forças pré-existente durante o

Antigo Regime residia no funcionamento e composição das instituições. Nessa altura,

na base do poder político estava uma élite concentrada18. Se avaliarmos a evolução

ocorrida na composição da vereação da Câmara do Funchal notamos alguma evolução.

Na segunda metade de setecentos, o município foi governado por uma elite “fidalga,

abastada (…) e ligada entre si por laços de parentesco”19. Em 1854, na sua composição

prevalecem as profissões liberais e os negociantes que dispunham de uma capacidade

eleitoral inferior à de um reduzido número de proprietários20. Este tema da composição

dos órgãos de poder ganha interesse por se prender com a abordagem sobre a forma

como o Estado Liberal se ligou às elites locais21.

18 Daren Acemoglu, Simon Johnson, James A. Robinson (2002), Reversal of Fortune: Geography

and Institutions in the Making of the Mordern World Income Distribution, The Quarterly Journal of Economics, vol.117, nº 4, p.1263.

19 Ana Madalena Trigo de Sousa, A vereação do Município do Funchal na segunda Metade de Setecentos: Perfil Sócio-Económico de uma Élite, Congresso Internacional de Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime, Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011.

20 Em 1854, a vereação da Câmara Municipal do Funchal apresentava um presidente com a profissão de médico (António da Luz Pitta) e dispondo de uma capacidade eleitoral avaliada em 2.000 réis. Nos vereadores encontramos dois negociantes com capacidade eleitoral de 2.000 e de 1.800 réis respectivamente, um professor de Liceu com 500 réis, um advogado com 600 réis e um proprietário com 800 réis de capacidade eleitoral (A.R.M., Camara Municipal do Funchal, Vereações. Microfilme 34, Livro 1376, fls 49 v e 50 e fls 200 v e 201). O recenseamento de eleitores e elegíveis não contempla negociantes com capacidade eleitoral mais elevada mas inclui 7 proprietários com capacidades eleitorais entre 2.500 e 6.000 réis (ARM, Câmara Municipal, Eleitores e Ilegíveis, Livro 905). A Junta Geral do Distrito é outro organismo que carecia duma apreciação idêntica, embora em 1837 a presidência deste órgão fosse exercida pelo proprietário Aires de Ornelas e Vasconcelos.

21 Nuno Miguel Lima analisa como foram estabelecidas - entre 1839 e 1842 e confirmadas pelo Código Administrativo de 1842 - as prerrogativas que tornaram os maiores contribuintes elementos importantes das comunidades locais ( (2009) Os «Homens Bons» do Liberalismo, Lisboa, Banco de Portugal).

Page 9: 1 O contrato de COLONIA na Madeira: ambiguidade entre a

9

Patrick O’Brien questionou se dados os contrastes regionais característicos do antigo

regime, a execução do programa de reforma dos liberais - que classifica de monolítico –

em realidades diversas não acabou por apresentar resultados diferenciados22. Na mesma

linha, Rui Feijó defendeu que as preocupações reformistas liberais se concentraram em

questões formais dos direitos de propriedade e descuraram os problemas e as condições

específicas da posse da terra. A esta secundarização atribuiu a subsistência das práticas

tradicionais23. Neste sentido, a peculiaridade do contrato de colonia explica que os

reformadores tivessem acabado por o ignorar.

3.1. Características da economia da Madeira entre finais do século XVIII e finas da década de sessenta do século XIX

A área agrícola da Madeira circunscreve-se a 31,3 % da área total (72,800

hectares). O grau de declive e a configuração dos socalcos ao dificultaram a substituição

do trabalho humano encarecerem os custos de produção. A partir de meados do século

XVIII, a situação acentuou-se com o alargamento da área de vinha se ter efectuado

mediante a conquista de terra à montanha.

O negócio do vinho na Madeira foi impulsionado pela aliança entre Portugal e a

Inglaterra (1660) que favoreceu os mercadores ingleses e foi ainda ajudado pelas tarifas

discriminatórias no mercado britânico contra os vinhos franceses. Entre meados do

século XVIII e 1820, os preços estimularam a plantação de vinhas. Até à deflagração do

22 Rui Graça Feijó, (s.d.) Liberalismo e Transformação Social. A Região de Viana do Antigo

Regime a finais da Regeneração, Lisboa, Editorial Fragmentos, p. 10 23 Rui Graça Feijó, p. 147-148 e p.13. O autor destaca que só na aparência é que a enfiteuse

esteve nos antípodas do modelo ideológico liberal uma vez que os decretos mais importantes desse período (privatização dos baldios em 1860) impuseram a enfiteuse.

Page 10: 1 O contrato de COLONIA na Madeira: ambiguidade entre a

10

oidium (1852) não obstante a queda dos preços, a vinha continuou a ser a cultura

comercial principal. Em seguida, passou a conviver com a cana sacarina.

As décadas de 1850 e de 1860 marcaram uma viragem na actividade agrícola em

paralelo com a aplicação do programa de reforma liberal sobre a propriedade e os

contratos agrícolas. No plano institucional, os senhorios passaram a ter necessidade de

aumentar o grau de supervisão nos contratos agrícolas. Tudo indica – a auscultação

efectuada apontou nesse sentido – que alguns senhorios tomaram posições através dos

órgãos políticos locais sobre a tentativa de classificação da colonia tentada pela câmara

dos deputados.

3.2. Reforma e ambiguidades da colonia: enfiteuse versus parceria

3.2.1. Enfiteuse e o condicionamento das estruturas agrárias

Um conjunto de historiadores, em abordagens comparadas, tem alertado para

que contratos análogos (enfiteuse) em contacto com diferentes estruturas sociais tenham

tido resultados diversos, como nos casos da Galiza e de Valência24. Em Portugal, o

mesmo regime surgiu associado no norte e no sul respectivamente à pequena e à grande

propriedade.

Os eventuais efeitos das leis liberais sobre a fragmentação da terra em resultado

de interferir sobre as formas tradicionais de herança, posse e propriedade da terra

marcaram presença na historiografia portuguesa. Para o Norte de Portugal e, em

24 Ramon Villares (1988) “Los foros de Galícia : Algunos problemas y comparaciones (Galicia, Portugal y Valencia)”, Ler História (12) , p. 66.

Page 11: 1 O contrato de COLONIA na Madeira: ambiguidade entre a

11

particular, no Minho, esse aspecto não foi comprovado pelos estudos locais

efectuados25.

A historiografia portuguesa tem mostrado que a enfiteuse tem estado mais

associada à pequena propriedade mas que também coexistiu bem com a grande

propriedade no sul do país. Recentemente, colocou-se uma interrogação, numa

perspectiva de longo prazo, sobre o âmbito da causa e da consequência. Nessa linha,

acrescentou-se, a título de hipótese, adentro de um esquema interpretativo genérico, que

seria importante averiguar se nos locais onde a enfiteuse era mais forte a grande

propriedade conseguiu resistir melhor. A explicação residiria na indivisibilidade dos

bens do prazo em caso de transmissão por herança26.

No contrato de colonia existia a particularidade de a terra e as benfeitorias terem

proprietários diversos. As benfeitorias eram bens específicos (plantas ou construções)

do prédio rústico. Em 1853, uma sentença judicial defendia, referindo-se sobretudo à

reparação de uma parede de suporte de um socalco, que o senhorio não podia impedir o

colono de efectuar reparações27. A necessidade de manutenção continuada servia de

base para explicar a vantagem de serem propriedade dos colonos. Outras construções,

como casas, armazéns e palheiros, explicam-se por o grau de declive dificultar e

encarecer os transportes e as deslocações.

25 Fátima Brandão (1994) Terra, Herança e Família no Noroeste de Portugal. O caso de Mosteiro no século XIX, Porto, Edições Afrontamento, p.12-15. 26 José Vicente Serrão (2000), Os Campos da Cidade. Configuração das estruturas fundiárias da região de Lisboa nos finais do Antigo Regime, Lisboa, ISCTE (mimeo) p. 478-480). O autor aventa que a situação detectada no final do Antigo Regime tivesse sido o desembocar de processos de realocação de recursos que remontavam à reconquista. 27 José Pereira Sanches de Castro (1860) Lembranças de um Juiz de Direito, Lisboa, p.72-73.

Page 12: 1 O contrato de COLONIA na Madeira: ambiguidade entre a

12

3.2.2. Sistema de herança das benfeitorias Colonia versus enfiteuse.

A interpretação da eventual relação entre a colonia e a promoção da divisão das

propriedade das benfeitorias antes mesmo da vigência das leis liberais apresenta

dificuldades. Este tema foi objecto de debate nas décadas de 1850 e 1860. A Câmara

Municipal do Funchal, em 1850, estimava existir um terço de terra vinculada e defendia

que, em qualquer terra, sujeita ou não a vinculação, a condição para estarem bem

agricultadas dependia de estas terem água e de “as benfeitorias não estarem muito

divididas entre os seus herdeiros”28. Este ponto mostra que a divisão das benfeitorias

não só era anterior ao Código (1867) como não era generalizada.

Em 1854, o projecto de Lei sobre a colonia propunha tornar extensiva à colonia

a legislação reguladora da sucessão na enfiteuse (Livro 4º, título 96º § 23º e § 24º) para

impedir o retalhamento infinito das terras que, por sua vez, teria como consequência a

anulação do direito de propriedade do senhorio29. A explicação do acolhimento dado a

este projecto requer a análise da evolução do tratamento dado à enfiteuse no Código

Civil.

Até o Código Civil de 1867 a experiência portuguesa da enfiteuse contemplava

uma distinção importante entre a duração perpétua dos prazos fateusins (que

permaneciam para sempre nas mãos do enfiteuta e seus sucessores) e os prazos de

vidas que revertiam para o senhorio findo o número de vidas estipulado (o mais comum

28 Ofício acerca da abolição dos vínculos, Arquivo Regional da Madeira (A.R.M.), Câmara Municipal do Funchal, Livro 193, fl.156-7. 29 Projecto de Lei da autoria de José Silvestre Ribeiro (ex-governador e deputado pela Madeira), Diário da Câmara os Senhores Deputados, sessão nº 15, 17 de Março de 1854.

Page 13: 1 O contrato de COLONIA na Madeira: ambiguidade entre a

13

era de três). A impossibilidade de dividir o prédio sem consentimento do senhorio era

comum a qualquer das modalidades30.

Na colonia, as benfeitorias eram propriedade do colono. Em 1759, segundo o

governador, o incentivo para os senhorios sem colonos passarem a ter vinha plantadas

nas serras de rocha passava pela exacta avaliação das plantas de vinha. Esta servia

para os colonos garantirem quer o “princípio de não perderem” as benfeitorias que

compraram quer o “fim” de aumentarem o seu “cabedal”31. Em 1822, referia-se que

a forma de efectuar a avaliação das benfeitorias-plantas se baseava no seu valor actual e

não no custo de plantação, porque senão as plantações de vinha cessariam e as paredes

deixariam de ser reformuladas e a Madeira ficaria reduzida a pedras e baldios32.

A dimensão de melhoria do prédio através da realização de benfeitorias

constava das características da enfiteuse da fase anterior ao Código Civil 33 . Esta

dimensão era comum à colonia. A benfeitoria configurou-se ainda como a trave mestra

de uma colaboração de longo-prazo, com os desequilíbrios inerentes aos interesses

envolvidos. A necessidade de supervisão por parte do senhorio aumentou a partir 1850’s

e 1860’s e pode ter estado na origem desse desequilíbrio.

30 António Menezes Cordeiro (2010), Da Enfiteuse: Extinção e Sobrevivência, Estudos em Homenagem ao Prof Doutor Martim de Albuquerque, vol. I, , Lisboa, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, p. 108-110. 31 A.H.U., Cx 1, doc nº 174, Ofício do Governador José Correa de Sá, 7 de Julho de 1759. Este texto indicia o modo de expansão da colonia nas zonas altas e pobres (terras de rocha). A enfiteuse já era praticada e conviveu com a colonia. 32 Representação da Junta da Fazenda Nacional da Madeira ao Congresso, 30 de Março de 1822, Arquivo Histórico Ultramarino (A.H.U.), Caixa XIX, doc. 6476. O ministro mandou avaliar com base no rendimento. A representação contesta a medida. Anote-se que o colono ou fazia as benfeitorias ou comprava-as. O senhorio raramente era dono de benfeitorias, mas quando o era e dava uma terra a cultivar vendia-as ao colono. 33 António Ribeiro Liz Teixeira (1848), Curso de Direito Civil Portuguez, 3º vol, p. 85 e segs in António Menezes Cordeiro (2010), p. 110.

Page 14: 1 O contrato de COLONIA na Madeira: ambiguidade entre a

14

3.2.3. Investimentos em melhorias (benfeitorias). Colonia versus parceria

A agricultura, na segunda metade do século XIX, passou a ter características

diversas da agricultura tradicional que lhe antecedeu. As doenças e pragas que

deflagraram na vinha encareceram esta cultura. A necessidade de comparticipação

financeira e de aconselhamento técnico por parte do senhorio aumentou. Os senhorios

incumbiam-se frequentemente de fazer viveiros de plantas para disponibilizar. A função

de coordenação do senhorio, fosse na apanha fosse no transporte das colheitas, ganhou

destaque.

O contrato de colonia era um contrato tendencialmente de longo prazo que tinha

a particularidade de o senhorio o poder fazer cessar em qualquer momento com a

condição de mandar avaliar as benfeitorias e proceder ao seu pagamento. Um panfleto

anónimo [1850’s ou início 1860’s], defensor da extinção do contrato de colonia,

advogava que se o senhorio não tinha dinheiro para indemnizar o colono que lhe

pagasse com terra34.

Em 1854, o governador do Funchal (Silvestre Ribeiro) estava preocupado com a

necessidade de replantar as terras com culturas comerciais após o oidium. A falta de

dinheiro do senhorio para indemnizar os colonos é então atribuída à perda do “pleno

domínio sobre a sua propriedade35. Dez anos depois, na mesma linha, outro responsável

defendia que para que fosse possível voltar a haver “melhoramento da cultura” era

essencial que o senhorio decidisse sobre qual a melhor cultura a adoptar. Este impasse

34 O Contrato de colonia [1850-1860], p.14.

35 Diário da Câmara os Senhores Deputados, sessão nº 15, 17 de Março de 1854.

Page 15: 1 O contrato de COLONIA na Madeira: ambiguidade entre a

15

adviera da falta de conveniência ou de possibilidades do senhorio em pagar as

benfeitorias ao colono36.

O entendimento da propriedade do colono em relação às benfeitorias

apresentava-se como a grande dificuldade colocada pelos princípios presentes no

Código Civil. O facto de o colono ser proprietário das benfeitorias dificultou a inserção

da colonia no catálogo dos direitos reais. O problema que se colocava residia em saber

como é que esta propriedade se encaixava na propriedade do terreno. Estava em causa

considerar se as benfeitorias cediam ou não ao solo.

Um comentador do Código Civil (Dias Ferreira) defendeu que os colonos “estão

sujeitos a regras gerais” de não poderem adquirir quinhão nos prédios

benfeitorizados, que não possuem em nome próprio; e apenas têm direito a

indemnização pelas benfeitorias conforme o direito comum37. Esta argumentação

subentende que a posse dos prédios em nome próprio é a única que conta .

Numa perspectiva oposta (Cunha Gonçalves), apresentava-se o contrato de

colonia como uma “parceria perpétua” por os usos locais constituírem cláusulas

tácitas do contrato quanto às benfeitorias rústicas (plantas) e urbanas (construções e

paredes de suporte). Nesta perspectiva, os direitos de propriedade dos colonos e dos

senhorios tinham valor idêntico38.

Esta problemática decorre de o Código Civil ter assentado numa matriz

ideológica liberal onde as relações jurídicas em matéria de propriedade foram sujeitas a

36 Relatório Apresentado à Junta Geral … (1864), p.43-44.

37 Dias Ferreira, Código Civil Anotado, Coimbra, 1895, vol. II, p.516.

38 Luís da Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1933, vol.VII, p.370 e vol. IX, p.55 e 216-218. Posições idênticas foram defendidas pelo advogado Pedro Pitta, O contrato de “Colonia” na Madeira, 1929.

Page 16: 1 O contrato de COLONIA na Madeira: ambiguidade entre a

16

um crivo contratual39. Esta visão transparece na forma como o Código tratou a enfiteuse

no título dos contratos e não no das “propriedades imperfeitas” que contemplavam os

“direitos reais menores”40 . Face a um determinado bem existiam duas posições: o

detentor do domínio útil que tinha o usufruto do bem contra o pagamento de um foro

(pensão anual) e o detentor do domínio directo ou eminente. O proprietário pleno, antes

da constituição da enfiteuse, reservava para si o domínio directo através do direito de

opção, do laudémio e do comisso. O Regime censítico, apesar de envolver também o

pagamento de uma pensão anual (censo) implicava na prática a transferência do bem

para o censuário que o podia alienar sem audição prévia e sem pagar laudémio41.

O Código Civil modernizou e simplificou a enfiteuse ao considerá-la perpétua

(1654.º) – os contratos celebrados por tempo limitado passavam a ser equiparados a

arrendamentos –, ao fixar o pagamento da pensão anual designada de foro ou canon

numa prestação certa e determinada (artº1656.º) e ao eliminar os encargos

extraordinários (artº1658.º). Não obstante a ter considerado hereditária não admitiu

que pudesse ser dividida em glebas, excepto mediante autorização do senhorio

(artº1662º) 42.

39 António Hespanha (2005) Instituições e quadro legal, Pedro Lains e Álvaro Ferreira da Silva, História Económica de Portugal 1700-2000. O Século XIX, vol II. Lisboa. Instituto de Ciências Sociais, p. 432 e p. 426. 40 O Código, no capítulo XIII do Livro II, no “contrato de emprazamento”, tratava dos “direitos que se adquirem por facto próprio e de outrem conjuntamente” e da “aquisição de direitos na parte II” (António Menezes Cordeiro (2010), Da Enfiteuse: Extinção e Sobrevivência, Estudos em Homenagem ao Prof Doutor Martim de Albuquerque, vol. I, Lisboa, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, p. 111-112. Sobre a filiação do entendimento da enfiteuse como contrato em juristas da primeira metade do século XIX tais como Joaquim José Caetano de Sousa e Alberto Carlos de Meneses ou numa visão da enfiteuse como uma espécie de direito de propriedade perfilhada por Pascoal de Mello Freire ver José Vicente Serrão (2000) p. 432-33. 41 José Vicente Serrão (2000), p. 434-5.

42 António Menezes Cordeiro (2010), p. 110-111.

Page 17: 1 O contrato de COLONIA na Madeira: ambiguidade entre a

17

O debate instalou-se na Madeira na década de 1850’s em torno da reforma da

colonia. O Parlamento apreciou um pedido de inquérito ao Governo sobre o

funcionamento da colonia. Durante o debate sobre este pedido opuseram-se tentativas

de confundir a colonia quer com o arrendamento (ou direito de colónia) quer com a

parceria. A legislação nacional, anterior ao Código, previa as situações abordadas no

inquérito. O alvará de 3 de Novembro de 1757 estipulava que, em contratos superiores a

dez anos, deixava de haver transferência do direito de propriedade (o domínio) do

senhorio para o arrendatário ou para o parceiro porque a duração perdera importância

em favor da origem do contrato. A transferência do contrato para os herdeiros só

acontecia em contratos de arrendamento feitos por “tempo certo”, os restantes

extinguiam-se por morte do arrendatário43.

Na argumentação usada, pretendia-se retirar a especificidade ao contrato de

colonia, aliás, invocada pelo autor do inquérito, e, corroborada pelo Ministro do Reino

presente. O relevante é que, na década de 1850, a Junta Geral do Distrito havia sido

ouvida sobre o Projecto-Lei apresentado na Câmara de Deputados em 17 de Março

1854. Apesar deste organismo o ter votado favoravelmente e por maioria, o projecto não

avançou44. Em 1864, três anos antes da entrada em vigor do Código Civil – presume-se

que decorria uma fase de auscultação ao mesmo –, a Junta Geral do Distrito propôs a

criação de uma comissão para estudar o “assunto nas suas diferentes relações”. Depois

43 O Inquérito foi efectuado por José Silvestre Ribeiro que definiu a colonia como um direito consuetudinário. Mello Soares confundiu a colonia madeirense com direito de colónia (arrendamento) e Moraes de Carvalho associou-a à parceria prevista no liv 4º tit.45 das ordenações. O Ministro do Reino (Fonseca Magalhães) concordou com Silvestre Ribeiro em fazer um inquérito de consulta informal dada a especificidade das práticas insulares “espécie de legislação agrária” onde as “ideias da propriedade da terra, e da propriedade do cultor, são singularmente entendidas” (Diário da Câmara dos Senhores Deputados, nº 17, 25 de Fevereiro de 1855).

44 Diário da Câmara dos Senhores Deputados, sessão nº 15, 17 de Março de 1854 (da autoria de José Silvestre Ribeiro Ex-governador pela Madeira) e Relatório Apresentado à Junta Geral do Distrito do Funchal na sessão ordinária (1864), Lisboa, Imprensa Nacional, p. 43-45.

Page 18: 1 O contrato de COLONIA na Madeira: ambiguidade entre a

18

de debatido, pretendia-se conseguir uma “reforma meditada e conveniente aos interesses

públicos”45. Na sequência desta diligência, em 1867, no âmbito desta instituição coube a

um júri proceder à apreciação de um Projecto de Lei sobre a colonia.

Entre a anuência dada, pela Junta Geral, à aplicação das regras de transmissão

hereditária da enfiteuse à colonia prevista no projecto de 1854 e a tomada de posição em

1867 ocorreram mudanças importantes. O Código modernizou a enfiteuse ao

considerá-la um contrato perpétuo. O projecto de 1867 sobre a colonia (da autoria de

dois bacharéis em direito, Trindade de Vasconcelos e José de Almada, o último com

experiência notarial) definiu a colonia como um contrato de parceria com fundamento

no Código Civil (artº1299º e artº1301º) e nas ordenações (L.4º tit.45). Mais importante,

ainda, afirmou não presumir a colonia como perpétua por não haver transferência

de domínio para o colono. Neste contexto, coincidente com a entrada em vigor do

Código, o alvará 3 de Novembro de 1757 não foi invocado, como sucedeu no debate de

1855, mas a base da argumentação era a mesma.

Em 1888, defendeu-se a retoma do regime previsto no artº 7º da Carta de Lei de

1 de Julho de 1867 – embora o prazo de cinco anos tivesse expirado – que determinava

que a nomeação de uma comissão de jurisconsultos para ampliarem as disposições dos

artigos 1299º e 1303º do Código Civil, “em termos a dar à parceria agrícola na Madeira,

lei por que se rejam as relações entre senhorios e colonos” e que se complemente o

modo de avaliar as benfeitorias46. O projecto de Lei dos dois bacharéis tentara-o sem

nunca ter sido aprovado em sede parlamentar.

45 Relatório Apresentado à Junta Geral … (1864), p. 45. 46 Inquérito sobre a situação económica da Ilha da Madeira e medidas convenientes para a melhorar ordenado por Decreto de 31 de Dezembro de 1887 (1888), Lisboa, Imprensa Nacional, p. 91.

Page 19: 1 O contrato de COLONIA na Madeira: ambiguidade entre a

19

A colonia podia, indubitavelmente, ser transmitida por sucessão aos herdeiros

antes de 1867. O Código Civil de 1867, no caso de hipoteca ou venda de benfeitorias

entre colonos sem audiência prévia do senhorio dificultou a consulta prévia do senhorio

sobre a idoneidade do novo colono47. Isto é, a capacidade de intervenção do senhorio e a

capacidade de fazer valer os seus direitos ficou assim reduzida.

A colonia nunca foi regulada por quaisquer normas do direito escrito mas a

jurisprudência foi-lhe aplicando princípios consagrados no Código Civil. Em 1929, um

advogado afirmava que lhe eram aplicadas “normas gerais, comuns aos contratos” e de

acordo com a circunstância, também se invocavam disposições respeitantes ou ao

arrendamento ou à parceria48. O tempo recriou a ambiguidade que o debate ocorrido no

Parlamento em 1854 deixara transparecer.

3.3.4 Expulsão vs enfiteuse perpértua

A partir do final do século XIX a manutenção de uma agricultura produtiva

passou a significar impedir a fragmentação das benfeitorias49. Em 1867, a solução de

aplicar à colonia as regras da indivisibilidade das glebas em caso de sucessão hereditária

que vigorava na enfiteuse não vingou. A diferença reside no modo de funcionamento

47 Benedita Câmara (2006) The portuguese Civil Code and Colonia tenancy contract in Madeira (1867-1967), Continuity and Change 21(2) 213-233. 48 Pedro Pitta (1929), O Contrato de “Colonia”, na Madeira. Comunicação feita à classe de letras da Academia das Sciencias de Lisboa em 9 de Maio, Lisboa, A Peninsular Editores, p.14, p.21 e p.83. 49 Fátima Brandão (1994) p.302 e 303. Em 1888, dava-se como assente a divisão da propriedade da terra mas sobretudo a propriedade das benfeitorias dos colonos (Inquérito Sobre a Situação Económica da Ilha da Madeira e Medidas Convenientes para a Melhorar ordenado por Decreto de 31 de Dezembro de 1887 (1888), Lisboa, Imprensa Nacional, p.92. Em 1947, manifestava-se a preocupação com a fragmentação das benfeitorias que era superior à excessiva divisão da propriedade (Ramon Honorato Corrêa Rodrigues (1947), A colonia da Madeira. Problema Rural e Económico, Funchal, Typ. Esperança, p.142). Em 1965, já se tinha verificado a viragem para a auto-exploração em minifúndio. (Recenseamento das Explorações Agrícolas das Ilhas Adjacentes, Lisboa, INE, 1965, p. 3, p. 7 e p. XIX).

Page 20: 1 O contrato de COLONIA na Madeira: ambiguidade entre a

20

dos dois contratos e no entendimento que o Código Civil de 1867 deu ao contrato

enfitêutico.

Na colonia, as benfeitorias do colono, entendidas como um direito “real menor”,

embora “não firme”, baseavam-se no poder que assistia ao senhorio de fazer reverter o

direito do colono em qualquer momento. Através da reversão procedia-se à reunificação

da titularidade do solo e da superfície gerando-se a perfeição da propriedade50 . A

reversão podia fazer-se por acordo amigável (provada por contratos com intervenção

notarial) ou por via litigiosa (comprovada por processos judiciais). A colonia era um

contrato de longo prazo mas sem termo porque os colonos e os senhorios se

responsabilizam por si e pelos seus herdeiros pelas condições previstas no contrato

enquanto este durasse. Entre as condições previstas, os colonos aceitavam que ao dono

da terra assistia o direito de, em qualquer momento, desse por terminado o contrato

desde que indemnizasse o colono pelas benfeitorias realizadas.

A literatura sobre contratos agrícolas discute a forma de operar dos contratos de

expulsão. Nos contratos de longo prazo a capacidade que senhorio dispõe de pôr fim ao

contrato é discutida em termos dos incentivos que produz e dos custos que ocorrem

quando os incentivos deixam de funcionar 51 . O vocábulo “expulsão” foi usado no

projeto de lei sobre a colonia de 186752.

50 O contrato de colonia foi considerado o mais complexo direito real existente na ordem jurídica portuguesa (Oliveira Ascensão, 1971, p.515). A propósito das medidas sobre a consolidação dos domínios directo e útil nos períodos Pombalino e Mariano ver José Vicente Serrão (2000) p. 444. 51 Bhaskar Dutta, Debraj Ray and Kunal Sengupta (1989) Contracts with Eviction Repeated Principal-Agent Relationships, apud Bardham, P., The Economic Theory of Agrarian Institutions, Oxford, Clarendon Press, 1989, p.94; Oriana Bandiera, Contract Duration and Investment Incentives: Evidence from Land Tenancy Agreements, Department of Economics, London School of Economics Paper, July 2003, p.6 and p. 10. 52 J. R. Trindade de Vasconcelos and J. A. de Almada, 1867, p.9 and p. 25-26

Page 21: 1 O contrato de COLONIA na Madeira: ambiguidade entre a

21

O Código Civil de 1867 tornou a enfiteuse perpétua e hereditária embora

previsse igualmente a possibilidade de o senhorio directo (artº 1672º) poder reaver o

prédio ao foreiro na hipótese de este o deteriorar. A deterioração prevista ficava

circunscrita ao caso do valor do prédio cair para um valor inferior ao do foro mais um

quinto53. Esta última forma de avaliar a deterioração era insusceptível de ser invocada

para a colonia não só por não se poder condicionar a avaliação a um foro inexistente

mas sobretudo por na enfiteuse a determinação da decisão sobre a cultura a adoptar

competir ao enfiteuta e na colonia competir ao senhorio.

Aliás, o grande desafio do senhorio, durante o período de discussão das leis

liberais sobre a propriedade, consistiu justamente em conseguir manter a prerrogativa de

ser ele a decidir sobre a cultura a adoptar. A intensificação da produção agrícola, que

caracterizou a segunda metade do século XIX, resultou do crescimento da população

num quadro fixo de terra onde as alternativas ocupacionais fora da agricultura eram

quase inexistentes. Em consequência, os colonos tanto podiam deixar de cumprir cabal

ou parcialmente aquela decisão, como podiam pender para colaborar com o senhorio. O

apelo às culturas de subsistência prevalecia no primeiro caso. As doenças e as pragas

que assolaram a agricultura neste período - ao darem relevo ao papel do senhorio quer

ao nível dos contributos da produção quer na própria gestão – tornaram plausível a

predisposição para a colaboração em culturas comerciais.

Um grande senhorio madeirense, Agostinho de Ornelas e Vasconcelos (1860-

1901), nos contratos da zona do Caniço, não autorizou quaisquer benfeitorias ao colono.

A explicação reside no facto de nessa zona quase não se ter cultivado vinha ou cana

sacarina mediante partilha do produto. Diversamente, na Ponta do Sol, em contratos de

53 António Meneses Cordeiro (2010, p.112.

Page 22: 1 O contrato de COLONIA na Madeira: ambiguidade entre a

22

plantação de cana sacarina com partilha do produto, já admitia que o colono fizesse

benfeitorias por sua conta. Nesta zona, deu autorizações de construção de palheiros para

gado e de casas. Neste caso, a manutenção da fertilidade da terra exigia colaboração de

longo prazo e a autorização para a construção de benfeitorias era a expressão por

excelência de que existia necessidade e condição para essa colaboração. As benfeitorias

– aumentavam o preço da expulsão – mas eram o preço da colaboração de longo prazo.

4. Conclusão.

A actividade agrícola comercial, baseada na co-exploração, foi importante na Madeira

desde uma fase remota. A necessidade de especificação de direitos de propriedade num

mesmo espaço imobiliário – colonia - acabou por contribuir para a criação de um

instituto jurídico peculiar à Madeira.

Dificilmente as leis do período Pombalino e Mariano sobre a consolidação permitiram à

Madeira um resultado diverso do continente onde não permitiu uma evolução no sentido

do seu aumento favorecendo o proprietário directo (senhorio). A proporção das terras

dadas de colonia podem ter aumentado mas não é crível que a maioria das terras

disponíveis passasse para a alçada do morgadio. Dificilmente o morgadio e a colonia

apresentaram entre si (antes e durante o século XVIII) um laço umbilical.

Outra questão é a da desigualdade e da persistência dos níveis de desigualdade. Esta

questão carece de investigação no que concerne à implementação de reformas que

incidiram sobre a propriedade: a capacidade dos liberais para articularem as

especificidades típicas da posse e propriedade no seio de contratos locais, como a

colonia, com o seu programa reformador; a capacidade do Estado para providenciar

uma estrutura de incentivos ao uso eficiente da terra em culturas comerciais em

simultâneo com a capacidade de responder às pressões no sentido quer da maior

Page 23: 1 O contrato de COLONIA na Madeira: ambiguidade entre a

23

especificação quer de distribuição dos direitos de propriedade; a evolução da

composição da élite concentrada durante a implementação destas reformas em conexão

com o entretecimento da ligação do Estado liberal com as élites locais.

O tema da subdivisão das propriedades-benfeitorias e o tema da decisão do senhorio

sobre o tipo de cultura a efectuar estiveram umbilicalmente ligados enquanto se discutiu

a aplicação das leis liberais à colonia. A decisão de não aplicar as regras da

indivisibilidade das glebas do prazo enfitêutico em caso de transmissão por via

sucessória à colonia prende-se com o tratamento dado à enfiteuse. Esta contemplava

uma fórmula reversível e outra perpétua. O Código Civil simplificou este instituto

jurídico classificando a primeira de arrendamento e definindo a segunda como contrato

perpétuo. A enfiteuse antes do Código Civil valorizava muito a dimensão das melhorias

e dos investimentos a que estava associada. Na colonia os melhoramentos eram a chave

do contrato por a sua manutenção continuada constituir uma necessidade. As

benfeitorias serem apenas titularizadas em propriedade pelo senhorio – a única fórmula

que o Código Civil estipulou em relação à parceria, caracterizou o programa de reforma

liberal que foi incapaz de equacionar a dimensão dos melhoramentos da colonia. Os

indícios das auscultações efectuadas às elites locais apontam para que a reforma da

colonia, proposta por Silvestre Pinheiro Ferreira, não foi adoptada porque os senhorios

quiseram continuar a seguir a via da agricultura comercial e os colonos corresponderam

ao apelo no curto prazo. De 1867 a 1967, o parcelamento excessivo das benfeitorias

acentuou-se em paralelo com a divisão da propriedade à medida que sistema de auto-

exploração se divulgou (ajudado pela desamortização e pela extinção do morgadio).

Com escassas alternativas de emprego fora da agricultura o parcelamento das

benfeitorias e da terra não estimulou a criação de formas inovadoras para adaptar a

actividade agrícola aos desafios da modernização.