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26 1 Paris-Lutécia dos primórdios até C. 1000 Cara Lutetia...” – “Minha querida Lutécia” – escreveu o imperador romano Juliano sobre suas estadias na cidade em 358 e depois no inverno de 360-361, é a capital do povo dos parísios. É uma pequena ilha que repousa no rio; uma muralha a circunda completamente, e pontes de madeira dos dois lados nos conduzem a ela. O nível do rio raramente sobe ou desce; em geral é tão profun- do no inverno como no verão; sua água é límpida para olhar e muito agradável para beber. Pois os residentes, por morarem numa ilha, precisam obter sua água principalmente do rio. Lá o inverno é bastante ameno, talvez pelo calor do oce- ano, a não mais do que novecentos estádios* dali; é possível que uma leve brisa marinha sopre e percorra toda essa distância. (...) Uma boa variedade de videira é plantada nas imediações do lugar. Certas pessoas conseguem até cultivar fi- gueiras, cobrindo-as durante o inverno (...) para protegê-las do vento frio. 1 Essa é a primeira descrição de qualquer tamanho que temos da cidade que seria conhecida como Paris. É escrita com um sentimento que se tornaria comum em escritos sobre Paris: o afeto. Seu autor era um homem poderoso. Nesse momento de sua história, Paris era Lutécia. Júlio César, que no primeiro século antes de Cristo conquistou grande parte da atual área da Fran- ça e a colocou sob domínio romano, foi o primeiro a usar o nome “Lutetia” (outros diziam “Lucotecia”) para designar a “cidade da tribo dos parísios”. 2 Cronistas da cidade desde a Idade Média até o nosso tempo gastaram muita tinta na tentativa de determinar a origem do termo. De maneira imaginosa, alguns o associaram ao termo grego leucos, “branco” – “devido à alvura dos rostos dos habitantes ou porque suas casas eram feitas de argamassa bran- ca”, como explicou de modo pedante o antiquário do século XVII Antoine de Mont-Royal, ou ainda, como pensava com irreverência Rabelais, em home- nagem às “coxas brancas das mulheres daquela cidade”. 3 Outros sugeriram uma alusão a Leucotéia, deusa dos marinheiros e dos caminhos das águas, * Medida grega e depois romana que equivale a cerca de 180 metros. (N. T.)

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Paris – biografia de uma cidade

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Paris-Lutécia

dos primórdios até C. 1000

“Cara Lutetia...” – “Minha querida Lutécia” – escreveu o imperador romano Juliano sobre suas estadias na cidade em 358 e depois no inverno de 360-361,

é a capital do povo dos parísios. É uma pequena ilha que repousa no rio; uma muralha a circunda completamente, e pontes de madeira dos dois lados nos conduzem a ela. O nível do rio raramente sobe ou desce; em geral é tão profun-do no inverno como no verão; sua água é límpida para olhar e muito agradável para beber. Pois os residentes, por morarem numa ilha, precisam obter sua água principalmente do rio. Lá o inverno é bastante ameno, talvez pelo calor do oce-ano, a não mais do que novecentos estádios* dali; é possível que uma leve brisa marinha sopre e percorra toda essa distância. (...) Uma boa variedade de videira é plantada nas imediações do lugar. Certas pessoas conseguem até cultivar fi-gueiras, cobrindo-as durante o inverno (...) para protegê-las do vento frio.1

Essa é a primeira descrição de qualquer tamanho que temos da cidade que seria conhecida como Paris. É escrita com um sentimento que se tornaria comum em escritos sobre Paris: o afeto. Seu autor era um homem poderoso.

Nesse momento de sua história, Paris era Lutécia. Júlio César, que no primeiro século antes de Cristo conquistou grande parte da atual área da Fran-ça e a colocou sob domínio romano, foi o primeiro a usar o nome “Lutetia” (outros diziam “Lucotecia”) para designar a “cidade da tribo dos parísios”.2 Cronistas da cidade desde a Idade Média até o nosso tempo gastaram muita tinta na tentativa de determinar a origem do termo. De maneira imaginosa, alguns o associaram ao termo grego leucos, “branco” – “devido à alvura dos rostos dos habitantes ou porque suas casas eram feitas de argamassa bran-ca”, como explicou de modo pedante o antiquário do século XVII Antoine de Mont-Royal, ou ainda, como pensava com irreverência Rabelais, em home-nagem às “coxas brancas das mulheres daquela cidade”.3 Outros sugeriram uma alusão a Leucotéia, deusa dos marinheiros e dos caminhos das águas,

* Medida grega e depois romana que equivale a cerca de 180 metros. (N. T.)

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mencionada por Homero e supostamente cultuada no local. De modo menos sublime, estudiosos relacionam o nome com luco- ou lugo-, a palavra celta para terras pantanosas, e a lutum, lama em latim. Provavelmente, é melhor ficarmos com a lama.

A etimologia lamacenta da Lutécia destaca uma característica marcante que desde o começo distinguiu a topografia de Paris. Apesar da descrição arcá-dica de Juliano, o rio Sena desempenhou papel muito significativo no aspecto do local. Hoje, a largura máxima do rio é de cerca de duzentos metros; naquela época, podia chegar a meio quilômetro em certos pontos. Condições de inver-no adversas – pois o clima não era tão ameno quanto sugeria a descrição de Juliano – com freqüência resultavam num rio congelado que ameaçava tanto as pontes de destruição quanto a população de fome, por colapso no forneci-mento de comida. O rio também era menos profundo, e uma ampla várzea de terra lamacenta e pantanosa se estendia nas duas margens. Na margem esquer-da, um afluente chamado Bièvre desaguava no Sena, provavelmente próximo à atual estação ferroviária de Austerlitz (5o). No passado distante, uma faixa de terras baixas na margem direita conduzia as águas do rio em um arco na di-reção norte até o sopé dos montes em Ménilmontant, Belleville, Montmartre e Chaillot. Esse arco secou por volta de 30000 a.C. e foi substituído pelo novo curso do Sena. Mas a área entre o rio e esses limites elevados ficou permanen-temente sujeita à inundação. Nas melhores situações, essa área pantanosa na margem direita serviu de defesa à cidade. Nas piores, chuvas fortes transfor-maram o curso extinto do rio numa torrente furiosa: o cronista Gregory de Tours registrou um naufrágio ocorrido durante as enchentes de 582 nas pro-ximidades da igreja de Saint-Laurent (10o). De modo semelhante, há relativo pouco tempo, nas grandes enchentes de 1910, o rio voltou a correr no velho curso – ocasião em que os amantes de música puderam ir à Ópera a remo.

Terra, água e lama, portanto, tiveram relação mais dramática com a história da cidade do que em períodos recentes. O provérbio dos geógrafos, “Paris é uma dádiva do Sena”, pode ter sua dose de verdade, mas o rio era capaz de criar tanto problemas como oportunidades. Precisou ser controlado e subjugado. Isso ficou evidente, por exemplo, no que se refere à Île de la Cité. Essa era a principal ilha do Sena, identificada por César como a principal ha-bitação da tribo local. A seu redor se desenvolveriam a topografia e a história parisienses. A ilha ficava cerca de seis metros abaixo do nível atual e por isso era sujeita a enchentes. Na verdade, era a ilha mais importante de um peque-no arquipélago nesse trecho do rio; cobria apenas sete ou oito hectares, ao contrário dos dezessete hectares de hoje. A oeste, existiam três ilhotas, pouco adiante da Pont Neuf atual: os canais que as separavam foram aterrados para formar a ponta da ilha durante a Idade Média. A leste, existiam quatro ilhotas.

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Uma seria agregada à Île de la Cité, duas seriam remanejadas para formar a Île Saint-Louis no século XVII, enquanto a Île Louviers, mais a leste, só em 1843 seria conectada à margem direita para formar o Boulevard Morland (4o). Essas complexidades topográficas devem ter tornado a navegação difícil e exigido o uso de embarcações de pequeno calado.

As características gerais da bacia de Paris – o espraiado relevo natural onde Paris se localizava – formaram-se na última era glacial, quando rino-cerontes perambulavam no terreno da Place de l’Hôtel-de-Ville e mamutes peludos pastavam desde os grandes magazines até o alto de Belleville. Uma característica particular dessa ampla região era o acúmulo de bom número de cursos d’água, próximos entre si, de águas mansas e, portanto, normalmente navegáveis (Marne, Essonne, Loing, Yonne, Aube). Esses rios desembocavam no Sena, que, por sua vez, desaguava no mar bem a oeste, além da atual Rouen. Essa rede fluvial permitia comunicação com o Canal da Mancha a oeste, a cami-nho da Alsácia, Alemanha e Suíça, e também com grande parte do Norte, Leste e Centro da França.

A presença humana mais antiga na vasta região em que se encontra Pa-ris remonta a setecentos mil anos atrás, mas o conjunto mais impressionante de artefatos humanos antigos encontrados na área – resultante das escavações de 1991-1992 em Bercy (12o), dois quilômetros rio acima da Île de la Cité – dá testemunho eloqüente do papel desempenhado pela água na história do local. De modo acidental mas revelador, os artefatos descobertos haviam sido preservados ao longo de milênios pela lama de Paris. A escavação em Bercy revelou evidência não apenas de ocupação contínua a partir de cerca de 5000 a.C., no final da Idade da Pedra, mas também da importância do rio nas vidas daquela sociedade primitiva e das outras que se seguiram. Entre os destaques desses achados arqueológicos estão várias canoas escavadas em troncos de mais de cinco metros de comprimento, datadas de cerca de 4500 a.C. As des-cobertas indicam que essas sociedades primigênias dedicavam-se à caça e à co-leta e alimentavam-se de animais terrestres (veados, javalis, auroques, ursos) e aquáticos (peixes, castores, aves, cágados). Mesmo após a adoção de estilos de vida mais sedentários, esses habitantes primitivos mantiveram práticas pre-datórias. Preferiam o pastoreio à agricultura; integravam a produção de grãos à criação de bovinos e suínos, além de buscarem constantemente carne de caça selvagem. Mesmo no período da chegada de Júlio César, muitos agrupa-mentos da região ainda praticavam o desmatamento e as queimadas, abrindo clareira após clareira adentro de uma área coberta de floresta cerrada.

A partir da Idade do Bronze (c.1800-c.750 a.C.), Paris tornou-se o eixo central de complexa rede de trilhas e o principal ponto de convergência de importante sistema fluvial. Naquela época, o Sena era mais largo; isso tornava

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o rio uma barreira considerável. Por isso, a presença do pequeno arquipélago ao redor da Île de la Cité conferia ao local um valor logístico e estratégico para o comércio de longa distância, pois ali era mais fácil atravessar o rio do que em outros pontos descendo ao mar. É bom não ceder à tentação do determinismo geográfico: na verdade, mercadores terrestres da região do Canal da Mancha, de Flandres e da Bélgica podiam, caso quisessem, tangenciar o norte de Paris e atravessar o Marne a montante para alcançar o oeste da Alemanha e a Itália. A presença de uma trilha norte–sul no traçado da Rue Saint-Jacques (5o-14o) na margem esquerda e da Rue Saint-Martin (3o-4o) na margem direita dava tes-temunho da posição estratégica de Paris nessas redes de comércio e transporte a longa distância, particularmente no que diz respeito ao sul e ao sudoeste. Bastante significativo foi o próspero comércio que trazia da Grã-Bretanha (em especial da Cornualha) o estanho, ingrediente essencial no fabrico do bronze, aos depósitos de cobre e às sociedades que habitavam o sul e o leste na Idade do Bronze. Assim, a situação privilegiada do local e a variadade dos padrões de troca que ocorriam à sua volta estimulavam a passagem rotineira de indiví-duos das mais diversas procedências pela região. O fenômeno produziu uma mistura étnica e cultural que constitui característica há muito presente na his-tória da cidade. Já no período pré-romano Paris era um cadinho de culturas.

Em determinado momento da Idade do Ferro, logo após a Idade do Bronze, grande número de novos povos parece ter se estabelecido na região, chegados ali graças a movimentos populacionais desorganizados e de amplo espectro ocorridos por toda a Europa Central e Oriental. Esses grupos eram os antepassados dos celtas ou gauleses, a quem Júlio César derrotaria e subjugaria. Um ramo de um desses grupos tribais – os quarísios ou parísios – chegou a espalhar-se até a altura de Yorkshire antes de fixar moradia, mas a maioria veio a se instalar na região ao redor de Paris e em direção ao ponto onde o Sena e o Marne se encontram. Os armamentos de ferro dos celtas sugerem tratar-se de povo guerreiro. Muitas vezes construíam as moradias protegidas por fortalezas defensáveis (oppida), que aproveitavam o potencial defensivo de rios e outros obstáculos naturais. O oppidum de Saint-Maur-des-Fossés (Val-de-Marne), por exemplo, fica perfeitamente abrigado por uma curva do rio Marne. A Île de la Cité era, pelo que sabemos, o oppidum dos parísios descrito por César.4

O interesse de César pela região ia além da topografia. A República ro-mana estava em fase de expansão; por isso, todo o território atual da França ficou sob a autoridade de Roma. A faixa de terra meridional e mediterrânea da França – conquistada por Roma em 121 a.C. – ligava a península da Itália à península Ibérica e era chamada de Gália Narbonense. As Guerras Gálicas de César no período entre 58 e 51 a.C. tiveram o objetivo de garantir a influência romana nessa província meridional e estender o imperium romano, de modo

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a conter os gauleses celtas e seus turbulentos vizinhos germânicos. A região apelidada por César de “Gália Cabeluda” (Gallia Comata) ia desde a Bélgica, Holanda e oeste da Alemanha até o oceano Atlântico. César fazia distinção en-tre esse território e a presumivelmente mais tranqüila, civilizada e romanizada Gália Narbonense.

A investida militar romana nos anos 50 a.C. tivera por alvo menos os pa-rísios do que outras tribos mais poderosas, como os arvernos (com base no Ma-ciço Central) e os vizinhos dos próprios parísios: os carnutos (sediados na região de Orléans) e os senões (cuja aldeia ficava em Sens). No primeiro momento, os parísios usaram a cabeça: não entraram no conflito. Os parísios foram tão ob-sequiosos com os romanos que, em 53 a.C., César convocou uma assembléia de todas as tribos da Gália na própria Lutécia. No ano seguinte, porém, os parísios trocaram de lado. Para combatê-los, César enviou tropas sob o comando do fiel lugar-tenente Labieno. Com toques de astúcia (inclusive o transporte no-turno de tropas em canoas abandonadas), o general romano acuou os parísios liderados pelo comandante Camulogenus no campo de batalha a oeste da Île de la Cité, provavelmente na região de Grenelle (15o) ou em Auteuil (16o), e aniquilou-os. Os parísios sobreviventes à carnificina fugiram ao sul e se uni-ram ao heterogêneo exército de resistência liderado pelo arverno Vercingetórix. Conforme relatos de César, cerca de oito mil parísios estiveram envolvidos na batalha de Alésia em 52, quando as tropas do comandante gaulês Vercingetórix sofreram outra humilhante derrota e ele foi obrigado a render-se.

A Lutécia recuperou-se do ataque romano (assim como dos estragos do incêndio da Île de la Cité ordenado por Camulogenus). Como resultado dessas guerras, a “Gália Cabeluda” foi dividida em três províncias; Lyon (Lugdunum) tornou-se a capital. A Lutécia, que ficava na província setentrional da Gália Bélgica, teve o progresso atrasado pelo advento do imperium romano. Déca-das antes da conquista romana, os parísios já produziam uma impressionante cunhagem de ouro; isso sugeria a vitalidade e a prosperidade da região, com base no comércio e no transporte de mercadorias. A conquista romana trouxe brusca diminuição ao valor das moedas locais, sinal de pronunciada queda na atividade econômica.

A evidência arqueológica sugere que uma verdadeira cidade nos moldes romanos só se desenvolveu muito devagar. Provavelmente, desde o primei-ro momento, os romanos impuseram à Lutécia o clássico traçado em grelha preferido por eles. O papel de cardo – principal rua central no sentido norte–sul das cidades romanas – coube à estrada existente no traçado da atual Rue Saint-Jacques. Porém, a construção de prédios nessa estrutura levou bem mais tempo para ser efetivada. Embora talvez já houvesse instalações portuá-rias na altura da atual Place de l’Hôtel-de-Ville (4o), eram poucas as moradias

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As arenas de Lutécia

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na margem direita. O principal prédio da Île de la Cité era a basílica onde o imperador Juliano se alojava, construída somente no século IV. A margem esquerda (em termos modernos, o 5o arrondissement) continha praticamente toda a Lutécia romana. A área povoada se estendia da Rue Mouffetard dos dias de hoje, a leste, até a Rue de Vaugirard (6o), a oeste, e da altura do Boulevard Saint-Germain onde a margem pantanosa do rio terminava, até pouco adiante do topo da Montagne Sainte-Geneviève. Nesse local, um prédio dotado de pórtico (e próximo do atual Panthéon) combinava as funções de fórum com as de basílica e templo. Havia dois teatros; um deles, o vasto anfiteatro das are-nas, só redescoberto no fim do século XIX. Dos três banhos públicos, o mais notável era o complexo cujas ruínas ainda são visíveis a partir do Boulevard Saint-Michel. Na zona periférica da cidade, havia três cemitérios: um na estra-da rumo a sudoeste, na parte superior do que seria hoje a Rue de Vaugirard; outro na altura da Rue Saint-Jacques a caminho de Notre-Dame-des-Champs (6o); e o terceiro, mais tardio, junto ao cruzamento de Les Gobelins no lado sudeste (13o). Um impressionante aqueduto, conectando a zona de Rungis no sul da cidade com o rio Bièvre, foi construído para fornecer água para essas múltiplas necessidades. O sistema de abastecimento de água construído por Napoleão III no Segundo Império (1852-1870) inteligentemente seguia o mesmo trajeto. A água – cuja qualidade fora realçada por Juliano – era cana-lizada até as residências privadas que tinham hipocaustos, sistemas de aqueci-mento central característicos das cidades mediterrâneas.

1.1: As arenas de Lutécia

A arena romana ou anfiteatro de Lutécia, situada junto à Rue Monge, no 5o arrondissement, é um local de memória que os parisienses conse-guiram esquecer – por duas vezes. Quando o arqueólogo da cidade Thé-odore Vacquer identificou o local em 1869-1870, despertou a atenção dos parisienses para um monumento perdido por mais de um milênio. Construída por volta do ano 200, a arena era um dos maiores exemplos franceses de anfiteatro romano; chegara a ter capacidade para quinze mil espectadores – quase o dobro da população presumida da própria cidade. Esse extraordinário monumento regional era voltado para oes-te; assim, à tarde, os espectadores podiam apreciar a agradável vista do vale do rio Bièvre enquanto se acomodavam para assistir aos espetácu-los, que incluíam lutas de animais e de gladiadores assim como esportes aquáticos. As arenas entraram em decadência com a extinção do poder romano. No século IV, cristãos já realizavam cerimônias de enterro no centro da arena. As pedras da edificação passaram a atrair a pilhagem

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para a construção de monumentos funerários e outros usos. Um visi-tante inglês do século XII descreveu “um grande circo cheio de ruínas imensas”, mas essas ruínas foram provavelmente reduzidas ainda mais pela construção da muralha de Filipe Augusto (1190-1215). Um nome de origem medieval – o clos des arènes – denunciava o local do anfitea-tro, mas mesmo esse nome acabou esquecido. Um monte de cerca de vinte metros de altura aos poucos formou-se sobre os vestígios.

Houve muita surpresa quando, em 1869, uma equipe de construto-res encontrou as ruínas durante a criação de uma das ruas que o barão Haussmann fez penetrar coração adentro de áreas de moradias insalu-bres e caindo aos pedaços das classes operárias de Paris. A reconstrução completa de grande parte da cidade sob o Segundo Império revelara im-portantes achados arqueológicos: Vacquer, um dos heróis esquecidos da conservação parisiense, localizou os vestígios de um fórum próximo à Rue Soufflot, vários teatros e o sistema viário. Todavia, Haussmann e seus seguidores estavam construindo a Paris do futuro, local da moder-nidade, e tinham pouco tempo a dedicar ao passado. Embora houvesse iniciado um debate público sobre a restauração, um dos últimos atos de Haussmann como chefe do departamento do Sena foi ordenar a terra-plenagem do local e sua conversão em depósito multifuncional – típica vitória haussmanniana.

Em 1883-1885, novos trabalhos de construção ao longo da Rue Monge revelaram, sob um ex-convento, a segunda metade da arena ori-ginal. O debate público dessa vez foi mais acalorado e alcançou triunfo quando Victor Hugo escreveu uma carta aberta apoiando o monumen-to. “Não é possível”, fulminou esplendidamente o autor, “que Paris, a cidade do futuro, deva renunciar à prova viva de que foi uma cidade do passado. A arena é o marco antigo de uma grande cidade. É um monu-mento único. O conselho municipal que vier a destruí-la de certo modo destrói a si mesmo. Conservem-na a qualquer preço.”

E ela foi devidamente conservada. Continuou-se a trabalhar no local, na expectativa confiante de um resultado produtivo e inextinguível.

Essa vitória importante do nascente movimento pró-conservação em Paris acabou causando efeito bem menos devastador do que o es-perado. Embora o local da arena fosse muito amplo, praticamente nada restava dos assentos ou de edifícios proeminentes. Na expectativa de encontrar monumentos equivalentes às arenas de Nîmes e Arles, os ar-queólogos descobriram essencialmente uma pilha de rochas e escom-bros com pouco mais de dois metros de altura. “Para podermos pre-servar a arena”, observou indignado um funcionário municipal, “seria

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primeiro necessário provar sua existência. Tudo indica o contrário. (...) Como monumento, ali nada mais resta.” Não se tratava do magnífi-co monumento da história de Paris imaginado pelas autoridades pari-sienses. Todo o movimento de propaganda a favor das arenas resultou em nada. As obras de restauração arrastaram-se por muito tempo. Em 1917-1918, o arqueólogo Capitan finalmente completou o trabalho na forma de um parque público, que inclusive recebeu o nome de praça Capitan. A “restauração” da construção foi em grande parte uma cria-ção nova – uma Disneylândia romana, ao estilo da Terceira República.

Hoje, as arenas seguem tranqüilas, basicamente esquecidas – pela segunda vez em sua história – numa cidade cuja romanidade não chega ao ponto de encorajar seu status romano de cidade gaulesa de terceira categoria. Os turistas são poucos, a não ser quando arquibancadas es-peciais são erguidas para concertos de verão. Na maior parte do tempo, as arenas são freqüentadas por pais e bebês e por garotos da vizinhança, que jogam peladas de futebol invariavelmente disputadas ao som dos gritos das crianças do jardim de infância ali perto. As arenas de Lutécia foram transformadas em local de sociabilidade e mémoire de quartier. Numa cidade cujos “ locais de memória” às vezes beiram o exagero, tal-vez isso não seja tão ruim.

Apesar dos impressionantes (embora lentos) sinais de romanidade, a Lutécia nunca chegou a ser mais do que uma cidade secundária durante todo o período de dominação romana – até que Juliano rapidamente a associasse ao governo imperial. Os romanos permitiram que a rede tribal existente sub-sistisse em toda a Gália. Os parísios não tinham qualquer primazia sobre os pouco mais de sessenta grupos tribais – agora rebatizados de civitates (“cida-des-estado”) – que constituíam a “Gália Cabeluda”. A Lutécia era apenas a ca-pital de uma civitas na província mais extensa da Gália Bélgica. Pouca era sua importância estratégica. Ficava a uma boa distância, por exemplo, do limes, a zona de fronteira fortificada erguida para prevenir incursões de grupos tribais germânicos do outro lado do Reno e do Danúbio e para garantir a pax romana em todo o noroeste da Europa. Até mesmo quando, no século IV, um sistema de unidades menores substituiu a tripartição da Gália, a Lutécia não logrou obter promoção administrativa: a vizinha cidade de Sens tornou-se a capital da Quarta Divisão Lionesa.

A Lutécia não desempenhou papel social, econômico ou cultural maior do que sua importância administrativa. Chegando possivelmente a oito mil ha-bitantes, a pequena cidade contrastava com Narbonne e Nîmes (na Gália nar-bonense) e também com Lyon, Autun, Reims e Trier, todas com vinte a trinta mil habitantes (enquanto a própria Roma contava com 750 mil habitantes). Os

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cerca de cinqüenta hectares de área da Lutécia mal podiam ser comparados com os seiscentos hectares de Reims, os 285 de Trier e os duzentos de Autun – ou mesmo com o oppidum pré-romano de Alésia, de 97 hectares. Tanto o que acontecera com a cunhagem dos parísios quanto a lenta romanização do meio ambiente construído sugerem que a prosperidade econômica da cidade de-morou a superar o trauma da conquista. A Lutécia era uma das relativamente poucas cidades romanas na Gália Setentrional onde as construções podiam ser feitas de pedras extraídas na região: os depósitos de calcário (para pedras para construção) e gesso (para argamassa e rebocos) dentro de um raio de cinco quilômetros da Île de la Cité forneceram matéria-prima para construção até os tempos modernos (a última pedreira de calcário fechou em 1939) e ao longo dos séculos criaram vastos complexos de cavernas subterrâneas. A maioria dos prédios públicos só foi erguida no século II e III. Pedra, argamassa e ladri-lhos gradualmente substituíram paredes de taipa e telhados de colmo – nunca desaparecidos por completo. Embora a cerâmica, o trabalho em metais e o comércio associado à indústria de construção tenham prosperado de forma considerável durante o apogeu da cidade e levado à formação de subúrbios manufatureiros, a Lutécia não chegou realmente a transformar-se em centro de produção; em vez disso, especializou-se em atividades comerciais de longa distância. Também aqui a economia parisiense ressentiu-se da decisão impe-rial de construir a principal via de ligação entre a capital da província, Lyon, e a Inglaterra, passando por Sens, Senlis e Beauvais, descartando Paris.

O “ pilar dos barqueiros”, extraordinário achado arqueológico do come-ço do século II. nos arredores da catedral de Notre-Dame em 1711, sugere que, apesar desses problemas, a recuperação econômica estava a caminho. O pilar de pedra de cinco metros de altura (que pode ser visto no Museu Cluny de Paris [5o], junto a vestígios das termas romanas) representa os deuses roma-nos (Marte, Vênus, Mercúrio, Fortuna, Castor e Pólux e Vulcano) convivendo harmoniosamente com divindades gaulesas. Está inscrito (em latim incorre-to): “Sob o reino de Tibério César Augusto, os barqueiros ( nautes) erigiram esse monumento a Júpiter Optimus Maximus (o melhor e maior de todos), repartindo o custo coletivamente”. O pilar destaca o sincretismo da religião galo-romana, mas também o status social e o poder econômico dos barquei-ros, cuja organização anterior à chegada dos romanos parece ter alimentado a onda de crescimento econômico do início do século II.

A produção local era transportada a longas distâncias. Adiante das três necrópoles nos arredores da cidade, grandes fazendas baseadas no modelo ro-mano de mão-de-obra escrava davam à Lutécia a aparência de cidade-jardim. Por exemplo, uma grande fazenda em Chaillot e outra em Montmartre de-dicavam templos a Marte e a Mercúrio. Seria necessário ir além dos limites

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do boulevard périphérique que hoje contorna a cidade para encontrar locais mais densamente habitados ( Clichy, Gentilly, Bogbigny, Ivry, Saint-Denis). O caráter rural da grande Lutécia aumentou no decorrer dos séculos III e IV, à medida que o poder romano enfraqueceu, declinou e finalmente se extinguiu. A partir do final do século II, incursões de pilhagem dos bárbaros do outro lado do limes começaram a espalhar a incerteza por toda a Gália. Já em 162 e em 174, ataques de surpresa avisavam sobre o perigo. Mas a partir do final do século III o problema agravou-se por toda a província. Em 275, os ataques dos alamanos e francos germânicos causaram estragos em sessenta cidades gaule-sas, entre as quais a Lutécia. Isso levou, pouco depois do ano 300, à fortificação tanto da Île de la Cité como de uma área indeterminada ao redor do fórum, usando pedras de construções menos defensáveis. A prática crescente de in-divíduos enterrarem pequenos tesouros de moedas e outros objetos de valor demonstrava o impacto psicológico da ameaça bárbara.

1.2: Uma criança parisiense

Este é o mais antigo rosto parisiense de que temos notícia (p. 40). Tem quase dois mil anos de idade. É uma máscara funerária acidental, de clareza e intensidade quase fotográficas, descoberta em 1878 durante escavações na Rue Pierre-Nicole (5o). O arqueólogo Eugène Toulouzé trabalhava na necrópole romana dessa área há algum tempo e localizou um sarcófago grosseiramente acabado do século I ou II. Com cuidado, abriu a tampa com uma alavanca e descobriu o cadáver de uma peque-nina criança, de doze a quinze meses de idade, ao lado da qual estava uma mamadeira de vidro ricamente trabalhada. A cabeça da criança, observou o arqueólogo,

estava em parte coberta por uma camada de cimento bastante grossa. Após removê-la com cuidado, qual não foi a nossa surpresa ao percebermos que o cimento formara uma espécie de máscara funerária sobre a cabeça, assim conservando intacto, após dezoito séculos, o rosto da criança. Quando o caixão foi selado, talvez o cimento tenha ficado aderido à tampa e depois se desprendido, fixando-se sobre a cabeça da criança e moldando sua forma.

A criança recebeu tratamento especial pelo menos na morte. Ela é uma das únicas três pessoas enterradas em sarcófago nesse vasto ce-mitério – a maior parte dos enterros era feita diretamente na terra ou então os corpos eram colocados em caixões de madeira. Porém, a morte de uma criança era uma ocorrência banal não só na Lutécia romana, mas durante a maior parte da história de Paris. Talvez não seja motivo

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de surpresa que o maior cemitério de Paris a partir da Idade Média fos-se dedicado aos Santos Inocentes, as crianças massacradas por ordem de Herodes. Quando o cemitério dos Inocentes foi fechado, em 1786, continha os restos mortais de dois milhões de parisienses; vasta propor-ção desses eram crianças. A evidência estatística sugere que até o final do século XVIII e início do século XIX, uma entre cada três ou quatro crianças parisienses morria antes do primeiro aniversário.

Esse massacre de inocentes era agravado por uma série de práticas sociais. A partir do fim da Idade Média, a burguesia, os donos de loja e os artesãos parisienses adquiriram o hábito de enviar os filhos para se-rem aleitados no campo, onde havia maior chance de perecerem do que em casa. Além disso, Paris tornou-se verdadeiro depósito de crianças enjeitadas tanto de fora como da própria cidade. Hospitais para crian-ças enjeitadas foram criados a partir do século XVI, destacando-se o Enfants-Trouvés, fundado por São Vicente de Paulo em 1640. Infeliz-mente, tais instituições bem-intencionadas estimulavam o abandono. Na época da Revolução Francesa, a cada ano, cerca de oito mil bebês eram transportados a Paris a fim de serem abandonados; durante a via-gem e nos três primeiros meses em que eram cuidadas, 90% morriam. A taxa de mortalidade era maior entre os bebês alimentados artificial-mente – como a criança parisiense encontrada por Toulouzé em suas escavações. A situação só começou a melhorar no século XIX.

A pobreza das crianças era um problema tão grande quanto a mor-talidade infantil. A criança mendiga tornou-se alvo freqüente de preo-cupação a partir do século XVI. Histórias terríveis de abuso infantil não faltavam. Uma mãe foi executada em 1445 por ter vazado os olhos da filha ainda bebê, para a menina inspirar mais pena ao pedir esmolas nas ruas. Relatos de pernas quebradas e outras mutilações provocadas eram comuns na literatura picaresca de vagabundagem. As crianças tinham o talento de despertar esses rumores e lendas urbanas. Em várias ocasiões, a partir do século XVI – em 1529, 1663, 1675, 1720, 1741 e 1750 –, os parisienses foram tomados de pânico, pois suas crianças estariam sendo vítimas de seqüestro. Em 1750, corria o boato de que as crianças esta-vam sendo exterminadas para que seu sangue pudesse ser usado para banhar as feridas leprosas do devasso Luís XV.

Do final de século XVIII em diante, a criança mendiga parece ter se metamorfoseado no garoto de rua – o gamin de Paris –, ob-jeto tanto de inquietação quanto da preocupação caridosa das elites pari sienses. Uma gangue de crianças mutilara e castrara o cadáver do almirante Coligny no massacre da noite de São Bartolomeu de 1572.

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Paris – biografia de uma cidade

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