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1
PLONGÉE
ORGANIZADORAS
ILANA ELKIS | JOANA FERRAZ
D A N Ç A E S I T E - S P E C I F I C
ISS
O É
UM
SIT
E S
PE
CIF
IC
3
Plongée é uma dança site-specific de Ilana Elkis e Joana Ferraz, que foi
contemplada, em 2011, pelo edital Novos Coreógrafos: Novas Criações: Site
Specific do Centro Cultural São Paulo - CCSP. A Praça da Biblioteca e entorno
do CCSP foi o local onde esse trabalho foi criado e performado.
Em 2015, as artistas foram contempladas com o Prêmio Funarte Klauss Vianna
2014, para circular com Plongée por Bibliotecas públicas do Brasil, nas cidades de
São João del Rei (MG), Manaus (AM), Teresina (PI), e Olinda/Recife (PE), durante
o ano de 2016, realizando oficinas e apresentações. Ao propor a circulação da
obra Plongée por bibliotecas públicas brasileiras, o projeto pretendeu fomentar
a discussão acerca da produção de dança contemporânea site-specific – o que
precisamente vem a ser isso, quais são os limites, as diferenças entre o que se
pensa sobre site-specific nas artes visuais e o que se tem pensado em dança,
o hibridismo dessa linguagem, suas possibilidades, o que faz uma dança ser
site-specific ou não, até que ponto estas definições são importantes e como as
instituições têm se relacionado com este gênero artístico.
Em São Paulo (SP) o projeto foi residente no Centro de Referência da Dança,
onde realizou dois encontros abertos ao público para conversar sobre dança e
site-specific. Estes encontros foram chamados de Ocasião 1 e Ocasião 2.
Essa publicação é um desejo de tornar essa experiência de compartilhamento e
reflexão menos efêmera, é uma tentativa de criar uma memória concreta acerca
de o que foi e como foi realizada essa circulação. Aqui não existe uma ambição
de chegar a conclusões sobre a categoria dança site specific. É um levantar
de questionamentos e modos de pensar a prática em lugares específicos.
Continuando a troca com as cidades por onde o projeto passou, a publicação
será enviada para os locais onde foram ministradas as oficinas e às bibliotecas
onde foram realizadas as apresentações.
A PublicaçãoILANA ELKIS E JOANA FERRAZ
5
Realizar o projeto Plongée: Dança nas Bibliotecas do Brasil foi uma imensa
oportunidade para conhecer melhor esse grande lugar brasileiro que
apresenta infinitas possibilidades de fazer e pensar arte. Ao circular com
Plongée, e realizar as ocasiões 1 e 2, emergiram muitas reflexões sobre
os modos de criar trabalhos de dança em espaços não convencionais e
específicos. Com isso, muitas perguntas foram lançadas, suspensas no
ar. A grande maioria ainda não foram respondidas, mas definitivamente
inauguram novas maneiras de olhar para a experiência de criar e circular
com um trabalho site specific na contemporaneidade.
Perguntas específicas para lugares específicosILANA ELKIS
Historicamente, a arte sai das galerias, museus e teatros como um ato político
de se aproximar da vida, do cotidiano e da experimentação. O corpo, nesse
contexto, sai de um espaço convencional para negar o objeto de representação,
a ilustração e a espetacularização. A obra The Man Walking Down the Building
(1970) de Trisha Brown é um exemplo marcante de um trabalho que se propõe
a dialogar com o espaço e com seu tempo, para criar suas poéticas.
Poéticas nas quais a forma está intrinsecamente vinculada ao seu conteúdo,
e vice-versa, trazendo à tona discursos artísticos e políticos que, na época,
estavam em voga: a não espetacularização (nessa obra, Trisha traz à tona um
corpo que se propõe a realizar o simples ato de andar); uma nova perspectiva
sobre o cotidiano e a cidade, (surpreendendo transeuntes com a imagem de um
bailarino andando de cima para baixo em um prédio, desafiando a gravidade);
e, ainda, em um prédio no Brooklyn, bairro de Nova Iorque que então sofria
com a especulação imobiliária e um processo de gentrificação significativo.
Uma referência importante das artes plásticas são os cortes em casas e edifícios
abandonados, como Splitting (1974) de Gordon Matta-Clark, que foram obras
que dialogavam com as mesmas inquietações descritas acima, preenchendo
suas formas com seus contextos, e, mais uma vez, reforçando questionamentos
importantes que afloraram naquele espaço e tempo.
Durante as oficinas deste projeto de circulação, as obras citadas acima
eram as minhas favoritas para exemplificar um trabalho Site Specific para
os participantes. Uma estratégia para explicar esse modo de trabalhar, sem
necessariamente categorizá-lo, mas, ao mesmo tempo, tendo o cuidado de
diferenciá-lo de intervenções urbanas, performances e até mesmo adaptações
de trabalhos cênicos de um ambiente para o outro. Obras “guias” que me
ajudaram a lançar um olhar para minha prática em Plongée, assim como sua
circulação por outras bibliotecas, revelando aos poucos as relações conteúdo-
forma que ainda não me eram tão evidentes.
7
A iniciativa de criar Plongée veio através da inscrição no edital Novos
Coreógrafos: Novas Criações: Site Specific 2011, do Centro Cultural São Paulo.
Eu e Joana Ferraz escolhemos a Biblioteca por conta de um encantamento
por sua arquitetura vazada, com diferentes níveis e mirantes que criam nichos
arquitetônicos, tornando esse espaço singular. O segundo motivo para realizar
esse projeto, foi pelo desafio de criar algo que fosse contra a corrente de
“dar conta” do espaço, de preenchê-lo totalmente e, assim, optamos por ele
nos “engolir”, revelando então um outro corpo específico que estabelecia
outras relações com aquela Biblioteca. Essa intuição e desejo vieram a partir
de experiências anteriores que ambas havíamos tido quando participamos
de outras criações naquela mesma biblioteca, em edições anteriores
deste mesmo edital.
A experiência de trabalhar nesta biblioteca, dia a dia, durante três meses,
foi o que construiu a relação forma-conteúdo para o trabalho Plongée.
Primeiramente, contemplamos o lugar – observamos as pessoas: quem
frequentava e como frequentava aquele lugar, como, por exemplo, o fluxo e
a qualidade de ocupação desses frequentadores em relação à arquitetura;
estabelecemos recortes espaciais – pontos de vista distintos, incluindo o Plano
Plongée, com os quais as imagens do trabalho poderiam ser recortadas, e trazer
novas perspectivas sobre aquela realidade.
O corpo, assim, foi em direção ao seu próprio desejo de borrar suas fronteiras
com o espaço, colocando-se em trânsito e em fluxo, para criar relações,
experiências, percepções e presenças únicas e específicas, que dizem respeito
a relações específicas que esse corpo estabelece com aquele espaço e tempo,
criando um contexto.
Elencamos algumas dessas relações para criar os contextos de Plongée e,
desse modo, viabilizar a sua circulação em outras bibliotecas. Daí vem à tona
a pergunta: “ele deixa de ser um site specific ao sair de seu sítio de origem?”
Para alguns artistas mais ortodoxos, talvez sim, mas, a partir dessa experiência,
percebi que mesmo o trabalho mudando algumas de suas características de
biblioteca para biblioteca, Plongée manteve suas relações poéticas intrínsecas
sempre presentes, fazendo emergir a cada apresentação um corpo específico e
trânsitos específicos entre corpo e espaço, relações específicas com seu entorno
– a biblioteca e o seu contexto. Sim, Plongée é um trabalho de dança para um
lugar específico.
Categorizar o que é ou não site specific é uma tarefa árida que muitas vezes nos
distancia de nossas experiências artísticas, adentra um mundo fronteiriço, exato
e mensurável, que se afasta significativamente do fazer artístico. Ao mesmo
tempo, olhar para o termo site specific como um campo artístico distinto, no
qual se fomenta uma reflexão sobre os modos de fazer dança em espaços
específicos, é formular perguntas e entender escolhas artísticas distintas de que
essa prática se ocupa, e entender esses processos criativos em diferentes níveis
de consciência.
Assim, essa publicação não se caracteriza por conclusões sólidas, verdades,
mas antes por um relato de percepções a partir de uma experiência, e, com
essa aqui (nesse papel), lança-se uma provocação específica, composta por
questionamentos, com potencial para atravessar processos criativos em
dança site specific que possam levá-los para outros níveis de consciência
em suas práticas.
Então nada mais específico que finalizar este texto com algumas outras
perguntas específicas:
Por que criamos, hoje, obras em espaços não convencionais? O que nos move a
fazer isso? Estamos conscientes da nossa prática, vinculando forma e conteúdo?
Criamos fora da caixa preta porque nos interessamos genuinamente em
pesquisar em outros contextos, buscando novos atritos e diálogos para novas
9
potências poéticas? Ou porque simplesmente é a forma que encontramos de
nos adaptar e sobreviver como artistas, em condições precárias, em que cada
vez mais a dança é colocada em espaços “alternativos” ou áreas de convivência,
em razão das dificuldade de produção em viabilizar pautas para se apresentar
nos teatros? E, por último, como o surgimento de editais em São Paulo como
Novos Coreógrafos : Novas Criações: Site Specific, norteia essas produções?
11
Escrevo estas palavras agora, são 1 e 34 da manhã. Mas não, agora é
sempre outra hora. A cada vez outra hora. Agora que você lê o texto, 1 e
34 da manhã invade o horário da sua leitura, com uma imagem de noite
talvez, ou de relógio, ou de cansaço, e se perdem – talvez – num possível
meio-dia muito mais forte e ruidoso.
Agora que são 1 e 38 e a chuva acabou, esse agora não existe mais.
Agora que você lê esse texto. São outras coisas, chuva, acabou, uma e
trinta e oito: essas coisas são outras coisas.
Site-specific readingJOANA FERRAZ
Desde que começou a ler esse texto, uma voz ressoa cada palavra lida na sua
cabeça. Uma voz que surgiu da sua leitura. E muito provavelmente essa voz não
irá mudar até o fim do texto. Ela vai te acompanhar.
Se você me conhece, talvez esteja lendo com a minha voz, mas eu não escrevo
com essa voz. Escrevo com uma outra voz, que apareceu para mim com
esse texto.
Uma voz que ressoa na minha cabeça. Essa voz tem um ritmo e um tom e
isso interfere em como escrevo. Interfere na minha pontuação e mudança de
parágrafo e escolha das palavras.
Quero escrever com outra voz. Agora são 1 e 48 e chove muito. Muito. De um
jeito que desassossega o espírito.
Nunca antes escrevi espírito em um texto. Outro dia, sentei com alguém que
disse que estava cansado desses textos que falam do próprio texto. Desculpa
pessoa. Te canso mesmo à distância e sem você saber.
Mas esse texto é sobre essa voz na sua cabeça, e essa ideia eu roubei de um
trabalho de outro artista. De um grupo que chama Rimini Protokoll.
Ponto. Esse texto é sobre essa voz. Ela ainda está aí
a voz do texto,
na sua cabeça.
É inevitável. Tente se desfazer dela.
Tente ler as palavras em silêncio.
Não escreverei mais sobre isso para você esquecer que a voz está aí.
-
-
-
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Se penso em escrever algo sobre dança e site-specific é inevitável não pensar
em como escrever, nas especificidades do ato de escrever, das palavras, da
leitura. As especificidades da leitura.
Aqui, uma nota pra mim mesma, um lembrete: amanhã preciso pegar em casa
O livro por vir do Blanchot. Pensei em escrever um trecho nesse texto falando
sobre a experiência de ter circulado e o que fui pensando nesse percurso, diário
de bordo. Mas tem essa citação nesse livro, na verdade uma sessão inteira, em
que Blanchot fala sobre esse tipo de narrativa pessoal e seria bom citá-lo antes
de me atrever a escrever um texto assim. Aliás, isso já deveria ser feito de saída.
Diários são um perigo. É o que me vem da lembrança desse trecho do livro.
As especificidades da leitura.
A voz na sua cabeça. Bastou uma palavra lida.
A voz na minha cabeça, bastou uma palavra formada.
e a tentativa de def
orm ááááááááááá - laaaaaaaa
na sua cabeça e na minha.
No seu corpo.
n o i t e
n o i t e
Faz duas noites que estamos aqui parados nessa frase, no seu corpo, nessa
frase, precisamos pôr essa voz pra correr, dentro, correr sem pausa e sem
fôlego, uma paixão um foguete um dado uma palavra que comece com “la” e
seja comprida uma clavícula lam pa ri na
pensamento
a primeira vez que li O Barco Bêbado de Rimbaud não consegui, tive que ler
depois outra vez, bêbada, em francês, sem saber francês muito bem, e com
pouco vocabulário, e em voz alta, voz alta mas baixinho. A voz na minha
cabeça lendo Rimbaud em português não era nada, não movia nada, era uma
voz perdida. E tudo aquilo que existe ali naquela poesia – a cada palavra lida –
só me aconteceu com uma voz falada, numa língua estrangeira e com sotaque.
Diários são um perigo.
Escuta
vou te deixar agora um silêncio de palavra escrita, você tenta perceber por
quanto tempo as últimas palavras lidas ressoam nesse silêncio, desconstruídas
ou não, escuta
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depois de um tempo
a voz se despe das palavras e fica sem forma nenhuma ali, um véu sonoro
eco
17
São Paulo, hoje, noite de 2016.
Estou te escrevendo essa carta, mesmo que ela não chegue e que nela eu
faça muitos erros, em inglês e depois vou traduzir.
Você é meu interlocutor. Eu preciso de você para poder falar sobre as
coisas. Eu preciso falar delas sentindo que elas vão em direção a alguém.
Eu preciso falar sobre este encontro que organizei com uma amiga, nós
estávamos trabalhando juntas em um projeto, acho que já te falei sobre
este projeto.
Então, este encontro. Nós o chamamos de Ocasião 1: Por Entre Lugares
Gerais e Lugares Específicos. O nome foi uma sugestão da Clarissa, eu
gostei muito. No momento em que ela sugeriu, acho que eu estava num
barco, lendo isso numa mensagem minúscula de celular.
Ocasião 1JOANA FERRAZ
Clarissa foi nossa convidada pra pensar junto esse encontro. A proposta do
encontro era falar sobre site-specific e dança, e a idéia era lidar com o próprio
encontro como uma situação site-specific.
Não sei se chegamos lá.
Mas aceitamos o desafio e saímos nessa expedição.
Juntamos diversas referências de site-specific que nós imprimimos num lugar
que faz Xerox, ali no centro de São Paulo, perto do CRD:
uma entrevista com o Jérôme Bel.
o azul de Yves Klein.
a coca-cola molotov do Cildo Meireles.
…
…
…
outras coisas.
a foto de um globo de vidro, desses em que neva dentro, da Clarissa.
Chamamos para esse encontro convidados secretos, mandamos e-mail para
pessoas que achamos que seria legal ter com a gente nessa ocasião, pessoas
que nós gostaríamos de escutar.
Os convidados secretos não podiam se revelar como convidados durante o
encontro, eles estariam lá como todos os demais, mas responsáveis em manter
a conversa acontecendo, embaralhando as cartas, levantando questões. Uma
tentativa de descentralizar a conversa da figura de um especialista ou algo assim.
Enfim, sem saber quem é convidado ou não, todos tomam o fazer a conversa
para si. Essa ideia eu trouxe das experiências que tive com o Ghawazee Coletivo
de Ação, em encontros que chamamos de Chá com Pólvora.
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Nessa Ocasião, a maioria das pessoas que vieram eram convidadas secretas.
A conversa foi boa, começou em volta de uma mesa, com as referências
impressas ali, passando, e nós não tínhamos ideia de como tornar essa
situação uma itinerância. Porque nós dissemos, no nosso convite, que seria uma
itinerância pela cidade, durante a qual nós conversaríamos sobre site-specifc e
dança. Eu podia sentir a expectativa para essa caminhada.
Finalmente, estávamos fora da sala. Uma pequena multidão (como ser muitos
em poucos?) conversando simultaneamente e, claro, se espalhando em
subgrupos menores. A tarefa era decidir o percurso juntos, mas nós também
tínhamos alguns objetivos, lugares pré-escolhidos por onde passar. Então,
como balancear objetivos e acaso?
Nós falamos sobre o trabalho de Jérôme Bel com a Ópera de Paris.
Nós falamos sobre a diferença em ver reproduções de algumas pinturas
impressas em um livro ou a a tela com a pintura na nossa frente.
Sobre o fato de que poderíamos apontar a discussão em uma direção em que
poderíamos dizer que tudo é site-specific.
Queríamos outra direção.
Conversamos mais e eu flutuei entre dois ou mais subgrupos, linhas de conversa
eram perdidas por causa de nossas escolhas.
Nós entramos em uma igreja. Ela era um dos nosso objetivos.
Quando escolhemos os lugares por onde gostaríamos de passar no nosso
encontro itinerante, foi pensando em quanto estes lugares poderiam afetar
nossa fala, o quanto isso iria impactar a conversação.
A igreja foi uma escolha precisa, ser silenciado por ela naquele momento. Um
templo guarda em si outro tempo.
Conversas são feitas de tempo.
Estava chovendo muito, e passamos o resto da conversa embaixo de uma
grande marquise, na frente de um prédio público. Eu tinha aquele sentimento
de quando oferecemos uma festa e percebemos que alguns dos convidados
não estão confortáveis. Devo dizer que este encontro não foi confortável, foi
desajeitado, tropeçando um pouco nele mesmo, como uma girafa aprendendo
a andar ao acabar de nascer. E por essa razão eu achei maravilhoso. Conversar
sobre site-specific ao mesmo tempo construindo a situação para tanto. No
presente. Lidando com a cidade, com o clima, os desejos, as pausas, a falta
de comunicação, o desentendimento, movimento por toda parte. Desafiando a
caminhada, a conversa, jogando. Trabalhando a conversa site-especificamente.
Nós falamos sobre site-specific como método e não como uma categoria.
Não sei se chegamos lá. Mas eu faria outra vez. Eu iria outra vez.
(Ocasião 1: Por Entre Lugares Gerais e Lugares Específicos, foi a primeira
atividade realizada pelo projeto, antes de se iniciar a circulação do trabalho. Em
parceria com Clarissa Sacchelli, as artistas conduziram uma conversa-itinerante
pelo centro de São Paulo, saindo do Centro de Referência da Dança da Cidade
de São Paulo (CRD) e terminando na frente da Biblioteca Mário de Andrade.)
21
23
o que pertence ao aqui
2016
Brasil, limbo histórico, crise política,
crise social e econômica, ainda mais temer em
2017
inconformismo
não con-formismo
necessidade de escuta
necessidade de ação
um papel ativo
papel como suporte mas não só
aqui folha
cheiro de papel tinta
alfabeto latino
português e inglês e no subterrâneo muito mais
o que pertence ao aqui
Site specific para plongéeCLARISSA SACCHELLI
o que pertence ao aqui
o que pertence ao aqui
impresso
uma publicação
aqui um projeto proposto
por duas artistas independentes
financiado por um edital público nacional:
Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna / 2014
um edital de 2014 lançado no último mês de 2014
com divulgação do resultado final dos selecionados
aguardada para início de 2015
resultado publicado entretanto em agosto de 2015
e a verba para execução dos projetos selecionados
liberada apenas em dezembro de 2015
2016
este Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna
um dos raros financiamentos públicos
de abrangência nacional
para criação e circulação de dança
não lançou a edição de 2016 deste edital
que até então era anual
há sempre algo que não se vê
há sempre algo para se ver e ouvir
aqui não é apenas um lugar físico
site não é apenas um lugar físico
um espaço pensado como relação de espaços
espaço como rede de relações
um espaço não apenas como localização
o que pertence ao aqui
25
o que pertence ao aqui
espaço como extensão
site-specific
não como pertencimento a um lugar específico
o lugar específico é apenas um ponto da trajetória
essa página específica não é apenas suporte
que essa publicação não seja apenas suporte
urgência de criação dum campo de fricção
aqui nesse projeto
dança contemporânea site-specific
circulando por bibliotecas do Brasil
um site-specific em circulação
um paradoxo talvez
o que afinal é específico então
site-specific como maneira de pensar
o específico performa nesse espaço
espaço ao lado de espaços
realidade, Brasil, crise,
política pública para cultura, edital público nacional
um projeto proposto por artistas de São Paulo
dança contemporânea site-specific
em circulação por bibliotecas
circulando pelo norte, nordeste e sudeste
uma publicação com ainda mais
o que pertence ao aqui
o que pertence ao aqui
o site-specific como prática
ação após escuta
dum contexto específico
que essa publicação circule
perguntas endereçadas a múltiplos mundos
site-specific não como uma categoria
uma bibliografia específica
Jorge Menna Barreto com Lugares Moles
Fabio Morais com SITE SPECIFIC, UM ROMANCE
Miwon Kwon com One Place after Another
Robert Smithson com seu Non-sites
Ana Maria Tavares com seu Site-specific deslocado
Michel Foucault com Of Other Spaces
Hal Foster com O artista enquanto etnógrafo
e há mais
o artista como leitor
site-specific como uma prática
o artista a escutar o espaço
uma autoria codividida com o site e o leitor
o leitor também como autor
afinal o papel não como suporte
papel ativo
público não como público alvo
público como espectador-leitor
o que pertence ao aqui
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o que pertence ao aqui
um espaço para leitura
há sempre algo para ler ver ouvir
num desejo não de propor soluções
a necessidade é de criação
um campo de discussão
dúvida
pergunta
inquietação
uma vista de cima
plongée é mergulho
que esse espaço específico
seja um convite para mergulhar
por Clarissa Sacchelli
a partir deste site-specific
o que pertence ao aqui
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A Ocasião 2: em lugares específicos foi uma conversa que deu
continuidade à reflexão em torno da ideia dança site-specific, que se
iniciou na Ocasião 1: por entre lugares gerais e específicos. A Ocasião
2 foi aberta ao público e aconteceu no dia 7 de outubro de 2016, das
10 às 14 horas, no Centro de Referência da Dança, em São Paulo.
Carmen Morais foi a artista convidada a lançar assuntos sobre a prática
de criar trabalhos em dança site-specific, levantando questões acerca
da experiência de realizá-los, implicando potências e problemáticas
inerentes a essa prática, e, ainda, contextualizando-a no âmbito das
produções de dança site-specific em São Paulo.
Também foram convidados artistas com os quais as propositoras tinham
interesse em trocar informações sobre as práticas de criação em dança
site-specific. A ideia era, mais uma vez, compor uma conversa horizontal,
em que as reflexões de cada artista contribuíssem com igual peso entre si
no fazer dessa conversa.
Ocasião 2ILANA ELKIS
Falar sobre a experiência de criar e performar Plongée no CCSP, em 2011,
assim como da sua circulação, foi um dispositivo sugerido por Carmen Morais
para alinhavar este encontro conversa, que partiu de algumas perguntas, que
gerou outras, e assim sucessivamente, produzindo um inventário de fluxos de
pensamentos e questionamentos
No lugar,
No aonde,
estar lá
Por que esse
desse
nesse
não outro
?
qual é
e o que é
nesse
e não naquele
?
nesse enquanto
esse
é
31
Trabalhar com dança site specific, em São Paulo, hoje, é uma escolha artística consciente ou um recurso para sobreviver no mercado da dança, ou os dois? Por que trabalhamos, hoje, em lugares não convencionais, praças, espaços de convivências, residências, foyer etc…? Trabalhar com dança site-specific, em São Paulo, hoje, é uma escolha artística consciente ou uma demanda mercadológica, ou os dois? Estamos operando na forma site specific? Qual é essa forma? Por que estamos cada vez mais trabalhando fora da caixa preta? Banalizamos o termo site-specific, sua forma está dissociado de seu conteúdo? Quem e quando trabalhou dança site-specific? No mundo, no Brasil - São Paulo, Teresina, Manaus, Minas, Pernambuco? É possível circular um trabalho Site-Specific? A partir do momento em que ele circula, ele não é mais específico? Uns são mais ortodoxos que outros? Suas especificidades estão ligadas ao seu contexto ou ao lugar ou a uma situação? Nosso contexto biblioteca – livro, mesa, estante, pessoas lendo, vista de cima, funcionários, frequentadores, silêncio, páginas virando, vista de cima, pessoas falando baixo, introspecção, sonolência, vira página, fala baixinho, sono, vista de cima? Biblioteca com muitos frequentadores, bibliotecas com poucos frequentadores, biblioteca com os mesmos frequentadores, biblioteca sem fluxo de frequentadores? Bibliotecas sem vista de cima, com vista de baixo e por baixo? Como trabalhamos nos mesmos contextos, mas em situações diferentes? Cada vez é uma outra versão do mesmo? Plongée 1, Plongée 2, Plongée 3, Plongée 4..., e assim vai? Apresentamos em outros lugares que não sejam bibliotecas mas tenha uma vista de cima? Como fazemos uma ocupação em detrimento de outras? Preciso manter o trabalho vivo, apresentando, circulando? Como faço isso? Isso é adaptar? Quais são as características desse trabalho que o fazem específico? Quais são as características que o fazem ser site-specific e ainda Dança Site-Specific? Qual é o diálogo que a dança cria com esse modo de fazer que se diferencia das artes plásticas? Qual é o trânsito que se estabelece entre corpo e espaço nessa prática? Como estimulamos nossa percepção, e sentidos para trabalhar nesses sites? É perda de tempo categorizar uma expressão artística? Ou é simplesmente uma tentativa para levar nossas experiências artísticas para um campo da consciência? Happenings, performance, site non specific, intervenções urbanas, flash mob, site-specific, Arte Contextual etc… Não importam os nomes? Importam escolhas? Importam escolhas conscientes? Importa especificidade? Importa particularidade? Banalizamos os termos para operar na forma? Usamos os termos para localizar nossa prática? Banalizamos o termo site-specific, sua forma está dissociado de seu conteúdo? Quem e quando trabalhou dança site-specific? No mundo, no brasil – São Paulo, Teresina, Manaus, Minas, Pernambuco? É possível circular um trabalho Site-Specific? A partir do momento em que ele circula não é mais específico? Uns mais ortodoxos que outros? Suas especificidades estão ligadas ao seu contexto ou ao lugar ou a uma situação? Nosso contexto biblioteca – livro, mesa, estante, pessoas lendo, vista de cima, funcionários, frequentadores, silêncio, páginas virando, vista de cima, pessoas falando baixo, introspecção, sonolência, vira página, fala baixinho, sono, vista de cima? Não importam os nomes?
33
Pensar a criação na dança em site-specific é um convite para ser e estar,
de corpo inteiro, no espaço compartilhado com os transeuntes, público
e obra. Um diálogo sensível entre o interior (experiência sensória) e
o exterior (entorno), a fim de ressaltar a escuta e percepção de cada
agente presente.
Ao decifrar os acontecimentos cotidianos e particularidades do espaço,
para o agenciamento espacial da obra, entende-se as questões
pertinentes à semântica do trabalho como base para a estrutura final
da performance. O alargamento e porosidade dos diversos corpos
envolvidos dá volume à criação deste espaço de percepção do lugar
que habitam.
A satisfação como criadora-performer se realiza ao perceber a afetação
e o recondicionamento do olhar de todos perante o espaço e si mesmo.
Ponto de vista sobre experiência dança site specificJULIANA GENNARI
35
SÃO JOÃO DEL REI, MINAS GERAIS
biblioteca municipal baptista caetano d’almeida
fundada em 1827, foi a primeira biblioteca
pública a ser inaugurada na Província de Minas Gerais.
3 APRESENTAÇÕES DE PLONGÉE
E 3 DIAS DE OFICINA DE DANÇA E SITE-SPECIFIC
37
39
MANAUS, AMAZONAS
biblioteca pública de manaus
fundada em 1870, hoje em dia
possui um acervo de 45.000 volumes.
3 APRESENTAÇÕES DE PLONGÉE
E 3 DIAS DE OFICINA DE DANÇA E SITE-SPECIFIC
integrando a programação do festival Mova-se
41
43
TERESINA, PIAUÍ
biblioteca comunitária jornalista carlos castello branco
biblioteca da universidade federal do piauí.
3 APRESENTAÇÕES DE PLONGÉE
E 3 DIAS DE OFICINA DE DANÇA E SITE-SPECIFIC
em parceria com o balé da cidade de teresina
45
47
OLINDA, PERNAMBUCO
biblioteca municipal de olinda
uma das mais antigas construções da cidade,
foi criada em 1830.
3 APRESENTAÇÕES DE PLONGÉE
E 2 DIAS DE OFICINA DE DANÇA E SITE-SPECIFIC
integrando a programação do festival Cena Cumplicidades
oficina em parceria com os grupos Magiluth e Coletivo Tenda Vermelha
49
Pingo. Pingo.
Começo a escrever o texto antes de chegar aqui, sinto um cheiro
nauseabundo, maconha, mijo, meus pés desviam da merda e de repente
esse mármore perene, passo a porta, detrás da janela, agora nas minhas
costas, deve ser um bom esconderijo para um baseado. Estou debaixo
da ponte, goteira. Goteira. Abro a porta e é de suor esse cheiro denso
que me arrebata de imediato, sinto que invado um ensaio alheio, com
certeza de um grupo, o cheiro é úmido, ainda estão aqui. Abro e fecho
a porta com força para fazer vento.
Infiltração debaixo do viaduto do cháISABEL MONTEIRO
Imagino vinte e oito bailarinas e um bailarino de dezesseis anos nos seus
grandpliés, aquele primeiro do dia que estala o joelho das duas meninas das
pontas da barra que se riem abafadas porque o som foi em uníssono. Goteira.
Cabem duas bailarina em cada divisão da barra, o garoto grande não cabe,
fica na ponta espremido.
Hoje instalaram o ventilador e, na sala de espetáculo, cinco técnicos trazem o
ar condicionado split, vai conter a marofa.
O Thêatro de 1903 tem ligação com este porão por um corredor subterrâneo
onde ficavam as baixas escalas da orquestra, os bailarinos e todo o pessoal
da faxina. O túnel foi bloqueado por volta de 1968, depois que Klauss
V. fez as bailarinas queimarem suas sapatilhas de ponta e tentar fuga para
este submundo.
Tem barras por todos os lados nesse lugar, até na antessala do banheiro tem
barra, minha mão traz o calo daquele momento diário de esganiçar o ferro
para alcançar o equilíbrio no retiré, para não mandar a professora tomar no
cu – imagino o menino da ponta da barra pensando.
Hoje, meu coração só acelerou quando pensei em sentar nesse linóleo preto
e digitar palavras. Olhei pela janela e as nuvens carregadas me tiraram a
coragem de levar o computador nas costas, e ainda a culpa de chegar com
um Apple debaixo do viaduto. Aí, decerto, eu alongo, respiro, saudação ao sol,
de repente durmo um pouquinho. E a fome me lembrou da maçã e do João
Cabral, e o texto eu ia perdendo, mordendo a maçã, não tem problema se
melar a folha: formiga não faz ninho em caderno, depois eu digito tudo isso e
olho. Goteira
escrever à mão é uma tarefa mais assimétrica do que digitar. Será que as
crianças não têm mais esses músculos hoje em dia, os meus estão atrofiados.
Respira fundo e aguenta, mais dez segundos, vai tirando aos poucos a mão
51
direita da barra, mas não pensa em nada, só no umbigo, umbigo, umbigo,
umbigo, acorde final, plié.
Goteira.
“Confirmar o Círculo com os pés” – escreveu Gonçalo.
desenhar um círculo no chão
fazer um círculo com os braços, bem redondo, mãos na direção do umbigo.
Depois enrolar a coluna, alongar atrás das pernas, dobrar os joelhos e fazer
bolinha, um tatu bola no chão, bem redondo, goteira.
Eu faria grandpliés em oito tempos, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 goteira.
E se desenho um quadrado com quatro pingos e quero transformá-lo em um
círculo, coloco mais oito pingos: eis um círculo bem redondo.
. .
. .
.
. .
. .
. .
.
[ligue os pontos]
então são oito pessoas, oito pingos de cabeça, para formar um círculo
bem redondo.
O balé é geometria, meu caro, e você é só um pingo. Sobe aqui na frisa para
você ver, quer aparecer? Vai fazer cinema!
Eu sou um pingo, meu caro.
E a revolução quer invadir este espaço, chão de mármore, piso de madeira.
Que essa gente é foda, mudou o governo, acabou a ciclovia e essa revolução
acaba num instante e a galera sem teto que ocupou aqui foi expulsa e eu nem
sei se rolou quebra pau e eu tenho uns trinta metros quadrados de linóleo, um
ventilador e estou com a bunda afundada no chão a escrever – no lugar de dar
piruetas pelo espaço e aumentar o caldo desse suor, isso é dinheiro público e
eu sou só um pingo.
Que vergonha, meu Deus. Goteira
e ai que alívio que o Gonçalo fala que escrever é corporal e orgânico e alguém
falou que a arte é importante, porque o Gonçalo mesmo escreve por necessidade
fisiológica – foi ele quem disse
goteira. Pingo.
Tenho pensado sempre que um salto a mais pode significar um salto a menos.
Poupar o corpo
ficar atento para não quebrar, torcer, romper.
Como é mesmo aquela historia de que dança é vida, e ouvir os médicos, o
corpo não é feito para isso e me dar conta de que o corpo foi moldado para o
meu ofício e eu sei ver de longe o corpo da psicanalista minha mãe, em toda
esquina que houver uma
com mais de quarenta anos.
E tantas são as faltas no corpo.
buracos e concavidades.
E será que a dança está sempre à procura do círculo;
Um desejo constante pelo redondo – seja na forma do corpo,
Seja no corpo no espaço
53
Será?
A bandeira do Japão.
o joelho
a palma da mão
a sola dos pés
A bandeira do Japão.
o joelho
a palma da mão
a sola dos pés
|
as chagas de cristo.
o pé se encaixa no ísquio
o cotovelo na sola do pé -
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|
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|
|
|
Para acabar com a dualidade frente trás,
homem ereto, eu
quero ser bola,
como a caligrafia
aprender a fazer os círculos das letras como
os meus seios
goteira.
55
Este texto é uma reflexão sobre danças criadas para um lugar específico
e que se adaptam a outro lugar mantendo seus processos e pesquisas.
Sobre como se dá a leitura de uma criação em dança que se opõe a
lógicas cristalizadas de realização. Uma reflexão que surgiu em uma das
falas de Joana Ferraz e Ilana Elkis sobre o projeto Plongée, durante a
conversa realizada em 7 de outubro de 2016, no Centro de Referência
da Dança de São Paulo - CRD: quais os princípios e lógicas dessa dança?
Para tanto, aqui se articulam algumas referências sobre processos
de corpo, buscando clareza crítica aos nossos entendimentos de
adaptabilidade em dança.
De início, vamos ao caminho feito por Michel de Certeau com relação à
métis. Segundo de Certeau, a métis é capaz de intervir em relações de
forças, intervenção essa que é “em primeiro lugar a mediação de um
saber, mas um saber que tem por forma a duração de sua aquisição e a
Dança e AdaptabilidadeFELIPE CIRILO
coleção interminável dos seus conhecimentos particulares”¹. Este saber
caracterizaria a “experiência do ancião” e se compõe de muitos momentos
e de muitas coisas heterogêneas, “não tem enunciado geral e abstrato, nem
lugar próprio. É uma memória, cujos conhecimentos não se podem separar dos
tempos de sua aquisição e vão desfiando suas singularidades”².
A métis, em Certeau, ajuda-nos a construir o entendimento da imaterialidade
de uma dança: o saber mediado por ela, a espécie de memória, cujos
conhecimentos são intrínsecos ao tempo e às singularidades que a compõem.
Ou seja, o nosso entendimento de que aquilo que ela faz e o lugar compõem
reciprocamente o que ela é, sua totalidade. Assim se faz o convite à leitura
de uma criação em dança para além do palpável, de suas bases de espaço,
arquitetura, sem no entanto descartá-las. Os esforços de uma dança em relação
a uma determinada arquitetura compõem intersecções com seus princípios e
lógicas: métis, saber-memória.
Quanto menos esforço no espaço, mais saber-memória no tempo. Assim,
em menor tempo, são produzidas mais transformações no espaço. Essa é a
representação esquemática que de Certeau chama de “volta”3, crescimentos e
decréscimos que se articulam em proporções inversas. Quais as potências de
saber-memória dessa dança? Quais saberes ela convida? Segundo o autor, se
os esforços no espaço são reduzidos, surge o momento em que essas reflexões
são levantadas, assim o espaço é alterado, os corpos que ali estão passam a
compartilhar da ação, da dança em si. Constitui-se o lugar, vivo em relações de
força, para além do material, do espaço, alterando-o.
Um exemplo de alteração do espaço por meio de um reduzido esforço e
consequente emergir de saber-memória foi o solo Depois da Parede (2014):
¹ Certeau, M. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. 22.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014, p. 146.² Ibidem.³ Ver Certeau, op. cit., p. 147.
57
Uma criação que é intrínseca a um lugar, servindo de maneira única e exclusiva
a ele, cujo tempo de permanência está pautado em parâmetros intitucionais
dependentes de uma determinada estrutura física, limita-se à lógica de
“uma das cenas em que me coloquei sobre um parapeito apoiado [em
pausa] a uma das paredes do teatro, remeteu aos frequentadores do lugar a
um garoto que havia cometido suicídio dias antes, no mesmo local, pulando
do parapeito”4.
Quando aceita determinadas lógicas cristalizadas de realização, uma
dança se afasta do corpo, da própria adaptabilidade que é o corpo. Esta
adaptabilidade está entre crises e equilíbrio, incessantes movimentos chamados
de autorregulação organísmica. E o norte desses movimentos é a homeostase.
Sim, falaremos agora da lógica que o mercado impõe à dança e sobre a
biológica homeostase que compõe o corpo.
Depois da Parede. Direção: Nata
Neumann. Festival Diagonales/
Argentina, 2014.
4 Cirilo, F. Potencialidades do site specific em uma reflexão sobre a dança em paisagens urbanas. ArteRevista, São Paulo, n. 6, 2015, p. 79.
exclusividade do mercado, torna-se produto e propriedade institucional,
diferente dos parâmetros apreendidos na própria relação dança/lugar, suas
provocações e movimentos.
Aos poucos, muitas delas [danças] foram se replicando e se assemelhando, como se estivessem saindo das velhas linhas de montagem fordista. A inquietação que deveria movê-las incessantemente acabou sendo reduzida a uma lista de clichês [...]. Uma disciplinarização, na forma de um checking-list de mesmices, acabou por despotencializar o que tinha vindo ao mundo para nos ajudar a lidar com ele.5
Katz se refere aos clichês que constituíram o entendimento de coreografia nos
anos 1990. Nesse sentido, a dependência e exclusividade impostas à dança em
relação ao lugar onde acontecem são o risco de um clichê que despotencializa
a imaterialidade da dança, negando sua adaptabilidade, suas inquietações
relacionais. Neste contexto, cabe-nos questionar com Miwon Kwon “qual
status de valores estéticos tradicionais, tais como originalidade, autenticidade
e exclusividade na arte site-specific, que sempre começa com as precondições
particulares, locais e irrepetíveis do site, seja lá de que forma isso seja definido?”6.
Quanto mais a materialidade é exclusiva e isolada, menores as potências
simbólicas, políticas, experienciais e de adaptabilidade que são a inquietação
artística potente no levantar de questões para além dos artistas e para além de
um público exclusivo. Inquietação que tem nas suas imaterialidades a potência
do encontro com imaterialidades diversas, que, mesmo heterogêneas, se
conectam por uma métis, saber-memória. Essa potência de encontro que não
atende à disciplina da exclusividade a uma estrutura física, ajuda-nos a lidar
com o mundo, estando em contato com ele.
5 KATZ, H. Dança, Coreografia, Imunização em Pontes Móveis. Modos de pensar a arte em suas relações com a contemporaneidade. São Paulo: Cooperativa Paulista de Dança, 20133, p. 43.6 Kwon, M. One Place After Another. Notes on site-specificity. October, v. 80, 1997, p. 96.
59
Lidar com o mundo em seus muitos momentos e com suas muitas coisas
heterogêneas é intrínseco ao corpo, de modo que a reflexão é simples: o
corpo se adapta, a dança se adapta. “[...] na Teoria Corpomídia, nada nem
ninguém escapam às transformações permanentes que ocorrem nos corpos
e ambientes”7, sendo que “O corpo não é um meio por onde a informação
simplesmente passa, pois toda informação que chega entra em negociação com
as que já estão”8, como afirmam Katz e Greiner, no artigo “Por uma teoria do
corpomídia”. Neste movimento, o corpo permanece corpo, a dança permanece
dança. A dança em composição com sítios diferentes do seu original passa
por disposições a receber e repelir, condizer e combater, no intuito de suprir
necessidades de um equilíbrio.
Necessidades a serem atendidas não necessariamente serão sempre as de o organismo ir buscar alguma coisa, por exemplo, alimento ou proteção, ela também ocorre quando “algo está demais”, por exemplo, o organismo se vê na contingência de se livrar de excessos, se livrar de amarras, buscar liberdade.9
A homeostase é o estado de equilíbrio em que as necessidades do organismo
estão satisfeitas, mas o corpo sofre interferências do ambiente incessantemente,
portanto os movimentos de autorregulação não cessam de adquirir o que falta e
expelir o que sobra, assim o corpo, em relação e disposto ao ambiente, adapta-
se e sobrevive.
Segundo Lilienthal, essa autorregulação se dá no corpo como totalidade, não
apenas anatomicamente, mas também nas relações que estabelece com as
normas sociais, conceitos morais e características culturais, pois uma pessoa
7 Sampaio, M. E. A. Um processo de criação cênica e a Teoria Corpomídia. São Paulo: Anda, 2011.8 Katz, H. e Greiner, C. Por uma teoria do corpomídia ou a questão epistemológica do corpo. AVAE, Archivo Virtual de Artes Escénicas, 2005, p. 7. Disponível em: <http://artesescenicas.uclm.es/archivos_subidos/textos/236/Christine%20Greiner%20y%20Helena%20Katz.%20Por%20uma%20teoria%20do%20corpomidia.pdf>. Acesso em: 15 out. 2016.9 Lilienthal, L. A. Autorregulação Organísmica e Homeostase. Disponível em: <www.gestaltsp.com.br>uploads>. Acesso em: 15 out. 2016.
com o dedo indicador ferido por uma faca pode dizer: “cortei meu dedo”, como
se o dedo nada tivesse a ver com o organismo ou “me cortei no dedo indicador”,
entendendo o ferimento no corpo, que é organismo na sua totalidade e o dedo
como a localização do ferimento. Outro exemplo é “a fala de um médico sobre
seu paciente: ‘fulano está bem, os exames estão todos ótimos, ele somente
está deprimido’ como se a depressão não fizesse parte do organismo e não o
afetasse como um todo”10.
O corpo se adapta, a dança se adapta. Se a integridade do corpo, organismo
em sua totalidade, se dá para além de sua estrutura física – em normas sociais,
simbólicas, características culturais e de experiências políticas –, a integridade
da dança não é diferente. A arquitetura, o sítio, seu espaço físico compõem a
dança sempre em intersecção com seus princípios: métis, saber-memória.
Entendermos que a adaptabilidade inerente ao corpo não significa uma
obrigação em deslocar criações em dança para diferentes lugares – em
oposição a lógicas de exclusividade do mercado institucional –, porém, quando
acontecem esses deslocamentos, a adaptabilidade orgânica nas relações
entre corpo e ambiente legítima e explicita a potência em repelir, contrapor ou
condizer aos lugares onde acontecem, de maneira atenta, sensível e integrada
aos processos artísticos.
Atentos e sensíveis à nossa época e aos embates que o organismo sofre em
sua totalidade (que fique claro, nos referimos ao organismo dança), ele poderá
se manter se tivermos clareza das suas prioridades. Se estas prioridades
têm, isoladamente, a estrutura física como parâmetro, suas chances de
existir diminuem.
Assim, a dança em relação com um lugar específico não é confundida com
dança de lugar exclusivo. O exclusivo (é necessária a redundância) exclui,
10 Ibidem, p.5.
61
segrega e limita. Optar pela prática artística fora do palco italiano e suas
imposições físicas e monetárias é um ato de borrar fronteiras, entendimentos.
Um convite à relação, entre sutilezas e embates, visível e invisível, um convite
às transformações.
Esta reflexão em si é um ato de repelir excessos de dependência entre
dança e sítio, assim como os movimentos de autorregulação organísmica,
no entendimento de que a dependência e exclusividade reproduzem formas
institucionais reguladas pelo mercado, cristalizadas e aparentemente intocáveis,
inadaptáveis. Limitar uma dança à sua relação com um lugar exclusivo é um ato
não relacional, pois vai contra a natureza do corpo, da dança, do movimento.
Uma natureza de sutilezas, tempos e transformações que estão para além da
dureza material.
Que possamos rever nossos entendimentos sobre propriedade e liberdade de
uma dança, assim como do corpo, na clareza de irmos contra a reprodução
de heranças e entendimentos do corpo como instrumento e objeto de posse
patriarcal e escravocrata, que não possui tempo, experiência, saber, memória
e liberdade.
63
Dentre várias técnicas e estéticas de dança, observamos um leque de
comunicação que se transforma com o passar do tempo, proporcionando
um novo olhar e a uma linguagem mais atual. Observa-se ainda
que, site-specific dialoga com um determinado ambiente escolhido
pelo artista.
Há quem saiba o que é site-specific, ou já ouviu falar dessa técnica que
tem como objetivo criar obras de artes de acordo com o ambiente, em
um espaço determinado, é arte planejada que visa dialogar com os que
circulam pelo ambiente escolhido, e se esta arte (falo de todo tipo de
arte), for deslocada do lugar não terá o mesmo significado.
A dança como forma de arte tem a sua comunicação não verbal. E como
complemento, se introduz um novo dialeto (se assim posso chamar), site-
A dança site-specificJONATHAS SANTOS
specific, que usa um determinado lugar para montar sua obra coreográfica,
como por exemplo a dança Plongée que é um projeto de Ilana Elkis e Joana
Ferraz- criado em 2011, que usa a biblioteca como um lugar específico para
sua atuação com a técnica da dança contemporânea, e que teve seu trabalho
circulado pelo brasil com apresentação de oficinas.
Por um evento realizado pelo casarão de ideias chamado VII Mova-se, festival
de dança, tive o privilégio de participar desta oficina onde pude aprender esse
novo olhar que é dança site-specific, e sua forma de criação. Vale ressaltar,
que o ambiente se transforma e transmite a sensação e a forma de vê como
o trabalho será criado, é o modo de como lugar específico nos dá a essência
(lugar não é só uma arquitetura; o lugar pode estar em qualquer lugar).
Através de exercícios de relaxamento e alongamento realizado nas aulas,
tivemos o trabalho de sentir as sensações do ambiente, do que ele nos transmitia
e o dever de ouvir o que o corpo pedia para fazer.
Era um ouvir sem escutar, uma receita criada e usada para todos os nossos
sentidos e forma de expressão corporal, juntamente com a temperatura que no
caso, eram as sensações do ambiente para entender como a dança site-specific
é criada. Assim como as letras formam poesias, do mesmo modo é o corpo com
o ambiente, que nos dá as instruções de como irá ser executado esse corpo que
está presente como objeto do lugar.
Depois da teoria, partimos para a Biblioteca Pública do Estado do Amazonas
para a realização de um trabalho mais prático, a observação, um complemento
para entender o processo de criação site-specific na dança. Nas minhas
observações percebi o comportamento de como as pessoas se relacionavam
com aquele ambiente, sendo eles: falas sussurradas; a forma de sentar; a busca
de livros nas prateleiras; a reação do chão ao andar; diferentes sensações a
cada sala; som e a forma de como eles liam os livros, todas essas observações
nos dão a direção de como o corpo interage com o ambiente e como iremos
65
transmitir através da dança o dia a dia do lugar sendo que, ele mesmo nos dar
a música para ser coreografada e os passos em si.
Outra experiência de observação foi no Largo São Sebastião, em que as
sensações e o modo de como o corpo fala eram bastante diferentes do que na
biblioteca, como: tempo; a pressa das pessoas; turistas tirando fotos; amigos
e famílias; cheiros; sons, todas essas duas experiências de “campo” pude
perceber que a cada ambiente terei uma forma de me expressar, sentir e fazer a
dança site-specific, pois os corpos se comunicam de forma diferentes e a cada
estado presente a dança será uma assinatura do deste lugar, não podendo ser
feita em teatros, salões, bares e etc..., que não seja o lugar escolhido para a
criação da dança.
67
Núcleo Mirada. Projeto Rede Cala. Praça Júlio Prestes. Chão vermelho.
Cinco mulheres estão prestes a marchar ao som da cidade. Ritmo. Trem.
Pernas. Progresso.
Coisas móveis. Outras não tão. Coisas. Vivas outras nem tanto. Árvores.
Estátuas. Estaturas. Postes de iluminação. Cachorros. Pombos. Meu
escritório é na praça. A guarda civil atrás de mim. Elas calçam botas de
operário chão de fábrica.
Vermelho gago. Agora.
É ensaio, mas já está valendo. Ensaio. O que não é? Processo. Um saco
plástico voa ao vento. Um homem passa a olhar para mim. Olha para
mim. O que sentirá?
Marcha para a desordemRENATO JACQUES DE BRITO
Isso é o quê? É um curso? Algo que a gente pode utilizar? Utilizar? Ele diz que
é um curioso, um ambicioso. O quê?
Outro saco voa ao vento. Coisas ao vento. Voam. As leves, as pesadas não.
Policiais. Nas duas laterais da praça. O que é isso aí, meu irmão? Você faz
documento? Faço. Uma frase é tudo que alguém precisa para começar. Policiais
passam. Me olham. Todos olham para cá. Um sujeito sentado à máquina no
meio da praça. Chama atenção. Atenção aos movimentos do tai chi. Elas vão
flutuar. Daqui a pouco. Levantar voo e flutuar enquanto a estátua insiste em
ficar lá.
Marcha. Quartel degenerado. Passa por mim um sujeito que já vi, com quem já
troquei palavras. Ele olha. Tempo de reconhecer. Um sorriso. Lá uma.
Obra de ferro. Concretista. Sangue concreto. Mais um sorriso. De classe. What’s going on here? Às vezes um cheiro de cocô humano. Na semana passada um homem me disse que eu só estava sentado aqui porque era gringo. Isto daqui está um lixo, ele disse. Agora um outro me diz, com uma cara zombeteira, isso é coisa do passado. Tem.
Inicio a marcha. Em minha direção. Passam por mim. O fluxo de pessoas
aumenta. Um homem passa alisando o bigode com uma gilete inócua. Ele alisa
o bigode e cheira a gilete, alisa o bigode e cheira a gilete. Um pombo. Um casal
quer tirar uma foto minha. Eles se dizem felizes por estarmos aqui, a preservar
a cultura. É isso aí, guerreiro. As pessoas me saúdam. E aí, escrivão? Uma
policial de batom bem vermelho. Óculos escuros. Um avião particular cruza
o céu. Elas vão começar a marcha. Pequeno. Marcando. Escreve meu nome
aí. Uma mulher me imita numa máquina invisível. Tem início a marcha. Hei!
Um homem de olhar profundo se aproxima. Há muito tempo eu não vejo uma
destas. Hei! Vai e volta. Em evidência o caminhar de todos. O caminhar. Hei!
Um homem feminil fuma ao passo que nos olha, depois atira longe o cigarro.
69
Uma mulher se alinha com elas. Hei! O fluxo de pessoas a passar aumenta.
Muitas. Muitos. A caminho do trabalho. Hei! À frente. Em cima. À frente. Perto. É
teatro, isso? Mais ou menos. Um homem passa a cantar. Elas estacam. O vento
vibra as membranas de algodão e fustiga as letras recém-impressas na folha de
papel. O som da máquina. O som da bengala de um homem que parece não
entender nada. Ele olha. Difuso. Para os policiais. Que passam a três.
Hei! Homens de uniforme. Hei! O fluxo das pessoas impõe uma dinâmica. Cheio. Vazio. Denso. Espaçado. O som dos automóveis, o som do rádio dos policiais. O mato a meia altura da praça. O fluxo se intensifica. O trem acaba de descarregar pessoas. Tempos em tempo. Hei!
Desconjunta e volta. Desconjunta, gira. Hei! E volta. Um homem baixo,
atarracado, passa bem perto de mim. Elas se vão a marchar. Ao longe, grafites
alegres nas paredes. Um ônibus com os dizeres Missão Belém. Pela praça toda
a gente a marchar. E a estátua lá, parada, num gesto eterno. Pedra. Tempo que
sobe com o subir das pernas.
Uma rabiola de papagaio sacode ao vento pregada num poste de iluminação.
Sacos plásticos passam por nós a carregar pessoas com coisas dentro. E me
olham. Pessoas de todos os tipos, algumas mais imediatas, outras menos. Uma
sombra ondulante lembra uma chama em negativo. O mato a crescer agora.
Na praça. É teatro. Mais ou menos.
Muitas coisas passam por nós dentro de sacos plásticos. Elas estão de mãos dadas? A boa distância? Pedra. Tempo. O corpo sentado a escrever que os ísquios lhe doem e o tronco encurta. Rola? Eu acho que rola. Um sorriso banguela. Plim! O som do fim da linha. Plim! Simpáticas agentes de saúde passam acompanhadas de figuras frágeis. Parecem doentes. Uma magreza horrível. Um homem assobia. Prostitutas de rua? Do chão da rua. Cumprindo seu duro dever e protegendo o seu amor. E nossas vidas. Cantarolo a letra da canção. Os policiais. Essa máquina aí
é mais velha que a minha avó. Pessoas me cumprimentam como se me conhecessem. Um homem despachado passa a cantar. Ó, aí sim, hein. Melhor lugar de escrever. Mais e mais coisas. Passam, semiescondidas no interior de sacos plásticos. Puxa, isso é do meu tempo. Isso sim é ser um bom datilógrafo. O mundo moderno de hoje em dia não me encanta. A carta é tão mais sincera. Pelo celular não é tão sincero. Eu nunca mais vi uma destas.
Um pombo passa bem perto. Um Aladim passa por nós em um tapete voador.
Sério. Real. Surreal. Ao passo que elas se perguntam se podem dilatar o tempo, um
carro da guarda civil passa vagarosamente. Hei! Marcha. Homens sorriem. Hei!
Depois nós é que somos os nóia. Meu amigo, estamos em 2016. Datilografia?
O projeto é precário? É isso? Hei! Um helicóptero sobrevoa. Marcha. Duas
mulheres sentadas ali ao lado parecem comentar o que estão a ver. O que
estamos a ver? Desconjunta, gira, volta, para, alinha. Hei! Marcha. As botas
batem pretas em uníssono no chão. Tosse. Bocejo. Suspensão. Um silêncio entre
aspas. Tudo suspenso. Tomo um baita susto quando a Karime grita. Hei! Sol.
Sombra. Ou quase. Liana é a primeira a adentrar o sol. Hei! Desconjunta, gira e
reorganiza. Hei! Elas vêm sisudas na direção do texto. Concentração para lançar
a perna que voa e adianta o corpo junto. Um homem passa, a cabeça para
um lado e para o outro, em desaprovação. Algumas pessoas se aproximam,
como se viessem me dizer algo, mas nada dizem. Hei! Vêm elas. Em direção
ao texto. Alguém canta Raul Seixas ao longe. Tente outra vez. Multidão de sacos
plásticos. Passa pela máquina de datilografar. Duas mulheres. Uma sorri a
outra não. Aquelas duas seguem sentadas lá. Hei! Outras duas seguram a mão
de uma garotinha. Desconjunta, gira, reorganiza. Hei! Duas garotinhas passam
de mãos dadas. Estão espantadas com o que veem. O quê? Escreve meu livro.
Bom dia. É teatro? Tem vaga? Passa um cego atrás de mim. As pessoas pedem
explicação. Explicação? Um homem começa a marchar e girar com elas. Outro
homem se recolhe a um canto para cuspir na parede. Elas agora estão paradas.
Miram o longe. O nada. Suspensão. Descanso. Tensão. Helicóptero. Hei! As
71
botas batem pretas no chão. Hei! Meus ísquios doem. Banco duro. Sentado.
Sombra para o sol. Para a sombra. Os policiais olham. Confusos. Alguém lá
longe grita. Hei! O que é isso? Sorria, você está sendo descrito. Hei! Vocês têm
um objetivo? Vocês são uma ONG? Pergunto a uma assistente social o que ela
faz aqui. Ela e a colega trabalham com usuários de craque. Redução de danos.
Passa o Aladim outra vez sobre o tapete voador com controle remoto. É só um
delay do vento. Um pombo em sobrevoo. Cinza azul em degradê. É o metatarso
que vai primeiro ao chão, não o calcanhar. Mas sem fazer ponta. Solta mesmo
em cima da perna. Liana me pergunta se eu quero uma bota também. Bota e
boné. Revolução. Trabalha bem, hein, negão. Você é louco. Um ônibus, Rápido
Perus, passa por nós. Garotos põem as cabeças para fora da janela e dizem
coisas que eu não entendo. A estátua insiste em seu ego. Gesto. Pedra. As
pessoas me cumprimentam. Tem algo neste datilografar ao ar livre. Respeito?
Nostalgia? Algo no olhar das pessoas.
Fazer filho para encher cadeia? Melhor fumar maconha, cheirar cocaína, fumar craque, do que puxar uma arma. Ele não se parece com o que diz. E demonstra um prazer especial em realizar os gestos de quem maneja uma pistola. O prazer de fingir. Melhor do que atirar? Você é jornalista? Não, sou usuário. Lá vem o homem bomba. As pessoas começam a se repetir. Um mesmo homem que foi agora vem. Agora volta. Quatro policiais passam bem perto de mim, um deles me cumprimenta, sutil, mas firmemente, tipo policial.
Hei! O sol já está pela metade do espaço. Você é antigo, hein, companheiro.
Essa máquina funciona? Um homem antigo. Sentado frente a um objeto antigo.
A escrever coisas antigas a respeito de coisas leves que voam com o vento.
Agora. Gestos antigos para corpos breves. Os ritmos. Das pessoas. Compõem.
O ritmo delas. Um homem bem sujo para ao meu lado. Observa. Este objeto.
Pernões acompanhados de carões vêm em direção a nós, eu máquina, texto
e homem sujo. Marcham agora com toda a força. O efeito é outro. O espaço
adensa. Ao mesmo tempo em que esvazia de gente. Cheio vazio de olhar. Hei!
Você escreve o que vem à sua cabeça?
Com força as pessoas olham de outro jeito. Você preenche papel? Sim, literalmente. Algumas pessoas passam em estado, cheiro e consistência deploráveis. Pessoas em decomposição. Alguém lá longe filma o que estamos a fazer. Três jovens com carrinhos cheios de mercadoria observam. O que veem? Dois se vão, um fica. Dois esperam, um vai. Vem, Sofia, sai daí! A menina se mete no meio da marcha. Que física é esta? Quântica. Um senhor curioso. Diz coisas de modo veloz, como se dissesse duas, três palavras ao mesmo tempo, sobrepostas. Me chama de professor. E se mexe. E faz gestos. E poses. E então faz uma abertura. Ele quer saber se eu o acho parado ou em movimento. Adriane. Ela já tinha vindo falar comigo, veio novamente. Eu não sei quem vocês são, eu não sei o que vocês fazem, mas tem uma luz.
***
Começo antes do começo. Elas se aquecem. A máquina de escrever dançarinas
a marchar na praça já chama atenção. Do arco da velha, uma mulher diz.
Hoje o carro da guarda civil está longe, lá. Eu sempre quis ter uma máquina
de escrever, alguém diz. Hoje o céu é outro, mas a estátua segue lá, firme
em pedrada pose. Crianças brincam longe, se equilibram sobre os aros de
prender bicicleta. Três policiais passam. De lá para cá, tudo lá. Uma mulher de
óculos escuros a nos olhar. A olhá-las. Ela nos observa, se senta, à luz, de fim,
de dia. Hoje, tudo o que elas fazem adere ao espetáculo medonho de ontem
na câmara dos deputados. Dois policiais ao fundo. O que pensarão? O que
verão? Um garotinho passa por nós, correndo, feliz. A mulher se vai, se foi. O
73
mato da praça segue alto, descuidado ao som da sirene de um carro de polícia.
Um cara me cumprimenta, já me acostumei. Um Dia.
Emblemático. Olha a coreografia da hora aí, alguém diz. Viverá aqui? Na rua? Os assistentes sociais a circular.
A máquina a céu aberto a impressão que causa. Uma cordialidade. Um homem
grande, forte, vestido de preto, ao celular, passa por mim, e naturalmente me
cumprimenta. Outro alguém me sorri. Um grupelho de crianças passa por mim,
uma garotinha me dá tchau. Será que já viram uma destas antes? Da hora
essa máquina de escrever, alguém diz. Elas se preparam para começar. Alguém
as fotografa. Um encapuzado passa ao longe. Prédios duros. Árvores moles.
Cabeças errantes. Contornam o céu. Gente que marcha, por natureza segunda.
Um cão. Vaga. Mais cedo um pombo bebia água. É uma cadela, na verdade. E
seu olfato está interessado no conteúdo de uma mala a atravessar um homem
pela praça. Uma criança num carrinho de bebê. Há menos sacolas plásticas
no fim da tarde. Você é escritor? Me pergunta uma assistente social. Elas ainda
não começaram. Já faz um tempo que estou aqui sentado a escrever este lugar.
O que vai acontecer aqui? Um homem me pede dinheiro para completar a
passagem. Elas se abraçam, num círculo ritual. Os objetos que voam ao vento.
Os que não voam. Calças jeans. Botas pretas. Silêncio. Karime desce a escada
suavemente. Hei! Começou. Hei! Do fundo da garganta. As pessoas param a
olhar. Pernas se lançam a noventa graus. Gira, desconjunta, gira, reorganiza.
Elas olham na minha cara e gritam. Hei! Alguém a imitar o movimento delas.
Aos berros de uma maritaca se sobrepõem à sirene de um caminhão do corpo
de bombeiros. O papel se agita com o vento. Quer voar. A máquina é que não
deixa. Gira, desconjunta, gira, reorganiza. Liana leva uma câmera atada à
cintura. Olho na barriga. Hei! Os pés vão lá no alto. A respiração ofegante da
Maryah, que estacou ao meu lado. Dois cigarros acesos em paralelo no espaço
da minha visão. Outros três policiais. O que pensarão? O que verão nestas
cinco mulheres a marchar o bater forte do pé no chão? Bacias. Quadris. Elas
afligem o espaço, alteram o que vem a ser o caminhar das pessoas. Impressão
de que todos marcham agora. Hoje as pessoas parecem mais impressionadas
com o que veem, afinal hoje elas fazem mais forte do que nunca. Passa um
grupo de homens vestidos como maritacas. Verdes uniformes, detalhes em
amarelo. Nossa, alguém diz. Este é o primeiro sintoma, outro diz. Sintoma? Ao
largo, o som de uma música gospel que se solta da carroça de uma catadora de
papel. Jesus. Mais uma pessoa a imitar a marcha delas. Hei! Em minha direção.
Novo som de sirene. Em algum lugar algo pega fogo. Um sujeito de bicicleta
cruza veloz o espaço, num salto. Elas agora emparelhadas. Estacadas. Como
a estátua que insiste em ficar lá. Um garoto passa a chutar o ar. A marcha é
retomada. Hei! Do fundo da goela. Hei! Definitivamente, o fim da tarde não é
o horário das sacolas plásticas. Pela manhã eis que vão. De noite eis que não
voltam. Outra sirene. Sim, algo pega fogo lá fora. Os insurgentes atearam fogo
à prefeitura. Ao congresso. É inflamável o banco central? Felipe, lá bem longe,
nos vê. Também gosto destas coisas vistas de longe. A iluminação pública a dar
sinal de vida. Vai acendendo aos poucos. Azul. Verde. Amarelo. Luz do céu.
Luz dos postes. As luzes de um hotel, dos faróis, dos semáforos, as luzes de
freio. Elas ainda não sabem que a gravidade desta marcha está a entusiasmar
telepaticamente acontecimentos outros. Elas não sabem que estão a conjurar
forças invisíveis. Um senhor avista a marcha e faz a saudação nazista. Um
casal se senta para vê-las. Um homem passa com uma cara curiosa. Depois
também uma mulher. A força gravitacional da máquina de escrever altera as
rotas das pessoas. E enquanto isso, algo acontece e elas não sabem. Aqueles
mesmos três rapazes da semana passada. Mais uma vez param os três, com
seus carrinhos cheios de mercadoria, a olhar para nós. Hei! Neste momento,
os bombeiros tentam apagar o fogo. Uma mulher está fascinada pela marcha.
Olha, sorri, quer. Uma fronteira invisível a impede. Ela caminha de um lado
para o outro. Olha, sorri, e não sorri. Agora está a contar quantas são. Serão
cinco? Alguém berra ao fundo, parece se comunicar. Uma carreta cheia de
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lixo. Hei! Hei! Alguém passa a olhar a máquina. Outra sirene. Anoitece. Devem
ser umas seis e vinte da noite. Uma mulher corre para pegar o trem. Um
saco plástico, finalmente, um sobrevivente, adentra a cena, para ao lado de
uma pena de pombo, pausa, e segue seu caminho. Objetos que voam com o
vento. Lágrimas voam com o vento? Gira, desconjunta, reorganiza. O fim se
aproxima. Elas se alinham, em paralelo. Arfantes. Descansam. Cansadas. De
costas, Maryah desaba sob o brilho das luzes artificiais. O vermelho das sirenes
a refletir nas superfícies. O lusco fusco, a pouca luz de todas as luzes. Outra
sirene. O que acontecerá lá fora? O que fizemos sem saber que o fazíamos?
À noite a estátua é só um pedregulho. É forte, esse final, final, esse final. Elas
sobem os degraus, um a um. Um olhar de bigode. O suor nas costas delas.
Maryah desaba outra vez. Meus ísquios reclamam. Elas caminham, adentrando
lentamente o outro lado, escuro, da praça. Aos poucos elas vão aderindo à
escuridão. Caminhando até sumir no espaço.
A única que ainda vejo é Liana, que tira as botas e as oferece às pessoas que passam. Toma estas botas com a qual acabo de marchar.
Pela desordem que se dá em algum outro lugar. Tenho certeza. Eu te ofereço
estas botas. Toma, moço, toma estas botas com as quais acabo de marchar
pela desordem. Oferta sem procura. Arte? Está acabando, vai acabar. O que
fará esta mulher que nos oferece suas botas? Chris reaparece e passa por
ela. Diz algo que não ouço. Ninguém quer as botas. As pessoas passam reto.
Uma mulher quase as aceita, mas não. Liana ali, parada, no mesmo lugar.
Toma, moça, toma esta desordem. Um filme. Moça, toma. Uma mulher então
aceita as botas e a desordem as leva consigo. Acabou. Liana se senta no chão,
desbotada. Parece acabada. Acabou.
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Site Specific – você desenvolveu um trabalho para que ele aconteça naquele
sítio específico.
Site Non-Specific – você desenvolveu um trabalho para que ele possa acontecer
em qualquer sítio.
Specific Non-Specific Site – você desenvolveu um trabalho para que ele possa
acontecer em qualquer sítio de um tipo específico.
Non-Specific Site Specific – você desenvolveu um trabalho que pode acontecer
em qualquer sítio, mas uma vez que acontece em um, ele terá características
específicas.
Specific Non-Specific Site Specific – você desenvolveu um trabalho que
especificamente tem que acontecer em qualquer sítio, mas, uma vez que
acontece naquele sítio, ele terá características específicas.
Site Specific Non-Specifically – você desenvolveu um trabalho para que ele
aconteça naquele sítio específico, mas não especificamente para aquele sítio.
Specifically Specific Site Specific – você desenvolveu um trabalho especificamente
específico para que ele aconteça naquele sítio específico.
Non-Specifically Specific Site Specific – você desenvolveu um trabalho não
especificamente específico para que ele aconteça naquele sítio específico.
Non-Specifically Specific Site Non-Specific – você desenvolveu um trabalho não
especificamente específico para que ele possa acontecer em qualquer sítio.
...ad infinitum
Glossário específico de Site Specific
DIOGO GRANATO
Apoio
A publicação ILANA ELKIS E JOANA FERRAZ ....................................................................................3
Perguntas específicas para lugares específicosILANA ELKIS ........................................................................................................5
Site-specific readingJOANA FERRAZ ...................................................................................................11
Ocasião 1JOANA FERRAZ ...................................................................................................17
Site-specific para plongéeCLARISSA SACCHELLI ............................................................................................23
Ocasião 2ILANA ELKIS .......................................................................................................29
Ponto de vista sobre experiência dança site-specificJULIANA GENNARI ..............................................................................................33
Fotos Circulação .........................................................................................34
Infiltração debaixo do viaduto do cháISABEL MONTEIRO ...............................................................................................49
Dança e adaptabilidadeFELIPE CIRILO ...................................................................................................55
A dança site-specificJONATHAS SANTOS .............................................................................................63
Marcha para desordemRENATO JACQUES DE BRITO ....................................................................................67
Glossário específico de site specificDIOGO GRANATO ...............................................................................................77
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PROJETO PLONGÉE - DANÇA NAS BIBLIOTECAS DO BRASIL
Organização: Ilana Elkis e Joana Ferraz
Artistas convidados do encontro/ conversa: Clarissa Sacchelli e Carmen Morais
Preparação corporal: Juliana Moraes
Produção geral: Viviane Bezerra
Produção local: Carlos Canaan (São João Del Rei) | Instituto Punaré (Teresina)
Design Gráfico: Ricardo Vincenzo
Parceiros: Casarão de Ideias, Casa de Cultura de Teresina, Ballet da Cidade de Teresina,
Espaço Texas, Grupo Magiluth, Coletivo Tenda Vermelha, Biblioteca Municipal Baptista
Caetano d’Almeida, Biblioteca Pública do Amazonas, Biblioteca Comunitária Jornalista
Carlos Castello Branco, Biblioteca Pública de Olinda
PLONGÉE
Concepção e performance: Ilana Elkis e Joana Ferraz
Trilha Sonora ao Vivo: Ricardo Vincenzo
Luz (Centro Cultural São Paulo): Lia Soares
Agradecimentos: Junior Júnior, Arnaldo Siqueira, João Fernandes, Artur Cláudio da Costa
Moreira, David Carvalho
https://www.facebook.com/plongeecirculacao/
LIVRO
Organização: Ilana Elkis e Joana Ferraz
Autores: Clarissa Sacchelli, Diogo Granato, Felipe Cirilo, Ilana Elis, Isabel Monteiro, Joana
Ferraz, Jonathas Santos, Juliana Gennari, Renato Jacques de Brito
Projeto Gráfico: Ricardo Vincenzo
Revisão: Ana Godoy
Tipologia: Futura Book
Papel: Offset 75 g/m²
Impressão: Gráfica Cinelândia
Tiragem: 100
1ª Edição
São Paulo, 2017
Este projeto foi contemplado com o Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna 2014
Realização