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REVISTA BRASILEIRA DE DIREITO CONSTITUCIONAL Tema Central: TEORIA CONSTITUCIONAL DO DIREITO Vol. 1 n. 7 JAN / JUN - 2006 A Revista Brasileira de Direito Constitucional (RBDC) é uma publicação semestral do Programa de Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Constitucional da Escola Superior de Direito Constitucional (ESDC) ISSN 1678-9547 ESDC SÃO PAULO Nº 7 - Vol.1 p./390 Jan/Jun - 2006

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Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº7 - Jan/Jun 2006 - Vol.1(Artigos)

REVISTA BRASILEIRADE DIREITO CONSTITUCIONAL

Tema Central:

TEORIA CONSTITUCIONAL DO DIREITOVol. 1

n. 7JAN / JUN - 2006

A Revista Brasileira de Direito Constitucional (RBDC) é uma publicação semestral do Programa de Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Constitucional da

Escola Superior de Direito Constitucional (ESDC)

ISSN 1678-9547

ESDC SÃO PAULO Nº 7 - Vol.1 p./390 Jan/Jun - 2006

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Revista Brasileira de Direito Constitucional (RBDC): Revista do Programa de Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Constitucional. Escola Superior de Direito Constitucional (ESDC)São Paulo: ESDC, 2006. N. 7

Periodicidade: SemestralJaneiro/JunhoISSN: 1678-9547

1. Direito. 2. Periódico. 3. Escola Superior de Direito Constitucional. 4. Direito Constitucional.5. Teoria Constitucional do Direito.

CDD 340.05 CDU 34.5

Ficha Catalográfica elaborada pelo Bibliotecário da ESDCJoão Vivaldo de Souza – CRB/8 – 6828

Indexação: Qualis – CAPES – “A” Local – Direito e Psicologia – “C” Local – Ciência Política

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Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDCISSN 1678-9547

Diretor Marcelo Lamy ([email protected]) Mestre em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP. Doutorando em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Diretor da Escola Superior de Direito Constitucional - ESDC. Coordenador do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Constitucional da Escola Superior de Direito Constitucional (ESDC).

Coordenadora GeralElaine Parpinelli Moreno Vessoni ([email protected]) Especialista em Direito Processual Civil e em Direito Processual Penal pela Escola da Magistratura de Maringá (Para-ná). Especializanda em Direito Constitucional pela Escola Superior de Direito Constitucional (ESDC). Pesquisadora Jurídica da Escola Superior de Direito Constitucional (ESDC). Professora Assistente do Curso de Especialização Lato Sensu em Direito Constitucional (ESDC). Coordenadora de Turma do Curso de Especialização Lato Sensu em Direito Civil Constitucional (ESDC).

Conselho Editorial NacionalAndré Ramos Tavares – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).Cláudio Roberto Cintra Bezerra Brandão – Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Membro da Comissão de Área de Direito da CAPES.Dimitri Dimoulis – Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep).Dircêo Torrecillas Ramos – Universidade de São Paulo (USP).Erik Frederico Gramstrup – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).Fernando Fernandes da Silva – Escola Superior de Direito Constitucional (ESDC).Flávia Cristina Piovesan – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).George Augusto Niaradi – Escola Superior de Direito Constitucional (ESDC).Gilberto Bercovici – Universidade de São Paulo (USP).Guido Fernando da Silva Soares – Universidade de São Paulo (USP).Ingo Wolfgang Sarlet – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS).José Gabriel Perissé Madureira – Instituto Paulista de Ensino e Pesquisa (IPEP) e Centro Universitário Nove de Julho.Luis Jean Lauand – Universidade de São Paulo (USP).Luiz Alberto David Araújo – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).Luiz Carlos de Souza Auricchio – Escola Superior de Direito Constitucional (ESDC).Luiz Guilherme Arcaro Conci – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).Luiz Pinto Ferreira – Sociedade Pernambucana de Cultura e Ensino (SOPECE).Maria Garcia – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).Mauro de Medeiros Keller – Escola Superior de Direito Constitucional (ESDC).Paulo Bonavides – Universidade Federal do Ceará (UFC).Pietro de Jesús Lora Alarcón – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).Ragner Limongeli Vianna – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).Sérgio Resende de Barros – Universidade de São Paulo (USP). Wagner Balera – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).Yara Maria Martins Nicolau Milan – Escola Superior de Direito Constitucional (ESDC)

Conselho Editorial InternacionalAlfonso López Quintás – Universidad Complutense de Madrid (Espanha)Diego Valadés Ríos – Universidad Nacional Autónoma de México Luis Maria Díez-Picazo – Universidad de Castilla - La Mancha (Espanha) Paulo Ferreira da Cunha – Universidade do Porto (Portugal)

Colaboradores desta ediçãoRevisão: Alessandro Thomé, Daiana Braga Botelho, Vanessa Leandro Manjon, Robson Ferreira Campos, Lucas Za-rella Moreira, Carlos Roberto Machado Junior, Magda Nascimento Silva, Annette Therezinha Galvão Resende.Diagramação: www.pixel-indesign.comTradução: Renata de Moraes Silva (inglês), Juliana Salvetti (italiano)

Publicação daEscola Superior de Direito Constitucional (ESDC)CNPJ. 03.849.248/0001-10

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REVISTA BRASILEIRA DEDIREITO CONSTITUCIONAL

N.7 janeiro/junho (2006)

Tema Central:Teoria Constitucional do Direito - Vol. 1

Main Theme: Constitutional Right theoRy

SUMÁRIO - SUMMARYArtigosArticles

Consideraciones sobre gobernabilidad y constitucionalismoConsiderations about governability and constitutionalism Diego Valadés Ríos (México) ......................................................................................................................8

NeoconstitucionalismoNeoconstitutionalismo Mauro Barberis (Itália) ............................................................................................................................18

Significado Político-Constitucional do Direito PenalConstitutional and Political meaning of Criminal Law Cláudio Roberto Cintra Bezerra Brandão ................................................................................................31

Teoria Econômica do Direito na Constitucionalidade DemocráticaEconomic Theory of Right inside the Democratic Constitutionality André Del Negri ........................................................................................................................................46

“Balanceamentos” entre valores constitucionais e teoria das fontes.“Bilanciamenti” tra valori costituzionali e teoria delle fonti Antonio Ruggeri (Itália) .............................................................................................................................56

El Marco Constitucional del Derecho Administrativo (el Derecho Administrativo Constitucional)The Constitutional Mark of Administrative Law (the Constitutional Administrative Law) Jaime Rodríguez-Arana (Espanha) ...........................................................................................................76

A teoria da Constituição como teoria do direito do Estado ConstitucionalThe Constitution theory as a theory of the right’s constitutional State Gustavo Ferreira Santos ...........................................................................................................................91

Constituição e Processo: a decisão em sede de controle de constitucionalidade vista a partir da constitucional-ização do processoConstitution and Process: the Judicial Review decision since the Constitutionalization of Process Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia .................................................................................................102

A Constituição e os direitos adquiridos na Teoria dos Direitos: entre o positivismo e o pós-positivismoThe Constitution and the Individual Rights in the Theory of Law: between Positivism and Pós-Positivism Geovany Cardoso Jeveaux ......................................................................................................................134

Teoria Constitucional-Penal aplicada à luz dos Direitos Humanos. O Ministério Público na efetivação dos prin-cípios gerais em prol das garantias fundamentais e individuais da cidadania, da segurança jurídica e do regime democrático

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Constitutional-Penal theory to hand on the torch of learning of the Human Rights. The Public Prosecution Service of rendering effective of the general principles in favour of fundamental and individual guarantees of citizenship, juridical security and democratic system Cândido Furtado Maia Neto ...................................................................................................................160

A vocação contemporânea para a constitucionalização do Direito: alguns aspectos da Constituição como suporte interpretativo das leis e códigos – o caso da interpretação conforme a ConstituiçãoThe contemporary vocation for the Right constitutionalization: some aspects of Constitution as an interpretative support of rules and codes – the interpretation case according to the Constitution André Ramos Tavares ..............................................................................................................................196

Certeza do Direito e Multiplicação das Fontes Normativas: uma reflexão sobre o contexto italiano.Certezza del diritto e moltiplicazione delle fonti normative: una riflessione dal contesto italiano Francesco Rimoli (Itália) ........................................................................................................................205

Neoconstitucionalismo: um modelo constitucional ou uma concepção da constituição?Neocostituzionalismo: un modello costituzionale o una concezione della costituzione? Susanna Pozzolo (Itália) .........................................................................................................................231

Uma Visão do Neoconstitucionalismo a partir de DworkinA vision of Neoconstitutionalism since Dworkin Gisele Mascarelli Salgado ......................................................................................................................254

Hermenêutica Constitucional, Democracia e Reconhecimento: desafios da teoria da constituição contemporâneaConstitutional Hermeneutic, Democracy and Recognition: challenges of contemporary constitution theory Giovani Agostini Saavedra .....................................................................................................................265

A experiência constitucional como aspecto do condicionamento histórico-cultural das teorias do direito: o caso da ‘jurisprudência hermenêutica’ e do constitucionalismo juridista da República de BonnThe constitutional experience as an aspect of historical – cultural conditioning of right theory: the case of “ hermeneutic case law” and the judicial constitutionalism from Bonn’s Republic Gustavo Just ............................................................................................................................................291

Democracia, Direito e Legitimidade. A crise do sistema representativo contemporâneo e os novos desafios do contrato socialDemocracy, Right and Legality. The crisis of contemporary representative system and the new challenges of social contract Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha ..........................................................................................315

A Constituição como paradigma hermenêutico da Teoria da Cidadania no Brasil e os desafios do ensinoThe Constitution how hermeneutic paradigm of the Brazilian Citizenship Theory and the challenges of the school Luciana Rodrigues Penna .......................................................................................................................347

Proposta de Teoria Fundamental da Constituição (com uma inflexão processual)Proposition of Fundamentals Constitution Theory (with a procedural inflection) Willis Santiago Guerra Filho ...................................................................................................................365

Conferências e DebatesLectures and Debates

Lion in Winter – Tomás Moro na nossa estação. Diálogos com o Direito Constitucional, o Cristianismo e a Utopia SocialLion in Winter - Tomás Moro in our station. Dialogue with Constitutional Right, the Christianity and the Social Utopia Paulo Ferreira da Cunha (Portugal) ......................................................................................................379

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EDITORIAL

A teoria da Constituição sofreu, por um longo período, uma séria indiferença quanto aos seus postulados, pois a nossa história corroborava a idéia de que suas proposições eram meras conjecturas sonhadoras de um mundo futuro.

Com a reconstitucionalização, desta vez efetiva e não meramente for-mal, operada no país pelo movimento democrático que consolidou a Consti-tuição de 1988, presenciamos o despertar da realidade constitucional.

Embora parecia-nos, naquele momento, nada mais do que uma renovação simbólica de esperanças, a conseqüente atuação do Supremo Tribunal Federal, como verdadeiro guardião da Constituição, trouxe gra-dativamente para o dia-a-dia jurídico a imperatividade dos dispositivos constitucionais.

Passados 17 anos de sua promulgação, em que vivenciamos esta revolução copérnica (sonho/realidade), a imposição da sua força normativa se faz presente em decisões judiciais de todos os recantos de nosso país. Agora, não é mais possível pensarmos o Direito sem a Constituição.

Frente a esta festejada realidade, é preciso voltar nossos olhos para rever os postulados doutrinário-constitucionais construídos sob os influxos do sonho do último século, para repensar a base teórica, os fundamentos internos deste novo Direito Constitucional realidade, e imaginar o que nos espera nos próximos tempos das comunidades regionais. A isto dedica-se este número da RBDC.

Boa leitura!

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O JURISDICIONADO E A APARENTE “CRISE” DO PRINCÍPIO DA COISA JULGADA

(Artigos)

ARTIGOS

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* Universidad Nacional Autónoma de México e Instituto de Investigaciones Jurídicas (UNAM).

Aunque hay rasgos comunes en cuanto a la valoración de la gobernabili-dad, también deben distinguirse los que resultan propios de cada sociedad. Por ejemplo, todo indica que el primero en utilizar la voz gobernabilidad fue el co-nocido constitucionalista británico Walter Bagehot, quien identificaba al orden y a la obediencia como elementos de la cultura política de su país y los asociaba con lo que denominaba governability1. La gobernabi-lidad es parte del contexto constitucional y político de un país. Los aspectos distinti-vos corresponden a la etapa de desarrollo o de consolidación que viva cada democra-cia, de suerte que el análisis comparativo sólo nos ofrece algunos elementos para contrastar realidades diferentes; los demás

factores para valorar la situación de cada sistema deben corresponder al examen de sus propias circunstancias.

Otro aspecto que resulta relevante es asociar la gobernabilidad con el siste-ma constitucional. Uno de los objetivos de esta obra es explorar esa relación, para es-tablecer hasta qué punto la gobernabilidad depende de una adecuada estructura cons-titucional.

La gobernabilidad ha sido un tema de interés para las ciencias económica y política,2 pero apenas se ha prestado aten-ción a los nexos existentes entre el orden constitucional y la gobernabilidad. Cuando se alude al Estado de derecho como uno de los factores de la gobernabilidad, por lo general sólo se atiende al sentido anglosa-

CONSIDERACIONES SOBRE GOBERNABILIDAD Y CONSTITUCIONALISMO

CONSIDERATIONS ABOUT GOVERNABILITY AND CONSTITUTIONALISM

Diego ValaDés*

Recebido para publicação em maio de 2005

Resumo: Os problemas da governabilidade foram estudados tradicionalmente pelas ciências eco-nômicas e políticas. Neste artigo o autor apresenta o relacionamento entre a governabilidade e o constitucionalismo, propondo um conceito normativo de governabilidade. Os elementos que in-tegram esse conceito são relacionados com a justicialidade, racionalidade e eficácia das decisões políticas e com a legitimidade das regras. O objetivo das decisões é garantir o exercício amplo do direito, em um campo de liberdade e de estabilidade.Palavras-chave: Governabilidade. Constitucionalismo. Legitimidade. Democracia. Autoritarismo.

Abstract: The governability problems have been traditionally studied by the economical and po-litical sciences. In this paper the author presents the relationship between governability and cons-titutionalism and he proposes a governability normative concept. The elements that integrate this concept are related with the lawfulness, reasonability and effectiveness of political decisions and with the legitimacy of the rulers. The object of those decisions is to guarantee the widest exercise of their rights, in a field of freedom and stability.Key words: Governability. Constitutionalism. Legitimacy. Democracy. Authoritarianism.

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jón de rule of law. La independencia y la funcionalidad de los órganos jurisdiccio-nales del poder influyen, indudablemente, en las características de la gobernabilidad, pero el Estado de derecho incluye otras muchas variables que también deben ser consideradas.

Ahora bien, adoptando el concepto de Estado de derecho en su más amplia acepción, todavía tendremos que remon-tarnos a la base de todo el ordenamiento jurídico: la Constitución, que es el soporte de toda la estructura del Estado. El Estado constitucional,3 por ende, guarda una rela-ción directa e inmediata con la gobernabi-lidad, porque de esta última depende la po-sitividad de la norma constitucional. Sin su aplicación efectiva, la Constitución es sólo una declaración política. A su vez, el ejer-cicio del poder sin sujeción a lo preceptua-do por su estatuto jurídico, no corresponde a un Estado constitucional, y por lo mismo tampoco pertenece al ámbito de estudio de la gobernabilidad democrática.

El poder puede generar sus propias normas. La fuerza normativa de los hechos es un fenómeno que ha sido ampliamen-te analizado a partir de los estudios de G. Jellinek; pero en este caso no se produce el fenómeno identificado como gobernabi-lidad; se trata simplemente de una forma primaria de dominación ajena al frondoso desarrollo del constitucionalismo moderno y contemporáneo.

La gobernabilidad resulta de la es-tructura constitucional de un sistema. El imperio entendido como la capacidad de hacerse obedecer por los destinatarios de las decisiones, no es una forma de go-bernabilidad, es una manera de ejercer el poder directo. Vale aquí la distinción clá-sica entre poder y autoridad: el primero como expresión de fuerza, y la segunda como resultado de la razón.4 La función de mandar, en su acepción preconstitucional,

corresponde al imperium de los romanos, entendida como el poder supremo ejercido por los magistrados5; en cambio la acción de gobernar, en un sentido constitucional, involucra formas de responsabilidad y, por consiguiente, de control político.

En la fase protodemocrática del cons-titucionalismo esos controles eran de or-den recíproco entre los órganos del poder, conforme a la concepción de Montesquieu de que el poder controla al poder; en la etapa democrática del constitucionalismo, el esquema de los controles se ha hecho más complejo y, además de los que entre sí ejercen los órganos del poder, incluye a la ciudadanía (de manera individual y orga-nizada) y a los entes descentralizados: es-tados, regiones, municipios y organismos dotados de autonomía. La gobernabilidad concierne a estas nuevas formas del poder, considerablemente más complejas que en sus orígenes.

Desde la perspectiva del gobernado, la gobernabilidad adquiere el carácter de un derecho: el derecho al buen gobierno. Para advertir este derecho es útil la teoría del status elaborada por Jellinek. Con-forme a esta teoría existen tres formas de relación de las personas con el Estado, de orden negativo, positivo y activo. En el pri-mer caso la subordinación de los individu-os al Estado llega hasta donde el derecho ordena, y la esfera de libertad de la perso-na está integrada por todo lo substraído al dominio del Estado; el segundo caso con-siste en el derecho que tienen los indivi-duos a utilizar los servicios ofrecidos por el Estado, o a beneficiarse de las acciones estatales de carácter prestacional; el tercer caso corresponde a la posibilidad del indi-viduo de participar en las actividades del Estado, como votar o desempeñar cargos públicos.6

Pueden adoptarse otros enfoques di-ferentes, particularmente en lo que atañe a

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las esferas de libertad, pero conforme a la teoría clásica esas tres situaciones o status enmarcan el ámbito de relaciones de los gobernados con el Estado (en sentido es-tricto). Ahora bien, la evolución del Esta-do constitucional contemporáneo permite identificar una cuarta forma de relación, en este caso de orden pasivo: los gobernados tienen derecho a un buen gobierno. Más allá de lo que implica el Estado de dere-cho social y democrático, que ha sido la tendencia dominante en los sistemas cons-titucionales contemporáneos, las socieda-des tiene derecho a un gobierno razonable, eficaz, oportuno, equitativo, previsor y preventivo.

Esas notas del buen gobierno impo-nen a los órganos del poder la proscripción de la arbitrariedad, entendida como la obli-gación de aplicar el derecho de manera razonable; la solución de tantos problemas como resulte materialmente posible, sin la generación a cambio de nuevas dificulta-des; la acción oportuna para eludir el sur-gimiento o el agravamiento de problemas; la promoción de condiciones sociales de equidad, y el conocimiento anticipado de los riesgos y de las opciones de solución.

En este punto la idea de buen go-bierno se enlaza con la de gobernabilidad. La acción gubernamental debe tener un sentido previsor, en cuanto a anticipar las situaciones que puedan afectar el funcio-namiento normal de las instituciones o el desarrollo deseable de la sociedad, y una vertiente de prevención, para evitar que se produzcan hechos que perjudiquen la vida social o institucional, o para atenuar los efectos nocivos de los que sean inevi-tables.

Las acciones previsora y preventi-va son parte de las responsabilidades del gobierno, e incluyen la valoración de sus propias decisiones, para que no se con-viertan en causa de acontecimientos o de

circunstancias desfavorables. Los órganos del poder deben valorar el impacto de sus decisiones o de sus omisiones, de la misma manera que debe hacerlo respecto de las decisiones u omisiones que se tomen por otras instancias nacionales o internaciona-les. Cuado los acontecimientos sorprenden a los gobernantes, reducen su capacidad de respuesta y por ende introducen un ele-mento de imprevisión que desnaturaliza al Estado constitucional. La positividad del orden constitucional implica que los ór-ganos del poder cumplan plenamente con sus cometidos y satisfagan las expectativas sociales que se desprendan de lo que la Constitución tenga establecido.

Las decisiones y acciones de los ór-ganos del poder también deben ser oportu-nas. La importancia del tiempo en la fun-ción gubernativa es crucial. Las medidas adoptadas de manera prematura o aplaza-das sin una causa que lo justifique, produ-cen daños evitables o dejan de generar los beneficios que en otras condiciones se ha-bría esperado de ellas. Los ordenamientos constitucionales establecen, en algunos ca-sos, los plazos dentro de los que se deben producir ciertas acciones, y también llegan a fijar términos; pero de manera general la amplia función gubernativa queda sujeta, en cuanto a su oportunidad, a las faculta-des y obligaciones que las normas estable-cen respecto de los titulares de los órganos del poder.

Por eficacia puede entenderse la uti-lización razonable y satisfactoria de los re-cursos del Estado (en este caso, en sentido amplio). Es razonable aquello que permite alcanzar los máximos resultados para aten-der las necesidades colectivas, con el me-nor sacrificio (esfuerzo) social posible. Es satisfactorio aquello que permite la aten-ción de las demandas colectivas mediante la utilización transparente de los recursos disponibles. Entre estos recursos quedan

Diego ValaDés

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comprendidos los humanos, los financie-ros, los organizativos, que básicamente conciernen a la función administrativa, y los políticos. Estos últimos incluyen dos aspectos fundamentales: los instituciona-les, que corresponden a las funciones legi-ferante y jurisdiccional, y los de mediaci-ón política, a través de los que se alcanzan acuerdos y compromisos que facilitan los cambios o generan estabilidad.

Las acciones de contenido preventi-vo pueden considerarse soluciones “pre-coces”, porque se adoptan antes de que un problema emerja; la negociación cons-tructiva, que denota la existencia de una cultura de gobierno que permite utilizar al máximo las posibilidades ofrecidas por la estructura constitucional; el fortaleci-miento de las instituciones, para conjurar la aparición de crisis y para que, cuando surjan, puedan ser procesadas conforme a procedimientos constitucionales.

Llegados a este punto conviene en-fatizar que, al hablar de gobernabilidad, se está involucrando la responsabilidad que concierne a todos los órganos del poder. Debe tenerse cuidado en no hacer recaer la responsabilidad sólo en el órgano tra-dicionalmente conocido como ejecutivo o de gobierno (stricto sensu). En un Estado constitucional la tarea de gobernar, y el de-sempeño que estimamos característico de la gobernabilidad, corresponde a todos los órganos investidos de competencia para ejercer actos de autoridad.

Las consideraciones que asocian la gobernabilidad sólo con los órganos de gobierno (stricto sensu), no se adecuan a la naturaleza del Estado constitucional; obedecen, en cambio, a un concepto que deriva de la tradición autoritaria, conforme al cual las decisiones y las acciones del po-der en su conjunto eran adoptadas por una persona por un grupo cercano al titular del órgano de gobierno.

La fórmula del óptimo de Pareto ofrece un modelo adecuado para diseñar instituciones y políticas que garanticen la gobernabilidad democrática. En ese sen-tido, habrá una situación constitucional-mente razonable cuando para definir la estructura y el funcionamiento de las ins-tituciones se adopte el criterio de que una situación es mejor que otra, si ninguna institución resulta desproporcionadamen-te afectada y por lo menos alguna de ellas sí mejora, siempre que el costo político que representa este esfuerzo se vea com-pensado por el mayor bienestar colectivo, por la mejor garantía de los derechos de los gobernados, por una relación más si-métrica entre los órganos del poder y por un ejercicio del poder más responsable y mejor controlado.

El diseño de las nuevas instituciones constitucionales no puede prescindir de la valoración que la sociedad hace de ellas y de los resultados que ofrecen en cuanto al equilibrio entre los órganos del poder, de la prestación de satisfactores para las ne-cesidades colectivas, de las acciones jurí-dicas y políticas para mantener la cohesión social, y de las medidas para alcanzar y asegurar la justicia y la equidad en las rela-ciones sociales, entre otras cosas. Además, así como Mirkine-Guetzévitch advirtió, en la primera posguerra, que el gran proble-ma del poder que debía resolver el Estado constitucional era construir un “parlamen-tarismo racionalizado”,7 hoy, en América Latina, la cuestión a resolver, en esa mate-ria, consiste en estructurar y hacer funcio-nar un “presidencialismo racionalizado”.

Los problemas de la gobernabilidad tienen que ver con los múltiples temas concernidos con el Estado constitucional. Debe tenerse en cuenta que la gobernabi-lidad constitucional supone un proceso de racionalización del ejercicio del poder. Los fundamentos del poder se encuentran en la

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legitimidad, en cuanto a su origen, y en la racionalidad, en cuanto a su ejercicio. El poder que no resuelve conflictos y que, por el contrario, los exacerba, no es racional.

El Estado constitucional tiene que re-solver las múltiples dificultades que plan-tea la vida de una sociedad abierta, plural y altamente competitiva que, si n o cuenta con un buen diseño constitucional, puede propender a la fragmentación política y a la polarización social. Los sistemas consti-tucionales contemporáneos deben proveer un amplio abanico de soluciones para los múltiples temas concernidos con la gober-nabilidad, tales como la legitimidad de las instituciones y de sus titulares; las relacio-nes entre los órganos del poder; los instru-mentos de control político y jurisdiccional; el sistema representativo y de partidos, y la opinión pública, por ejemplo. En tanto que corresponden a un proceso cultural, las respuestas constitucionales para la go-bernabilidad incluyen, por lo menos, cinco grandes rubros:

Primero, superar el autoritarismo, mediante la reforma del Estado. Ésta es una expresión polémica, y la utilizo aquí para denotar los cambios constitucionales que tengan por objeto la estructura, el fun-cionamiento y la relación entre sí de los órganos del Estado, y el régimen de las relaciones entre los gobernados y los órga-nos del poder.

Segundo, establecer la equidad so-cial, para combatir y superar las condi-ciones de desigualdad, de exclusión, y de concentración de la riqueza; de la equidad cultural, para auspiciar el pluralismo y re-ducir a los mínimos posibles la violencia familiar; de la equidad económica, me-diante la regulación de los flujos financie-ros internacionales, la adopción de un sis-tema crediticio responsable y eficiente, y la reforma fiscal; y la equidad jurídica, que ofrezca a las personas la ampliación de los

derechos fundamentales y la certidumbre de sus garantías, y acceso a la justicia.

Tercero, proteger el ambiente, me-diante un marco normativo que facilite las acciones nacionales e internacionales en la materia.

Cuarto, ofrecer seguridad, física, pa-trimonial y jurídica, sin menoscabo de las libertades.

Quinto, impulsar el desarrollo social, mediante la formación de capital humano, de capital social, y con la adopción de po-líticas de investigación e innovación tec-nológica.

El diseño de las nuevas instituciones constitucionales se debe hacer en función de las necesidades de atender esos cinco rubros, y atendiendo a la valoración que la sociedad hace de ellas y de los resultados que ofrecen en cuanto al equilibrio entre los órganos del poder, a la prestación de satisfactores para las necesidades colec-tivas, a las acciones jurídicas y políticas para mantener la cohesión social, y a las medidas para alcanzar y asegurar la justi-cia y la equidad en las relaciones sociales, entre otras cosas. Una reforma concebida así, puede asegurar la estabilidad de las instituciones, de las relaciones sociales y de la economía.

Con un sentido semejante al de go-bernabilidad y de buen gobierno, se utiliza también la expresión “calidad de la demo-cracia”8. Con diferentes enfoques, pero con un mismo objetivo, se está tratando de identificar los elementos objetivos que ofrezcan indicadores objetivos de la gober-nabilidad. Los criterios, como se verá más adelante, tienden a coincidir.

Entiendo por gobernabilidad el pro-ceso de decisiones tomadas de manera legal, razonable y eficaz, adoptadas por autoridades legítimas, para garantizar a la población el ejercicio de sus derechos civiles, políticos, culturales y sociales, en

Diego ValaDés

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un ámbito de libertades y de estabilidad política y para atender requerimientos in-formados de la sociedad mediante presta-ciones y servicios regulares, suficientes y oportunos.

Deliberadamente subrayo que las decisiones además de legales, deben ser razonables y eficaces, porque no basta con la mera legalidad. Si bien es el marco de la legalidad el que sirve de base para calificar al Estado de Derecho, conforme al cual los órganos del poder quedan sujetos a diver-sas formas de control y evaluación, debe incluirse también la proscripción de la ar-bitrariedad, que corresponde a una actua-ción a más de legal, razonable. Adicional-mente, como ya se ha dicho más arriba, es indispensable que por eficacia entendamos el proceder transparente que, sumando a los demás factores, asegure que los órga-nos del poder arreglen su conducta a una exitosa disminución de la corrupción.

Esas decisiones, por otra parte, sólo pueden ser consideradas dentro del proceso de gobernabilidad si son tomadas por auto-ridades legítimas (por el origen y por el de-sempeño). El origen de las autoridades es legítimo cuando se observa especialmente el principio electivo, único válido en las repúblicas democráticas; pero, como fenó-meno cultural, también es relevante, para los efectos de la legitimidad, la percepción que la sociedad tenga, así del origen como del desempeño de las autoridades. La per-cepción social juega, en este punto en par-ticular, un papel de enorme importancia.9

Ahora bien, la gobernabilidad no se agota por el origen y la actuación apega-da a derecho de los titulares del poder; su finalidad es asegurar las condiciones para satisfacer las demandas de la sociedad. Desde luego, no se trata de atender cual-quier tipo de requerimiento; los relevan-tes, para los efectos de la gobernabilidad, son aquellos que se articulan de manera

consciente, y por ende informada, porque guardan relación con lo establecido por el sistema normativo vigente o con las políti-cas de desarrollo adoptadas. Esto incluye las razonables expectativas del desarrollo generado por la inversión en materia de ciencia y de innovación tecnológica. La racionalización del ejercicio del poder in-cluye a las demandas de la sociedad; no se puede esperar que sólo los órganos forma-les del poder actúen de manera racional y que la sociedad, que es el eje del Estado, no haga otro tanto.

Las prestaciones a que tiene acceso la sociedad contribuyen a generar condi-ciones de equidad, mediante políticas dis-tributivas, prestacionales (vivienda, salud, educación, etc.) y de servicios (transporte, seguridad, etc.). Éstos, a su vez, deben ser regulares, suficientes y oportunos; de otra forma no se les podría considerar como una respuesta adecuada. Si los órganos del poder no actúan de manera tal que puedan proveer servicios con esas características, denotarían un déficit en las condiciones de gobernabilidad.

A más de lo anterior, es indispen-sable ampliar tanto cuanto sea posible el ejercicio de los derechos civiles, políticos y sociales, para que a través de los órganos jurisdiccionales o de tutela de los derechos fundamentales; de las instituciones de par-ticipación (partidos, sindicatos y otras or-ganizaciones) y de representación (en espe-cial de los congresos), y de los organismos que aseguren una fiscalidad proporcional, equitativa, razonable y distributiva, y un oportuno acceso a la justicia, la población esté en aptitud de ejercer las garantías que le provee el orden jurídico.

El conjunto de estas decisiones y ac-ciones debe llevarse a cabo en un ámbito de libertades. Los contenidos tradiciona-les, que permitieron distinguir entre las libertades de los antiguos y de los moder-

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nos, deben ser enriquecidos por los nuevos instrumentos de defensa que contrarrestan los también nuevos medios de intrusión en la vida de los individuos, y que por lo mismo representan nuevos riesgos para su libertad. Por eso deben considerarse cues-tiones tan sensibles como el derecho a la autonomía informativa y a la privacidad, y la defensa procesal de los derechos funda-mentales ante particulares, por ejemplo.

La estabilidad, por otra parte, no equivale a estancamiento político. Por el contrario, para mantener estable la vida colectiva de una sociedad que experimenta cambios culturales incesantes, es indispen-sable que el ordenamiento jurídico a su vez sea permeable a esos cambios, e incluso, cuando sea posible, los induzca. Hay, por otra parte, una capacidad autogenerativa de la norma; su fluidez y su flexibilidad son una expresión de las incesantes adap-taciones culturales a las que está sujeto. La autopoiésis es una característica del Esta-do constitucional, altamente sensible a las expresiones sociales a través de los meca-nismos institucionales (sistema electoral) e informales (medios, encuestas, etc.) de captación de decisiones y de representa-ciones colectivas.

Habida cuenta de los componentes de la gobernabilidad, puede agregarse que los factores que la hacen posible consisten en la disponibilidad de recursos, en bue-na medida en función de una fiscalidad razonable y que opere sin fugas debidas a la corrupción; en la capacidad de nego-ciación, que permite construir mayorías para legislar merced a acuerdos, alianzas y coaliciones de gobierno; en la actualiza-ción de los instrumentos normativos (re-glas y procedimientos) que determinan el funcionamiento de los órganos del poder, y en una organización dinámica del poder, basada en procesos que permitan construir el binomio mediante el que se mantiene el

equilibrio entre la reforma y la permanen-cia constitucional.

Hay varias propuestas para medir el desempeño de los gobiernos democráticos. En 1993 Robert D. Putnam10 se interesó por evaluar los procesos para la formulaci-ón, enunciación, y adopción de las políticas gubernamentales en Italia. Sostenía que en tanto que se lleve a cabo esa evaluación, será posible determinar qué tan efectivos son los procesos internos para la toma de decisiones; qué tan aptos son los gobiernos para identificar las necesidades sociales y proponer soluciones innovadoras, y qué tipo de resultados alcanzan los gobiernos. De este triple haz de preocupaciones se derivaron doce indicadores de desempeño institucional: estabilidad del gabinete, dis-ponibilidad del presupuesto, sistema de es-tadísticas gubernamentales, reforma legis-lativa, legislación innovadora, guarderías infantiles, clínicas familiares, instrumentos de política industrial, capacidad de inversi-ón agrícola, gasto en materia de atención a la salud, vivienda y desarrollo urbano, y calidad (receptividad) de la burocracia. Es-tos indicadores permitieron al autor hacer un balance cuantitativo de las condiciones de gobernabilidad de Italia.

Tres años después, Daniel Kauf-mann, Aart Kraay y Máximo Mastruzzi11, basados en encuestas y reportes de percep-ciones, elaboraron para el Banco Mundial un conjunto de indicadores de gobernabi-lidad. En este caso el interés era de mayor amplitud, porque se trataba de diseñar ins-trumentos susceptibles de medir el nivel de desempeño de los diferentes sistemas, y de permitir contrastarlos entre sí y analizar su desempeño en el tiempo.

Para esos autores los principales indi-cadores fueron: el control social (rendición de cuentas), para determinar la calidad de las elecciones e identificar los posibles ca-sos de manipulación e intimidación, o el

Diego ValaDés

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grado de limpieza, de participación y de abstención; la estabilidad, medida entre otras formas a través de los índices delic-tivos; la efectividad de los servicios, de acuerdo, entre otras cosas, con la satisfac-ción de usuarios; la calidad regulatoria, por sus efectos en el desarrollo del mercado fi-nanciero; el Estado de derecho, con un én-fasis especial en cuanto a los derechos de propiedad, y el control de la corrupción.

Más tarde, Silvio Borner, Frank Bo-dmer y Markus Kobler12 elaboraron, para la Organización para la Cooperación y el Desarrollo Económico, otra batería de indicadores para calibrar el nivel de go-bernabilidad. Ellos tuvieron en cuenta las instituciones económicas (derechos de propiedad, expropiación, cumplimiento de contratos); la estabilidad política (homi-cidios por millar de habitantes, cambios de gabinete, cambios constitucionales, crisis de gobierno, golpes de Estado, terrorismo, revoluciones, exclusión de minorías); la forma de las instituciones políticas (siste-mas electorales, control del gobierno, li-bertades públicas); la fortaleza de las insti-tuciones (capacidad recaudatoria, combate al contrabando y a la evasión, distribución de la carga fiscal); y el compromiso de las instituciones (transparencia, responsabili-dad, libertad de competencia política, se-lectividad, capacidad y neutralidad de los gobernantes, concentración y desconcen-tración del poder ejecutivo).

Por mi parte considero que, indepen-dientemente de la utilidad de los indicado-res mencionados, hay otro tipo de asuntos que mesurar, en el caso específico de Amé-rica Latina. Entre ellos deben considerarse los siguientes: la calidad del sistema repre-sentativo (reelección, rotación de elites); el impacto normativo (en el desarrollo, en la equidad, en la igualdad), la situaci-ón de grupos minoritarios (por razones de raza, religión, preferencia sexual, etc.),

la protección horizontal de los derechos fundamentales; la uniformidad legislativa (problema que se presenta, sobre todo, en el Estado federal); la receptividad y la apli-cación del ordenamiento internacional (es-pecialmente en materia de derechos fun-damentales); la cooperación internacional para el desarrollo; el acceso a la justicia; la calidad de los tribunales (incluyendo los de justicia cívica o municipal), y la natura-leza normativa de la Constitución.

La gobernabilidad democrática plan-tea una alta carga de demandas al sistema constitucional. La positividad de la Consti-tución y su reforma han sido objeto de im-portantes formulaciones en la teoría de la Constitución; empero, no contamos con un diseño para medir la efectividad de las nor-mas constitucionales, en particular a través de la forma como la aplican las autoridades y como la perciben los individuos. Los es-tudios de campo, en la materia, apenas han comenzado13. Ahora es necesario elaborar también una serie de indicadores que, más allá de la utilidad que puedan tener para las instituciones financieras y de cooperación internacionales, sirvan para evaluar el re-sultado de la aplicación de las normas para diseñar las reformas a las normas vigentes y para formular un método de reforma para las sucesivas disposiciones que se integren al orden normativo.

La actividad legiferante del Estado está directamente vinculada a la goberna-bilidad democrática, y no puede dejarse a la mera “inspiración” de los agentes polí-ticos. La adopción de indicadores más o menos confiables proveerá una orientación razonable que podrá ser seguida o no, pero que en todo caso ofrecerá un referente para apreciar los resultados de la sinergia que resulta de la norma y de la acción de go-bierno.

Una vez superada la etapa del mili-tarismo y del autoritarismo que afectó al

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hemisferio de manera endémica, las nue-vas democracias enfrentan el desafío de consolidarse. De no conseguirlo, corren el riesgo de una regresión autoritaria. Los casos que aquí se presentan muestran que las recaídas ya se han producido, aunque subsiste un ambiente colectivo que favore-ce las soluciones democráticas.

A diferencia de las experiencias his-tóricas latinoamericanas, ahora se tiende a la utilización de instrumentos constitucio-nales para restaurar formas autoritarias del poder, pero con la apariencia de avances democráticos. Es por eso que se deben construir modelos de análisis que permitan corroborar que el aspecto constitucional corresponda a la realidad institucional.

La consolidación del Estado cons-titucional supone cambios culturales pro-fundos, para los cuales es necesario dispo-ner de tiempo. Sin embargo, los apremios a los que están expuestos los estados latinoa-mericanos, por el sistemático diferimiento de las expectativas de mejora social y por la concentración de la riqueza, proyectan una fuerte presión sobre las instituciones. De los partidos se exigen posiciones más combativas y de los congresos y de los gobiernos se esperan acciones más deci-didas. Los procesos electorales han estado acompañados de la siembra de numerosos compromisos de corto plazo que resultan difíciles, cuando no imposibles, de cum-plir. Además, en términos generales los cambios constitucionales no han estado adecuadamente diseñados, por lo que se ha generado una situación institucional defi-citaria de la que se tiende a responsabilizar a los partidos y a los congresos. Esta es, por lo menos, la salida habitual de los go-biernos, para trasladar a otras instancias la responsabilidad de sus desaciertos.

En ocasiones, impelidos por el apre-mio, o llevados por la convicción de que la adopción indiscriminada de instituciones

constitucionales representa una respues-ta adecuada para dejar atrás los sistemas autoritarios, se incorporan a la Constitu-ción instituciones que se neutralizan o se excluyen recíprocamente. Los errores de-rivados de un insuficiente análisis de las interacciones institucionales conducen a nuevas formas de frustración colectiva que, a su vez, propician la reaparición de argumentos adversos al Estado constitu-cional. Es por esto que se pueden afirmar que, en la teoría constitucional contempo-ránea debe darse especial relevancia a la relación entre gobernabilidad y constitu-cionalismo.

NOTAS

1Bagehot, Walter, Physics and politics or thou-ghts on the application of the principles of the “natural selection” and “inheritance” to poli-tical society, (1876) reedición: N. York, Colo-nial Press, 1990, p. 16. Textualmente dijo: “Of Plato it might indeed be plausibly said that the adherents of an intuitive philosophy, being ‘the Tories of speculation’,have commonly been prone to conservatism in government; but Aris-totle, the founder of the experience philosophy, ought, according to that doctrine, to have been a liberal, if anyone ever was a liberal. In fact, both of these men lived when men had not ‘had time to forget’ the difficulties of government. We have forgotten them altogether. We reckon, as the basis of our culture, upon an amount of order, of tacit obedience, of prescriptive gover-nability, which these philosophers hoped to get as a principal result of their culture. We take without thought as a datum what they hunted as a quœsitum.” En español la voz es mucho más reciente; su uso se generó a partir de la gene-ralización en inglés, y apenas fue aceptada por la Academia de la Lengua Española en la 22ª edición del Diccionario (2001).2El primer estudio sistemático sobre la materia fue el elaborado por Michel J. Crozier, Samuel P. Huntington y Joji Watanuki, The crisis of de-mocracy, N. York, New York University Press, 1975. Se trata de un reporte sobre la gobernabi-

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lidad de las democracias, presentado a la Comi-sión Trilateral, con un claro enfoque compara-tivo en materia económica y política. Años más tarde, la Comission on Global Governance ela-boró otro reporte (Our global neighbourhood, N. York, Oxford University Press, 1995), en el que ya fueron incluidos problemas jurídicos so-bre la gobernabilidad, referidos al ámbito del derecho internacional.3Una obra clave de la doctrina contemporánea sobre este tema es la de Peter Häberle, El Esta-do constitucional, trad. por Héctor Fix-Fierro, México, UNAM, 2001.4Los conceptos de auctoritas, potestas, impe-rium y maiestas han sido objeto de extensas reflexiones y precisiones desde la antigüedad. Cfr., p. e., García Pelayo, Manuel, “Auctoritas”, en Idea de la política y otros escritos, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1983, pp. 135 y ss., y Domingo, Rafael, Auctoritas, Bar-celona, Ariel, 1999, pp. 51 y ss.5Cfr. Gayo, Instituciones, III, 181; Paulo, Di-gesto, I, xviii, 3.6Georg Jellinek, Teoría general del Estado, Buenos Aires, Albatros, 1954, pp. 314 y ss.7Mirkine-Guetzévitch, B., Modernas tenden-cias del derecho constitucional, Madrid, Reus, 1934, pp. 13 y ss. El autor aborda los problemas

de la racionalización del poder, pero centrándo-los en el parlamento, el federalismo, las liberta-des individuales y el control de la constitucio-nalidad de las leyes.8Véase Leonardo Morlino, Democracias y de-mocratizaciones, México, Centro de Estudios de Política Comparada, 2005, esp. pp. 257 y ss.9En función de la percepción social, Guglielmo Ferrero distinguió entre legitimidad, preligiti-midad y cuasilegitimidad. Véase El poder. Los genios invisibles de la ciudad, Madrid, Tecnos, 1988, esp. pp. 134 y ss., y 212 y ss.10Making democracy work, N. Jersey, Princeton University Press, 1993, pp. 65 y ss.11Governance matters III: governance indica-tors for 1996-2002. The World Bank, 2003.12Institutional Efficiency and its determinants. The role of political factors in economic gro-wth, París, OECD, 2004.13Véase H. Concha, H. Fix-Fierro, J. Flores y D. Valadés, Cultura de la constitución en México, México, UNAM, 2004. Se trata de una encues-ta que ya ha sido replicada, con las necesarias adecuaciones, en Argentina, por Antonio Ma. Hernández y Daniel Zovatto (Cultura de la constitución en Argentina, México, UNAM, en prensa).

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Na recente teoria do direito, italiana e espanhola, surgiu um novo termo, que talvez indica um novo conceito: respecti-vamente, o termo ‘neoconstitucionalismo’, e o conceito de neoconstitucionalismo. Na

primeira seção desse trabalho será con-tada uma breve história, ainda não muito conhecida, do surgimento tanto do termo quanto do conceito; na segunda seção será fornecida uma redefinição de ‘neocons-

NEOCONSTITUCIONALISMO*NEOCONSTITUTIONALISMO

Mauro BarBeris**

Recebido para publicação em julho de 2005

Resumo: O artigo analisa o conceito de neo-constitucionalismo usado recentemente na teoria do direito da Itália e da Espanha a fim de significar a teoria do direito característica do Estado Consti-tucional e, frequentemente, o próprio Estado Constitucional. Em sua primeira parte conta a história do surgimento do termo ‘neoconstitucionalismo’ – inventado, definido e aplicado especialmente por Escolas de teóricos de Gênova. Em segundo lugar, o ensaio redefine ‘neoconstitucionalismo’ nos termos de uma teoria intermediária entre jusnaturalismo e juspositivismo, e critica as principais teses neoconstitucionalistas. Na terceira parte, finalmente, aborda três típicos problemas neocons-titucionais: o problema da distinção entre regras e princípios; o problema da ponderação judicial; o problema dos direitos.Palavras chave: Positivismo legal. Constitucionalismo. Jurisprudência. Direito. Moral.

Riassunto: L’articolo analizza il concetto di neocostituzionalismo (it. neocostituzionalismo,, cast. neocostitucionalismo), usato nella recente teoria del diritto italiana e spagnola per indicare la teoria del diritto caratteristica dello Stato costituzionale e, spesso, lo stesso Stato costituzionale. Nella prima sezione del lavoro si racconta brevemente la storia dell’apparizione del termine, inventato, definito e applicato soprattutto da teorici della Scuola di Genova; nella seconda, si fornisce una ri-definizione di ‘neocostituzionalismo’ come teoria intermedia a giusnaturalismo e giuspositivismo, e una critica delle principali tesi neocostituzionaliste; nella terza sezione, infine, si accenna a tre problemi tipici del necostituzionalismo: il problema della distinzione fra regole e princìpi; il pro-blema della ponderazione giudiziale; il problema dei diritti.Parole Chiave: Positivismo giuridico. Costituzionalismo. Giurisprudenza. Diritto. Moral.

Abstract: The paper focuses on the concept of neo-constitutionalism (it. neocostituzionalismo, cast. neocostitucionalismo) – a concept used in recent Italian and Spanish theory of law in order to signify the theory of law typical of Constitutional State and, frequently, the Constitutional State itself. In his first section, the paper tells the story of the term ‘neoconstitutionalism’ – a term in-vented, defined and applied especially by School of Genoa’s theorists. In the second one, the paper re-defines ‘neo-constitutionalism’ in term of a third theory of law between natural law and legal positivism, and criticizes three important neo-constitutionalist theses. In the third section, finally, the paper touches three typical neo-constitutionalist problems: the problem of distinction between rules and principles; the problem of constitutional balancing; the problem of rights.Key Words: Legal positivism. Constitutionalism. Jurisprudence. Law. Morals.

* Texto traduzido por Juliana Salvetti e revisto por Marcelo Lamy e Luiz Carlos de Souza Auricchio.** Prof. ordinario di Filosofia del diritto presso la Facoltà di Giurisprudenza dell’Università di Trieste. Indirizzo: via Battisti 4/14, 16145 Genova (Italia), tel. 00.39.010. 3624101.

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titucionalismo’ - uma definição do termo mais rigorosa de muitos dos seus usos ha-bituais - e uma crítica das principais teses neoconstitucionalistas; na terceira seção, finalmente, serão indicados três exemplos de problemas típicos do neoconstituciona-lismo: o problema do princípio; o proble-ma da ponderação judicial e o problema dos direitos.

1. Uma história do conceito

O termo ‘neoconstitucionalismo’ ori-gina-se evidentemente do ‘constituciona-lismo’: termo que por sua vez indica tanto a doutrina (normativa) da limitação jurídi-ca do poder político, como as instituições positivas - em particular as constituições - funcionais para tal limitação. Essa ambi-valência de significado de ‘constituciona-lismo’ é conservada nos usos prevalentes de ‘neoconstitucionalismo’, que indicam como sempre doutrinas e instituições: ape-sar de que, como veremos na próxima se-ção, enquanto ‘constitucionalismo’ indica tanto doutrinas quanto instituições, ‘neo-constitucionalismo’ poderia ser redefinido para indicar somente doutrinas. ‘Neocons-titucionalismo’, mais precisamente, deve-ria indicar teorias (cognitivas) e doutrinas (normativas) relativas ao direito constitu-cionalizado: o direito típico daquela forma de Estado que é o Estado constitucional.

Se o próprio fato, a teoria ou doutri-na neoconstitucionalista, é fruto de mui-tas contribuições, tanto anglo-americanas (DWORKIN, 1977 e 1985), como latino-americanas (NINO, 1999), e europeu-con-tinentais (ALEXY, 1987; DREIER, 1991), o termo e o conceito de neoconstituciona-lismo são frutos, sobretudo, do trabalho de alguns teóricos da escola de Gênova: Suza-na Pozzolo pela invenção do termo: Mau-ro Barberis pela sua redefinição; Riccardo Guastini pela elaboração de um conceito intimamente interligado ao precedente, o

conceito de constitucionalização; Paulo Comanducci e Tecla Mazzarese por algu-mas das análises meta teóricas mais apro-fundadas do argumento. É o caso de avisar desde já, contudo, que nenhum desses es-tudiosos adere ao neoconstitucionalismo: ao contrário, trata-se freqüentemente de seus críticos mais ferozes.

Nos escritos dos teóricos genoveses, todavia, o termo ‘neoconstitucionalismo’ faz a sua aparição nos fins de 1990, para indicar teorias (cognitivas) e doutrinas (normativas), por um lado críticas do po-sitivismo jurídico, por outro lado não in-teiramente redutíveis ao tradicional jusna-turalismo. O termo talvez tenha sido usado pela primeira vez em uma comunicação de Suzana Pozzolo no XVIIIº Congresso Mundial de Filosofia Jurídica y Social, acontecido em Buenos Aires, em 1997, e depois publicada em Doxa (POZZOLO, 1997). Nessa conversação, e no livro con-secutivo intitulado Neoconstitucionalis-mo e Positivismo Jurídico, a autora usa ‘neoconstitucionalismo’ para indicar, sem compartilhá-las, uma série de teses inter-mediárias ao jusnaturalismo e positivismo jurídico apoiadas por autores como Robert Alexy, Carlos Nino e Gustavo Zagrebel-sky.

O conceito de neoconstitucionalismo foi depois de definido e usado sistematica-mente por Barberis em trabalhos históricos e teóricos: especificamente em manuais de Filosofia del diritto. Un’introduzione stori-ca (BARBERIS, 2000), Breve storia della filosofia del diritto (BARBERIS, 2004) e Filosofia del diritto. Un’introduzione teórica (BARBERIS, 2003 a, 2005). O neo-constitucionalismo foi redefinido pelo subscritor como teoria ou doutrina do direito intermediária ao jusnaturalismo e positivismo jurídico. O jusnaturalismo sustenta a tese da conexão necessária, o juspositivismo a tese da separabilidade, o

NEOCONSTITUCIONALISMO

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neoconstitucionalismo a tese da interliga-ção necessária entre direito e moral limi-tadamente aos Estados constitucionais, ou constitucionalizados: Estados caracteriza-dos especialmente pela rigidez constitu-cional pelo controle de legitimidade cons-titucional das leis.

Essa tese pode ser atribuída a Ronald Dworkin: talvez o primeiro e o principal dos autores hoje batizados de neoconsti-tucionalistas. Aplicando ao direito, idéias provenientes da doutrina da justiça de John Rawls e do direito norte-americano, carac-terizado pela constituição rígida e Corte suprema, Dworkin critica Herbert Hart e o positivismo jurídico: expondo-se, porém, à réplica de prosseguir uma teoria do direito nem geral (válida para todo direito), nem cognitiva (não normativa: HART, 1994). As teses Dworkin foram reformuladas por Alexy e por Nino em relação à conexão necessária entre direito e moral nos Esta-dos constitucionais (seção 2): tese que o subscritor reputa autocontraditória, porque uma conexão que vale somente para os Es-tados constitucionais não é absolutamente necessária (BARBERIS, 2003 b e 2005).

A virtude principal do neoconstitu-cionalismo, em relação ao juspositivismo tradicional, consiste ao contrário na aten-ção dirigida à constitucionalização do di-reito: onde ‘constitucionalização’ indica o processo, enfatizado pela afirmação de rigidez constitucional e controle de legiti-midade constitucional das leis, que leva a completude do direito a ser invadida por princípios e valores constitucionais. É essa a noção de constitucionalização elaborada por Guastini (GUASTINI, 1998): o qual, contudo, não se exprime em termos de neoconstitucionalismo, considerando esse último reduzível a uma das tantas formas de (neo)jusnaturalismo. Efetivamente, enquanto Pozzolo fala do neoconstitucio-nalismo sem dele compartilhar as teses, e

Barberis a fim de demonstrar a autocontra-ditoriedade, Guastini nem fala sobre isso, considerando-o evidentemente um concei-to inútil.

Contudo, o ceticismo de Guastini acerca da utilidade do conceito de neocons-titucionalismo não impediu outros notá-veis da escola de Gênova - particularmente Comanducci e Mazzarese - de desenvolver minuciosas análises do termo ‘neoconsti-tucionalismo’: análises até muito minucio-sas, ao invés disso, se considerarmos que o uso do próprio termo está decididamente não consolidado. Comanducci, especial-mente, afirma que ‘neoconstitucionalis-mo’, como ‘constitucionalismo’, indicaria não só doutrinas, mas também instituições: assim correndo risco de confundir os dois conceitos, ou de tornar inútil o primeiro (COMANDUCCI, 2002; MAZZARESE, 2002). E mais, retirar justamente a am-bigüidade e a indeterminação do ‘neo-constitucionalismo’ facilitaram o sucesso encontrado pelo conceito de neoconstitu-cionalismo na recente literatura italiana e espanhola.

Na Itália, com efeito, já são muitos os trabalhos dos estudiosos mais jovens que usam o conceito de neoconstitucio-nalismo, e o termo relativo, como se tra-tassem de igualmente dados adquiridos (BONGIOVANNI, 2000; AMENDOLA, 2003; GIORDANO, 2004, mas também, em uma resenha, FARALLI, 2001). Além dos mesmos Dworkin, Alexy e Nino, a qualificação dos neoconstitucionalistas é freqüentemente ampliada por, pelo me-nos, dois importantes autores italianos: Zagrebelsky já citado, docente de direito constitucional e Presidente da Corte cons-titucional italiana, mas também autor de Il diritto mite (ZAGREBELSKY, 1992), e, sobretudo, o Luigi Ferrajoli, teórico do direito muito conhecido também na Amé-rica latina, e defensor de uma forma de

MauRo BaRBeRis

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NEOCONSTITUCIONALISMO

positivismo jurídico efetivamente muito próxima ao neoconstitucionalismo (FER-RAJOLI, 1989).

Na Espanha, o atual sucesso da noção de neoconstitucionalismo deve-se a muitos fatores: antes de qualquer coisa, ao retorno da democracia, marcado pela constituição de 1978 e pela entrada em vigor, três anos depois, do Tribunal constitucional (LA-PORTA, 2003); depois, à atenção dada pela nova filosofia do direito espanhol ao debate teórico-jurídico internacional, e especialmente às obras de Dworkin, Ale-xy e Nino; afinal, para uma reflexão sobre constitucionalismo, paralela e antes prece-dente à reflexão italiana sobre neoconstitu-cionalismo, exemplificada particularmente pelas obras de Luis Prieto como Constitu-cionalismo y positivismo (PRIETO, 1997). O sucesso da noção de neoconstitucio-nalismo, por último, foi consagrado pela cuidadosa antologia de Miguel Carbonell Neoconstitucionalismo(s) (CARBONELL, 2003).

Essa antologia pode ser considerada atualmente, talvez, o texto referencial em relação ao neoconstitucionalismo; junto aos trabalhos de autores que podemos cha-mar de neoconstitucionalistas, como Fer-rajoli, Alexy e Alfonso Garcia, ou que são contíguos ao neoconstitucionalismo, como José Juan Moreso, Juan Carlos Bayón e Santiago Sastre, a antologia abriga também alguns textos dos inventores genoveses do neoconstitucionalismo: Guastini, Coman-ducci, Pozzolo e Barberis. Como os livros já citados, contudo, também nos textos compreendidos na antologia de Carbonell confirmam a tendência de dilatar excessi-vamente o conceito de neoconstitucionalis-mo: estendendo o seu uso pelas teorias das mesmas instituições teorizadas (POZZO-LO, 2003). A essa tendência reagiremos na próxima sessão, operando uma redefinição do termo ‘neoconstitucionalismo’.

2. Uma redefinição do conceito

Por ‘neoconstitucionalismo’, como já adiantamos, não deveriam ser entendidas nem doutrinas e nem instituições, como no caso de ‘constitucionalismo’, mas so-mente doutrinas: em especial a teoria ou doutrina do direito, intermediária ao jusna-turalismo e juspositivismo, pela qual entre direito e moral existiria uma interligação necessária, ainda que limitada aos Estados constitucionais. Segundo os neoconstitu-cionalistas, em outros termos, a tese jus-positivista da separabilidade entre direito e moral valeria no máximo para o direito do Estado legislativo do século XIX: direito cuja fonte principal, se não única, era a lei. A mesma tese não valeria mais, ao contrá-rio, para o Estado constitucional do século XX, onde não apenas a fonte principal do direito é a constituição, mas a totalidade do direito é constitucionalizada, refreada por princípios e valores constitucionais.

As constituições do século XX, se-gundo os neoconstitucionalistas, incor-porariam a moral através das suas dispo-sições de princípio (ALEXY, 1992); no Estado constitucional, de maneira especial, o direito injusto, discordando com a moral, não seria mais direito (válido), ao mesmo tempo em que contrastaria com a consti-tuição e poderia ser anulado pelas Cortes constitucionais. Os neoconstitucionalistas tendem a apresentar o Estado constitucio-nal como solução do milenar problema da justiça: os tradicionais parâmetros externos de justiça, através da constituição, se torna-riam internos ao direito positivo do Estado constitucional (ZAGREBELSKY, 1992). Note-se que ‘Estado constitucional’ indica justamente as instituições as quais muitos se referem com o mesmo termo ‘neocons-titucionalismo’: termo, portanto, que pode ser reservado às simples doutrinas.

De fato, especialmente entre os teóri-cos, que se referem àquela inédita experiên-

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cia constitucional que é a União Européia, são muito comuns os usos do termo ‘neo-constitucionalismo’, ou de locuções como ‘novo constitucionalismo’, para indicar as instituições do Estado constitucional em geral ou as instituições da União Européia especificamente (WEILER, 1999; MAN-CINI, 2000); e é provável que precisamen-te para esses usos da palavra pensem al-guns, como Comanducci e Mazzarese, em termos de doutrinas e de instituições. Mas usos de ‘neoconstitucionalismo’ para indi-car qualquer progresso recente do constitu-cionalismo são muito genéricos: dispõe-se de termos muito mais específicos - como ‘Estado constitucional’ - para indicar os mesmos progressos. Mesmo por isso ‘ne-oconstitucionalismo’ é usado aqui somente no significado de teoria ou doutrina.

O neoconstitucionalismo, nesse sig-nificado, propõe-se como uma alternativa mais atraente em relação ao jusnaturalismo e ao juspositivismo. Em relação ao jusna-turalismo, como já foi dito, o neoconstitu-cionalismo oferece uma solução positiva - a constituição, o Estado constitucional - ao antigo problema da lei injusta; em relação ao juspositivismo, o neoconstitucionalis-mo se apresenta como uma ‘superação’ da tese juspositivista da separabilidade en-tre direito e moral, a tese que seria válida no Estado legislativo, mas não no Estado constitucional. O neoconstitucionalismo, efetivamente, gira em torno da tese da co-nexão necessária entre direito e moral no Estado constitucional: tese que já implici-tamente Dworkin, e explicitamente Alexy e Nino, prosseguem em relação a três dife-rentes problemas (NINO, 1999).

2.1. O primeiro problema é cogniti-vo, ou mais precisamente definitório, rela-tivo à definição do direito: os neoconstitu-cionalistas prosseguem na tese da conexão definitória entre direito e moral nos Esta-

dos constitucionais. Afirmado igualmente, pelo menos em relação ao Estado constitu-cional, no qual a moral seria nesse momen-to incorporada na constituição, não se po-deria mais distinguir entre direito e moral, sendo direito imoral oposto à constituição, e, portanto, não-direito. Essa tese definitó-ria, desenvolvida por Alexy (ver ALEXY, 1997), pode, contudo, ser considerada ver-dadeira somente analiticamente, ou por definição: ou seja, somente sob a condição de definir o direito constitucionalizado em termos de moral. Nino defende uma tese diferente e mais plausível: poderiam ser dadas diversas definições do direito, algu-mas das quais reúnem, outras separam o direito da moral (NINO, 1999).

A tese da conexão definitória ne-cessária entre direito e moral nos Estados constitucionais, todavia, poderia até pa-recer plausível (se não se tratasse de uma contradição em termos): o termo ‘direito’ em relação aos Estados constitucionais, deveria necessariamente definir-se em alu-são à moral incorporada nas constituições: o direito constitucionalizado seria necessa-riamente interligado à moral, reivindicaria uma pretensão de correção moral e cessa-ria de ser direito em caso de graves viola-ções da moral (ver ALEXY, 1992). Exceto que, tudo aquilo que existe de premente, ou analítico, ou necessário nessa tese é so-mente o que se define ‘direito’ assim, por conseguinte todas essas conseqüências se-guem-no por definição; mas, como admite o próprio Nino, nada e ninguém podem nos obrigar a definir ‘direito’ exatamente assim.

Além disso, não é absolutamente ób-vio que nos Estados constitucionais a moral seja incorporada no direito: a incorporação, efetivamente, é admitida pelo juspositivis-mo inclusivo, mas negada pelo juspositi-vismo exclusivo (ESCUDERO, 2004). O subscritor, baseando-se em uma velha ob-

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servação do teórico institucionalista Santi Romano, sustenta que não se trata absolu-tamente de incorporação, mas de simples restituição do direito à moral: o direito po-sitivo pode contingentemente reconduzir à moral, mas não se confunde por isso com ela (BARBERIS, 2005). Restituía à moral já o direito do Estado legislativo do século XIX, através das assim chamadas cláusu-las gerais (Generalklauseln); que o direito do Estado constitucional restitua à moral através dos princípios constitucionais, na sua essência, não introduz nenhuma dife-rença qualitativa entre Estado legislativo e Estado constitucional.

2.2 O segundo problema é normativo, o mais precisamente justificativo, e é rela-tivo à justificação da aplicação (por parte dos juízes) e da obediência (por parte dos cidadãos) ao direito: os neoconstituciona-listas prosseguem na tese da conexão justi-ficativa necessária entre direito e moral nos Estados constitucionais. No Estado consti-tucional, a aplicação do e a obediência ao direito positivo seriam devidas somente se ele for idêntico à constituição, ou melhor, à moral incorporada na constituição; pelo assim chamado Teorema fundamental de Nino, efetivamente, somente a moral, em última instância, poderia justificar ações ou decisões jurídicas (NINO, 1993). Nino fala sobre esse propósito de imperialismo da moral: o direito poderia exigir aplicação e obediência não nessa tal qualidade, mas somente se conformado à moral (NINO, 1999).

A tese neoconstitucionalista da co-nexão justificativa necessária entre direito e moral nos Estados constitucionais pare-ce plausível, e antes suscetível de receber formulações mais radicais. Efetivamente, o direito positivo é moralmente justifica-do somente se conformado à moral: sem nenhuma diferença entre Estados legisla-tivos e Estados constitucionais. Se há aqui

uma conexão justificativa necessária, essa vale para qualquer direito, produzido em qualquer Estado: justamente como preten-dia, desde sempre, o jusnaturalismo sem outras qualificações. Na realidade - como observou por último Bulygin (BULYGIN, 2000), mas como já havia admitido o pró-prio Alexy (ALEXY, 1992) - não existem conexões justificativas necessárias: as úni-cas conexões necessárias são definitórias. Os neoconstitucionalistas prosseguem so-mente teses justificativas mais ou menos plausíveis, não decerto analíticas verda-deiras.

2.3. O terceiro problema é interpre-tativo, relativo à atribuição de significados às disposições jurídicas; os neoconstitu-cionalistas sustentam a tese da conexão interpretativa necessária: o direito cons-titucionalizado deveria necessariamente ser interpretado em conformidade com a moral. É esse o conteúdo de várias doutri-nas de Dworkin, em particular das teses do direito como interpretação (law as inter-pretation), da única resposta correta (one right answer) e da interpretação moral (moral reading) da constituição. O direi-to, para Dworkin, consiste em atividade de interpretação, como investigação da única solução juridicamente e moralmente corre-ta; entre os vários significados lingüísticos e jurídicos atribuíveis a uma disposição, ou seja, deveria ser necessariamente escolhido o significado juridicamente e moralmente mais justo (DWORKIN, 1977 e 1986).

A tese da conexão interpretativa ne-cessária entre direito constitucionalizado e moral - as disposições jurídicas poderiam cada vez mais exprimir diferentes normas, como admite até Dworkin, mas entre es-sas os juristas e os juízes deveriam neces-sariamente escolher a ou as normas mais idênticas à moral - é talvez a menos plau-sível das três. Na realidade, mesmo a tese

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da conexão interpretativa necessária, longe de ser analítica, é simplesmente uma tese normativa: tese muito óbvia do ponto de vista moral, mas igualmente opinável do ponto de vista jurídico. Do ponto de vista moral, é totalmente óbvio que mesmo a in-terpretação, como o resto do direito, deva perseguir a justiça; e é verdade que o Esta-do constitucional oferece aos juristas e aos juízes instrumentos para persegui-la muito mais eficazes do que o Estado legislativo.

Permanece, porém, o fato que, mes-mo no Estado constitucional, juristas e juízes devem aplicar o direito, não a jus-tiça; quando a Corte constitucional anula uma lei injusta, não a anula na qualidade de injusta - o controle de legitimidade, ou seja, não se transforma em um controle de justiça - mas porque inconstitucional. As constituições, por sua vez, remetem a princípios e valores morais, de modo que controlem mais dificilmente algumas leis disposições injustas; mas a injustiça de uma disposição constitucional não é abso-lutamente excluída: pode até acontecer que o juiz constitucional deva anular leis justas com base em disposições constitucionais injustas. O Estado constitucional pode ser somente um aperfeiçoamento imperfeito do Estado legislativo: não exatamente a solução definitiva do secular problema da injustiça das leis (BARBERIS, 2005).

Mesmo se baseando na redefinição aqui proposta - como na base das defini-ções habituais - o neoconstitucionalismo aparece como uma noção nada unívoca: existem aqui grandes diferenças, de fato, entre os seus três principais notáveis - Dworkin, Alexy, Nino - e diferenças ainda maiores se considerarmos outros notáveis como Zagrebelsky e Ferrajoli. Por outro lado, essas diferenças não são maiores que as diferenças que acontecem, respectiva-mente, entre os expoentes do jusnaturalis-mo ou do juspositivismo: todos os termos

que terminam em “...ismo” são de maneira especial expostos ao risco da indetermina-ção combinatória (BARBERIS, 2005). O neoconstitucionalismo poderia ser somen-te uma família de doutrinas concordadas entre elas por teses (não comuns a todas, mas) simplesmente aparentadas, apresen-tando meras semelhanças de família (fami-ly resemblances).

A mesma tese da conexão necessária entre direito e moral nos Estados consti-tucionais apresenta formulações sensivel-mente diferentes nos diversos autores; e formulações ainda mais diferentes apre-sentam três sub-teses que já vimos especi-ficar a primeira tese: as (sub)teses da cone-xão necessária respectivamente definitória, justificativa e interpretativa. Que nenhuma dessas três sub-teses específicas do neo-constitucionalismo seja sustentável, como de resto é insustentável também a tese ge-nérica (BARBERIS, 2005), não é, contu-do, uma razão para excluir a utilidade da noção de neoconstitucionalismo: essa po-deria convir, em última hipótese, para indi-car uma série de erros. Como veremos na próxima e conclusiva seção, efetivamente, se o neoconstitucionalismo é importan-te não o é tanto pelas teses que sustenta, quanto pelos problemas que levanta.

3. A importância do Neoconstituciona-lismo.

A maior parte das teses neoconsti-tucionalistas, como já foi visto, não é so-mente errada, mas desastrosamente errada: e desse ponto de vista entende-se - mas não se justifica - que muitos se recusem falar de neoconstitucionalismo, assimilando-o ao jusnaturalismo, como faz Guastini, ou ao juspositivismo, como faz Moreso (ver MORESO, 2001). A importância do neo-constitucionalismo, todavia, não consiste absolutamente nas teses que sustenta, mas nos problemas que levanta: que são, pois,

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os problemas principais do direito contem-porâneo. Que algo de semelhante ao neo-constitucionalismo não tenha sido ainda destacado na teoria do direito de língua in-glesa, desse ponto de vista, depende prin-cipalmente da subestimação ou da simples ignorância, típica de grande parte da ju-risprudence, em especial a americana, por tudo o que não esteja escrito em inglês.

Este comportamento chauvinista e de fundo provinciano nos confrontos da teo-ria do direito não anglófona é ainda mais injustificável em teóricos do direito liberal como Dworkin. Mesmo sendo considera-do o iniciador do neoconstitucionalismo, e ainda tendo repetidamente cortejado as filosofias hermenêuticas continentais, Dworkin declara que se interessa somente pelo direito anglo-americano, ou melhor, da jurisprudence inglesa ou americana: justamente aquilo que fazem comumen-te os seus colegas de língua inglesa, sem afirmá-lo e repetidamente sem nem mesmo sabê-lo. Apesar disso, continuando, aqui serão sinalizados os três problemas típicos do neoconstitucionalismo, e que exempli-ficam a sua importância: o problema dos princípios e da sua distinção das regras; o problema da ponderação entre princípios constitucionais; o problema dos direitos.

3.1. O problema da distinção entre regras e princípios é relativo à nova apre-ciação - operada por Dworkin ignorando toda a literatura continental sobre princí-pios, e logo abandonando a distinção - de um tipo de norma diferente das regras da tradição juspositivista: os princípios, exata-mente. Com o termo ‘princípio’, no debate moderno, nos referimos principalmente a três tipos de norma: os princípios gerais (e abstratos) da doutrina europeu-continen-tal, deduzidos por universalização de nor-mas positivas menos gerais e abstratas; os princípios de decisão (ou rationes deciden-

di) da jurisprudência de common law, de-duzidos por universalização das decisões particulares e concretas dos juízes anglo-americanos; os princípios constitucionais, expressos nos documentos constitucionais ou elaborados pela jurisprudência consti-tucional (BARBERIS, 2005).

Admitindo que todas as normas se-jam enunciados condicionais da forma ‘se x então y’ - se verificarmos o caso x, então deve seguir a conseqüência y - qual é a diferença entre regras (rules) e princí-pios (principles)? A distinção originária de Dworkin, mas também as distinções consecutivas de Alexy, Manuel Atienza e Juan Ruiz Manero (ATIENZA, RUIZ MA-NERO, 1996) são baseadas nas variantes do critério da defectibilidade defeasibility: denomina-se defectível uma norma pela qual, mesmo se verificando o caso x, não lhe segue a conseqüência y, em conseqüên-cia da verificação de exceções implícitas, não previstas, e especialmente de conflitos com outros princípios. Os princípios se-riam distinguidos pelas regras justamente na qualidade de defectíveis: verificando-se o caso, não o seguiria necessariamente a conseqüência, porque um princípio pode sempre conflitar com outros.

Na realidade, o critério da defecti-bilidade não funciona, como deixa pensar o próprio tácito abandono, por parte de Dworkin, da distinção regras/princípios: as regras, de fato, podem ser igualmente de-fectíveis como os princípios (GUASTINI, 2004). Concentrando-se nos princípios, re-gras e defectibilidade, todavia, a discussão de teoria da norma iniciada pelo neocons-titucionalismo foi cada vez mais se desen-volvendo na direção da teoria da interpre-tação e da argumentação, principalmente constitucional. Em especial, da idéia neo-constitucionalista que os princípios podem sempre conflitar entre si, desenvolveu-se a teoria do balanceamento ou da ponderação

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dos princípios: ou seja, análise da técnica, elaborada principalmente pelo Tribunal constitucional alemão, através dos quais os juízes constitucionais escolhem o prin-cípio para aplicar ao caso.

Veremos no próximo ponto do que se trata; aqui é necessário ainda expor algo sobre o problema da distinção regras/prin-cípios. A falência do critério da defectibili-dade, nas versões tanto de Dworkin quanto dos seus seguidores, abriu o caminho para critérios distintivos mais frágeis: hoje mui-tos, como Prieto, pensam que podem ser dados somente critérios distintivos quan-titativos, e não qualitativos, de modo que poderia bem acontecer o caso que uma mesma norma fosse considerada uma re-gra ou um princípio. Talvez, porém, seja necessário ainda considerar pelo menos o seguinte critério, mais forte: as regras são normas prescritivas, que regulam direta-mente o comportamento; os princípios são normas avaliadoras, que não regulam o comportamento diretamente, mas só indi-retamente, através das regras justificáveis baseadas nos próprios princípios (RE-DONDO, 2005; BARBERIS, 2005).

3.2. O problema de balanceamento (ou ponderação) dos princípios, geralmen-te ressalta o confronto entre dois princípios a fim de estabelecer de qual deles deve ser extraída a regra que decide um caso; o ba-lanceamento ou ponderação constitucio-nal, especialmente, consiste no confronto entre dois ou mais princípios constitucio-nais a fim de estabelecer qual deles deve exercer o papel de parâmetro de legitimi-dade constitucional de uma lei submetida a controle. O equilíbrio do qual se ocuparam imensamente na doutrina constitucional e na teoria do direito recente, não somente neoconstitucionalista, permite um con-fronto entre pelo menos cinco normas: dois princípios constitucionais, confrontados

para estabelecer qual deve exercer o papel de parâmetro de constitucionalidade de uma lei; duas regras do caso, justificáveis com base nos dois diferentes princípios; a própria lei objeto de controle de constitu-cionalidade.

Na tradicional teoria do direito jus-positivista, o equilíbrio deveria ser tratado sob a denominação das antinomias entre normas: em especial, como antinomia en-tre princípios constitucionais. O problema é, porém, que no conflito entre princípios não se aplicam os critérios habituais para a solução das antinomias: não o critério hierárquico, como os dois princípios têm ambos grau constitucional; não o critério cronológico, como os dois princípios são coetâneos; não o critério de especialidade, afinal, como - para usar o léxico de Ross (1958) - não se trata de antinomia total-parcial, que permite estabelecer entre os dois princípios uma relação da regra a ex-ceção, mas de antinomia parcial-parcial, que permite somente estabelecer entre os dois princípios uma hierarquia de valor, ou axiológica, estabelecendo qual dos dois tenha maior peso ou importância (GUAS-TINI, 2004).

Certamente, a Corte poderia estabe-lecer uma hierarquia axiológica fixa entre os dois princípios, decidindo de uma vez por todas qual das duas deva prevalecer (MORESO, 2002); mas as Cortes, geral-mente, se limitam em estabelecer uma hie-rarquia axiológica móvel, decidindo qual dos dois deva prevalecer somente caso a caso (GUASTINI, 2001): em um caso po-deria prevalecer o primeiro princípio, em um outro caso o segundo. Para os críticos do balanceamento, esse modo de proceder serviria para as Cortes somente para ‘ter suas mãos livres’: os juízes não se vincula-riam a uma hierarquia estável entre os prin-cípios constitucionais, a fim de permanecer árbitros de decidir caso a caso. Contudo,

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pelo menos no controle de legitimidade constitucional centralizado, ‘caso a caso’ significa, não ‘caso a caso específico’, mas ‘caso a caso genérico’: a Corte não decide sobre fatos, como os juízes de mérito, mas sobre normas gerais e abstratas.

Além disso, se os princípios reme-tem a valores morais, não parece possível evitar o balanceamento caso a caso: segun-da a teoria (meta)ética chamada pluralis-mo ético, e defendida por Isaiah Berlin e Bernard Williams, os últimos valores mo-rais, cujos princípios recuperam, não se prestam a hierarquias estáveis (BIN, 1992; CELANO, 2002). De qualquer modo, tan-to os neoconstitucionalistas, e em especial Alexy, têm freqüentemente sustentado que o equilíbrio seja uma técnica interpretati-va e argumentativa alternativa à subsun-ção: enquanto a subsunção extrai de uma regra geral e abstrata a regra particular e concreta que decide o caso, o equilíbrio escolhe o princípio aplicável. Mas, como atualmente admite o próprio Alexy, equi-líbrio e subsunção não são absolutamente incompatíveis e alternativos: ao contrário, trata-se de raciocínios compatíveis e com-plementares.

A subsunção intervém no raciocínio do juiz - principalmente ordinário, mas até constitucional, - mais vezes, antes ou depois do equilíbrio: em primeiro lugar, o juiz (ordinário) procura regra sob cujo caso poderia ser subsumido, encontrando freqüentemente mais de uma, justificáveis com base em diversos princípios; depois, o juiz (ordinário) aplica ao caso a regra justi-ficável com base no princípio vencedor do equilíbrio (PRIETO, 2003). O equilíbrio, ao invés, intervém no raciocínio do juiz - principalmente constitucional, mas tam-bém ordinário - na fase intermediária às duas fases de subsunção: o juiz escolhe en-tre os princípios que justificam a aplicação de diversas regras (ALEXY, 2003 a, 2003

b). A diferença de quanto Alexy defendia originariamente, pois, subsunção e equilí-brio não parecem absolutamente se excluir alternadamente.

3.3. O problema dos direitos – es-pecialmente, dos direitos constitucionais (MAZZARESE, 2003) - é na verdade um emaranhado de problemas, que o juspositi-vismo sempre teve dificuldade para resol-ver. Se pensarmos nos direitos do homem, ou humanos, declarados nas constituições; a tentativa juspositivista de reduzi-los às mesmas normas constitucionais positivas, como mero produto delas, desencontra-se com o notório fato que os direitos huma-nos são sempre declarados, não colocados, e que, na jurisprudência das Cortes inter-nacionais e constitucionais, não existe um catálogo fechado de direitos fundamentais, mas somente catálogos mais ou menos abertos, e, todavia, sempre extensíveis por meio da interpretação. Ainda para sair das dificuldades encontradas pelo juspositi-vismo, os neoconstitucionalistas elabora-ram teorias dinâmicas dos direitos morais, como razões para produzir normas e direi-tos jurídicos.

A partir de Dworkin (DWORKIN, 1977) - mas comparando também o jus-positivista Joseph Raz (RAZ, 1986) - os neoconstitucionalistas conceberam os di-reitos como razões morais justificadoras de normas jurídicas: assim invertendo a relação entre normas e direitos típico do juspositivismo. As tradicionais teorias juspositivistas, inspiradas na tabela dos oito conceitos jurídicos fundamentais e à assim chamada tese da correlatividade entre direitos e obrigações de Wesley Ho-hfeld eram estáticas, faziam dos direitos o produto de normas jurídicas: teríamos um direito humano somente quando uma carta internacional ou constitucional dispusesse as obrigações correlativas ao direito. As

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modernas teorias dos direitos, tanto neo-constitucionalistas quanto neo-juspositi-vistas, são ao contrário dinâmicas: fazem dos direitos morais as razões de normas e obrigações jurídicas.

Os direitos morais, em outras pala-vras, funcionariam dinamicamente como razões ou valores últimos para produzir uma série não finita, ou precisamente in-finita, de normas e obrigações jurídicas correspondentes (ver ainda RAZ, 1986): o que explicaria e justificaria junto aos fatos como a mera declaração de direitos pré-existentes, o ausente encerramento dos vários catálogos dos direitos, e até a infla-ção dos direitos característica do discurso jurídico moderno. Na realidade, o recurso a direitos morais típicos do neoconstitucio-nalismo não soluciona o problema da natu-reza dos direitos, mas somente o desloca: também os direitos morais, de fato, po-dem ser concebidos, estaticamente, como o produto de normas, não jurídicas mais morais. Por outro lado, o juspositivismo, como teoria da separabilidade entre direito e moral, não tem necessidade de negar os direitos morais: basta distingui-los dos di-reitos jurídicos.

Por esse ponto de vista, uma teoria juspositivista dos direitos pode não só aceitar a distinção entre direitos morais e direito jurídicos, mas também fazer jus-tamente o ponto de vista dinâmico típico da teoria neo-constitucionalista: em espe-cial, pode ocupar-se dos processos de re-conhecimento, ou melhor, de elaboração - doutrinal, judicial, legislativa, constitu-cional e internacional - dos direitos morais (BOBBIO, 1990). Como teoria (cognitiva) dos direitos, o juspositivismo não tem di-ficuldade de aceitar a idéia que direitos e razões morais tornem-se, dinamicamente, direitos e razões jurídicos, uma vez que aceitos na lei, constituições e tratados in-ternacionais; a única coisa que o juspositi-

vismo não pode aceitar é a confusão entre direitos morais e jurídicos e, antes ainda, a confusão entre teoria (cognitiva) e doutri-na (normativa) dos direitos, típica do neo-constitucionalismo.

Uma teoria (cognitiva) juspositi-vista dos direitos, além disso, pode des-viar-se do wishful thinking das doutrinas neoconstitucionalistas acerca da harmo-nização e não contraditoriedade dos di-reitos fundamentais (FERRAJOLI, 2001 e COMANDUCCI, 2002-2003). Sempre a partir de Dworkin, e com base na teo-ria metaética chamada monismo ético, os neoconstitucionalistas consideram de fato que os direitos morais, ou humanos, ou fundamentais, sejam entre eles har-mônicos: ou, pelo menos, que eles assim se podem tornar através da interpretação (DWORKIN, 2001). Como sugere, ao contrário, polemizando com Dworkin, o já citado Williams, em base da teoria metaética chamada pluralismo ético os direitos morais, ou humanos, ou funda-mentais, não são necessariamente harmô-nicos: a mesma interpretação, se é capaz de torná-los compatíveis, é capaz também de torná-los incompatíveis (WILLIAMS, 2001).

Essa sintética análise dos três princi-pais problemas discutidos pelo neoconsti-tucionalismo permite talvez originar pelo menos três conclusões provisórias. A pri-meira conclusão é que os neoconstitucio-nalistas propuseram freqüentemente solu-ções insatisfatórias: mais insatisfatórias, pelo menos, das soluções propostas pelos teóricos juspositivistas a fim de responder ao desafio do próprio neoconstitucionalis-mo. A segunda conclusão é que os neo-constitucionalistas tiveram o mérito de le-vantar problemas importantes, forçando a tradicional teoria juspositivista a atualizar-se e a afinar-se. A terceira conclusão - úl-tima, mas não menos importante - é que a

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despeito de falar de neoconstitucionalismo seja e permaneça problemático, como já foi visto, apesar de tudo, existe realmente algu-ma coisa que esperava somente ser chamado com esse nome: ou até - por que não? - com um nome melhor se alguém o encontrar.

REFERÊNCIAS

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1. Delimitação do estudo e objeto de in-vestigação

O Direito Penal é a mais gravosa forma de intervenção estatal. Isto se dá porque, através dele, retiram-se da pessoa humana direitos constitucionalmente asse-gurados, quais sejam: vida, liberdade e pa-trimônio. Ressalte-se, inclusive, que ditos direitos retirados são cláusulas pétreas da Constituição.

Isto posto, a interpretação e aplica-ção do Direito Penal não devem ser feitas de forma autista, isto é, encerradas exclusi-

vamente na dogmática daquele direito. Se o que se atinge no Direito Penal são bens assegurados pela Carta Política, sua apli-cação e interpretação devem ser feitas em consonância com os Princípios Constitu-cionais.

Isto importa reconhecer que, além do caráter técnico-dogmático, o Direito Penal tem um caráter político. Ocorre que o ca-ráter político não é inócuo, ao contrário, ele condicionará o objeto e o método do Direito Penal, fazendo com que os mes-mos tenham uma relação substancial com os Princípios Constitucionais.

SIGNIFICADO POLÍTICO-CONSTITUCIONALDO DIREITO PENAL

CONSTITUTIONAL AND POLITICAL MEANING OF CRIMINAL LAW

CláuDio BRanDão*

Recebido para publicação em julho de 2005

Resumo: Através do Direito Penal o Estado ganha o poder de retirar da pessoa humana os direitos constitucionalmente assegurados, quais sejam: vida, liberdade e patrimônio, configurados como cláusulas pétreas da Constituição. O que se atinge no Direito Penal são os bens assegurados pela Carta Política, cuja aplicação e interpretação devem ser feitas em consonância com os Princípios Constitucionais. A discussão aqui empreendida quer demonstrar que, além do caráter técnico-dog-mático, o Direito Penal tem um caráter político e este é o condicionante do objeto e do método do Direito Penal, fazendo com que os mesmos apresentem uma relação substancial com os princípios constitucionais.Palavras-chave: Direto Penal. Direito Constitucional. Tutela dos bens jurídicos. O método do Di-reito Penal. Princípios Constitucionais da Legalidade. Dignidade da Pessoa Humana.

Abstract: Through by Criminal Law the State gets the power to remove constitutional rights of hu-man being, as follows: life, natural freedom and patrimony, assured as unchangeable clause of Con-stitution. What’s reached in the Criminal Law is assured possessions by Political Charter, which application and interpretation must have to be done with the Constitutional Principles. The discuss wants to show that, besides the thecnical-dogmatic character, Criminal Law has a political character and that is the quality of the object and the method of Criminal Law, succeeding in both, presented a substantial relation with the constitutional principles.Key Words: Criminal Law. Constitutional Right. Personal Estate Protection. Criminal Law’s meth-od. Constitutional Principles of Legality. Human being dignity.

* Doutor em Direito. Professor de Direito Penal nos cursos de graduação, mestrado e doutorado em Direito da UFPE. Professor do Centro de Ensino Superior do Extremo Sul da Bahia.

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Dita análise se constitui o objetivo desta investigação.

2. Conceito de Direito Penal

2.1. Construção de uma definição norma-tiva

Para se conceituar o Direito Penal é imprescindível ter-se em menção dois pontos: em primeiro lugar, os institutos que estruturam esse ramo do Direito; em segundo lugar, a significação destes referi-dos institutos no contexto do Direito.

Como sabido, o Direito Penal – como qualquer outro ramo do Direito – é estru-turado em normas. Destarte, o referido Direito Penal regula condutas através de enunciados gerais, os quais prescrevem abstratamente modelos de comportamen-tos que devem ser seguidos, porque, no caso do comportamento prescrito não ser seguido, será imputada, como conseqüên-cia, uma sanção ao sujeito.

Pois bem, é das normas que se extra-em os institutos do Direito Penal.

O primeiro instituto que conforma o Direito Penal é a Infração. Consoante foi dito, a norma prescreve um modelo abs-trato de comportamento proibido e esse modelo poderá ser qualificado pelo legis-lador de crime ou de contravenção. Isto posto, pode-se afirmar que infração é o gênero do qual crime e contravenção são espécies. Todavia – é imperioso se ressal-tar – não existe, na essência, uma diferença substancial entre o crime e a contravenção, sendo as infrações classificadas de acor-do com o primeiro ou com a segunda em conformidade com o arbítrio do legisla-dor. De modo geral, pode-se afirmar que o conceito de crime é imputado às infrações consideradas mais graves pelo legislador, enquanto que o conceito de contravenção é imputado às infrações consideradas como menos graves.

Registre-se que é comum na doutrina penal substituir-se o termo infração (que é o gênero) pelo termo crime (que, enfatize-se, é uma das espécies de infração). Isto se dá por dois motivos: primeiramente, em termos quantitativos, o número de crimes é muito superior ao número de contraven-ções; segundamente, os elementos que foram construídos ao longo de mais de duzentos anos, desde o século XIX, para o aperfeiçoamento conceitual do crime (quais sejam: tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade), aplicam-se também ao con-ceito de contravenção. Destarte, no âmbito deste trabalho, o termo infração doravante será substituído pelo termo crime.

O segundo instituto que conforma o Direito Penal é a Pena. Consoante foi consignado acima, a realização da conduta proibida tem como conseqüência a sanção. Pois bem, é propriedade exclusiva do Di-reito Penal a mais grave sanção de todo o Ordenamento Jurídico: a Pena. Isto posto, se a norma define o crime como conduta proibida e traz como conseqüência da rea-lização desta conduta a pena, é imperioso afirmar-se que a pena é a conseqüência ju-rídica do crime, neste sentido, o extraordi-nário Tobias Barreto afirmava que “a razão da pena está no crime”.1 Esta conseqüência é, inclusive, apontada como o marco dife-rencial deste ramo do Direito, pois quando ela está presente a norma obrigatoriamente pertencerá ao Jus Poenale.

O terceiro instituto que conforma o Direito Penal é a Medida de Segurança. De acordo com o que foi explicado, a pena somente poderá ser aplicada se sua causa estiver realizada, isto é, se houver a reali-zação de um crime. Todavia, existem cer-tas pessoas que não podem cometer crimes em virtude de não poderem compreender o significado de seu ato ou de não terem capacidade de auto-determinação, em face de serem acometidas de doença mental ou

CláuDio BRanDão

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desenvolvimento mental incompleto ou re-tardado. Neste caso, o que se imputa a essas pessoas não é uma pena, mas uma medida de segurança, que se traduz em tratamento psiquiátrico ambulatorial obrigatório ou, nos casos mais graves, em internação com-pulsória em hospitais psiquiátricos.

Deve-se salientar, desde logo, que nos sistemas jurídicos dos Estados Demo-cráticos de Direito todos estes institutos somente podem ser criados por uma Lei, já que o Princípio da Legalidade é condição necessária para que se constitua o Direito Penal.

A definição de Direito Penal é feita, inicialmente, com base nos três institutos que foram elencados: Crime, Pena e Medi-da de Segurança.

Deste modo, o “Direito Penal é um conjunto de normas que determinam que ações são consideradas como crimes e lhes imputa a pena – esta como conseqüência do crime –, ou a medida de segurança”.

Quer no Direito Penal estrangeiro, quer no Direito Penal brasileiro, encon-tra-se um certo consenso nesta definição, que formalmente se conserva através dos tempos.

No tocante ao Direito estrangeiro, não se pode fechar os olhos à contribuição vinda da Alemanha, que influenciou gran-demente, boa parte dos sistemas jurídicos-penais do ocidente, aí incluído o sistema brasileiro. Para Franz von Liszt, autor de obras de referência datadas do final do sé-culo XIX e início do século XX, o Direito Penal é “o conjunto de normas estatais que associam ao crime enquanto tipo penal a pena como sua conseqüência legítima”.2 Na explicação de sua definição, von Liszt integra a este conceito a medida de segu-rança3.

No fim da primeira metade do século XX, Edmund Mezger, outro autor de refe-rência na construção do conceito de Direi-

to Penal, definia-o neste mesmo espeque. Para ele, o “Direito Penal é o conjunto de normas jurídicas que regulam o exercício do poder punitivo do Estado, associando ao delito, como requisito, à pena como conseqüência jurídica”.4 Completando sua definição, diz Mezger que também é Di-reito Penal o conjunto de normas que as-sociam ao delito outras medidas de índole diversa da pena, que tem por objeto a pre-venção de delitos5.

Não se apresentam conceitos que destoem muito deste padrão dentro dos autores contemporâneos. Veja-se, a título de exemplo, o conceito de Direito Penal dado por Hans-Heinrich Jescheck: “O Di-reito Penal determina que ações contrárias à ordem social são crimes e como conseqü-ência jurídica dos crimes impõe penas. Re-lacionado ao crime prevê também medidas de correção e segurança”.6

Na doutrina brasileira, também não existe muito distanciamento da definição acima exposta. Por exemplo, Francisco de Assis Toledo, coordenador da reforma pe-nal de 1984, definiu o Direito Penal como a “parte do Ordenamento Jurídico que estabelece e define o fato-crime, dispõe sobre quem deva por ele responder e, por fim, fixa as penas e as medidas de seguran-ça que devam ser aplicadas”.7

A substância desta definição desvela o primeiro aspecto mencionado no início do presente texto, qual seja: a necessidade de conceituar-se o Direito Penal a partir dos institutos que formam sua essência.

A partir da definição de Direito Penal chega-se à definição de Dogmática Penal. Esta última é o discurso e a argumentação que se fazem a partir do próprio Direito Penal e dos seus elementos constitutivos. Não é incorreto afirmar-se que a Dogmáti-ca Penal é um método. Explique-se: o mé-todo é o caminho para a investigação de um objeto, constituído de cânones para a in-

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vestigação, conhecimento, interpretação e crítica sobre o dito objeto. Pois bem, como os institutos essenciais do próprio Direito Penal e de sua Dogmática (crime, pena e medida de segurança) são cânones para o conhecimento da criminalidade, a citada Dogmática Penal pode também ser enca-rada como um método de conhecimento daquela8. Assim, a dogmática “é uma ela-boração intelectual que se oferece ao poder judiciário [e a todos os operadores do Di-reito] como um projeto de jurisprudência coerente e não contraditória, adequada às leis vigentes”.9 Enquanto método, no dizer de Zaffaroni, a dogmática procura fazer previsíveis as decisões judiciais.

A dogmática penal, diferentemen-te do Direito Penal, não se restringe a um Estado determinado, mas tem um caráter universal. Recorde-se, ainda, que as leis pe-nais estatais somente começaram a existir a partir do século XIX, porque o Princípio da Legalidade penal somente foi formulado no fim da Idade Moderna. Os institutos da dogmática penal (antijuridicidade, legítima defesa, erro etc.) estão presentes em todos os sistemas jurídicos ocidentais; o que di-fere entre os sistemas, portanto, não são os institutos, mas a solução jurídica para a sua aplicação, que é variável segundo a lei de cada país. Com efeito, uma situação reco-nhecida como legítima defesa no Brasil, por exemplo, pode não ser reconhecida como tal na Argentina; se em ambos os países há a dita legítima defesa, a aplicação dela po-derá variar, pois dependerá dos requisitos das suas respectivas leis penais.

Entretanto, a aplicação da dogmática penal comparada não pode ser feita de for-ma acrítica, através do simples encaixe de um conceito estrangeiro em um determina-do ordenamento. Ao contrário, a dogmática comparada deve sempre ser invocada com a devida atenção acerca da sua pertinên-cia com o ordenamento normativo-penal,

como também em harmonia com a realida-de histórico-sócio-cultural do local que a recebe. Quando ocorre essa dupla relação de pertinência, dá-se a utilização crítica da dogmática comparada.

Conforme dito, não se pode chegar à correta idéia do que é o Direito Penal nem da dogmática penal sem a análise da sig-nificação dos institutos adiante menciona-dos (crime, pena e medida de segurança) perante o próprio Direito. Isto significa que a definição anteriormente dada, por si só, muito pouco diz sobre a substância do conceito de Direito Penal. Os elemen-tos que formam o conceito dado, portanto, somente podem revelar a verdadeira face do Direito Penal se compreendidos de uma ótica que transcende o formalismo da nor-ma, que – conforme se demonstrou – cria aqueles institutos. Dita ótica transcendente é a perspectiva política.10

2.2. Significado político da definição de Direito Penal.

É subjacente à idéia de Direito Penal a idéia de violência. Registre-se, inicial-mente, que o próprio senso comum já as-socia a ação criminosa à idéia de violência, que se realiza de várias formas, tais como em homicídios, lesões corporais, estupros, roubos.

Na seara penal propriamente dita, vê-se que na elaboração conceitual de muitos crimes está presente o conceito de violên-cia física, que traduz a mais grave forma de apresentação da referenciada violência. Veja-se, por exemplo, o crime de constran-gimento ilegal, capitulado no art. 146 do Código Penal: “Constranger alguém, me-diante violência ou grave ameaça, ou de-pois de haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda”. (Grifei)

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Em outros delitos, ainda, a idéia de violência está implícita, como, v.g., no ho-micídio.

Deste modo, o uso de uma energia física contra um ser humano, capaz de al-terar a sua conformação anatômica, capaz de danificar sua saúde ou, até mesmo, hábil para lhe ceifar a vida, é presente em muitos dos crimes previstos pelo Direito Penal.

Mas a presença da violência no nos-so ramo do Direito vai muito mais além do crime. A pena, que é a conseqüência do crime, também é uma manifestação de vio-lência. No ordenamento jurídico brasileiro, existem as penas de morte (somente para os crimes militares próprios em tempo de guerra), de privação de liberdade, de res-trição de direitos e de multa. O fato é que quaisquer destas penas atingem os bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal. Se pelo crime de homicídio (art. 121 do Códi-go Penal) incrimina-se a produção da mor-te de alguém, pela pena de morte também se mata alguém; se pelo crime de seqüestro (art. 148 do Código Penal) incrimina-se a violação da liberdade de locomoção de uma pessoa, pela pena de privação de li-berdade se viola esta mesma liberdade; se pelo crime de furto (art. 155 do Código Pe-nal) incrimina-se a violação do patrimônio de alguém, pela pena de multa também se viola o patrimônio de uma pessoa. É por isso que Carnelutti já afirmava que, na re-lação de custo e benefício, crime e pena são a mesma coisa, são formas de produzir um dano11. Portanto, a pena, assim como o crime, também é uma forma de manifes-tação da violência. Todavia, a pena é uma reação, que somente se imputa em face da realização prévia de um crime; por isso o Estado, através do Direito Penal, a qualifi-ca como legítima, já que ela será uma con-seqüência em face do cometimento de uma violência prévia – que é o crime – por parte do agente que a sofre.

Neste sentido, o Direito Penal con-cretiza a face violenta do Estado, porque ele monopoliza a aplicação da violência da pena. Mas a sanção própria do Direi-to Penal (Pena) não será somente a mais gravosa sanção que o Estado pode impor, o seu significado vai muito mais além. Na verdade, a possibilidade de aplicar a pena é condição de vigência do próprio Direito, porque Direito sem pena é Direito sem co-ercitividade, é um Direito que não pode se utilizar de força em face de seus súditos, para efetivar os seus comandos. Sem pena, portanto, o Direito se transforma em um mero conselho. Consoante mostra a expe-riência, o Direito é, por sua vez, condição de existência do próprio Estado, assim é também a pena uma condição para a exis-tência do próprio Estado, “por isso mesmo existe entre pena e Estado, histórica e juri-dicamente, a mais íntima ligação. Ou antes (...), Estado, Direito e pena são completa-mente inseparáveis um do outro”12

À luz do exposto, o Direito Penal tem uma inegável face política, porque ele concretiza o uso estatal da violência. É o multi referido Direito Penal o mais sensí-vel termômetro para aferir a feição liberal ou totalitária de um Estado13, a saber: caso a violência da pena seja utilizada pelo Es-tado sem limites, sem respeito à dignidade da pessoa humana, estaremos diante de um Estado totalitário, ou ao invés, se a violên-cia estatal for exercida dentro de limites determinados pelo Direito, aí se guardando o respeito à dignidade da pessoa humana, estamos diante de um Estado Democrático de Direito. Por isso, já asseverou Bustos Ramírez que “a justiça criminal, por ser a concreção da essência opressiva do Esta-do, é um indicador sumamente sensível no reflexo das características do sistema polí-tico-social imperante”.14

Isto posto, o conceito de Direito Penal tem um duplo viés: um dogmático

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e outro político. Atualmente, é recorrente falar-se da crise do Direito Penal. A preten-sa crise decorre da separação destes dois aspectos, isto é, a dogmática nua, despida de sua significação traduzida no poder vio-lento do Estado, conduz a um autismo ju-rídico, que a encerra num mundo próprio, alheio à realidade dos fatos. Neste sentido, diz Zaffaroni que “as mais perigosas com-binações tem lugar entre fenômenos de alienação técnica dos políticos com outros de alienação política dos técnicos, pois geram um vazio que permitem dar forma técnica a qualquer discurso político”.15

3. Direito Penal Objetivo e Subjetivo. Crítica da viabilidade da distinção.

A divisão do Direito em Direito Ob-jetivo e Direito Subjetivo foi cunhada pelo Positivismo Jurídico. Sua origem se dá, mais precisamente, na Alemanha, no decor-rer do século XIX. Nesta época, o Direito naquele país gravitava em torno do Direito Romano. Com efeito, o Digesto, também chamado de Pandectas, originou a Esco-la dos Pandectistas e nela, pelas mãos de Windscheid, encetou-se a dicotomia Direi-to Objetivo e Direito Subjetivo. Não é sem razão que a dicotomia em análise começou pelas mãos dos pandectistas. O Digesto ro-mano recorreu com freqüência ao conceito de facultas agendi, isto é, a faculdade de agir, que norteava a regulação das relações privadas. Foi a partir deste conceito que Windscheid definiu o Direito Objetivo, que seria a norma, e o Direito Subjetivo, que seria o poder da vontade de realizar o comando da norma. Outro pandectista a procurar precisar o conteúdo dos conceitos de Direito Objetivo e de Direito Subjetivo foi Jhering, para quem enquanto o Direi-to Objetivo é a norma, o Direito Subjetivo é o interesse juridicamente protegido. No século XX, o positivismo normativo de Kelsen identificou o Direito Objetivo e o

Direito Subjetivo como duas faces de uma mesma moeda, sendo apenas pontos de vista oriundos do mesmo fenômeno.

Na seara penal, a distinção entre Di-reito Objetivo e Direito Subjetivo ressoou de uma forma muito premente, inician-do-se já no século XIX. Identificava-se o Direito Penal em sentido objetivo como a norma penal e o Direito Penal em sentido subjetivo como o Direito do Estado de pu-nir, chamado de Jus Puniendi.

Como dito, o Direito Penal em sen-tido objetivo seria conceituado a partir da norma. É definido como “um conjunto de normas jurídicas que têm por objeto a de-terminação das infrações de natureza penal e suas respectivas sanções – penas e medi-das de seguranças”.16

É correto afirmar-se que, desde o iní-cio do século XIX, encontra-se na Dogmá-tica Penal referência à idéia de Direito Sub-jetivo. Tal afirmativa pode ser comprovada pela obra de Anselm von Feuerbach, que definia o crime como uma injúria prevista por uma lei penal, que se consubstancia-va numa ação violadora do direito alheio, proibida mediante uma lei penal17.

Segundo Feuerbach, o “crime é, no mais amplo sentido, uma injúria contida em uma lei penal, ou uma ação contrária ao Direito de outro, cominada numa lei penal”.18 Os crimes são sempre lesões ao Direito, por exemplo, “a lesão do direito à vida constitui o homicídio”.19

Deste modo, o crime não é somente conceituado a partir de uma ofensa à lei pe-nal, já que para a sua existência será necessá-ria também a violação de um direito alheio, isto é, a violação do Direito Subjetivo.

Todavia, apesar de Feuerbach vincu-lar o conceito de crime ao conceito de vio-lação do Direito Subjetivo, não podemos afirmar que ele criou o conceito de Direito Penal Subjetivo. Isto se dá porque o con-ceito de Direito Penal Subjetivo é muito mais amplo que o próprio conceito de cri-

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me. Este último é o “direito que tem o Es-tado a castigar – jus puniendi –, impondo as sanções estabelecidas pela norma penal, àqueles que tenham infringido os preceitos da mesma”.20

O conceito de Direito Penal Subjeti-vo foi desenvolvido por Karl Binding, que se utiliza do conceito de norma como co-mando de conduta extraído da lei para for-mular um sistema geral acerca das mesmas e suas violações. É das normas que surge o Direito de Punir do Estado, isto é, o Direito Penal subjetivo.

No panorama atual, alguns penalistas ainda recorrem à dicotomia Direito Penal Objetivo e Direito Penal Subjetivo. Mir Puig, grande jurista espanhol, por exem-plo, utiliza-se da noção de Direito Penal Objetivo para o estudo da norma penal, e do Direito Penal Subjetivo para a análise do Direito de castigar do Estado (Jus Pu-niendi) que seria o Direito de criar e apli-car o Direito Penal objetivo21. Neste últi-mo conceito, Mir Puig enfrenta o escorço doutrinário acerca dos limites ao poder de punir do Estado e seus limites22. Tais limi-tes são de várias ordens e têm sempre, na substância, um fundamento constitucional, traduzindo-se nos Princípios que limitam a atividade punitiva23. Todavia os princí-pios constitucionais limitadores da ativi-dade punitiva, deve-se consignar aqui, são de extraordinária importância no sistema de dogmática penal, devendo os mesmos serem cuidadosamente tratados no estudo desta disciplina, mas eles não se situam no campo do Direito Penal Subjetivo.

Não é viável, em uma interpretação constitucional do Direito Penal, a recor-rência à dicotomia Direito Objetivo versus Direito Subjetivo. De início, registre-se que, no panorama hodierno, do pós-positi-vismo, a própria distinção entre eles é bas-tante criticada, por conta da constatação de manifestações do Direito fora do Estado. Refere-se o pós-positivismo, para efetuar

essa crítica, aos estudos que envolvem o chamado Direito Alternativo.

Mas não é este o fundamento da ine-xistência desta dicotomia no Direito Penal.

Na verdade, não se pode falar em Direito Penal em sentido Subjetivo por-que não há o direito do Estado de punir ninguém com a retirada dos direitos fun-damentais à vida, à liberdade e ao patri-mônio. Seria uma contradição reconhecer o direito subjetivo do Estado de violar di-reitos subjetivos constitucionais do sujeito. O que existe é, isto sim, um dever de pu-nir em face do cometimento de um crime e todo dever supõe requisitos que tornam obrigatória alguma prestação. O conceito de Direito Subjetivo tem como elemento essencial a faculdade de dispor do deste direito, que é precisamente o que os roma-nos falavam: a facultas agendi, a faculdade de agir. Por ter o Estado o dever de aplicar a pena quando os seus pressupostos estive-rem configurados, não há que se falar em Direito Penal Subjetivo. Com efeito, o de-ver de agir é conceitualmente incompatível com a essência do multi referido conceito de Direito Subjetivo.

Outrossim, conclua-se afirmando que não existe uma utilidade prática desta dis-tinção burilada no século XIX no estágio atual da ciência penal. Isto se dá porque o estudo dos limites à aplicação da pena por parte do Estado se faz na seara dos Prin-cípios do Direito Penal e não no pretenso Direito Penal Subjetivo. Aceitar-se a con-tinuidade hodierna dessa dicotomia é assi-milar de modo acrítico o panorama penal de dois séculos atrás, que possuem pontos de partida diferentes daqueles utilizados na dogmática contemporânea.

4. Objeto do Direito Penal

Segundo José Cerezo Mir, “o Direito Penal é um setor do ordenamento jurídico, segundo a opinião dominante na dogmáti-

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ca moderna, ao qual se lhe incumbe a tare-fa de proteger os bens vitais fundamentais do indivíduo e da comunidade. Esses bens são elevados pela proteção das normas do Direito Penal à categoria de bens jurídicos. (...) O substrato destes bens jurídicos pode ser muito diverso. Pode ser, como assinala Welzel, um objeto psíquico-físico (a vida, a integridade corporal), um objeto espiri-tual-ideal (a honra), uma situação real (a paz do domicílio), uma relação social (o matrimônio, o parentesco) ou uma relação jurídica (a propriedade). Bem jurídico é todo bem, situação ou relação desejado e protegido pelo Direito”.24

Ao conceituar o Direito Penal a partir de sua missão, Cerezo Mir revela o próprio objeto do referido Direito Penal.

Quando se procura precisar o objeto do Direito punitivo, devemos aqui consig-nar, coloca-se o alicerce que permite justi-ficar racionalmente o poder de punir e, em conseqüência dessa justificação, o Direito Penal tem condições de se legitimar.

Toda norma penal que institui um cri-me tutela um bem. Se observarmos a estru-tura do nosso Código Penal, veremos que todos os crimes estão gravitando em torno de um bem, por exemplos: o homicídio (art. 121), o induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio (art. 122), o infanticídio (art.123) e o aborto (art. 124 usque 128) estão reunidos em função do bem vida. Com efeito, o título que os agrupa (Título I do Código Penal) é o dos “Crimes contra a Vida”. No mesmo espeque do exemplo dado, os demais crimes vigentes no nosso ordenamento também se agrupam em torno de bens, descritos nos títulos e/ou capítulos do Código ou das leis penais espar-sas. Pois bem, bem jurídico é o nome técnico dado a esses ditos bens, protegidos através da lei penal, que comina uma pena em face de sua violação.

O objeto do Direito Penal é, pois, a tutela de bens jurídicos.

Todo bem ou valor que existe no mundo fático-social, cabe aqui ressaltar, somente se converte em bem jurídico a partir de uma lei penal, que define a sua violação e comina a respectiva pena. Isto posto, somente o legislador pode consti-tuir um bem jurídico, daí se infere que o surgimento ou a manutenção de um bem jurídico no Direito Penal é uma eleição po-lítica do citado legislador. O bem jurídico, assim, corrobora a face política do Direito Penal.

Todavia, deve-se concluir com este alerta, a tutela de bens jurídicos não pode ser realizada de qualquer modo e a qual-quer preço. Em primeiro lugar, essa tutela somente poderá ser realizada e considera-da como legítima se forem observados os requisitos impostos pelo Estado de Direito (v.g. Legalidade. Culpabilidade, Interven-ção Mínima). Em segundo lugar, porque a pena retira direitos constitucionais da pes-soa humana, somente haverá proporcio-nalidade se o bem jurídico tutelado tiver guarida constitucional, isto é, se se situar entre aqueles bens protegidos pela Carta Magna, quer sejam de natureza individual (vida, patrimônio etc.) ou supra-individual (meio-ambiente, ordem econômica etc.)

5. Método do Direito Penal

5.1. Escorço histórico sobre o Método Penal.

Por método se entende o caminho para a investigação de um objeto. É, pois, o método, o instrumental que se traduz nos cânones para possibilitar as investigações das evidências apreendidas sobre algum objeto e a conseqüente formulação de enunciados que tornem o referido objeto conhecido.

O Direito Penal que rompe com o ar-bítrio e se preocupa com a pessoa humana é relativamente recente. Foi somente com o iluminismo, mais precisamente a partir

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da obra de Beccaria, na segunda metade do século XVIII, que foi aventada de forma sistemática a necessidade de limitar o jus puniendi do Estado; o primeiro instituto que o milanês apresentou para que tal de-siderato fosse alcançado foi o Princípio da Legalidade25. No início do século XIX, em 1801, Anselm von Feuerbach sistematizou o Princípio da Legalidade, com a formula-ção da teoria da coação psicológica, segun-do a qual a tutela de interesses, que é o fim do Direito Penal, deve ser realizada a partir de uma coação psicológica, feita a partir da publicização da pena que será imputada a cada crime, o que acarretaria a retração das condutas que violassem os interesses protegidos pelo Direito Penal. Como o ins-trumento adequado para dispensar tal co-nhecimento é a lei, esta última ocupará um papel exponencial neste ramo do Direito, pois não haverá crime sem lei (nullum cri-men sine lege), pena sem crime (nulla po-ena sine crime), e nem haverá crime sem a tutela legal de um interesse (nullum crimen sine poena legali)26. Tais máximas foram consubstanciadas no brocárdio Nullum Crimen Nulla Poena Sine Lege.

Nesse panorama pode-se compre-ender o método inicialmente apregoado pelo iluminismo, onde a lei e a legalidade tinham uma particular significação. Segun-do Engisch:

“Houve um tempo em que tranqüila-mente se assentou na idéia de que deve-ria ser possível uma clareza e segurança jurídicas absolutas através de normas ri-gorosamente elaboradas, e especialmente garantir uma absoluta univocidade a todas as decisões judiciais e a todos os atos ad-ministractivos. Esse tempo foi o do Ilumi-nismo.”27

Com efeito, a legalidade era e ainda é a mais importante limitação ao poder de punir do Estado. Ela evita que o Direito Penal seja aplicado retroativamente para

acomodar situações desagradáveis aos de-tentores do poder político, protegendo o homem do próprio Direito Penal.

Como dito, a legalidade foi formula-da à época do iluminismo do século XVIII, sendo o método defendido à essa época, para o Direito Penal, o silogístico. Este era traduzido num processo de subsunção ló-gica onde a lei era a premissa maior, o caso era a premissa menor e a conclusão do pro-cesso seria a adequação do caso à lei.

Tal método, que por força do positi-vismo jurídico, foi muito presente no sécu-lo XIX e na primeira metade do século XX, apresentou uma significação altamente be-néfica no início de sua aplicação. A histó-ria mostra inúmeros exemplos através dos quais se pode comprovar a aplicação do Direito Penal como um instrumento para acomodar as situações desagradáveis aos detentores do poder político, traduzindo-se num instrumento de arbítrio estatal. Com o silogismo, o que não estivesse previsto como crime na lei seria penalmente indi-ferente, não se podendo, destarte, aplicar-se retroativamente o Direito Penal, nem a analogia para incriminar condutas.

Isto posto, a ideologia da lei e o mé-todo silogístico representaram a primeira garantia do homem em face do poder de punir. Dita garantia constitui-se, até hoje, na base do Direito Penal liberal.

Deve-se aqui, antes de tudo, trazer-se à colação a advertência de Bettiol e Man-tovani sobre a conceituação anteriormente posta. Sob a denominação Direito Penal liberal não se encontram um conjunto ho-mogêneo de doutrinas, mas sob um certo aspecto se encontram mesmo doutrinas contrastantes entre si, que são reunidas por possuírem um ponto em comum: a limitação ao poder de punir do Estado. Em contraposição ao Direito Penal liberal encontra-se o Direito Penal do terror, que tem por característica a não limitação do

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jus puniendi estatal e a não garantia, via de conseqüência, do homem em face do poder de punir.28

Como sabido, desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Ci-dadão, a legalidade dos crimes de das pe-nas é uma garantia fundamental, inserida em quase todas as constituições democrá-ticas ocidentais, donde se encontra a Cons-tituição Federal de 1988 brasileira. Essa garantia fundamental traduzida na multi referida legalidade é a maior característica do Direito Penal liberal.

Por conseguinte, infere-se que o si-logismo legal integra o método do Direito Penal liberal, posto que é através dele que se realiza a principal limitação do poder de punir, assegurando-se ao homem um ante-paro frente ao poder do Estado.

Todavia, a compreensão silogística, desde a crise do positivismo, mostrou-se como um elemento necessário, mas não suficiente, para se apreender o método do Direito Penal.

É que no Direito Penal muitos casos se resolvem até mesmo contra a lei, o que comprova a insuficiência do método pro-posto. Por exemplo, traga-se à colação o crime do art. 229 do Código Penal. Dito crime – casa de prostituição – tipifica a conduta de manter por conta própria ou de terceiro local especialmente destinado à manutenção de atos libidinosos, haja ou não intuito de lucro, haja ou não mediação direta de proprietário ou gerente. Ninguém que viva na nossa sociedade questiona que os estabelecimentos conhecidos como mo-téis existem para proporcionar a realização de atos de natureza sexual, e que nesses locais existe, ademais, tanto o intuito de lucro quanto a mediação de proprietário ou gerente. Se na década de setenta do sé-culo passado, o Supremo Tribunal Federal decidiu, pelo método da subsunção lógica, que as pessoas que mantinham os motéis

deveriam responder por casa de prostitui-ção, diferente é a aplicação hodierna do direito penal. O Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, tem decisão que não reconhece o crime em tela – no caso dos motéis – dentre outras coisas porque não se pode fechar os olhos para a drástica modi-ficação dos costumes porque passou a so-ciedade de 1940, época da lei, até os dias atuais29. Por óbvio, para dar tal decisão, não se utilizou o silogismo, que conduziria inevitavelmente à condenação.

Com efeito. Com a crise do positivis-mo, o seu método também entrou em crise por revelar-se insuficiente.

Foi nos anos cinqüenta do século vinte que um jusfilósofo alemão, chamado Teodore Viehweg, chama-nos atenção para a tópica. Tópica é a compreensão dos fa-tos. Segundo a tópica, a decisão tem que ser tomada a partir de uma interpretação universal da totalidade do acontecer, ou seja, de uma história compreendida.

Para o método tópico, deve-se fazer um processo semelhante ao dos romanos para chegar-se a decisão jurídica: os roma-nos consideravam o Direito uma arte, por-que o pretor em caso concreto construiria a decisão boa e justa. É essa a definição de Celso: Ius ars boni et aequi. A tópica defende, pois, que a decisão deve brotar sempre do caso em si.

No último capítulo de sua obra, Viehweg aponta o papel fundamental da retórica para a sua teoria. É a retórica que desenvolve a tópica, na medida que ela justifica a decisão. Por óbvio, os sinais lingüísticos são fundamentais para a argu-mentação em face do caso, mas a retórica não é formada somente por eles, já que ela também leva em conta a semântica e a pragmática. Por conseguinte, a retórica que constrói a decisão a partir do caso se assentará em três pilares: a sintaxe, a se-mântica e a pragmática.

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“Na sintaxe: se diz a relação dos si-nais com os outros sinais, semântica: a re-lação dos sinais com os objetos, onde sua designação é afirmada, e a pragmática: a relação situacional (der situativ Zusamme-nhang) onde os sinais são usados entre os interessados”.30

5.2. O método atual: o pós-positivismo

Entretanto, a tópica em si mesma é tão radical quanto o positivismo. A ideo-logia da lei trouxe um grande benefício à aplicação do direito, conforme declinado acima, e não pode ser simplesmente afas-tada em favor da análise do caso concreto.

Nesse sentido, a filosofia pós-positi-vista busca um equilíbrio entre o silogismo e a tópica, reconhecendo que o Direito ad-mite uma superposição entre duas esferas: a esfera da compreensão da norma, de um lado, e a esfera da compreensão do fato, de outro, levadas a cabo pelo ser histori-camente presente, pelo procedimento ar-gumentativo. Esse método é chamado de tópico-hemenêutico.

Usa-se, portanto, no método penal, a lei e a compreensão do caso.

A lei é o limite negativo, isto é, não se admite a incriminação do que está fora dela, já que a mesma tem por função dar a garantia do homem em face do poder de punir, conforme se apregoava desde o iluminismo. O limite negativo do método penal o harmoniza com o Princípio Consti-tucional da Legalidade.

O caso dá o limite positivo, poden-do ser utilizado como um meio para jus-tificar uma decisão que aumente o âmbito da liberdade, isto é, que seja pró-libertatis. Como a finalidade da legalidade foi garan-tir a liberdade do homem em face do po-der de punir, conforme discorrido acima, a tópica é teleologicamente conforme a le-galidade, não havendo nenhuma incompa-

tibilidade entre elas. Com efeito, são pos-síveis decisões não baseadas no silogismo, pela importância que deve ser dispensada ao Homem. Isto, em verdade, representa o cumprimento do Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, porque só se valoriza o homem a partir da com-preensão do caso, que traduz a sua história real, que é única e irrepetível.

Vejamos um exemplo da decisão a partir do caso, isto é, da tópica, que ser-ve para aumentar o âmbito de liberdade. Como sabido, a lei somente prevê duas causas legais de exclusão da culpabilida-de: obediência hierárquica e coação mo-ral irresistível (art. 22 do Código Penal). Entretanto, não se nega a existência das causas supralegais de inexigibilidade de outra conduta, que por óbvio não estão ba-seadas na lei, para afastar a culpabilidade do agente. Esta referida exclusão se realiza com base em um julgamento das circuns-tâncias do caso concreto que excluem a censurabilidade do autor da conduta, reco-nhecendo-se que elas afetaram a liberdade do agente entre se comportar conforme ou contrário ao Direito. É o caso da jurispru-dência abaixo transcrita:

“PENAL E CONSTITUCIONAL. NÃO-RECOLHIMENTO DE CONTRI-BUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. ART. 95, “D”, § 1º, DA LEI 8.212/91. MATERIA-LIDADE COMPROVADA. FALÊNCIA DA EMPRESA. INEXIGIBILIDADE DE OUTRA CONDUTA.

I - Pratica o delito previsto no art. 95, “d”, da Lei 8.212/91 (hoje com redação dada pela Lei 9.983/00, que inseriu o art. 168-A no Código Penal Brasileiro), o em-pregador que desconta contribuição previ-denciária de seus empregados e deixa de recolhê-la aos cofres da Previdência.

II - Dolo manifestado na vontade li-vre e consciente de não repassar as con-tribuições recolhidas dos contribuintes à

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Previdência Social. Desnecessária a de-monstração de dolo específico. O animus rem sibi habendi é exigido na apropriação indébita comum, mas não o é na apropria-ção indébita previdenciária.

III - A existência de provas cabais quanto à alegada dificuldade econômica da empresa administrada pelos acusados, culminando com a decretação de falência, possibilita o reconhecimento de inexigibi-lidade de conduta diversa e justifica a ex-clusão da culpabilidade.

IV - Apelação do Ministério Público Federal desprovida.”

Relator: Des. Fed. CÂNDIDO RIBEIRO. TRF 1ª Reg. Ap. Crim. nº 199838000079575. Tereira Turma. DJ 18/3/2005 Pág.: 18.

Assim, o método do Direito Penal re-side na síntese entre os Princípios Consti-tucionais da Legalidade, o qual norteia seu limite negativo e da Dignidade da Pessoa Humana, que norteia seu limite positivo.

6. Síntese conclusiva

Porque o Direito Penal encerra em si o uso estatal da violência, sua compreen-são somente pode ser efetuada através da união de seus elementos técnicos-dogmá-ticos com o seu significado político. Com efeito, o face política do Direito Penal aflo-ra tão fortemente que ele é apontado como o mais sensível termômetro da feição polí-tica do próprio Estado, isto é, se a violên-cia da pena for aplicada de forma ilimita-da, sem resguardar a Dignidade da Pessoa Humana, estaremos diante de um Estado arbitrário; de outro lado, se a violência da pena for aplicada dentro de parâmetros de proporcionalidade (legalidade, culpabili-dade etc), de modo que se respeite a dita Dignidade da Pessoa Humana, estar-se-á ante a um Estado democrático.

Deste modo, não se pode desvincular o Direito Penal de um duplo viés: a aplicação e

a de interpretação constitucional. O primeiro viés – aplicação constitucional – condiciona o objeto do Direito Penal, o segundo – inter-pretação constitucional, o método.

O objeto do Direito Penal é a prote-ção de bens jurídicos. Toda lei penal tutela um bem, que ela própria aponta. Os cri-mes no nosso ordenamento jurídico estão reunidos e sistematizados sob epígrafes, as quais constituem os títulos e os capítu-los tanto do Código Penal, quanto das leis especiais (Por exemplo, na epígrafe: “Cri-mes contra a honra”, que está no capítulo V do Código Penal, reúnem-se os delitos de calúnia, difamação e injúria; todos ele representam uma violação ao bem jurídi-co honra, expresso na epígrafe). Pois bem, quando o legislador (leia-se, o político) ele-ge um bem jurídico ele efetua uma ativida-de de natureza política, mas essa referida atividade política precisa ter também um lado técnico: a coerência finalística e siste-mática com o texto constitucional. Isto se dá porque, se a pena atinge bens jurídicos constitucionalmente assegurados (vida, liberdade e patrimônio), os bens jurídicos protegidos através da definição legal do crime também precisarão ter um substrato constitucional. Caso contrário, a lei penal violará os ditames da Carta Política, mor-mente o Princípio da Proporcionalidade.

De outro lado, o método do Direito Penal conformará a aplicação das normas daquele Direito no caso concreto. Com efeito, quando o aplicador das normas, o juiz (leia-se, o técnico) realiza a decisão do caso, ele também realiza uma ativida-de política. Por isso o método de aplica-ção da norma penal não pode ser resumido em um silogismo, onde a lei é a premissa maior, o caso é a premissa menor e a sen-tença é a subsunção do caso à lei. Tal as-sertiva pode ser comprovada com relativa facilidade: quem poderá sustentar serem as causas supra legais inexigibilidade de

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outra conduta, ou do reconhecimento da exclusão da antijuridicidade pelo consen-timento do ofendido, baseadas em silogis-mos? Muito ao contrário, esses exemplos afastam a lei – que fatalmente conduziria à conclusão do caso a aplicação da pena – e decidem o caso pela tópica. Esta última (a tópica) encontra sua legitimidade positiva nos princípios constitucionais. O método penal, assim, encontra na lei o seu sentido negativo (não se pode punir fora da lei) e no caso seu limite positivo (o caso pode ensejar uma argumentação racional para o afastamento da lei, através de fundamen-tação constitucional). Este método repre-senta, pois, a síntese dos Princípios Cons-titucionais da Legalidade e Dignidade da Pessoa Humana.

O fenômeno da alienação técnica dos políticos somado à alienação política dos técnicos conduz à falta de norte do Direito Penal. Com esse fenômeno, o Direito Penal se assemelha a um traje de arlequim, já que suas normas nunca guardam harmonia, ora existindo leis extremamente severas, ora extremamente brandas, sem que se atinja um ponto de equilíbrio. A sua aplicação concreta, por outra parte, fica assemelhada a um lance de sorte, porque os julgamentos variarão sempre entre a técnica autista do silogismo nu, vinculada que está à ideolo-gia do século XVIII, de que a lei pode en-cerrar em si toda a complexidade humana na regulação de condutas, ou estarão em conformidade com um raciocínio mais ela-borado e trabalhoso, que se utiliza da tópi-ca e da hermenêutica, tendo a Constituição como baliza entre a lei e o caso.

Essa falta de norte, ao que parece, é a situação do Direito Penal brasileiro.

REFERÊNCIAS

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NOTAS

1 Menezes, Tobias Barreto de. “Prolegômenos do Estudo do Direito Criminal”. Estudos de Di-reito II. Record – Governo de Sergipe: 1991. P.102.2 Tradução livre de: „Strafrecht ist der Ingbegri-ffs derjening saatlichen Rechtgeleln, durch die an das Verbrechen als Tatbestand die Strafe als Rechtfolge genküpft wird“. Liszt, Franz von. Lehrbuch des Strafrecht. Berlim und Lipzig: VWV. 1922. P. 1.3 Idem. Ibidem. P.1.4 Tradução livre de: „Strfrecht ist der Inbegri-ff der Rechtnormen, welche die Ausübung der staatlichen Strafgewalt reglen, idem sie an das Verbrechen als Voraussetzung die Strafe als Re-chtsfolge knüpfen“. Mezger, Edmund. Strafre-cht. Ein Lehrbuch. Berlin und Munich:Duncker und Humblot. 1949. P.3.5 Idem. Ibidem. P.3.6 Tradução livre de: „Das Strafrecht bestimmt welche Zuwiderhandlungen gegen die so-ziale Ordnung Verbrechen sind, es droht als Rechtfolge des Verbrechens die Strafe an. Aus Anlaβ eines Verbrechens sieht es ferner Maβreglen der Besserung und Sicherung und andere Maβnahmen vor.“ Jescheck, Hans-Hein-rich. Lehrbuch des Strafrecht. Berlin: Duncker u. Humblot. 1988. P.8. 7 Toledo, Francisco de Assis. Princípios Bási-cos de Direito Penal. São Paulo: Saraiva. 1994. P.1.8 Neste sentido veja-se a obra de Zaffaroni, Eugenio Raul. En torno de la cuestión penal. Montevideo - Buenos Aires:BdeF. 2005. Pp. 72-73. 77 e ss. 9 Idem. Ibidem. P.74.10 Brandão, Cláudio. Introdução ao Direito Penal.Rio de Janeiro: Forense. 2002. P.43.No mesmo sentido veja-se a afirmação de Tobias Barreto, o qual modera seu pensamento positi-vista ao escrever que: “A aplicação legislativa na penalidade é uma pura questão de política social”. “Prolegômenos do Estudo do Direito Criminal”. Estudos de Direito II. Record – Go-verno de Sergipe: 1991. P.116.11 Carnelutti, Francesco. El Problema de la Pena. Buenos Aires: Europa América. 1947. P.14.

12 Barreto, Tobias. “Prolegômenos do Estudo do Direito Criminal”. Estudos de Direito II. Re-cord – Governo de Sergipe: 1991. P.102.13 Ouviña, Guillermo. “Estado Constitucional de Derecho e Derecho Penal”. Teorías Actuales en Derecho Penal. Buenos Aires:Ad-hoc. 1998. Pp. 56-57.14 Bustos Ramírez, Juan. Contol Social y Dere-cho Penal. Barcelona:PPU. 1987. Pp. 584-585.15 Zaffaroni, Eugenio Raul. En torno de la cues-tión penal. Montevideo - Buenos Aires:BdeF. 2005. P.77.16 Hernandez, Cesar Camargo. Introducción al estudio del derecho penal. Barcelona:Bosch. 1960. P.9.17 Neste sentido: Rocco, Arturo. El objeto Del delito y de la tutela jurídica penal. Contribui-ción a las teorías generales del delito y de la pena. Montevideo – Buenos Aires: BdeF. 2001. Pp. 29-30.18 Feuerbach, Anselm von. Tratado de Derecho Penal. Buenos Aires:Hammurabi. 1989. P. 64.19 Idem. Ibidem. P. 164.20 Hernandez, Cesar Camargo. Introducción al estudio del derecho penal. Barcelona:Bosch. 1960. P.45.21 Mir Puig, Santiago. Derecho Penal. Parte Ge-ral. Barcelona: Edição do Autor. 1998. Pp.7-8. 22 Segundo Mir Puig, o estudo dos limites ao poder de punir são feitos no âmbito do Direito Penal Subjetivo, verbis: “La alussión al Dere-cho penal em sentido subjetivo será oportuna más adelante, cuando se trate de fijar los limites que há de encontrar el derecho del Estado a in-tervir mediante normas penales”. Op. Cit. P.8. 23 Mir Puig, Santiago. Derecho Penal. Parte General. Op. Cit. Pp. 71 e ss.24 Cerezo Mir, José. Curso de Derecho Penal Español. Madrid:Tecnos. 1993. P.15.25 Cesar Bonecasa. Marques de Beccaria. Trata-do de los Delitos e de las Penas. Buenos Aires:Arengreen. 1945. P.47.26 Feuerbach, Anselm von. Tratado de Derecho Penal. Buenos Aires:Hammurabi. 1989. P.63.27 Engisch, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico.Lisboa:Calouste Gulbenkian. 2001. P.206.28 Bettiol, Guissepe. Mantovanni, Luciano Pe-toelo. Diritto Penale. Pádua: CEDAM. 1986. P.20.

CláuDio BRanDão

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29 AC 98.873. Rel. Des. Luiz Betanho. In: Fran-co, Alberto Silva et alli. Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. São Paulo:RT. 1993. P. 2595.30 Tradução livre de: „ Syntax soll also heiβen: der Zusammenhang von Zeichen mit anderen Zeichen, Semantik: der Zusammenhang von

Zeichen mit Gegensatänden, deren Bezeich-nung behaupetet wird, und Pragmatik: der situativ Zusammenhang, in dem die Ziechen von den Beteiligten jeweils benutzt werden“. Viehweg, Teodor. Topik und Jurisprudenz. München: Beck. 1974. P.111.

SIGNIFICADO POLÍTICO-CONSTITUCIONAL DO DIREITO PENAL

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1. Introdução

A Constituição brasileira é, atualmen-te, o alvo dos assuntos relativos à econo-micidade e, também, objeto de tiranização por parte da Administração Governativa por desconhecer os princípios elementares dos estudos jurídicos-econômicos como forma de garantias constitucionalmente fundamentais da vida humana. Daí, a Teo-ria Constitucional do Direito, nos âmbitos (vertentes), da economia e da política, for-necer uma rampa de decolagem para novas Teorias sobre Constituição Econômica, e Direitos Fundamentais, já acertados na constitucionalidade democrática de 1988.

A reelaboração dos conceitos de li-quidez e certeza e intervenção do Estado, assumiu novos contornos teóricos sob a ótica constitucional vigente, porque, no Estado de Direito Democrático, não é a intervenção em si, ou a liquidez e certeza

de direitos fundamentais que estabelecerá a segurança almejada, mas da legitimidade obtida pelo processo jurídico de fiscalidade incessante pelo discurso da instituição ga-rantidora do devido processo constitucio-nal e devido processo legislativo em todo o espaço-tempo da espacialidade brasileira.

2. Legalidade e intervenção econômica do Estado.

Cedo se verificou que os problemas humanos eram mais nefastos do que se imaginava. Sabemos hoje, que o sujeito e a identidade constitucional (ROSENFELD, 2003: 18) são complexos, pois a experiên-cia nos mostrou, e é óbvio que bem apren-demos com os erros. No entanto, essa mes-ma experiência constitucional levou-nos a ver a tentativa de racionalização de um Direito que regulasse um estado de misera-bilidade social ao lado de uma riqueza com raiz nos privilégios de nascimento.

TEORIA ECONÔMICA DO DIREITO NACONSTITUCIONALIDADE DEMOCRÁTICA

ECONOMIC THEORY OF RIGHT INSIDE THE DEMOCRATIC CONSTITUTIONALITY

anDRé Del negRi*

Recebido para publicação em julho de 2005

Resumo: Este trabalho abre espaço para discutir as políticas econômicas adotadas na constitucio-nalidade democrática brasileira de 1988, a qual tem comprometimento com os direitos fundamen-tais já acertados no plano constituinte. Palavras-Chave: Constitucionalidade econômica. Democracia. Direitos fundamentais.

Abstract: This work makes way to discuss the economic policies accepted by the Brazilian de-mocratic constitution in 1988, which involves well-founded fundamental rights accorded in the constitutional level.Key Words: Economic constitution. Democracy. Fundamental rights.

* Mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da UFMG. Professor Universitário de Teoria da Constituição e Direito Constitucional na Universidade de Uberaba. Assessor Técnico da Escola Superior de Advocacia da OAB/MG.

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Vimos à atuação do liberalismo es-tatal voltada à proteção da propriedade privada e dos direitos individuais, onde o direito político era o direito do proprietário de terras. Assim, apenas a melhor socieda-de podia participar dos direitos políticos, o que, aliás, pode ser depreendido, clara-mente, na França, em 1791,

“Cette élaboration est confiée à une assemblée dont les membres sont élus au suffrage censitaire seuls peuvent prendre part au vote les «citoyens actifs», c’est-à-dire les hommes âgés de plus de vingt-cinq ans qui paient une contribution directe an-nuelle au moins égale à la valeur de trois journees de travail dans les dsitrict où ils habitent. La faculté de voter n’est pas con-çue cmme un droit, mais cmme un rôle, une fonction, que la nation confère à ceux que les Constituants jugent les plus aptes à l’exercer.” (FAVOREAU, 2002: 449)

Como resultado, a história das so-ciedades mostra antagonismos de classes, e seus pontos de rupturas em que a velha ordem jurídica é substituída por uma nova. Foi assim que França (SIEYÈS, 1988: 32) ao teorizar acerca da atividade constituinte, argumentava que o terceiro estado (gran-des comerciantes, altos funcionários, la-vradores) não deveria mais sustentar a alta nobreza e nem o alto clero. Daí, as análises sobre revolução e a esperada evolução por intermédio de uma lei contendo princípios de igualdade e liberdade para todos.

Evidente que o constitucionalismo no século XIX tinha nítidas fragilidades. A proteção da propriedade e a política como uma instituição para poucos fundamenta-rem as práticas sociais desse período, em que a liberdade econômica fomenta a livre concorrência acarretando, como conseqüên-cia, um impulso ao capitalismo o que acele-rou o abuso sobre os menos favorecidos e o surgimento do Estado como instrumento de opressão política e econômica. Fácil é compreender por quê. Nesta época, como já

visto, a característica essencial desse Esta-do constitucional era a liberdade, principal-mente a liberdade econômica, marcada pela não-intervenção do Estado na economia.

Com a idéia do laissez-faire, laissez-passez (não havendo essa intervenção), o Estado Liberal entrou em crise, com os qua-dros de exploração dos seres humanos como os relatados à época da Revolução Industrial, situação que gerou a pobreza, o descontenta-mento e o aumento das desigualdades.

A este propósito, merece referência a observação de Marx, a respeito da compe-tição livre e igual para todos que, por exato, apontou o capitalismo irrestrito desse perí-odo como o fato gerador de uma vida de desolação e miséria. Em seu aspecto descri-tivo, Marx mostra sem dificuldades a indi-gência de mulheres e crianças como o caso vivido por William Wood, (MARX,1976: 327) sem compleição física, 7 anos de ida-de que, ia para o trabalho todos os dias da semana, às 6 hora da manhã, e saía às 9 da noite; quinze horas de trabalho para uma criança, sem dúvida é uma incrível arro-gância, assim como, também o é, o caso de Mary Anne Walkley (MARX, 1976: 339), que depois de trabalhar, sem descanso, 26 horas e meia, morreu em conseqüência do excesso de trabalho.

Daí que o “século XIX conheceu desajustamentos e misérias sociais que a Revolução Industrial agravou e que o Li-beralismo deixou alastrar em proporções crescentes e incontroláveis” (MAGA-LHÂES, 2000:44). Aqui necessário se faz uma observação de José luiz QuaDRos De Magalhães, a de que “o Estado Liberal passou a admitir uma sensível mudança de postura perante as questões socioeco-nômicas”, (MAGALHÂES, 2000: 64) e o fato de as convicções serem determinantes de mudança, é a Lei Sherman, a qual sur-giu em 1890, nos Estados Unidos, como modelo de legislação anti-truste, visando combater a concentração econômica.

TEORIA ECONÔMICA DO DIREITO NA CONSTITUCIONALIDADE DEMOCRÁTICA

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É bom lembrar que a Primeira Guer-ra Mundial funcionou como um divisor de águas entre o Estado Liberal e o Estado So-cial (Welfare State). O primeiro, como vis-to, abstencionista, o derradeiro, conforme será analisado, socializante e paternalista incentivado pela Encíclica Rerum Nova-rum do Papa Leão XIII a qual proclamou atenção ao lado social, refutando a idéia de capitalismo selvagem. Como se sabe, o constitucionalismo social acaba criando as chamadas Constituições Sociais. “É com a promulgação das Constituições mexica-na, em 1917, e de Weimar em 1919, que as questões econômicas se incorporaram à regulação constitucional, exercendo des-de então considerável influência sobre a legislação de outros países”. (AGUILAR, 1999: 147).

Esse novo ordenamento jurídico efetivou-se através de um Estado inter-vencionista, mais atuante e preocupado em estimular o crescimento e desenvolvi-mento das inúmeras atividades ligadas às áreas da saúde, educação, cultura, família e previdência social. O Estado abandonou sua posição de espectador passando a in-terferir nesses movimentos com uma linha de crescimento constante na economia, nos empregos e nos impostos arrecada-dos, ocasionando, conseqüentemente, um maior bem-estar à sociedade. Certamente que o Estado Social, em sua concretude, foi privilégio de poucos países, principal-mente de alguns países europeus.

Diante dessa fase estatal, as leis ela-boradas pelos parlamentos estabelecem uma série de direitos sociais mínimos an-tes ausentes, como, por exemplo, a jornada máxima de trabalho de oito horas, repouso semanal remunerado, o amparo à criança e ao adolescente, dentre outros. Com o início de uma nova era social, o Estado intervencionista toma corpo e em nome da solidariedade substitui-se a individu-alidade. O interesse coletivo passou a ter

maior importância que o individual e a so-ciedade se fortalece surgindo os primeiros delineamentos de um Estado mais presente e atuante.

Embora o vigente sistema constitu-cional brasileiro acrescente inovações à proteção dos direitos dos cidadãos contra a administração governativa, está longe de haver uma total garantia desses direitos. Isso significa que nenhuma das funções (executivo, legislativo e judiciário), no Es-tado de Direito Democrático, pode se recu-sar a dar efeito auto-aplicável aos direitos fundamentais expressos no art. 5°, § 1° da CB/88.

O que parece sempre difícil de-monstrar é que a intervenção do Estado no domínio econômico ainda é preferível se comparado a um capitalismo irrestri-to. Contudo, poderíamos parafrasear Karl Popper, (POPPER, 1987: 137) o qual sus-tentava que não há um argumento decisivo contra o intervencionismo, uma vez que o poder do Estado deve sempre permanecer como um mal necessário.

Não parece convincente o argumento de que com a intervenção a liberdade dos cidadãos não será salvaguardada. Posta em outros termos, a questão é saber se existem meios e instituições para fiscalizar a atua-ção do Estado para que ele não atue como um Estado absoluto, verticalista e, portan-to, ditatorial. O caminho para compreen-são é esquecer a “velha pergunta de Platão, Hegel e Marx: Quem serão os governan-tes?”, por uma mais real: Como poderemos domá-los?” (POPPER, 1987: 140).

3. Sociedade capitalista e o rótulo marxista

Este é um bom momento para assi-nalar uma análise do determinismo eco-nômico. No entanto, a melhor maneira de observar possíveis afastamentos teóricos é saber que “a ciência começa com proble-mas e termina com problemas” (POPPER,

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1977: 141) frase exposta por um esquema que freqüentemente Popper usava em suas conferências: P1→TT→EE→P2. (PO-PPER, 1999: 263).

É dessa forma que propomos por em reflexão a debatida teoria marxista, sem a preocupação de um trabalho de fôlego. Marx conheceu muito bem as condições da classe trabalhadora em 1863, período em que esta-va escrevendo o Capital, a grande obra de sua vida. Este, aliás, é o livro que traz a ex-planação de sua teoria, quanto ao método da produção capitalista, o aumento da produti-vidade, a acumulação dos meios de produção e, conseqüentemente, uma riqueza cada vez maior em número cada vez menor de mãos. Aí, afloram as duas idéias-forças: o acrésci-mo da riqueza e da miséria e a tensão entre as duas classes, que levaria a uma revolução so-cial. Por sua vez, a vitória dos trabalhadores sobre a burguesia instauraria o surgimento de uma sociedade sem classes.

Reconhecidamente, Marx retratou um fato importante de seu período histó-rico, mas ao pedir que a luta de classes se intensificasse, a fim de acelerar a implan-tação do socialismo é necessário pensar “que a liberdade é mais importante do que a igualdade; que a tentativa de chegar à igualdade põe em perigo a liberdade e que, perdida esta, aquela nem chega a implan-tar-se entre os não livres” (POPPER, 1977: 43). A tentativa de Popper é desmontar o dogma marxista de que o poder econômi-co está na raiz de todo o mal e, portanto, deve ser repelido. Dizia o filósofo da ci-ência que “o dinheiro, como tal, não é par-ticularmente perigoso”. Torna-se perigoso qualquer forma de poder não controlado, pois em uma “democracia, temos nas mãos as chaves do controle dos demônios. Pode-mos domá-los. Devemos saber disso e usar as chaves; devemos construir instituições para o controle democrático do poder eco-nômico e para proteger-nos da exploração econômica” (POPPER, 1987: 135).

Um problema que parece se revelar confuso na dialética marxista, e que nos re-envia a uma análise sobre o argumento do aumento da miséria, é que se a revolução social do proletariado é o nome do período de transição da luta entre as duas classes até a vitória final dos trabalhadores, “a te-oria da miséria crescente deve ser abando-nada se se admite a possibilidade de refor-ma gradual” (POPPER,1987: 163).

Na base dessa objeção encontra-se uma atrativa reflexão: o que é Estado para Marx? A denominação de que o Estado é um órgão de dominação de classe para oprimir a outra, ou seja, é “um comitê para gerenciar os assuntos comuns de toda a burguesia”, (MARX, 1996: 12) não é um argumento justificador da seguinte e im-portante conclusão: “todo governo, mes-mo o governo democrático, é uma ditadura da classe governante sobre os governados” e, dessa forma, “como o Estado, sob o ca-pitalismo, é uma ditadura da burguesia, assim, após a revolução social, será ele primeiramente uma ditadura do proletaria-do.” (POPPER,1987: 127)

Qualquer instituição que recorra a essa idéia para justificar uma política ide-ológica vê-se diante de uma série de difi-culdades teóricas e práticas. Em primeiro lugar, “a liberdade, como vimos, derrota a si mesma, se for ilimitada”. Esse é o fa-moso paradoxo da liberdade de Popper, (PoPPeR, 1987: 131), ou seja, a “liberda-de ilimitada significa que um forte é livre de agredir um fraco e roubar a liberdade deste,” essa é a razão para referido autor defender a existência de instituições le-gais, já que o poder econômico é depen-dente do poder político e físico. Isso não é percebido em Marx, pois a política nada mais pode fazer do que “encurtar e minorar as dores do parto” (MARX, 1976: 1). Essa afirmação não se fundamenta; é como não pudéssemos fazer nada; é como não hou-

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vesse meio para alterarmos à nossa vonta-de a realidade econômica. Em termos ge-rais, na opinião de Marx, “é inútil esperar que qualquer mudança importante possa ser realizada por uso dos meios legais ou políticos” (POPPER, 1987: 116).

Os paradoxos parecem genuínos quando se aprofunda na leitura de Karl Popper em sua Sociedade Aberta. Há em Marx, um outro ponto crucial, o que pode até ser considerado uma imensa contradi-ção, ao trabalhar uma idéia problemática de democracia. Se há um acréscimo de rique-za em número cada vez menor de mãos, e um aumento da miséria para a classe traba-lhadora numericamente a crescer, se isto é verdade, assim como a que ele imaginava, de que o primeiro passo da revolução da classe operária seria elevar o proletariado à posição de classe dominante, então não tem havido uma explicação plausível do que seja democracia em Marx.

Há uma clara demonstração de que os meios de produção se têm acumulado e a produtividade do trabalho tem aumen-tado desde o seu tempo, “a uma extensão que mesmo ele dificilmente teria consi-derado possível. Mas o trabalho infantil, as horas de tarefa, a agonia da fadiga e a precariedade da existência do trabalhador não aumentaram: tudo isso declinou” (PO-PPER,1987: 193).

Assim, como acima exposto, esse insólito raciocínio de similitude entre de-mocracia e maioria, como bem anota Pau-lo Otero, (OTERO, 2001:171) deve ser repudiado, pois a exacerbação do princípio revelador da vontade maioritária como cri-tério decisório de verdade, poderá levar a um totalitarismo extremado, tal qual ocor-reu nas deliberações parlamentares na Ale-manha nazita e na Rússia estalinista.

De fato, na história pela conquista do poder percebe-se que a necessidade de apelar a uma parte considerável da popu-

lação fez com que houvesse a divinização do princípio maioritário, o qual elevado à categoria de fonte de verdade expressa na lei, acabou “por fazer sucumbir às suas próprias mãos a democracia, assistindo-se a instauração de um totalitarismo demo-craticamente legitimado”, (OTERO, 2001: 172) onde a democracia converteu-se em uma palavra vazia, originando um modelo paradoxal de democracia antidemocrática. Portanto, já é tempo de pensar a quebra desse princípio majoritário, como defendi-do por Locke, (LOCKE, 2002: 76) onde “a maioria tem a prerrogativa de agir e resol-ver por todos”, pois vem propiciando a uti-lização de uma ideologia intencionalmente falsificante, mascaradora e ocultadora da realidade e, com isso, um retorno ao pen-samento perturbador de enquadramento teórico da decisão pela autoridade-vonta-de-maioria, o que não encontra guarida nas democracias da modernidade.

Parece que aí se demonstra o mal da concepção marxista sobre a Teoria do Estado e da Democracia, de nada valendo a sua argúcia. Estado, hoje, como se pode notar, não é mais a representação unitária da nação concebida por Bodin e Hobbes, o guardião que age limitando, anuncian-do e manifestando as mudanças de forma unilateral, tomando e executando todas as coisas. Trata-se dentro desse holismo de um Estado visto como um indivíduo perfeito, de um super-indivíduo soberano fundamentado numa concepção puramente centrada no autoritarismo. É claro que isso corresponde a uma teoria anacrônica que, nos dias atuais, não mais pode ser aceita, sob pena de se presenciar um retorno ao autoritarismo.

Certamente, toda a regulação norma-tiva deve se desenvolver de acordo com a Constituição, que é a única fonte legitima-dora da ordem jurídico-política produzida pela atividade constituinte. O Estado, des-

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sa forma, é uma instituição que se legitima na Constituição, não podendo ultrapassá-la. Do contrário, se o Estado não se restrin-ge a obedecer aos limites constitucionais haverá uma extrema arbitrariedade e tam-bém uma superioridade do Estado sobre o indivíduo, tomando características de um Estado hegeliano, o qual não obtém a so-berania do povo, mas de si próprio, que via os cidadãos apenas como um componente de formação estatal (ABBGNANO, 2000: 109) o que do ponto de vista da sociedade aberta, é algo que deve ser afastado para se evitar um retorno à sociedade fechada na qual o Estado é tudo e o indivíduo é nada. (POPPER, 1987: 205)

Verifica-se, portanto, que o Estado na democracia é estabilizador dos atos produ-zidos no espaço democrático. Na sociedade moderna, fundada na racionalidade comu-nicativa, não se admite por parte do Estado nenhum tipo de sobressaltos e afronta aos direitos fundamentais, pois ele é, senão, o próprio lugar de garantia jurídica da lega-lidade e legitimidade.

4. A teoria econômica do direito em Ri-chard Posner

Richard Posner (POSNER, 2000: 120) não é apenas um former professors da Escola de Chicago, Estados Unidos. Ele é, certamente, um dos maiores pensadores e pode ser considerado um desmistificador. Para compreendê-lo, o primeiro ponto a ser analisado é que sua teoria está envolvi-da por um conceito de Moral, (POSNER, 2000: 249) o que, de logo, requer esclare-cer que não é nada ligado à Moral kantiana, pois não é axiomática, não é juízo como em Kant; em outros termos, a questão Moral é um compromisso para com os perdedores, e Posner aplica sua Moral à questão da efi-ciência, (ALPA, 1997: 19) não a eficiência produtiva do trabalho, mas a eficiência do sistema econômico.

Assim declinou Posner que o lucro, em si, tem que reservar uma partilha de si mesmo para reparar uma perda econômica, uma vez que ele acredita na hipótese per-manente de que todo ganho pressupõe uma perda que deva ser compensada.

Exemplifica-se: o problema das fave-las se agravou nos últimos anos. Apesar da ocorrência, constata-se o aumento constan-te de edificações em áreas próximas àque-las localidades. Em um lance controverso, podemos detectar que o edifício cresce, e a favela, ao lado, não muda; na verdade a situação até pode piorar. O crescimento estimado da construção, de fato, ocorreu, pois o edifício cresceu, o que não significa que a situação econômica melhorou para todos os moradores da favela; se houve crescimento, nesse exemplo, para um lado, houve queda constante do outro. O cres-cimento para os “favelados” foi zero, se comparado aos proprietários construtores de edificações. O conhecido caso da inau-guração da DASLU vizinha à favela Coli-seu em São Paulo, faz coro a essa exempli-ficação. Como corrigir essas distorções?

Percebe-se que a teoria de Posner é capaz de desenvolver políticas econômicas para que o ganho já incorpore uma indeni-zação a ser recolhida para um determinado fundo, pois todo ganho corresponde a uma perda. Observa-se que essa visão é com-pletamente diferente de um tributo confis-catório, pois o recolhimento é do plus, é do lucro; reserva-se um pedaço desse plus para o desenvolvimento de políticas eco-nômicas.

Já que o lucro no capitalismo é ine-vitável, e por um golpe de vontade não se pode erradicá-lo, Posner quer apenas dizer aos membros dessa sociedade complexa, enquanto jogadores do capitalismo, que há possibilidade de viabilizar um capitalismo numa concepção democrática. À medida que se faz essa viabilização, o capitalismo

TEORIA ECONÔMICA DO DIREITO NA CONSTITUCIONALIDADE DEMOCRÁTICA

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é amenizado e a democracia entra no sis-tema.

MaRx dizia que o capitalismo fica no lugar do mundo da vida, quer dizer, é um sistema que impede a ressimbolização do mundo da vida. A teoria de Posner, como apresentada até aqui, não diz isso e, portan-to, também, não vai contra as concepções de Habermas (haBeRMas, 1997: 10). Nessas circunstâncias, pode-se concluir que a grande proeza de Posner foi afastar o padrão dos escolásticos e seus dogmas: “não lesar ninguém”; “dar a cada um o que lhe é devido”. Há uma quebra de toda essa epsteme escolástica dizendo que o impor-tante, não é lesar a ninguém, mas uma vez ocorrendo lesão, o importante é saber se essa lesão pode ser sancionada.

5. Fundamentos de liquidez e certeza na constitucionalidade democrática

Até aqui, percebe-se uma sociedade extremamente complexa com uma série de sistemas especializados como o mercado, o Direito e o Estado. Assim, se, enfocar-mos por esse ângulo, pode-se concluir que o estudo de Direito Econômico torna-se imprescindível, pois abre espaço para dis-cutir, teoricamente, as políticas econômi-cas adotadas pela Constituição de 1988, a qual tem comprometimento com os di-reitos fundamentais já acertados no plano constituinte.

Rosemiro Leal (LEAL, 2005: 23) a partir do pioneiro trabalhado de Celso Bar-bi (BARBI, 2000: 12) em uma importantís-sima pesquisa científica, possibilitou esto-que teórico em face do aspecto de liquidez e certeza dos direitos fundamentais, sina-lizando aos operacionalizadores jurídicos uma compreensão compatível com a teoria da democracia. Referido autor demonstra que o conceito de liquidez e certeza, no aviamento do mandado de segurança, é muito banalizado na constitucionalidade

democrática. Por isso, propõe demonstrar que os direitos fundamentais incorporam os conceitos de liquidez e certeza no nível constituinte, a partir da decisão do legisla-dor constituinte.

Assim, a expressão direitos funda-mentais, para ser compreendida e não cair na vala banalizada passa, forçosamente, pelas acepções do que seja liquidez e cer-teza. O referido processualista ao questio-ná-las, dá mostras que nada adianta dizer a um operacionalizador do direito, o qual vai impetrar um instituto constitucional, como o mandado de segurança, alegando liquidez e certeza, se não tem compreen-são do alcance desses requisitos. Com base nesse estudo, também é inútil enfa-tizar que a escolha de um procedimento judicial ocorrerá por via do periculum in mora e de um fumus boni iuris, se o enten-dimento ocorrer num mundo onde a bem-aventurança do direito-de-ação (procedi-mento), só é possível depois de o autor da ação, instintivamente, visualizar um sinal de fumaça (fumus boni iuris). A “fumaça do bom direito” não é nenhuma fórmula, nenhum rito, nenhum cerimonial de algo situado “acima da terra” de forma etérea, aérea, sublime, pois essa plausibilidade do bom direito também tem comprometimen-to com a concepção de liquidez e certeza.

Para instaurar o procedimento do mandado de segurança e discutir a teoria dos direitos fundamentais, tem que passar pela compreensão do que seja direito liqui-do e certo na fundamentação democrática. No entanto, como dito, foi Celso Agrícola Barbi (BARBI, 2000: 49), que primeiro deu ênfase, no direito brasileiro, de forma escla-recedora, ao estudo da liquidez e certeza.

A expressão “direitos fundamen-tais” na constitucionalidade democrática, portanto, segundo Rosemiro Leal, pode ser compreendida a partir de plataformas de produção, porque teríamos o exemplo

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do plano constituinte que, ao racionalizar o Direito, automaticamente, esse direito debatido e acordado teria sua garantia já acertada, não podendo ser levada a poste-riores pela judicialidade, pois estão prote-gidos pela coisa julgada constituinte (coisa julgada em razão da decisão do legislador constituinte).

Assemelha-se à coisa julgada consti-tuinte a expressão coisa julgada constitucio-nal, sendo que esta última opera-se em uma órbita diferente, por ser realizada em razão de decisão judicial, obviamente posterior à criação do direito. Neste caso, a liquidez e a certeza não podem ser negadas ou erra-dicadas por uma decisão judicial, pois se o plano constituinte já decidiu, não será uma decisão judicial que irá assegurá-los no-vamente. A decisão judicial sobre direitos fundamentais, nesse parâmetro de liquidez e certeza, não é constitutiva desses direitos como se referia Carnelutti (CARNELUTTI, 1942: 55) ao afirmar que “Existe jurisdicci-ón de mera declaración constitutiva cuan-do la existência de la situación declarada judicialmente depende de la declaración judicial, la cual es, por lo tanto, um hecho constitutivo de la misma”.

Em sendo pública a função do juiz, é estranhável falar que ele irá, por inter-médio de sentença, constituir direitos, vez que essa decisão judicial é declaradora-executiva, ou seja, ela declara apenas o cumprimento, não o direito, pois este já foi declarado no plano constituinte. Oportuna a conclusão de Rosemiro Leal:

O anúncio de direitos fundamentais e intocáveis pela decisão constituinte tor-na imperativa sua existência institucional, uma vez que a liquidez e certeza desses di-reitos reclamam execução ininterrupta de mérito pressuposto já pré-julgado (decidi-do) no horizonte instituinte do legislador originário da constitucionalidade vigoran-te. (LEAL, 2005: 27)

Outro ponto extremamente discu-tido é, sem dúvida, a definição de ganho de eficiência, que, aliás, não tem a mesma compreensão no Estado Liberal e Social de Direito. No Direito Econômico de Estados de Direito Democráticos, como o Brasil, onde, vivencia-se uma exclusão social in-tolerável, o ganho de eficiência não pode ser entendido tão-somente como compor-tamento individual (visão atomizada), pois tem que ser medido pelo volume de imple-mentação dos direito à vida, à dignidade e à liberdade.

O ganho de eficiência vai significar a atuação dos agentes econômicos no âm-bito da estatalidade em uma relação custo-benefício, o que deveria ser estudado pelo princípio da economicidade, que é traba-lhado pelo Prof. Washingnton Albino.

Dessa forma, para Washingnton Al-bino (ALBINO, 1980: 3), o Direito Eco-nômico tem por objeto regulamentar as medidas de política econômica referentes às relações e interesses individuais e cole-tivos, harmonizando-as pelo princípio da economicidade. Assim, referido autor diz que “prefere o termo economicidade, como significando uma linha de maior vantagem nas decisões da política econômica (...).” (ALBINO, 1980: 30) Percebe-se, nessa versão, que a economicidade tenta afastar a questão delinqüente de lucro-benefício, preocupando-se com a implementação da qualidade de vida, e não com o perfil exi-toso dos agentes econômicos.

Direito Econômico, estudado no pa-radigma da Constituição brasileira de 1988, põe em prática, gradualmente, políticas econômicas que devem orientar o Direito Tributário para um melhor compromisso de implementação dos direitos constitu-cionalmente fundamentais. O problema está que, no Brasil, os tributos e as receitas tributárias por não rederem compromisso com o Direito Econômico do Estado de Di-

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reito Democrático, são responsáveis pela grande totalidade de lesões a direito, e o Congresso Nacional não se dá ao trabalho nem tem a coragem de rejeitar liminar-mente proposta de lei incompatível com essa discussão teórica aqui apontada. Daí as lesões que são cometidas com freqüên-cia pela Função Legiferante e pela Admi-nistração Governativa na gestão estatal.

Com efeito, seria curioso se, para a efetividade do ganho de eficiência do sis-tema, o Ministério Público estivesse em permanente fiscalização desses ganhos e dessas receitas, a fim de informar ao povo que há crescimento e atendimento aos direitos fundamentais. Eis, portanto, a relevância dessa instituição, pois se o Mi-nistério Público não fiscaliza, permanen-temente, o ganho de eficiência e em não havendo a sua divulgação, é claro que essa instituição não está cumprindo o seu papel constitucional, logo está na contra mão da constitucionalidade democrática e, certa-mente, isso implica em exclusão social e no aumento da miséria coletiva.

6. Conclusões

A análise do Estado, em princípio, foi feita ao arrimo de teorias com funda-mentalidade no liberalismo. É perpassar a história é ver que o Estado Liberal viveu permanente crise, por inaplicabilidade dos mecanismos de defesa a uma massa de desvalidos.

Mostra-se inquietante, ao nosso en-tender, o historicismo de Marx com o fim de explicar a ditadura do proletariado à medida que o tempo passa. Cresce, então, de aspecto, o conceito de historicismo, doutrina filosófica que tem o propósito a “explicação de acontecimentos presentes, remetendo-os às determinações do passa-do, além de estabelecer como inevitáveis as previsões futuras. Porque o destino his-tórico está definido de antemão, é possível

prever acontecimentos.” (NEIVA, 1999: 222). Em sendo assim, o capitalismo seria simplesmente mais uma fase nesse progres-so histórico inevitável. No entanto, como a história mostrou, o erro estava muito mais nas pessoas que operavam o sistema e na liberdade que lhes era concedida.

Dessa forma, o que Marx não fez, foi a crítica da crítica, ao esperar a destruição do capitalismo acreditando em uma espis-temologia. Ruptura rápida para este parto difícil, enigmático e estéril da revolução do proletariado.

Somente após longo tempo de deter-minismo e decisionismo, é que se passou à análise de um constitucionalismo volta-do para uma regulamentação da atividade econômica até chegar à inovação impor-tante trazida pela Constituição brasileira de 1988.

Por conseguinte, pode-se sintetizar, que o Direito Econômico do Estado de Direito Democrático, na vigência consti-tucional brasileira, preocupa-se com a im-plementação dos princípios fundamentais (direito à vida e dignidade humana) e a ins-tituição do Processo (contraditório, ampla defesa e isonomia), como direito-garantia constitucionalizada é total importância para a fiscalização das políticas econômicas.

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“BALANCEAMENTOS” ENTRE VALORES CONSTITUCIONAISE TEORIA DAS FONTES*

“BILANCIAMENTI” TRA VALORI COSTITUZIONALI E TEORIA DELLE FONTI

antonio RuggeRi**

Recebido para publicação em julho de 2005

Resumo: Relevado que os “balanceamentos” entre valores constitucionais pertencem, ao mesmo tempo, à teoria das fontes e à teoria da justiça constitucional, o escrito detém-se na contradição metodológica em que incorre a doutrina usual que, por um lado, se faz portadora de uma idéia de Constituição de inspiração axiológico-substancial e, por outro lado, reconstrói a total ordem das fontes na perspectiva formal-abstrata. Pelo abandono de tal perspectiva provém a relativização dos critérios de composição do sistema das fontes e, com ela, a necessidade do enquadramento das próprias fontes na perspectiva axiológico-susbstancial, que dê atenção às “coberturas” de valor dos quais possam aproveitar (mais ainda que as singulares fontes) as normas das próprias fontes produzidas. Percebemos então que os critérios ordenatórios (e, em especial, aquele cronológico e aquele da competência) são todos reenviáveis ao critério hierárquico. Uma especial consideração dispensa-se aos casos em que mais valores se aglomeram no mesmo campo, afirmando-se um em detrimento do outro, para se determinar suas freqüentes manipulações por parte do tribunal constitu-cional na condição de “balanceamento”... Passa-se, então, a examinar os casos de “balanceamento” não... balanceados, que se resolvem na “colocação entre parênteses”, ou seja, no desvio momentâneo, (e, a saber, na suspensão da eficácia) da norma constitucional expressiva de um valor recessivo. No quadro dos confli-tos internos à própria Constituição, uma especial consideração faz-se àqueles entre normas expressivas de valores fundamentais, até ao caso-limite de um valor que se rebela contra... si mesmo; e se releva o caráter ideológico das operações de “balanceamento” realizadas pela Corte constitucional, desenvolvendo-se algu-mas notas críticas a respeito da razão dos “balanceamentos” jurisprudenciais.Palavras-chave: Critérios ordenatórios, fontes, balanceamentos, valores constitucionais e razão.

Riassunto: Rilevato che i “bilanciamenti” tra valori costituzionali appartengono, allo stesso tempo, alla teoria delle fonti ed alla teoria della giustizia costituzionale, lo scritto si sofferma sulla contraddizione me-todologica in cui incorre la dottrina corrente che, per un verso, si fa portatrice di una idea di Costituzione d’ispirazione assiologico-sostanziale e, per un altro verso, ricostruisce l’intero ordine delle fonti in prospet-tiva formale-astratta. Dall’abbandono di tale prospettiva discende la relativizzazione dei criteri di compo-sizione del sistema delle fonti e, con essa, la necessità dell’inquadramento delle fonti stesse in prospettiva assiologico-sostanziale, che tenga cioè conto delle “coperture” di valore di cui possono godere (più ancora che le singole fonti) le norme dalle fonti stesse prodotte. Ci si avvede allora che i criteri ordinatori (e, in particolare, quello cronologico e quello della competenza) sono tutti riconducibili al criterio gerarchico. Una speciale considerazione è prestata ai casi in cui più valori si affollano sullo stesso campo, pretendendo di affermarsi l’uno a discapito dell’altro, sì da determinarsi frequenti loro manipolazioni da parte del tribunale costituzionale in sede di “bilanciamento”. Si passano, quindi, ad esaminare i casi di “bilanciamento” non… bilanciati, che si risolvono cioè nella “messa tra parentesi” (e cioè nella sospensione della efficacia) della norma costituzionale espressiva di un valore recessivo. Nel quadro dei conflitti interni alla stessa Costi-tuzione, una speciale considerazione è fatta a quelli tra norme espressive di valori fondamentali, fino al caso-limite di un valore che si rivolta contro… se stesso; e si rileva il carattere ideologico delle operazioni di “bilanciamento” poste in essere dalla Corte costituzionale, svolgendosi alcune notazioni critiche a riguardo della ragionevolezza dei “bilanciamenti” giurisprudenziali.Palavras-chave: Criteri ordinatori fonti bilanciamenti valori costituzionali ragionevolezza.

* Traduzido do italiano para o português por Juliana Salvetti e revisto por Marcelo Lamy e Luiz Carlos Souza Auricchio.** Professore Ordinario di Diritto Costituzionale nell’Università di Messina (Italia). – Direttore del Dipartimento di Scienze Giuspubblicistiche “T. Martines” dell’Università di Messina. [email protected].

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1. Cada um dos termos dos quais se compõe o título dessa minha reflexão exige uma explicação preliminar e – principal-mente – deve ser esclarecida a razão da sua reunião em uma única expressão lingüísti-ca. É, todavia, claro que não posso agora, não digo retomar do princípio ao fim an-tigas e ainda muito controversas questões de teoria geral, mas nem sequer tratá-las de modo aproximativo e precipitado. Encon-tro-me, então, forçado a tirar de algumas premissas que aqui dou por adquiridas, enviando a outros momentos a sua justifi-cação. Tentarei, portanto, desenvolver um itinerário pessoal de pesquisa para trazer algumas conclusões que me parecem mere-cedoras de aprofundamentos posteriores.

As teses que me proponho argumen-tar são as seguintes: 1. os assim chamados “balanceamentos” entre valores consti-tucionais constituem um dos capítulos principais do livro das fontes, são, pois, uma species de uma teoria geral do orde-namento, mas essa última, por sua vez e circularmente, ressente do modo em que os balanceamentos são ambientados e re-solvidos e, por isso, se renova com a re-novação dos próprios ‘balanceamentos’; e, já que os “balanceamentos” tomam corpo, em última instância, em sede aplicativa (e, especialmente, na condição dos juízos de constitucionalidade), assim 2. a teoria das fontes conflui e se converte na teoria da justiça constitucional e ambas se colocam como as duas faces de uma mesma moe-da, que é determinada por uma teoria da Constituição por valores; 3. verdadeiros e próprios “balanceamentos”, na maioria das vezes, não existem, se por ele entendemos uma satisfação autenticamente igualitária (exatamente “balanceada”) entre valores constitucionais ocasionalmente em confli-to, eles se resolvem antes no domínio de um valor sobre um outro; 4. a técnica com que os próprios “balanceamentos” são re-alizados, a assim chamada razoabilidade,

joga uma ponte entre o mundo da reali-dade e o mundo das normas, entre o ser e o dever ser e, no final, determina-lhe a recíproca compenetração e semelhança; 5. todos os critérios com os quais as fontes são sistematizadas deixam-se reconhecer e apreciar através da razão e se revestem de modo camaleônico das formas da razão, até o ponto de se assimilar inteiramente por essa última, com a conseqüência que 6. parece ser, sobretudo, apropriado dis-correr de um sistema não agora das fontes, mas das normas, na sua recíproca, móvel composição em relação às exigências dos casos e segundo valor.

Obviamente, trata-se de pontos que somente de modo artificial, por uma aná-lise cômoda, podem ser consideradas re-ciprocamente distintas, mas que, antes, remetem-se continuamente um ao outro; tanto que, no decorrer dessa minha expo-sição, não poucas vezes serei obrigado a antecipar conceitos que serão, portanto, retomados mais adiante, assim como, ao inverso, rever o que já foi dito.

2. A primeira das premissas aqui da-das por certas aborda uma crucial questão da teoria geral: o que é a Constituição, na sua total caracterização. Suscito aqui uma das concepções atualmente mais confirma-das entre os estudiosos, aquela segundo a qual a Constituição é, na sua essência, uma tabela de valores positivados (A. Baldas-sare). Ninguém, obviamente, duvida que a Constituição não se reduza somente nisso, mas que seja ainda fundamento e limite da soberania (A. Spadaro). E, ainda que essa dilatação do conceito, se prestarmos aten-ção, pode igualmente reportar ao primeiro, para os nossos objetivos, especificamente interessante.

Sobre a relação entre a Constituição e soberania não falarei agora, a fim de não aumentar muito o raio de ação dessa mi-

“BALANCEAMENTOS”

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nha reflexão, que já é por demais extensa. Limito-me somente a observar que, com específica referência aos ordenamentos de tradição liberal-democrática, a soberania popular é, ao mesmo tempo, fundadora da Constituição, mas também, circularmen-te, por ela fundada. É fundadora, desde o momento em que a Constituição é filha da vontade popular, expressa por uma assembléia constituinte, livremente for-mada (sendo o documento constitucional submetido à ratificação popular mediante referendum ou não). Uma vez, porém, que a Constituição tenha entrado em vigor, o povo repõe as armas utilizadas no decorrer do fato constituinte e se submete à Consti-tuição, deve a ela se submeter se quiser dar um sentido à própria Constituição, como lei fundamental (no significado de funda-mento) do ordenamento.

Soberano no significado subjetivo é, e em um ordenamento democrático está-vel, o povo; soberano no significado obje-tivo (ou melhor, axiológico-objetivo) é, ao contrário, somente a Constituição.

Os dois conceitos não só não se ex-cluem alternadamente, mas exigem inte-grarem-se reciprocamente, apóiam-se um no outro; e oferecem uma representação inevitavelmente parcial (e, como tal defor-mante) seja da Constituição seja da sobera-nia. Essa última tem, finalmente, um duplo vulto: existem os sujeitos ou os órgãos que a encarnam e concretamente exprimem, mas há também quem os reconhece e habi-lita para exercitá-la. Desse ponto de vista, a antiga disputa se soberano é o povo ou o estado, a meu ver não há nenhum sen-tido, se conviermos a respeito do fato que a Constituição conhece expressões de so-berania direta por parte do povo (pensan-do-se no referendum) junto de expressões de soberania indireta (essencialmente a de-mocracia representativa). No sentido sub-jetivo, em suma, pareceriam existir dois

‘soberanos’, o povo e o Estado (porém, até essa difundida e tradicional opinião é mui-to artificial e forçada, testemunhado pelo fato de que o povo é o Estado, não um quid distinto do próprio Estado).

No sentido objetivo, todavia, o ‘ver-dadeiro’ soberano não é aquele que é pro-clamado pela própria Constituição, mas aquele que designa o soberano, é a Consti-tuição. O artigo 1º da Constituição italiana afirma solenemente que “a soberania per-tence ao povo, que a exercita nas formas e nos limites da Constituição”. As modali-dades de manifestação da soberania, assim como os limites por elas encontrados são, portanto exclusivamente e soberanamente estabelecidos pela Constituição. E, uma vez que - como direi melhor adiante - a es-sência indisponível da Constituição repou-sa nos seus princípios fundamentais, in-tangíveis pelo próprio poder (constituído, e não constituinte) de revisão constitucio-nal, se nele existe a essência da soberania constitucional, no sentido axiológico-nor-mativo, está nos seus valores fundamen-tais (G. Silvestri), valores necessariamente pré-jurídicos quanto à sua origem e à sua íntima e completa natureza, mas que, tanto quanto necessariamente, exigem ser po-sitivados. Os princípios fundamentais da Constituição constituem, assim, a imagem normativa mais genuína e imediatamente expressiva dos valores em nome dos quais o poder constituinte tem conduzido a sua batalha vitoriosa pela afirmação de uma nova ordem constitucional, em interrupção em relação ao velho pelo mesmo derruba-do.

Como se vê, também fixando a aten-ção, justamente, sobre a soberania popular como fundamento da Constituição (e, por reflexo, de todo o ordenamento) e sobre a própria Constituição como limite do poder acaba-se do mesmo modo chegando-se a uma concepção axiologicamente orientada da Constituição.

antonio RuggeRi

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“BALANCEAMENTOS”

Do meu ponto de vista (e diferente-mente dos outros), pois, não é de especial relevo, com referência ao tema que hoje tratamos, se é mais apropriado raciocinar sobre um ‘balanceamento’ entre valores ou entre princípios ou, ainda, entre bens ou interesses constitucionalmente protegidos (R. BIN, G. ZAGREBELSKY, O. CHES-SA). Considero, de fato, a disputa mais nominalística que real, se for conveniente que a experiência jurídica não pode ser ob-jeto de parciais ou unilaterais observações. Os valores - como acabamos de notar - ga-nham destaque juridicamente através das normas, sejam elas regras como princípios (mas, principalmente, através desses últi-mos); as próprias normas fazem referência a bens da vida, incorporam e exprimem en-tão interesses. Separar uns dos outros ele-mentos dos quais é feita a prática jurídica não pode, assim, ser feita se não em um modo absolutamente artificial e forçado.

A segunda das premissas, direta e imediatamente descendente da primeira e à mesma intimamente ligada, é que as nor-mas constitucionais, além da sua habitual pertinência ao documento que está na base do ordenamento, não são todas dotadas do mesmo relevo jurídico ou da mesma for-ça. Não pretendo agora me empenhar em uma qualificação que arriscaria, todavia, ser inadequada. Muitos estudiosos consi-deram os princípios fundamentais como normas ‘superconstitucionais’: uma ex-pressão que seguramente dá a idéia exata de sua caracterização peculiar, mas que igualmente pode revelar-se enganosa, se considerarmos que os próprios princípios não estão, obviamente, acima, mas sobre-tudo dentro da Constituição.

Um ponto é certo, que somente al-gumas normas constitucionais, expressi-vas de princípios fundamentais, resistam até a mais vigorosa manifestação de po-der constituído, ou seja, às leis de revisão constitucional. Nesse sentido justifica-se

a tese habitual que vê, de fato, reciproca-mente graduadas as normas constitucio-nais: um ordenamento hierárquico, que se reflete ainda que sobre as modalidades de desenvolvimento das operações de balan-ceamento e nos seus relativos êxitos.

Não me detenho, agora, especifica-mente no exame crítico da tese, que tem tido de nós nos últimos tempos um certo interes-se, segundo a qual a própria distinção entre poder constituinte e poderes constituídos mereceria ser revista e, até, deixada de lado, do momento em que a noção de ‘poder cons-tituinte’ teria agora um mero valor histórico e estaria exaurida com a vitória do ‘modelo’ de Estado liberal-democrático. Uma tese que, todavia, confunde os nossos desejos com a realidade constitucional. Como a experiência de muitos ordenamentos ensi-na, conhecem-se, de fato, não poucos casos de violento enfraquecimento das estruturas democráticas por obra de forças políticas que não se fazem portadoras do patrimônio de valores herdado pelas sociedades libe-rais. Aquilo que deve ser agora esclarecido é que, também seguindo a ordem de idéias patrocinada por essa doutrina, confirma-se posteriormente a existência de limites in-tangíveis à revisão: com a não secundária diferença segundo a qual os próprios limi-tes, pela opinião favorável à manutenção da distinção entre poder constituinte e poderes constituídos, apresentam caráter normativo, enquanto segundo a tese aqui criticamente exibida teria caráter meramente factual ou existencial, no sentido que não se consegui-ria imaginar como materialmente possível uma inversão dos princípios fundados so-bre os valores de liberdade e democracia. De um modo ou de outro, como se vê, os princípios fundamentais estariam, todavia, protegidos de toda possível forma de inci-são operada em seu prejuízo.

3. A existência de uma ordem hierár-quica das normas constitucionais baseadas

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no valor não permanece, como está claro, sem conseqüências aos graus inferiores da escala hierárquica e sobre os desenvolvi-mentos completos das dinâmicas jurídicas, sejam elas no grau das normas e da sua sistematização, e sejam mesmo no grau (e pelas exigências) da aplicação, em condi-ções de ‘balanceamento’ entre normas ou valores, que se queiram.

Realmente é singular e francamen-te espantosa a contradição, metodológica antes ainda que teórico-dogmática, na qual na minha opinião cai a doutrina corrente, no momento em que dá lugar a uma siste-matização das fontes de tipo formal-abstra-ta, mas partindo das premissas apreciáveis unicamente na perspectiva axiológico-substancial. Rompe-se, de tal modo, o fio que liga (e deve incessantemente unir) as conclusões às próprias premissas.

Se, de fato, é correto o ponto de par-tida teórico, segundo o qual as normas constitucionais não exprimem com a mes-ma intensidade os valores fundamentais, se definitivamente limitam-se de forma absoluta e insuperável ao poder de revisão constitucional, pergunto-me como é possí-vel deste ponto chegar à conclusão segun-do cujas fontes têm um ‘lugar’ no sistema que permanece sempre o mesmo, exata-mente como o sujeitos retratados em uma fotografia. Só que, justamente, como os próprios sujeitos uma vez tirada a fotogra-fia, voltem prontamente a se movimentar, fazem novas relações entre eles ou diluem o modificam aqueles pré-existentes, enve-lhecem, mudam (mesmo em certos limites) escolhas e orientações, assim até as fontes não estão absolutamente em relação entre elas em modos sempre idênticos, mas, de fato, se renovam, e fazendo isso mudam de lugar e fazem renovar sem pausa todo o or-denamento, mesmo mantendo-lhe a com-pleta identidade, numa sólida ancoragem e na fidelidade incessantemente manifestada aos valores fundamentais.

Para compreender a fundo como se protegem as coisas, é necessário prelimi-narmente tomar consciência do fato que a teoria dos limites para a revisão constitu-cional é ambientada na perspectiva axio-lógico-substancial, enquanto o restante da teoria das fontes recebe estranhamente o seu enquadramento usual na perspecti-va formal-abstrata. Só que essa segunda teoria não é, não pode ser artificialmente mantida separada da primeira, mas se co-loca (ou melhor, deveria colocar-se) como o prolongamento natural da mesma. Não deveriam, portanto, existir duas teorias detentoras de uma inspiração e um desen-volvimento metodologicamente incompa-tível, mas precisamente uma única teoria, qual seja, pois, o implante metodológico (axiologicamente fundado).

A teoria dos limites para a revisão constitucional não teria nenhum sentido no momento em que o legislador pudesse remover sem nenhum obstáculo ou san-ção as normas que dão a primeira, direta e imediata e, por isso mesmo, necessária atuação aos princípios básicos do ordena-mento. Isso vale tanto para as normas da própria Constituição, que podem ser consi-deradas ‘cobertas’ pelos princípios mesmo que elas não sejam princípios, quanto pelas normas de leis comuns, que se beneficiam igualmente de ‘cobertura’ constitucional axiologicamente qualificada.

Certamente, estabelecer quando uma norma pode exibir uma tal proteção e em que medida efetivamente pode usufruí-la é uma questão especialmente complexa, teorica e (também principalmente) prati-camente. Concluindo, somente a prática jurídica pode dar uma resposta satisfató-ria para tal questão. Não existe e não pode existir um critério formal, como tal idôneo para ser levado às aplicações uniformes e certas, com o qual resolver a questão das ‘coberturas’ de valor: precisamente porque

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os valores remetem a critérios de natureza substancial para o seu reconhecimento (em última instância à ‘técnica’ da razão). Ali-ás, não teria sentido afirmar primeiramente a existência das ‘coberturas’ mencionadas e, portanto, admitir que, a relativa dinâmi-ca, se desenvolva no plano e com critérios formais.

Um primeiro ponto pode se teorica-mente fixado; e é que as ‘coberturas’ de valor podem (e devem) ser pensadas, se quisermos dar um significado prático à teoria dos limites à revisão constitucional, ou seja, à teoria de que existe um patri-mônio de valores que dá a essência ou a identidade da Constituição e em que está fundamentado o inteiro ordenamento. De outra forma, esvaziar e dispersar tal patri-mônio seria uma brincadeira de criança, se fosse propriamente permitido agredi-lo e saqueá-lo, seja de maneira desleal e in-direta, através do ataque frontal às fontes (ou melhor, às normas) que dão a direta e imediata atuação.

4. Percebemos assim rapidamente que os critérios usuais de sistematização dinâmica das fontes, daquele hierárquico (no sentido formal) àquele cronológico, sofrem uma forte relativização da sua im-portância e uma completa metamorfose, de fato, axiologicamente orientada, a ponto de ser - em alguns casos - tombados sobre si mesmos (A. Ruggeri).

4.1. Refletindo, por exemplo, no modo em que habitualmente opera o câno-ne cronológico.

Nenhuma dúvida que, regularmen-te, as leis comuns possam livremente se-guir-se uma após outra. Trata-se, porém, apenas de uma regra; e a exceção é deter-minada justamente pela subsistência de uma cobertura de valor em vantagem da fonte anterior, para que a proteja de mo-

dificações que devessem, mesmo indireta-mente, incidir sobre a norma superior de cobertura. A relação entre as duas leis em campo é apenas aparentemente bilateral; na realidade, é trilateral, do momento em que sempre retorna ao modo com que cada uma das duas leis se coloca em relação à Constituição: pode-se dizer também que é uma relação bilateral, mas da singular lei (ou melhor, das suas normas) a respeito da Constituição.

Todas às vezes que a Corte constitu-cional anula uma norma de lei (e o mes-mo vale, naturalmente, com as devidas adaptações, nos sistemas de jurisdição constitucional difusa, por tudo que diz res-peito a desaplicação das normas inconsti-tucionais), o parâmetro em nome do qual a própria anulação é operada é unicamente aquele constitucional, por certo não a lei ordinária ab-rogada ou diversamente mo-dificada pela lei anulada, por sua vez ado-tada a fim de dar atuação à Constituição. E, o mesmo parâmetro constitucional sem a lei a ele funcionalmente interligada não seria capaz de se manter: no plano inter-pretativo, em primeiro lugar, e, portanto, naquele positivo.

No plano interpretativo, dizia-se, se nos convém a tese, que é especialmente lembrada (A. Ross), segundo a qual a pró-pria interpretação das disposições consti-tucionais em maior ou menor medida se alimenta das disposições de leis comuns chamadas a dar especificação-atuação àquelas disposições. Aqui se posiciona, aliás, totalmente a ‘circularidade’ da expe-riência jurídica, dentro da qual cada norma faz o ‘sistema’ com as outras (não só com aquelas do mesmo plano, mas também com outras, tanto superiores quanto inferiores), exatamente nesse seu continuo ‘dar e ter’ no plano semântico. Mas, depois, a verda-de é que, se por um lado todas as normas do qual se compõe um ordenamento, mais

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ou menos diretamente, mantêm-se pelos princípios fundamentais, não é menos ver-dade que esses mesmos princípios se man-têm por sua vez pelas normas inferiores: desmoronariam miseravelmente, no exato momento em que devessem ser privados do desenvolvimento e, por isso mesmo, da sustentação que lhes é assegurada pelas leis ordinárias e, diminuindo gradativa-mente, pelos regulamentos, práticas admi-nistrativas e jurisdicionais, etc.

Dá-se, por fim, que os princípios e as normas constitucionais em geral fun-dam e sustentam o ordenamento inferior, mas esse último também sustenta a Cons-tituição: a norma de lei tem significado, um seu sentido e uma sua ‘força’ no todo peculiares, justamente graças à ‘cobertura’ axiológica que ela é capaz de exibir; mas a própria norma constitucional de ‘cobertu-ra’ adquire significado pelo trâmite das leis e das práticas em geral que a especificam e atuam: aquela com essas é tudo, mas essas sem aquela não são nada.

A Corte constitucional, portanto, anula uma norma de lei em nome da rigi-dez da Constituição; mas, a Corte, mesmo sem anunciá-la expressamente, tem sem-pre cautela do modo com que a norma constitucional assumida como parâmetro vive na experiência, pela atuação que a ela é dada por normas inferiores e pelo signi-ficado que, mesmo graças a essas últimas, ela assume inteiramente.

Aqui é o primeiro ‘balanceamento’, que sempre é feito, e não somente - como, ao contrário, muitos acreditam - em alguns casos, em que são expressamente avalia-dos valores constitucionais potencialmen-te em conflito. A Corte pondera sempre “a situação normativa” que se tem com a manutenção em vigor da lei submetida ao juízo de constitucionalidade com a “situ-ação normativa” que se teria conseqüen-temente pela sua anulação. E não poucas

vezes o vulto que se teria com a anulação é considerado ainda mais inconstitucional em relação à manutenção em vigor de nor-ma em essência inconstitucional. A Corte, finalmente, é sensível às conseqüências que podem ocorrer em um caso e no ou-tro: ‘balanceando-os’ reciprocamente. Seja quando anula, seja quando salva uma nor-ma de lei, a Corte opera sempre um ‘balan-ceamento’ axiológico.

Não é o momento de analisar meti-culosamente os dois casos mencionados; é importante somente evidenciar que não raramente a Corte anula uma lei que mo-dificou ou ab-rogou outra lei anterior em nome da sua inconstitucionalidade: uma inconstitucionalidade que, nos fatos, se traduz em uma proteção a favor da lei ve-lha, todas às vezes que, em seguida da anu-lação da lei nova, a disciplina precedente torna a se expandir e volta em vigor.

4.2. O discurso é generalizável e en-volve o próprio critério hierárquico segun-do forma.

Pensando-se, por exemplo, no orde-namento hierárquico, para nós como para outros, em que estão as leis constitucionais e as leis ordinárias. As primeiras nascem com o procedimento especial e mais difi-cultoso que o normal indicado no artigo 138 da Constituição e, exatamente por isso, estão habilitadas a derrogar à própria Constituição (protegendo-se os princípios fundamentais); as outras, ao contrário, es-tão, todavia, sujeitas à observância integral da Constituição e das outras leis constitu-cionais.

Ninguém duvida que as leis constitu-cionais supervenientes em relação às leis ordinárias possam ser dotadas de conteú-dos contrastantes; discute-se, também, se as antinomias em palavras comporta a in-validade das leis comuns, como tal neces-sitada de ser verificada em caráter judicial

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(para nós, pela Corte constitucional), ou a ab-rogação das próprias leis, como tal relevável por qualquer um em sede apli-cativa. Com toda probabilidade, ambas as qualificações podem ser adequadamente utilizadas, dependendo da estrutura e da completa conformação lingüística das dis-posições afrontadas, na prática, a própria jurisprudência constitucional, que mesmo na sua primeira pronúncia (a número 1 de 1956) havia esplanado o percurso tanto da anulação por invalidez quanto da desapli-cação por ab-rogação, havia feito de tudo para atrair para si toda forma de antino-mia.

E então, a solução da sistemática pre-dominante, de um modo ou de outro, das leis constitucionais sobre as leis comuns é, entretanto, subordinada à condição da ob-servância escrupulosa por parte das primei-ras leis dos seus próprios limites. Deduz-se, então, que, enquanto isso não devesse acontecer, poderia ser visto a anulação de norma constitucional que se traduza, nos fatos, na manutenção em vigor ou mesmo na recuperação do vigor da norma ordiná-ria dotada da ‘cobertura’ a ela oferecida por um princípio fundamental.

É óbvio que, nos dois casos rapida-mente examinados, a presunção sempre joga, respectivamente, a favor do cânone cronológico e do cânone hierárquico. Um ordenamento renova-se e transmite fisio-logicamente no tempo somente quando no próprio interior formam-se e nascem atos (normativos ou não) válidos, respectiva-mente conforme a parâmetros superiores; a invalidez, além disso, permanece sempre um fato excepcional, e assim deve ser, de outra forma seria o sintoma de um mal in-curável que afligiria o próprio ordenamen-to e estaria pronto para devorá-lo. Mas os fatos patológicos, se também circunscritos, fazem parte do mesmo desenvolvimento fisiológico da vida do ordenamento, exata-

mente assim como as doenças fazem parte da vida de um ser humano. E o ordenamen-to é completamente salutar quando conse-gue colocar em campo os instrumentos e os recursos do qual é dotado para vencer os fatos patológicos que ocasionalmente se manifestam no seu interior.

As ‘coberturas’ de valor são o mais eficaz desses recursos, sempre que este-jam por sua vez sustentadas por técnicas aplicativas adequadas; e as ‘coberturas’ em palavras não podem ser, pela sua na-tureza, contempladas por uma perspectiva meramente formal, mas por uma axiologi-camente orientada.

Portanto, a colocação final das fontes (ou melhor, das normas) no sistema per-cebe-se unicamente em caráter aplicativo, não através da estática observação das pró-prias fontes e da estrutura hierárquica no qual interiormente se dispõe. A teoria das fontes, em suma, conflui e se converte na teoria da justiça constitucional, sede privi-legiada em que tomam corpo os ‘balancea-mentos’ axiológicos, e ambas constituem as duas faces de uma mesma medalha, que é determinada pela teoria da Consti-tuição: os dois perfis, a saber, necessaria-mente parciais e necessitados de recíproca integração, pela qual pode ser percebida a essência da Constituição como tabela dos valores positivados.

5. É necessário dar um passo adiante e notar como as antinomias entre as nor-mas possam deslocar-se de um grau a ou-tro, na escala hierárquica: manifestar-se, por exemplo, ao nível das leis ordinárias e refletir-se, portanto, em uma antinomia de grau constitucional, e vice-versa.

Logo se explica a razão.Até aqui, por razões de fluidez da

exposição, levantou-se a hipótese que, em ocasião da aplicação do critério cronológi-co ou do critério de hierárquico, uma só das

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normas em campo usufrua de ‘cobertura’ constitucional; e isso, naturalmente, pode em algumas circunstâncias acontecer, as-sim como pode acontecer que uma mesma norma possa exibir mais ‘coberturas’ de valor, simultaneamente convergentes a seu favor. Mas, ainda mais freqüentes são os casos em que ambas as normas em campo podem invocar para sua proteção valores diversos ou, talvez, um mesmo valor. Em tais casos, o conflito que tem origem no grau primário da hierarquia, converte-se automaticamente em conflito entre valores constitucionais ou mesmo em um conflito de um valor... consigo mesmo, enquanto ambas as normas em conflito o invoquem legitimamente para sua tutela. E é então o momento de estabelecer em que modo o próprio conflito possa ser superado.

5.1. A formidável força expansiva dos valores constitucionais faz que um mesmo valor possa se distender até ‘cobrir’ toda a área material em que se dispõem normas de lei reciprocamente contrastantes, com a conseqüência que encontrar uma solução (não digo plenamente, mas suficientemen-te) a contento é muito problemático, às vezes realmente impossível: quero dizer uma solução autenticamente ‘balanceada’ do ponto de vista axiológico. E é também para ser notado que, quanto mais se assis-te a um ajuntamento de valores no mesmo campo, tanto mais crescem e se dilatam as margens de manobra dos quais dispõem os operadores (especialmente, os juízes, e entre esses, ainda mais os juízes constitu-cionais) para resolver o caso.

Uma observação sistemática da juris-prudência constitucional leva-me a afirmar que, nos casos em que o parâmetro do juízo de constitucionalidade é determinado por um só valor, o próprio juízo é, em regra, menos expressivo de criatividade e, por isso mesmo, de politicidade em relação aos

casos em que, ao contrário, os parâmetros mencionados são mais de um. E isso pela razão elementar que, nesses últimos casos, a Corte constitucional dispõe de margens de manobra ainda mais extensas para com-binar diversamente os próprios parâme-tros, fazendo-os convergir ou até divergir na qualificação final do caso: fazer com que se unam, afinal, em uma mesma parte ou colocá-los um contra o outro. Também em referência aos precedentes judiciários, em tais circunstâncias, apresenta-se como especialmente livre ou criativo: combinan-do de maneira sempre diversa os valores, a Corte têm um bom jogo para demonstrar que o caso que tem hoje é diferente em re-lação a casos precedentes e, portanto, não merece ser tratado do mesmo modo.

Não é verdade o que habitualmen-te se pensa e que quanto mais o peso das normas constitucionais cresce sobre as leis ordinárias, tanto mais a rigidez constitu-cional é salvaguardada: antes, o inverso é verdadeiro: que, mesmo nesses casos, a Corte manipula a arte da Constituição, na dinâmica composição dos valores (e das normas) que a compõem, para extrair do ‘recipiente’ constitucional as suas ‘verda-des’ de direito constitucional: ‘verdades’ que, não poucas vezes, causam à absolvi-ção das normas suspeitas de inconstitucio-nalidade.

Com essas advertências, é necessário agora ver mais de perto em quais modos se apresentam as ‘coberturas’ de valor e quais, portanto, podem ser as técnicas co-locadas em campo pela jurisprudência para sistematizá-las.

5.2. Preliminarmente, deve ser dito que, uma hierarquia entre valores é, em alguns casos, abstratamente feita pela pró-pria Constituição: como tal é uma hierar-quia estática e imutável, qualificada uma vez por todas, ainda que necessite de ser

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reconhecida concretamente após uma aná-lise dificultosa da realidade.

Refiro-me ainda aos casos em que uma mesma norma constitucional dá lugar a um ordenamento axiológico. Por exem-plo, a Constituição italiana (e, igualmente para outras cartas constitucionais) subor-dina o exercício da liberdade de imprensa (artigo 21) ou da liberdade religiosa (artigo 19), em especial pelo que concerne às prá-ticas religiosas (aos rituais), ao limite do bom costume. Eis que, com referência aos casos respectivamente previstos pelos arti-gos já mencionados, o valor do bom costu-me é considerado, todavia, predominante sobre o valor da livre expressão do pensa-mento por meio da imprensa ou da liberda-de religiosa. E ainda mais, a Constituição solenemente afirma a igualdade moral e ju-rídica entre os cônjuges no seio da família, mas admite que a própria igualdade possa ir de encontro a limites em nome do valor, evidentemente considerado predominante, da unidade da família (artigo 29).

Nesses e em outros casos, nenhuma dúvida teórica pode, portanto, existir acerca da ordem axiológica estabelecida pela lei fundamental; a dúvida, eventualmente, pode existir (e não poucas vezes é muito comple-xo explicá-la) acerca da qualificação de um comportamento ou de um ato: por exemplo, se concretamente um certo ritual religioso ou um certo artigo na imprensa superam, ou não, o limite do bom costume.

Observa-se, como no exemplo aci-ma, que o ponto crucial para a resolução de um caso está justamente no reconheci-mento da natureza de um ‘fato’: na quali-ficação, em suma, dos caracteres materiais do caso, antes mesmo que na interpretação do parâmetro constitucional e, em geral, dos dados normativos (que, em todo caso, são às vezes muito difíceis).

5.3. Além disso, deve-se ter presen-te que, ainda em outros casos, não se tem

um conflito entre valores em sentido exato, mas uma incerteza acerca da natureza de um fato ou de um ato, que, porém, uma vez superada, conduz naturalmente à aplicação dessa ou aquela norma constitucional.

Ser por exemplo, escrevo um livro, pode ser muito importante que se estabele-ça se o mesmo constitui uma mera expres-são da ‘usual’ liberdade de imprensa, re-conhecida pelo artigo 21 da Constituição, ou se é uma obra científica que, como tal, goza da liberdade privilegiada das quais se beneficiam as obras artísticas e científicas com base no artigo 33 (os limites, de fato, das duas liberdades não são coincidentes). Uma vez anulado o dilema, a aplicação ao caso será de uma, e de uma única norma, sem que se assista a algum conflito entre as mesmas.

5.4. Finalmente da reflexão que estou fazendo agora, todavia, preocupa-me fixar a atenção sobre os únicos casos de confli-tos entre valores no sentido restrito, que - como indicava pouco antes - acontecem quando dois ou mais valores (e as relativas normas constitucionais) convergem sobre o mesmo caso e pretendem dar-lhe a única, absolutizante qualificação ou quando um mesmo valor é chamado por duas normas em mútuo conflito.

Os dois casos devem ser estudados separadamente, mesmo se a prática ensi-na que, na maioria das vezes, podem ser confundidos reciprocamente ou refluir um no outro.

Suponhamos que sejam dadas duas normas de lei em conflito, a velha e a nova que, com base no cânone cronológico, pre-tenda tomar o seu lugar, e que se reconheça que ambas gozam de cobertura constitucio-nal. Nesse caso, é necessário questionarmos se as normas de cobertura são, ou não, do mesmo grau. Se não o são, enquanto que uma é regra e a outra um princípio, a so-

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lução conduz naturalmente para dar a ante-rioridade àquela norma dotada de proteção mais forte (significado diferente é aquele do reconhecimento da estrutura e/ou da natu-reza de simples normas: problema muito árduo, como se sabe, do momento em que não se dispõe de uma medida segura para distinguir umas das outras, mas que deve ser enfrentado e resolvido toda vez).

Ao contrário, no caso em que ambas as normas de cobertura sejam regras, tra-ta-se posteriormente de se questionar se uma das duas possa reivindicar para si, o título de ser diretamente e imediatamente especificativa-atuativa de um princípio, di-ferentemente da outra que não possui esse título: no qual caso, como se vê, voltaría-mos à hipótese logo acima descrita.

A questão, o contrário, complica-se terrivelmente quando ambas as regras de cobertura sejam atualizadoras de modo imediato e direto de princípios e igualmen-te diferentes ou, quiçá, do mesmo princí-pio. Nesse caso o conflito então se desloca de um grau e se coloca no teto do ordena-mento jurídico. Assiste-se então, como se fazia há pouco notar, aos casos mais dra-máticos de conflito axiológico, que se têm quando dois princípios se rebelam um con-tra o outro, ou, precisamente, um mesmo princípio volta-se contra si mesmo.

Essa última hipótese é, contudo, muito mais freqüentes do que parece à pri-meira vista e mostra os limites evidentes aos quais a lógica formal vai de encontro no momento em que se tenta aplicá-la aos conflitos máximos.

Realmente, até quando é possível su-bir os degraus cada vez mais altos da esca-la hierárquica, na busca das coberturas de valor a favor das normas ou dos interesses em campo? A lógica indutiva ou até aquela dedutiva, segundo a direção empreendi-da para reunir as normas ordinárias com as constitucionais, pode ser colocada em

campo. Quando, porém, chega-se ao teto do ordenamento (das normas ‘superconsti-tucionais’), não é possível em tese ir além, porque além existe somente o direito natu-ral (para aqueles que nele crêem) ou valo-res, todavia, não positivizados.

Temos que os conflitos no maior ní-vel da escala hierárquica não podem ser resolvidos aplicando-se a ‘pura’ lógica ju-rídica (digo: a lógica formal), que é em tais casos forçada a capitular, mas exigem ser enfrentados e resolvidos com técnicas de outra natureza.

Por exemplo, pensando-se no con-flito que existe entre a liberdade religiosa (artigo 19) e direito à saúde (artigo 32) sempre que, em nome da primeira, exista um obstáculo que comprometa totalmen-te a realização do segundo (lembramos sobre a recusa das Testemunhas de Jeová nos confrontos das transfusões de san-gue). E então se pode ter uma hierarquia entre religião e saúde (ou, precisamente, à vida)? Não podemos esquecer que, mesmo em nome da primeira, os mártires cristãos deram a sua vida; e não se deve esquecer, pois, o fato que tanto a liberdade quanto o direito, podem ser considerados imedia-tamente e diretamente descendentes do valor do artigo 2 da Constituição, onde é solenemente afirmado que ‘a República reconhece e garante os direitos invioláveis do homem, seja como indivíduo seja nas formações sociais onde desenvolve a sua personalidade’. É verdade que constituem manifestações ou especificações diversas do valor do reconhecimento dos direitos invioláveis, mas certamente - abstrata-mente - não graduáveis. Além disso, uma graduação deve ser feita concretamente: é uma imposição dada no caso da vida que coloca em mútua oposição a liberdade e o direito mencionados.

Não são as normas ou os valores por elas expressos que se dirigem natural-

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mente uns contra os outros: considerados abstratamente, separadamente dos casos da vida, os artigos 19 e 32 parecem estar em perfeita harmonia. São os casos da vida que mais os constrangem - pode-se dizer inaturalmente - a rebelar-se um contra o outro. E os casos reivindicam, todavia, uma solução: uma solução que não será ‘jurídica’ ou, melhor, juridicamente ‘pura’, no sentido de fruto de aplicação da lógi-ca formal às dinâmicas da normação, mas uma solução que, para um bom resultado, deve ser dada.

Em outros casos, o conflito de um valor em si mesmo apresenta-se na sua forma mais genuína e dramaticamente ex-pressiva.

Pensando-se no aborto, onde é o mesmo direito, aquele à vida, do qual se fazem portadores diferentes sujeitos, que se rebela contra si mesmo (não discuto a natureza do feto, que, todavia, a jurispru-dência constitucional reconheceu ser uma pessoa humana).

Nesses e em outros casos seme-lhantes, se toca com as mãos verdadeiros ‘balanceamentos’, no sentido de soluções compromissórias e equilibradas, igual-mente adequadas para satisfazer, seja so-mente em parte, ambos os valores em con-flito, que não podem acontecer. Tem-se a ‘colocação entre parênteses’, seja ainda a momentânea suspensão, em relação a um caso, da eficácia da norma constitucional portadora do valor recessivo. A corte não pode, obviamente, anular uma norma da Constituição, enquanto pode anular uma norma de lei constitucional, pelo simples fato, de todos conhecido, que a primeira traz consigo impressa a imagem do poder constituinte: seria como se insensatamen-te pensasse em serrar o galho da árvore sobre o qual está sentada! As decisões da Corte são realmente sempre significativas de poder constituído, e não podem, con-

tudo, opor-se em nenhum caso a vontade soberana do poder constituinte (e ao seu produto normativo objetivado, a Constitui-ção), que, ao contrário, são mantidas para servir e para serem observadas. E, todavia, as próprias decisões podem momentanea-mente privar de efeitos normas da lei fun-damental significativas de valores recessi-vos em sede de ‘balanceamento’. São os casos da vida que obrigam a fazer isso, por mais doloroso que possa ser.

No caso das Testemunhas de Jeová, dando-se – como a legislação e a jurispru-dência finalmente concluíram por dar - a supremacia ao direito à saúde, coloca-se de lado a liberdade religiosa. Pode-se dizer que essa é a solução justa. Talvez. Não pre-tendo agora dar lugar a uma discussão in-terminável sobre esse assunto. Apropriado, porém, é que a liberdade religiosa é, nesse modo, inteiramente sacrificada.

O aborto. Consentir à sua realização, mesmo que só em certas condições rigoro-samente permitidas, não impede que uma vida humana vá, todavia, perdida; e, quan-do se perde uma vida ainda que única, so-fre sempre a humanidade inteira.

Onde está nos casos acima citados (mas em muitos outros também), o ‘balan-ceamento’ igualitário entre valores opos-tos? Onde aquele direito ‘dúctil’ que prega uma doutrina sensível (G. Zagrebelsky), e que todos gostaríamos de ver sempre re-alizado, mas que (temo), na maioria das vezes, é inatingível?

6. A razoabilidade, em uma das suas formas mais significativas, é adequação da norma ao ‘fato’, às exigências dos bens da vida necessitados de satisfação (L. D’Andrea).

É interessante notar como a adequa-ção das normas ao valor e a adequação das normas aos ‘fatos’ são apenas aparente-mente distinguíveis entre elas, mas na re-

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alidade, na viva experiência jurídica, são uma única ‘coisa’.

Um exemplo vale mais do que qual-quer outro discurso de ordem teórica geral para esclarecer o conceito.

Pensando-se, portanto, no outro crité-rio de sistematização das fontes, aquele da competência ou da separação das compe-tências (V. Crisafulli). As relações entre as leis de Estado e Regiões constituem, para a doutrina usual, um dos mais visíveis e ex-pressivos testemunhos: cada uma das duas leis tem, de fato, seus próprios âmbitos de competência, com base nos catálogos de matérias contidos na Constituição. Tenha-se, todavia, presente que, enquanto em relação a algumas matérias a competência das Regiões parece ser exclusiva ou plena, igualmente se pode assistir ao ingresso nos campos regionais de leis estatais adotadas para garantia do bem da unidade-indivi-sível do ordenamento e idôneas para vin-cular diversamente a autonomia regional (por exemplo, as leis estatais com as quais se determinam ‘os níveis essenciais’ das prestações concernentes aos direitos civis e sociais, que devem ser uniformes no in-teiro território da República: artigos 117, II parágrafo, letra m). Em outras matérias, o poder legislativo é repartido entre o Es-tado e as Regiões (em um sentido, todavia, diferente daquele que é próprio da konkur-rierende Gesetzgebung do ordenamento alemão): um é, de fato, competente para dar a disciplina de princípio (a pôr - como diz o artigo 117, III parágrafo, os ‘princí-pios fundamentais’), as outras para dar a disciplina pormenorizada ou de detalhe, com regras.

A jurisprudência constitucional tem afirmado repetidamente que a verificação do respeito das competências por parte das leis tanto do Estado quanto das Regi-ões deve ser cumprida com base nos inte-resses em campo, da sua natureza: onde,

em suma, existem interesses nacionais ou supranacionais que exigem, todavia, ser protegidos, aí a competência é do estado, assim como onde estão em jogo interesses locais a competência é das regiões.

O ‘balanceamento’ entre o valor de unidade e o valor de autonomia am-bos reconhecidos merecedores de tutela pelo princípio fundamental pelo artigo 5 da Constituição, deve ser então efetuado concretamente com base na natureza dos interesses confiados à vigilância, respecti-vamente, das leis estatais e das leis regio-nais. Desse modo, a conformidade das leis ao valor ou, melhor, à síntese dos valores mencionados coincide com a concordância das próprias leis da natureza dos interesses, ou seja, com a sua própria razoabilidade.

Ainda uma confirmação da possibi-lidade de reconduzir à razoabilidade todos os critérios (aqui, aquele da competência) com cujas fontes (ou melhor, as normas) são compostas em sistema: uma razoabili-dade que se mostra no seu significado qua-lificante de congruência da norma, simul-taneamente, seja ao valor que ao ‘fato’.

O exemplo dado é, pois, muito ins-trutivo ainda por um outro aspecto, co-mumente um tanto negligenciado também pela mais acreditada teoria das fontes; e é que os parâmetros constitucionais, particu-larmente os parâmetros mais expressivos de valores (os princípios fundamentais), remetem naturalmente aos ‘fatos’ ou aos interesses por eles previstos ao final da ve-rificação da constitucionalidade das leis e dos atos produtivos de normas em geral. A análise da estrutura das disposições cons-titucionais confirma que ela resulta com-posta não exclusivamente por ‘materiais’ normativos, mas ainda - e, principalmente - por materiais ‘factuais’: no ‘recipiente’ constitucional se introduz, finalmente, ele-mentos extraídos da realidade que passam a compor o parâmetro, regeneram-no se-

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manticamente sem pausa e desenvolvem, ao contrário, justamente o papel de maior relevo em sede de qualificação da constitu-cionalidade. E, uma vez que os ‘fatos’ ou os interesses estão em contínua transfor-mação (um mesmo interesse, por exemplo, em um primeiro momento pode parecer como nacional e um segundo como local, e vice-versa), eis que os mesmos parâme-tros são transpassados por um movimento incessante: transformam, ou antes, são, ou melhor, são enquanto se transformam.

A Constituição é, em suma, mais que um ato, um processo (A. Spadaro): seja pelo fato que a linguagem da Constituição sofre contínuas mudanças de significado, tal como a linguagem comum, também com base nas solicitações que derivam dos atos inferiores (G. Silvestri), e seja pelo fato que mudam continuamente a natureza e as com-binações dos interesses em campo, os seus ‘balanceamentos’ na realidade (F. Viola - G. Zaccaria, L. Mengini, A. Ruggeri).

Os valores, na sua formulação abstra-ta, permanecem sempre idênticos a si mes-mos (no exemplo citado, o valor de unida-de-indivisibilidade da República e o valor da promoção da autonomia); mas os modos com os quais os próprios valores tomam corpo na experiência renovam-se continu-amente, exatamente enquanto experiência não é, mas transforma. A única técnica que consegue dar uma ordem segundo valor às dinâmicas produtivas é a razoabilidade, que no momento em que é aplicada aos casos da vida reúne fatos e normas, ser e dever ser, e ambos orienta para os valores.

Nota-se então alguns riscos e algu-mas incertezas que sempre acompanham à utilização da técnica da razoabilidade e do enorme poder do qual é naturalmente dotado o juiz das leis que delas dispõe. E, incertezas e riscos acima mencionados fa-zem parte das habituais práticas jurídicas e, pelo menos em certa medida, são inevi-

táveis. Trata-se antes de encontrar o modo para circunscrevê-las quanto maior possí-vel é o alcance.

Disso acrescenta-se finalmente o mo-mento de tratar com a necessária rapidez essa reflexão.

7. O problema, nesse ponto, deslo-ca-se sobre as técnicas que podem ser util-mente colocadas em campo para dar lugar aos ‘balanceamentos’ e principalmente às formas utilizadas para o controle do seu uso correto.

A jurisprudência constitucional é fre-qüente em afirmar que os conflitos entre valores recebem a sua composição graças à técnica da razoabilidade e acrescenta-se que a mesma, graças à sua flexibilidade estrutural, é apropriada às sentenças axio-lógicas, de qualquer modo, adequada aos casos, às exigências por elas expressas de um ‘balanceamento’ que não comporte o sacrifício de um valor em vantagem de um outro.

Notou-se pelos exemplos dados que esse sacrifício é, pelo menos em alguns casos, inevitável. A razoabilidade é exclu-sivamente a forma através da qual se torna demonstrada a vontade ou a ideologia da Corte. A razoabilidade é, em suma, uma máscara ideológica, um tipo de deus ex machina, que vem do céu - como nas tra-gédias gregas - para resolver situações es-pecialmente embaraçadas que os homens por si sós não seriam capazes de encarar.

E a Corte não pode dizer nada mais do que diz, senão renegaria a si mesma, ou melhor, se privaria da legitimação da qual tem constante necessidade. A Corte não pode admitir que os ‘balanceamentos’ operados sejam frutos da sua ideologia ou cultura, e não apenas da ascética ou neutra aplicação de uma impossível lógica jurídi-co-formal; não pode, certamente, impor à força da própria concepção do mundo.

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Retomando, ainda por um momento, um exemplo já dado, cada um de nós, se chamado para opinar sobre o aborto, pode puramente e simplesmente declarar qual é o seu pensamento em relação a isso, é exatamente assim como faz em relação a qualquer outra questão jurídica social. Mas, a Corte não pode certamente dizer ser a favor ou contra o aborto, enquanto essa é, puramente e simplesmente, a ideologia dominante no seu interno.

Faz bem, portanto, a Corte em apre-sentar como demonstrações invencíveis os veredictos que entrega a cidadãos e ope-radores para que façam uma escrupulosa aplicação. Mas, as demonstrações pressu-põem a supra-ordenação das normas, as bases sobre as quais elas são conjugadas, a respeito dos antagonismos em campo; e aqui, contudo, antagonistas são as próprias normas do ápice do ordenamento, os prin-cípios fundamentais que se enfrentam sem intermediários e sem economia de golpes.

Existe uma diferença fundamental entre os ‘balanceamentos’ que pode fazer cada um de nós ou que faz o próprio legis-lador, por um lado, e aqueles que, ao con-trário, faz a Corte ou fazem os juízos em geral, por outro lado.

Cada um de nós pode mudar até ra-dicalmente de idéia sobre um mesmo pro-blema, sem nem ao menos dizer o porquê; e do mesmo modo, o legislador pode, que-rendo, rever do começo ao fim uma sua decisão política anterior, reescrevendo e variavelmente modificando um texto de leis, ab-rogando-o inteiramente, acrescen-tando-lhes novos, etc. O leque das possibi-lidades que em consideração se oferecem ao legislador é praticamente muito amplo, mesmo porque o legislador faz política e, no respeito da Constituição (e do cânone da razoabilidade...), pode retornar nos pró-prios passos, manifestando uma vontade até profundamente divergente da outra

vontade anteriormente expressa. O legisla-dor não é levado a explicar as razões pela qual dá lugar a um certo ‘balanceamento’ axiológico, mesmo se - naturalmente - nem todos os efeitos lhe são permitidos, deven-do-se a todos manter no interior da moldu-ra constitucional.

A Corte constitucional e os juízes, ao contrário, são levados a justificar as suas decisões. A Corte, em especial, apresen-ta os próprios ‘balanceamentos’ como as únicas soluções possíveis nos singulares casos, como as únicas justas, adequadas aos próprios casos, perfeitamente ‘balan-ceadas’ de fato. E, como dizia, faz bem em fazer assim. E, todavia, mesmo enquanto a Corte é operadora jurisdicional, os seus ‘balanceamentos’ não dispõem da ampli-tude de raio que é própria dos operadores políticos. A Corte deve apresentá-los sem-pre como aplicações de normas superiores, mesmo quando não o é efetivamente.

A verdade é que, justamente pelo fato que a lógica formal é aqui forçada muitas vezes a ceder, devem socorrer-se de outros recursos, adequados para garantir contra o arbítrio do próprio endossante máximo da legalidade constitucional.

Há tempo com respeito a isso ponde-ro sobre uma ‘dupla coerência’ da jurispru-dência constitucional. Existe, de fato, uma coerência interna à simples pronúncia, pela qual, fixadas algumas premissas (e – admita-se - na maioria das vezes livremen-te fixadas), descendem (devem descender) algumas conseqüências, intimamente e ne-cessariamente ligadas às mesmas premis-sas. E existe, pois, uma coerência externa, que diferentemente da primeira é do tipo diacrônico, pela qual as decisões que têm o mesmo objeto resultam (e devem resultar) uniformemente adotadas, a ponto de com-por um mesmo endereço jurisprudencial que se renova somente no próprio interior (mas a pequenos passos), ficando em todo

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modo sempre idêntico a si mesmo. A reno-vação pode ser às vezes até radical, dando vida a verdadeiros e próprios revirement jurisprudenciais, mas à única condição que resulte mudada a ‘situação normativa’ de partida, vista no conjunto dos elementos normativos e factuais que a compõem. Neste caso, a mudança de jurisprudência não só é lícita, mas até obrigatória, mesmo enquanto seja uma singular pronúncia ju-dicial que a jurisprudência no seu comple-xo devem, como primeiras, aparecer como racionais. Permanecendo ao contrário, não mudada a ‘situação normativa’ de partida, a Corte não pode tratar um mesmo caso, que apresente os mesmos objetivos, em modos radicalmente diversos: seria irracional jus-tamente se o fizesse, pelo fato que dessa maneira a Corte renegaria a sua própria na-tureza de órgão jurisdicional, convertendo-se em um órgão puramente político: não daria mais, em suma, certezas de direito constitucional, mas, ao contrário, daria de si mesma a imagem do operador que se im-põe com a força. Justamente pela razão que os ‘balanceamentos’ efetuados pela Corte apresentam caráter concreto, em relação às peculiares exigências totais dos casos singulares, diferentemente dos ‘balancea-mentos’ efetuados pelo legislador que são abstratos, assim como abstratas são as dis-posições normativas que os incluem e ex-primem, exige-se a implantação de certas ‘constantes’, freqüentemente respeitadas pela própria Corte, nas quais se reflete a alma jurisdicional do juiz das leis.

Prestemos atenção, somente por um momento, nesse ponto.

Viu-se que a Corte nos seus ‘balan-ceamentos’ entre valores fundamentais não dá, pelo menos em alguns casos, lugar à aplicação da lógica formal, mas deduz a solução do caso exclusivamente por uma ordenação hierárquica entre os próprios valores, que é fruto de escolha ideológica.

E, ao fazer isso, a Corte faz, substancial-mente, tudo o que faz o próprio legislador: adota uma decisão política mascarada de formas jurídicas. E, a Corte recupera e (deve recuperar) a sua íntima e indisponí-vel natureza de operador jurisdicional pelo modo com que chega à própria decisão, ou seja, pelo procedimento no decorrer do qual a decisão se aperfeiçoa, as técnicas que permitem a formação, as formas das quais se reveste.

Releva nesse propósito a elaboração de alguns standards ou tests de juízo que a Corte é obrigada a aplicar de modo uni-forme, mesmo como juiz, seja apenas um juiz diferente dos outros. São os standar-ds mencionados que garantem a coerência da jurisprudência, nas suas duas projeções ou manifestações mencionadas (como co-erência interna e como coerência externa). Nesse plano a diferença entre as decisões políticas assumidas pelo legislador e as de-cisões políticas da Corte é substancial. Ou melhor, o é em teoria. Inclina-se, todavia, na prática a empalidecer com referência aos casos em que os próprios standards se apresentam como excessivamente vagos e conceitualmente indeterminados, presta-se a fáceis manipulações da sua substância apresentadas, ao contrário, como fiéis e uniformes aplicações.

8. Aquilo que, em todo modo, é certo é que a jurisprudência é obrigada a medir-se continuamente consigo mesma, disso dependendo a sua razão. A Corte julga a razão das leis, submete-as ao controle de constitucionalidade os ‘balanceamentos’ de valores incluídos nos textos de lei. Mas as suas pronúncias têm um sentido somen-te enquanto elas sejam em primeiro lugar razoáveis. No perfil dos efeitos, a diferen-ça fundamental entre a posição do legisla-dor e aquela da Corte, entre os dois ‘tipos’ de razoabilidade, é que aquela uma está

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sujeita ao controle de validade, enquan-to a outra é, ao contrário, expressamente excluída de qualquer impugnação (assim, expressamente, o artigo 137, último pará-grafo, da Constituição).

A razoabilidade dos ‘balanceamen-tos’ realizados pelo legislador é inferior a algumas verificações que, por sua natureza, permanecem excluídas da razoabilidade dos ‘balanceamentos’ da Corte.

É justo que seja assim. A jurisprudên-cia constitucional é, de fato, o ‘lugar’ de fechamento das dinâmicas do ordenamen-to, mesmo com as justificações que desen-volverei a seguir. Se os veredictos da Corte pudessem ser voltar à discussão em outra situação jurisdicional, o ordenamento gira-ria no vazio e não disporia de um ponto fixo de unificação-integração interna. A Corte é, portanto, o lugar em que se formam as ‘ver-dades’ (no sentido processual) de direito constitucional, em cujo direito constitucio-nal adquire certeza, estabilidade.

Duas observações devem ser feitas a respeito.

A primeira, óbvia, é aquela que agora volta à mente, simplesmente, para dar um mínimo de organicidade (se não de integri-dade) à reflexão que se fazia, é que também as decisões da Corte, por mais que sejam juridicamente não impugnáveis, sujeitam-se sempre à crítica difusa (da comunidade, dos estudiosos, dos operadores). Em última instância, na presença de decisões ‘mons-truosas’, já que irracionais, evidentemente, desperta o direito de resistência tanto dos cidadãos quanto das outras instituições, como se pode manifestar na desaplicação de um veredicto da Corte julgado não con-forme aos princípios fundamentais e à sua combinação segundo os casos.

Por exemplo, uma hipótese de re-sistência do Parlamento à Corte pode ser considerada aquela que se tem todas às ve-zes que o primeiro reaprova tal e qual uma

norma de lei precedentemente anulada pela segunda. Em tais circunstâncias, assiste-se a uma violação (uma verdadeira e própria fraude) nos confrontos do julgado consti-tucional, que em essência deve ser julga-da como ilegítima, mas que, justamente, torna-se legítima enquanto realizado para enfrentar o veredicto da Corte irrazoável no sentido anteriormente afirmado. Ob-viamente, trata-se, pois de inquirir quem tenha o título para fazer tais avaliações. É claro, porém, que em última instância é o princípio de efetividade que estabele-ce qual parte é a que está com a razão ou não. Trata-se, em suma, de observar que se implantem os verdadeiros e próprios cos-tumes em um sentido ou em outro.

Se, por exemplo, a Corte encontra em si a força para anular até a lei que re-produziu outra lei já anulada e o fato não determine uma reação posterior por parte do legislador, confirmaremos o fato de que a própria reprodução era ilegítima, por violação do julgado constitucional. Se, ao contrário, a Corte é forçada a se dobrar perante o fato reprodutivo, principalmente enquanto ao mesmo tempo seja oferecido um consenso difuso por parte da comuni-dade e dos outros operadores (administra-dores e juízes comuns), afirmaremos que a violação do julgado constitucional era per-feitamente lícita, exatamente como ilícito era o próprio julgado.

A segunda observação é que as di-nâmicas institucionais, do qual se compõe ordenamento e através das quais incessan-temente esse se renova, não têm sempre e só na Corte o lugar onde se aperfeiçoa uma atividade de justiça constitucional.

Em relação a isso é necessário indi-car que a distinção entre sistemas de jus-tiça constitucional assim chamada difusa e sistemas de justiça centralizada, pelo modo com que é comumente entendida e representada, é muitas vezes enganosa. A

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realidade é, antes, muito mais complexa e internamente articulada, diríamos até: ‘fluida’. Em especial, no nosso ordena-mento, existem traços muito marcantes e visíveis deixados por elementos usualmen-te considerados próprios dos sistemas de jurisdição difusa (E. Malfatti - R. Rombioli - E. Rossi, curr.). Não pude, todavia, tratar desse assunto com a devida profundidade. Gostaria, contudo de indicar somente um fenômeno que é ainda pouco estudado e que apresenta um notável interesse teórico e também um relevo prático.

A fim de estabelecer em que medida ou objetivo o nosso sistema é realmente aquele próprio de uma justiça constitucio-nal centralizada, é necessário questionar se todas as operações de justiça se cumprem e se exaurem somente na sede da Corte. Assim, porém, no meu parecer, não é con-firmado, até por uma observação superfi-cial das questões de constitucionalidade levantadas perante a Corte e do modo em que elas são resolvidas. A verdade é que, não raramente, os ‘balanceamentos’ feitos pela Corte são incompletos, postergando-se, ao seu aperfeiçoamento completo, para futuros ‘balanceamentos’, que exigem ser feitos ora pelo legislador, ora pelos juízes e pelos práticos em geral. Nesse modo, a dinâmica das relações entre a Corte e os operadores restantes não se fecha definiti-vamente junto à própria Corte, mas se põe novamente em movimento, abrindo-se a seus posteriores e imprevisíveis desenvol-vimentos.

Muitas vezes as decisões da Corte so-licitam um ‘seqüência’ que só o legislador pode dar a elas um caráter mais adequado: exigem ser especificadas e atuadas legisla-tivamente, ficando, em todo caso, a salvo a possibilidade de submeter a um controle posterior a atividade realizada pelo legisla-dor. Ainda a perdurante inércia no legislar pode, dentro de certos limites, ser sanciona-

da: não poucas vezes, a Corte salva, em um primeiro momento, um texto de lei, na cons-ciência da maior nocividade do vazio que se criaria, solicitando, todavia, uma imediata e enérgica intervenção por parte do legisla-dor; no caso desse último não acontecer, a Corte reserva-se o direito de sancionar em um momento sucessivo a inércia do legis-lador com a anulação da lei não adequada-mente reescrita pelo seu autor.

Outras vezes a Corte dá lugar, desde o início à anulação, no sentido que declara inconstitucional um texto de lei, mas so-mente enquanto omite-se em conter uma norma de princípio que deveria ter desde o início (C. Salazar). Em tais casos, a Corte em boa substância manipula o texto de lei, reescreve-o, mas apenas em modo soft, não o integra com regras, mas unicamente com um princípio inexistente ilegitimamente. E o próprio princípio é consignado, ao mes-mo tempo, tanto pelo legislador quanto pe-los juízes (e pelos administradores) a fim de que, cada um, segundo as próprias com-petências, desenvolvam-no e apliquem-no: o legislador produzindo as regras atuativas do próprio princípio, o juiz extraindo as re-gras para aplicar, mesmo provisoriamente (na espera da obrigatória intervenção do legislador), aos casos.

A justiça constitucional apresenta-se, em circunstâncias tais, como uma espécie de work in progress, que se inicia durante a Corte constitucional (apesar disso, com base na solicitação proveniente dos juízes, que chamam em campo a própria Corte) e se aperfeiçoa, portanto, em situações diver-sas. E as atividades que em tais situações são realizadas estão, naturalmente, sujei-tas a um eventual e posterior controle de constitucionalidade. E assim por diante: o ‘círculo’ constitucional fecha-se, mas o seu interior caracteriza-se por um movimento incessante, que leva da Corte aos outros operadores, e desses para ela novamente.

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Nós nos damos conta, dessa maneira, que os ‘balanceamentos’ nunca têm fim, que se reproduzem e multiplicam por si mesmos, pouco a pouco o ‘jogo’ axioló-gico realizado nos vários níveis institucio-nais desenvolve-se durante os canais cons-titucionalmente construídos. A afirmação corrente segundo a qual a Corte é um órgão de ‘fechamento’ do ordenamento, o órgão que dá certezas do direito constitucional e coloca a palavra ‘fim’ às dinâmicas insti-tucionais que, de outro modo, resultariam caracterizadas por uma taxa crescente de conflitualidade interna, deve ser, portanto, especificada e corrigida com base na indi-cação acima citada.

A Corte, de fato, coloca-se, todavia, com os seus ‘balanceamentos’, como pon-to de integração e fator de orientação para as dinâmicas que se implantam e desen-volvem com base nas pronúncias emitidas pela própria Corte. Nenhum operador (nem mesmo a Corte), pode reivindicar para si o título de único ou autêntico intérprete da Constituição e dos seus valores, é conve-niente que a interpretação da Constituição e a sua realização seja fruto de um ‘jogo’ complexo ao qual, mesmo com diversida-de de papéis, todos são chamados, ao que a própria doutrina jurídica não se mantém absolutamente estranha, com a sua obser-vação crítica da experiência e as solicita-ções que incessantemente dirige a uma correta e crescente realização dos valores constitucionais.

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1. Introduccion

En la década de los ochenta del siglo pasado, sobre todo, empezó a utilizarse por parte de la doctrina un término bien expre-sivo de un fenómeno que ciertamente había producido una cierta confusión y no poca inquietud en cuantos se dedican al estudio de nuestra disciplina: la huida del Derecho Administrativo. Expresión, me parece, con la que se pretendía, y todavía se pretende hoy, llamar la atención sobre la pérdida

de influencia del Derecho Administrativo como Ordenamiento matriz a partir del cuál debía regirse jurídicamente toda ac-tuación del aparato público, sea cual sea su caracterización normativa. En el fondo, se añora la posición del Derecho Adminis-trativo como Derecho Unico sobre el que debe girar el régimen jurídico de la Ad-ministración pública, olvidando, con más o menos intensidad, que existe un núcleo básico de principios constitucionales vin-culados a las actividades administrativas y

EL MARCO CONSTITUCIONAL DEL DERECHO ADMINISTRATIVO

( EL DERECHO ADMINISTRATIVO CONSTITUCIONAL)THE CONSTITUTIONAL MARK OF ADMINISTRATIVE LAW

(THE CONSTITUTIONAL ADMINISTRATIVE LAW)

JaiMe RoDRíguez-aRana*

Recebido para publicação em julho de 2005

Resumo: Este texto tem como fio condutor de sua análise a caracterização do direito administrativo na perspectiva constitucional, o que traz consigo a necessidade do afastamento dos dogmas e dos critérios interpretativos do passado em face às demandas do novo Estado Social e Democrático de Direito, bem diferente, em sua configuração, do antigo Estado-Providência. O pressuposto de que a garantia do interesse geral é a tarefa principal do Estado o direito administrativo deve ter presente esta realidade, adaptando-se institucionalmente aos tempos novos, ao conduzir o gerenciamento da atividade pública de acordo com as novas perspectivas da justiça.Palavras-chave: Direito Administrativo. Marco constitucional. Estado social e democrático de Di-reito. Constituição espanhola. Garantia dos poderes públicos.

Abstract: This essay has as focal point the administrative law in constitutional perspective, which brings up the necessity of retirement for dogmas and the past interpretative criterion in view of prosecution for the new Social and Democratic State of Law, quite different, in his configuration, of the old Providence State. The purpose in order that the guarantee of general interest is the principal work of the State, the administrative law must have present this reality, adjusting institutionally to the new time, conducting the managing of public activity guiding for the new perspectives of justice.Key Words: Administrative Law. Constitutional Mark. Social and Democratic State of Law. Span-ish Constitution. Guarantee of public powers.

* Catedrático de Derecho Administrativo y actual Presidente de la Sección Española del Instituto Internacional de Ciencias Administrativas.

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a los fondos públicos vinculados al interés general, que con su manto trascienden la naturaleza del Derecho de que se trate en cada caso.

Las líneas que siguen, escritas en di-ferentes momentos, tienen, sin embargo, un hilo conductor: la caracterización del Derecho Administrativo desde la pers-pectiva constitucional, lo que trae consigo necesarios replanteamientos de dogmas y criterios, que han rendido grandes ser-vicios a la causa y que, por tanto, deben sustituirse de manera serena y moderada por los principios que presiden el nuevo Estado social y democrático de Derecho, por cierto bien diferente en su configuraci-ón, y en su presentación, al del nacimiento del Estado-Providencia y de las primeras nociones sobre la conformación y direc-ción de las tareas sociales como esencial función de competencia del Estado. Hoy, en mi opinión, la garantia del interés ge-neral es la principal tarea del Estado y, por ello, el Derecho Administrativo ha de tener presente esta realidad y adecuarse, institu-cionalmente, a los nuevos tiempos pues, de lo contrario perderá la ocasión de cumplir la función que lo justifica, cual es la mejor ordenación y gestión de la actividad públi-ca con arreglo a la justicia.

Tradicionalmente, cuando nos hemos enfrentado con el arduo problema de selec-cionar una perspectiva central sobre la que montar todo el Derecho Administrativo, hemos acudido a la aproximación subje-tiva, objetiva o mixta. Hoy me parece que mantener una orientación única quizás sea una pretensión que dificulta la comprensi-ón de un sector del Derecho Público que trasciende sus fronteras naturales y que ac-túa sobre otras realidades, años ha vedadas al Derecho Administrativo, precisamente por la estrechez- de miras que surge del pensamiento único, cerrado o estático.

Parece también fuera de dudas que el Derecho Administrativo del siglo XXI es

distinto del del siglo pasado en la medida en que el sustrato político y social que le sirve de base es bien distinto, como tam-bién es bien distinto el modelo de Estado actual. El Derecho Constitucional pasa, el Derecho Administrativo permanece es una manida y reiterada frase acuñada según parece por Otto MAYER que nos ayuda a entender que las instituciones tí-picas de la función administrativa, de una u otra forma, son permanentes, pudiendo variar obviamente la intensidad de la pre-sencia de los poderes públicos de acuerdo con el modelo político del Estado en cada momento. Claro está, cuando me refiero al Estado, me refiero también “mutatis mu-tandis” a los diferentes Entes territoriales que disponen de autonomía para la gestión de sus intereses.

Como veremos, el entendimiento que tengamos del concepto del interés ge-neral a partir de la Constitución de 1978 va a ser capital para caracterizar el denomina-do Derecho Administrativo Constitucional que, en dos palabras, aparece vinculado al servicio objetivo al interés y a la promo-ción de los derechos fundamentales de la persona. Quizás, la perspectiva iluminista del interés público, de fuerte sabor revo-lucionario y que, en definitiva, vino a con-sagrar la hegemonía de la entonces clase social emergente que dirigió con manos de hierro la burocracia, hoy ya no es com-patible con un sistema sustancialmente democrático en el que la Administraci-ón pública, y quien la compone, lejos de plantear grandes o pequeñas batallas por afianzar su “status quo”, debe estar a ple-na y exclusivamente a disposición de los ciudadanos, pues no otra es la justificación constitucional de la existencia de la ente-ra Administración pública. En esta línea, el Derecho Administrativo Constitucional plantea la necesidad de releer y repensar dogmas y principios considerados hasta no hace mucho como las señas de identidad

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de una rama del Derecho que se configu-raba esencialmente a partir del régimen de exorbitancia de la posición jurídica de la Administración como correlato necesario de su papel de gestor, nada más y nada me-nos, que del interés público. Insisto, no se trata de arrumbar elementos esenciales del Derecho Administrativo, sino repensarlos a la luz del Ordenamiento constitucional. Es el caso, por ejemplo, de la ejecutividad del acto, que ya no puede entenderse como categoría absoluta sino en el marco del principio de tutela judicial efectiva, como consecuencia de los postulados de un pen-samiento compatible y complementario que facilita esta tarea.

Lo que está cambiando es, insisto, el papel del interés público que, desde los postulados del pensamiento abierto, plural, dinámico y complementario, aconseja el trabajo, ya iniciada hace algunos años entre nosotros, de adecuar nuestras instituciones a la realidad constitucional. Tarea que se debe acometer sin prejuicios ni nostálgicos intentos de conservar radicalmente concep-tos y categorías que la hoy que encajan mal con los parámetros constitucionales. No se trata, de ninguna manera, de una sustituci-ón “in toto” de un cuerpo de instituciones, conceptos y categorías, por otro; no, se trata de estar pendientes de la realidad so-cial y constitucional pare detectar los nue-vos aires que han de alumbrar los nuevos conceptos, categorías e instituciones con que el Derecho Administrativo, desde este punto de vista, se nos presenta, ahora en una nueva versión más en consonancia con lo que son los elementos centrales del Es-tado social y democrático de Derecho di-námico, o también denominado de segun-da generación. Ello no quiere decir, como se comentará en su momento, que estemos asistiendo al entierro de las instituciones clásicas del Derecho Administrativo. Más bien, hemos de afirmar, no sin radicalidad, que el nuevo Derecho Administrativo está

demostrando que la tarea que tiene enco-mendada de garantizar y asegurar los de-rechos de los ciudadanos requiere de una suerte de presencia pública, quizás mayor en intensidad que en extensión, que hace buena aquella feliz definición del Derecho Administrativo como el Derecho del poder para la libertad.

En fin, junto a la metodología que nos proporciona el acercamiento a las ciencias sociales desde los postulados del pensa-miento abierto, plural, dinámico y comple-mentario, es menester trabajar en el marco constitucional para extraer toda la fuerza, que no es poca, que la Norma fundamental encierra en orden a configurar un Derecho Administrativo más democrático en el que el servicio objetivo al interés general ayu-de a redefinir todas aquellos privilegios y prerrogativas que no se compadecen con la existencia de una auténtica Administraci-ón pública cada vez más conscientes de su posición institucional en el sistema demo-crático.

2. Interes general y Derecho Adminis-trativo

De un tiempo a esta parte, observa-mos notables cambios en lo que se refiere al entendimiento del interés general en el sistema democrático. Probablemente, por-que según transcurre el tiempo, la captura de este concepto por la entonces emergente burguesía- finales del siglo XVIII- que en-contró en la burocracia un lugar bajo el sol desde el que ejercer su poder, lógicamente ha ido dando lugar a nuevos enfoque más abiertos, más plurales y más acordes con el sentido de una Administración pública que ,como señala el artículo 103 de nues-tra Constitución “sirve con objetividad los intereses generales”. Es decir, si en la de-mocracia los agentes públicos son titulares de funciones de la colectividad y ésta está llamada a participar en la determinación,

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seguimiento y evaluación de los asuntos públicos, la necesaria esfera de autonomía de la que debe gozar la propia Administra-ción ha de estar empapada de esta lógica de servicio permanente a los intereses pú-blicos. Y éstos, a su vez, deben abrirse, tal y como ha establecido el Tribunal Consti-tucional en 1984 a los diversos interlocu-tores sociales, en un ejercicio continuo de diálogo, lo cual, lejos de echar por tierra las manifestaciones unilaterales de la acti-vidad administrativa, plantea el desafío de construir las instituciones, las categorías y los conceptos de nuestra disciplina desde nuevos enfoques bien alejados del autori-tarismo y el control del aparato administra-tivo por los que mandan en cada momento . No es una tarea sencilla porque la historia nos demuestra que la tensión que el poder político introduce en el funcionamiento administrativo a veces socava la necesaria neutralidad e imparcialidad de la Adminis-tración en general y de los funcionarios en particular.

Instituciones señeras del Derecho Administrativo como las potestades de que goza la Administración para cumplir con eficacia su labor constitucional de ser-vir con objetividad los intereses generales (ejecutividad, “ejecutoriedad”, “potestas variandi”, potestad sancionadora…) re-quieren de nuevos planteamientos pues evidentemente nacieron en contextos his-tóricos bien distintos y en el seno de sis-temas políticos también bien diferentes. Y, parece obvio, la potestad de autotutela de la Administración no puede operar de la misma manera que en el siglo XIX por la sencilla razón de que el sistema democrá-tico actual parece querer que el ciudadano, el administrado, ocupe una posición cen-tral y, por tanto, la promoción y defensa de sus derechos fundamentales no es algo que tenga que tolerar la Administración sino, más bien, hacer posible y facilitar.

Frente a la perspectiva cerrada de un interés general que es objeto de conoci-miento, y casi del dominio de la burocracia llegamos, por aplicación del pensamiento abierto, plural, dinámico y complementa-rio, a otra manera distinta de acercarse a lo común, a lo público, a lo general, en la que se parte del presupuesto de que siendo las instituciones públicas de la ciudadanía, los asuntos públicos deben gestionarse tenien-do presente en cada momento la vitalidad de la realidad que emerge de las aportacio-nes ciudadanas. Por ello, vivimos en un tiempo de participación, quizás más como postulado que como realidad a juzgar por las consecuencias que ha traído consigo un Estado de Bienestar estático que se agotó en si mismo y que dejó a tantos millones de ciudadanos desconcertados al entrar en crisis el fabuloso montaje de intervención total en la vida de los particulares.

Hace algunos años, más de los que quisiera, cuando me enfrentaba al proble-ma de la definición del Derecho Adminis-trativo al calor de las diferentes y variadas teorías que el tiempo ha permitido, lejos de entrar en el debate sobre cuál de las dos posiciones mayoritarias era la fetén, se me ocurrió que quizás el elemento clave para la definición podría encontrarse en el mar-co de lo que debía entenderse en cada mo-mento por interés general. Más que en la presencia de una Administración pública, para mí lo verdaderamente determinante del Derecho Administrativo es la existen-cia de un interés general que regular en el marco del modelo de Estado en vigor. Ahora, en el llamado Estado social dinámi-co, como me gusta caracterizar el Estado social del presente, es precisamente la idea del interés general desde los postulados del pensamiento abierto, plural, dinámico y compatible, la matriz desde la cual se pue-den entender los profundos cambios que se están operando en el seno del Derecho Ad-ministrativo moderno como puede ser el

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alumbramiento del concepto del servicio de interés general o la reconsideración de la autotutela y ejecutividad administrativa.

Hasta no hace mucho, la sociología administrativa relataba con todo lujo de detalles las diferentes fórmulas de apropia-ción administrativa que distinguía tantas veces el intento centenario de la burocracia por controlar los resortes del poder. Afortu-nadamente, aquellas quejas y lamentos que traslucían algunas novelas de Pio Baroja sobre la actuación de funcionarios que dis-frutaban vejando y humillando a los admi-nistrados desde su posición oficial, hoy es agua pasada. Afortunadamente, las cosas han cambiado y mucho, y en términos ge-nerales para bien. Siendo esto así, insisto, todavía quedan aspectos en los que seguir trabajando para que la ciudadanía pudiera afirmar sin titubeos que la Administración ha asumido su papel de organización al servicio y disposición de la ciudadanía. Y, para ello, quienes hemos dedicado años de nuestra vida profesional a la Administra-ción sabemos bien que es menester seguir trabajando para que siga creciendo la sen-sibilidad del aparato público en general, y la de cada servidor público en particular, en relación con los derechos y libertades de los ciudadanos. Hoy el interés general mu-cho tiene que ver, me parece, con incrustar en el alma de las instituciones, categorías y conceptos del Derecho Administrativo, un contexto de equilibrio poder-libertad que vaya abandonando la idea de que la expli-cación del entero Derecho Administrativo bascula únicamente sobre la persona jurí-dica de la Administración y sus potestades, privilegios y prerrogativas.

En este sentido, siempre me ha pare-cido de clarividente y pionero un trabajo del profesor Garcia de Enterria de 1981 sobre la significación de las libertades públicas en el Derecho Administrativo en el que afirmaba que el interés general se encuentra precisamente en la promoción

de los derechos fundamentales. Está apro-ximación doctrinal, que goza del respaldo de la jurisprudencia del Tribunal Cons-titucional, está permitiendo, sobre todo en el Derecho Comunitario Europeo, que auténticas contradicciones conceptuales como la del servicio público y los derechos fundamentales se estén salvando desde un nuevo Derecho Administrativo, me atre-vería a decir que más relevante que antes, desde el que este nuevo entendimiento del interés general está ayudando a superar es-tas confrontaciones dialécticas a partir del equilibrio metodológico, el pensamiento abierto y la proyección de la idea demo-crática, cada vez con más intensidad, sobre las potestades administrativas. Lo que está ocurriendo es bien sencillo y consecuencia lógica de nuevos tiempos que requieren nuevas mentalidades, pues como sentenció hace tiempo Ihering, el gran problema de las reformas administrativas se haya en la inercia y la resistencia a los cambios que habita en la mentalidad de las gentes. Es decir, la caracterización clásica del servicio público (titularidad pública y exclusiva) ha ido adecuándose a la realidad hasta que se ha llegado a un punto en el que la fuerza de la libertad y de la realidad han terminado por construir un nuevo concepto con otras características, sin enterrar nada, y menos con intención de enarbolar la bandera del triunfo de lo privado sobre lo público, por-que el debate conceptual ni se plantea en estos términos ni es verdad que el Derecho Administrativo haya perdido su razón de ser. Más bien, lo que está ocurriendo es que está emergiendo un nuevo Derecho Admi-nistrativo desde otras coordenadas y otros postulados diferentes a los de antes. Pero, al fin y al cabo, Derecho Administrativo.

3. El articulo 103 de la constitucion es-pañola

El marco en el que debe explicarse el Derecho Administrativo Español, se

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encuentra en la Constitución de 1978. El Derecho Constitucional pasa, el Derecho Administrativo permanece sentenció con su habitual perspicacia Otto Mayer, tal y como hemos recordado con anterioridad. Y, como señalara el juez Werner, en esta línea, el Derecho Administrativo es el De-recho Constitucional concretado.

Un vez superadas las lógicas polé-micas iniciales que se produjeron entre nosotros tras la aprobación de la Constitu-ción entre el Derecho Administrativo y el Constitucional, debe reconocerse que las líneas maestras sobre las que debe pivotar el Derecho Administrativo del presente se encuentran en el conjunto de criterios, pa-rámetros, vectores y principios que están reconocidos en nuestra Constitución.

En el caso que nos ocupa, me parece que es menester citar, que no analizar dada la naturaleza de este trabajo, los artículos 9, 10, 24, 31 y 103, como los preceptos en los que encontramos un conjunto de ele-mentos constitucionales que nos ayudan a reconstruir las categorías, conceptos e ins-tituciones deudores de otros tiempos y de otros sistemas políticos a la luz del marco constitucional actual. Cualquiera que se asome a la bibliografía española del De-recho Administrativo, encontrará un sinfín de estudios e investigaciones sobre la ade-cuación a la Constitución de las principa-les instituciones que han vertebrado nues-tra disciplina, que a las claras demuestra como la doctrina tiene bien presente esta tarea.

Entre estos preceptos, ocupa un lu-gar destacado el artículo 103 que, en mi opinión, debe interpretarse en relación con todos los artículos de nuestra Carta mag-na que establecen determinadas funciones propias de los poderes públicos en un Esta-do social y democrático de Derecho, como suelo apostillar, dinámico. Dicho artículo, como bien sabemos, dispone, en su párrafo

primero, que “La Administración pública sirve con objetividad los intereses genera-les y actúa de acuerdo con los principios de eficacia, jerarquía, descentralización, desconcentración y coordinación, con so-metimiento pleno a la Ley y al Derecho”.

La Administración pública (estatal, autonómica o local porque se usa delibera-damente el singular para referirse a todas), sirve con objetividad el interés general. Me parece que es difícil haber elegido mejor la caracterización de la función adminis-trativa en el Estado social y democrático de Derecho. Primero, porque la expresi-ón servicio indica certeramente el sentido y alcance del papel de la Administración en relación con la ciudadanía. En sentido contrario, bien se puede afirmar que la Ad-ministración en una democracia no es, ni mucho menos, ni la dueña del interés ge-neral, ni la dueña de los procedimientos, ni la dueña de las instituciones públicas. Está a disposición de la mejor gestión de lo común, de lo de todos. Segundo, porque la instauración del sistema constitucional en las democracias supone un paso relevante en orden al necesario proceso de objeti-vización del poder que supone la victoria del Estado liberal sobre el Antiguo Régi-men. La referencia, pues,a la objetividad es capital. Tiene dos dimensiones según la apliquemos a la organización administrati-va en general, a los empleados públicos o funcionarios en particular. En todo caso, lo que me interesa destacar en este momento y en estas circunstancias es que se preten-de eliminar del ejercicio del poder públi-co toda reminiscencia de arbitrariedad, de abuso; en definitiva, de ejercicio ilimitado y absoluto del poder. Por eso, el poder debe ser una función pública de servicio a la co-munidad, en la que hay evidentes límites. Claro que al ser hombres y mujeres quie-nes ordinariamente son titulares del poder, las grandezas y servidumbres de la condi-

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ción humana según la categoría moral de quién lo ejerza arrojarán distintas posibili-dades. Ahora bien, la objetividad entraña, como hábito fundamental, la motivación de la actuación administrativa, impidiendo la existencia de espacios de oscuridad o de impunidad, áreas en las que normalmente florece la arbitrariedad, sorprendentemente “in crescendo” a juzgar por las estadísticas de actuaciones administrativas merecedo-ras de tal calificación por los Tribunales de Justicia.

Y, en tercer lugar, la referencia central al interés general me parece que ofrece una pista muy pero que muy clara sobre cual pueda ser el elemento clave para caracteri-zar la Administración pública hoy y, en el mismo sentido, el Derecho Administrativo. Entiendo que la tarea de servicio objetivo a los intereses generales es precisamente la justificación esgrimida para comprender los cambios que se están produciendo, pues no parece compatible la función constitu-cional por excelencia de la Administración pública actual con los privilegios y prerro-gativas de una Administración autoritaria que vivía en un contexto de unlilateralidad y de, escrito en castellano castizo, ordeno y mando. Por eso, como señalé en el epígrafe anterior, el entendimiento abierto, plural, dinámico y compatible del interés gene-ral está ayudando sobremanera a construir nuevos espacios de equilibrio sobre los que hacer descansar este nuevo Derecho Administrativo.

Por otra parte, no podemos dejar sin considerar, tratándose del artículo 103 de nuestra Constitución, que la Adminis-tración está sometida a la Ley y al Dere-cho. La llegada del Estado liberal, como sabemos, supone la victoria del principio de legalidad y la muerte del capricho y la ilimitación como fundamentos de un puro poder de dominio. El poder no es absolu-to, está limitado y sea cual sea la versión

del principio de legalidad que sigamos, lo cierto es que la Administración debe actuar en el marco de la Ley. Además, con buen criterio se consagra el principio de someti-miento total de la actividad administrativa y, también, de proyección de todo el Or-denamiento en sentido amplio sobre dicha actuación administrativa. Esto quiere decir, en mi opinión, que junto a las Leyes, tam-bién los jueces, al analizar la adecuación a Derecho o no de la actividad administrati-va, pueden echar mano de otras fuentes del Derecho que, como los principios genera-les, han ocupado, como sabemos, un lugar destacado por derecho propio en la propia historia del Derecho Administrativo.

Además, la alusión al Derecho he-mos de interpretarla en el sentido de que el Ordenamiento a que puede someterse la Administración es el público o el privado. En realidad, y en principio, no pasa nada porque la Administración pueda actuar en cada caso de acuerdo con el Ordenamiento que mejor le permita conseguir sus obje-tivos constitucionales. En unos casos será el Derecho Administrativo, el Laboral o el Civil o Mercantil. Eso sí, hay un límite que no se puede sobrepasar sea cuál sea el Derecho elegido, que no es otro que el del pleno respeto al núcleo básico de lo públi-co que siempre está ínsito en la utilización de fondos de tal naturaleza para cuales-quiera actividades de interés general. Por eso, aunque nos encontremos en el reino del Derecho privado, la sociedad pública o ente instrumental de que se trate deberá cumplir con los principios de mérito y ca-pacidad para la selección y promoción de su personal, así como con los principios de publicidad y concurrencia para la contra-tación.

Por tanto, la pretendida huida del Derecho Administrativo al Derecho Priva-do no ha sido tal y, en todo caso, la nece-sidad de servir objetivamente los intereses

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generales también se puede hacer en otros contextos siempre que la Administración justifique racionalmente porqué en deter-minados casos acude al Ordenamiento pri-vado.

El artículo 103, para terminar el epí-grafe, debe ser el precepto de cabecera de los reformadores de la Administración pública. Cuestión que, en España, todavía precisa de nuevos impulsos pues, a pesar de que todos los gobiernos han intentado mejorar el funcionamiento del aparato ad-ministrativo, la realidad, mal que nos pese, nos enseña que todavía la opinión de la ciudadanía en relación con la Administra-ción pública dista de ser la que cabía espe-rar del marco constitucional y del tiempo transcurrido desde 1978.

La idea de servicio tiene mucho que ver, me parece, con la crisis fenomenológi-ca de este concepto en un mundo en el que prima ordinariamente el éxito económico, la visualización del poder y el consumo impulsivo, que trae consigo esta especie de capitalismo insolidario que aspira a ma-nejar como marionetas a los ciudadanos. Hoy, estar al servicio de los ciudadanos parece tantas veces algo ingenuo, que no reporta utilidad y que, por ello, es un mal que hay que soportar lo mejor que se pue-da. La inversión del problema, insisto, es una cuestión cultural en la que se trabaja poco porque requiere desarrollos de largo plazo poco atractivos para el hoy y ahora en el que vive sumida una clase política que renuncia normalmente a proyectos de largo alcance. Promover el valor del ser-vicio público como algo positivo, incar-dinado en el progreso de un país, como algo que merece la pena, como algo que dignifica a quien lo practica…constituyen reflexiones que se deben transmitir desde la educación en todos los ámbitos. Si estas ideas no se comparten, no sólo en la teo-ría, por más normas, estructuras y funcio-

narios que pongamos en danza estaremos perdiendo el tiempo derrochando el dinero del común. De ahí que este criterio consti-tucional que define la posición institucional de la Administración pública sea central en la reforma y modernización permanente de la Administración pública.

La caracterización de objetivo de ese servicio es otra nota constitucional de gran alcance que nos ayuda a encontrar un parámetro al cuál acudir para evaluar la temperatura constitucional de las reformas emprendidas. La objetividad supone, en alguna medida, la ejecución del poder con arreglo a determinados criterios encamina-dos a que resplandezca siempre el interés general, no el interés personal, de grupo o de facción. Lo cuál, a pesar del tiem-po transcurrido desde la Constitución de 1978, no podemos decir que se encuentre en una situación óptima pues todos los go-biernos han intentado, unos más que otros, abrir los espacios de la discrecionalidad y reducir las áreas de control, por la sencilla razón de que erróneamente se piensa tan-tas veces que la acción de gobierno para ser eficaz debe ser liberada de cuantos más controles, mejor. Es más, existe una ten-dencia general en distintos países a que el gobierno vaya creando, poco a poco, es-tructuras y organismos paralelos a los de la Administración clásica con la finalidad de asegurarse el control de las decisiones que adoptan. En el fondo, en estos plante-amientos late un principio de desconfianza ante la Administración pública que, en los países que gozan de cuerpos profesionales de servidores públicos, carece de toda ló-gica y justificación.

Por otra parte, no se puede olvidar que las reformas administrativas deben ins-cribirse en un contexto en el que la percep-ción ciudadana y, lo que es más importan-te, la realidad, trasluzcan el seguimiento, siempre y en todo caso, del interés general

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como tarea esencial de la Administración pública, en general, y de sus agentes, en particular. Pero interés general no entendi-do en las versiones unilaterales y cerradas de antaño sino desde la consideración de que el principal interés general en un Es-tado social y democrático dinámico reside en la efectividad del ejercicio de los dere-chos fundamentales por parte de todos los ciudadanos, especialmente los más desfa-vorecidos. El aseguramiento y la garantía de que tales derechos se van a poder re-alizar en este marco ayuda sobremanera a calibrar el sentido y alcance del concepto del interés general en el nuevo Derecho Administrativo.

4. La funcion garantizadora y asegura-dora de los poderes publicos

Siendo, como es, el interés general el elemento clave para explicar la funcio-nalidad de la Administración pública en el Estado social y democrático de Derecho, interesa ahora llamar la atención sobre la proyección que la propia Constitución atri-buye a los poderes públicos.

Si leemos con detenimiento nuestra Carta Magna desde el principio hasta el fi-nal, encontraremos una serie de tareas que la Constitución encomienda a los poderes públicos y que se encuentran perfectamen-te expresadas en el preámbulo cuando se señala que la nación española proclama su voluntad de “proteger a todos los españo-les y pueblos de España en el ejercicio de los derechos humanos, sus culturas y tra-diciones, lenguas e instituciones”. Más adelante, el artículo 9.2 dispone que los poderes públicos remuevan los obstácu-los que impidan el ejercicio de la libertad y la igualdad promoviendo dichos valores constitucionales. En materia de derechos fundamentales, también la Constitución, como lógica consecuencia de lo dispues-to en el artículo 10 de la Carta Magna,

atribuye a los poderes públicos su asegu-ramiento, reconocimiento, garantía y pro-tección. En el mismo sentido, por lo que se refiere a los principios rectores de la políti-ca económica y social, la Constitución uti-liza prácticamente las mismas expresiones anteriores.

Estos datos de la Constitución nos permiten pensar que, en efecto, el Derecho Administrativo en cuanto Ordenamiento regulador del régimen de los poderes pú-blicos tiene como espina dorsal la contem-plación jurídica del poder para las liberta-des.

Esta función de garantía de los dere-chos y libertades define muy bien el senti-do constitucional del Derecho Administra-tivo y trae consigo una manera especial de entender el ejercicio de los poderes en el Estado social y democrático de Derecho. La garantía de los derechos, lejos de pa-trocinar versiones reduccionistas del inte-rés general, tiene la virtualidad de situar en el mismo plano el poder y la libertad, o si se quiere, la libertad y solidaridad como dos caras de la misma moneda. No es que, obviamente, sean conceptos idénticos. No. Son conceptos diversos, sí, pero comple-mentarios. Es más en el Estado social y de-mocrático de Derecho son conceptos que deben plasmarse en la planta y esencia de todas y cada una de las instituciones, con-ceptos y categorías del Derecho Adminis-trativo.

En materia de derechos fundamenta-les, el artículo 27.3 dispone que “los po-deres públicos garantizarán el derecho que asiste a los padres para que sus hijos reci-ban la formación religiosa y moral que esté de acuerdo con sus propias convicciones”. Precepto que expresa la dimensión de la libertad educativa aplicada sobre los pa-dres. Garantizar el ejercicio de un derecho fundamental, siguiendo el artículo 9.2 de la Carta Magna, implica una disposición

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activa de los poderes públicos a facilitar la libertad. Es decir, se trata de que la Admi-nistración establezca las condiciones nece-sarias para que esta libertad de los padres se pueda realizar con la mayor amplitud posible, lo que contrasta, y no poco, con la actividad de cierta tecnoestructura que to-davía piensa que el interés general es suyo, encomendando el ejercicio de dicha liber-tad a órganos administrativos. Promover, proteger, facilitar, garantizar o asegurar las libertades constituye, pues, la esencia de la tarea de los poderes públicos en un Estado social y democrático de Derecho. Por ello, la actuación administrativa de los poderes públicos debe estar presidida por estos criterios.

Más intensa, todavía, es la tarea de garantía y aseguramiento de los principios rectores de la política económica y social. En este sentido, el artículo 39 de la Cons-titución señala en su párrafo primero que los poderes públicos aseguran la protecci-ón social, económica y jurídica de la fa-milia. Es decir, el conjunto de los valores y principios rectores de la política social y económica, entre los que se encuentra la familia, deben ser garantizados por los poderes públicos, ordinariamente a través de la actividad legislativa y, sobre todo, desde la función administrativa pues la ley está para lo que está, y no se puede pedir al legislador que contemple todos los su-puestos habidos y por haber. Protección de la familia, promoción de las condiciones favorables para el progreso social y eco-nómico y para una distribución de la renta regional y personal más equitativa (artícu-lo 40). Garantía de un sistema público de Seguridad Social (artículo 41), protección de la salud (artículo 43), derecho al medio ambiente(artículo 45), derecho a la vivien-da (artículo 47)…En todos estos supuestos se vislumbra una considerable tarea de los poderes públicos por asegurar, garantizar,

proteger y promover estos principios, lo que, pensando en el Derecho Administra-tivo, supone un protagonismo de nuestra disciplina desde la perspectiva del Dere-cho del poder para la libertad, insospecha-do años atrás.

En este capítulo interesa llamar la atención sobre el contenido del parágrafo tercero del artículo 53 de la Constitución, en materia de garantías de las libertades y derechos fundamentales: “el reconoci-miento, el respeto y la protección de los principios reconocidos en el capítulo terce-ro ( de los principios rectores de la política social y económica) informarán la legisla-ción positiva, la práctica judicial y la actu-ación de los poderes públicos”. Pienso que para un profesor de Derecho Administra-tivo no debe pasar inadvertido que dicho precepto está recogido bajo la rúbrica de la protección de los derechos fundamentales, lo cuál nos permite señalar que en la tarea de promoción, aseguramiento y garantía de los principios rectores de la política so-cial y económica, los derechos fundamen-tales tienen una especial funcionalidad. Es decir, la acción de los poderes públicos en estas materias debe ir orientada a que se ejerzan en las mejores condiciones posi-bles todos los derechos fundamentales por parte de todos los españoles.

Esta reflexión empalma perfecta-mente con el sentido y alcance del interés general en el Estado social y democrático de Derecho, en la medida en que, como señalé con anterioridad, hoy el interés ge-neral tiene mucho que ver con los derechos fundamentales de las personas.

Como es sabido, los derechos fun-damentales “constituyen la esencia misma del régimen constitucional”(sentencia del Tribunal Constitucional de 21 de febre-ro de 1986) y son “elementos esenciales del Ordenamiento objetivo de la comuni-dad nacional, en cuanto ésta se configura

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como marco de una convivencia humana justa y pacífica”(sentencia del Tribunal Constitucional de 14 de julio de 1981). Como nervio central de la Constitución que son los derechos fundamentales, el Tribunal Constitucional no duda en reco-nocer “el destacado interés general que concurre en la protección de los derechos fundamentales”(sentencia de 16 de octu-bre de 1984), por lo que, lógicamente, la acción netamente administrativa de los po-deres públicos debe estar orientada a que precisamente los derechos fundamentales resplandezcan en la realidad, en la cotidia-neidad del quehacer administrativo.. En este sentido, una parte muy considerable del Derecho Administrativo que denomino Constitucional debe estar abierto a proyec-tar toda la fuerza jurídica de los derechos fundamentales sobre el entero sistema del Derecho Administrativo: sobre todos y cada uno de los conceptos, instituciones y categorías que lo conforman. Obviamente, la tarea comenzó al tiempo de la promul-gación de la Constitución, pero todavía queda un largo trecho para que, en efec-to, las potestades públicas se operen desde esta perspectiva. Ciertamente, las normas jurídicas son muy importantes para luchar por un Derecho Administrativo a la altu-ra de los tiempos, pero las normas no lo son todo: es menester que en el ejercicio ordinario de las potestades, quienes son sus titulares estén embebidos de esta lógi-ca constitucional, pues, de lo contrario, se puede vivir en un sistema formal en el que, en realidad, pervivan hábitos y costumbres propios del pensamiento único y unilateral aplicado al interés general.

Los derechos fundamentales, como sabemos bien, han jugado un papel de pri-mer orden en la configuración del constitu-cionalismo. En origen, cumplían su papel como espacios exentos a la intervención del poder, lo cuál ha sido relevante para,

sobre esta formulación, construir una nue-va funcionalidad desde su inserción en el Estado social y democrático de Derecho entendido desde una perspectiva dinámica. Así, además de barreras a la acción de los poderes públicos, empezaron a entenderse, también, como valores o fines directivos de la acción de los poderes públicos como bien apuntara entre nosotros Pérez Luño. Quizás, como apuntaba antes, sea la conse-cuencia de la interpretación del artículo 53 de la Constitución en su aplicación diná-mica sobre la acción administrativa.

Ahora, cuando la Administración actúa debe tener siempre presente que for-ma parte de su acervo profesional la sen-sibilidad constitucional, por lo que debe acostumbrarse a asumir su papel de poder comprometido en la efectividad de los pa-rámetros constitucionales, entre los que los derechos fundamentales encuentran un lu-gar muy destacado.

Los derechos fundamentales, ha señalado el Tribunal Constitucional desde el principio, “son los componentes estruc-turales básicos, tanto del orden jurídico objetivo, como de cada una de las ramas que lo integran, en razón de que son la ex-presión jurídica de un sistema de valores que, por decisión del constituyente, han de informar el conjunto de la organización ju-rídica y política”(sentencia de 11 de abril de 1985). Es decir, informan el conjunto del Derecho Público y, por tanto, la cons-trucción del nuevo Derecho Administrati-vo debe partir de su consideración, lo que trae consigo, como sabemos, la necesidad de releer y replantear tantas y tantas ins-tituciones que, entre nosotros, se han ex-plicado desde una perspectiva demasiado, en ocasiones, pegada a la prerrogativa y al privilegio.

En este contexto, se entiende perfec-tamente que el ya citado artículo 9.2 de la Constitución implique, no sólo el recono-

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cimiento de la libertad e igualdad de las personas o de los grupos en que se integran sino que, y esto es lo relevante en este mo-mento, demanda de los poderes públicos la tarea de facilitar el ejercicio de las liber-tades, lo que poco tiene que ver con una Administración que se permite, nada más y nada menos, que interferir en el ejercicio de determinadas libertades públicas y de-rechos fundamentales.

Quizás algún lector podrá pensar que aquí se mantiene una posición absoluta so-bre los derechos fundamentales. En modo alguno. Los derechos fundamentales, sal-vo el derecho a la vida, pueden estar so-metidos, en determinados casos, a límites derivados del orden público, porque aun-que sean muy importantes , no pueden ser el expediente para la comisión de delitos, obviamente. También pueden delimitarse por razones de interés general: es el caso, dudoso, de la propiedad inmobiliaría y el plan urbanístico. Igualmente, expropiaci-ón forzosa, puede ser que su ejercicio deba ceder ante relevantes exigencias de la de-nominada utilidad pública o interés social. Se puede afirmar, en este contexto, que ni el interés general, ni los derechos funda-mentales son absolutos. A renglón seguido es menester matizar que lo que es abso-luto, en la mejor tradición kantiana, es la persona humana, que nunca puede tener la condición de medio porque no lo es; es una realidad a la que el Derecho Público debe prestar atención para que el conjunto de la acción administrativa esté dirigida precisa-mente a hacer posible el ejercicio efectivo de todos los derechos fundamentales por todos los ciudadanos, especialmente los más desfavorecidos.

5. El nuevo derecho administrativo constitutional

El marco del Derecho Administra-tivo, ya lo hemos señalado, no puede ser

otro que la Constitución, de manera que las instituciones, categorías y conceptos que configuran nuestra disciplina encuentran sus pilares y fundamentos en la Constituci-ón de 1978. Pilares y fundamentos que, en mi opinión, se encuentran en el preámbulo y en los artículos 1, 2, 9, 10, 24, 31, 53 y 103.

Del preámbulo, pienso que podemos entresacar algunos conceptos jurídicos in-determinados que la soberanía nacional ha querido que quedaran para la posteridad, tales como “orden económico y social jus-to”, “imperio de la Ley como expresión de la voluntad popular”, “proteger a todos los españoles y pueblos de España en el ejer-cicio de los derechos humanos, sus cultu-ras y tradiciones, lenguas e instituciones”, o “asegurar a todos una digna calidad de vida”. Se trata de que en el desarrollo del Derecho Administrativo moderno se tenga bien presente que la economía esta mo-dulada por la justicia, que el principio de legalidad es columna vertebral del sistema sin que, por ello, los supuestos de deslega-lización o la proliferación de reglamentos independientes produzca una desnatura-lización de la sustancia constitucional del Derecho Administrativo. Igualmente, la facultad de dictar Decretos-Leyes debe operarse de forma extraordinaria, la urgen-cia en las expropiaciones también debe ser excepcional y, en general, el sometimiento de la Administración a los procedimientos ordinarios establecidos en las Leyes ha de ser el supuesto normal, evitando que la ur-gencia trastoque el régimen ordinario de algunas instituciones (expropiación forzo-sa). También en el preámbulo se reconoce la protección de los derechos humanos, elemento central del Ordenamiento jurí-dico. Se prevé, en el mismo precepto, la protección de los pueblos de España en el ejercicio de su identidad colectiva expre-sada en los hechos diferenciales derivados

EL MARCO CONSTITUCIONAL DEL DERECHO ADMINISTRATIVO

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de la lengua, la cultura, la lengua o las ins-tituciones propias. Llama la atención que el parágrafo en que se trata de los derechos humanos es el mismo que el dedicado al reconocimiento de las singularidades de los Entes autonómicos, como si el cons-tituyente quisiera advertir la necesidad del pensamiento abierto y plural que hace compatible el derecho fundamental de la persona con los derechos derivados de las identidades colectivas. Finalmente, por lo que se refiere al preámbulo, deberemos de referirnos a esa magna tarea que la Consti-tución encomienda a los poderes públicos, cuál es la de asegurar a todos una digna calidad de vida.

Por lo que se refiere al artículo 1, debemos destacar que en él se recoge la cláusula del Estado social y democrático de Derecho que, como queda señalado, debe entenderse, desde mi punto de vista, de acuerdo con los postulados del pensa-miento abierto, plural, dinámico y comple-mentario. De ahí que, en esta perspectiva, la tendencia del Estado a apropiarse de la sociedad a través de la interpretación uni-lateral y tecnoestructural del interés gene-ral, debe superarse hacia planteamientos en los que la función de los poderes públi-cos asuman posiciones de búsqueda com-partida del propio interés general teniendo presentes cuantas instituciones sociales se encuentran comprometidas por el bienes-tar integral de los ciudadanos. Los tiempos de las versiones autoritarias del interés ge-neral ya han pasado y, por ello, la cláusula del Estado social y democrático de Dere-cho, entendida desde estos parámetros en-cuentra su lógico desarrollo, por lo que se refiere a nuestro tema, en algunos de los preceptos que comentaré a continuación, como el 9.2 o el 53 de la Constitución.

Por lo que se refiere al artículo 9, señalar que en el parágrafo primero se consagra el sometimiento pleno y total de

la actividad de los poderes públicos a la Ley y al resto del Ordenamiento jurídico, eliminando cualquier vestigio que pudiera quedar de la etapa preconstitucional en re-lación con la existencia de espacios opacos al control judicial o exentos del mismo, tal y como ha venido ocurriendo hasta la Ley de la jurisdicción contencioso-adminis-trativa en relación con los llamados actos políticos. Sin embargo, lo más relevante a los efectos de este trabajo, se encuentra en el párrafo segundo pues establece el llama-do principio promocional de los poderes públicos. Principio que tiene una dimen-sión positiva y otra negativa. La negati-va se refiere a la remoción de obstáculos que dificulten el ejercicio de la libertad y la igualdad por los ciudadanos individual-mente considerados o en los grupos en que se integren. Y la positiva alude a “promo-ver las condiciones para que la libertad y la igualdad del individuo y de los grupos en que se integra sean reales y efectivas”.

Ambas dimensiones, la positiva y la negativa, tienen tanta trascendencia, que, en alguna medida, puede decirse que ayu-dan a entender el sentido del nuevo Dere-cho Administrativo que la propia realidad nos muestra cotidianamente. Primero, por-que el precepto encomienda al Derecho Administrativo el establecimiento de las condiciones que hagan posible la liberta y la igualdad, comprometiéndose en la pro-moción de dichos valores constitucionales. Y, de otra parte, el precepto establece un lí-mite a la acción de los poderes públicos en cuanto manda a la Administración, y por ende al Derecho Administrativo, impedir u obstaculizar a las personas y grupos en que se integren el ejercicio de la libertad y la igualdad por parte de los ciudadanos. En otras palabras, el Derecho Administrativo Constitucional debe, a través de sus fuen-tes, facilitar el ejercicio de los derechos fundamentales, singularmente la libertad y

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la igualdad. A la misma conclusión llega-remos a partir del artículo 53.3 de la Cons-titución tal y como, en algún sentido, se ha comentado ya con anterioridad.

En el artículo 10.1 encontramos una declaración solemne en la que el consti-tuyente señala, con toda solemnidad, cua-les son los fundamentos del orden políti-co y la paz social, conceptos obviamente estrechamente vinculados a lo que puede entenderse por interés general constitucio-nal: la dignidad de la persona, los derechos inviolables que le son inherentes, el libre desarrollo de la personalidad, el respeto a la ley y a los derechos de los demás. Por tanto, desde otra perspectiva, nos encon-tramos con que, efectivamente, la dignidad de la persona, el libre desarrollo de la per-sonalidad y los derechos fundamentales de la persona se nos presentan en el marco de lo que puede entenderse por interés general y, por ello, como componentes esenciales de un Derecho Administrativo concebido como Derecho del poder para la libertad. Quizás, así pueda comprenderse mejor el alcance de la jurisprudencia constitucional citada así como algunas afirmaciones de la doctrina científica que no han dudado en destacar el interés general en la promoción y defensa de los derechos fundamentales de la persona.

El artículo 24. 1 de la Constitución española es, probablemente, uno de los pre-ceptos que más incidencia ha tenido y está teniendo en la transformación del Derecho Administrativo a la Constitución. Esto es así porque un Derecho Administrativo montado sobre la autotutela necesariamen-te choca, y a veces frontalmente, con una disposición que reza: “todas las personas tienen derecho a obtener la tutela efectiva de los jueces y tribunales en el ejercicio de sus derechos e intereses legítimos, sin que, en ningún caso, pueda producirse in-defensión”. Los términos del artículo son

bien claros y requieren de la revisión de algunos dogmas del Derecho Administra-tivo en que se confiere a la propia Admi-nistración pública la condición simultánea de juez y parte. Ahora, la tutela más impor-tante está radicada en los tribunales y, por otra parte, la prohibición de la indefensión nos plantea no pocos problemas con inter-pretaciones unilaterales de la ejecutividad y ejecutoriedad administrativa. De ahí, por ejemplo, el impacto que ha tenido este precepto en la construcción de una justicia cautelar que sitúe en un contexto de equili-brio estos principios.

El artículo 31.2 dispone “ el gasto público realizará una asignación equitativa de los recursos públicos y su programaci-ón y ejecución responderán a los criterios de eficiencia y economía”. Traigo a cola-ción este precepto porque desde el punto de vista jurídico establece algunos criterios constitucionales que están muy conectados con el funcionamiento de la Administraci-ón pública, y por ello, del Derecho Admi-nistrativo. La equidad en la asignación del gasto público trae consigo muy importan-tes consideraciones en toda la teoría de la planificación. En el mismo sentido, los criterios de eficiencia y economía ayudan a entender el significado de determinadas políticas públicas instrumentadas a través del Derecho Administrativo que descono-cen el contenido general de estos princi-pios o parámetros constitucionales.

Por su parte, el artículo 53.3 ya alu-dido anteriormente, como corolario nece-sario de la cláusula del Estado social de Derecho, dispone, en sede de garantías de libertades y derechos fundamentales, nada menos que los principios rectores de la política social y económica “ informarán la legislación positiva, la práctica judicial y la actuación de los poderes públicos”. Es decir, los poderes públicos, además de estar vinculados por los derechos funda-

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mentales (artículo 53.1 CE) deben tener presente en su actuación los principios rec-tores señalados en los artículos 39 a 52 de la Constitución.

Y, finalmente, el artículo 103. 1 dice, como bien sabemos, que la Administración pública sirve con objetividad los intereses generales y actúa de acuerdo con los prin-cipios de eficacia, jerarquía, descentrali-zación, desconcentración y coordinación, con sometimiento pleno a la Ley y al De-recho. En este precepto se encuentran, a mi juicio, los elementos centrales que deben integrar las matrices del Derecho Adminis-trativo Constitucional: instrumentalidad, objetividad e interés general. Por lo que se refiere al sometimiento a la Ley y al Dere-cho; esto es, al entero sistema jurídico, es menester traer a colación lo dispuesto en el artículo 106. 1, también de la Constitu-ción: “los tribunales controlan la potestad

reglamentaria y la legalidad de la actuación administrativa, así como el sometimiento de ésta a los fines que la justifican”. Así, puede decirse que, en efecto, el Derecho Administrativo bascula sobre el concepto del interés general que, además de definir esencialmente lo que debe ser la actuaci-ón administrativa, constituye, igualmente, un relevante patrón de enjuiciamiento de la función judicial en relación con la acti-vidad administrativa. No es baladí, pues, que el interés general adquiera tal protago-nismo porque, como veremos enseguida, el Derecho Comunitario Europeo acaba de alumbrar algunos nuevos conceptos rubri-cados con esta metodología que vienen a ser, en alguna medida, conceptos deudores de una nueva interpretación y entendi-miento de lo que está empezando a ser el nuevo Derecho Administrativo.

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1. Nunca na História da humanidade a Constituição exerceu um papel de des-taque como o que a ela é reservado nos nossos tempos. A ampliação dos catálogos de direitos fundamentais e a sua efetivação por uma jurisdição constitucional atuante acabaram por submeter a política a parâ-metros substanciais rigorosos. A lei, por-tanto, deixou de ser a protagonista, papel que lhe era reservado no século XIX, para viver tutelada pela Constituição.

O estudo da Constituição ganha, também, um novo impulso. A natureza normativa da Constituição, que fulmina de invalidade os atos infraconstitucionais que

lhe são incompatíveis, põe sob os holofo-tes a teoria da Constituição, que aparece no Estado constitucional revitalizada.

Como se sabe, o constitucionalismo significou uma domesticação da política com a imposição de limites ao Estado, seja através de normas de organização das instituições, seja com as declarações de di-reitos que reconheciam posições jurídicas aos indivíduos. Hoje, quando vemos uma Constituição que cotidianamente se cons-trói na Jurisdição Constitucional, fala-se mesmo em uma nova versão do constitu-cionalismo, o neoconstitucionalismo.

A TEORIA DA CONSTITUIÇÃO COMO TEORIA DO DIREITO DO ESTADO CONSTITUCIONAL

THE CONSTITUTION THEORY AS A THEORY OF THE RIGHT’S CONSTITUTIONAL STATE

gustaVo FeRReiRa santos*

Recebido para publicação em julho de 2005

Resumo: A Constituição adquiriu, nos tempos atuais, um papel central na vida política e social. Para isso, a revisão judicial da legislação contribuiu enormemente. Isso fez com que temas da Teoria da Constituição e Temas da Teoria do Direito se superpusessem, transformando as questões suscitadas no estudo da Constituição em questões relativas a todo o ordenamento. O artigo discute essa transformação que a Constituição conheceu até os nossos dias, refletindo sobre algumas das idéias principais do pensamento que deu suporte teórico à esse processo.Palavras-chave: Constituição. Judicial Review. Jurisdição Constitucional. Supremacia Constitu-cional. Poder de Reforma.

Abstract: The Constitution has acquired actually a central role in the social and political life. The judicial revision of legislation has contributed strongly to this. This reality has turned the subjects of the Constitutional Theory and of the Theory of Law in common subjects and it has transformed the questions about the study of the Constitution in questions about the system of law. The article argues the transformations in the role of the Constitution until our days, thinking about some of the main ideas of the theory that gave theoretical support in this process.Key Words: Constitution. Judicial Review. Constitutional Jurisdiction. Supremacy of Consitution. Power of Constitutional Reform.

*Mestre (UFSC) e Doutor (UFPE) em Direito, Professor Adjunto de Direito Constitucional na UFPE e na UNICAP e Procura-dor Judicial do Município do Recife.

A TEORIA DA CONSTITUIÇÃO COMO TEORIA DO DIREITO...

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Neste texto, teceremos algumas con-siderações sobre esse atual papel da Cons-tituição e sobre alguns problemas que ele suscita. Tocaremos, portanto, em alguns aspectos da crítica à supremacia da Consti-tuição, ao judicial review fundadas na cha-mada objeção contramajoritária.

2. A Constituição conheceu um novo lugar com a evolução das primeiras for-mas liberais de Estado ao Estado que hoje conhecemos. O liberal via o Estado como um mal necessário, ficando, portanto, res-trito a poucas atividades e submetido a um conjunto de limitações representadas pelos direitos humanos. Para ele, a não atuação do Estado tinha uma marca positiva, já que os seus excessos violavam posições jurídi-cas fundamentais que garantiam a autono-mia do indivíduo. Já o Estado que resulta da constitucionalização da questão social e das expectativas de solidariedade inter-geracional que o século XX construiu não pode se bastar na omissão, mas assume po-sição de promotor de direitos econômicos, sociais e culturais.

Evidentemente que no Estado libe-ral o papel da desempenhado pela lei era central. Esse papel decorria das algumas características que marcavam o chamado Estado de Direito.

A expressão “Estado de Direito” remete-nos a um amplo conjunto de sig-nificados e de experiências1. Nela está resumida uma necessidade de compatibi-lização entre liberdade e ordem, pois, se-gundo Reinhold Zippelius, ele procura um compromisso entre a necessidade de um poder do Estado homogêneo e suficiente-mente forte para garantir a paz jurídica e a necessidade de prevenir um abuso do po-der estatal e de estabelecer limites a uma expansão totalitária do poder do Estado, assegurando na maior medida possível os direitos individuais.2.

O Estado de Direito não é apenas o Estado segundo a lei. Do surgimento des-sa noção aos dias atuais ele passou a ser entendido como o Estado que se guia por princípios da razão. Canotilho afirma que ele deve ser tomado como um esquema organizatório limitado pelo Direito3. Com essa noção, não há, nas sociedades que adotam essa fórmula, Estado fora do Di-reito.

Nesse caminho, Canotilho assenta que só será um Estado considerado Estado de Direito quando: (1) está sujeito ao direi-to (“o Estado, os governantes, as autorida-des, obedecem às leis, não estão colocados sobre as leis, mesmo que elas tenham sido criadas ou produzidas pelos órgãos do po-der”); (2) atua através do direito (“só quem esteja habilitado, só quem tenha uma com-petência previamente definida por regras jurídicas, está apto, num qualquer Estado de Direito, a desempenhar funções com o selo de autoridade pública”); (3) positiva normas jurídicas informadas pela idéia de direito (“O Estado de direito é informado e conformado por princípios radicados na consciência jurídica geral e dotados de va-lor ou bondade intrínsecos”)4.

O “Estado de não direito”, antítese do Estado de Direito, poderia ser assim ca-racterizado: “(1) é um Estado que decreta leis arbitrárias, cruéis e desumanas; (2) é um Estado em que o direito se identifica com a ‘razão de Estado’ imposta e ilumi-nada por ‘chefes’; (3) é um Estado pauta-do por radical injustiça e desigualdade na aplicação do direito”.5

A proeminência da lei no pensamento liberal decorre do fato de que os Parlamen-tos afirmaram-se, à época do absolutismo, como instrumentos de defesa da liberdade perante do poder. No conceito de Estado de Direito novecentista não está presente o medo do Parlamento, mas sim o do arbí-trio da Administração. O próprio conceito

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A TEORIA DA CONSTITUIÇÃO COMO TEORIA DO DIREITO...

de Estado de Direito traz em si a idéia de que só a lei é o instrumento adequado para a restrição de direitos individuais.

Veja-se, a esse respeito, a imagem que Otto Mayer tinha de Rechtsstaat, que se marcava pela (i) supremacia da lei sobre a Administração; (ii) na subordinação à lei, e somente à lei, dos direitos do cidadão, não podendo poderes autônomos incidir sobre tais direitos; (iii) a presença de juízes independentes com competência exclusiva para aplicar a lei, e somente a lei, nas con-trovérsias surgidas entre os cidadãos e en-tre eles e a Administração6.

A posição de destaque no cotidiano da Jurisdição Constitucional hoje observa-do quanto aos direitos fundamentais é de fácil explicação. Trata-se de um evidente reflexo do câmbio do próprio conceito de Constituição, que caminhou de uma posi-ção privilegiadora de normas organizacio-nais para uma ênfase nas normas protetivas de indivíduos e grupos em face do poder.

O papel assumido pela Constituição reflete, ainda, a crise do Estado legislativo e do próprio conceito de lei. A coerência do ordenamento, criado sob os auspícios de interesses de um grupo, que caracte-rizou o Estado burguês, não comparece no atual Estado constitucional. A caótica inclusão de temas em leis, nos diversos acordos momentâneos de interesses que se verifica na atividade parlamentar da atu-al sociedade pluralista vai encontrar nos princípios constitucionais um mínimo con-teúdo referencial. Na Constituição encon-tram-se termos de um acordo mais amplo, capaz de nortear os embates cotidianos de interesses. A lei cede espaço à Constitui-ção como elemento mediador7. O Estado Constitucional representaria, assim, um plus em relação ao Estado de Direito, que era marcadamente legislativo.

Assim, há uma variedade de interes-ses na Constituição, que exerce diferentes

funções. Como afirma Cass R. Sunstein, as normas constitucionais “podem ser liberais ou não-liberais; diferentes Constituições, e diferentes partes da mesma Constituição, protegem diferentes interesses”8.

Nesse contexto, a interpretação cons-titucional substitui, em muitos aspectos, o debate político. A decisão que sairia do embate entre propostas melhores ou piores cede lugar muitas vezes à adoção de me-didas segundo a sua constitucionalidade. As próprias forças políticas em luta incor-poram o argumento da constitucionalida-de aos seus discursos. Esse argumento é evidentemente mais forte, pela autoridade que contém, do que os argumentos sobre as possíveis virtudes práticas das medidas propostas.

Os principais problemas da atual Te-oria da Constituição, não por coincidência, correspondem a problemas colocados aos estudiosos da Teoria do Direito. A idéia de supremacia constitucional, as teorias de interpretação da Constituição, a nature-za das normas constitucionais, os limites da racionalidade judicial no controle da Constitucionalidade, dentre outros, são temas que indiferentemente colocam-se aos constitucionalistas e aos cultores da Teoria do Direito. Adiante, trataremos dos problemas da supremacia da Constituição e da revisão judicial da legislação, temas que se apresentam como caros exemplos dessa centralidade dos problemas consti-tucionais. Apresentaremos, intencional-mente, essas reflexões com base em uma bibliografia majoritariamente de Teoria do Direito.

3. A Constituição, em sua suprema-cia, coloca o problema da relação entre atualização e permanência das decisões políticas. Ao instituir-se como comunida-de, um povo escolhe a forma e o conteú-do de suas instituições. Exerce o poder de

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dizer como o Estado e a sociedade se or-ganizarão. Ao mesmo tempo, em razão do estabelecimento da rigidez constitucional, retira da atividade política cotidiana o po-der de alterar tais decisões9.

Identifica-se, nessa seara, o que Hol-mes chamou de “paradoxo democrático”, ou seja, questiona-se como uma geração que suplanta a obra constitucional da ge-ração anterior pode impor às gerações fu-turas a sua obra constitucional.10 Para Jon Elster, ao estabelecer o compromisso em um texto constitucional, a sociedade age como Ulisses, que se atou ao mastro do navio, após tampar com cera os ouvidos dos marinheiros e dar ordem para que não fosse desamarrado, mesmo que pedisse. Estabelecemos limites para momentos de dificuldades, para não cairmos na tentação das soluções mágicas – que aparecem com mais força em razão das difíceis circuns-tâncias11.

A imagem do Ulisses atado ao mas-tro é bastante criticada por não ser passível de aplicação a uma comunidade. Ulisses é o mesmo, quando decide amarrar-se, du-rante a travessia e após a superação dos pe-rigos. Porém, as decisões constitucionais que se pretendem definitivas não amarram somente os que decidiram pelo congela-mento da cláusula, mas também atinge ge-rações posteriores12.

Como se sabe, não há Constituições imutáveis. Uma Constituição que se pre-tendesse imutável seria indubitavelmente uma Constituição breve. As alterações nas relações concretas na sociedade por ela regulada levariam à sua implosão, diante da impossibilidade de adaptação do texto à vida. Com Jorge Miranda podemos dizer que a “modificação das Constituições é um fenômeno inelutável da vida jurídica, im-posta pela tensão com a realidade consti-tucional e pela necessidade de efetividade que as tem de marcar”13.

As Constituições, nesse processo de atualização, sofrem alterações tanto por processos formais, como a revisão ou a emenda, como por processos informais, como na chamada mutação constitucional. Num ou noutro momento, manifesta-se a tensão entre atualização e permanência. Num ou noutro, o que se busca é manter a norma constitucional como parâmetro para a solução dos problemas da vida.

Ordinariamente, as Constituições regulam os processos a serem observados para a sua própria alteração pelos membros da sociedade. Constituições rígidas trazem formas especiais de processo legislativo para que algo em seu texto seja mudado14. São momentos, atores ou quoruns especí-ficos, acrescendo, portanto, ao princípio da maioria, exigências que não são colocadas para a tomada das decisões políticas diá-rias. A existência desses processos visa dar longevidade ao texto da Constituição, de um lado permitindo sua adaptação às mu-danças ocorridas no real e de outro lado protegendo matérias sensíveis dos proce-dimentos ordinários de fixação de normas jurídicas.

Nesse passo, quanto mais Consti-tuição tiver um país, ou melhor, quanto maior for o número de matérias incluídas na Constituição formal, maior será o con-junto de temas submetidos a um processo político decisório mais complexo ou, o que é pior, à imutabilidade15.

Essa supremacia/rigidez tem suscita-do objeções, fundadas na afirmação da de-mocracia. Questionam tais posicionamen-tos a necessidade de retirar da sociedade o poder de decidir seus rumos frente aos problemas que a vida apresenta. O entrin-cheiramento de determinadas decisões tem evidente tensão com o elemento democrá-tico do Estado.

A Constituição, ao dificultar ou vetar a alteração de alguns de seus dispositivos,

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estaria conduzindo um tipo paternalismo, decorrente de uma desconfiança em rela-ção às gerações futuras. Seria um auto-reconhecimento de lucidez, concomitante a uma proteção de suas iluminadas deci-sões.

No caso brasileiro há um discurso comum de condenação às diversas altera-ções impingidas ao texto constitucional. É evidente que alterar com freqüência abala a força normativa que se espera de uma Constituição. No entanto, essa constatação não pode ser o único móvel para a perma-nência do texto. A Constituição tem que se mostrar apta a regular os problemas que a sociedade enfrenta. Se seus dispositivos não mais correspondem às expectativas dos principais atores políticos, a mudança apresenta-se como uma saída recomendá-vel.

Da mesma forma, não podemos dei-xar de reconhecer que, quanto maior for o plexo de matérias e quanto mais profunda em detalhes tiver sido a regulação, maior será também a possibilidade de que uma necessidade de mudança de política leve a uma necessidade de intervenção no tex-to da Constituição. Não se pode esperar de um governo democraticamente eleito, muitas vezes com uma plataforma refor-mista, que se acomode na função de mero executor das decisões tomadas em 1987 e 1988.

Ninguém pode desconhecer as pro-fundas mudanças que atingiram o mundo no período de tempo compreendido entre a elaboração de nossa atual Constituição e os dias de hoje. Evidentemente que um governo tendente a integrar a economia brasileira na nova ordem internacional deveria mexer nas normas constitucionais que tocam a ordem econômica. Óbvio, também, que os parâmetros da previdên-cia social, diante dos graves problemas de seu financiamento, mereceram mudanças.

Como o processo constituinte levou a uma Constituição marcadamente conjuntural, uma nova situação na conjuntura política ou econômica exige que se mexa no tex-to16.

Mesmo assim, poucas foram as mu-danças exclusivamente principiológicas na Constituição. A maior parte cuidou de de-talhes que não são facilmente justificáveis como decisões fundamentais, mas que po-deriam ter sido deixados pelo Constituinte à disciplina pelo legislador ordinário. Tra-tam, por exemplo, de limite de remunera-ção de servidores e agentes políticos, for-mas de aposentadoria, alíquotas de tributos ou contratação de professores estrangeiros por universidades públicas. Mais do que condenar o Administrador que lutou pelas reformas, há que se questionar a atitude constituinte de elevar ao nível constitucio-nal um número muito grande de questões e, o que é pior, de detalhes.

Aquele desejo de colocar tudo no texto da Constituição, ao qual já fizemos referência, revelava uma desconfiança em relação às instituições e um certo medo da política. Foram nutridas no período cons-tituinte esperanças de qualidades quase mágicas da Constituinte. Basta lembrar o samba de enredo que dizia “espero da Constituinte na minha mesa muito pão, uma poupança cheia de cruzados e um carnaval com muita paz no coração”17. Por outro lado, no processo constituinte não ficou caracterizada uma clara maioria homogênea, o que permitiu a inclusão de interesses eventualmente majoritários18.

No entanto, não são as decisões constituintes revelações de deuses. Não são ontologicamente superiores a outras decisões humanas. Aliás, contaminam-se com as mesmas práticas espúrias que con-taminam as decisões políticas cotidianas. Muitas das decisões de uma Assembléia constituinte são tomadas em contextos de

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negociatas e trocas de favores entre grupos que colocam no texto constitucional seus interesses incompatíveis com qualquer idéia de interesse geral.

A decisão de tornar algo protegido no texto da Constitucional deve ser ex-tremamente amadurecida, pois se trata de dificultar, enquanto durar a Constituição, a discussão política sobre aquele tema. O se-tor protegido deveria ter por objeto somen-te aquilo que seja considerado fundamental para a própria existência da comunidade19. Em especial, direitos fundamentais, cuja observância estaria acoplada ao próprio conceito de democracia.

A democracia, aqui, é vista não sim-plesmente como governo da maioria. Al-guns elementos formam as condições para que seja aceitável a decisão da maioria. Esses elementos, via de regra, decorrem da necessidade de garantir a autonomia dos agentes que formam a comunidade.

As citadas objeções não comprome-tem no todo, ao nosso ver, a legitimidade da existência dos procedimentos mais di-fíceis para alterar a Constituição. Abalam, porém, a fundamentação de qualquer cláu-sula proibitiva de alteração. A incompati-bilidade, portanto, não está entre rigidez e democracia, mas entre vedação de discus-são e democracia20.

A proteção por procedimentos mais complexos reconhece a necessidade de que decisões fundamentais, ou seja, que inci-dem sobre matérias de especial relevância para a comunidade, não podem ficar sujei-tar a um processo aberto infinito de discus-são. A mudança freqüente de parâmetro para as atividades dos indivíduos, ditadas por maiorias eventuais, levaria à deslegiti-mação do próprio Estado.

A Constituição da República Fe-derativa do Brasil entroniza um largo rol de dispositivos no espaço protegido, com a regra contida no §4º do art. 60. Diz que

não será passível de deliberação emenda tendente a abolir a separação de poderes, o voto direto, secreto, universal e periódico, a forma federativa de Estado e os direitos e garantias fundamentais.

No entanto, não se trata de uma cláu-sula absoluta de imodificabilidade. A alte-ração de tais matérias é possível, desde que não identificada uma tendência à abolição daquelas decisões. Isso significa que alte-rações pontuais, que não desestruturem os esquemas traçados pelo Constituinte ou, até mesmo, que os reforce serão aceitas, mesmo que alterem artigos devotados às matérias ali definidas.

De 1988 aos nossos dias algumas alterações nesses campos foram levadas a cabo sem que tenha sido reconhecida uma ofensa à proibição de alteração. Veja-se, por exemplo, a mudança, na Emenda Constitucional n. 32, da titularidade do poder de organizar e estruturar Ministérios e órgãos da Administração. Tal poder, até então, estava nas mãos do Congresso Na-cional, tendo passado à decisão do Poder Executivo. Ora, apesar de incidir sobre a separação de poderes, já que altera limites na relação entre Legislativo e Executivo, não se pode falar que houve tendência à abolição da cláusula protegida.

Devemos nos lembrar que essas “cláusulas pétreas” não impedem que se-jam suprimidos os temas daquilo que é o parâmetro constitucional do país, mas apenas que sejam suprimidos daquela es-pecífica Constituição, já que é plenamente possível uma ruptura e um novo exercício do poder constituinte. O processo de subs-tituição de uma Constituição por outra não é regulado pelo texto constitucional ou por qualquer outra norma jurídica.

Então, por que lançar a sociedade em uma situação de temporária de ausência de Constituição, com um novo exercício do poder constituinte, que ninguém sabe no

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que vai dar, quando podemos mudar o tex-to em um processo controlável? Um país sem Constituição está à deriva. Ninguém sabe quem pode e até que ponto pode. O arbítrio pode resultar em qualquer arranjo institucional. O questionamento da cláu-sula “X”, caso exista vedação constitucio-nal de sua alteração, poderia levar, em um agravamento dos ataques ao preceito, os detentores do poder político ao poder de alterar qualquer cláusula constitucional, já que resultaria no exercício do poder cons-tituinte. Em um procedimento regulado, ou seja, em uma alteração na forma da Cons-tituição, como ocorre quando não há cláu-sulas de alteração proibida, o foco é dado naquela matéria questionada, permanecen-do estáveis todos os outros elementos da Constituição naquele momento não ques-tionados.

Uma fórmula como a adotada pela Constituição da Espanha, na qual os repre-sentantes do povo se manifestam, depois é renovada a representação com eleições parlamentares, tendo nova manifestação dos representantes, e, por fim, há consul-ta direta ao povo, é muito mais compatí-vel com a necessidade de manutenção da Constituição sem impedir a manifestação da decisão democrática:

Art. 168. 1 – Quando for proposta a revisão total da Constituição ou uma revi-são parcial que afete o título preliminar, a seção I do capítulo II do título I ou o título II, proceder-se-á à aprovação do princípio da revisão por maioria de dois terços de cada Câmara e à dissolução das Cortes.

2 – As Cortes que vierem a ser eleitas deverão ratificar a decisão e proceder ao estudo do novo texto constitucional, que deverá ser aprovado por maioria de dois terços de ambas as Câmaras.

3 – Aprovada a reforma pelas Cortes Gerais, será submetida a referendo para ra-tificação.

Ao povo, diretamente, caberá a úl-tima palavra, após um sistemático ama-durecimento do debate, com os membros das Cortes assumindo o ônus da dissolu-ção, que se seguirá à decisão favorável à mudança. Os debates nas eleições que en-tremeiam as manifestações dos represen-tantes não desconhecerão o tema objeto de análise nas Cortes, o que reforça, ainda mais, a legitimidade da decisão final.

A submissão de tais matérias a um novo processo legitimador, que envolva o maior número possível de opiniões, pode até se mostrar uma estratégia positiva, já que renova na comunidade as razões que levaram à consagração da cláusula como elemento especial da Constituição. A so-ciedade refletirá e renovará o compromisso assumido no período constituinte.

Aos críticos da supremacia consti-tucional essa fórmula seria marcada pelos mesmos problemas verificados na imutabi-lidade, já que, apesar de permitida, as difi-culdades de se levar uma alteração a cabo tornariam praticamente impossível o exer-cício do poder de reforma. Para tais posi-ções, o máximo de concessão seria uma fórmula como a adotada na Suécia, que não exige quorum diferenciado para a ado-ção de mudanças constitucionais, porém, usa o instrumento das duas votações, entre as quais deverá ser realizada uma eleição geral e se deverá aguardar, no mínimo, nove meses21.

4. Concordamos com Jeremy Wal-dron22 quando clama por um novo olhar sobre a função legislativa. A revaloriza-ção do papel da lei é também uma reva-lorização da democracia. Muitas críticas dirigidas ao legislador, questionando a sua legitimidade, geralmente deflagradas em razão de problemas cotidianos, tais como corrupção no Estado ou acordos espúrios, atingiriam, se a ela dirigida, a própria as-

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sembléia que construiu a Constituição. Muitas dessas críticas, na verdade, tratam de um constituinte mítico, imaculado, ilu-minado e distante dos conchavos que mar-cam o dia a dia da política, ou seja, uma entidade inexistente.

É evidente que os instrumentos com-plexos das democracias atuais são imper-feitos. Pior, ainda, é a prática que se verifica na execução de tais instrumentos. Porém, esses problemas não podem justificar o desprezo pela decisão democrática. É evi-dente que, apesar dos problemas, a figura da representação aporta uma legitimidade ao representante que não encontramos no indivíduo isolado sentado numa cadeira na Universidade. Em nada o professor de di-reito constitucional será mais legítimo que o parlamentar. Adiante, discutiremos com mais vagar esse problema da legitimação democrática dos detentores do poder.

A atual noção de democracia não a reduz a um mero governo da maioria, mas incorpora em sua definição a proteção de determinadas posições mesmo diante da decisão majoritária. Os direitos fundamen-tais representariam uma espécie de “terre-no proibido”, garantido frente ao princípio da maioria. Para Dworkin, os direitos indi-viduais são trunfos que protegem o indiví-duo contra a maioria. Para ele,

os indivíduos têm direitos quando, por alguma razão, um objetivo comum não configura uma justificativa suficiente para negar-lhes aquilo que, enquanto indivídu-os, desejam ter ou fazer, ou quando não há uma justificativa suficiente para lhes im-por alguma perda ou dano.23

A convivência em sociedade e a submissão ao jogo democrático no coti-diano dependeriam de um prévio acordo sobre um número específico de direitos, o que viabilizaria posições de indivíduos e grupos. Seriam os direitos fundamentais posições jurídicas a serem reconhecidas e

protegidas como bases da vida sem socie-dade. Limitariam materialmente o poder de reforma e os poderes constituídos.

Para Jeremy Waldron24, não há na Constituição um procedimento com li-mitações materiais. O que existe são pro-cedimentos limitando procedimentos. O procedimento democrático da decisão por maioria, é limitado por outro procedimen-to, que permite a afirmação das cláusulas limitadoras pelo Poder Judiciário. Assim, diante dessa combinação de procedimen-tos, ele manifesta preferência pelo proce-dimento da maioria que, diante dos outros, teria melhores características intrínsecas, pois garantiria o direito do cidadão à igual participação na decisão – principal preocu-pação de sua visão sobre a legitimidade - o que não ocorre quando há a determinação de um conteúdo por um tribunal.

Ele chama atenção para a necessidade de contemplarmos em nossa visão do pro-cesso político a existência da discordância. Afasta ele a necessidade de trabalharmos com o consenso como uma finalidade do processo político. Nesse sentido, a decisão majoritária seria ao mesmo tempo eficaz e respeitosa, uma vez que “não requer que a posição de ninguém seja menosprezada ou silenciada por causa da importância imagi-nada do consenso”25.

Apesar do brilhantismo da crítica de Jeremy Waldron, temos algumas resistên-cias à sua aceitação. É certo que o conteúdo dos direitos fundamentais não é de antemão determinado. É verdade, ainda, que o que se faz, ao instituir o judicial review, é criar um procedimento para controlar outro procedi-mento. Porém, esse segundo procedimento, o adotado pelo Judiciário, é qualificado, gi-rando em torno de uma pauta mais rígida, na qual as declarações de direitos não são coleções de palavras soltas, mas contém ex-pressões que designam certos “conteúdos”, pois carregados de história.

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A decisão do tribunal não pode ser comparada em arbítrio à decisão das maio-rias. Por mais que exista indeterminação quanto ao conteúdo dos direitos funda-mentais, as possibilidades de decisão são mais restritas que aquelas existentes em um processo político aberto e ilimitado. O que precisamos é que o Tribunal se conte-nha ao fixar o conteúdo das cláusulas limi-tadoras do poder de decisão da maioria.

Um forte argumento a favor da Cons-tituição vem da tese da democracia dualista de Bruce Ackerman26. Para ele, há uma di-ferença fundamental entre a decisão tomada no momento constituinte e a decisão políti-ca do dia a dia parlamentar. Na primeira, é mais forte a legitimidade da decisão, pois há, diretamente ou acompanhando com mais atenção e mobilização, a participação popular, a quem a decisão é atribuída27. As-sim, o Judiciário funciona como um garante da primeira decisão, original e de legitimi-dade reforçada, contra arroubos do legisla-dor ordinário, sendo, portanto, essencial à própria democracia. Contrapõem-se alguns a essa tese, dizendo inexistir garantias de que o momento constituinte tenha sido um momento de maior participação da socieda-de, podendo a decisão constituinte maquiar interesses escusos28. Concordamos com essa objeção. O momento constituinte não é neutro. Ao contrário, digladiam-se interes-ses, que não são desconhecidos pelo autor da tese da democracia dualista. O resultado, a Constituição, nem sempre é o melhor tex-to que poderia ter sido feito. O que a tese da democracia dualista quer fixar, porém, é uma espécie de ficção legitimadora. É a afirmação de que é possível identificar uma diferença qualitativa, independentemente das experiências contratas das sociedades, entre a decisão constituinte e a decisão par-lamentar cotidiana.

Não que a objeção ao judicial re-view signifique nos críticos uma negação

da necessidade de qualquer controle. Para alguns dos autores incluídos na chama-da crítica contramajoritária da jurisdição constitucional há uma necessidade de con-trole, mas que não deve ser feito pelo Ju-diciário. Mark Tushnet29 analisa algumas experiências de afirmação da Constituição por instituições não-judiciais, que têm ob-tido sucesso, e enxerga uma possibilidade em tais experiências de criação de uma confiança popular a legitimá-las. Eviden-temente, clama por mais estudos sobre essas instituições não-judiciais que podem acrescer eficácia ao controle da constitu-cionalidade.

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NOTAS

1 Ernst BÖCKENFÖRDE, Estudios sobre el Es-tado de Derecho y la democracia, p. 45. 2 Teoria geral do estado, p. 384.3 Estado de direito, p.15.4 Estado de direito, p. 49.5 Estado de Directo, p. 12.6 Apud Gustavo ZAGREBELSKY, El derecho dúctil, p. 23.7 Cf. a respeito Gustavo ZAGREBELSKY, op. Cit., p. 40;8 Constitutions and democracies: an epílogue, p. 327.9 Ernesto GARZÓN VELDÉS chama de “coto vedado” a área não passível de discussão pela atividade parlamentar, Representación y demo-cracia, p. 157.

10 Stephen HOLMES, Pré-commitment and the paradox of democracy, p. 198.11 Cf. Ulysses and the sirens.12 Juan BAYÓN, derechos, democracia y cons-titución, p. 224. Para uma justificação da analo-gia em Elster, cf. Ulysses unbound, p. 88.13 Manual de direito constitucional, tomo II, p. 129.14 Francisco LAPORTA considera como as for-mas mais comuns de proteção constitucional contra alterações são o quorum qualificado (que é diferente do exigido para as leis), as “cláu-sulas de esfriamento” (como a necessidade de mais de um turno de votação) e o plebiscito, El ámbito de la constitución,p. 466.15 “Toda a discussão americana tradicional entre constitucionalistas e democráticos roda à volta deste ponto, como bem o sabemos. O problema consiste em saber até que ponto é que a exces-siva constitucionalização não se traduz em pre-juízo do princípio democrático. Constituciona-lizar é colocar fora do comércio político, que o mesmo é dizer: fora do alcance da vontade da maioria daquilo que é constitucionalizado” Vi-tal MOREIRA, Constituição e democracia na experiência portuguesa, p. 273.16 “A imodéstia constituinte dificilmente fica impune e o poder constituinte evolutivo acaba por ser a sanção da imodéstia e da arrogância do poder constituinte, quando ele não é capaz de ousar acima da conjuntura da sua própria época” Vital MOREIRA, Constituição e demo-cracia na experiência portuguesa, p. 274.17 Samba da “Caprichosos de Pilares”, do Rio de Janeiro, para o carnaval de 1987.18 “O constituinte de 1987/1988, nesse sentido, teria cometido excessos, constitucionalizando temas que poderiam ter ficado para o legisla-dor ordinário. O fato de a Constituinte não ter realizado seu trabalho a partir de um projeto predeterminado, mas a partir de vinte e quatro subcomissões, criou sérios problemas de siste-matização. Essas subcomissões, além de traba-lhar isoladamente umas das outras – o que gerou dificuldades em sintonizar todas as perspectivas num documento inicial – também atuaram, em muitos casos, de forma sobreposta. Somado a esse problema técnico, a Constituição foi o re-sultado de uma determinada conjuntura política em que nenhum dos grupos conseguiu estabe-lecer hegemonicamente seu projeto político.

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Assim, diversos dispositivos constitucionais resultam da força de maiorias meramente even-tuais, aglutinadas especialmente para a inserção de um tópico no texto constitucional” Oscar Vi-lhena VIEIRA, A constituição e sua reserva de justiça, p. 133.19 Francisco LAPORTA, El ámbito de la constitución,p. 474.20 Francisco LAPORTA, El ámbito de la cons-titución, p. 482.21 Juan BAYÓN, Derechos, democracia y cons-titución, p. 234.22 A dignidade da legislação, p. 2.23 Levando os direitos a sério, p. XV.24 The Core of the Case Against Judicial Review, p.

25 A dignidade da legislação, p.192.26 The new separation of powers, p. 664.27 “The higher law track should be specially de-signed to identify those rare occasions when a political movement has earned the right to speak for a mobilized and decisive majority on a mat-ter of central political importance. The normal track should instead be designed for use in the more typical case in which such a deep popular mandate does not exist.” The new separation of powers, p. 664.28 Antonio Manuel Peña Freire, Constituciona-lismo garantista y democracia, p. 44.29 Non-judicial review, p. 453.

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Introdução: o “Processo Constitucional”

“O Processo Constitucional visa a tutelar o princípio da supremacia constitu-cional, protegendo os direitos fundamen-tais” (BARACHO, 1999a:118). Pretende-mos nesse breve ensaio resgatar as lições acerca da importância do Processo Consti-tucional no âmbito dos operadores e estu-diosos do Direito e mostrar a precedência da Constituição sobre os demais ramos do Direito (aqui particularmente) apontando os Direitos e Garantias afetos ao Processo e suas implicações sobre este e à garantia dos Direitos Fundamentais.

Conseguiremos, assim, revisitar o controle de constitucionalidade (talvez um dos capítulos mais importantes do Proces-so Constitucional), como lembra José A. de Oliveira Baracho (1999a:104), “alguns

intérpretes vêem a jurisdição constitucio-nal como objeto essencial das investiga-ções sobre Processo Constitucional”. Nes-se sentido, pretendemos mostrar a origem e o desenvolvimento do controle de cons-titucionalidade no Brasil e no mundo para então chegarmos a discutir a correlação entre proteção dos Direitos Fundamentais, a natureza das decisões (“sentenças consti-tucionais”) em sede de controle de consti-tucionalidade.

A conceituação da nova disciplina (Processo Constitucional) deveu-se a vá-rios fatores históricos e sociais.

Conforme mostraremos adiante, o Processo Civil, ou “direito adjetivo” — costumeiramente tido como mera rea-lização judicial dos “direitos substantivos” — vai sofrer profunda mudança a partir do final do século XIX, quando num primeiro

CONSTITUIÇÃO E PROCESSO: A DECISÃO EM SEDE DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE VISTA A PARTIR DA

CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO PROCESSO*CONSTITUTION AND PROCESS: THE JUDICIAL REVIEW DECISION SINCE

THE CONSTITUTIONALIZATION OF PROCESS

alexandre Gustavo Melo Franco Bahia**

Recebido para publicação em agosto de 2005

Resumo: Procura-se mostrar como as decisões em sede de controle de constitucionalidade das leis, especialmente no Brasil, necessitam ser compreendidas a partir dos princípios do Processo Constitucional.Palavras-chave: Constituição. Processo. Controle de Constitucionalidade.

Abstract: Our intent is to show the judicial review decisions, especially in Brazil, need to be un-derstood since the Constitutional Process principles.Key Words: Constitution. Process. Judicial Review.

* Este artigo foi inicialmente apresentado como monografia para a disciplina “Processo Constitucional”, ministrada pelo Prof. Dr. José Alfredo de Oliveira Baracho no curso de Pós-Graduação em Direito Constitucional da UFMG, cursada no segundo semestre de 2002.** Professor de Processo Civil na Faculdade Estácio de Sá – BH e de Processo Civil e Direito Constitucional na Faculdade ASA – Brumadinho. Mestre e Doutorando em Direito Constitucional - UFMG.

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momento se autonomiza para depois vir a sofrer influência dos preceitos constitucio-nais.

Ele já não é mais mero apêndice do Direito Civil, contudo sua autonomia tam-bém não permanece absoluta, pelo menos no que toca à sua subordinação às Cons-tituições que vão cada vez mais se preo-cupando em não apenas “elencar” direitos, mas também construir instrumentos que garantam a efetividade destes e dela pró-pria.

“Os estudos dos institutos do pro-cesso não podem ignorar seu íntimo re-lacionamento com a Constituição, princi-palmente tendo em vista os instrumentos indispensáveis à garantia e modalidades de defesa dos Direitos Fundamentais do ho-mem” (BARACHO, 1980-82:59).

Diante da ambivalência com a qual têm sido estudados os institutos do proces-so (tanto por constitucionalistas, como por processualistas propriamente ditos, cada qual desde perspectivas diferentes e, por vezes, até mesmo contraditórias), mostra-se necessidade de unificar esses estudos sob uma perspectiva comum. Nasce assim uma nova disciplina, apreendida por auto-res de renome em todo o mundo e no Bra-sil com a já clássica obra de José A. de Oli-veira Baracho: “Processo Constitucional”, que pode ser assim definido como:

“O Direito Constitucional Processual é o ramo do Direito Constitucional que tem o propósito essencial de estudar, de forma sistemática, as instituições processuais re-guladas pelas disposições constitucionais, qualificadas como garantias constitucio-nais de caráter processual” (BARACHO, 1980-82:71)1.

Em um texto publicado pela “Re-vista de Derecho Procesal” do Uruguai (posteriormente republicado pelo “Boletín Mexicano de Derecho Comparado”, em 1977), Héctor Fix-Zamudio, referindo-

se ao trabalho de Couture, nos dá notícia do nascimento de uma nova disciplina, o “derecho constitucional procesal”, surgido como “resultado de la confluencia de otras dos ramas de la ciencia jurídica: el dere-cho constitucional y el derecho procesal” (FIX-ZAMUDIO, 1977:315). O jurista chama a atenção para a anterioridade e a repercussão dos trabalhos de Couture (es-pecialmente o seu “Las Garantías Consti-tucionales del Proceso Civil”) no âmbito processual mostrando a transcendência constitucional dos institutos processuais (FIX-ZAMUDIO, 1977:317).

A constatação é clara, “ação, juris-dição e processo” devem ser repensados desde uma perspectiva mais ampla: pro-cessual e constitucional.

“En otras palabras, se está desper-tando la conciencia entre constitucionalis-tas y procesalistas, sobre la conveniencia de unir sus esfuerzos con el objeto de pro-fundizar las instituciones procesales funda-mentales, ya que no debe olvidarse, como ocurrió durante mucho tiempo, que poseen una implicación político-constitucional, y no de carácter exclusivamente técnico, y es en este sentido en que podemos hablar de la relatividad de los conceptos de ju-risdicción y de proceso, en el sentido en que lo hiciera el inolvidable Calamandrei respecto de la acción”(FIX-ZAMUDIO, 1977:318)2.

Outra não foi a conclusão do 1º Con-gresso Ibero-americano de Direito Consti-tucional: “es necesaria una mayor aproxi-mación entre los constitucionalistas y los cultivadores del procesalismo científico, con el objeto de estudiar, con mayor pro-fundidad y en forma integral, las materias que comprenden las zonas de confluencia entre ambas disciplinas, y que tienen re-lación directa con la función del organis-mo judicial” (citado por FIX-ZAMUDIO, 1977:318).

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1. Constitucionalização do Processo

Tem-se falado muito hoje em dia em “Direito Civil Constitucional”, “Direito Pe-nal Constitucional”, e outras combinações entre os mais variados ramos do Direito e a Constituição (ou o Direito Constitucional). Essa tendência nos parece bastante positi-va, haja vista um aparente reconhecimento da importância e da primazia da Consti-tuição sobre todo o Direito, nas suas mais variadas manifestações.

Um fator que também pode explicar a atual tendência, no Brasil, de se constitu-cionalizar o Direito Comum, estaria no fato de a nossa atual Constituição, mais do que qualquer outra anterior (e, provavelmente mais do que qualquer outra no mundo), além de tratar de matérias tradicionalmen-te afetas a uma Lei Maior — organização do Estado, dos poderes, da forma e regi-me de governo, além de um extenso e ini-gualável elenco de direitos e garantias —, trouxe para o seio da Constituição dispo-sições afetas ao Direito Civil, Comercial, Tributário, Penal, Processual (e outros) de maneira extremamente pormenorizada.

Assim, quer se queira atualmente trabalhar em juízo com o Direito ou quer se queira simplesmente estudá-lo, dificil-mente será possível fazê-lo sem se reportar à Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

No entanto, se isso, por várias ra-zões é um ganho, por outro lado pode re-sultar em problemas quando o trato com a Constituição é feito de maneira que não considere a especificidade constitucional. Como defende Álvaro R. de Souza Cruz (2000:27-28):

“[A] singularidade das normas cons-titucionais se liga aos aspectos semântico/sintáxico, vez que dotados de uma tessitu-ra extremamente aberta. Para tanto, basta examinar o artigo primeiro da atual Carta Constitucional para se perceber que, na

interpretação constitucional, a latitude dos conceitos é enorme, derivada ainda da co-loquialidade oriunda de um processo dia-lético e dialógico dos acertos e acordos do trabalho constituinte”.

Isso é ainda mais complexo em uma Constituição com um elenco tão longo de direitos e garantias fundamentais, como observa Alexy, referindo-se especifica-mente à Constituição brasileira de 1988:

“Os problemas de interpretação jurí-dico-fundamentais que aparecem em toda a parte são, por meio dessa regulação re-lativamente detalhada, abafados em parte ampla, mas não eliminados; em alguns ca-sos nascem até novos. Assim o artigo 5º, IV, declara a manifestação dos pensamen-tos como livre. Isso quer dizer que todas as manifestações de opinião são permitidas, também tais que violam a honra de outros e tais com conteúdo racista?” (ALEXY, 1999:63).

No Direito Comparado, vamos en-contrar um desenvolvimento maior acerca da “constitucionalização do Direito”, por exemplo, com Favoreau (“La Constitutio-nnalisation du Droit”3).

A Constitucionalização do Processo é um capítulo à parte dentro da tendência apresentada. Inicia-se já quando as bases profundamente privatistas e liberais do Processo Civil começam a ser questiona-das e este tem reafirmada a natureza de Direito Público (até então sua colocação didático-enciclopédica como de Direito Público provinha muito mais para reforçar o imperium do Estado na Administração da Justiça, do que propriamente para lhe apli-car princípios constitucionais).

Essa mudança pode ser vista em Os-car Von Bülow (“Teoria das Exceções e dos Pressupostos Procesuais”), o precursor da autonomização do processo como ramo específico do Direito (e sua classificação como de Direito Público)4; continua com

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Carnelluti (transcendência constitucional da ação), Calamandrei (relatividade do conceito de ação e suas implicações polí-ticas), Niceto Alcalá-Zamora y Castillo e Eduardo Couture (que, finalmente, estende as categorias constitucionais ao processo) (cf. BARACHO, 1980-82:67-69). Assim, apenas recentemente se vai considerar a ação como um direito público-subjetivo de natureza constitucional, um conceito ini-ciado com Carnelutti e desenvolvido en-tre nós por Couture (cf. FIX-ZAMUDIO, 1977:316).

Trata-se de uma mudança paradig-mática na interpretação do processo. Como definiram Andolina e Vignera (1990:13): “[l]e norme ed i principi costituziona-li riguardanti l’esercizio della funzione giurisdizionale, se considerati nella loro complessità, consentono all’interprete di disegnare un vero e proprio schema ge-nerale di processo, suscettbile di formare l’oggetto di una esposizione unitaria”.

O Processo vem desde já há muito sofrendo modificações em sua estrutura e função social. Diante de seu desenvolvi-mento, sua função já “não pode ser apenas aplicativa e conservadora, mas deve ser instrumento de mudança” (BARACHO, 1985:118).

Dessa forma que o processo — como outros ramos do Direito, consoante dis-semos supra — também vai se tornando “Processo Constitucional”, num desenvol-vimento contínuo.

“Apreciar o fenômeno da recepção das bases constitucionais do Direito Pro-cessual, passou por diversos debates, in-clusive sobre os aspectos da internaciona-lização do tema e o lugar ocupado nestas questões pelos princípios gerais do direito, inclusive no que diz respeito à repartição de competências” (BARACHO, 2000e:10).

Chega-se até os dias de hoje em que se lhe reconhece autonomia, mas não para

permanecer isolado e privatista, mas, para abarcar princípios de Direito Público e par-ticularmente princípios constitucionais. O “Processo” apenas pode ser compreendido hoje como “Processo Constitucional”.

É importante assinalar as conseqüên-cias disso: a partir do momento em que o Processo é visto como “Processo Constitu-cional”, toda Justiça (e, pois, todo juiz/Tri-bunal) é Constitucional.

Quando falamos, hoje, pois, em Controle de Constitucionalidade como si-nônimo de Jurisdição (ou Justiça) Consti-tucional, devemos explicitar os supostos a partir dos quais utilizamos os termos5; principalmente se estivermos nos referin-do ao Brasil, onde todo e qualquer juiz está autorizado a deixar de aplicar uma lei que considere inconstitucional (cf. infra). De forma que “Jurisdição Constitucional” pode significar o mesmo que “Controle de Constitucionalidade” caso estejamos fa-lando de sistemas de controle concentrado de normas (como o alemão): aí há uma jurisdição propriamente “constitucional” (executada exclusivamente por um “Tri-bunal Constitucional”) e outra “ordinária” (executada pelos demais juízes). Sem em-bargo, quer nos refiramos a países como o Brasil ou como a Alemanha, teremos que considerar o Processo como “Processo Constitucional”, pois este representa um ganho do atual Estado de Direito.

1.1. As Garantias Constitucionais do Pro-cesso

A Constituição de 1988 consagrou inúmeros direitos e garantias especifica-mente processuais, confirmando a tendên-cia à constitucionalização do processo, dando a este (seja processo civil, penal ou procedimentos administrativos) uma nova conformação adequada ao Estado Demo-crático de Direito (cf. BARACHO, 1985:

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60 e 2000e:13-14). Só para citar alguns constantes do artigo 5º da Constituição: direito à tutela jurisdicional ampla (5º, XXXV); proibição de tribunais de exce-ção (5º, XXXVII); princípio da legalidade e anterioridade da norma penal (5º, XX-XIX); devido processo legal (5º, LIV); di-reito ao contraditório e à ampla defesa (5º, LV); princípio da presunção de inocência (5º, LVII); além das garantias do habeas corpus (5º, LXVIII), mandando de segu-rança (5º, LXIX), mandado de injunção (5º, LXXI), habeas data (5º, LXXII) e a ação popular (5º, LXXIII).

Como se percebe desse breve le-vantamento, a partir de 1988 toda a pro-cessualista brasileira deve mudar, já que o “modelo constitucional do processo ci-vil assenta-se [agora mais do que nunca] no entendimento de que as normas e os princípios constitucionais resguardam o exercício da função jurisdicional” (BA-RACHO, 1999a:92.); garantias foram am-pliadas (com a criação, por exemplo do mandado de segurança coletivo), novas garantias surgiram (como o mandado de injunção, o habeas data). Vários dispositi-vos dos Códigos de Processo Civil e Penal simplesmente não foram recepcionados (por exemplo, as disposições desde último acerca das prisões provisórias sem fiança).

1.1.1. O Devido Processo Legal

A Constituição, a exemplo das ante-riores, resguarda os direitos ao princípio da inocência e ao devido processo legal (due process of law).

O devido processo legal, segundo a doutrina, tem sua origem na Magna Car-ta inglesa, associado ao chamado “law of the land”: “nullus liber homo capitur vel imprisonetur (...) nisi per legale judicium parium suorum vel per legem terrae”.

“A expressão devido processo signi-fica o processo que é justo e apropriado.

Os procedimentos judiciais podem variar de acordo com as circunstâncias, porém, os procedimentos devidos seguem as for-mas estabelecidas no direito, através da adaptação das formas antigas aos proble-mas novos. (...) Com o tempo, a cláusula do ‘due process’ passou a ter maior rele-vo, alargando-se no âmbito da doutrina. De uma garantia, em face do juízo, passa a assegurar igualdade de tratamento frente a qualquer autoridade” (BARACHO, 1980-82:89-90).

Esta garantia, passada aos Estados Unidos — primeiramente constante de al-gumas Constituições das ex-colônias até ser consagrada na V e XIV6 Emendas da Constituição Federal —, significou um grande avanço na dogmática processual, significando não mais propriamente o law of the land, mas os usos e modos de proce-dimento estabelecidos.

Tal é a importância da garantia do due process nos Estados Unidos, que assim afirma Lêda Boechat Rodrigues (1958:92),

“Nos Estados Unidos, praticamente até 1895, foi ela entendida nesse sentido estrito [de garantia processual e não ma-terial], com a única exceção do caso Dred Scott, julgado em 1857, nas vésperas da Guerra de Secessão. Dando à cláusula do ‘due process’, da 5a. Emenda Constitucio-nal, o significado de direitos substantivos, declarou a Corte, pela segunda vez em sua história, a inconstitucionalidade de uma lei do Congresso: a seção 8ª do Missouri Compromise Act, de 1850, que proibira a escravidão nos territórios”7.

A partir do momento em que, ao lado de se configurar em uma garantia proces-sual, passa a ser também uma garantia material, o due process impõe a limitação dos poderes do Estado. O Judiciário não pode julgar e condenar alguém sem que a este sejam garantidos voz e meios para

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se defender. Doutro lado, o Legislativo (e o Executivo) não podem adotar medidas que venham a ferir o núcleo de direitos fundamentais do cidadão — nessa época circunscritos a direitos individuais contra a ingerência do Estado.

Após esse primeiro momento, vários paradigmas vão se suceder — o Estado é chamado a intervir e o elenco de direitos se amplia — contudo, a garantia do devido processo permanece em seu duplo aspecto.

Como observa José Alfredo de O. Baracho Jr., no que tange ao devido pro-cesso substantivo, esta doutrina prevaleceu na Suprema Corte até o caso Wet Coast Hotel v. Parrish (1937), estando voltada

“para a proteção dos direitos fun-damentais à propriedade e a liberdade, especialmente de iniciativa e de contra-to, contra a ação dos governos estaduais. Por outro lado, como conseqüência des-sa mesma doutrina, várias leis estaduais que dispunham sobre direitos sociais, tais como jornada máxima de trabalho, salário, mínimo, proteção ao trabalho da mulher e limites ao trabalho infantil foram decla-radas inconstitucionais” (BARACHO JR, 2003:321).

É importante observarmos como a Suprema Corte dos Estados Unidos vem tratando o tema nos últimos tempos. Isso é particularmente importante para vermos os perigos e conseqüências que uma tal pos-tura poderia ter no Brasil. De fato, como analisa Michel Rosenfeld, a Suprema Cor-te dos Estados Unidos tem vivido uma virada no asseguramento do due process. Segundo ele, no período 1998-1999, deci-sões extremamente divididas da Suprema Corte apontam “un recul de la protection des droits individuels”, isto porque, estas decisões “ébranlent un principe essentiel du droit constitutionnel américain, consi-déré comme sacro-saint depuis le début du dix-neuvième siècle, à savoir qu’il est dans

na nature même d’un droit constitutionnel individuel d’entraîner la possibilité de re-courir à la justice s’il est violé” (ROSEN-FELD, 2000:1329; no mesmo sentido BA-RACHO JR, 2003:328-329).

O Devido Processo em sistemas de civil law encontrou inicialmente campo mais profícuo no âmbito do Processo Pe-nal (garantia ampla de defesa, princípio da inocência, valoração racional das provas, juiz natural). De maneira geral, podemos falar nessa cláusula no que tange à “garan-tia da justiça”.

1.1.2. A Inafastabilidade da Jurisdição e o Contraditório

Permanece, outrossim, em nossa Constituição o princípio da inafastabilida-de da Jurisdição. Ressalta aos olhos aqui a precisão técnica presente no supracitado inciso XXV. Diferentemente do que ocorre, por exemplo, com a Constituição da Itália — onde o artigo 24 diz que “todos podem atuar em juízo para a defesa de seus direi-tos e interesses legítimos” —, nossa Cons-tituição assegura o acesso à Justiça como um direito constitucional-processual de qualquer indivíduo que alegue possuir um direito (cf. GONÇALVES, 1992:45ss)8, isto é, o direito de submeter um (alegado) ilícito à apreciação do Judiciário não se condiciona à existência fática de direitos subjetivos, bastando tão somente sua ale-gação para que qualquer pessoa receba a tutela jurisdicional do Estado.

O direito de ação é tema de funda-mental importância ao se tratar não apenas da Teoria Geral do Processo, mas, a par-tir da mencionada constitucionalização do Processo, passa a interessar a todos os que se debruçam sobre as garantias cons-titucionais (cf. BARACHO, 1999a:118-119); afinal, é a possibilidade do acesso ao Judiciário que possibilita partirmos para

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todas as demais conquistas da modernida-de, inclusive a concretização dos Direitos Fundamentais, que, por vezes, apenas se concretizaram a partir do momento em que se garantiu aos interessados o direito/poder de interpelar judicialmente.

Por fim, de suma importância para o Processo Constitucional é a garantia do contraditório (inciso LV). “O princípio da contradição é da essência do processo ci-vil, que pode ser definido como um debate entre duas partes” (BARACHO, 2000e:4).

Qualquer juiz ou Tribunal deve poder se colocar no lugar de cada parte, vendo a questão por ambas as perspectivas, a partir da ampla oportunidade dada as elas para não apenas apresentarem suas pretensões, mas reconstruir o “evento”, que de modo algum é auto-evidente ou “objetivo”. Cada parte deve ter o direito de ter his day in Court. É o que defende Aroldo P. Gonçal-ves (1992:171): “a estrutura do processo assim concebido permite que os jurisdicio-nados, os membros da sociedade que nele comparecem, como destinatários do provi-mento jurisdicional, interfiram na sua pre-paração e conheçam, tenham consciência de como e por que nasce o ato estatal que irá interferir em sua liberdade”.

Esse direito constitucional de defesa está intimamente relacionado àquele direi-to de ação. São dois extremos da relação triádica formada entre as partes e o julga-dor (este acima e eqüidistante face àque-las).

1.2. As Garantias da Justiça e as Garantias os Indivíduos

O Processo Constitucional consti-tui-se em um instrumental indispensável à compreensão tanto das garantias dos cida-dãos quanto, especificamente, da Justiça. As normas processuais não podem ser li-das sem a necessária “filtragem constitu-

cional”. Este é um ponto sobre o qual a Ju-risprudência nem sempre se mantém firme, isto é, que após a promulgação da Consti-tuição de 1988, todas as normas anteriores apenas continuam vigendo se tiverem sido recepcionadas pela Constituição; da mes-ma forma, todas as normas processuais editadas após, têm de estar conformes os princípios da nova Carta.

Logo, ao mesmo tempo em que a Constituição serve de fundamento para a prática processual, o processo erigi-se em instrumento indispensável à atuação das normas constitucionais. Da mesma forma, ao mesmo tempo em que os órgãos de po-der estão submetidos à Justiça, esta tem de ser acessível aos governados (é o princípio do acesso à jurisdição).

Teríamos assim nas Constituições (surgidas a partir da 2ª Guerra), dois seto-res referentes à Justiça: as garantias consti-tucionais da organização jurisdicional, que tratam da independência e organização dos tribunais e os direitos constitucionais dos jurisdicionados, isto é, os direitos de aces-so à prestação jurisdicional9.

Nestas Constituições o processo apa-rece como uma garantia constitucional. No mesmo sentido a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), dispõe em seus arts 8º e 10º que todo homem tem direito a um recurso que o ampare contra atos que violem seus direitos protegidos pelas leis ou Constituição locais e que todos têm di-reito de acesso em igualdade de condições em face de um Judiciário independente e imparcial.

E ainda, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948), no artigo XVIII garante a toda pessoa o direi-to de recorrer aos tribunais para fazer va-ler seus direitos e dispor de um processo acessível e breve pelo qual seja amparada pela justiça contra atos de autoridades que violem seus direitos fundamentais10.

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A propósito dos dispositivos rela-cionados às prerrogativas da Justiça, des-taca-se o princípio do juiz natural, o que implica a necessidade da pré-constituição da ordem judiciária pela lei, instituindo a competência daquele em aplicar a Consti-tuição e as demais normas.

Outro princípio correlacionado é o da independência do Judiciário, “corolá-rio do princípio da separação dos poderes” (BARACHO, 1999a:93). Os juízes apenas se submetem à lei, sendo por isso livres e neutros ideologicamente no exercício de suas funções.

Ademais, suas decisões têm de ser motivadas e, em regra, publicadas, sob pena de nulidade. Essas duas exigências derivam da necessidade, num Estado De-mocrático de Direito, de que as decisões judiciais possam sofrer o crivo da opinião pública; de outro lado, a publicidade e a motivação são requisitos essenciais para controle da decisão por um órgão judicial de recurso. “O juiz, como órgão terminal de apreciação da Constituição, deve ser objetivo e claro em garantir os direitos fundamentais, como pressuposto de qual-quer outro direito ou interesse individual ou coletivo, nos termos dos procedimentos consagrados” (BARACHO, 1999a:97).

1.3. Caráter Contraditório do Processo Cons-titucional. Princípios da Nova Disciplina

Há quem negue o caráter contradi-tório do Processo Constitucional (como Cappelletti e Carnelutti) (cf VÉSCOVI, 1975:1142).

Ao se tratar especificamente do con-trole de constitucionalidade, muitos há que afirmam que nas ações diretas, ter-se-ia um processo objetivo, sem partes, logo, sem contraditório propriamente dito.

Uma primeira questão a ser posta é quanto ao caráter propriamente judicial do incidente de inconstitucionalidade (seja no

modelo difuso, seja em sistemas mistos de argüição de um Tribunal Superior para a Corte Constitucional, como ocorre com a Itália). Após isso, teremos de pensar se, sen-do uma atividade “jurisdicional”, o controle concentrado de constitucionalidade seria também realizado em contraditório.

Quanto ao primeiro problema, po-demos afirmar que, na apreciação da in-constitucionalidade há uma lide, resolvida com o deslinde da questão, o juízo sobre a inconstitucionalidade da lei, para então aplicá-la ou não ao caso.

“Creemos que la disputa sobre la validez (legitimidad) de la ley con el fin de apartala de la aplicación a un caso concreto (aun cuando luego, el efecto se-cundario, llamémosle, aunque sea más transcendente, sea otro [como sucede na Itália ou Alemanha]), el cual de esa ma-nera queda resuelto, no difiere, en esencia, de cualquiera otra cuestión de derecho que se someta a la decisión de los jueces, con el fin de resolver, de este modo, una litis o conflicto de intereses” (VÉSCOVI, 1975:1139)11.

Quanto à segunda questão, digno de nota a observação de Aroldo P. Gonçalves segundo o qual, com base no disposto no art. 103, §3º da CF/88, não haveria dúvi-das de que no Brasil o procedimento de argüição concentrada de lei se realiza em contraditório. “É, portanto, um verdadeiro processo, e não um simples procedimento, ou um ‘processo de jurisdição voluntária’” (GONÇALVES, 1992:118; ver também VÉSCOVI, 1975:1147).

Logo, não é um processo diferen-te dos demais, um processo objetivo sem partes como defende Gilmar Mendes (1998a:312)12.

Gostaríamos de concluir este tópico citando algumas premissas sobre as quais se assenta o Processo Constitucional e que foram assim sintetizadas:

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“a) A Constituição pressupõe a exis-tência de um processo, como garantia da pessoa humana;

b) A lei, no desenvolvimento norma-tivo hierárquico desses preceitos, deve ins-tituir esse processo;

c) A lei não pode conceber formas que tornem ilusórias a concepção de pro-cesso consagrada na Constituição;

d) A lei instituidora de uma forma de processo não pode privar o indivíduo de razoável oportunidade de fazer valer seu direito sob pena de ser acoimada de in-constitucional;

e) Nessas condições, devem estar em jogo os meios de impugnação que a ordem jurídica local institui, para fazer efetivo o controle de constitucionalidade das leis” (BARACHO, 1999a:89).

2. Controle de Constitucionalidade

“O problema do conflito entre a lei fundamental do Estado, que decorre da superioridade das normas constitucionais sobre as leis ordinárias, decretos e atos administrativos que devem acomodar-se aos limites traçados pelas Constituições, e a defesa dos direitos individuais, contra os excessos dos poderes públicos, cons-titui tema fundamental para corrigir os diversos excessos de atuação da ativida-de estatal em nossos dias” (BARACHO, 1985:1)13.

A questão sobre o controle de cons-titucionalidade das leis e atos normativos tem ocupado grande destaque nos estudos acerca do Processo Constitucional; não sem alguma estranheza para alguns pro-cessualistas clássicos em encontrar uma fórmula jurídica caracterizar o controle.

A efetivação de um controle de cons-titucionalidade começa — com exceção da prática jurisprudencial dos EUA — após a 1ª Guerra, face a constatação de que não bastava à Constituição o elenco de uma

série de direitos se não houvesse qualquer controle sobre os atos do Legislativo (e mesmo do Executivo).

O Controle judicial de constituciona-lidade no Brasil surgiu com a Constituição de 1891 (art. 59)14 e deve seu impulso ini-cial à valorosa contribuição de Rui Barbo-sa, influenciado pelo sistema americano que então se consolidava (o famoso caso Marbury vs. Madison data de 1803 e Dre-dscott vs. Sanford, de 1857).

Segundo Rui Barbosa, considerando a hierarquia das leis, o que o Judiciário fa-ria em caso de conflito seria apenas decla-rar ou indicar a solução de que a lei mais “fraca” deve ceder frente a mais “forte”. É o que ocorreria nos EUA, onde seria obri-gação de qualquer juiz “tratar como nullo qualquer acto legislativo inconsistente com a Constituição” (BARBOSA, 1932-34:IV:36).

Um ato legislativo é (absolutamente) nulo quando o Legislativo ou o Executi-vo exorbitam suas competências. Sendo assim, esse ato “não é lei, não confere direitos, nem deveres, não cria proteção nem cargos; é como se nunca houvesse existido” (BARBOSA, 1932-34:I:12). Se-gundo Véscovi, os EUA puderam se valer “de un Poder Judicial cuya majestad e independencia aparecen como indiscuti-dos en doctrina y en el derecho positivo, la jurisprudencia, haciendo aplicación de los principios lógicos del derecho, espe-cialmente el de no contradicción, que a su vez se sirve de otros, como el de jerarquia, ha decidido que no debía darse primacía a la ley, sino a la constitución, en caso de oposición entre ambas” (VÉSCOVI, 1975:1130).

Vamos rapidamente repassar este sistema que foi o primeiro a pensar que a Constituição era não apenas a Lei Maior, mas também que deveria ser defendida em face de outros atos normativos.

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2.1. Estados Unidos

Em matéria de controle de constitu-cionalidade, os Estados Unidos eram, de fato, o referencial da época, até mesmo para seus adversários, como Kelsen, ao se referir ao sistema difuso americano: “La ausencia de una decisión uniforme en torno de la questión sobre cuándo una ley es inconstitucional (...) es un gran pe-ligro para la autoridad de la Constitución” (KELSEN, [s/d]:83)15.

Apesar de a Constituição norte-ame-ricana não ter previsto tal competência ao Judiciário, Marshall, Chief Justice da Su-prema Corte, ao decidir o caso Marbury vs. Madison entendeu que, ou se considerava que a Constituição era a Lei Maior e todas a as leis lhe estavam sujeitas, ou ela pode-ria ser alterada como qualquer lei ordiná-ria: “An act of Congress repugnant to the constitution is not law. When the constitu-tion and an act of congress are in conflict, the constitution must govern the case to which both apply”.

Com Marshall assenta-se a idéia de que a Constituição não possui apenas uma supremacia política, mas também status de norma suprema do Direito Positivo. Antes desse caso um dos primeiros precedentes afirmando a superioridade das Constitui-ções locais se baseou no caso Holmes vs. Walton em 1780, pela Corte Suprema de New Jersey — além do caso Commonweal-th vs. Caton em 1782, pela Corte de Virgí-nia (cf. SNOWISS, apud DINIZ, 1995:112 e CAPPELLETTI, 1984:62-63).

Vale a pena frisar os pressupostos de onde Marshall pôde se fundar para criar a judicial review. A compreensão da Cons-tituição como uma Lei acima das outras pode ser explicada historicamente como uma lembrança das antigas “Cartas da Coroa” impostas pela Monarquia inglesa aos colonos americanos. Estas ordenações

deveriam ter primazia sobre quaisquer ou-tras leis. Isto contribuiu, segundo Mauro Cappelletti (1984:60), para formar a tese da subordinação das leis ordinárias frente às Constituições dos Estados surgidas com a Independência destes. Neste sentido a precisa observação de José A. de Oliveira Baracho de que “a primeira Constituição que enfrentou o problema do controle de constitucionalidade, através de um órgão especificamente criado, foi a da Pennsyl-vania, de 1776” (BARACHO, 1985:150).

Estas Constituições expressavam o princípio da soberania popular, que legi-timava, democraticamente, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Carl Friedrich (1946:218) lembra que o desenvolvimen-to do poder de interpretar a Constituição, concedido aos Tribunais, possuiu íntima relação com certas leituras que a teoria da separação dos poderes recebeu naquele País. Contribuiu também para a idéia de supremacia da Constituição a previsão de um procedimento especial para a reforma da mesma.

Ainda, à época da Convenção de Fi-ladélfia (1787), do embate entre “liberais” e “federalistas”, o Judiciário acabou por se beneficiar da “vitória” destes últimos, que deram grande suporte doutrinário ao Judi-ciário no sentido de lhe atribuir o poder de controle dos atos legislativos. No capítulo LXXVIII do “Federalista”, Alexander Ha-milton disserta sobre aquele. Para Hamil-ton, se a Constituição limita o Legislativo (e.g., proibindo-lhe editar leis retroativas), logo, apenas os Tribunais podem garantir que esses limites sejam respeitados, decla-rando nulos os atos que lhe sejam contrá-rios. A razão de ser dado ao Judiciário esta função está em que: “a Constituição é e deve ser considerada pelos juízes como a lei fundamental e como a interpretação das leis é função especial dos tribunais judici-ários, a eles pertence determinar o sentido

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da Constituição, assim, como de todos os outros atos do corpo legislativo” (HAMIL-TON, 1974:163).

Havendo contradição, a vontade maior do povo (refletida na Constituição) deve ser preferida à de seus agentes. Ex-plica Hamilton que a questão não é que o Judiciário seja superior ao Legislativo, mas que o poder do povo é superior a am-bos, e, se uma lei vai contra este, é dever do juiz obedecer à Constituição como lei fundamental.

Bem antes de Marshall, as origens mais remotas da doutrina da judicial re-view e da supremacy of the judiciary, en-contram-se, na Inglaterra de James I Stuart, com as teses (bem pouco aceitas à época, é verdade) defendidas pelo Lorde Coke, que proclamava que a garantia da supremacia da common law contra o absolutismo do Rei ou do Parlamento era função dos juí-zes. Coke entrou por várias vezes em con-flito com o James I, por defender que os juízes poderiam decidir se um ato do Parla-mento era ou não “legal”. Outro preceden-te sobre o papel da Constituição lembrado por Verdu é o jurista suíço Emer de Vattel (1714-1767), que defendia a Constituição contra atos do príncipe que lhe fossem contrários. Estes atos “inconstitucionais” não seriam outra coisa senão “um abuso criminal do poder que lhe é confiado” (cf. VERDÚ, 1983:33).

Chegamos então ao Chief Justice Marshall, que tornou a Suprema Corte e todo o Judiciário americano, guardiões perpétuos da Constituição. Sobre a impor-tância de Marshall no Constitucionalismo americano, disse certa vez o Justice Cardo-zo: “[Marshall] dejó en la Constitución de E.U. el sello de su proprio pensamiento, y la forma de nuestro derecho constitucional es lo que es porque él la moldeió, cuan-do aún era plástica y maleable, al fuego de sus proprias e intensas convicciones” (apud, WOLFE, 1991:62).

Dadas estas premissas podemos vol-tar à decisão de Marbury vs. Madison. Marshall baseou sua decisão cláusula 2ª do art. 6º da Constituição Federal:

“This Constitution, and the laws of the United States which shall be made in pursuance thereof; and all treaties made, or which shall be made, under the authori-ty of the United States, shall be the supre-me law of the land; and the judges in every state shall be bound thereby, anything in the Constitution or laws of any State to the contrary notwithstanding”.

A partir desses dispositivos (e de todo o pano de fundo mencionado aqui) Marshall pode então argumentar:

“Between these alternatives there is no middle ground. The Constitution is ei-ther a superior paramount law, unchange-able by ordinary means, or it is on a level with ordinary legislative acts, and, like other acts, is alterable when the legislatu-re shall please to alter it.

In the former part of the alternative be true, then a legislative act contrary to the constitution, is not law; if the latter part be true, then written constitutions are absurd attempts, on the part of the people, to limit a power in its own nature illimita-ble. (...)

If an act of the legislature, repugnant to the constitution, is void, does it, notwi-thstanding its invalidity, bind the courts, and oblige them to give it effect? Or, in other words, though it be not law, does it constitute a rule as operative as if it was a law? (...)

It is emphatically the province and duty of the judicial department to say what the law is. Those who apply the rule to par-ticular cases, must of necessity expound and interpret that rule. (...)

If, then, the courts are to regard the constitution, and the constitution is supe-rior to any ordinary act of the legislature,

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the constitution, and not such ordinary act, must govern the case to which they both apply” (1 Cranch 137, 2L. Ed. 60, 1803).

Segundo Pablo Lucas Verdú (1983:22ss), a argumentação de Marshall se estrutura, no recurso ao “direito original do povo americano”, como conseqüência, os princípios aí estabelecidos seriam fun-damentais e permanentes, constituindo-se em limites para os governos.

E mais, em sua decisão podemos visualizar elementos do jusracionalismo: quando usa expressões como “direito ori-ginal do povo”, “princípios fundamentais”, “princípios permanentes”, “autoridade e vontade supremas”, “felicidade”. Isto é, há uma clara influência da doutrina liberal anglo-francesa dos séculos XVII e XVIII (o abstracionismo francês e o empirismo-pragmático inglês). Por outro lado, Verdú também aponta a influência do iluminismo garantista (cf. VERDÚ, 1983: 25-36).

O poder dos juízes interpretarem as leis, frente à proteção das liberdades vem da tradição anglo-saxã do common law, que postulava que o direito comum pode prevalecer sobre os statutes, como normas puramente excepcionais que são, inseridas em um direito já constituído (supra).

À parte todas as influências, o certo é que foi uma demonstração sem compara-ções de técnica e eruditismo jurídico-cons-titucional. Sua importância para a teoria acerca do Controle de Constitucionalidade é imensa, é um precedente necessário para qualquer um que queira entender o funcio-namento da judicial review americana. É uma referência, ademais, inclusive para aqueles que, a partir de Kelsen, teorizaram sobre o controle concentrado de constitu-cionalidade.

“La famosa sentencia en el caso Mar-bury v. Madison no sólo inauguró e asentó, definitivamente, la instituición técnica del judicial review, lo cual basta para acreditar

su capital importancia, es, además, el em-blema de un modo de razonar significativo que sirvió para fortificar la estructura fede-ral de los Estados Unidos según el modelo socio-econômico querido por la burguesía norteamericana” (VERDÚ, 1983:25; em itálico no original)16.

O controle se dá por via incidental (sistema de controle difuso), como já dis-semos, citando Rui Barbosa, qualquer juiz está legitimado a apreciar a conformida-de de lei ou outro ato normativo frente à Constituição.

Sem embargo, o controle difuso nos EUA é mais amplo do que “simplesmen-te” atribuir-se a competência de interpretar a Constituição aos juízes. Segundo W. F. Murphy, J. E. Fleming e W. F. Harris, “that all public officials, state and federal, from presidents, senators, and representatives, to governors, state legislators, local dis-trict attorneys and police, may often have to interpret the Constitution”. Também os cidadãos têm “the same rigth and obliga-tion” (de interpretar a Constituição), isto porque, “when they cast their ballots can-didates records and promises about how they will interpret the Constitution (...), when they speak out on political issues, lobby elected representatives, or utilize other means of advocating or opposing public policies” (apud, BARACHO JR., 1995:61-62).

Nessa ordem de coisas, considera-se que uma lei tida como inconstitucional nunca existiu, sendo, pois nula ab initio. Surgido um conflito de constitucionalidade em um caso concreto, o juiz, ao considerar inconstitucional a lei, deixa de aplicá-la pois esta possui um vício que a torna invá-lida desde o nascedouro, mas sua decisão apenas tem efeito entre as pessoas envolvi-das naquela controvérsia específica. A lei declarada inconstitucional não é destruída, apenas vai perdendo aplicabilidade pouco

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a pouco pela ação da jurisprudência (cf. TOCQUEVILLE, 1975:20417).

A doutrina vai mais além. Já que a lei inconstitucional é “como se nunca hou-vesse existido” (as if it had never bichem), permite-se que os cidadãos, antes mesmo da declaração judicial, se insurjam contra aquela, não podendo ser punidos por não obedecerem à mesma (cf. COOLEY, apud, BARACHO JR., 1995:63).

A simplicidade do controle difuso é apenas aparente, pois dizer que os efeitos são somente inter partes importaria redu-zir em muito a engenhosidade do Sistema de Controle de Constitucionalidade daque-le país. De fato, se assim o fosse, o mesmo juiz que decidiu pela inconstitucionalidade de uma lei em um caso, poderia considerá-la constitucional em outro caso análogo; e ainda, alguns tribunais poderiam consi-derá-la inconstitucional e outros não. Essa foi inclusive uma das maiores críticas a este sistema, justamente a possibilidade de interpretações díspares diante da constitu-cionalidade da mesma lei.

O problema da disparidade de deci-sões resolve-se pelo instituto do stare de-cisis, que garante que um mesmo tribunal não venha a tomar decisões opostas e que, pelo sistema das impugnações, permite à Suprema Corte dar uma decisão definitiva e vinculante sobre a constitucionalidade da lei. Isso confere ao sistema uma “inespe-rada” eficácia erga omnes, e não simples-mente entre as partes do caso concreto.

Dessa forma, não se trata apenas da não aplicação da lei, mas de verdadeira “eliminação” (definitiva), por força do sta-re decisis, com eficácia erga omnes — nos termos acima — e retroativa.

Forçoso é reconhecer, todavia, que este efeito retroativo absoluto tem sido atenuado pela jurisprudência americana. Há casos em que se entende que a anula-ção de todas as relações jurídicas surgidas

com base na lei posteriormente declarada inconstitucional pode ser tão danosa que inviabilize o sistema, não trazendo qual-quer benefício. Um exemplo é o caso Link-letter vs. Walker (1965), em que a Suprema Corte negou aplicação da sentença para os casos anteriores definitivamente julgados que dissessem respeito à aplicação da nor-ma processual penal considerada incons-titucional. Adverte contudo Maria Del Carmen Blasco Soto (1995:50) que o caso citado não tratou especificamente de re-solver o problema dos efeitos da sentença propriamente ditos, mas de estabelecer se as normas processuais penais possuiriam a mesma natureza das substantivas, para então aplicar-se ou não a mesma regra de benefício que a declaração de inconstitu-cionalidade das normas penais possuem. Assim, firmou-se o entendimento segundo o qual se considera que em matéria penal devem os efeitos retroagir de forma abso-luta quando, com base na lei inconstitucio-nal, haja pessoas cumprindo pena; mas, em matéria civil (e às vezes em matéria admi-nistrava), tem-se preferido preservar certos “efeitos consolidados”, como a coisa jul-gada, em nome da segurança jurídica.

Uma novidade que de fato transfor-mou o tradicional controle difuso ameri-cano inspirou-se na equity, como meio de suprir as deficiências daquele. Trata-se da utilização de um “processo simulado” em que é solicitada uma injunção ao Judiciá-rio para analisar a constitucionalidade de uma lei antes de a mesma entrar em vigor. Se o Judiciário a considerar inconstitucio-nal, torna-a inaplicável (cf. FERRARI, 1992:104 e BLASCO SOTO, 1995:52).

Seja lá como for, seguindo o balan-ço de Enrique Véscovi sobre a prática da judicial review nos Estados Unidos per-cebe-se que, desde o seu início, a maior parte dos casos diz respeito à defesa dos Direitos Fundamentais (e particularmente

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dos direitos das minorias). Dessa forma, a Suprema Corte por várias vezes se impôs a certas normas discriminatórias de al-guns Estados do Sul, inclusive limitando o Executivo na deportação de estrangeiros, além de outras medidas de proteção, nota-damente durante o chamado “governo dos juízes” (cf. BARACHO, 2000c; VÉSCO-VI, 1975:1133 e ainda GARCÍA DE EN-TERRÍA, 1987:167ss).

2.2. Áustria

Após mais de 60 anos da adoção do controle difuso, o Brasil adota efetivamen-te uma ação visando direta e exclusiva-mente o controle de constitucionalidade de leis.

A inspiração foi o sistema de con-trole concentrado austríaco pensado e de-senvolvido por Hans Kelsen (1998). Como apresenta García de Enterría (1987:5), o ponto de partida de Kelsen, era que “la Constitución es una norma jurídica, y no cualquiera, sino la primera entre todas, lex superior, aquella que sienta los valo-res supremos de un ordenamiento y desde esa supremacía es capaz de exigir cuentas, de erigir-se en el parámetro de validez de todas las demás normas jurídicas del sis-tema”.

O Controle de Constitucionalidade, segundo Kelsen, assume o problema relati-vo a como tratar da regularidade da criação do Direito, usando padrões estabelecidos pelo próprio Direito, objeto do controle. É importante notarmos a relação que Kelsen estabelece entre Controle de Constitucio-nalidade e a democracia, representada esta última pelos debates travados no Par-lamento.

Observe-se que Kelsen já aponta para a noção de que o controle não se dá “entre lei e Constituição”, mas entre a Constitui-ção e o processo legislativo (cf. KELSEN,

1998:109)18. Contudo, esta apreciação não pode ser feita por qualquer cidadão, mas apenas pelo Judiciário; e mais, não por qualquer órgão do Judiciário. O controle deveria ser feito por um órgão especial (para que se evitassem decisões desiguais). Havia de fato em toda Europa Continental uma grande desconfiança sobre a possibili-dade de um juiz apreciar a constitucionali-dade de uma lei (na França pós-revolucio-nária a de um controle sobre o Legislativo foi sempre muito combatida e apenas mais tarde vai ser adotada uma forma de contro-le político).

Assim, considerando que à época a cúpula do Judiciário austríaco não possuía condições de impor suas decisões a Tribu-nais inferiores e estando a cargo de Kelsen o projeto do que veio a se tornar a Cons-tituição austríaca de 1920, este acabou por prever a criação do primeiro Tribunal Constitucional (o Verfassungsgerichtshof), ao qual foi dada a competência de anular leis que considerasse inconstitucionais19.

Este Tribunal era independente do Governo e do Parlamento, seus membros, contudo, eram escolhidos por este último entre renomados juristas (Kelsen mesmo o presidiu por anos).

A legitimidade para argüir da in-constitucionalidade de uma lei perante o Tribunal Constitucional, segundo esse modelo inicial, ficava restrita a algumas pessoas: o Governo Federal (sobre leis dos Lander) e os Governos dos Lander (sobre leis federais). Dessa forma, o controle vi-sava basicamente não permitir invasões de competência entre os entes da Federação. Não cuidava de outras possíveis normas inconstitucionais que violassem, e.g., di-reitos individuais ou coletivos.

Agindo como um “legislador negati-vo”, as decisões do Tribunal Constitucio-nal anulam a lei inconstitucional valendo, em princípio, para o futuro, pois a lei é

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anulada, cassada (aufhebt). Além disso, esta decisão elaborada sem qualquer caso subjacente vale contra todos.

Com a reforma de 1929, o sistema original foi modificado, sendo incluídos entre os legitimados para propor o con-trole a Corte Suprema para Causas Civis e Penais (Oberster Gerichtshof) e a Cor-te Suprema para Causas Administrativas (Verwaltungsgerichtshof). Estas duas úl-timas não requereriam o controle por via direta como os dois primeiros, em que há uma ação própria para argüir da inconstitu-cionalidade. No caso das Cortes Supremas, o requerimento para a apreciação do Tri-bunal Constitucional basear-se-ia em um caso concreto, que elas tinham por decidir como instância recursal. Assim, o “sistema austríaco puro” dá lugar a um modo “mis-to”.

O sistema austríaco não aceitava que uma lei inconstitucional fosse nula “desde o início”, tal qual nos Estados Unidos, ou, como disse Kelsen, um ato não é nulo, ape-nas anulável, pois “no es posible caracteri-zar como nulo a priori (nulo ab initio) um acto que se presenta a sí mismo como un acto jurídico” (KELSEN, [s/d]:84-86; ver também 1987:300). Donde concluir-se que este tipo de sentença é sobretudo constitu-tiva.

A eficácia da decisão que dispõe pela inconstitucionalidade da lei começa com a data de sua publicação ou em até 1 ano da mesma, se assim decidir o Tribunal (é o processo de Kundmachung, art. 140, § 3º, da Constituição austríaca).

2.3. Alemanha

Pela sua peculiaridade e principal-mente pela influência que tem exercido em nosso modelo de Controle de Constitucio-nalidade — referimo-nos mais especifica-mente à Ação Declaratória de Constitu-

cionalidade e às agora consagradas em lei “interpretação conforme a Constituição” e “declaração parcial de inconstitucionali-dade sem redução de texto” (lei 9.868/99, artigo 28, parágrafo único - de que trata-remos mais à frente) — o sistema alemão de controle de constitucionalidade merece um estudo à parte. Foi nesse sentido que escreveu L. Carter, “o exercício dessa competência, passados mais de quarenta anos, por um lado, revelou uma mudança do papel da jurisdição constitucional (ale-mã) e, por outro, mostrou o Tribunal Cons-titucional Federal também como um fator de desenvolvimento dos princípios consti-tucionais” (CARTER, apud BARACHO, 1999a:102)20.

A Constituição de Weimar, resultado de uma série de acordos entre várias forças sociais e políticas, foi palco de discussões exaustivas quanto ao controle de consti-tucionalidade. Havia dúvidas “acerca das condições do controle jurisdicional sobre a constitucionalidade formal, a título de incidente, mencionando-se as dúvidas re-ferentes às condições sobre a constitucio-nalidade material das leis” (BARACHO, 1999a:102). De fato, no plano teórico, Anschütz, Thoma, Radbruch e Jellinek eram contra a criação de mecanismos de controle de constitucionalidade, enquanto que Triepel, Nawinsky e Preuβ diziam que a Constituição deixara ao legislador a pos-sibilidade de atentar contra a mesma, daí a necessidade do controle. Mesmo entre os que eram a favor, não havia consenso so-bre se o controle deveria ser apenas formal ou se poderia alcançar os direitos funda-mentais, consagrados na Constituição (cf. DINIZ, 1995:136). Segundo Márcio Diniz, dado o ambiente de discussões e incerte-zas, o Controle de Constitucionalidade não pôde se desenvolver. Não obstante, foram criados tribunais específicos para o con-trole de normas durante essa época (como

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mostraremos à frente), ainda que se possa admitir, em concordância com o autor, que o controle de fato foi pouco exercido (cf. DINIZ, 1995:134).

De toda sorte, através de uma lei fe-deral, datada de julho de 1921, é criado o Tribunal Federal (o Reichsgericht), com sede em Leipzig. A competência desse Tri-bunal abrangia: os conflitos constitucio-nais no interior dos Lander (com legitima-ção ampla para propor a ação, abrangendo inclusive o cidadão); conflitos de natureza “não-jurídico-privada” entre o Reich e um Lander e entre os Lander; acusação contra Ministro e o exame judicial abstrato em caso de dúvidas e controvérsias — sobre a diferença entre “dúvida” e “controvér-sia”, cf. Gilmar Mendes (1998a:94-95) —, quanto à constitucionalidade do direito es-tatal que o órgão competente da União ou do Estado considerassem relevantes (art. 13, II da Constituição de Weimar).

Segundo a lei que regulamentou o processo, as decisões do Reichsgericht e do Tribunal da Fazenda (que decidia sobre leis tributárias estaduais) tinham “força de lei” e, além de possuírem eficácia erga om-nes e ex tunc, valiam (segundo a opinião de alguns como Anshütz e Jellinek) como uma “interpretação autêntica” da Consti-tuição (cf. MENDES, 1998a:447).

Após a 2ª Guerra reuniu-se em Her-renchiemsee o “Congresso Constituinte” com o objetivo de elaborar um projeto para a nova Constituição. Desde essa época fora prevista a criação de um Tribunal Consti-tucional Federal que seria o “guarda da Constituição”. Este novo Tribunal, o Bun-desverfassungsgericht, foi previsto na Lei Fundamental nos artigos 93 e 94, e regula-mentado pela lei publicada em 16 de abril de 1951, sendo sua sede a cidade de Karl-sruhe. Como observa José A. de Oliveira Baracho, apenas com a Lei Fundamental de Bonn, “surge a oportunidade de uma jurisdição guardiã da Constituição” (BA-

RACHO, 1999a:102; cf. também HECK, 1995:101).

No ano seguinte este Tribunal afir-mou seu status constitucional através do “Memorial do Tribunal Constitucional Federal. A posição do Tribunal Constitu-cional Federal”, que foi enviado a todos os órgãos federais superiores. Firma-se, a partir daí, como órgão ao nível do Gover-no e do Bundesrat; ao mesmo tempo, está à margem da estrutura dos demais órgãos judiciais; possuindo ainda autonomia ad-ministrativa.

2.3.1. Dos vários controles na Alemanha de hoje

Seguindo o artigo 93 e segs. da Lei Fundamental, que trazem a competência do Tribunal Constitucional, poderemos visualizar os vários tipos de controle (lato sensu):

1. Conflitos entre órgãos estatais: o art. 93, I, n. 1 trata do conflito entre órgãos estatais (Presidente, Parlamento, Conse-lho, Governo Federal e partidos políticos) sobre a extensão dos direitos e deveres conferidos pela Lei Fundamental; o art. 93, I, n. 3 e 4 dos conflitos federativos sobre direitos e deveres da Federação e dos Es-tados, principalmente sobre a execução do direito federal pelos Estados e intervenção federal;

2. Controle abstrato de normas: de acordo com o art. 93, I, n. 2 o controle abs-trato de normas ocorre em caso de “dúvida ou controvérsia” sobre a compatibilidade do direito federal (ou estadual) com a Lei Fundamental, ou sobre a compatibilidade do direito estadual com disposições do di-reito federal. Possuem legitimidade para instaurar o processo, o Governo Federal, o Governo de qualquer Lander e um terço do Parlamento Federal21;

3. Controle concreto de normas: além do controle abstrato, prevê-se também um

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controle concreto (de “verificação” das nor-mas): qualquer juiz ou tribunal pode em um caso concreto e diante de uma lei que con-sidere contrária à Constituição, submeter a questão à Corte Constitucional; o processo “principal” fica suspenso até que aquele in-cidente seja decidido (art. 100, § 1º da Lei Fundamental). O fim de tal controle é con-centrar o exame relativo ao legislador fede-ral nas mãos de um só órgão;

4. Recurso constitucional: por último, temos o Recurso Constitucional Individual e Comunal (art. 93, I, 4a e 4b). O recurso constitucional tem sido um dos instrumen-tos mais importantes da jurisdição constitu-cional alemã. De 1951 até o ano de 1993, das 77.183 sentenças do Tribunal Consti-tucional Federal, mais de 98% foram deci-dindo recursos constitucionais (cf. HECK, 1995:118 e 140; ver também CAPPELLET-TI, 1984:110). É o Recurso Constitucional que confere uma face popular ao Tribunal Constitucional. Além da proteção aos direi-tos fundamentais, exerce também a função de proteger e promover o desenvolvimento do Direito Constitucional.

O requerente terá de provar sua condição de titular de um direito que foi violado e ainda apenas poderá intentar o Recurso Constitucional após esgotar todas as vias judiciais (§ 90 da Lei do Bundes-verfassungsgericht).

O recurso constitucional comunal é promovido pelos municípios ou união de municípios contra leis que firam sua au-tonomia administrativa (art. 28, II, da Lei Fundamental).

2.3.2. As várias sentenças do Bundesver-fassungsgericht

As sentenças — seja qual for o tipo de controle (lato sensu) — são definidas pelo objetivo visado e não pelo tipo de pro-cesso.

Nos processos de controle de nor-mas propriamente ditos, têm as decisões a mesma natureza, independentemente de se tratar de controle abstrato, concreto ou de processo de recurso constitucional. E, como observa Gilmar F. Mendes, “em ne-nhum sistema de controle de normas (...) logra-se identificar formas de decisão tão variadas como as desenvolvidas pela Corte Constitucional” (MENDES, 1998a:189).

Seguindo o esquema proposto pelo autor, temos:

A. Declaração de Nulidade (nos con-troles abstrato, concreto ou de recurso cons-titucional): segue a fórmula tradicional, ou seja, a lei é inconstitucional, e por isso, nula (ex tunc e ab initio). Apesar de não constar de forma clara nem na Lei Fundamental e nem na lei orgânica do Tribunal Constitu-cional, é adotada pela doutrina dominante. A declaração de nulidade pode ser parcial, e nesse sentido desdobra-se em:

Declaração parcial de nulidade “quantitativa”: a mais comum, já que rara-mente toda a lei é inconstitucional. O que ocorre muitas vezes é que certas partes da lei devem ser eliminadas. Do que fica, deve o Tribunal ponderar se ainda a lei é viável, procurando, dentro do possível, conhecer da vontade do legislador.

Declaração parcial de nulidade “qua-litativa” (sem redução do texto); refere-se a casos não mencionados expressamente no texto da lei impugnada, que por estar formulada de forma genérica, contém “um complexo de normas”. Esta declaração assumiu grande importância no sistema alemão. Para designá-la geralmente o Tri-bunal Constitucional vale-se da expressão “desde que” (soweit): a norma em apreço é constitucional, desde que se entendam determinadas disposições em certo sentido tido como constitucional.

B. Interpretação conforme a Consti-tuição: o Tribunal Constitucional declara qual das possíveis interpretações se revela

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compatível com a Lei Fundamental, bus-cando com isso “negar o formalismo em nome da idéia de justiça material e segu-rança jurídica”. Apóia-se ainda no princípio da unidade da ordem jurídica; na presunção de constitucionalidade das normas e na su-premacia do legislador como concretizador da Constituição. O Tribunal Constitucional não pode alterar o conteúdo da norma, ape-sar de, na prática, tê-lo feito em alguns ca-sos (cf. GARCÍA DE ENTERRÍA, 1987).

C. Apelo ao Legislador (Appellents-cheidung): quando a Corte decide que a norma “não é ainda inconstitucional”, ela chama o legislador para que corrija ou adapte a mesma. Isto pode ocorrer porque houve mudanças das relações jurídicas ou fáticas; devido a omissões do legislador (que, segundo a Lei Fundamental, tem o “dever” de legislar); e ainda por falta de evidência da ofensa constitucional.

D. Declaração de nulidade sem pro-núncia de nulidade: a teoria da declaração de nulidade/anulabilidade é eficaz quando há ofensa a direitos fundamentais, mas quando o que existe é uma omissão do le-gislador ou uma norma que beneficia ape-nas a alguns, contrariando o princípio da igualdade (o que é também uma omissão, só que parcial), o Tribunal Constitucional tem declarado a inconstitucionalidade sem anular a lei; isto porque, no primeiro caso, não se pode declarar nula a lacuna e no segundo, cassar a lei não trará o benefício aos outros que também têm direito. Assim, o Tribunal Constitucional, obriga o legisla-dor a fazer leis, suspende a aplicação da lei inconstitucional, ou permite que a mesma permaneça sendo aplicada provisoriamen-te (cf. MENDES, 1998a:195-200).

2.4. Brasil

Mostramos aquelas que foram as ma-trizes para a construção do nosso modelo de controle de constitucionalidade.

Faz-se mister procedermos a um bre-ve histórico do desenvolvimento do nosso sistema de controle de constitucionalidade, mostrando mais detalhadamente seu surgi-mento e desenvolvimento (dada a contri-buição trazida com a inserção daqueles), para então podermos concluir se é certo falarmos em uma “tradição” brasileira de controle de constitucionalidade e se afinal o controle difuso atende melhor aos recla-mos de uma democracia que se quer par-ticipativa.

Falamos da Constituição de 1891 e da importância de Rui Barbosa e de suas principais idéias. Rui Barbosa foi o grande responsável não apenas pela recepção do sistema americano entre nós, mas também possui grande importância nesses primei-ros anos da República, influenciando deci-sivamente os juristas da época.

Sua defesa das liberdades individuais é digna de nota; principalmente porque nas várias oportunidades em que atuou como advogado no Supremo Tribunal Federal, insistia em fixar e defender as competên-cias daquele Tribunal, que não haviam res-tado tão claras com a Constituição e que sofria ainda da pressão do Executivo da época; exemplo disso pode ser encontrado no Habeas Corpus n. 300, a favor de pes-soas desterradas em virtude de estado de sítio declarado em 1892:

“os casos, que, se por um lado toda a interesses políticos, por outro, envolvem direitos individuais, não podem ser defe-sos à intervenção dos tribunais, amparo da liberdade pessoal contra as invasões do executivo [...]. Onde quer que haja um direito individual violado, há de haver um recurso judicial para a debelação da injus-tiça. Quebrada a égide judiciária do direito individual, todos os direitos desaparecem, todas as autoridades se subvertem, a pró-pria legislatura esfacela-se nas mãos da violência; só uma realidade subsiste: a oni-

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potência do executivo, que a vós mesmos vos devorará, se vos desarmardes da vos-sa competência incontestável em todas as questões concernentes à liberdade” (citado por BARACHO JR., 2003:331-332).

Assim é que, por mais de meio sécu-lo, teve-se como “natural” não só o contro-le de constitucionalidade exercido inciden-temente por todos os juízes, como também a carga ideológica inerente e que pode ser resumida no “dogma da nulidade”, de que trataremos mais à frente. No Brasil — bem como na Argentina, Colômbia, México, Panamá, Nicarágua, Peru e Paraguai — se desenvolveu inicialmente,

“la facultad de declarar inaplicables las leys por inconstitucionales, dentro del Poder Judicial [ainda que tal faculdade não estivesse expressa nas respectivas Consti-tuições]. (...) Si bien se adimite que la fun-ción del órgano jurisdiccional, representa un control de la actividad legislativa, esa no es la esencia del instituto, como pue-de sostenerse en algunos países de Europa sino simplemente el normal ejercicio de la actividad del Poder Judicial con amplísi-mas facultades para aplicar la ley al caso concreto y anular toda clase de actos que se opongan a los jurídicamente válidos (VÉSCOVI, 1975:1133).

As Constituições posteriores foram aos poucos retirando a “pureza” deste sis-tema de controle difuso. A Constituição de 1934 mantém a possibilidade de o Judici-ário declarar inconstitucionais atos norma-tivos, mas inova ao atribuir ao Senado a competência de suspender discricionaria-mente a eficácia da lei declarada inconsti-tucional em última instância pelo Supremo Tribunal Federal (art. 91, IV).

A possibilidade de a questão chegar ao Supremo Tribunal Federal minimizaria o risco de haver decisões contraditórias a respeito da constitucionalidade de uma mesma lei. Somado à possibilidade de

suspensão pelo Senado, criou-se um me-canismo de atribuição de eficácia erga om-nes. Procurava-se suprir a necessidade de tornar geral o efeito de uma decisão que, até então, cuidava apenas de resolver um caso concreto (nos EUA, como já se disse, não havia tal problema devido ao instituto do stare decisis). Com isso nosso sistema ganha novas proporções, passando suas decisões a ter efeitos erga omnes. Disposi-ção semelhante encontra-se na atual Cons-tituição: art. 102, III (que cuida do Recurso Extraordinário) e art. 52, X (que mantém a possibilidade do Senado suspender a efi-cácia de lei declarada inconstitucional em sede de Recurso Extraordinário).

A Constituição autoritária de 1937 retrocede no desenvolvimento do controle de constitucionalidade no Brasil, violando a força da coisa julgada ao criar a possibili-dade de que decreto legislativo suspendes-se uma decisão judicial que declarou in-constitucional um ato normativo (art. 96). O Presidente (com o uso dos Decretos-lei) acabou por exercer tal prerrogativa. Fran-cisco Campos defendia essa disposição, levantando um pretenso “caráter antide-mocrático da jurisdição” que permitiria o uso do controle de constitucionalidade como instrumento “aristocrático” de pre-servação do poder (CAMPOS, citado por MENDES, 1998a:30).

A Constituição de 1946, ao tratar da intervenção da União nos Estados, aperfei-çoa o sistema já existente na Constituição de 1934 (ação direta de inconstitucionali-dade interventiva), ou seja, agora o Supre-mo Tribunal Federal não se pronunciaria previamente sobre a constitucionalidade da lei de intervenção, mas sobre o ato es-tadual violador, antes que a intervenção ocorresse (art. 7º, VII, regulamentado pela lei 2.271/54).

Apenas na década de 60, numa épo-ca em que a Europa criava ou (re)colocava

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em funcionamento suas Cortes Constitu-cionais de controle concentrado, como a da Itália em 1956, é que viríamos somar, no Brasil, o controle concentrado ao difuso. Foi através da Emenda Constitucional nº 16/65, onde ficou prevista uma ação espe-cial para defesa “em tese” da Constituição: a Representação de Inconstitucionalidade. Apenas o Procurador-geral da República tinha legitimidade para propô-la.

Esta Emenda, cujo objetivo, segun-do sua Exposição de Motivos, era alcançar maior economia processual pela decisão direta do Supremo Tribunal Federal, deu nova redação ao artigo 101 da Constitui-ção de 1946, passando o mesmo a dispor que o Procurador-geral poderia represen-tar ao Supremo Tribunal Federal quando leis/atos estaduais ou federais colidissem com os princípios do art. 7º, VII, da Cons-tituição. Desde então surgiu grande debate doutrinário sobre se o Procurador-geral teria discricionariedade quanto à conve-niência e oportunidade de propor a ação, ao ser interpelado por terceiro, ou se ele estaria vinculado à requisição, já que não defenderia interesses próprios, mas alheios (cf. FERRARI, 1992:126). Desde já adian-tamos que com a Constituição de 88, que alargou a legitimidade ativa da ADIn, o debate parece prejudicado, ou seja, como há várias entidades podem propor a ação, o máximo que o Procurador-geral pode-ria fazer é “opinar” contrariamente — art. 103, § 1º. A discussão apenas teria lugar quando o pedido fosse feito por terceiro não legitimado.

A Constituição de 1967 alarga for-malmente o alcance do controle de cons-titucionalidade, porque, enquanto a Cons-tituição de 1946 falava em proteção contra ofensa aos “princípios constitucionais”, a Constituição autoritária estende a possi-bilidade de Representação contra lei que fosse de encontro a quaisquer disposições

constitucionais. No entanto, apesar de constar do texto da Constituição, sabe-se que o respeito àquela não foi a maior preo-cupação dos dirigentes do País no período. A profusão dos Decretos-lei e Atos Insti-tucionais, violando direitos e garantias in-dividuais e coletivos, poucas vezes encon-trou no Judiciário a necessária barreira.

A Constituição de 1988, como já ti-vemos oportunidade de frisar, manteve o sistema de controle difuso e, quanto ao concentrado, foram criadas novas ações: a ação de inconstitucionalidade por omissão, a ação declaratória de constitucionalidade (esta última introduzida pela EC. 3/93), e a ação de descumprimento de precei-to fundamental (regulamentada pela lei 9.882 de 13 de dezembro de 1999). Além disso, a ADIN mereceu atenção especial, principalmente no tocante à legitimidade ad causam — basta vermos o longo rol do artigo 103.

O Supremo Tribunal Federal acu-mula a posição de órgão revisor (em casos excepcionais) e exerce, por via principal, o controle concentrado de constitucionali-dade de leis ou atos normativos. A introdu-ção do sistema concentrado no Brasil não ocorreu sem problemas (infra).

Ocorre que, devido ao já consolida-do “dogma da nulidade da lei inconstitu-cional”22, de matriz americana, e devido à omissão do constituinte ao não estabelecer quais seriam os efeitos da declaração de in-constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, a jurisprudência e a doutrina, aca-baram por somar à já consagrada eficácia erga omnes da decisão em tese, o efeito ex tunc, próprio do controle difuso, ao argu-mento de que uma lei declarada inconstitu-cional já surge inconstitucional ab ovo.

Mas essa não era a opinião domi-nante a princípio. Apenas na década de 70 é que o STF passou a se considerar com-petente para anular com eficácia ex tunc

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as leis consideradas inconstitucionais em sede de controle concentrado, sem neces-sidade da intervenção do Senado. Segundo Gilmar F. Mendes (1998a:251-252), a atri-buição de efeitos erga omnes às decisões do Supremo Tribunal Federal nestes casos apenas se firmou na jurisprudência a par-tir de 1977, quando o Presidente do STF, o Min. Thompson Flores dispensou da co-municação ao Senado as representações de inconstitucionalidade. Antes se confundia a decisão sobre representação de inconsti-tucionalidade e a interventiva, entendendo-se que em ambas seria necessário submeter ao Senado a sentença para que valesse con-tra todos. Em 1976, por exemplo, podemos encontrar os Ministros Thompson Flores, de um lado, e Eloy da Rocha, de outro, dis-cutindo tal questão, sendo que o primeiro defendia a dupla competência do Supremo Tribunal Federal: declarar e “suspender” a lei inconstitucional (RTJ 76/346).

Surge assim controvérsia doutrinária e jurisprudencial sobre se e em que medida é válida a afirmação da nulidade total da norma inconstitucional. Se afirmarmos que a norma já nasce inconstitucional e que o Supremo Tribunal Federal simplesmente “declara” o vício, isto implica que todas as relações jurídicas constituídas sob aquela lei vão ser tidas como nulas, o que gera-ria grande insegurança jurídica e violaria a boa-fé de pessoas que, fundadas na presun-ção de validade de todas as normas, agiram conforme a lei inconstitucional.

Por outro lado, ao se defender que a decisão deva apenas produzir efeitos após sua publicação, garantem-se os princípios da segurança jurídica e da não-surpresa, mas consolida-se também a validade de uma lei inconstitucional sobre certo perí-odo, o que é o mesmo que inverter a su-premacia constitucional temporariamente (nem é preciso lembrar o quão importante é para nosso ordenamento a hierarquia da

Constituição; é com base em tal hierarquia que existe o próprio controle de constitu-cionalidade).

Podemos, pois, observar que o sis-tema de controle difuso já estava consoli-dado entre nós quando da adoção gradual de formas de ação direta. Nesse sentido a lição de José A. de Oliveira Baracho Jr. (1995:30): “esta adoção paulatina do sis-tema concentrado de controle de constitu-cionalidade ocorreu paralelamente a um sistema difuso que se consolidava já no início do século”.

Dessa forma foi possível que, no Bra-sil, o sistema de controle concentrado de constitucionalidade pudesse adotar, o efei-to ex tunc (próprio do sistema difuso, como vimos) para suas decisões ao lado da eficá-cia erga omnes. Mas como isso foi cons-truído pela doutrina e pela jurisprudência? É o que vamos procurar desenhar, fazendo um breve levantamento de alguns autores e algumas decisões centrais à configuração desse que se tornou o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade.

Comecemos então por Alfredo Bu-zaid: qualquer lei contrária à Constituição é absolutamente nula, não anulável, pois, “a eiva de inconstitucionalidade a atinge no berço, fere-a ab initio. Ela não chegou a vi-ver. Nasceu morta. Não teve, pois, nenhum único momento de validade” (BUZAID, 1958:132-137). Mesmo uma sentença tran-sitada em julgado não poderia prevalecer, seria passível de ação rescisória.

Na esteira de tal entendimento, en-contram-se autores como Ronaldo Poletti (1985:114) que, após apresentar a teoria discrepante, volta-se à corrente tradicio-nal, em nome da necessidade de se evitar que se sofram “prejuízos” na lógica jurídi-ca e “subversão do sistema”.

Também a eles se inclina Themísto-cles Cavalcanti. De notar, porém, que sob um ponto de vista já um pouco distancia-

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do do tradicional, Cavalcanti procura um fundamento mais sólido para a nulidade absoluta. Segundo o jurista, avaliar a cons-titucionalidade de uma lei não é apreciar se há confronto entre duas leis — afinal, se a “lei” inconstitucional não é, como dizem, lei, não há como aceitar que o fundamen-to do controle esteja na superioridade da Constituição, já que não há como confron-tar realidade e aparência — é sim “indagar se um ato do Poder Legislativo, que se ofe-rece como lei, tem, de fato, êste caráter”. Logo, se se declara que o ato é inconsti-tucional, isto é porque ele na verdade não era uma lei (cf. CAVALCANTI, 1966:168) — mais recentemente, Clèmerson Clève, tem defendido que a retroatividade hoje seria pacífica, sendo que a nulidade da lei inconstitucional inserir-se-ia no ordena-mento como um “princípio constitucional implícito” (CLÈVE, 1995:165).

Na Jurisprudência do STF a corrente predominante é a acima exposta, e hoje, praticamente pacífica — pelo menos antes da lei 9.868/99. Selecionamos algumas de-cisões que nos dão a dimensão do quão só-lido é (ou era) o entendimento do Supremo Tribunal Federal no sentido da nulidade absoluta. Na Representação de Inconstitu-cionalidade (Rp) nº 933-RJ, decidida em 1976, votou o Min. Xavier de Albuquer-que, consagrando a doutrina clássica: “as normas serão tidas por inconstitucionais, com o que não se haverão constituído di-reitos de nenhuma espécie com base nelas. Se atos administrativos houveram sido praticados, poderão ser desfeitos, porque fundados em lei declarada inconstitucio-nal” (RTJ 76/346; no mesmo sentido RTJ 95/999 e RTJ 97/1369).

O STF parece não ter dúvidas quan-to à eficácia ex tunc: “o Supremo Tribunal Federal tem jurisprudência consolidada no sentido, por exemplo, de que o ato incons-titucional é nulo”, o que leva o Min. Vello-

so a afirmar que “a lei inconstitucional não tem eficácia derrogatória”, e mesmo as sen-tenças ditadas com base naquela lei, podem ser rescindidas (VELLOSO, 1996:794)23. E, de fato, é o que podemos constatar da ADIn - 652-MA (DJU 02/04/93, p. 5615), que mostra bem o que tem significado tal teoria no controle de constitucionalidade brasileiro. Assim votou o Relator, Ministro Celso de Mello:

“Atos inconstitucionais são (...) nulos e destituídos, em conseqüência, de qual-quer carga de eficácia jurídica. A decla-ração de inconstitucionalidade de uma lei alcança, inclusive, os atos pretéritos com base nela praticados, heis que o reconhe-cimento desse supremo vício jurídico, que inquina de total nulidade os atos emanados do Poder Público, desampara as situações constituídas sob sua égide e inibe — ante sua inaptidão para produzir efeitos jurídi-cos válidos — a possibilidade de invoca-ção de qualquer direito” (grifos nossos).

Apesar do que afirmamos e mos-tramos, isto é, que predomina no Brasil a eficácia ex tunc da sentença que declara a inconstitucionalidade, houve e há vo-zes contrárias na doutrina e no Pretório Excelso. No campo dogmático, a posição possivelmente mais radical é a defendida por Egas D. Moniz de Aragão. O Prof. da UFPR critica A. Buzaid porque este teria confundido “nulidade” e “existência” da norma: como pode uma norma inconsti-tucional ser inexistente, mas ao mesmo tempo depender que o Judiciário declare a inexistência? Possuindo a norma o vício da inconstitucionalidade (e não de nuli-dade, própria do direito privado) e sendo necessária a suspensão pelo Senado, “de-corre desse princípio que a decretação da inconstitucionalidade opera ‘ex nunc’ e vá-lidos são os atos praticados na vigência da lei, enquanto não impugnados e admitida a procedência da impugnação [pelo Sena-do]” (ARAGÃO, 1961:365).

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Em sentido convergente, Pontes de Miranda, criticando os que dizem ter a sen-tença sobre inconstitucionalidade natureza declaratória, afirma que, para que tal ocor-resse, seria preciso que a lei não existisse. Nesse caso o Tribunal simplesmente diria: “a lei não existe”. Mas o que na verdade ocorre é que a lei inconstitucional é, e não só isso, ela é lei. Não chega, contudo, a fa-lar em anulabilidade, ao contrário, diz que a lei inconstitucional é nula. E conclui afir-mando que a sentença que nega a incons-titucionalidade de uma lei é declaratória, mas a que a afirma, é desconstitutiva (cf. PONTES DE MIRANDA, 1953:295).

Sem chegar a tal extremo, Lúcio Bit-tencourt, criticando a equiparação entre “nulidade” e “inconstitucionalidade”, afir-mava que a adoção da doutrina americana não contribuiu para que se desenvolvesse uma “teoria da nulidade da lei inconstitu-cional”. Os defensores brasileiros da total anulação da norma inconstitucional tam-bém não conseguiram “apresentar funda-mento técnico, razoavelmente aceitável, para justificar essa extensão”, se limitando a repetir a doutrina e jurisprudência ame-ricanas “sem buscar-lhes o motivo, a cau-sa ou o fundamento” (BITTENCOURT, 1997:140-141).

Mesmo nos EUA, como vimos aci-ma, não se tem feito aplicação absoluta do efeito ex tunc, principalmente quando de boa-fé os indivíduos agem segundo a lei inconstitucional. Apesar da mudança lá, continuou (e continua) nossa jurisprudên-cia a afirmar o já superado “dogma da nu-lidade”. Esquece-se nossa Corte Suprema que o Ministro Leitão de Abreu, naquele mesmo Tribunal há muitos anos, já apon-tava essa mudança. De fato a voz isolada do Ministro Leitão de Abreu soou durante bom tempo no Supremo Tribunal Federal.

“Se me afigura, também, o entendi-mento de que não se deve ter como nulo ab initio ato legislativo que entrou no mundo

jurídico munido de presunção de validade, impondo-se, em razão disso, enquanto não declarado inconstitucional, à obediência pelos destinatários dos seus comandos” (RE 79343 – RTJ 82/791).

Com base na Teoria Geral do Direi-to e do Estado de Hans Kelsen, ele admite que a decisão possa ter efeitos retroativos, mas ainda assim, a sentença não diz que a lei é nula, mas estabelece que ela está sen-do anulada com efeitos retroativos. Soma a seus argumentos a boa-fé do que agiu na crença de ser regular a norma, principal-mente quando, por tais atos foram estabe-lecidas relações entre o particular e o Esta-do e a declaração de inconstitucionalidade venha desfavorecer àquele (cf. o voto dado no supracitado RE 79343).

Na atualidade defende tal posição, entre outros, Márcio Diniz, partindo de um pressuposto similar ao de Themístocles Cavalcanti: para que a norma seja passível do juízo de inconstitucionalidade, deve ter primeiro existido (não é possível reduzir nulidade à inexistência, sob pena de a ação ficar sem objeto), mas ele chega a con-clusões bem diferentes, pois conclui que então a natureza da sentença que declara a inconstitucionalidade seria constitutivo-negativa, independente de seu alcance no tempo (cf. DINIZ, 1995:39-40).

Regina M. Nery Ferrari (1992:49ss) fez um grande estudo sobre a questão. An-tes de falar especificamente sobre os efeitos ex tunc ou ex nunc, procura mostrar outras questões de fundo, entre elas, a questão da retroatividade ou não das leis; isto é, deve a nova norma que substitui a declarada in-constitucional retroagir para alcançar as relações jurídicas abrangidas pela norma inconstitucional? A autora resgata várias te-orias sobre a irretroatividade da lei, desde a Constituição americana (que proíbe leis ex post facto) (cf. FERRARI, 1992:56-72) e conclui que se a irretroatividade é um princípio constitucional geral, tem de ser

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respeitado pelo legislador ordinário. Nesse sentido lembra que na Constituição de 1988 há pelo menos uma referência ao princípio da irretroatividade o art. 5º, XXXVI. Logo, se estes são os únicos empecilhos que a Constituição impõe à retroatividade, forço-so é concluir que situações outras que não os envolvessem poderiam ser abrangidas pela nova lei. Isso significa que — conclui — jurista — no plano do controle de cons-titucionalidade, considerando que durante a vigência da lei inconstitucional,

“direitos foram criados, litígios fo-ram resolvidos com base em uma lei que era válida, e, portanto obrigatória [não há como admitir uma nulidade absoluta, pois], (...) admitir que esta declaração viesse es-tender seus efeitos ao passado de modo absoluto, anulando tudo o que se verificou sob o império da norma agora reconhecida como inconstitucional seria proporcionar a insegurança jurídica, a instabilidade do direito, pois não estaríamos nunca em con-dição de apreciar se um ato lícito quando realizado ou um contrato válido quando celebrado conservaria tal característica no futuro” (FERRARI, 1992:77).

Quanto à dicotomia “nulo vs. anulá-vel”, Regina Nery não acredita que a teoria das nulidades seja aplicável à sentença que declara a inconstitucionalidade; segundo a jurista, o que há em sede de controle de constitucionalidade é um outro “grau”: o “grau de inconstitucionalidade”.

Dessa forma, ao invés de ficar discu-tindo se há nulidade absoluta ou relativa, entende que este critério do Direito Privado não serve ao Direito Constitucional, pois quando um órgão declara que certa norma possui o vício de não ser conforme a Cons-tituição — sendo, pois inválida —, ele lhe impõe a sanção de inconstitucional; não ca-bendo, discutir se há nulidade absoluta ou relativa, porque tal norma “padece de um só nível de invalidade, isto é, de inconsti-tucionalidade” (cf. FERRARI, 1992:86; em

sentido semelhante, ARAGÃO, 1961:365). A sentença sobre inconstitucionalidade teria natureza constitutiva e retroativa.

Falar-se de nulidade de pleno direito, como quer a doutrina dominante, não faz, pois sentido, a anulação sempre provém de pronunciamento do órgão competente24.

Além dos já citados, que, como se pôde perceber exerceram (e ainda exer-cem) influência sobre a formação de nosso sistema de controle judicial de constitucio-nalidade, é necessário destacar o trabalho de Gilmar Ferreira Mendes, cujas idéias têm inspirado vários doutrinadores, além das recentes inovações legislativas (a EC 3/93 e as leis 9.868/99 e 9.882/99).

De fato, nos últimos anos o sistema tem sofrido algumas modificações no Bra-sil, influenciado pelo complexo sistema alemão — onde, como dissemos supra, o Tribunal Constitucional, devido ao silên-cio da Constituição sobre os efeitos, criou uma série de tipos de decisões que pudes-sem racionalizar e amenizar a aplicação ili-mitada da retroatividade das sentenças que declaram a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo — Gilmar F. Mendes fez um estudo comparado entre os Tribunais Ale-mão e Brasileiro, procurando mostrar que alguns daqueles novos modelos de senten-ças do Bundesverfassungsgericht já eram, desde já algum tempo, proferidas no Brasil e que o Supremo Tribunal Federal, tal qual o Tribunal Constitucional alemão, diante do silêncio constitucional, para além de ficar eternamente naquela discussão his-tórica, procurou inovar o alcance de suas decisões em sede de controle concentrado (cf. MENDES, 1998a:262ss).

Considerações Finais: a Proteção aos Direitos Fundamentais e a Natureza da Sentença Constitucional

Após estudarmos as origens do Pro-cesso Constitucional, suas relações íntimas

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com a Teoria Geral do Processo e com o constitucionalismo em geral; mostramos como a origem dessa disciplina vem suprir a lacuna gerada pela constitucionalização do processo, o que forçou a uma releitura nem sempre bem percebida pelos juristas. Mostramos os desenvolvimentos doutriná-rios produzidos nessa nova disciplina, pas-sando por Fix-Zamudio, Véscovi, Pablo Verdú e José A. O. Baracho; que puderam nos dar a dimensão dos desafios postos e as teorias que se debruçam a formar uma doutrina constitucional-processual sólida e constitucionalmente adequada a um Esta-do Democrático de Direito.

O Controle de Constitucionalidade, por outro lado, como um dos principais capítulos do Processo Constitucional, foi reconstruído aqui desde suas origens nos Estados Unidos e Áustria. Vimos os pres-supostos teoréticos e culturais auxiliaram o Juiz Marshall a afirmar a superioridade da Constituição americana sobre quais-quer outros atos normativos; a partir disso, pudemos entender melhor os argumentos desenvolvidos por aquele ao decidir o fa-moso caso Marubury vs. Madison.

Estudamos os trabalhos de Kelsen sobre o sistema de controle concentrado das leis e a criação na Áustria do Tribunal Constitucional, inspirado nas idéias daque-le e que acabou por se tornar modelo para a maioria dos países da Europa e boa parte do mundo.

Vimos o surgimento e os grandes desdobramentos do Controle de Constitu-cionalidade na Alemanha, a ponto de as criações de seu Tribunal Constitucional influenciarem vários países atualmente, entre eles o Brasil (Ação Declaratória de Constitucionalidade, efeitos vinculantes nas decisões em sede de controle concen-trado, declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto; interpretação con-forme a Constituição, e outros institutos).

Repassamos as principais formas de controle judicial de constitucionalidade, desde o surgimento do sistema de contro-le difuso nos EUA, passando pelo contro-le austríaco, concentrado, e também pelo controle alemão, com suas especificidades. Observamos que o controle difuso influen-ciou nossa primeira Constituição Repu-blicana, com Ruy Barbosa à frente; que a partir de então o Brasil consolidou o poder geral de qualquer juiz de apreciar a incons-titucionalidade quando requerido como um princípio de nosso direito, e o efeito ex tunc (e inter partes) da respectiva decisão.

Mostramos como todo esse arcabou-ço moldou a construção de um sistema de controle de constitucionalidade propria-mente brasileiro e que aos poucos fomos adotando elementos tipicamente de contro-le concentrado até que em 1965 adotamos uma “ação direta”. Por fim, a Constituição de 1988 (e as Emendas que lhe sucederam) expressamente coloca o Supremo Tribunal Federal como o Guardião da Constituição, dando-lhe competências precipuamente relacionadas com a Constituição e o con-trole de constitucionalidade.

Se por um lado permaneceu como órgão recursal extraordinário em matéria de alegação incidental de inconstituciona-lidade, por outro se fortaleceu como órgão exclusivo de julgamento de ações diretas questionando a inconstitucionalidade (ou constitucionalidade) de normas federais e estaduais, além do questionamento de des-cumprimento de preceitos fundamentais.

Falta-nos, contudo, a partir da cons-tatação da formulação da nova disciplina, de sua importância e de seus desenvolvi-mentos in casu pelo Controle de Consti-tucionalidade, mostrar como todos esses institutos podem ser úteis em um Estado Democrático de Direito na defesa dos Di-reitos Fundamentais e, a partir disso, qual a natureza da sentença constitucional.

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“O Constitucionalismo processu-al contemporâneo preocupa-se, cada vez mais, com as garantias dos direitos fun-damentais, procurando efetivá-los pelo crescimento de novos instrumentos do Processo Constitucional” (BARACHO, 199a:124; ver também 1980-82:65). É a omnipresença dos Direitos Fundamentais em face de toda a jurisdição, trabalhada, por exemplo, pelo Tribunal Constitucional Alemão.

Como já esboçado anteriormente, contudo, a simples declaração de direitos não é suficiente. Por isso, a necessidade de institutos de defesa dos Direitos Fundamen-tais; pois, como observa Alexy (1999:63), “Constituições modernas dão aos direitos fundamentais em gera, por conseguinte, a força de concretização suprema e quando elas não o fazem deveriam ou ser inter-pretadas neste sentido ou, quando isso não fosse possível, modificadas”.

Dessa forma, necessariamente, o processo deixa de ser apenas instrumento de aplicação do direito material em caso de violação, para ser encarado a partir da proteção e realização da Constituição.

A despeito dessa nova compreensão, José A. de Oliveira Baracho (1999a:129) alerta que alguns estudos de processo cons-titucional não tratam de certas peculiarida-des especificamente processuais deste. De fato, no tange ao Controle de Constitucio-nalidade, declarar a inconstitucionalidade não é só afirmar a congruência do ordena-mento, implica também verificarmos como ficam as relações jurídicas realizadas sob a lei inconstitucional e, se o controle é difu-so, há também a solução do caso concreto.

No que tange ao âmbito processual da questão, gostaríamos de acrescentar, com Maria del Carmen Blasco Soto, que todas as doutrinas anteriores, que tentaram explicar a natureza da sentença constitu-cional, viam a mesma como um “ato nor-

mativo”, isto é, determinavam a natureza da sentença a partir de seu objeto (a lei), retirando dela até mesmo seu caráter pro-cessual. A sentença que declara a inconsti-tucionalidade é “ato final de um processo, e a desconstituição da lei não se dá pelo método usual da revogação, que é próprio da ação do PODER LEGISLATIVO, mas pelo PODER JUDICIÁRIO, no exercício de sua função jurisdicional” (GONÇAL-VES, 1993:116; cf. também BLASCO SOTO, 1995:37-45). Apenas considerando a sentença em sua real natureza de ato pro-cessual, poderemos explicar como a mes-ma pode ter efeitos retroativos.

A doutrina tem reduzido a sentença constitucional ao ato jurídico-material (a lei), que na verdade é seu objeto, fican-do os efeitos da sentença delimitados em atenção ao vício da lei (nula ou anulável, dependendo da corrente aceita). A eficácia da sentença tem sua origem no processo e, como tal, possui em geral dois “conceitos de tempo”: um referente ao seu nascimen-to, outro a seu âmbito de aplicação (qual-quer sentença naturalmente tem eficácia sobre fatos surgidos antes de sua existên-cia, sobre a lide que ela atua).

Os Tribunais Constitucionais têm procurado tornar mais complexa a questão dos efeitos para além de meras construções lógicas, atendendo às novas demandas que lhes têm chegado. Têm surgido novas for-mas de decidir, novos tipos de sentença, que precisam ser mais bem estudadas; entre elas, há uma tendência de limitar a retroa-tividade das decisões. A afirmação de que todas as relações jurídicas surgidas com o advento da lei inconstitucional devem ser anuladas tem comportado temperamentos. Espanha, Portugal, Alemanha, mesmo os EUA e agora o Brasil são exemplos dessa tendência.

Buscam-se critérios que possam determinar em que casos certas relações,

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mesmo tendo como base uma lei inconsti-tucional, ainda assim possam ser convali-dadas. Nesse sentido, Regina Nery aponta um critério, a partir do artigo 5º, XXXVI, isto é, a sentença não poderia atingir os atos jurídicos perfeitos, direitos adquiridos e a coisa julgada (cf. supra).

A recolocação da sentença constitu-cional, no quadro das sentenças em geral, depende, como se tem tentado demons-trar, da superação de certas teorias que procuravam estudá-la a partir da “teoria das nulidades”, o que fez surgir doutrinas como a da nulidade absoluta de um lado (que entendia ser a sentença declaratória e produzindo efeitos ex tunc) e a doutrina da nulidade relativa de outro (para os quais a sentença era constitutiva e com efeitos ex nunc) (supra). Os defensores de ambas te-orias partiam da mesma confusão: atribuir à sentença a mesma natureza de seu objeto (a lei).

Se para a lei a teoria das nulidades é pertinente, não se pode, contudo, que-rer que a sentença se mova pelos mesmos caminhos, porque se tomamos como refe-rência o “dogma da nulidade”, chegamos a um impasse: como pode um processo apreciar algo inexistente? Pode-se mesmo dizer que uma lei, “nula desde o início”, realmente não produziu nenhum efeito? Ou pelo menos nenhum efeito válido? É válido o aforismo: quod nullum est, nullum produxit effectum?

Apesar dos questionamentos, a orien-tação que vem desde Kelsen até os dias de hoje, mesmo por aqueles que lhe são con-trários, ressaltam o vínculo entre o vício do ato e a eficácia inerente à declaração de inconstitucionalidade, como se entre eles existisse uma conexão (cf. BLASCO SOTO, 1995:70).

A superação de tal condição passa, como se tem afirmado, pela superação da atribuição de efeitos temporais à sentença

a partir de seu objeto, pois, “es en la sen-tencia donde hay que buscar la eficacia temporal y desde ella desde donde han de fijarse y disponer los efectos también tem-porales normativos. La sentencia es la que introduce los cambios en el ordenamien-to jurídico y la que provoca el efecto de-moledor en el mismo” (BLASCO SOTO, 1995:73).

Ou, segundo o que temos afirmado, nas sentenças, pois ao contrário do que vai concluir a jurista espanhola, não pensamos que seja possível um Tribunal Constitu-cional prever todas as variáveis para então dizer a partir de quando sua decisão entra em vigor, para então efetivar os direitos fundamentais.

“A efetividade ou eficácia dos di-reitos fundamentais opera-se pela sua aplicabilidade real e concreta. Com isso, ocorrem as possibilidades reais de concre-tização dos direitos fundamentais a todos os cidadãos, por meio da realização e oti-mização dos mesmos. As normas constitu-cionais são dirigidas à realidade, daí que sua interpretação deve ser orientada para sua efetividade, vigência prática e mate-rial” (BARACHO, 1999a:125).

Tal preocupação é particularmente interessante, pois, como mostra Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira (2000:83), a legitimidade do processo de controle concentrado de constitucionalidade passa pela análise do processo legislativo, onde os cidadãos, destinatários das normas, de-vem ser também co-participantes em sua formulação.

A partir desse elemento a discussão sobre o que se entende por controle de constitucionalidade e por norma inconsti-tucional se densifica, pois há que se consi-derar o processo legislativo como um dos pressupostos à consideração do Judiciário, quando da apreciação de constitucionalida-de de alguma lei no controle concentrado.

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Por outro lado, percebe-se que a discussão jurisprudencial acerca da defesa dos Direi-tos Fundamentais tem operado, muita vez, no sentido de lhes ampliar o alcance (e até o número dos mesmos, como na decisão que proferiu a Suprema Corte americana em Roe vs. Wade).

“As garantias abstratas, a direta apli-cabilidade dos direitos fundamentais, as cláusulas interpretativas, a defesa do con-teúdo essencial, as garantias concretas, a tutela judicial ordinária e a proteção espe-cífica dos direitos fundamentais, com os processos e procedimentos constitucionais consolidaram o Processo Constitucional, fornecendo-lhe conteúdo adequado e efe-tivo” (BARACHO, 1999a:128).

Para concluir, afirmamos que os Tribunais devem ter em conta, ao profe-rir suas decisões, a atuação de todos os princípios constitucionais e as (possíveis) implicações de suas decisões. O Processo Constitucional tem de trabalhar hoje com a certeza de que cada decisão no sentido de eliminação de um problema contém uma componente de indeterminação que, por vezes, fará com que sejam gerados mais problemas que até então não se podia ver ou prever (cf. DE GIORGI, 1998:42). Logo, se queremos “segurança”, esta ape-nas poderá ser alcançada, como dissemos, na garantia de que a decisão judicial seja produto do contraditório estabelecido en-tre as partes.

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NOTAS

1 A doutrina ainda diferencia esse ramo em face do “Direito Processual Constitucional”, des-tinado a estudar os instrumentos processuais de eficácia da Constituição; ambos, contudo, se subsumem na grande categoria “Processo Constitucional”.2 Ver também BARACHO (2000d:43-60).3 Um estudo aprofundado do Direito Compa-rado à espécie encontra-se em BARACHO (1985).4 Segundo Couture, a teoria da autonomia da ação representou para os estudos do processo um fenômeno análogo ao que foi para a física a divisão do átomo (citado por FIX-ZAMUDIO, 1977:316).5 Essa confusão é recorrente no Brasil. Só para citar um exemplo mais conhecido, observe-se o título de um dos livros de Gilmar F. Mendes (1998a): “Jurisdição Constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha”.6 Sobre a importância que teve nos Estados Uni-dos as Reconstruction Amendments (como a ci-tada XIV), ver BARACHO (1999b).7 Ver também BARACHO (1999a:97-98) e SLERCA (2002).8 Esse direito à ação, pode, pois ser definido como o direito “que todas as pessoas têm de obter a tutela efetiva dos juízes e tribunais na concretização e exercício de seus direitos e in-teresses legítimos” (BARACHO, 1999a:92).9 Haveria ainda um terceiro setor, em decorrên-cia do segundo, referente às garantias consti-tucionais do processo, ou, mais claramente, ao “devido processo” (a que já fizemos referên-cia), como conclui FIX-ZAMUDIO (1977:330-331).10 Esse direito foi explicitado pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969) no

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art. 8 (acesso à justiça, presunção de inocência, contraditório, presença de advogado privado ou público, não auto-incriminação, direito de re-curso, publicidade do processo). Para garantir a efetividade de seus postulados foram criados dois órgãos: a Comissão Interamericana de Di-reitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (art. 33 e segs.).11 Com o objetivo de reforçar o caráter juris-dicional, diz Véscovi (1975:1136): “También tendríamos que concluir que se trata de funci-ón jurisdiccional si nos atenemos a los criterios normativos que caracterizan la actividad por el efecto jurídico (cosa juzgada), que se deriva del acto jurisdiccional”. Contudo, como se perce-be, o jurista uruguaio está se referindo ao sis-tema difuso de controle de constitucionalidade. Admite, contudo, que o caráter judicial do con-centrado não resulta claro, como cita posições contrárias na Itália (ver idem, p. 1138 e 1139).12 Ver também voto do Ministro Moreira Alves, para quem o controle “abstrato” possuiria um “caráter excepcional com acentuada feição po-lítica pelo fato de visar ao julgamento, não de uma relação jurídica concreta, mas da validade da lei em tese” (RTJ 95/993). E ainda Clèmer-son Clève (1995:112ss). Contra Sérgio S. da Cunha (1997:154).13 Ver também VÉSCOVI (1975:1129-1130) e ainda GARCÍA DE ENTERRÍA (1987).14 Note-se que sob a Constituinte de 1823 já havia quem defendesse que uma lei contrária à Constituição não valia. Contudo, como mostra Anhaia Mello (1968:182ss), a Constituição ou-torgada não previu um dispositivo que positi-vasse tal posição; além disso, a sanção imperial foi um entrave a qualquer tentativa de constru-ção em contrário.15 Sobre críticas ao sistema americano, vale a pena ainda citar PONTES DE MIRANDA (1932:162ss).16 Uma releitura contemporânea das implicações de Marbury vs. Madison pode ser encontrada em GARVEY e ALEINIKOFF (1991).17 Para Tocqueville o grande poder político dado ao Judiciário dos EUA, constitui uma necessi-dade real e constitui “uma das barreiras mais poderosas que jamais foram erigidas contra a tirania das assembléias políticas” (idem).18 Schmitt havia feito aquela acusação ao sis-tema proposto por Kelsen (cf. SCHMITT,

1983:81ss). Ver ainda a resposta de KELSEN (1991:248). Sobre essa discussão ver Alexan-dre Bahia (2004).19 Impende observarmos que, a despeito de a Corte Constitucional austríaca ser tida como a primeira no mundo, na verdade o Tribunal Constitucional da Checoslováquia, instituído alguns meses antes pela Constituição daquele país possui a primazia temporal. De toda sor-te, a Constituição da Áustria “transformou-se em modelo de um sistema de controle da constitucionalidade verdadeiramente original, que se opõe ao sistema americano, criando o tipo de controle concentrado” (BARACHO, 1999a:101).20 Poderíamos falar também da sistemática do controle espanhol, que vem desenvolven-do doutrina e jurisprudência bem peculiares no cenário mundial. Sobre os principais pon-tos deste inovador sistema, ver BARACHO (1999a:113ss) e GARCÍA DE ENTERRÍA, 1987). Outro sistema peculiar que alguma in-fluência exerce no Brasil é o português (vide, e.g., a introdução entre nós da Ação Direta de Inconstitucionalidade por omissão). Sobre este último ver BARACHO (1999a:115ss) e MI-RANDA (1994).21 Segundo Gilmar Mendes a enumeração das pessoas, constante do art. 93, I, n.2 da Lei Fun-damental é taxativa, não admitindo ampliação; a Lei Fundamental apenas dá legitimidade para esse controle abstrato aos órgãos centrais do governo e à minoria parlamentar o que, segun-do ele, acaba por retirar do Tribunal as questões mais importantes (cf. MENDES, 1998a:89).22 Tomamos a expressão na acepção dada por J. BARACHO JR. (1995:30ss). Com semelhante apropriação não queremos desmerecer a pro-digiosa criação americana, como se esta fosse despida de cientificidade, mas apenas mostrar que a crença absoluta em uma nulidade absolu-ta da lei inconstitucional não se conforma à re-alidade. Aliás, já dissemos, a própria Suprema Corte dos EUA não aplica aquela regra de mais absoluta hoje em dia.23 Vale a pena notar, entretanto, que em seminá-rio realizado em 1992, o mesmo Ministro afir-mara que: “casos há, entretanto, que seria ade-quado o efeito ex nunc” (VELLOSO, 1994).24 Essa é também a doutrina de Aroldo Plínio Gonçalves, seguindo a tradicional lição de Valle

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Ferreira, que, criticando a expressão “nulidade de pleno direito”, dizia que “mesmo inquinado do vício mais grave, o ato quase sempre conser-va uma aparência de regularidade, que só pode ser destituída pela declaração do juiz” (GON-ÇALVES, 1993:76). Aroldo Plínio enfatiza que

a nulidade não é conseqüência inerente ao ato viciado. A nulidade é uma sanção, isto é, uma conseqüência prevista para o ato praticado em desconformidade com a lei. Nulo é o ato assim declarado pelo Judiciário, que produz efeitos até a manifestação daquele.

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1. Introdução

No presente trabalho, pretendo re-conhecer nos trabalhos positivistas de KELSEN e de HART e pós-positivista de DWORKIN as defesas que fizeram aos di-reitos contra eventuais investidas de leis ou constituições posteriores ao seu nascimen-to, partindo desde já da certeza de que não se ocuparam diretamente desse assunto e talvez nem teriam defendido qualquer pro-teção em face de mudanças constitucionais.

O tema dos direitos adquiridos tem correlação direta com a idéia de direitos subjetivos que, por sua vez, relacionam-se com o direito de propriedade. Num rápido retrospecto, o direito de propriedade foi

outrora afirmado como um elemento da li-berdade individual e como o resultado do trabalho do homem, tornando-se parte inte-grante de seu corpo. Nessa noção lockeana, a propriedade é um direito individual que surgiu antes do estado de sociedade, sen-do, portanto, um limite natural ao poder do estado constituído pelo consenso/contrato social (BOBBIO, 1997: pp. 192, 201-220). As revoluções liberais do fim do Séc. XVIII moldaram essa visão individualista no cha-mado estado de direito e, para a proteção do direito de propriedade, a dogmática tratou de trabalhar a noção de direito subjetivo, como aquele que: 1) se deduz de um direito objetivo (criado pelo Estado); 2) a partir da ocorrência de um fato jurídico previamente

A CONSTITUIÇÃO E OS DIREITOS ADQUIRIDOS NA TEORIA DOS DIREITOS: ENTRE O POSITIVISMO E O PÓS-POSITIVISMO

THE CONSTITUTION AND THE INDIVIDUAL RIGHTS IN THE THEORY OF LAW: BETWEEN POSITIVISM AND PÓS-POSITIVISM.

Geovany cardoso Jeveaux*

Recebido para publicação em agosto de 2005

Resumo: O tema dos direitos adquiridos em face da Constituição é normalmente tratado na dogmá-tica jurídica constitucional como de resultado evidente: a sua inexistência perante Constituições no-vas e o seu reconhecimento, via de regra, diante de Emendas Constitucionais. Todavia, no campo da teoria do direito, esse mesmo tema não permite uma abordagem reducionista e evidente, podendo ser encontrada uma coincidência no resultado de teorias tão diversas como as de KELSEN, HART e DWORKIN, propósito final do presente trabalho.Palavras-chave: Constituição. Direito adquirido. Teoria do direito.

Abstract: The individual rights theme is normaly treated in the dogmatic constitutional law as an evidence result: they dont exist in face of the new Constitutions although they exist in face of the amendments. However, in the field of theory of law, this same theme doesnt admit such reduccionist and evidence result, because the conclusions of the KELSEN´s, HART´s and DWORKIN´s theo-ries, although start from the different premises, seem to take the individual rights to the same place: it´s protection against the law and even the Constitution. Key Words: Constitution. Individual rights. Theory of law.

*Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional-PUC/RJ, Doutor em Direito Público-UGF/RJ, Professor de Teoria da Constituição no Curso de Mestrado em Direitos e Garantias Constitucionais-FDV/ES e Juiz do Trabalho-TRT 17ª Região.

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fixado e que se refira diretamente à esfera jurídica de um titular determinado (indivi-dual); 3) que passa a ter o poder de exigir uma prestação de um titular passivo (objeto de uma obrigação legal ou contratual - as-pecto material); 4) inclusive pela via judi-cial (aspecto processual). Se uma lei (direito objetivo de base) posterior à aquisição das condições de exercício desse direito subje-tivo lhe modifica os contornos ou simples-mente o extirpa do ordenamento, afirma-se a sua continuidade, apesar de ainda não ter se concretizado, em nome da “estabilidade das relações jurídicas” (leia-se: em nome do direito de propriedade). Se, ao contrário, a mudança ocorre por uma nova constituição ou por uma emenda constitucional, costu-ma-se dizer que contra ela não existem di-reitos adquiridos, o que contraria o ponto de partida de todo o raciocínio: a retórica segundo a qual os direitos individuais pre-cedem o estado e, portanto, a própria Cons-tituição.

Enquanto o positivismo, grosso modo, confere prevalência ao direito cria-do pelo Estado e, portanto, rejeita qualquer precedência de um direito não positivo (na-tural) e não estatal (individual), o pós-po-sitivismo pretende levar a sério mais uma vez os direitos individuais, não mais com base num direito natural precedente, mas em princípios extraídos do próprio sistema positivo e embebidos de uma moral pre-sente nas comunidades. Até que ponto es-sas teorias respondem à pergunta sobre se existem ou não direitos adquiridos em face de uma constituição nova, essa é uma con-clusão que deixo para examinar ao fim do trabalho, após relatar e pôr em confronto as teorias do direito daqueles três autores.

2. O Positivismo de Kelsen

2.1 A teoria pura do direito

Logo no Prefácio da primeira edição de seu livro Teoria Pura do Direito, KEL-

SEN enuncia seu propósito de teorizar o direito purificado de qualquer “ideologia política” e de “elementos de ciência natu-ral”, não no sentido de sua formação, mas de seu conhecimento “científico”. Essa ciência tem pretensão de “objetividade e exatidão” ou de ser uma “instância obje-tiva”, geradora de neutralidade (KELSEN, 1991, pp. 53 e 74)1.

Para isso, adota um “princípio meto-dológico fundamental”, destinado a “liber-tar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos”. Embora a teoria não ignore a conexão do direito com outros campos do conhecimento, almeja tratá-lo à parte, a fim de evitar um “sincretismo me-todológico” (ibidem, p. 1).

O direito é encarado como uma “ordem normativa da conduta humana” ou um “sistema de normas de regulam o comportamento humano”. Como sistema, exige uma unidade lógica, conferida pela derivação de uma norma a outra até uma norma fundamental, sendo com isso, tam-bém, uma teoria holística (ibidem, pp. 4, 51, 207 e 220)2.

É na norma fundamental que “...se revela a Teoria Pura do Direito como te-oria jurídica positivista”, onde o direito positivo é válido apenas objetivamente, ou seja, como algo possível, e não necessário, e onde essa validade é “condicionada pela pressuposição da norma fundamental”. Positivo, aí, refere-se a algo “posto” (con-creto) por alguém autorizado a fazê-lo por uma norma “pressuposta” (abstrata) (ibi-dem, pp. 10 e 236).

2.1.1 A norma fundamental pressuposta

A designação de fundamental alude ao fundamento de validade do direito, en-quanto ordem ou sistema de normas. Cui-da-se, portanto, de um imperativo, e não de um ato de vontade constituinte, como se passa com a constituição. Ela é pressupos-

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ta3 porque não pode ser posta no mundo dos fatos concretos, vale dizer, não pode ser criada por uma autoridade. Ela tem natureza hipotética, sendo “...apenas uma norma pensada”. Sua função é dar natureza jurídica às normas e sustentar a validade da ordem jurídica (=direito), enquanto “or-dem normativa da conduta humana”, ou “sistema de normas que regulam o com-portamento humano”, como seu “último fundamento de validade”. Esse sistema tem de ser uno, e essa unidade é adquiri-da pela derivação de uma norma inferior à superior, até a norma fundamental, numa “construção escalonada” e hierárquica de normas. Sendo um pressuposto lógico-te-órico, ela fundamenta a validade de qual-quer ordem jurídica positiva, qualquer que seja a sua coloração política, não sendo portanto nem justa e nem injusta (ibidem, pp. 4-5, 9, 25, 34, 50-51, 207, 213-214, 219, 223, 235-236 e 283)4

KELSEN diz, textualmente, que a norma fundamental é uma constituição no sentido lógico-jurídico, enquanto “fato fundamental” da criação do direito. Difere da constituição no sentido jurídico-posi-tivo, enquanto texto criado por um poder constituinte. Esse poder constituinte pode ser desempenhado por um órgão especial (assembléia constituinte) ou comum (poder legislativo ordinário), derivando: 1) de um costume; 2) da produção normativa de um indivíduo ou de um pequeno grupo; ou 3) da produção normativa de uma assembléia de indivíduos (autoridade legislativa). A norma fundamental tem uma “instância constituinte” que não recebe seu poder de outra norma concreta. Outrossim, ela se re-fere: 1) imediatamente: a uma constituição concreta, produzida pelo costume ou por um estatuto; e 2) mediatamente: à ordem coercitiva criada a partir da constituição. Portanto, não é de escolha livre, mas vin-culada (ibidem, pp. 50, 54, 211-212, 214, 224, 242).

Imaginando o mundo como uma única ordem jurídica, KELSEN encontra a norma fundamental na pressuposição de que as normas globalmente eficazes vincu-lam os Estados. No plano interno de cada Estado, a pressuposição é de obrigatorie-dade da primeira constituição histórica, ou seja, daquela que dá seqüência às de-mais, autorizando a criação de uma nova constituição. Essa primeira constituição é a primeira no sentido jurídico-positivo, a menos que haja uma revolução bem suce-dida, caso em que a primeira constituição histórica passa a ser aquela criada pelo ato revolucionário (ibidem, pp. 213, 215 e 233-234).

Esse monismo da ordem jurídica foi resumido por KELSEN no livro Teoria Geral do Direito e do Estado, na seguinte ordem de argumentos: a) o direito interno exerce uma função meramente comple-mentar em relação ao direito internacional (1990, p. 352-354); b) todas as matérias são possíveis ao direito internacional, mas não ao direito interno (ibidem, p. 354); c) há uma única ordem jurídica, precedida por uma norma fundamental de validade: c.1) a pressuposição de obrigatoriedade do costume internacional; c.2) seguida do aforismo pacta sunt servanda referente a tratados concretos; c.3) normas de órgãos criados pelos tratados, como as cortes e os conselhos (ibidem, pp. 358-359); d) visão holística das ordens: lógica, e não histórica, porque tradicionalmente os Estados vieram antes de uma ordem internacional (ibidem, pp. 359-360); e) o direito internacional é aplicável de imediato aos Estados quando as suas constituições omitirem sobre a sua prevalência ou afirmarem a prevalência do direito internacional, salvo se: e.1) exigi-rem a transformação do direito internacio-nal em direito interno; e.2) exigirem, em determinados casos, que apenas as leis in-ternas sejam aplicadas (ibidem, p. 367); f) validade universal do direito internacional,

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independentemente do reconhecimento, que é então presumido (reconhecimento tácito, contrário à teoria do reconhecimen-to) (ibidem, pp. 369-370); g) a soberania dos Estados é “delegada” pelo direito in-ternacional (ibidem, pp. 370-371); h) o tratado “revoga” a lei interna, e é por ela “revogado”, conforme a regra later in time rule (ibidem, p. 367).

Na estrutura das normas, há entre elas um vínculo de validade que dirige a última norma à anterior, e assim sucessi-vamente até uma norma fundamental hi-potética, que é pressuposta como condição primeira de validade (existência). No âm-bito interno, a norma fundamental é a pres-suposição de validade e de obrigatoriedade da primeira constituição, que “... prescreve que devemos nos conduzir como os ‘pais’ da constituição e os indivíduos autorizados (delegados) - direta ou indiretamente - pela constituição ordenam” (ibidem, p. 120). No âmbito internacional, a norma pres-suposta é a obrigatoriedade do costume internacional, sob a seguinte fórmula: “os Estados devem se conduzir como têm se conduzido de costume”. Somente a partir dessas normas pressupostas é que as nor-mas podem ser concretamente considera-das e hierarquizadas, nessa ordem: pacta sunt servanda dos tratados internacionais; normas emanadas pelos órgãos criados pe-los tratados; constituições dos Estados, e assim por diante.

2.1.2 Estática e dinâmica da Ordem Jurídi-ca e a validade e eficácia das normas

A recondução das normas ao seu imediato fundamento de validade repre-senta o caráter estático da ordem jurídica5, enquanto que o poder/competência criado pela norma fundamental para a geração das normas representa o seu caráter dinâ-mico. Este último é o conteúdo da norma

fundamental, que não determina o conteú-do da norma a ser então criada, limitando-se a lhe fornecer o fundamento de validade (1991: pp. 207-209).

Uma norma é válida, portanto, quan-do criada pela autoridade competente e pelo procedimento pré-determinado para esse mister. Assim, uma lei é válida quan-do o seu sentido objetivo for dado pela constituição que, por sua vez, pressupõe que todos se conduzam de acordo com ela (ibidem, pp. 8-9, 147-148, 206, 212 e 215)6.

A validade difere, contudo, da efi-cácia, nos seguintes pontos: 1) a validade pertence ao mundo do “dever-ser”, ou seja, diz respeito à simples existência objetiva da norma (por um ato de autoridade com-petente e pelo procedimento pré-estabe-lecido), enquanto que a eficácia alude ao “ser”, isto é, ao fato real da norma “ser efetivamente aplicada e observada”; 2) a eficácia dependente da validade, mas um mínimo de eficácia é condição da validade da norma; 3) a validade vem cronologi-camente antes da eficácia; 4) a validade é aplicada a um tempo e espaço determina-dos, sendo tais circunstâncias indiferentes para a eficácia; 5) a validade é o dever de uma conduta, enquanto que a eficácia é o fato de efetivamente alguém se conduzir de acordo (ibidem: pp. 11-13, 50 e 231) 7.

A eventual desconformidade de uma norma com outra superior, que lhe concede validade, não implica em invalidade ime-diata. A norma, nesse caso, é considerada provisoriamente válida, até que seja anula-da por uma autoridade competente, e me-diante um procedimento determinado para tanto. Isso explica porque as expressões de norma “ilegal” ou “inconstitucional” são uma contradictio in adjecto, porque toda norma é objetivamente válida até que seja extirpada do ordenamento pelos meios por ele previstos. Trata-se de uma anulabili-

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dade, e não de nulidade, porque a norma permanece válida até a tal decisão, que, por isso, tem natureza constitutiva, e não declaratória, desde que a norma era válida até então e, portanto, não podia ser “nula desde o início” (ex tunc), valendo aqui, para o direito, a metáfora do Rei Midas: “da mesma forma que tudo o que este to-cava se transformava em ouro, assim tam-bém tudo aquilo a que o Direito se refere assume o caráter de jurídico” (ibidem: pp. 55-56, 284-285 e 293-294)8.

A inconstitucionalidade, por isso, significa a invalidade de um ato em seu sentido subjetivo, por não se adequar ao sentido objetivo da norma constitucional que lhe confere validade (ibidem: pp. 55-56).

2.1.3 As Normas e o seu Conteúdo

No sistema kelseniano, a norma con-fere significado jurídico objetivo a um ato, enquanto “esquema de interpretação”, mas ela é o produto de outro ato, que recebe o seu significado de outra norma, até a nor-ma fundamental. Sendo uma “ciência” objetiva, a TPD, estruturada num sistema escalonado de normas, não admite que elas tenham conteúdo, porque isso exige a mistura de direito e política e sugere um núcleo “justo” e, portanto, valorativo (ibi-dem: pp. 3-5, 11, 49, 53, 214 e 236).

Mas a norma regula o comportamen-to humano como um dever-ser, no sentido de prescrever (comandar) ou permitir con-dutas, e isso é o que faz do direito uma “or-dem normativa da conduta humana”. Nesse dever-ser da conduta é que está o conteúdo das normas, acrescido de seus efeitos. Uma conduta é prescrita ou permitida mediante coação estatal, que é exercida através da sanção. Esta última compreende prêmio e castigo como o “motivo da conduta social-mente desejada”. Este é o elo de ligação do

direito e do Estado, entendido como ordem social idêntica ao direito ou a “personifi-cação da ordem jurídica” (1991: pp. 7, 13, 15, 27, 37 e 58; 1990: pp. 4-5).

A regulamentação da conduta, atra-vés das normas, ocorre de duas maneiras: 1) positiva: a) no sentido de obrigar a uma conduta; b) no sentido de conferir poder ou competência para produzir ou intervir na produção de normas; 2) negativa: condu-ta não regulada e nem proibida. Somente nesse sentido a norma atende a um valor: 1) positivo (ou “bom”): quando a conduta está de acordo com a norma; 2) negativo (ou “mau”): quando não está de acordo com ela. Assim, “a norma considerada como objetivamente válida funciona como medida de valor relativamente à conduta real” (1991: pp. 16-18).

Esse valor é correlato ao conceito de norma, mas diverso de sua ciência (TPD), que é objetiva, sendo de natureza humana, e não divina. Com ele apenas se quer dizer que a conduta de acordo com a norma é positiva (“boa”), e que a conduta contrária é negativa (“má”), como ponto de partida para a sanção (ibidem, pp. 20, 23 e 71).

Sendo a conduta regulada tanto posi-tiva quanto negativamente, não há espaço para as lacunas no ordenamento jurídico. A conduta negativa, ou seja, “o que não é juridicamente proibido é juridicamente permitido”, exclui qualquer possibilidade de o sistema de normas ser aberto a ausên-cias de normação da conduta (ibidem, pp. 200, 261-263).

2.1.4 As Lacunas e a Discricionariedade Judicial

Quando duas condutas não reguladas entram em conflito, entende-se que elas são igualmente permitidas e, por isso, qualquer decisão a respeito deve rejeitar a pretensão do autor da demanda, porque a ordem ju-

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rídica somente protege “interesses bem de-terminados” (ibidem, pp. 261 e 263).

Nesse caso, não se fala em lacuna, porque a ausência de uma norma geral so-bre uma conduta positiva autoriza a condu-ta negativa. Somente quando essa ausência é considerada “indesejável” pelo tribunal, “do ponto de vista da política jurídica”, por “não eqüitativa ou desacertada”, pode ele criar uma norma individual, via decisão, a partir de uma norma geral que lhe pareça correta/satisfatória/adequada/desejável/acertada. A isso KELSEN denomina de função criadora de uma norma individual, ou “margem de livre apreciação” na falta de norma geral, porque ela mesmo, quando existente, não pode prever todas as “par-ticularidades do caso concreto”. A norma jurídica geral é uma “moldura”, tanto mais larga quando autoriza simplesmente ao tri-bunal a criar a norma individual.

Portanto, somente existe discriciona-riedade judicial na falta de norma jurídi-ca geral, quando o tribunal considera essa ausência “injusta ou não eqüitativa”, “quer dizer, como não satisfatória”. Nesse caso, o tribunal recebe a competência para criar uma norma jurídica individual “ex novo de direito material”, que não tem índole legislativa, precisamente por se referir a uma norma individual, e não geral. Apenas quando o tribunal cria uma norma também geral é que ocorre uma “concorrência com o órgão legislativo”, representando uma “descentralização da função legislativa”.

Em resumo, o tribunal cria: 1) norma individual (como “direito material novo”): quando a norma geral prevê uma conduta negativa, ou seja, não tem seu conteúdo predeterminado por uma norma geral; 2) norma geral: quando a norma geral cria conduta positiva, ou seja, confere conteú-do predeterminado a uma norma individu-al, mas de modo não unívoco. Em ambos os casos, o tribunal gera um precedente,

que é ele mesmo uma norma geral, porque vinculante de decisões futuras e cujo ob-jetivo é unificar a jurisprudência (ibidem, pp. 216-268).

2.1.5 Direito Subjetivo e proteção da liber-dade mínima

A atuação do tribunal ocorre, ordi-nariamente, para a solução de problemas concretos, diante de “interesses bem de-terminados”, conforme visto acima. Nesse lugar comum, o tribunal está autorizado a criar uma norma individual, específica para o caso concreto.

Esses “interesses” podem ser tidos como direitos e, nessa qualidade, perten-centes à esfera jurídica de algum sujeito determinado? Em caso de resposta posi-tiva, está-se diante de um direito subjeti-vo? KELSEN responde a essas indagações enumerando os sentidos usuais em que um direito é tido como subjetivo: 1) como con-traposição a um dever; 2) como distinto de um “direito objetivo”; 3) como poder de conduzir-se de algum modo. Para ele, to-davia, um direito subjetivo é apenas a con-formação de uma conduta a uma norma, ou o “simples reflexo de um dever jurídico”. Nele não há um sujeito ativo, mas tão-so-mente um sujeito passivo, porque o bene-ficiário da conduta é apenas o objeto da própria conduta. O dever9 tem prioridade sobre o direito no positivismo, ao contrá-rio do direito natural, que afirma o oposto (ibidem, pp. 138-143 e 147).

Como decorrência, não existem di-reitos subjetivos, na qualidade de interes-ses pessoais, que possam ser extraídos da norma (direito objetivo). O direito subjeti-vo não é um interesse de direito material, mas “...apenas a proteção ou tutela desse interesse, por parte do Direito objetivo”, porque, diante de ofensa, há uma sanção que somente o Estado pode aplicar, através

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de suas autoridades e seus procedimentos previamente estabelecidos. O direito sub-jetivo, em resumo, é uma simbiose de um direito reflexo (reflexo de um dever jurí-dico favorável ao titular) com o direito de agir, no qual este último e a sua “essência”. Sem “ação” o direito é juridicamente irre-levante (ibidem, pp. 146-149).

KELSEN, portanto, ignora não ape-nas a existência de um direito no plano das relações materiais, chamando-o de “interesse”, como algo ainda incerto na sua existência e titularidade, como se afas-ta das teorias imanentistas do direito de agir, que encontram no direito material o próprio direito de ação: o objeto de toda obrigação é uma prestação de dar, fazer ou não-fazer alguma coisa, e o objeto dessa prestação é o poder que o credor tem de exigir do devedor essa mesma prestação, donde se segue que “a todo direito corres-ponde uma ação, que o assegura” (art. 75 do CCB revogado).

O direito de ação é uma garantia pro-cessual de um interesse, e não de um direi-to material insulado no patrimônio do autor em relação ao patrimônio alheio. Por isso as decisões criadoras de norma individual, na discricionariedade dos tribunais, são a criação, elas mesmas, de um direito mate-rial novo, de eficácia retroativa. Quem cria um direito material é a norma individual, e não a simples ocorrência do fato jurídico descrito no direito objetivo, porque aí se tem apenas um interesse, reflexo de um de-ver de conduta (direito reflexo). Ao mesmo tempo, uma norma geral pode ser também retroativa, hipótese em que não muda os fatos passados, limitando-se porém a mo-dificar o seu significado normativo (ibi-dem, pp. 14, 154-155 e 263).

Num quadro assim desenhado, ne-nhum “interesse” se põe sob total prote-ção contra as decisões políticas estatais, e nenhum titular desse “interesse” pode

afirmá-lo como um direito contra tais de-cisões, salvo um “mínimo de liberdade”. Essa “liberdade inalienável”, não inata ou natural, deriva da “limitação técnica” da ordem jurídica em condicionar toda a conduta humana: “fica sempre garantido, porém, um mínimo de liberdade, isto é, de ausência de vinculação jurídica, uma esfe-ra de existência humana na qual não pene-tra qualquer comando ou proibição”. Tra-ta-se das “liberdades constitucionalmente garantidas”, que limitam a competência do órgão legislativo (ibidem, pp. 47 e 242).

Em resumo: 1) na ordem jurídica positiva não existem direitos subjetivos, entendidos como posição jurídica material de vantagem desde sempre reconhecida; 2) existem interesses que somente se tor-nam direito material através de uma norma individual, criada por decisão judicial ou “resolução administrativa” (ibidem, pp. 17, 21, 147 e 231); 3) tais direitos são reco-nhecidos em caráter retroativo; 4) podendo as normas gerais ser também retroativas, dando significado jurídico novo aos fatos passados; 5) só existe direito subjetivo en-quanto reflexo de um dever de conduta e através do direito de ação, que é uma mera garantia de um interesse “bem determina-do”; 6) somente “o catálogo de direitos e liberdades fundamentais” (ibidem, p. 242) previsto nas constituições é limite à atu-ação normativa do Estado; 7) mas não é limite a um poder constituinte, especial-mente nos casos de revolução10.

3. O Positivismo de Hart

3.1 As críticas a Austim e a Kelsen

HERBERT L.A. HART publica o li-vro O Conceito de Direito em 1961, diri-gindo críticas a AUSTIM e a KELSEN.

AUSTIM é da corrente teórica im-perativa, segundo a qual o direito é uma ordem de autoridade, definido por “co-mandos” baseados numa ameaça. Em sua

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teoria, “... nada pode ser direito, a não ser se e quando tal tenha sido ordenado por alguém” (1986: p. 21, 25, 55 e 57). Já KELSEN teria sustentado que a norma tem qualquer conteúdo, e que a lei tem por conteúdo uma “cláusula condicionante” dirigida à autoridade para a aplicação da sanção (ibidem: pp. 44-45 e 223).

Tais teorias correspondem a uma concepção geral do direito, relativa à obri-gatoriedade de uma conduta, diversa de outras duas, quais sejam, do direito como obrigatoriedade moral, no sentido de jus-tiça, e do direito enquanto regra, isto é, como comportamento geral, como de re-gra ocorre (costume). Essas concepções suscitam, respectivamente, três questões: 1) sobre a diferença entre direito e ameaça; 2) sobre obrigações jurídicas e morais; 3) sobre regra e regra de direito (ibidem, pp. 10-14 e 18).

Para HART, diferentemente daqueles dois autores: I - a lei: 1) não é uma ordem ou se dirige a pessoas, senão genericamen-te; 2) tem caráter permanente; 3) suscita obediência geral; 4) é “operativa” quanto a direitos e deveres e, por isso, torna nu-los/ineficazes os atos contrários; II - as normas: 1) criam deveres: a) diretamen-te: normas criminais; b) indiretamente: normas que conferem poderes, que são fórmulas para criar deveres; 2) têm uma “função primária”11, consistente em de-signar comportamentos-padrão através de regras, que são aplicadas diretamente pe-los destinatários quando se conformam a elas, por lhes ser inteligíveis; III - a sanção pode ser subtraída sem eliminar o padrão12 inteligível de comportamento ou o que seja o próprio direito (diferentemente da teoria do direito como ordem baseada em amea-ças, que exige a vinculação de ambos); IV - a coerção é: 1) um termo de aproximação do direito e da lei, mas que é abalado pelo costume, que não a exige; 2) uma garan-

tia de obediência num sistema coercivo de “cooperação voluntária”; 3) onde essa “cooperação voluntária” é que cria a auto-ridade (ibidem, pp. 27-29, 38-39, 41, 43, 47 51, 53-54, 214-215, 217 e 294) .

Em resumo, HART critica a teoria do direito como ordem coercitiva nos seguin-tes pontos: 1) as ordens legais ou judiciais não são dadas exclusivamente aos destina-tários, como também aos emitentes (ex.: norma criminal); 2) as normas que confe-rem poderes facultam a criação de direitos e deveres, sem coagir; 3) os costumes são regras de direito que não contém coerção (ibidem, p. 57).

3.2 As regras de Direito

3.2.1 Primárias e secundárias

Para HART, as regras designam um comportamento-padrão a ser seguido, mas o que confere autoridade a elas é uma “co-operação voluntária” daqueles que devem aplicá-las (funcionários) e daqueles que devem segui-las/obedecê-las (cidadãos), o que pressupõe uma sociedade organizada juridicamente.

Numa sociedade sem regras oficiais (costume), por exemplo, são encontrados os seguintes defeitos: 1) incerteza: falta de texto escrito com autoridade e de proces-so para o julgamento; 2) caráter estático das normas: baixa e lenta mutabilidade; 3) ineficácia da pressão social difusa: falta de instância para perseguir a violação da nor-ma (vingança privada) (ibidem, pp. 102-103). Para obviá-los, um sistema jurídico numa sociedade organizada deve dispor de duas condições básicas: 1) a presença de regras de comportamento, válidas e obede-cidas em geral; e 2) a presença de regras de reconhecimento, que especifiquem os critérios de validade, alteração e de jul-gamento, aceitos como padrão público

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comum de comportamento oficial pelos funcionários e seguidos/obedecidos pelos cidadãos (ibidem, p. 128).

Na sua estrutura, as regras têm dois aspectos, a saber: 1) interno: a) como com-portamento regular e uniforme observado individualmente, em vista de um compor-tamento observado em geral por todos; b) modo como o indivíduo interpreta o seu próprio comportamento; 2) externo: sinal possível de um castigo (ibidem, pp. 65-66, 98, 100, 108, 151, 153 e 217-218).

Além disso, as regras têm dois níveis: 1) primário: regras que impõem deveres, ações comissivas ou omissivas de movi-mento ou mudança física; 2) secundário: regras que atribuem poderes, públicos ou privados, para criar novas regras primá-rias, extinguir ou modificar outras antigas, determinar a sua incidência ou fiscalizar a sua aplicação, ou seja, criar ou alterar de-veres ou obrigações. O direito, para HART, é a união das regras primárias de obrigação com as regras secundárias (ibidem, pp. 91, 104, 169 e 217-218).

3.2.2 De reconhecimento

A regra de reconhecimento é de na-tureza primária, e é identificada (regra de identificação) através de uma regra secun-dária, servindo para afastar as incertezas típicas de uma sociedade sem regras ofi-ciais (costumes)13 do sistema jurídico, com base em referências escritas/inscritas, com poder de autoridade. Esta última surge de uma “cooperação voluntária” (entre obedi-ência das regras pelo cidadão e aceitação delas pelos funcionários) e produz a idéia de sistema (ibidem, pp. 104-105).

Nessas regras de reconhecimento es-tão contidas duas afirmações: 1) interna: aceitação compartilhada de regras; 2) ex-terna: interpretação, pela autoridade (que se encontra em posição externa, de obser-

vador), sobre como aplicá-la (ibidem, p. 114).

O primeiro erro de KELSEN, para HART, foi encontrar o critério de vali-dade no aspecto externo, negligenciando o interno ou reduzindo-o ao primeiro. A norma pressuposta kelseniana encontra-se fora, do ponto de vista externo do direito, enquanto que a regra de reconhecimento está dentro do sistema, sendo que a vali-dade relaciona-se ao seu aspecto interno e não admite dúvida quanto a sua existência. Uma pressuposição representa a impossi-bilidade de provar essa existência, enten-dida como uma constatação fática, externa, de que há uma regra eficaz e passível de identificação. O segundo erro foi acreditar na exclusividade da norma pressuposta, enquanto que a regra de reconhecimento admite a concomitância de outras equi-valentes, criando entre elas hierarquia, subordinação e/ou derivação. O terceiro foi reduzir a eficácia à validade, quando a validade depende da eficácia apenas sob a ótica de sua utilidade, sendo possível a separação de ambas (ibidem, pp. 112, 115-116, 120-121, 123 e 249).

Uma regra de reconhecimento tem, assim, uma dupla perspectiva: 1) externa: existência (constatação fática) na prática efetiva do sistema; 2) interna: validade, do ponto de vista da identificação do direito, ou seja, de um “padrão público comum” de comportamento cooperativo (ibidem, pp. 123 e 127).

3.2.3 Regras como necessidade social do sistema jurídico, lacunas e discricionarie-dade

As regras são necessárias para que uma sociedade tenha um sistema jurídico organizado, a fim de superar os defeitos tí-picos de sociedades baseadas no costume (incerteza, imobilidade e ineficácia).

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Em sua aplicação, as regras são fe-chadas ou abertas. No primeiro caso, tem-se as regras aplicadas pelos próprios par-ticulares, sem intermediação oficial. No segundo, tem-se as regras aplicadas pelos “funcionários”/autoridades, com mobi-lidade de escolha oficial. Tal mobilidade existe por conta da “textura aberta” das regras, que podem conter “indeterminação de finalidade”, ou seja, uma lacuna de cir-cunstâncias não previstas nas regras gerais (ibidem, pp. 141-144).

Enquanto KELSEN entende inexistir lacunas no plano lógico-jurídico, embora admita que a norma geral não possa prever todas as “particularidades do caso concre-to”, HART afirma a lacunosidade das re-gras, concordando com a discricionarieda-de judicial, capaz de supri-las. Discordam, portanto, não quanto à discricionariedade, mas quanto a sua origem: para o primeiro, ela surge da competência do tribunal para criar a norma individual, até mesmo na falta de uma norma geral “satisfatória” ou “adequada”; para o segundo, ela emerge da lacuna propriamente dita da regra geral.

Nessa “textura aberta”, o direito pode ser criado através da interpretação, como no exemplo da ponderação constitucional de valores. De acordo com HART, “uma decisão judicial, especialmente em ques-tões de alta importância constitucional, envolve freqüentemente uma escolha entre valores morais e não uma simples aplica-ção de um único princípio moral proemi-nente...”. Tal interpretação, todavia, deve ser razoável, assim entendida aquela que não cria injustiças ou ofende “princípios morais assentes”. Discricionariedade, por-tanto, não significa total liberdade de de-cidir, mas “imparcialidade e neutralidade ao examinar as alternativas; consideração dos interesses de todos os que serão afecta-dos; e preocupação com a colocação de um princípio geral aceitável como base racio-nal da decisão” (ibidem, pp. 220-221).

3.3 Direito e moral

Conforme visto acima, a interpreta-ção pode criar o direito ao suprir as lacunas deixadas pela “textura aberta” das normas, mas essa criação há de ser razoável, no sentido de justa/eqüânime e moral.

Entre direito e moral, por conseguin-te, há uma comunicação que HART não rejeita, ao contrário de KELSEN, porque a moralidade residiria na própria origem da sociedade regulada por regras. Nessa ori-gem, as regras teriam sido criadas com o fim de garantir a sobrevivência do homem, por intermédio de “arranjos sociais” para a contínua obediência das regras mediante a coerção aos recalcitrantes. Esses “arranjos sociais”, ao mesmo tempo em que permi-tem uma existência continuada da própria sociedade, são um dos elos de ligação en-tre direito e moral, ao lado de dois outros, a saber: 1) circunstâncias cotidianas da sociedade sobre o seu conceito de certo e errado; 2) compreensão dessas circunstân-cias de forma simples a todos os adultos (ibidem, pp. 185 e 208-210).

HART não desconhece a diferen-ça entre direito e moral, cujas distinções enumera em quatro critérios formais, mas rejeita que direito e moral não possam ter eventualmente o mesmo conteúdo, como KANT e KELSEN o fazem, ao separar o direito e a moral, atribuindo o primeiro a “comportamentos externos”, ou seja, in-diferentes aos motivos e intenções de sua ocorrência e sujeitos a sanção, e o último a comportamentos internos, isto é, relativos à boa-vontade, às intenções adequadas ou ao motivo apropriado pelos quais ocorrem, desprovidos de sanção. Onde eles realmen-te estão separados é na validade, porque o direito, nesse ponto, não pressupõe a moral (ibidem, pp. 187 e 230)14.

Uma das relações entre direito e mo-ral está presente da regra da irretroativida-de, porque a adequação a uma regra exige

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prévio conhecimento e oportunidade de obedecê-la, de modo que a regra retroati-va revela-se amoral, por suprimir qualquer capacidade de obediência a ela (ibidem, pp. 223-224 e 228).

3.4 Direitos individuais / subjetivos cons-titucionais.

Sendo a regra da irretroatividade uma das mais importantes conquistas do estado de direito e do estado constitucional con-tra o arbítrio legislativo, pode-se dizer que ela se inscreve nos conceitos histórico de direito individual e dogmático de direito subjetivo. Tal regra diz, em essência, que: 1) nenhuma lei pode ser criada com efeito retroativo, com o fim de prejudicar os titu-lares de direitos; 2) somente as retroações benéficas aos indivíduos podem existir; 3) as leis vigoram e são eficazes para o futu-ro; 4) por conseqüência, os direitos gera-dos pela lei passada devem ser respeitados pela lei nova.

Trata-se, evidentemente, de séria li-mitação ao poder legislativo ordinário de criar normas ex novo no ordenamento, que HART atribui ao problema da titularidade do próprio poder nas democracias consti-tucionais. Nelas, diversamente da sobera-nia absoluta e ilimitada, o poder legislativo é limitado porque exerce sua competência em nome do eleitorado, de tal maneira que, acaso viole essa regra de capacidade, terá exercido poder nulo e, portanto, inválido. Mas o eleitorado não é, em si mesmo, uma “outra pessoa”, e tampouco os eleitores são “indivíduos na sua capacidade oficial”, sendo antes retórico dizer que alguém obe-dece a si mesmo ou às próprias ordens. Esse efeito retórico é dúbio, porque sugere simultaneamente que alterações legais em prejuízo do eleitorado representam uma contradição racional, desde que ninguém legisla em seu próprio desfavor, ao mes-mo tempo em que podem ser justificadas

pretensamente a favor da “vontade geral” rousseauniana (ibidem, pp. 77-81, 84 e 86).

Citando expressamente o caso dos EUA, HART diz que tal limitação é ali de ordem substantiva,

“... onde a divisão de poderes entre o governo central e os Estados membros, e também certos direitos individuais, não podem ser alterados pelos processos ordi-nários de legislação. Nestes casos, um acto legislativo, quer do órgão legislativo esta-dual, quer do federal, que pretenda alterar ou seja incompatível com a divisão federal dos poderes ou com os direitos individu-ais deste modo protegidos, é susceptível de ser considerado ´ultravire´ e declarado juridicamente inválido pelos tribunais, na medida em que entre em conflito com as disposições constitucionais” (ibidem, pp. 80-81).

Tudo isso tem relação com a idéia da continuidade do poder, ou seja, com a tran-sição de um legislador /governante a outro, que deve começar antes mesmo da passa-gem, a fim de se manter a obediência para o futuro (ibidem, pp. 63 e 67). Logo, ocor-rendo mudança da ordem, com eventual ofensa a direitos passados, pode-se afirmar a ocorrência de descontinuidade, com vio-lação do princípio, já que isso pode gerar desobediência e, com ela, ilegitimidade das novas ordens.

Sendo a norma de reconhecimento aquela que confere validade à ordem jurí-dica de um país determinado, e derivando a validade de um “padrão público comum” de comportamento cooperativo voluntário, no sentido do cidadão obedecer às regras e dos funcionários aceitá-las na sua aplica-ção, pode-se encontrar na regra da irretro-atividade uma regra de reconhecimento no plano infra-constitucional, na direção de limites hierárquicos entre a constituição, como salvaguarda de direitos, e o poder legislativo.

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Tal regra de reconhecimento, aqui interpretada desse modo, coloca-se abaixo da regra de reconhecimento última, que, para HART, acha-se nas cláusulas de reser-va ou limites ao poder de revisão constitu-cional dirigidos à legislatura ordinária nas democracias constitucionais. Esses limites seriam o critério supremo e exclusivo de validade do direito interno, como ocorre com os EUA (ibidem, pp. 118, 220 e 250).

Embora essa não seja a realidade da Inglaterra (país de origem do autor em es-tudo), por não impor restrições formais à competência do poder legislativo supremo, o caso americano autoriza uma analogia muito próxima ao estado constitucional brasileiro, de forma que tudo o que foi dito para os EUA serve em grande medida para o caso do Brasil no pensamento harteano.

4. O Pós-Positivismo de Dworkin

4.1 Localização do pensamento de Dworkin

Na seqüência do positivismo de HART, DWORKIN empenha-se em criticar não apenas o positivismo jurídico, em espe-cial na versão do poder discricionário dos juízes, como também o utilitarismo, quanto ao privilégio dos interesses coletivos sobre os individuais. Essas duas versões teóricas do direito não levaram o direito a sério, quer dizer, o direito dos indivíduos, ao sobrepor a ele a norma do estado ou a estrita obediên-cia às leis estatais.

A sua proposta, em resumo, é a de apresentar o direito como uma integrida-de política, vale dizer, como um conjunto de princípios que a comunidade impõe à maioria no sentido de respeitar os direitos individuais, enquanto decisões políticas passadas. Tais direitos assumem então uma natureza moral, que o governo deve res-peitar diante de seu compromisso também moral de agir conforme princípios.

Diante disso, a contra-crítica positi-vista, de acordo com A. CASALMIGLIA, chegou a dizer que a crítica era mais apa-rente do que real, pondo-se ao lado do positivismo; ou que uma pequena modi-ficação na regra de reconhecimento seria suficiente para superar a crítica; ou mesmo que o pensamento crítico era neojusnatura-lista15. Mas DWORKIN não se perfila com o positivismo, nem parece se contentar com uma simples maquiagem da regra de reconhecimento e tampouco se converte a um novo jusnaturalismo. Destinando seu tempo às críticas ao positivismo e ao utili-tarismo, ela retorna ao liberalismo político e reintroduz no direito o elemento moral, através de uma idéia sistemática que não põe os princípios do lado de fora do orde-namento. Se nesses traços não se pode ver mais o positivismo, que propõe a separa-ção entre o direito e a moral, e tampouco o jusnaturalismo, que admite uma morali-dade extra e supra-ordenamento, a quali-ficação de neopositivista parece ser mais adequada a DWORKIN, ao menos até que outra melhor lhe possa ser imputada.

J.W. HARRIS (1997: pp. 188-190), por exemplo, chama DWORKIN de anti-positivista, e enumera o seu pensamento em três fases. A primeira delas, presente na edição original de Taking Rights Seriously, destinou-se à crítica à HART, no sentido de que o direito não é um sistema de re-gras determinadas por seu pedigree e que supostamente autoriza aos juízes a deci-direm discricionariamente nos casos não regulados. Na segunda, contida na reedi-ção do mesmo livro em 1978, nasce o juiz HÉRCULES, para a solução dos hard ca-ses segundo uma perspectiva holística, ou seja, conforme as melhores políticas. Na terceira, com o livro Law´s Empire (1986), DWORKIN introduz o holismo de HÉR-CULES a uma “interpretação construtiva”, como num “romance em cadeia”, de deci-

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sões e leis passadas aos direitos que sejam objeto de decisão atual.

A edição aqui utilizada de Taking Rights é uma tradução espanhola de 1984, que condensa, portanto, as duas primeiras fases. Para a terceira fase será utilizada a tradução brasileira do livro Law´s Empire, da Editora Martins Fontes (1999), ao lado da edição inglesa de 1998, da Hart Pu-blishing (1998). Tal seqüência não exclui a introdução de outros textos do autor, nos pontos que sejam necessários para esclare-cer melhor as suas idéias.

4.2 Levando os direitos a sério.

4.2.1 A crítica ao Positivismo e ao Utili-tarismo

De acordo com DWORKIN, o posi-tivismo jurídico, que tem início com AUS-TIN, no séc. XIX, e termina elaborado por HART, é a parte conceitual da teoria utili-tarista, sendo, portanto teorias dependen-tes. A primeira reduz a validade do direito às normas positivas, rejeitando a idéia da “vontade geral” na sua criação, enquanto que a última confere ao direito a função de “servir ao bem-estar geral e nada mais”, rejeitando a existência de direitos indivi-duais contra o Estado e prévios ao direito legal (op. cit., pp. 31, 34, 36, 42, 64-65, 164).

Tal visão do direito não leva os direi-tos a sério, porque não os considera como fonte e limite da autoridade coletiva. Os direitos individuais são não apenas a fonte e o limite dessa autoridade, simultanea-mente, como trunfos políticos que não po-dem ser prejudicados por metas coletivas, sendo derivados do direito abstrato à igual consideração e respeito por parte do Esta-do (ibidem, pp. 37 e 41).

Em resumo, as idéias positivistas podem ser enumeradas do seguinte modo:

a) o direito é um conjunto de normas co-ercitivas de comportamento; b) identifi-cadas por sua origem/competência para a sua criação, e não com o seu conteúdo; c) critério que determina a validade de uma norma em relação a outra; d) esse direito é aplicado por funcionários/juízes com discricionariedade para interpretá-lo nos casos de lacuna e nos quais as normas não são claras; e)a obrigação traduz-se no res-peito que os terceiros devem ter em face do direito de alguém (ibidem, pp. 65-66).

4.2.2 Princípios, diretrizes e normas

O positivismo jurídico afirma que as normas são a via exclusiva do direito e que ele se reduz a um comando condicionan-te de comportamentos. Mas, em verdade, na sua aplicação judicial, especialmente nos casos difíceis (hard cases), as normas funcionam como princípios ou diretrizes políticas16, diante da necessária dimensão moral que se põe diante da interpretação jurídica, entre alternativas possíveis de decisão. DWORKIN lembra dois casos paradigmáticos em que as decisões foram tomadas mais em vista de princípios do que de normas expressas, a saber: a) caso Riggs v. Palmer - 1889, em que se negou o direito de herança a um neto que assas-sinou o avô para recebê-la antes da morte natural do instituidor, onde foi aplicado o princípio conforme o qual “ninguém pode beneficiar-se de sua própria torpeza”; b) caso Henningsen v. Bloomfield Motors Inc. - 1960, em que se reconheceu que a superioridade econômica de uma fábrica de veículos não pode impor aos consumi-dores uma limitação da responsabilidade do fabricante apenas à troca de peças de-feituosas, como também a gastos médicos e outras indenizações, onde teve lugar o princípio da proibição da lesão nos contra-tos (ibidem, p. 72).

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Para DWORKIN, os princípios são standards de exigência de justiça, eqüida-de ou qualquer outra dimensão moral, en-quanto que as diretrizes são standards que propõem objetivos políticos, econômicos ou sociais de uma comunidade (ibidem, p. 72).

Princípios, portanto, são diferentes das normas, nos seguintes pontos: a) os princípios não se excepcionam mutua-mente, como as normas podem ser umas com as outras; b) os princípios não esta-belecem as condições de sua aplicação, como as normas; c) não definem deveres específicos, como as normas (ex.: reco-menda a conformidade de um negócio ao justo ou não demasiadamente oneroso); d) princípios estão sujeitos a cálculo de im-portância, quando um colide com outro, ao contrário das normas, cujo conflito é resolvido pela hierarquia ou pela regra la-ter in time. Como exemplo dessa distinção, DWORKIN cita duas interpretações da Primeira Emenda e da 1ª Seção da Sher-man Act: a) Primeira Emenda: vista como norma, qualquer limitação à liberdade de expressão é inconstitucional; vista como princípio, admite que outro princípio mais importante a excepcione; b) 1ª Seção da Sherman Act: todo contrato que restringe o comércio é nulo. Tratada pela jurisprudên-cia como norma, mas, desde que a exceção seja razoável, é tratada como princípio. Se se tratasse de uma diretriz, admitiria limi-tação sem pesquisa e sua infração à razoa-bilidade (ibidem, pp. 77-80).

4.2.3 Teoria da Discricionariedade Judi-cial

DWORKIN afirma que os princípios podem ser tomados em três sentidos dife-rentes, a saber: a) frágil 1: uma autoridade impõe standards de decisão a outra (pre-cedente), mas o sujeito passivo/auditório

desconhece os standards da discrição; b) frágil 2: a decisão não está sujeita a revi-são; é a última palavra; c) forte: a decisão não está vinculada a standard imposto por qualquer autoridade; trata-se de liberdade sem limites (ibidem, pp. 84-85).

Quando os positivistas tratam a dis-cricionariedade como algo que se aplica “por princípio” na falta de uma norma clara, dão à discrição o segundo sentido. Quando dizem que os princípios são obrigatórios, dão o terceiro sentido. DWORKIN susten-ta o primeiro sentido, a não ser que os prin-cípios sejam obrigatórios para o juiz. Se o juiz modifica ou deixa de aplicar a norma pela interpretação, é porque a própria nor-ma não lhe é obrigatória, prevalecendo en-tão o terceiro sentido. Para isso, o juiz po-sitivista sustenta oportunisticamente que: 1) a mudança favorece um princípio; 2) o que se põe no lugar são princípios standar-ds que não se apartam do positivismo. Em todo caso, a escolha pelos juízes de “prin-cípios” que substituam ou modifiquem as normas representa a sua escolha caracterís-tica (ibidem, pp. 87, 90-91 e 93).

O problema positivista é que, asso-ciando o direito às normas ou a um sistema normativo, não aceita um princípio como categoria à parte. Contraditoriamente re-cusa que seja um “direito superior” ao or-dinário, admitindo que seja um standard extra-jurídico de livre escolha do juiz. Por isso, entende DWORKIN que “a discri-ção...não existe, a não ser como a área que deixa aberta um círculo de restrições que a rodeia”. Ela só pode existir no contexto de uma decisão (que envolve standards de racionalidade, justiça e eficácia) sujeita a normas estabelecidas para ela por uma au-toridade (ibidem, pp. 83-84, 86 e 92-94).

Quando o positivismo aceita a discri-cionariedade exsurgem de imediato duas conseqüências: 1) na ausência de uma nor-ma clara, o direito das partes é uma ficção;

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2) então, o juiz cria novos direitos retroa-tivamente. DWORKIN assevera que isso não passa de retórica, porque, no caso de ausência de norma clara, os direitos das partes é que fornecem os standards da de-cisão do juiz, e não a sua escolha arbitrária da norma-tampão. Porque é um dever do juiz encontrar os princípios a partir dos di-reitos nos hard cases, e não de criá-los na ausência de norma clara (ibidem, pp. 146-147).

4.2.4 Teoria da Função Judicial e “Argu-mento da Democracia”

Uma outra teoria positivista/utilita-rista diz respeito à função judicial, segun-do a qual a lei subordina a ação do juiz mediante a adjudicação de competências expressas. Tal teoria pretende afastar a discricionariedade judicial, com mais dois argumentos retóricos: 1) numa democra-cia, juízes não são eleitos e, não estando sujeitos à responsabilidade legislativa, não podem criar a norma; 2) se criam o direito, o fazem então retroativamente, em detri-mento de uma das partes que, ao tempo de sua ação, não estava sujeita a qualquer nor-ma (ibidem, pp. 147, 150 e 180).

O primeiro argumento é chamado por DWORKIN de “argumento da demo-cracia” e, embora esteja certo em limitar a discricionariedade, haja vista que o juiz estaria dando suas próprias convicções em matéria de moralidade política, levado às últimas conseqüências também surge como um modo de negar a existência de direitos contra o Estado. Subjazem a tal argumento duas versões, uma mais forte e outra mais fraca. A primeira sustenta que o desacor-do entre titulares de direitos concorrentes seja resolvido pela sorte do processo po-lítico, com exclusão do judiciário; numa frase: “...sostiene que el proceso político orgánico asegurará com más certeza los

derechos genuinos de los hombres si no se ve obstaculizado por la intrusión artificial y racionalista de los tribunales”. A segunda sustenta que os direitos devem passar pelo crivo da aceitação social. A primeira ver-são afirma, na verdade, a inexistência de direitos contra o Estado, sendo certo que:

“...los derechos en contra del Estado son afirmaciones que, si se las acepta, exi-gen que la sociedad se avenga a institucio-nes que quizá no se adecuen tan cómoda-mente a ella. Lo esencial de una afirmación de derecho, incluso en un análisis de los derechos tan desmitologizado como el que estoy haciendo, consiste en que un indivi-duo tenga derecho a ser protegido contra la mayoria incluso al precio del interés ge-neral”.

O único modo possível de se enten-der o “argumento da democracia”, confor-me DWORKIN, é concebê-lo como uma proibição aos detentores do poder político quanto a serem juízes exclusivos de suas próprias decisões (ibidem, pp. 199, 225 e 228-229).

Os princípios teriam a virtude de afastar aquelas duas objeções propostas pela teoria em exame contra a discriciona-riedade, porque, no primeiro caso, podem atendem aos interesses em jogo, indepen-dentemente do contexto político de criação de uma lei, e, no segundo, porque os prin-cípios são compartilhados tacitamente e, portanto, seria injusto o condenado tomá-los como surpresa. De modo que uma teo-ria do direito tem de incluir os princípios, a fim de levar a sério os direitos das pessoas (ibidem, p. 152).

4.2.5 A Teoria dos Direitos de Dworkin

Uma tal teoria considera que “as decisões judiciais impõem direitos políti-cos existentes”, colocando-se entre duas moralidades: a pessoal e a institucional. A

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norma (instituição) é um elemento do juízo político dos juízes (pessoa), e os direitos políticos são uma criação histórica e mo-ral, e dependem da prática das instituições. O que se exige é que a decisão possa se justificar razoável e coerentemente, sem ter de se repetir em todas as ocasiões se-melhantes (ibidem, pp. 154-155)17.

Um direito político, conforme DWORKIN, além de ser algo concreto,

“...es una finalidad política individu-alizada. Un individuo tiene derecho a cierta expectativa, recurso o liberdad si [tal cosa] tiende a favorecer una decisión política [en virtud de la cual] resultará favorecido o protegido el estado de cosas que le permita disfrutar del derecho, aun cuando con esa decisión política no se sirva a ningún otro objetivo político, e incluso cuando se lo perjudique...”.

Em resumo, “los individuos tienen derecho a que se hagan respetar de manera coherente los principios en que se basan sus instituciones” (ibidem, pp. 159, 171 e 203).

A teoria dos direitos apóia-se em três bases: 1) os direitos individuais são distin-tos dos objetivos sociais: os direitos são descritos por princípios, enquanto finalida-des políticas individualizadas e concretas, e os objetivos são descritos por políticas, enquanto finalidades genéricas e abstratas, de tal modo que “de la definición de un de-recho se sigue que no todos los objetivos sociales puden anularlo”; 2) os precedentes judiciais estão ligados à história institucio-nal e podem ser alterados se injustos: eles são dotados de uma “força gravitacional” sobre os casos posteriores, que exige eqüi-dade18 de tratamento entre casos semelhan-tes; 3) juízes formulam juízos de moralida-de política sobre os direitos dos litigantes: os direitos individuais são direitos morais que podem ser opostos à maioria, inclusive contra o “interesse geral”, ao mesmo tem-

po em que “...la Corte no tiene derecho a imponer a la nación su propria visión de lo que es el bien social” (ibidem, pp. 157-159, 161-162, 184-185, 211-212, 223, 229, 230, 232-233).

4.2.6 O papel do Juiz Hércules

Para formular juízos de moralidade política sobre direitos individuais de índole também moral, adequar com eqüidade os precedentes aos casos novos e reconhecer os princípios como manifestações morais da comunidade, DWORKIN resolve pa-rir o juiz HÉRCULES, um “juiz filósofo” capaz de “...elaborar teorías sobre qué es lo que exigen la intención de la ley y los principios jurídicos”, e “...dotado de habi-lidad, erudición, paciencia y perspicacia sobrehumanas...” (ibidem, p. 177).

Esse superjuiz (ou super-homem) deve, em resumo: 1) limitar a “força gravi-tacional” dos precedentes aos argumentos de princípios neles contidos; 2) supor que a decisão precedente baseada no direito cos-tumeiro incorpora princípios, sendo essa a “...enunciación metafórica de la tesis de los derechos”; 3) supor que o sistema é com-pleto e “...construir un esquema de prin-cipios abstractos y concretos que ofrezca una justificación coherente para todos los precedentes de derecho consuetudinario e...para las estipulaciones constitucionales y legislativas”; 4) admitir que a história institucional pode se mostrar inadequada e, portanto, sujeita a mudança (ibidem, pp. 186-190 e 196).

Na sua atividade, HÉRCULES resol-ve um hard case a partir de suas convicções políticas e do direito posto em jogo. Tais convicções pessoais somente são utiliza-das se HÉRCULES puder justificá-las con-forme as “tradições populares”, ou seja, de acordo com a “...concepción particular de la moralidad comunitaria...”, combinando

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então as moralidades pessoal e institucio-nal (ibidem, pp. 202-203 e 205-206).

Enfim, “la técnica de Hércules es-timula al juez a que formule sus proprios juicios sobre los derechos institucionales” (ibidem, p. 208).

4.2.7 Significado dos direitos levados a sério

Para DWORKIN, direito e moral são fundidos pela constituição. É o que ocorre, por exemplo, com o controle de constitu-cionalidade de leis que violem o princípio da igualdade. Nesse contexto é que se diz que a constituição define os direitos indi-viduais como direitos morais protegidos da maioria, sejam as estipulações constitu-cionais precisas ou vagas, porque “...hacer que la mayoría sea juez en su propia causa parece incongruente e injusto. Es decir que los princípios de equidad no hablan en fa-vor del argumento de la democracia, sino en su contra” (ibidem, pp. 211-212, 223 e 230).

Direitos morais são direitos funda-mentais que não podem de regra ser impe-didos em seu exercício, nem mesmo a pre-texto de se atender a uma “utilidade geral”, isto é, de se atender a mais benefícios do que danos. Apenas em dois casos excep-cionais tais direitos podem ser limitados: 1) quando direitos constitucionais concor-rem entre si, isto é, onde há conflito entre direitos individuais19, hipótese em que o Estado pode limitar um dos dois em favor do mais importante; 2) quando o Estado se encontra em estado de guerra, circunstân-cia que autoriza a censura da liberdade de expressão, desde que haja “autêntica emer-gência” (ibidem, pp. 282-290)20.

DWORKIN considera que entre os direitos individuais e os interesses cole-tivos não existe equilíbrio propriamente dito. Entre a restrição de direitos e a sua

ampliação o Estado deve escolher a últi-ma alternativa, por gerar um custo social menor. Serve de exemplo o caso do pro-cesso criminal, em que se prefere libertar um suspeito do que condenar um inocente (ibidem, pp. 295-296 e 299).

Os direitos são levados a sério a partir de duas idéias mínimas: dignidade humana e igualdade política. Significa um dever do Estado de seguir uma teoria co-erente sobre os direitos dos cidadãos e de ser congruente com as ações que professa nesse sentido. Em resumo, levar os direitos a sério representa: 1) o respeito do Estado ao direito de resistência dos cidadãos con-tra decisões que restrinjam direitos injusta-mente; 2) a impossibilidade de os direitos individuais serem anulados por razões de “bem geral”; 3) as normas básicas não de-vem ser a lei do conquistador, ou da “clas-se dominante” sobre a “classe dominada”, como em MARX; 4) “la institución de los derechos...representa la promesa que la mayoría hace a las minorías de que la dig-nidad y la igualdad de éstas serán respeta-das” (ibidem, pp. 278, 295 e 302-303).

4.3 O império do Direito.

4.3.1 Crítica ao Convencionalismo e ao Pragmatismo

Introduzindo em sua teoria do direito a idéia da integridade (moral), DWORKIN enfrenta as correntes do direito america-nas, por ele chamadas de convencionalis-mo e de pragmatismo.

Em resumo, o convencionalismo en-tende que as interpretações são convenções renováveis e, portanto, não há respeito pelo passado. Apresenta-se em duas formas, a saber: a) moderado: a.1) o direito é tudo o que estiver nas “extensões” implícitas de uma comunidade; a.2) nega a lacuna, por buscar na ambigüidade das convenções

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incompletas uma resposta, ainda que po-lêmica; a.3) não promove o ideal das “ex-pectativas asseguradas”, ou seja, padrões reconhecidos para o uso da força coletiva; b) estrito: b.1) apenas a lei e o precedente são convenções; b.2) pode ser aceito como concepção do direito, mas não o modera-do; b.3) não resolve o problema da lacu-na ou da falta de norma clara, a não ser através da discricionariedade, cujo poder de alterar o direito já existente é limitado pela necessidade de coerência entre o pas-sado e o futuro; b.4) o intérprete não deduz do objeto concepções próprias; b.5) a for-ça coletiva é usada contra um direito in-dividual quando a própria decisão política passada (DWORKIN, 1999: p. 145)21 que o criou o autoriza, a partir da interpretação consensual sobre o que foi tal decisão; b.6) explica de que maneira o conteúdo de de-cisões políticas do passado pode tornar-se explícito e incontestável. b.7) admite toda-via a mudança da convenção; b.8) rejeita princípios morais presentes, ao afirmar que o objetivo e o princípio estão nas conven-ções passadas; b.9) uma emenda à Cons-tituição, no sistema dos EUA, pode alte-rar uma convenção firmada pela Suprema Corte; b.10) na falta de uma convenção o juiz pode criar/reconhecer direitos através de uma convenção nova, de acordo com aquilo que o legislador faria ou em nome do povo, com o mínimo de suas próprias convicções políticas e morais; b.11) um exemplo de convencionalista dessa jaez é RAWLS (ibidem, pp. 118-119, 141, 145-147, 152-155, 157, 162, 170-171, 177, 254 e 256).

Já o pragmatismo compreende, em resumo, que: a) discricionariedade22 judi-cial também não respeita o passado e pro-põe soluções para o futuro da comunidade; b) não há direito até que a decisão assim o diga; c) decisões políticas do passado não justificam a jurisdição; d) juízes têm liber-

dade de decidir conforme os seus pontos de vista, mas sem aceitar que um direito individual contravenha o interesse da co-munidade; e) exige contemporaneidade da lei e do precedente; f) em caso de lacuna ou falta de norma clara, uma decisão nova é concebida, sem alusão ao passado (ibi-dem, pp. 119, 185-187, 189, 194-195).

4.3.2 Direito como integridade

Contraposto a tais correntes, o direito como integridade considera que: a) a vin-culação ao direito beneficia a sociedade, criando previsibilidade e eqüidade formal e respeitando o direito e responsabilidades como decisões políticas passadas; b) é ne-cessário combinar elementos do passado e do futuro: “...começa no presente e só se volta para o passado na medida em que seu enfoque contemporâneo assim o determi-na”; c) o presente, ou seja, é “presentista” de parâmetros passados em seu status e conteúdo; d) é construtivo no sentido do “presentismo” (“romance em cadeia”): d.1) é contrário à “restrição temporal”, conforme a qual “o significado de uma lei está fixado no ato inicial de criação”, por-que HÉRCULES interpreta a história em movimento; d.2) a lei é uma “...decorrên-cia do compromisso atual da comunidade com o esquema precedente de moral polí-tica”; e) os juízes são simultaneamente au-tores e críticos; f) na seqüência dos direitos associados a precedentes, o juiz deve dar continuidade ao “romance”, através de sua opinião acerca da moral política23, e não de sua opinião “estética” (para si, exclu-siva) ou da opinião do legislador; g) esse é o papel de HÉRCULES24; h) o direito é um conjunto coerente de princípios sobre a justiça, a eqüidade e o devido processo legal formal= “comunidade de princípios”; “O direito é uma questão de direitos de-fensáveis no tribunal”; i) envolve uma in-

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terpretação histórica substancial dos casos passados (ibidem, pp. 119-120, 164, 186, 274-276, 286-287, 291-294, 316, 380, 400, 405, 413, 415-417, 419, 452, 473, 478, 482-483 ; 286, 293, 400 e 405).

4.3.3 Direitos individuais como uma “questão de princípio”

Nos casos difíceis o juiz se põe entre o direito e a moral política, assim como em casos novos, que são então decididos como uma “questão de princípio”. Os direitos in-dividuais são exemplo de uma “questão de princípio”, quando se afirmam contra o Estado e a nação. Eles são levados a sério pela Constituição, tanto para aqueles direi-tos explícitos como, principalmente, para os implícitos (ibidem, pp. 440-441, 450 e 455). A integridade se propõe a “descobrir normas [e direitos - ibidem, p. 450] im-plícitas” a partir das explícitas (ibidem, p. 261).

Os direitos individuais “...são trunfos capazes de influenciar...decisões políticas, direitos que o governo é obrigado a res-peitar caso por caso, decisão por decisão”. São direitos essenciais que não sucumbem nem a pretexto de se contribuir para o bem-estar geral, como, por exemplo, o di-reito de igualdade no voto, o direito a igual liberdade de expressão ou de consciência e o direito a indenização por dano (ibidem, p. 268).

A Constituição americana não outor-ga a interpretação dos direitos constitucio-nais a qualquer instituição majoritária e, como resultado, tornou-se mais justa do que seria em caso contrário (ibidem, pp. 426-427).

4.4 Direitos implícitos

Discutindo a célebre decisão da Su-prema Corte que reconheceu o direito da

mulher de decidir sobre o aborto (“auto-nomia procriativa”), DWORKIN desen-volve melhor a idéia de direitos implícitos (DWORKIN, 1992).

Para ele, o Bill é uma rede de princí-pios concretos e mais ou menos abstratos que tem por base os princípios da igual-dade e da liberdade, e que não exclui os direitos não enumerados, já que, do con-trário, os juízes somente poderiam aplicar aqueles ali previstos, coisa que não ocorre. Os direitos não enumerados são concreti-zados por princípios políticos, deduzidos do texto.

No caso brasileiro, essa conclusão é confirmada expressamente pelo texto da Constituição de 1988, no § 2º de seu art. 5º, que assevera que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princí-pios por ela adotados...”

5. O Direito humano como mediador en-tre o individual e o coletivo.

O positivismo jurídico, em todas as suas variações, confere privilégio exagera-do ao direito criado pelo Estado, colocando de lado os direitos individuais. O pós-po-sitivismo de DWORKIN resgata esse di-reito, colocando-o a salvo do coletivismo da maioria.

Tais extremos realçam dois pólos marcantes da teoria política moderna: o público e o privado. Esse bifrontismo é típico do período pós-revolucionário li-beral do final do séc. XVIII, porque, até então, todo espaço político era ocupado pelo absolutismo e por sua estrutura de privilégios. Na medida em que o poder se despersonaliza, saindo da pessoa física do Rei para a pessoa fictícia da “nação”25, surgem com maior nitidez dois espaços de interesses: o público, concentrado na “na-ção” e figurado pela representação política e pelo conseqüente princípio da maioria;

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o privado, expresso pela área econômica em que o estado civil não devia de regra interferir, por não ser agente da economia ou da riqueza, mas mero administrador da coisa pública.

No liberalismo clássico, essas esferas correspondiam a um amálgama contraditó-rio de idéias, por conjugar duas noções an-tagônicas a respeito do indivíduo e de seus direitos: a da “vontade geral” rousseaunia-na, que pressupunha a renúncia a todos os direitos, inclusive à vida, para o ingresso no estado de sociedade; e a da proteção da propriedade, de LOCKE, que a elege como produto do trabalho humano e, por-tanto, como algo que está no homem in-dividual (in re ipsa), precedente ao estado civil. Essa contradição não é nova, e levou BENJAMIN CONSTANT a denunciá-la, ao dizer que a liberdade individual, isto é, a exploração dos interesses privados sem a intervenção estatal, ocupava demasiada-mente o homem, privando-o da participa-ção política, o que teria como conseqüên-cias a renúncia a esse direito político e uma nova cisão entre os titulares de direitos e os titulares do poder: “o perigo da liberdade antiga estava em que, atentos unicamente à necessidade de garantir a participação no poder social, os homens não se preo-cupassem com os direitos e garantias in-dividuais...O perigo da liberdade moderna está em que, absorvidos pelo gozo da in-dependência privada e na busca de interes-ses particulares, renunciemos demasiado facilmente a nosso direito de participar do poder político” (1985: p. 23).

Também o neoliberalismo, mais re-centemente, acusou a mesma contradição, embora ele mesmo seja avesso a direitos imutáveis que emperrem uma ordem eco-nômica verdadeiramente livre (catalaxia) (HAYEK, 1980, p. 47-51).

O grande problema desse bifrontis-mo, além da contradição que ele carrega,

é a alternância exagerada entre os pólos. Assim, se o plano privado/individual foi exacerbado no liberalismo, o plano públi-co/coletivo foi levado ao outro extremo no estado social. Estando o estado social em crise de governabilidade, por desequi-líbrio entre as demandas sociais (imput) e a capacidade do governo em responder a elas (output) (BOBBIO, 1990: pp. 36, 60 e 126), pergunta-se agora acerca da sobrevi-da daqueles binômios.

BOAVENTURA DE SOUZA SAN-TOS, manifestando-se sobre essas dicoto-mias da modernidade, diz que elas apresen-tam duas características que as conduziram para o declínio: a polarização entre um ou outro extremo, de fases em fases históricas, e a falta de mediação entre esses extremos. Isso porque “...o déficit da capacidade de mediação exacerba a polarização das dico-tomias e, inversamente, esta última agrava o primeiro”. Como resultado, os pólos pas-sam a se aproximar, “...a tal ponto que cada um dos pólos tende a transformar-se no du-plo do pólo a que se opõe. Nesta medida, as dicotomias que subjazem ao projeto da modernidade tendem a colapsar e os movi-mentos de oscilação entre os seus pólos são mais aparentes que reais”. Como exemplo, BOAVENTURA menciona as contradi-ções do binômio Estado e Sociedade, que demonstram essa aproximação, a saber: a) o Estado é visto como inimigo da liberdade e, ao mesmo tempo, como agente de seu exercício; b) a separação entre economia e política (princípio do laissez-faire) não é rígida, porque: b.1) o Estado deve zelar pelo desenvolvimento econômico e pela expansão do mercado; b.2) dependendo da ótica, o interesse envolvido pode não ser estritamente privado ou público, como no caso das leis das SA´s inglesas do período de 1825 a 1865, “...consideradas por uns como um bom exemplo do ‘laissez-faire’, por eliminar as restrições à mobilidade do

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capital, e por outros, como uma nítida vio-lação desse mesmo ‘laissez-faire’, por con-ceder às sociedades comerciais privilégios que eram negados aos empresários indivi-duais”; c) mesmo no período da economia liberal, “...o Estado teve que intervir para não intervir”, porque as práticas políticas afetam necessariamente a capacidade do Estado de manter o seu desenvolvimento econômico (1991: ps. 268-282; ps. 269, 271 e 272).

Um mediador possível para a tensão gerada por tais binômios, em especial do Estado/Sociedade, são os direitos huma-nos, diante da capacidade de diálogo que eles favorecem. Isso exige, entretanto, que não se pretenda dar a eles qualquer feição universal que, em verdade, esconde a im-posição de uma cultura sobre outra. Se os direitos humanos estiveram sob violação no liberalismo e foram supostamente ga-rantidos no estado social, o maior risco que paira sobre eles, hoje, é a chamada globa-lização, porque ela, em verdade, não pas-sa da “...história dos vencedores contada pelos próprios”, sendo que “...o discurso científico hegemônico tende a privilegiar a história do mundo na versão dos vencedo-res”, de acordo com BOAVENTURA. Os direitos humanos mantêm uma dimensão nacional e cultural, porque as sociedades são multiculturais e, ao mesmo tempo, incompletas em suas culturas, de manei-ra que o único diálogo universal possível sobre os direitos humanos se faz através do reconhecimento de sua nacionalização e da incompletude das culturas nacionais, respeitando-se assim o pluralismo e o não extremismo de pólos.

Para demonstrar tal alegação, BOA-VENTURA indica quatro modos de globa-lização: 1) localismo globalizado, no qual um fenômeno local é globalizado com sucesso, como as multinacionais, o predo-mínio da língua inglesa e o fast food ame-

ricano; 2) globalismo localizado, no qual determinadas práticas internacionais afe-tam, condicionam ou modificam as condi-ções locais, como as zonas francas, o uso dos recursos naturais para o pagamento da dívida externa e o uso turístico de tesou-ros históricos; 3) cosmopolitismo, no qual outras entidades que não o Estado se co-municam em torno de interesses comuns, como as ONG´s e as relações sindicais internacionais; 4) “patrimônio comum da humanidade”, no qual se reporta a temas de interesse mundial, como a vida huma-na saudável na Terra, o meio ambiente ou a exploração do espaço. Neles, os direitos humanos são geralmente exemplo de um “localismo globalizado”, de imposição universal de cima para baixo, o que não respeita o pluralismo cultural e perpetua a discórdia em torno do assunto (2001: pp. 74-90).

Conceitualmente, os direitos huma-nos são o lado abstrato dos direitos chama-dos fundamentais ou, nas palavras de RO-BERT ALEXY, “direitos fundamentais são essencialmente direitos humanos transfor-mados em direito positivo”. Consideran-do-se, então, esses direitos fundamentais positivos como expressão da proteção do homem pelo direito positivo, segue-se que eles são assegurados no ambiente cultural de cada Estado onde são concebidos, num movimento de via contrária àquela que até mesmo ALEXY segue: o da validade uni-versal dos direitos humanos (1998: pp. 1 e 6). Essa validade deve ser entendida como exigência de um padrão universal de diá-logo, tal como proposto por BOAVENTU-RA, através da ampliação da reciprocidade cultural entre os Estados e da tolerância da diferença entre as culturas (op. cit., p. 89), e não como um padrão a ser imposto aos Estados.

Assim entendidos os direitos funda-mentais, enquanto direitos humanos posi-

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tivados, eles continuam mediando os pólos público e privado, em três relações possí-veis, indicadas por ALEXY: 1) de meio e fim: 1.1) direitos individuais como meio de um bem coletivo, como a propriedade como meio de obtenção de produtividade e desenvolvimento econômico; 1.2) bem coletivo como meio de um direito indivi-dual, como o direito penal encarado como a proteção do honesto/lícito contra o deso-nesto/ilícito; 2) de identidade: “un bien es exclusivamente un medio para derechos”, hipótese em que o bem coletivo perde o sentido; 3) de independência: tratam de objetos distintos e, portanto, são compatí-veis com os anteriores (2001: p. 110).

Trata-se do duplo dos pólos, naquela aproximação dos extremos anunciada por BOAVENTURA, já percebida no direito constitucional por J.J. GOMES CANOTI-LHO, quando diz que, “se o direito priva-do deve recolher os princípios básicos dos direitos e garantias fundamentais, também os direitos fundamentais devem reconhecer um espaço de auto-regulação civil, evitan-do transformar-se em ‘direito de não-liber-dade’ do direito privado” (CANOTILHO, 2001: p. 113).

Qualquer solução entre o positivis-mo e o pós-positivismo aqui analisados, portanto, será insuficiente, se se conside-rar as posições extremas a que chegam e, portanto, apenas uma teoria dos direitos humanos nacionais, positivados em direi-tos fundamentais típicos da cultura de cada Estado, poderá dar resposta à relação dos indivíduos, titulares de direitos privados, e o Estado, enquanto titular do interesse coletivo.

6. Conclusões

Em conclusão, pontua-se que:1) o positivismo kelseniano exclui da

norma qualquer conteúdo que não seja o condicionamento da conduta e, com isso,

transforma o direito em instrumento de do-mínio estatal contra os indivíduos;

2) disso decorre que os direitos mate-riais nascem apenas de normas individuais e, portanto, do ato de uma autoridade;

3) isso explica que o direito subjeti-vo, em tal teoria, existe apenas como direi-to de ação, ou seja, de provocação da tutela jurisdicional do Estado, cuja decisão cria ela mesma um direito material novo, no sentido de que ele não existia antes, sendo pois retroativa;

4) o positivismo de HART atenua o aspecto da dominação das regras estatais, ao prever uma cooperação de funcionários e cidadãos para a sua validade, mas man-tém o predomínio do direito do Estado sobre o direito individual, ao reconhecer a discricionariedade judicial como instru-mento de criação do direito das partes e, portanto, como algo que não pré-existia;

5) de qualquer modo, KELSEN e HART são concordes em fazer ressalvas a certos direitos de índole constitucional, a saber: o primeiro, às “liberdades consti-tucionalmente garantidas”, que limitam a competência do órgão legislativo; o segun-do, às cláusulas de reserva ou limites ao poder de revisão constitucional dirigidos à legislatura ordinária nas democracias constitucionais (regra de reconhecimento última);

6) DWORKIN, ao contrário, resgata os direitos individuais da teoria positivista e os põe a salvo da ditadura da maioria do utilitarismo, levando-os a sério, ou seja, defendendo que eles estejam presentes em princípios morais políticos que limitam o poder do Estado;

7) nesse sentido, os direitos individu-ais são vistos como trunfos contra a maio-ria, no sentido de serem um compromisso moral dela com os indivíduos contra con-tingências futuras obviamente não prevista ao tempo de sua aquisição;

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8) isso significa que os direitos são pré-existentes a qualquer decisão estatal sobre eles, de modo que a sua origem não está na decisão judicial, mas em decisão política passada que os instituiu;

9) o que explica que os juízes não po-dem ter poderes discricionários, sob pena de violação de direitos que eles não devem alterar, precisamente porque pré-existen-tes;

10) apesar disso, DWORKIN con-corda que os direitos individuais não são ilimitados, em dois pontos: 1) quando di-reitos constitucionais concorrem entre si, isto é, onde há conflito entre direitos in-dividuais, hipótese em que o Estado pode limitar um dos dois em favor do mais im-portante; 2) quando o Estado se encontra em estado de guerra, circunstância que au-toriza a censura da liberdade de expressão, desde que haja “autêntica emergência”;

11) nas duas teorias, positivista e pós-positivista, os extremos coletivo/público e individual/privado são limitados, mas sem qualquer mediação que os aproxime;

12) propõe-se que os direitos huma-nos, positivados em direitos fundamentais, sejam os mediadores de um diálogo entre extremos que a cada dia se aproximam e se transformam no duplo pólo do outro, no sentido de que nem o coletivo e nem o individual merece prevalência, dado o alto grau de interdependência entre ambos;

13) tais direitos fundamentais são, em essência, direitos individuais concebidos em um contexto histórico e em uma am-biência moral determinados e cambiantes, que somente podem ser alterados ou supri-midos em caso de alteração ou supressão dos elementos culturais de sua origem;

14) dentro deles, os direitos ínsitos ao ser humano, em si considerado, que ne-nhum direito positivo criou ou meramente reconheceu, devem ser afirmados como reserva de qualquer alteração, como prevê

a atual Constituição de 1988, ao conceber a “prevalência dos direitos humanos” nas relações internacionais do Brasil com os demais Estados (art. 4º, II);

15) assim sendo, para o ambiente cultural brasileiro, os direitos humanos são: 1) a pressuposição de sua obrigatorie-dade em KELSEN, ou seja, a nossa norma pressuposta; ou 2) a nossa regra última de reconhecimento de HART; ou 3) o nosso compromisso moral da maioria com os indivíduos em DWORKIN; e 4) o padrão cultural de respeito aos direitos contra as decisões políticas do Estado, como algo que é lhe prevalente.

REFERÊNCIAS

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NOTAS

1 No Prefácio da segunda edição, KELSEN pas-sa a tratar o direito não mais como uma teoria pura, mas como uma teoria geral do direito, mediante o desenvolvimento de “princípios” (?), admitindo que, com essa mudança, ela não abrange todos os fenômenos possíveis de inves-tigação. Sobre os tais princípios, todavia, não se encontra desenvolvimento no livro, a não ser o “princípio metodológico fundamental”, men-cionado de forma simples na sua abertura.2 Sobre a perspectiva holística: “...o conheci-mento do Direito - como todo conhecimento - procura apreender o seu objeto como um todo de sentido...” (p. 221).

3 KELSEN dá alguns exemplos do que seja a pressuposição: 1) p. 209: “Um pai ordena ao fi-lho que vá à escola. À pergunta do filho: por que devo ir à escola, a resposta pode ser: porque o pai assim ordenou e o filho deve obedecer às or-dens do pai. Se o filho continua a perguntar: por que devo obedecer às ordens do pai, a resposta pode ser: porque Deus ordenou a obediência aos pais e nós devemos obedecer às ordens de Deus. Se o filho pergunta por que devemos obe-decer às ordens de Deus, quer dizer, se ele põe em questão a validade desta norma, a resposta é que não podemos sequer pôr em questão tal norma, quer dizer, que não podemos procurar o fundamento de sua validade, que apenas pode-mos pressupor”; 2) p. 209: “numa comunidade social, numa tribo, vale a norma segundo a qual um homem que toma uma mulher por esposa tem de pagar ao pai ou ao tio da noiva um de-terminado dote. Se ele pergunta por que é que ele deve fazer isto, a resposta é: porque nesta comunidade desde sempre se tem pago o preço da noiva, quer dizer, porque existe o costume de pagar o preço da noiva e porque se pressupõe como evidente que o indivíduo se deve condu-zir como se costumam conduzir todos os ou-tros membros da comunidade”; 3) p. 215, como exemplo de um silogismo: “devemos obedecer às ordens de Deus. Deus ordenou que obedeça-mos às ordens de nossos pais. Logo, devemos obedecer às ordens de nossos pais”. Porque a norma fundamental é o “último fundamento de validade da ordem jurídica” (p. 50), e porque “o fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de outra norma” (ps. 205, 215-219), ela não passa de um recurso lógico e, portanto, a sua própria validade não pode ser posta em questão num esquema silogístico (p. 215). Isso evita a recondução da validade de uma ordem normativa “...a uma norma superior de ordem metajurídica” (p. 219).4 Na obra Teoria Geral das Normas, publica-da originalmente em 1979, KELSEN nega a qualificação hipotética da norma fundamental, chamando-a agora de uma ficção, “... que se distingue de uma hipótese pelo fato de que é acompanhada pela consciência ou, então, deve ser acompanhada, porque a ela corresponde a realidade” (1986: pp. 328-329).5 A isso KELSEN chama de princípio da infe-rência. (1990:, p. 117).

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6 KELSEN diz que a pressuposição alude à obe-diência aos preceitos criados pelo “autor” da constituição: “O ato criador da Constituição...tem sentido normativo, não só subjetiva como objetivamente, desde que se pressuponha que nos devemos conduzir como o autor da Consti-tuição preceitua” (ibidem: p. 9). Mais adiante, diz que a norma pressuposta “...não prescreve que devemos obedecer às ordens do autor da Constituição” (ibidem: p. 219). Essa aparen-te contradição pode ser explicada da seguinte forma: a norma pressuposta não determina o conteúdo de qualquer norma (seu conteúdo é a dinâmica jurídica), mas a constituição, como norma posta, pressupõe a obediência aos pre-ceitos de seu ato criador, o poder constituinte. 7 A tradução portuguesa, da editora Arménio Amado, utilizada pela Martins Fontes no Bra-sil, coloca as expressões validade e vigência como sinônimas. Entretando, parece ter havi-do um defeito técnico de tradução. A eficácia não é a única condição da validade das normas, porque deve estar acompanhada de sua “fixação positiva” (ibidem: p. 230). Sendo a validade um misto de competência e procedimento para a edição das normas, a “fixação positiva” assu-me o significado de um ato que põe a norma no ordenamento (no sentido de “posta” ou “po-sitiva”). Esse ato conclusivo do procedimento de edição coincide com a publicação. Somente com a publicação é que a norma se torna vigen-te, no sentido de entrar em vigor, sendo apenas um aspecto, embora conclusivo, da validade, mas não a mesma coisa que ela. Por isso não cito a expressão “vigência”, como no livro, mas apenas “validade”.8 De acordo com o Autor, a decisão que reco-nhece a invalidade tem natureza constitutiva, e não declaratória, porque na decisão declaratória somente se declaram fatos passados, como uma mera constatação, o que torna a decisão por si retroativa, enquanto que, em específico para a inconstitucionalidade, as leis tidas por incons-titucionais “...devem valer na medida e pelo tempo em que não forem anuladas da forma constitucionalmente prevista”, o que equivale dizer que a decisão sobre a inconstitucionali-dade é irretroativa, salvo no caso da norma ter sido posta por órgão incompetente ou por in-divíduo que sequer seja um órgão (ibidem: pp. 290 e 294).

9 Parece ficar à margem dessa consideração os direitos chamados de potestativos, porque eles não dependem de contraprestação alheia e são exercidos pela simples e direta iniciativa de seu titular. Nesse caso, não se encontra nenhum “dever” em sua conduta, porque o titular exerce o direito se e quando quiser, como uma mera faculdade. Tampouco existe, nesse caso, sujeito passivo, mas apenas o ativo. Assim, o direito potestativo parece desmentir a versão da prio-ridade do dever sobre o direito, em qualquer circunstância.10 Fica a dúvida sobre se essa limitação é exten-siva ao poder de reforma, ou se também o poder de reforma não encontra limite naquele “catá-logo”, que é todo ele, por definição, fator de li-mite a esse poder “delegado”, de acordo com a teoria tradicional (p.ex.,art. 60, § 4º, IV).11 HART diz que o papel do direito é o de se diri-gir a um tipo geral de conduta e a uma categoria geral de pessoas, chamando isso de “diretivas gerais primárias” (ibidem, pp. 26 e 137).12 “Padrão” significa o modo de apreciação con-creta das ações humanas: “ter o dever de”, “ter de” ou “dever” chama a atenção para o padrão de comportamento (ibidem, pp. 40 e 95).13 Os outros defeitos são excluídos com regras de alteração, que corrigem o estatismo das re-gras, e com regras de julgamento/adjudicação, que corrigem o defeito da ineficácia, atribuindo ao juiz a autoridade para decidir sobre a viola-ção de uma regra primária, através de um pro-cesso determinado (ibidem, pp. 105-106).14 Os critérios formais distintivos são: 1)quan-to à importância: a perda de importância social elimina de imediato a norma moral, mas não a norma jurídica, que depende de revogação; 2) quanto à imunidade à alteração: o direito legal está sujeito a alteração e revogação formais, mas não a moral; 3) quanto ao caráter voluntá-rio dos delitos morais: a violação moral exige dolo, enquanto que a jurídica se contenta com a culpa e até mesmo a exclui em casos objetivos, como na responsabilidade objetiva/sem culpa; 4) quanto à forma de pressão moral: a pressão moral se faz como algo importante em si mes-mo, através da lembrança da ação moral com-partilhada, enquanto que a pressão jurídica se faz por ameaça ou por promessa de interesses (ibidem, pp. 190-196).

geoVany CaRDoso JeVeaux

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15 Prefácio (Ensayo Sobre Dworkin) ao livro Los Derechos en Serio (DWORKIN, 1999: p. 10).16 De acordo com DWORKIN, a solução dos casos difíceis é orientada por princípios, e não por diretrizes (ibidem, pp. 150 e 166), sendo que princípios adotados em casos difíceis dão margem à criação de uma nova norma determi-nada (ibidem, p. 80).17 Coerência e congruência, nesse caso, signi-ficam exigências de justiça (ibidem, pp. 156, 189-190 e 194), enquanto que a justificação alude à razões de reconhecimento ou negativa de um direito que uma decisão devem conter (ibidem, p. 175).18 Essa eqüidade exige a imposição congruente/justa dos direitos (ibidem, pp. 189-190 e 194), incide sobre a história institucional (ibidem, p. 197) e não se aplica aos objetivos sociais (ibi-dem, p. 187).19 Sem a presença do Estado, portanto, já que a “maioria” não é propriamente titular de direi-tos. Logo, daí não exsurge logicamente confli-to entre interesses individuais e coletivos, sob pena de eliminação dos primeiros (ibidem, p. 296). O conflito de direitos individuais contra o Estado é típico da crise entre ambos ou da falta de cooperação a um objetivo comum (ibidem, p. 276).20 A última hipótese de limitação foi vivenciada nos EUA após os ataques terroristas do último dia 11.09.2001, quando se cogitou da restrição temporária de liberdades civis e a própria im-prensa impôs uma autocensura, com receio de veicular manifestações que contivessem possí-veis mensagens codificadas para novas ações criminosas.21 Pretensão de respeito à moralidade política do passado, e não da moralidade presente do intérprete.22 A discricionariedade ignora a existência de direitos já estabelecidos por atos políticos an-teriores, ou seja, a ausência de norma clara não significa que não existam previamente os direi-tos em questão (ibiidem, p. 158).23 Convicções amplamente difundidas na co-munidade (ibidem, pp. 297 e 305), ou “con-vicções predominantes na legislatura como um todo” (ibidem, pp. 394 e 409) ou “decla-rações da própria comunidade” (ibidem, p.

418), coincidentes com “alguma coisa com a qual o conjunto da comunidade está compro-metido” (p. 411). A isso DWORKIN chama de “comunidade de princípios” ou de “esquema coerente” (ibidem, p. 396) ou “sistema coeren-te de princípios” (ibidem, p. 403). Porque “as leis [e também a Constituição - p. 474] preci-sam ser lidas de algum modo que decorra da melhor interpretação do processo legislativo como um todo” (ibidem, pp 404 e 433). Aqui reside o aspecto holístico de sua teoria. No livro Freedom´s Law. The Moral Reading of the American Constitution (Harvad University Press, Cambridge and Massachusetts, 1996), DWORKIN chama isso de leitura moral da constituição, que pede a seus intérpretes que encontrem a melhor concepção dos princí-pios morais constitucionais, e o melhor en-tendimento da igualdade moral para homens e mulheres (p. 11). Por leitura moral se deve entender: 1) a proposta “...that we all - jud-ges, lawyers, citizens - interpret and apply these abstract clauses on the understanding that they invoke moral principles about poli-tical decency and justice” (p. 2); 2) a leitura dos direitos e garantias em sua linguagem abs-trata e moral, ou seja, como limites ao poder estatal: “according to the moral reading, these clauses must be understood in the way their language most naturally suggests: they refer to abstract moral principles and incorporate these by reference, as limits on government´s power” (p. 7).24 HÉRCULES tem sobrenome: chama-se DWORKIN. É o alterego de DWORKIN, que fala em seu nome, o defende das críticas e pro-põe as suas soluções mais “adequadas” (fit): “...Hércules nos mostra a estrutura oculta de suas sentenças, deixando-as assim abertas ao estudo e à crítica” (ibidem, pp. 287, 294, 316 e 473).25 O Estado-Nação é uma “...representação polí-tica que implica o fato de que as populações que constituem uma sociedade no mesmo território reconhecem-se como pertencentes essencial-mente a um poder soberano que emana delas e que as expressa...” (CHÂTELET, 1990: p. 85). Ele surge com a Restauração Inglesa de 1690 a afirma-se com as Revoluções Americana de 1776 e Francesa de 1789.

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TEORIA CONSTITUCIONAL-PENAL APLICADA À LUZ DOS DIREITOS HUMANOS.

O MINISTÉRIO PÚBLICO NA EFETIVAÇÃO DOS PRINCÍPIOS GERAIS EM PROL DAS GARANTIAS FUNDAMENTAIS E

INDIVIDUAIS DA CIDADANIA, DA SEGURANÇA JURÍDICA E DO REGIME DEMOCRÁTICO

CONSTITUTIONAL-PENAL THEORY TO HAND ON THE TORCH OF LEARNING OF THE HUMAN RIGHTS. THE PUBLIC PROSECUTION SERVICE

OF RENDERING EFFECTIVE OF THE GENERAL PRINCIPLES IN FAVOUR OF FUNDAMENTAL AND INDIVIDUAL GUARANTEES OF CITIZENSHIP,

JURIDICAL SECURITY AND DEMOCRATIC SYSTEM

CânDiDo FuRtaDo Maia neto*

Recebido para publicação em agosto de 2005

Resumo: O presente trabalho versa sobre o direito constitucional à luz da norma penal pátria e das cláusulas pétreas constantes nos instrumentos internacionais de Direitos Humanos. Análise crítica de alguns princípios constitucionais fundamentais da cidadania, assegurados na Carta Magna brasi-leira, para a efetivação do Estado Democrático como instituído pela República Federativa do Brasil, “ex vi” do art. 1º da “lex fundamentalis”, base para a concretização de uma sociedade justa e solidá-ria. O Ministério Público é a instituição incumbida de promover e tutelar os direitos indisponíveis da cidadania, nos termos do art. 127 da Constituição federal; em outras palavras a defesa do regime democrático e dos Direitos Humanos de aceitação tácita universal, bem como aqueles aderidos e/ou ratificados pelo governo nacional através do processo legislativo próprio. A importância da aplicação e interpretação correta da lei para efetivar uma práxis policial-forense verdadeiramente democrática, nos moldes da ordem jurídica legal constitucional e internacional positiva.Palavras-chave: Constituição. Direito. Penal. Direitos Humanos. Cidadania. Princípios. Garantis-mo Jurídico. Segurança Jurídica. Norma. Legislação. Justiça. Ministério Público. Defensoria Pú-blica. Legalidade. Reserva legal. Isonomia. Presunção de inocência. Contraditório. Ampla defesa. Onus probandi. Investigação. Ação penal pública. Tribunal de exceção. Juízo natural.

Abstract: This issue is concerned to constitutional Rights under the Criminal Law valid in Brazil and it is based on the International Right. The theoretical base is found on the clauses referent to Human Rights. The citizenship according its principles is here seen as the goal for analysis on the Principal Norm in the Brazilian Right specially in terms of a democratic state like the National Republic of Bra-zil “ex vi”, under the article Fisrt of “lex fundamentalis”. The present analysis confirms the bases for a Nation with justice in human global perspective. The rights supposed for a complete disposition of citizenship in this age is a responsibility of Public Jurists of the Public Ministry in terms of the article 127 of Brazilian Constitution what means, the defense of a democratic state and the Human Rights

* Pós Doutor em Direito. Mestre em Ciências Penais. Especialista em Direitos Humanos (Consultor Internacional das Nações Unidas – MINUGUA 1995-96). Membro da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP-Grupo Brasileiro). Secretário de Justiça e Segurança Pública do Ministério da Justiça (1989/90). Professor do Curso de Mestrado e Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade Paranaense – UNIPAR. Membro do Ministério Público do Paraná, Promotor de Justiça de Foz do Iguaçu. Autor de várias obras jurídicas, dentre elas: “Código de Direitos Humanos para a Justiça Criminal Brasileira”. Ed. Forense, Rio de Janeiro, 2003. E-mail: [email protected] Dantas Machado. Acadêmica de direito colaboradora na pesquisa dos títulos e nas notas bibliográficas.

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1. Introdução

As cláusulas pétreas e os dispositivos constitucionais que possuem estreito vín-culo com os instrumentos internacionais de Direitos Humanos e com as normas penais ordinárias, substantivas, adjetivas e executi-vas vigentes na legislação doméstica, neces-sitam de correta aplicação e de boa interpre-tação à luz da teoria geral do ordenamento jurídico. Os dispositivos do código penal, de processo penal e da lei de execução pe-nal, são obviamente inferiores às clausulas expressas na Carta Magna, como também em relação àquelas estabelecidas nos Pactos e Convenções de Direitos Humanos, ante a vigência do princípio da soberania, validade e hierarquia vertical das normas.

Este princípio e outros formam a base do sistema penal democrático (acusa-tório), de acordo com o regime de governo adotado, assim vigoram as leis penais no tempo e no espaço. Tanto na investigação criminal – na esfera da atuação da polícia judiciária – e como na instrução criminal – no âmbito judicial – se faz necessário o respeito aos princípios gerais, posto que estruturam o devido processo legal. For-mando um todo, por esta razão existem princípios de direito que se adaptam ao re-gime democrático e outros ao regime anti-democrático, assim é preciso conhecê-los, interpretá-los e aplicá-los corretamente, na sintonia, em conexão ou adequadamente para o asseguramento dos direitos funda-mentais da cidadania.

Na democracia as leis são elaboradas e aprovadas para o povo, são normas do cidadão e não de interesse do estado ou de governo; assim seria um sistema democrá-tico puro e legítimo, longe das demagogias e do populismo político.

O direito natural é imutável, o positi-vo não, o primeiro se conhece e reconhece pela lógica e por seus critérios racionais, isto é, pela ética e pelos deveres morais, tudo aquilo que é bom; já o segundo - direi-to positivo - muitas vezes é inútil e é posto em vigência contra os interesses maiores da sociedade, do povo ou da população, serve apenas a grupos minoritários onde a lei possui aparência de serviço e de valida-de ao bem comum.

O direito particular indisponível ou os interesse individuais fundamentais possuem preeminência sobre o geral, a exemplo do que ocorre com o princípio “lex specialis derogat generali”; do contrário não pode-ríamos falar em Constituição-Cidadã ou em garantias fundamentais da cidadania, se as regras de ordem geral prevalecessem sobre as individuais, não estaríamos diante de um Estado Democrático de Direito, mas frente a um Estado Ditatorial, Estado de Polícia ou frente a um governo despótico. O direi-to natural é considerado superior ao direi-to positivo, em nome da razão humana, da humanidade e dos princípios fundamentais que o compõem. Seria um absurdo jurídico falarmos que o natural é um direito inferior, é sim superior ante o princípio da hierarquia e validade das normas e de acordo com a

in its Universal Declaration as well as the national fundaments referent those rules are essential in a society named for democratic. In this study these perspectives are focused in order to confirm the de-mocracy depends on the application of those norms and the public justice has to be the central power for a positive intervention in the actual order based on Natural Judgment.Key Words: Constitution. Right. Criminal. Human Rights. Citizenship. Principles. Legal Guaran-tee. Legal security. Norm. Legislation. Justice. Public Ministry. Public Defender. Legality. Legal reserve. Isonomy. Swaggerer of innocence. Contradictory. Legal defense. Onus probandi. Inquiry. Public criminal action. Court of exception. Natural judgment.

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fonte principal, propriamente dita, o “direi-to consuetudinário”.

O direito de acesso à justiça ou de prestação jurisdicional consagrado na Constituição e nos documentos de Direitos Humanos, tem por objetivo resguardar os valores primordiais do homem como indi-víduo pertencente à coletividade, os valo-res, bens jurídicos e princípios da supre-macia e da indisponibilidade dos interesses privados no contexto de um todo, isto é, o bem comum, mas este bem como somente se realiza com a efetividade e observância do Estado Democrático de Direito que pri-vilegia o interesse individual.

Não há como transacionar, transigir ou desistir de nenhuma espécie de interes-se individual, alegando necessidade ou em nome do direito público; porque quando se trata de Direitos Humanos jamais se pode ter a idéia de mitigação, uma vez que as regras internacionais expressamente de-terminam a prevalência das cláusulas que orientam os direitos fundamentais indivi-duais.

Quando o interesse público prevale-ce ao direito individual estamos falando de Estado Autoritário e não de Estado Demo-crático, este se fundamenta especialmente nas garantias da cidadania, de outro lado, os regimes despóticos, arbitrários, abu-sivos, intervencionistas, desprestigiam o homem como ser único, independente e autônomo. Policiar, reprimir e impedir o desenvolvimento sagrado do direito à pri-vacidade e à individualidade é a quebra do sistema republicano e democrático.

No Estado do Bem Estar Social te-mos o interesse público, como no regime socialista e comunista, primeiro as razões do Estado em nome de todos, do comum, em prejuízo do individual; porém no Esta-do Democrático de Direito prevalecem as garantias individuais, quando estas se en-contram em choque com o interesse públi-

co, este obtêm valor ou força quando res-peitadas determinadas regras previamente estabelecidas no texto constitucional, onde somente se admite a quebra das garantias individuais com a declaração e instalação do Estado de Sítio ou de Defesa (arts. 136 usque CF), pois as garantias fundamentais não são revogáveis sequer por emenda à Constituição, são imutáveis e auto-aplicá-veis. Estado Social tem como concepção o coletivo e suas necessidades básicas, já o Estado Democrático de Direito, o indivi-dual, onde as garantias da cidadania é seu fundamento.

No contexto do Estado Democrático e da prevalência do interesse individual surge o conceito de cidadania, este desde a Grécia antiga tem sofrido mutações ao lon-go dos tempos ante as necessidades histó-ricas da humanidade, visto que no Estado Moderno os direitos civis e políticos foram e estão sendo conquistados em nome dos cidadãos, de seus direitos fundamentais indisponíveis, inalienáveis, irrevogáveis, indeclináveis, etc.

Somente com o enriquecimento do “status cidadania” é que aumentam as li-berdades individuais e se reduz o arbítrio e as ações do Estado Despótico, onde o cidadão assume a condição de titular, no exercício e jogo de poder estatal. Trata-se de uma relação de equilíbrio e do devido respeito aos princípios que norteiam o Es-tado Democrático de Direito. No sistema político próprio o cidadão é a célula do elemento político do Estado, povo, aquele – Estado – subordinado a este – cidadão – e não ao contrário.

O objetivo real do Estado Democrá-tico de Direito é ter o individuo vinculado a um sistema pré-estabelecido e legitimado por ele – pela cidadania -, ou seja, é a insti-tucionalização do poder estatal, com a se-paração entre o público e o privado, como pré-requisito da visão democrática para a

CânDiDo FuRtaDo Maia neto

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construção dos direitos personalíssimos. E qualquer desvio configura desrespeito a ordem institucional constituída e uma fla-grante relação de interesses inadequados, pode ser chamado de um “caso de polí-cia”, um “estado de polícia”, um “estado autoritário”, nunca de um “estado demo-crático de direito”.

Quando falamos em democracia e cidadania, nos referimos a direitos indi-viduais indisponíveis e não em interesses difusos ou coletivos, estes existem e se fa-zem presentes, porém em menor grau de valoração. Os direitos da cidadania, do ci-dadão frente ao outro e também frente ao Estado.

Cidadão é um ser com faculdade de agir e de estar em determinado território exercendo seus direitos personalíssimos segundo as regras estabelecidas. Cidadania implica em observância pela sociedade e por parte do Estado-administração pública, às garantias fundamentais, dentre elas, os direitos civis individuais, privacidade, in-timidade, liberdade, etc.

A cidadania é construída na base constitucional, razão pela qual a norma infraconstitucional não esta autorizada a destruir a ordem maior vigente. Cidadania moderna significa a concessão do “status” de cidadão aos membros de uma coletivi-dade, efetivando o modelo político-ideoló-gico-jurídico que define o tipo de Estado e seu regime de governo, os limites e as “regras do jogo”, do contrário temos ape-nas “pseudo-democracia”, “cidadania de segunda classe” ou “democracia em peda-ços” nos dizeres de Dimenstein1.

Democracia é muito mais do que um modo de governo, são regras supremas que limitam o exercício do Estado, controla ações de seus servidores e das autorida-des constituídas, para fomentar a liberdade individual como objetivo maior, este é o sistema adotado pela República Federativa

do Brasil chamado de Estado Democrático de Direito.

Cidadão é aquele individuo que exer-ce na plenitude seus direitos fundamentais individuais garantidos e assegurados pelo ordenamento jurídico vigente, e fica longe dos abusos de poder e das arbitrariedades estatais.

A manutenção da justiça ou de sua efetivação passa e depende da preservação dos direitos individuais que são pressu-postos do sistema democrático. Cidadania depende de soberania e autonomia como elementos da universalidade e respeito aos Direitos Humanos, tudo em nome da jus-tiça.

Numa situação de crise, quando as garantias fundamentais individuais são suprimidas em nome da ordem pública social, no combate a “todo custo” a delin-qüência, são as próprias metas de política criminal que se encontram comprometidas. Foi exatamente no início da década de 90, o reiniciou e o resgate da cidadania, ago-ra vemos o desgaste e comprometimento com o retrocesso e a destruição dos valores historicamente conquistados, com o atro-pelo e menosprezo aos princípios gerais que sustentam o direito e a justiça penal democrática, fazendo emergir por necessi-dade as teorias do minimalismo e do re-ducionismo penal, garantismo e segurança jurídica necessária, para vermos instalar o direito penal expansionista, globalizado ou mundializado, via transnacionalização e policidadania, imprópria, criada pela União Européia.

A construção de um mundo demo-crático – justiça penal democrática – tem como base o combate da criminalidade e ao mesmo tempo o respeito às regras do devido processo legal, seja a onde for. A imposição sem limites de “armas e da for-ça pública”, conduz ao aumento da violên-cia, por conseqüência da criminalidade. É

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dever do Estado, do Poder Judiciário e do Ministério Público garantir os direitos da cidadania e não violá-los sob o manto da repressão necessária e dos interesses so-ciais coletivos.

Note-se que os direitos civis, no âm-bito dos Direitos Humanos, são conside-randos de primeira geração, como essen-ciais à existência da pessoa humana, são direitos intransponíveis de cada indivíduo; já a proteção do Estado e os direitos difu-sos estão classificados como de segunda e de terceira gerações, respectivamente. Os direitos do cidadão devem ser reconheci-dos em primeiro plano sem discriminação alguma, isto é, para o estabelecimento e efetivação das garantias judiciais; do con-trário existe perseguição e negação de jus-tiça.

Não se pode suprimir, restringir o exercício de direitos e liberdades nos regi-mes democráticos verdadeiros e Estados de Direitos Humanos, onde as leis de interesse geral passam primeiro pelo plano do indi-vidual, sendo o indivíduo-cidadão a célula principal (art. 29 e 30 da Convenção Ame-ricana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica – OEA/1969).

Cidadania plena é requisito indispen-sável à democracia, somente com cidadãos fortes, para a consolidação do Estado De-mocrático real aquele que preserva a digni-dade do homem como sujeito e não como objeto; assim expressam as Convenções internacionais.

Há que ser valorizado uma categoria de direitos constitucionais fundamentais individuais e indisponíveis, para legiti-mar a existência humana e o princípio de hierarquização, validade e soberania das normas.

Na apresentação do Projeto do Códi-go de Napoleão (Code Civil des Français, 1807, com nome de Code Napoléon), no discurso proferido por Jean Etienne Marie

Portalis (jurista integrante da comissão do Projeto), ante o Conselho de Estado, na presidência o próprio Napoleão Bonaparte justificava o teor do artigo 4º (mantido no texto legislativo original e aprovado), ante a possibilidade da livre criação do direito por parte do juiz, que não se trata de sim-plificar ou de até reduzir as leis a poucos princípios gerais, visto que a redução se verifica somente nos Estados despóticos, afirmando: “existem mais juízes e carras-cos do que leis”.

Cabe aos juízes penetrado pelo espí-rito geral das leis, da cidadania, do regime democrático, decidir, formando um verda-deiro santuário de sentenças e de doutrina suplementar. Em todas as nações civiliza-das, obviamente que seria desejável que as matérias fossem reguladas somente por leis, porém é impossível posto que a previ-dência legislativa é infinita, assim remonta-se e aplica-se o caso concreto através dos princípios gerais do direito, perfeitamente legal, legítimo e correto, quando tudo é in-terpretado à luz dos Direitos Humanos.

“Quando a lei é clara, é necessário segui-la; quando é obscura, é necessário aprofundar suas disposições. E tudo que não é proibido pela lei é permitido. O juiz não pode perder a capacidade criativa, interpretando passiva e mecanicamente os Códigos, o princípio da autoridade ante o raciocínio jurídico permite aplicar as leis e administrar justiça inspirado nas garan-tias constitucionais do direito democráti-co-liberal”.

No direito há um momento ativo ou criativo (criação da legislação) e um mo-mento chamado de teórico ou cognoscitivo (aplicação e interpretação da lei ou criação jurisprudencial). O juiz, portanto, cria tam-bém o direito, faz ajustes entre a letra da lei e seu espírito (mens legis), em outras palavras a vontade expressa e a vontade presumida do legislador, para a devida e

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auto-integração do direito, mediante recur-sos de analogia (denominada interpretação extratextual) e princípios gerais.

Como leciona Norberto Bobbio, é preciso fazer ciência jurídica ou teoria do direito, e não ideologia do direito; há que se dar importância ao direito científi-co – das academias e dos cursos de nível superior – e não ao direito judiciário, onde muitas vezes atende a interesses de grupos políticos. Não podemos perder de vista a noção pela qual o direito penal é disciplina de controle social, por esta razão as leis e sua aplicação tendem a serem conduzidas pelo grupo que detêm o poder econômi-co-social-político. A jurisprudência pura, científica e verdadeiramente parcial, serve a interesses, não à finalidade real do direito como instrumento eficaz para a prestação jurisdicional individual.

“Quando um erro cometido por um e sucessivamente adotado pelos outros - ju-risprudência do tipo ‘maria-vai-com-as-ou-tras’, ‘pelego’, ou ‘carneirinho’, nossa in-clusão -, se converterá em verdade ! Quando uma série de preconceitos coletados pelos compiladores, cegos ou servis – subservien-te -, violentará a consciência dos juízes e sufocará a voz do legislador” 2.

A Emenda constitucional nº 45 de 2004, impôs no art. 103-A, o que era mui-to discutido e temeroso para a garantia e independência funcional do magistrado e de todos os profissionais do direito, no que diz respeito ao princípio do livre con-vencimento, da liberdade de raciocínio jurídico e criação de teses; assim “O Su-premo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reite-radas decisões sobre matéria constitucio-nal, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pú-blica direta e indireta, nas esferas federal,

estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei”.

São as hediondas e chamadas súmu-las vinculantes que irão nortear a jurispru-dência pátria, castrar e tolher o pensamen-to dos magistrados. Trata-se de imposição constitucional inadmissível.

As ciências criminológicas tem pro-porcionado aos profissionais do direito, boas técnicas para argumentações legais, modernas e avançadas, objetivando a devi-da aplicabilidade dos dispositivos consti-tucionais e infraconstitucionais, na realiza-ção da Justiça via o exercício da prestação jurisdicional em benefício da cidadania.

Há que se apresentar teses jurídicas e não meios de lingüísticas ou “jogos de palavras” para aprovar, decidir sobre uma questão de direito, em outras palavras esta-mos presenciando que a lingüística – bem ou mal empregada - está suplantando o ju-rídico, propriamente dito. A práxis foren-se e a doutrina está se conduzindo muito mais em base aos critérios de lingüística do que jurídico, conturbando assim a or-dem vigente com expressões deturpadas, transformando a verdadeira intenção do legislador, sob o falso manto da correta in-terpretação legal, a vontade do legislador resta reduzida aos interesses ideológicos momentâneos – do Judiciário - e não ori-ginários, isto é, do Legislativo.

No contexto do ordenamento jurídico, ao se pretender qualquer reforma eficiente na administração da justiça criminal ou da própria legislação, primeiro é preciso uma análise global de todo o direito – de todo o ordenamento -, isto é, de todos os ramos das ciências jurídicas, vez que ao descrimi-nalizar e despenalizar condutas, estaremos transformando um ilícito penal em ilícitos de natureza diversa, como: administrativa, civil, comercial, tributária, trabalhista, etc. E ao criminalizar, criar mais tipos penais – penalizar – não é segundo a doutrina pe-

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nal-criminlógica contemporânea o meio mais eficiente para reduzir os índices de delinqüência, pelo contrário, tem servido apenas para aumentar a repressividade do governo, os abusos e excessos de poder, ademais, transformar o discurso científi-co acadêmico em demagógico e populista – cultura da prevenção, discurso da verda-de versus cultura de repressão.

De outro lado, a atuação dos opera-dores do direito, inclua-se neste contexto os órgãos de segurança pública, deve estar voltada à prevenção e não à repressão de-senfreada como acontece nos dias de hoje. A polícia, por exemplo, volta suas forças contra os delinqüentes oriundos da classe baixa ou média, atuando repressivamente, ao passo que contra a classe social e econo-micamente mais abastada, a sua ação é de orientação, respeito e prevenção, basta ver-mos na prática o que ocorre nas chamadas “blitz” ou operações contra a criminalidade realizadas nas favelas e aquelas - quando raramente acontece - nos bairros de classe alta; disse Leauté “quando a polícia lança as suas redes, não são os peixes pequenos que escapam, mais os maiores” 3.

O governo brasileiro por intermédio de sua representação oficial na qualidade de Estado-Membro das Nações Unidas (ONU) e da Organização dos Estados Americanos (OEA), aprovou nas respec-tivas Assembléias Gerais os instrumentos de Direitos Humanos, de acordo com o processo legislativo próprio - interno - se-gundo prevê o Texto Maior pátrio (art. 59 e sgts) e externo, em fulcro as regras de direito público internacional.

2. Primeiramente devemos conside-rar a espécie de regime de governo ado-tado pela República Federativa do Brasil (art. 1º), visto que a Assembléia Geral Constituinte (de 1988) via Referendum do texto da Carta Magna, instituiu o Estado Democrático de Direito (Penal) e a forma

republicana, tendo fundamentos e princí-pios a soberania, o respeito a cidadania e a dignidade humana, destacando a preva-lência dos Direitos Humanos, nas relações internas e internacionais.

O artigo 5º e seus incisos conforme previstos na Constituição Federal da Re-pública Federativa do Brasil (08.10.88), estabelece os direitos e deveres individuais e coletivos, são as garantias fundamentais da cidadania; em outras palavras, trata-se do direito constitucional-penal aplicado.

A administração da justiça criminal no regime do Estado Democrático de Direi-to, “ex vi” do art. 1º da CF, adotou o siste-ma acusatório, prevalecendo os princípios que regem o devido processo legal e as garantias fundamentais individuais da ci-dadania, de acordo com o estabelecido nos incisos do artigo 5º da “lex fundamenta-lis”. E o pior, a práxis policial-jurídico-pe-nal ainda se norteia no sistema inquisitivo, em base a legislação infra-constitucional (Código de Processo Penal).

É preciso ressaltar que o governo brasileiro ao longo do tempo, na qualida-de de Estado-Membro da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização dos Estados Americanos (OEA), vem ade-rindo e/ou ratificando documentos de Di-reitos Humanos, aprovados pelas respecti-vas Assembléias Gerais das Organizações, e respeitando aqueles de aceitação tácita internacional, para citar alguns instrumen-tos básicos:

- Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU/1948),

- Convenção de Viena ou Direito dos Tratados (ONU / 1969),

- Pacto Internacional dos Direitos Ci-vis e Políticos (ONU/ 1966), e

- Convenção Americana sobre os Di-reitos Humanos (OEA / 1969).

Tantos outros como, por exemplo: Convenção contra a Tortura (ONU, 1984, e OEA, 1985), Convenção Internacional

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para eliminação de todas as formas de dis-criminação (ONU, 1965), etc.

Quanto a Declaração Universal dos Direitos Humanos é preciso ressaltar que não se trata de um documento com vali-dade jurídica ordinária e específica, trata-se como o próprio nome já diz, de uma Declaração e não de uma Convenção ou Pacto, posto que não foi celebrada na con-formidade das regras do direito público in-ternacional; porém possui reconhecimento moral universal, pois destaca os direitos da pessoa humana, como afirma Rezek4.

O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, são documentos que integram em alto nível de validade e de hierarquia vertical das normas vigentes, o ordenamento jurídico pátrio, posto que foram ratificados via processo legislativo próprio, conforme Decretos nsº 592/92 e 678/92, respectivamente.

É de ser observado ademais a Con-venção de Viena, quando dispõem: “Todo Tratado obriga as Partes e de ser execu-tado por elas de boa-fé; e uma Parte não pode invocar as disposições de seu direito interno como justificativa para o inadim-plemento de um Tratado” (arts. 26 e 27).

Neste diapasão a Convenção Pana-mericana sobre Tratados (Havana, 1928), estabelece: “Os tratados não são obriga-tórios senão depois de ratificados pelos Estados contratantes, ainda que esta cláu-sula não conste nos plenos poderes dos negociadores, em que figure nos próprio tratado” (art. 5º).

Deve-se compreender, como nos en-sina o expert e renomado Prof. Borjas5, que o Direito internacional é equiparado ao Di-reito interno, à Constituição se nutre atra-vés do princípio da primazia do Direito In-ternacional, trata-se de incorporação legal dos Direitos do Homem e das suas garan-tias fundamentais, vigorando o princípio “lex posteriori derogat priori”; a lei maior

em relação à lei inferior, não a “contrario sensu”, visto que o princípio da hierarquia vertical, validade e soberania das normas assim proíbe.

Os tratados e convenções revogam a legislação interna, verbi gratia, a Lei nº 5.172/66, reza: “Os tratados e as conven-ções internacionais revogam e modificam a legislação tributária interna e serão observados pela que lhes sobrevenha”, especialmente no que se refere ao direito público.

A Carta da ONU, em seu preâmbulo, diz: “Nós os Povos das Nações Unidas, re-solvidos... a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser man-tidos...”.

Depois de regularmente aprovados, os tratados são leis que derrogam o direito comum, garantindo a prevalência dos do-cumentos internacionais encontrando se no plano de igualdade, posto que a Consti-tuição federal não prevê nenhuma cláusula de preeminência dos dispositivos internos sobre o direito internacional; ao contrário, expressa que seus princípios serão respei-tados sem prejuízo às normas internacio-nais (art. 5º § 2º CF), por serem – normas - de natureza primária que determinam di-reitos e deveres do Estado.

O tratado não se revoga por lei pos-terior, há que se interpretar o conceito de parametricidade, onde a ordem global - o Direito Público Internacional - é mais vas-ta que o direito interno, às garantias fun-damentais contem princípios implícitos e explícitos, os primeiros como parte do chamado bloco da constitucionalidade e os segundos da legalidade, assim temos a presunção “iuris tantum” e depois a “iure et irue”, ou seja, o direito constitucional plasmado, ou um “continuum jurídico”.

Esta regra é observada nos Estados Democráticos, no direito comparado do

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Mercosul, por exemplo, o artigo 22 e 145, das Cartas Magnas da República da Argen-tina e República do Paraguai, recepcionam expressamente o direito internacional; “ex vi” “aprobar tratados de integración que deleguem competencias y jurisdicción a organizaciones supraestatales en condi-ciones de reciprocidad e igualdad, y que respeten el orden democrático y los dere-chos humanos. Las normas dictadas en su consecuencia tienen jerarquia superior a las leyes”, e “la República del Paraguay, en condiciones de igualdad con otros Esta-dos, admite un orden jurídico supranacio-nal que garantice la vigencia de los dere-chos humanos de la paz, de la justicia…”.

Devemos entender “o homem como fim e o Estado como meio”, em outras pa-lavras os direitos da cidadania anterior e superior aos desejos do Estado, tratam-se dos direitos naturais e fundamentais do homem, do contrário haveria inversão de valores e não mais estaríamos vivendo ou falando em Estado Democrático de Direi-to. É a sociedade civil que justifica a exis-tência e legitima a Administração Pública.

No contexto jurídico os dispositivos internacionais implementam e declaram a ordem nacional, na chamada teoria da incorporação (Heinrich Triepel, 1899 in “Volkerrecht und Landesrrecht”). A ordem interna recepciona a ordem internacional e lhe dá valor superlativo, por osmose – pres-são - ante os compromissos internacionais previamente assumidos para a existência, efetivação e manutenção de respeitos à dignidade da pessoa humana, como parte constitutiva da ordem jurídica do próprio Estado, predominando a lei externa sobre a interna, e não a lei interna sobre a exter-na. O direito natural estabelece a harmonia de relação entre o direito internacional e o doméstico, uma espécie de interseção bas-tante profunda e íntima.

Conceitua-se Estado Constitucional como aquele estado de direito democráti-

co, pois a Declaração dos Direitos do Ho-mem e do Cidadão, proclamada em 26 de agosto de 1789, no art. 16º consta: “toda sociedade em que não estiver assegurada a garantia de direitos, nem determinada a separação dos poderes, não têm Constitui-ção” e conseqüentemente não há Estado de Direito Constitucional, mas Estado de Polícia, Estado Autoritário, Estado Re-pressivo, etc. Esta foi a regra básica e geral da revolução francesa: “liberté”, “egalité”, e “fraternité” para a constituição de uma grande Federação Humana.

O Estado é servidor da sociedade e por ela é controlado via sistema jurídico internacional e interno, princípio da lega-lidade e transparência dos Atos da Admi-nistração Pública, é obvio que a liberdade do indivíduo é limitada, mas a liberdade do Estado é muito mais restrita, isto significa que o verdadeiro Poder Soberano, reside nos direitos dos particulares (paráf. úni-co, art. 1º CF), restringindo desta forma a onipotência do Estado, vez que os Direitos Fundamentais do Homem é o núcleo do re-gime democrático; do contrário os cidadãos estariam e continuariam hiposuficientes, posto que seus direitos estariam em grau de inferioridade aos interesses de suposta ordem pública ou legalidade, camuflada pela demagogia, ironia e hipocresia.

3. Princípio jurídico é um enunciado lógico, implícito ou explícito, preeminente no direito para a aplicação da norma, diz Carrazza6; a Constituição federal explici-tamente alicerçou os princípios de direito democrático, razão pela qual as regras – dispositivos – incompatíveis considera-se implicitamente revogadas, total ou parcial-mente, segundo cada caso “in concreto” 7.

Os princípios gerais do direito consti-tuem a base do ordenamento jurídico, com origem no direito natural, são também cha-mados de “norma princípio”, razão pela

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qual contrato faz lei entre as partes, isto é os Tratados e Convenções internacionais.

As regras de importância fundamen-tal – princípios – devem ser interpretadas de boa-fé e com superioridade hierárquica no ordenamento positivo; de outro lado, a jurisprudência internacional tem sido unâ-nime em consagrar a primazia do direito internacional sobre o direito interno. Ve-jamos, é pacífico que o Tratado prevalece ante a norma interna e anterior; também nesse sentido, a norma doméstica posterior não pode alterar ou conflitar com Trata-do ou Pacto anterior ratificado e aderido, porque teríamos criado uma renúncia do documento internacional por via ilegítima, isto é, interna e não por meio os órgãos e sistema de proteção internacional legítimo, estando o Estado passível e sujeito à san-ções e responsabilidades da esfera interna-cional, ante o cometimento de um ilícito internacional.

Sempre deve prevalecer a norma mais benéfica ao indivíduo, e os princípios e cláusulas pétreas de Direitos Humanos, são sempre elaboradas em nome da pre-servação da dignidade da pessoa humana, portanto, em favor da cidadania.

Há que se pensar em um único sis-tema jurídico, no ordenamento interno in-tegram-se as regras de direito internacio-nal (teoria monista), e jamais se trata de dualismo, com a existência de duas ordens distintas, posto que impera a teoria inter-nacionalista que defende a primazia da ordem internacional sobre o texto consti-tucional8.

Qualquer argumentação que as nor-mas do direito doméstico prevalecem sobre os Tratados e instrumentos internacional, no âmbito dos Direitos Humanos, conduz a quebra do sistema jurídico nacional, con-forme instituído pela Carta Magna da Re-pública Federativa do Brasil, que têm ex-pressamente estabelecida a prevalência dos

Direitos Humanos, respeito à dignidade da pessoa humana, e a auto-aplicabilidade das cláusulas pétreas de garantia fundamental da cidadania. Inclusive tal argumentação, ao nosso ver é incorreta e imperfeita, cau-sando a desestruturação e dificultando a efetivação do Estado Democrático de Di-reito, bem como a instabilidade do Brasil nas suas relações internacionais ante a fal-ta com os compromissos assumidos com a comunidade nacional e mundial.

Diante do exposto devemos ressaltar a legislação infraconstitucional pátria que estabelece à luz do direito público e priva-do o seguinte, sendo importante a análise e o estudo do direito comparado:

- Art. 1º e 3º, respectivamente do Código de Processo Penal (Dec-lei nº 3.689/41): “O processo penal reger-se-á, em todo o território brasileiro, por este Código, ressalvados: I – os tratados, as convenções e regras de direito internacio-nal”; e “A lei processual penal admitirá interpretação extensiva – somente em be-neficio do acusado - e aplicação analógica – somente “in bonan partem”, bem como o suplemento dos princípios gerais de di-reito”

- Art. 108 do Código Tributário Na-cional (Lei nº 5.172/66): “Na ausência de disposição expressa, a autoridade compe-tente para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indi-cada”:

I- a analogia;II- os princípios gerais de direito tri-

butário;III- os princípios gerais de direito

público;- Art. 4º Lei de Introdução ao Có-

digo Civil (Dec-lei nº 4.657/42 – Lei nº 10.406/02): “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a ana-logia, os costumes e os princípios gerais de direito”; e

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- Art. 293 Código de Processo Civil (Lei nº 5.869/73): “Os pedidos são inter-pretados restritivamente...”.

As garantias fundamentais da cida-dania prevalecem sobre qualquer outra norma hierarquicamente inferior a Cons-tituição federal, os Tratados, Convenções, Pactos, etc., bem como ante os próprios Códigos Penal, Processual e legislação cri-minal extravagante.

Importante é destacar as cláusulas auto-aplicáveis são imodificáveis e irrevo-gáveis, por nenhuma lei ou emenda cons-titucional, rezam os arts. 5º § 1º e 60 § 4º, inc. IV CF.

O Texto Maior e o Código de Proces-so Penal prevêem nos art. 5º § 2º e arts. 1º e 3º CPP, respectivamente.

Na Constituição atual, o governo brasileiro se compromete a dar prevalência aos Direitos Humanos nas suas relações internacionais e, obviamente, nas internas, buscando a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América La-tina, e a criação de um Tribunal Internacio-nal de Direitos Humanos (art. 7º ADCT), inclusive é signatário do Tribunal Penal Internacional – TPI (Estatuto de Roma, 1998).

A Emenda Constitucional nº 45/2004, no § 3º do art. 5º CF, expressa: “Os tra-tados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”, por sua vez o § 4º, reza: “O Brasil se submete à juris-dição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão.”

Analisemos alguns aspectos jurídi-co-penais contidos na nossa Carta Magna, promulgada em 5 de outubro de 1988, em relação às Constituições brasileiras ante-riores, enquanto as garantias fundamentais

da cidadania, onde tiveram as seguintes previsões:

1)- A Constituição de 1824, no art. 173 e sgts, “Das Disposições Gerais e Ga-rantias dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Brasileiros”;

2)- A Constituição de 1891, no art. 72, Seção II “Declaração de Direitos” do Título IV “Dos Cidadãos Brasileiros”;

3)- A Constituição de 1934, no art. 113, Capítulo “Dos Direitos e das Garan-tias Individuais”;

4)- A Constituição de 1937, no art. 122, “Dos Direitos e Garantias Individu-ais”;

5)- A Constituição de 1946, no art. 141, “Dos Direitos e das Garantias Indivi-duais”; e

6)- As Constituições de 1967/69 e suas respectivas emendas, no art. 153 “Dos Direitos e Garantias Individuais”.

Alguns conceitos de Constituição, na definição adotada pelo ilustre professor constitucionalista PEDRO CALMON: “A Constituição é a lei suprema do país”; para o mestre DARCY AZAMBUJA: “Consti-tuição é o documento político que no re-gime democrático, é votado e promulgado por uma Assembléia eleita pelo povo e no qual são estabelecidas as bases do regime, a organização dos poderes, as garantias fundamentais dos cidadãos, a ordem eco-nômica e social” 9.

A nova Carta Magna brasileira traz inúmeras e profundas garantias a nível só-cio-jurídico-penal, onde grande parte da le-gislação infraconstitucional foi tacitamente revogada pelo princípio da hierarquia ver-tical das normas e pelo que se entende ou interpreta como a constitucionalidade das leis no Estado Democrático de Direito.

Era e é enganoso pensar que ocorre-riam imediatas ou rápidas transformações com a vigência da Carta Magna de 1988,

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primeiramente é preciso conscientizar os profissionais do direito para a correta apli-cação e interpretação das leis e dos prin-cípios basilares, somente assim tal deside-rato acontecerá, para a urgente mudança de mentalidade e da práxis jurídico-penal nacional.

Podemos dispor do melhor e mais perfeito texto constitucional, que assegure de maneira ampla as garantias fundamen-tais, porém se não existir consciência ju-rídica e não houver vontade política dos profissionais do direito em aplicar as re-gras vigentes segundo os princípios demo-cráticos norteadores, nada acontecerá de substancial ou modificador em benefício da cidadania, teremos simplesmente uma mera “lei de papel” e um “estado demo-crático eminentemente formal”.

Os Superiores Tribunais de Justiça através da jurisprudência nacional, espe-cialmente o Pretório Excelso, Supremo Tribunal Federal (STF), este último encar-regado do controle da constitucionalidade das leis e guardião da própria Constituição, tem por dever sentenciar em nome e a fa-vor das garantias fundamentais, em defesa da manutenção e efetivação real do Estado Democrático de Direito e dos interesses so-ciais e individuais indisponíveis da cidada-nia (art. 102, inc. I, letra “a” CF – ação di-reta de inconstitucionalidade (Adin), ação declaratória de constitucionalidade (Adc), e ação de argüição de descumprimento de preceito fundamental (Leis nsº 9.868/99, e 9.882/99), e o § 2º do art. 102 da CF, via Emenda nº 45/2004, dispõe que: “As deci-sões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações di-retas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade pro-duzirão eficácia contra todos e efeito vin-culante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pú-blica direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal”.

Também a doutrina especializada, avançada e moderna contribuem subs-tancialmente para a correta aplicação das normas, através da leitura adequada para a interpretação das leis ante os princípios, discurso - oral ou escrito – da verdade, da deslegitimação do Estado Ditatorial e da legitimação do Estado Democrático, como asseveram E. Raúl Zaffaroni10, e Lola Aniyar de Castro11.

Estamos nos referindo de descrimi-nalização versus criminalização, cultura da repressão versus cultura da prevenção, pena privativa de liberdade versus medidas alternativas à prisão, sistema acusatório versus sistema inquisitivo.

Tudo em prol da segurança ou ga-rantismo jurídico ante a teoria do redu-cionismo penal ou do minimalismo penal, conforme prega o mestre italiano Luigi Ferrajoli12.

Também é necessário conceituali-zar “norma penal”; em sentido estrito é a norma incriminadora que comina sanções de caráter penal. A norma penal, pode ser material como formal, ou seja: de direito penal e de direito processual penal. Direi-to penal na definição de VON LISZT “é o conjunto de prescrições emanadas do Estado, que ligam ao crime como fato, a pena como conseqüência; para LUIZ JI-MÉNEZ DE ÁSUA, é o “Conjunto de normas y disposiciones jurídicas que re-gulam el ejercicio del Poder sancionador y preventivo del Estado, estabeleciendo el concepto del delito como presupuesto de lá accíon estatal, así com lá respnsabilidad del sujeto activo, y asociando a la infrac-cion de la norma una pena finalista a una medida aseguradora” 13, e para o Professor HELENO CLAUDIO FRAGOSO, é “o conjunto de normas jurídicas mediante as quais o Estado proíbe determinadas ações ou omissões, sob ameaça de característica sanção penal” 14.

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Vemos muito bem empregado o ter-mo “ameaça de sanção penal” pelo saudoso e renomado Prof. Heleno Cláudio Fragoso, posto que o Estado ao colocar em vigên-cia um Código ou uma Lei Penal, ameaça abstratamente todos os cidadãos que pra-ticarem uma conduta típica com a sanção correspondente previamente cominada, razão pela qual a Norma Constitucional de ordem penal adjetiva precisa obrigato-riamente definir o devido processo legal, por meio de princípios fundamentais que assegurem à cidadania, a ampla defesa e o contraditório, bem como as regras sobre a publicidade dos atos do Poder Judiciário, da Polícia e do Ministério Público, quanto ao segredo de justiça, a incomunicabili-dade, as restrições de direitos ou benefí-cios, e assim por diante, sem obviamente esquecermos da presunção de inocência, de impor o “onus probandi” ao Ministério Público proibindo também a produção de provas ilícitas.

Direito processual penal é definido como sendo “modos pelos quais a Lei re-gula o andamento das ações criminais, e, juntamente, os atos de Justiça pública, no juízo criminal, com o fim de conseguir o descobrimento da verdade”, ou somente “um conjunto de atos”, nas conceituações de PIMENTA BUENO e GALDINO SI-QUEIRA, respectivamente.

É através do direito processual pe-nal que o Estado-Ministerial exerce o “ius persequendi”, para fazer valer o “ius pu-niendi” aos transgressores da lei penal. A norma penal, portanto, é um instrumento de política criminal do Estado que visa a garantia dos bens jurídicos penais funda-mentais dos cidadãos: a vida, o patrimô-nio, a honra, etc.

Os princípios fundamentais e gerais do direito penal e processual penal, inclu-am-se também os princípios de direito pe-nal executivo, todos consignados na Carta Magna em vigor.

3.1. Assim, o princípio da isonomia, refere-se que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, (art. 5o incisos I, XXXIII, XXXIV, e XLI CF).

Constam na Constituição todos os direitos e garantias fundamentais do cida-dão; a saber:

Art. 1o. - Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos;

Art. 2o. - Todo homem tem direito à vida, à liberdade e segurança pessoal;

Art. 6o. - Todo homem tem direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei;

Art. 7o. - Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, igual proteção da lei;

“Ex vi” dos documentos internacio-nais, art. 1º DUDH (Declaração Universal dos Direitos Humanos – ONU, 1948), art. 14 PIDC (Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, ONU, 1966), e arts. 1º e 8º CADH (Convenção Americana sobre Direitos Humanos, OEA, 1969), para citar alguns.

A aplicabilidade da lei penal (mate-rial ou adjetiva) para homens ou mulheres, brasileiros ou estrangeiros com as mesmas obrigações e direitos, conforme determina-da o princípio da isonomia de tratamento perante os Tribunais (leia-se também juízos de 1a instância), assim reza o art. 5º “caput”, e incisos I, XXXIII, XXXIV, e XLI CF; e os Direitos Humanos, art. 1º DUDH (De-claração Universal dos Direitos Humanos – ONU, 1948), art. 14 PIDC (Pacto Interna-cional dos Direitos Civis e Políticos, ONU, 1966), e arts. 1º e 8º CADH (Convenção Americana sobre Direitos Humanos, OEA, 1969), por citar alguns.

Neste sentido a Lei nº 6.192/74, esta-belece como ilícito contravencional qual-quer distinção entre brasileiros natos e na-turalizados, com sanção de prisão simples e multa.

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Igualdade substancial é aquela que se refere a mesma idade, mesma cidadania, mesma raça, de desiguais quanto as con-dições sócio-econômicas, por exemplo ou quanto ao gênero - homem e mulher -, mas para Leviatã “os homens são iguais em ca-pacidade física e intelectual”, por sua vez Hobbes acrescenta dizendo que “todos são iguais e suas diferenças são insignifican-tes”, posto que a natureza humana é igual, na afirmação tautológica - por vícios de linguagem - e não estoicamente falando - com rigidez -.

As regras aplicadas de modo im-parcial, aos nacionais e estrangeiros, aos homens e mulheres, porém em ração da condição pessoal, existem critérios que diferenciam, por exemplo o cumprimento a pena privativa de liberdade com relação ao sexo (incs. XLVIII e L do art. 5º CF c.c. art. 89 117, incs. III e IV da LEP).

Tratam-se de regras de distribuição que dizem respeito a certa classe de pesso-as, e estas podem ser parciais e imparciais para um tratamento análogo. Assim não é possível estabelecer os mesmos critérios para o recebimento de salários ou paga-mento de impostos, fala-se, então que a igualdade e a justiça devem ser distribuí-das; porém as regras predominantes ou as chamadas de direitos fundamentais sempre se nortearem pela máxima imparcialidade e igualdade.

A igual distribuição dos direitos ou necessidades fundamentais, como à in-violabilidade à vida, à propriedade, à li-berdade, são substancialmente idênticas a todos.

Para Aristóteles o princípio da igual-dade é numérico e quantitativo, dando-se partes iguais aos iguais, segundo suas ca-racterísticas específicas, já que as regras não igualitárias apresentam iguais com partes desiguais, ou os não-iguais com partes iguais. Assim o injusto é desigual e o justo é igual.

O conceito de igualitarismo ou ini-gualitarismo é superior ou prevalente ao conceito meramente classificatório, ante as desvantagens sociais e as necessidades de um determinado grupo, se aplica o princí-pio da igualdade por ser menos inigualitá-rio, assim se faz mais justiça com a presta-ção e atenção judicial.

Por exemplo, o imposto geral seria igualitário e ao mesmo tempo inigualitário porque os que possuem menos recolheriam a mesma quantia que os que possuem mais, neste caso para ajustar o princípio da iso-nomia aparecem as regras de proporcio-nalidade para igualar através de impostos progressivos.

A regra de proporcionalidade para ser mais igualitária precisa ter o mesmo denominador - comum -, já Aristóteles propõem a igualdade proporcional ao mé-rito, dando-se benefícios legais aos que mais merecem.

Há que se abolir ao máximo os pri-vilégios pessoais ou jurídicos, que não de-vem ser confundidos com as prerrogativas de cargos, funções ou postos públicos, que em certas vezes, momentos ou situações se faz necessário para igualar os desiguais, como as questões das imunidades, dos fo-ros de julgamento diferenciados para de-terminadas pessoas, ou em razão da natu-reza do delito - juízo natural -, bem como o direito de responder o processo penal em liberdade - prisão especial - e o cumpri-mento ou execução da pena privativa de liberdade de modo diferenciado.

As regras normativas de igualdade processual são compatíveis com as regras de distribuição, quando nivela, tenta nive-lar ou reduzir as diferenças.

As diferenças de características pes-soais relevantes devem ser trabalhadas no Estado Democrático de Direito através das regras de distribuição para se chegar a igualdade proporcional; ex. idade e cida-dania para realizar o direito ao voto, e a

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riqueza para o recolhimento de impostos; o sexo, a riqueza e a cor não são caracte-rísticas relevantes para realizar o direito ao voto.

Tratar de modo desigual as pessoas que são diferentes sob aspectos relevantes é base de critérios para igualar e são regras justas.

De um lado, o direito penal de ato iguala e o direito penal de autor desiguala, pois trabalha com juízos de valores distin-tos, criando discriminações indevidas. A igualdade deve ser objetivamente mensu-rada ou verificada e não subjetivamente.

São iguais para o direito penal mate-rial, sem distinção alguma, aos nacionais, estrangeiros, homens e mulheres, todos maiores de 18 anos a aplicação da norma segundo a tipicidade - crime – e a pena, critério de reincidência, delito consumado ou tentado, etc. As diferenciações existen-tes dizem respeito a critérios jurídicos de distribuição, em base a princípios de direi-to e não de características pessoais.

Toda e qualquer afirmação arbitrá-ria da vontade se fundamentam em com-promissos subjetivos. O que se opõem a igualdade é o tratamento desigual arbitrá-rio, abusivo ou injustificável. Não se justi-ficam contradições entre princípios e sua aplicação – antinomias -, e as dicotomias sim – divisão lógica de conceitos em dois ou mais outros, compondo-se em “corpo e alma”.

Russeau afirmou: “por igualdade temos de entender, não que o grau de po-der e de riqueza é absolutamente idêntico para todos, mas que...nenhum cidadão é bastante rico para comprar outro, nem há nenhum tão pobre que seja forçado a ven-der-se a si mesmo”, in Contrato Social.

3.2. Já no princípio da legalidade ou da reserva legal, não há crime sem lei ante-rior que o defina, nem pena sem prévia co-

minação legal: nullum crimen, nulla poena sine praevia lege (art. 5o. Inc. XXXIX CF), princípio também contido no Código Penal art. 1o. , da anterioridade da lei.

Por sua vez, os Poderes Públicos são harmônicos e independentes, onde todo poder emana do povo e em seu nome será exercido, por meio de representantes le-gítimos (parágrafo único do art. 1º CF), princípio da representação popular e da indelegabilidade de função, no contexto das atribuições e competências funcionais (arts. 69 e segts CPP, arts. 21 usque 24, art. 44 e sgts, art. 76 e sgts, e art. 92 e segts, art. 127 e 129 CF), dos órgãos, instituições e Poderes Públicos (Executivo, Legislativo e Judiciário).

No Estado Democrático de Direito, as condutas ilícitas e as respectivas san-ções somente podem originar de lei crimi-nal discutida, elaborada e aprovada pela União, “ex vi” do art. 22, inc. I CF.

A vigência da norma deve ser ante-rior ao fato ilícito praticado, definido em todas as suas características (tipicidade), toda conduta ilícita deve estar descrita em lei, taxativamente. A sansão obrigato-riamente deve cominar um mínimo e um máximo de pena a ser aplicada, para coi-bir abusos ou benevolências por parte da autoridade. Compreende a palavra crime, também a contravenção penal, e pena to-das as espécies reconhecidas pela norma penal material positiva, isto é, privativas de liberdade (reclusão, detenção, prisão simples), restritivas de direito (prestação de serviços à comunidade, interdição tem-porária de direitos, e limitação de fim de semana), e ainda, as penas pecuniárias (de multa).

O prof. Zaffaroni tem se posicionado no sentido de ser, nos Estados Democráti-cos de Direito, perfeitamente admissível a aplicação de pena abaixo do mínimo legal, cominado “in abstrato” para o tipo especí-fico, se na hipótese “in concreto”, mesmo

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sendo aplicada a menor pena, ainda assim torna-se desproporcional com a ofensa ou com o dano resultante do ato delituoso. Neste caso é justificável que o magistra-do ao exarar a sentença faça menção aos princípios da proporcionalidade, da huma-nidade e de boa-fé ou “pro homine”, sem afetar o princípio da legalidade ou da re-serva legal15.

O Código Eleitoral (4.737/65) em alguns dispositivos, no tocante a previsão de pena “in abstrato”, no que se refere aos possíveis crimes eleitorais, não estabelece pena mínima, somente a sanção máxima, ex. detenção ou reclusão até ...anos, sendo este é o limite legal para a aplicação judi-cial (arts 289 e segts); nesse sentido, pen-samos ser um bom sistema de cominação de pena, posto que evita qualquer discus-são ou má interpretação da lei, proporcio-nando a efetiva realização da justiça para cada caso “in concreto”.

Jamais é permitido ou é possível o contrário, ou seja, aplicar pena acima do máximo legal cominado, visto que afetaria princípios democráticos, onde não se ad-mite agravar situação legal ou que na prá-tica venha acarretar prejuízo ao réu.

Também, quando se trata de consi-derar na aplicação do “quantum” da pena, as circunstâncias agravantes e atenuantes, estas últimas deve sempre prevalecer sobre aquelas, são a base para o cálculo geral e fi-nal da sanção, esta é a fórmula que se deve utilizar no Estado Democrático de Direito e preservação das garantias fundamentais da cidadania, no tocante a realização con-creta da justiça, pois sempre se aplica e se interpreta a lei – norma - mais favorável, isto é “pro homine” ou de boa-fé.

No direito penal ante um mesmo caso, pode-se dar diferentes resoluções, segundo a interpretação “pro homine” ou de boa-fé do operador, nesse sentido Louk Hulsman, e Jacqueline Bernart de Celis na obra “Peines perdues. Lê système pénale

en question; Paris, 1982”, contam para ilustrar a situação dos 5 estudantes que se encontravam vivendo juntos em uma “re-pública” e certa vez quando estavam assis-tindo uma importante partida de futebol, decisão de um campeonato, em um dado momento, um dos estudantes morador, re-pentinamente levanta-se da poltrona, toma a televisão nas mãos e atira pela janela, espatifando-a na calçada enfrente ao pré-dio; todos sem entender o ocorrido, estu-pefatos começam a procurar uma solução para a situação problema: o primeiro fala drasticamente e propõem a prisão, chamar a polícia porque se trata de crime de dano; o segundo diz que prisão é cruel demais e porque não procurar uma medida alternati-va; o terceiro contemporiza afirmando que não se trata de crime, mas sim de indeniza-ção e reparação, que o fato é da instância civil e não penal, e por sua vez o quarto colega, argumenta analisando a situação com mais calma, colocando a todos que o autor estava abalado, passava por proble-mas pessoais, econômicos e sociais, assim deveria ser entendida a causa de seu ato, e como era conhecido, amigo e viviam jun-tos, provavelmente não retornaria a fazer o mesmo, assim todos, poderiam entender o corrido e perdoar.

Para o caso, apresentou-se 4 resolu-ções distintas para o mesmo e único pro-blema; a saber:

1- prisão, detenção e reclusão (prima ratio)

2- possibilidade de aplicação de me-dida alternativa e substitutiva à prisão

3- reparação e indenização no âmbito do juízo cível

4- adoção do instituto do perdão (ju-dicial e/ou informal, privado)

O principio da legalidade e da reser-va Legal, deve ser considerado em termos das penas de prisão, e em relação as me-didas de segurança, esta por ter um tempo indeterminado de internação em hospital

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psiquiátrico configura pena de prisão per-pétua. É proibida no direito constitucional-penal pátrio. Nunca a medida de segurança poderia ser superior ao máximo da pena cominado estabelecida e aplicada aos con-denados que praticam crimes com dolo, e se assim for na pratica estará sendo mais gravosa do que a sanção imposta aos delin-qüentes que intencionalmente agem.

3.3. Também é muito importante destacar o princípio da presunção de inocência.

A inocência do cidadão não se pre-sume, deve ser assegurada pelo Estado até decisão final firme – sentença penal conde-natória – desta forma reza o inciso LVII do artº 5º da Carta Magna, taxativamente.

Impera a inocência até prova em contrário e não a culpabilidade antecipada. A inocência é inerente ao cidadão, não se presume, ela deve ser respeitada, observa-da nos termos da Carta Magna, somente após decisão firme condenatória no âmbi-to da justiça penal, é que a inocência não persiste mais, e sim a culpa, pelo devido processo legal.

Os documentos internacionais de Direitos Humanos também, art. 11 da De-claração Universal; art. 14 – 2 do Pacto In-ternacional dos Direitos Civis e Políticos, e a Convenção Americana expressa a pre-sunção de inocência no art. 8 – 2.

O princípio da presunção de inocên-cia diz respeito ao trânsito em julgado ma-terial - como questão de mérito - e formal - referente aos prazos processuais -. E a reincidência criminal, por sua vez somente deve ser aferida nos termos do art. 65 do Código Penal, ou seja, após transcorrido 5 anos entre a primeira condenação firme e a segunda sentença; jamais se admite o chamado “direito penal de autor” no siste-ma democrático de justiça, quando se faz prejulgamento sobre a condição pessoal do acusado. Há também quem diga que o ins-

tituto da reincidência caracteriza verdadei-ro “bis in iden”, visto que é um “plus” para a 1ª condenação já inclusive transitada em julgado – firme -; onde a 2ª sentença recon-sidera o calculo da primeira, agregando um aumento de pena pelo segundo fato.

“Non bis in idem” é a proibição de duplo processamento e/ou julgamento para o mesmo caso, proibição de dupla sanção para a mesma imputação, ofensa o princípio da última ratio do direito penal, colocando o ilícito criminal como “prima ratio”, desconsiderando assim a doutrina e a teoria geral do ordenamento jurídico. No contexto mais amplo ou no conceito lato sensu, caracteriza “bis in idem” duplo processamento e dupla punição até mesmo quando se trata de processos e penas de áreas distintas, mas pelo mesmo caso.

Em um Estado Democrático de Di-reito, todos os atos do Poder Judiciário de-vem ser públicos, assim expressa o art 93, IX CF; porém devemos entender como pú-blicos os atos para assegurar principalmen-te o princípio da imparcialidade e transpa-rência das decisões do Poder Judiciário.

Dar publicidade e fazer sensaciona-lismo gerando penas e condenações ante-cipadas atenta contra o Estado Democrá-tico de Direito. A Lei Orgânica Nacional do Ministério Público dos Estados (Lei nº 8.625/93), no artigo 26 inciso VI dispõem como dever do agente ministerial, dar pu-blicidade de seus atos, isto que dizer e de-ver ser interpretado, como sendo públicos os atos administrativos e jurisdicionais do “Parquet”, e não o dever de escancarar, vi-lipendiar a honra e a privacidade do cida-dão processado ou preso.

Note-se o que estabelece a Lei Or-gânica Nacional da Magistratura (Lei Complementar nº. 35/79): art. 36, inc. VI “É vedado ao magistrado manifestar-se publicamente sobre processo seu ou de ou-trem...”.

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Hora, se o magistrado, como autori-dade sentenciante, não pode se manifestar, ninguém mais pode.

O direito penal moderno (Lei nº 7.209/84) revogou a pena acessória de publicidade de sentença prevista no art. 67, inc. II do Código Penal (Dec-lei nº 2.848/40). Nem mesmo a sentença é per-mitida ser divulgada pelos meios de co-municação, como antes da decisão judicial final - de mérito - seria possível, permitido ou autorizado a afrontar o princípio da pre-sunção de inocência.

Por sua vez, qualquer ofensa a honra caracteriza ilícito penal e sujeita aos infra-tores responsabilidade criminal, em face aos crimes de calúnia, difamação e injúria (arts. 138 a 145 CP). A responsabilidade pessoal que deriva do exercício do cargo, onde informações inexatas ou agravantes que fere a reputação de alguém, a inti-midade e a vida privada que ultrapasse a conteúdo confidencial ou secreto de tais informações, visto que a integridade da chamada presunção de inocência, como direito fundamental e verdadeira garantia penal deve ser preservada em favor do pro-cessado. Como se diz: “há quem prefira a morte do que a desonra”.

O Estado democrático, via adminis-tração de justiça criminal deve atuar por intermédio de seus agentes, instituições, órgãos ou Poderes, dentro dos limites do mínimo ético, só assim se garante o devido processo legal, e a integridade moral públi-ca do Estado, com vistas a garantir a vida privada e a integridade moral individual do cidadão, com o devido respeito à dignida-de inerente ao ser humano.

Art. 5º inciso V e X CF: “é assegura-do o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano ma-terial, moral ou à imagem”; e “são inviolá-veis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o di-

reito de indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

A imprensa e os meios de comunica-ção de massa, também são regulados nas suas atividades, há limites e limitações le-gais que devem ser respeitadas, qualquer atentado contra o direito fundamental-constitucional contra a imagem da pessoa humana poderá ser sancionada através do devido processo legal (Lei nº. 5.250/67), de indenização e reparação dos danos mo-rais e materiais.

Atos de verdadeira Justiça dispen-sam qualquer espécie de publicidade ou propaganda16.

3.4. O princípio da retroatividade da lei penal mais benigna, é definido no art. 2o e parágrafo único do Código Penal (lei penal no tempo), na Constituição vigente consta no inciso XL art.5o, “a” lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”, trata-se do chamado – “abolitio criminis”, quando lei nova deixa o fato anterior de considerar crime; é também causa extin-tiva da punibilidade prevista no inciso III art. 107 CP; e quando lei posterior benefi-cia o agente, ainda que o fato esteja deci-dido por força de sentença penal transitada em julgado.

A interpretação mais benigna, ou seja, favorável ou em benefício do réu é a base do Direito Penal democrático, é regra impositiva de hermenêutica jurídica, para a correta aplicação da norma vigente ao caso “in concreto”. Não se trata de benevo-lência à nenhuma espécie de delinqüente ou de tratamento desigual, mais de princí-pio mor que deve sempre ser seguido no regime acusatório, do contrário estaremos diante do sistema inquisitivo, este já, há muito tempo revogado.

Exceto quando se tratar de lei penal temporária ou excepcional (art. 3º CP), vale a norma vigente na época do fato,

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mesmo cessada as circunstâncias que a de-terminaram. É uma exceção a regra geral, porque é conhecido por todos os cidadãos o período de sua vigência e revogação (ab-rogação), em vista a momentos especiais ou circunstanciais. Se neste caso fosse per-mitida aplicação do princípio geral – abo-litio criminis – teríamos a impunidade con-sagrada, prevista e antecipada.

De outra parte, o princípio da ampla defesa e do contraditório, encontra-se pre-visto no art. 5o incisos LIII, LXII, LXIII, LXIV da CF, dispõem: “ninguém será pro-cessado nem sentenciado senão pela auto-ridade competente” (autoridade competen-te, somente pode ser autoridade judiciária, isto é, Magistrado de 1o, ou de 2o instância, o representante da oficialidade da ação e processo penal, onde o “ius persequendi” só pode ser exercido pelo poder público e princípio da indeclinabilidade, que proíbe ao Juiz delegar funções a pessoa estranha ao serviço).

“Ex vi”art. 11 item 1, letra “a” da DUDHart. 8, item 2 da CADHart. 14 item 3 do PIDCP“A prisão de qualquer pessoa e o lo-

cal onde se encontra serão comunicados imediatamente ao Juiz competente e à famí-lia do preso ou pessoa por ele indicada”.

“O preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial”.

Estes dois dispositivos constitucio-nais estão expressos nos arts. 9o e 306 do Código de Processo Penal, estabelecendo que todas as peças do Inquérito Policial serão assinadas pela autoridade policial; e que dentro de 24 (vinte quatro) horas depois da prisão, será dado ao preso, nota de culpa, declinando os motivos da prisão, bem como comunicado o juiz competente.

Se ilegal a prisão está será imediata-mente relaxada pela autoridade judiciária

(inciso LXV art. 5o CF) e art. 9º da De-claração Universal dos Direitos Humanos “Ninguém será arbitrariamente preso, de-tido ou exilado”.

“O preso será informado de seus di-reitos, entre os quais o de permanecer ca-lado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e do advogado”.

O art. 186 do CPP já prevê desde 1942 - ano em que entrou em vigor o esta-tuto processual penal -, que o juiz observa-rá ao réu que não está obrigado a responder as perguntas que lhe forem formuladas, da mesma forma o § 3o do art. 302, reza que o acusado não é obrigado a assinar o auto de prisão em flagrante delito, devendo então ser assinado por duas testemunhas.

A Constituição federal (art. 5º inc. LXIII) assegura o direito do preso em per-manecer calado, e que este direito não re-sulta em seu prejuízo, assim a Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2003, complementa o direito constitucional, sendo na verdade dispensável, ou melhor desnecessário, pois se trata de redundância legislativa sem for-ça alguma, vez que a norma constitucional com maior valor já prescrevia o conteúdo da mencionada regra.

Por sua vez, o inciso LVIII art. 5o CF reza: “o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal”, estando derrogada a Súmula n. 568 do Su-premo Tribunal Federal que considerava não haver constrangimento ilegal à pessoa a identificação no inquérito policial.

3.5. O princípio da ampla defesa, como o próprio nome já diz, é muito am-plo, e mais amplo do que muitos juristas imaginam, por exemplo, a Corte Intera-mericana de Direitos Humanos, em uma de suas decisões exarou que se tratando de réu estrangeiro, se faz necessário, para não anular o ato judicial, no interrogatório além do defensor constituído e habilitado

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para atuar na justiça do País em que está tramitando o processo-crime, é preciso a presença física de agente da representação diplomática de seu País (ver decisão da Corte Interamericana de Justiça da OEA, sobre a correta interpretação da cláusula 8 da Convenção Americana sobre Direi-tos Humanos (OEA/1969); cláusula 14 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (ONU/1966) San José 1969; e as Convenções sobre Relações Diplomáticas e Consulares).

Também na hipótese de acusado na-cional que esteja sendo processado pela justiça de seu próprio País, se faz necessá-rio a presença física de defensor e do pró-prio réu, do contrário acarreta nulidade o ato. É direito fundamental e indisponível da cidadania que a pessoa processada, pre-sa ou não, presencie os atos de justiça, pos-to que estão sendo realizados contra ela. É o mínimo ético que o Estado-Administra-ção deve fazer no chamado sistema acusa-tório democrático. No passado julgava-se e condenava-se à revelia, hoje não é mais possível em virtude do disposto no artigo 366 do Código de Processo Penal.

A jurisprudência abaixo citada é fla-grantemente inconstitucional por ferir o princípio da ampla defesa e normas inter-nacionais de Direitos Humanos, serve ape-nas para se ter conhecimento sobre a atual e indevida práxis-forense adotada, ante a flagrante e incorreta interpretação e aplica-ção da norma penal vigente.

No contexto do princípio da ampla defesa encontra-se presente o disposto na Lei nº 1.060/50, e inciso LXXIII, do ar-tigo 5º da Carta Magna, sobre assistência judiciária gratuita aos presos e processa-dos que necessitarem, independentemen-te de nacionalidade, como obrigação do Estado processante; assim o Decreto nº 62.978/1968, promulga a Convenção sobre Assistência Judiciária Gratuita entre o Bra-

sil e Argentina, onde os nacionais de cada Estado-Parte (Brasil-Argentina) gozarão em igualdade de condições dos mesmos benefícios legais e judiciários previstos, bastando a expedição de uma declaração fornecida pela representação diplomática.

Emenda constitucional nº 45/2004, estipula no “Art. 134, § 2º, que: “Às Defen-sorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no art. 99, § 2º”.

De outro lado, destacamos que para ser efetivado o Estado Democrático de Direito, se faz necessário o exercício com-pleto da prestação jurisdicional, em outras palavras, inclui-se no poder de jurisdição a atuação de Poder Judiciário e dos órgãos essenciais à função jurisdicional do Esta-do, ou seja, a instituição do Ministério Pú-blico (art. 127 CF) e da Defensoria Pública (art. 134 CF), cada qual com sua missão constitucional. Inexistindo a Defensoria Pública não há que se falar em jurisdição ou no poder de julgar com imparcialidade em busca da realização da Justiça plena17.

O inciso LVI art. 5o da CF, prevê: “São inadmissíveis no processo as provas obtidas por meio ilícito”; evidentemente que só se admitirá as provas previstas e lei, ou seja, aquelas cuja produção consta no Código de Processo Penal art. 155 e se-guintes, exame de corpo de delito, provas testemunhais, periciais, documentais, etc.

Quanto às violações de privacidade ou da intimidade do indivíduo como ga-rantias constitucionais fundamentais, so-bre a quebra do direito de inviolabilidade do direito à comunicação, seja na forma de interceptação telefônica e sigilo bancário e fiscal é tema de extrema importância. A práxis jurídico-policial vem violando cor-riqueiramente o texto constitucional18.

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Outras garantias fundamentais indi-viduais e coletivas foram mantidas na nova Constituição, estão expressas no art. 5o, entre elas podemos citar:

a) inciso XI, “a casa é asilo invio-lável do indivíduo”, o crime de violação de domicílio está previsto no CP art. 150 e comina pena privativa de liberdade, es-pécie detenção de um a três meses ou mul-ta; existindo violência, pena até dois anos, além da pena correspondente à violência.

b) inciso XXII, “é garantido o direi-to de propriedade”.

c) Inciso XXIV, “a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro,...”

d) A Declaração Universal dos Di-reitos Humanos (ONU/1948) prevê no art. 17, que toda pessoa tem direito à proprie-dade, individual e coletiva.

e) inciso XII, “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunica-ções telefônicas” da mesma forma, o art. 151 § 1o inciso I, II, III e IV § 2o, 3o, e 4o do CP prevê penas que vão até seis meses aumentadas até a metade, se há dano para outrem, crimes de violação de correspon-dência, sonegação ou destruição e violação de comunicação telegráfica, radioelétrica ou telefônica.

f) inciso IX, “é livre a expressão da atividade intelectual, artística , cientifica, independente de censura ou licença”, o di-reito do material nos arts. 184 usque 207, tipifica os crimes da propriedade intelectu-al, bem como a norma extravagante” Lei 5.988/73 de direitos autorais.

A liberdade do exercício do trabalho. O inc. XIII, do art. 5º da Carta Magna as-segura o direito à criação e o de associação de classe e sindicalização, desde que com fim legítimo e pacífico. Qualquer pertur-

bação ao trabalho configura contravenção e delito, tipificado nos arts. 47 à 49 da Lei das Contravenções Penais (Dec-lei n. 3.688/41), e arts. 197 à 207 do Código Pe-nal (Dec-lei n. 2.848/40).

Sobre a plenitude do direito ao traba-lho, associação, sindicalização, os instru-mentos internacionais de aceitação tácita e expressa, definem regras básicas, como:

Convênio relativo ao trabalho força-do ou obrigatório (OIT/1930 – Convênio n. 29).

Convênio relativo a abolição do trabalho forçado (OIT/ 1957 – Convênio 105).

Convênio para a repressão do trata-mento de pessoas e da exploração da pros-tituição alheia (ONU/ 1949).

Convenio relativo à discriminação em matéria de emprego e ocupação (OIT/ 1958 – Convênio n. 111).

Convênio sobre a igualdade de se-guridade social (OIT/1952 – Convênio n. 102).

Convênio relativo aos trabalhadores migrantes (OIT/1949 – Convênio n. 97).

Convênio sobre as migrações em condições abusivas e a promoção da igual-dade de oportunidades e de tratamento dos trabalhadores migrantes (OIT/1975 – Con-vênio n. 143).

Convênio relativo a liberdade sindi-cal e a proteção do direito de sindicaliza-ção (OIT/1958 – Convênio n. 87).

Convênio relativo à aplicação dos princípios de direito de sindicalização e de negociação coletiva (OIT/1949 – Convê-nio n. 98).

Convênio sobre a política de empre-go (OIT/1964 – Convênio n. 122).

Convênio sobre a organização de tra-balhadores rurais e sua função no desen-volvimento econômico e social (OIT/1975 – Convênio n. 141).

Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU/1948).

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De outro lado, o Código Civil (Lei nº 10.406/2002), traz disposição que afronta o texto constitucional, quando estabelece que o juiz pode censurar (art. 20), proibir divulgação de escrito, imagem, transmissão de palavra, contrariando a Lei Maior que assegura a liberdade de comunicação, ati-vidade artística e profissional, independente de qualquer licença. O dispositivo afeta a inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e a imagem das pessoas, ademais a Carta Magna prevê que nenhuma lei conte-rá dispositivo que possa constituir embara-ço à plena liberdade de informação, sendo vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística (art. 5º IX, X, XIII e art. 220 §§ e incisos CF).

Somente nas hipóteses de decretação de Estado de Defesa e de Sítio, nos termos da Constituição federal, permite-se res-tringir direitos e/ou liberdades civis (arts. 136 usque 139 CF), mediante ato do Presi-dente da República, ouvidos os Conselhos da República e de Defesa Nacional, bem como necessita ainda autorização do Con-gresso Nacional; entre os direitos que po-derão ser restringidos, citamos a liberdade de reunião, o sigilo de correspondência e de comunicação (telegráfica, telefônica e a correspondência), poderá também ser tomadas medidas contra as pessoas, como buscas e apreensões, requisições de bens e a obrigação de permanência em localidade determinada.

g) – Inciso IV - Liberdade de pen-samento e a crença religiosa. É um dos princípios reitores do Estado Democrático de Direito, sendo livre a manifestação de pensamento, sem qualquer distinção ou descriminação.

A Lei 5.250/67, regula a atividade da imprensa, e no artigo 5º inc. V assegura o direito de resposta, também o inc. VI do mesmo dispositivo estabelece a inviolável da liberdade de consciência, não havendo nenhuma espécie e censura (art. 220 pará-

grafos 1º e 2º CF), assim o inc. VIII, prevê que ninguém será privado por motivo de crença religiosa, convicção e filosófica, política, além de dispor o inciso IX, que é livre a expressão da atividade intelectu-al, artística, científica e a comunicação em geral, tudo desde que não configure crime contra a honra (calúnia - art.138 CP, que significa fato definido como crime; difa-mação - art.139 CP, que refere-se a ofensa a reputação de fato determinado; e a injú-ria - art.140 CP, que caracteriza ofensa à dignidade ou decoro de fato vago); sendo inviolável a honra, e assegurado o direito à indenização (inc. X art. 5º CF).

O art. 93 inciso IX da CF (Emenda constitucional nº 45/2004), prevê: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Ju-diciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em de-terminados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimi-dade do interessado no sigilo não prejudi-que o interesse público à informação”.

3.6. O princípio de amplitude da li-berdade de crença (inc. VI do art. 5º CF), através do livre exercício de culto religio-so, garante a proteção devida em todos os locais de liturgia, como reza o inc. VII, so-bre a prestação e assistência religiosa em locais de internação coletiva, a exemplo das escolas, hospitais, quartéis e presídios (estabelecimentos penais). Qualquer aten-tado a este direito fundamental configura ilícito previsto no Código Penal, art. 208, como crime contra o sentimento religioso.

Do mesmo os instrumentos interna-cionais de Direitos Humanos garante a li-berdade de pensamento, cito a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, a Convenção Americana sobre Direitos

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Humanos, a Declaração sobre a elimina-ção de todas as formas de intolerância e discriminação fundadas na religião ou nas convicções, entre outros documentos de igual importância.

3.7. Por sua vez, o princípio da obri-gatoriedade da ação penal pública, conti-do no art. 129 da Constituição reza que é função institucional privativa do Ministé-rio Publico a promoção da ação penal pú-blica; portanto, derrogado expressamente pela Magna Carta a possibilidade de ações penais iniciarem mediante portarias da au-toridade judiciária (juiz de direito), como, por exemplo ocorria no passado, nos casos de homicídio culposo e lesão corporal cul-posa (lei n.4.611/65), nas contravenções penais que permitia o delegado de polícia, excepcional função judiciária, sendo-lhe facultado o procedimento de ofício, indo de encontro ao princípio “no judex ex offi-cio”, posto que mediante portaria instaura-va ação penal.

Devemos compreender e interpretar o princípio da titularidade exclusiva da ação penal pública de uma forma mais ampla, daquela que vem sendo exposta pela dou-trina e jurisprudência nacional. Quando a Carta Magna expressa que a instituição do Ministério Público possui poder privativo para a promoção da “persecuitio criminis”, quer dizer é o “dominus litis” da demanda, do início ao fim da ação penal, em outras palavras, desde a promoção do arquiva-mento da investigação policial, passando pelo oferecimento da exordial – denúncia -, até as alegações finais, ou seja, antes dela propriamente dita, com a possibilidade do pleitear o trancamento da ação penal, pelas hipóteses previstas no art. 647/648 e segts. do Código de Processo Penal, via habeas corpus, e com o pedido de absolvição, pre-visto no art.386 do mesmo “codex”.

Quando o Ministério Público solicita perante o juiz o trancamento da ação penal

ou a absolvição, não é legítimo ou legal que o Poder Judiciário se oponha, visto que o autor da demanda estatal - Parquet -, entende pela desnecessidade do próprio litígio criminal e ou em nome dos princí-pios gerais de justiça que o réu deve ser absolvido ou declarado não culpado. Do contrário, com a insistência do Poder Ju-diciário, pela continuidade da ação penal e condenação do acusado, resta quebrado o princípio da imparcialidade e do con-traditório, e até porque não dizer, não há mais que se fala no caso “sub judice” em jurisdição.

Jurisdição é poder de aplicar o di-reito objetivo, na forma pleiteado, obvia-mente, para o caso concreto. A jurisdição penal inicia e acaba quando o órgão estatal incumbido da “persecutio criminis” ou de solicitar o “ius puniendi”, conclui pela via-bilidade ou inviabilidade da causa, por inú-meras e diversas razões, considerando que o “onus probandi” é do Ministério Público e não do Poder Judiciário. A jurisdição não poder ser exercitada quando o Ministério Público não provoca o Poder Judiciário, neste contexto temos as questões de ordem objetiva e subjetiva da causa, de direito material ou formal, em relação ao princípio do livre convencimento, da autonomia e independência do agente ministerial, como prerrogativa funcional, ante a garantia da inviolabilidade de suas opiniões, manifes-tações ou resoluções processuais (art. 41 V da Lei nº 8.625/93); do contrário quebram-se as garantias jurídicas e fundamentais da cidadania e falece o Estado Democrático de Direito.

Veja-se. No sistema acusatório demo-crático, puro e perfeito, a primeira e a últi-ma palavra são do Ministério Público, para iniciar o “ius persequendi” e para exercitar o “ius puniendi”. Sem denúncia e sem pe-dido de condenação o Poder Judiciário não está autorizado, no Estado Democrático de

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Direito, a seguir com a ação penal ou con-denar o acusado, é o mesmo que dizer, sem “acussationis nullum judex”.

No sistema antidemocrático de jus-tiça criminal, no sistema de direito penal autoritário ou ainda no sistema inquisitivo, o “ius persequendi” e o “ius puniendi” é do Poder Judiciário que tem concentrado o poder investigatório e punitivo. Porém, no sistema acusatório – democrático – tanto o “ius peresquendi” como o “ius punien-di” está nas mãos do órgão acusador – do Ministério Público -, se assim não fosse, jamais poderiamos falar em Estado Demo-crático de Direito. É bom também ressal-tar que não existe ou não pode admitir um sistema misto, inquisitivo-acusatório; é um ou é outro. Nenhum “jeitinho brasileiro” é capaz de inventar tal situação, considero um verdadeiro “aberratio iuris” dos maio-res e a mais inaceitável proposta proces-sual penal.

Tanto é assim que no caso de delibe-ração pelo Ministério Público para o arqui-vamento das investigações criminais (art. 28 CPP), na hipótese do Poder Judiciário não aceitar, a última palavra cabe ao Pro-curador-Geral de Justiça, com decisão irre-corrível, porque não se admite ação penal de ofício “no judex ex officio”.

Assim, desta forma, bem compreen-dida, se o representante do Ministério Pú-blico de 1º grau solicita o arquivamento e o juiz contraria, não está quebrando o princí-pio da imparcialidade está apenas exercen-do o controle jurisdicional a ele afeto, ao encaminhar os autos ao Procurador-Geral de justiça; e quando o agente do “Parquet” pleiteia pela absolvição não cabe ao juiz contrariar, este tem o dever de assegurar e manter a imparcialidade judicial, porque o contraditório somente se faz entre as partes litigantes no processo – acusação e defesa – e não pelo Poder Judiciário. Desta forma, acabam-se por vez, as incongruências, as incoerências ou contradições de posiciona-

mentos dentro do próprio Ministério Públi-co, entre seus agentes de 1º e de 2º grau, o que é lamentável e intolerável para a parte processada, onde a mesma instituição plei-teia uma coisa e ora outra.

De outro lado, diz o art. 5o inciso LIX da CF “será admitida ação privada nos crimes de ação pública se esta não for in-tentada no prazo legal” – pelo Ministério Público - está contido no art. 29 do CPP, a chamada ação privada subsidiária da pú-blica, quando o representante o agente do “Parquet” não apresenta denúncia no prazo de lei (acusado em liberdade 15 dias, preso 5 dias), pode assim o ofendido ou suces-sor legal apresentar queixa-crime; porém a ação penal será retomada pelo Promotor de Justiça, uma vez que é o “dominus litis” da mesma.

O art. 127 da Carta Magna estabele-ce que o Ministério Público é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbe-lhe a tutela dos direitos e interes-ses indisponíveis individuais e coletivos, em outras palavras, a defesa dos Direitos Humanos e das garantias fundamentais da cidadania expressas no art. 5º e incisos da “lex fundamentalis”.

No âmbito da Justiça penal é a ins-tituição encarregada de definir na prática a política criminal do Estado, em base aos princípios e regime adotado pela Lei Maior, isto é, aqueles que se vinculam ao Estado Democrático de Direito (art. 1º CF).

Para citar alguns, por exemplo, o princípio da oportunidade, da significân-cia do dano ou prejuízo ocorrido ao bem jurídico-penal, a utilidade do movimento da máquina judiciária, a economia proces-sual, etc.

O saudoso ministro e professor As-sis Toledo é contundente ao ensinar que se não ocorrer efetivamente, no caso in concreto, dano ou prejuízo ao bem jurídico penal tutelado in abstrato, não há que se falar em crime e por esta razão não moti-

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vo para o exercício do “ius persequendi” estatal; também se a ofensa for mínima, de bagatela ou pequena demais, por si só não se justifica a persecução criminal por órgãos do Estado; neste caso deve imperar os princípios da lógica, da racionalidade, da proporcionalidade, da humanidade e outros. E não há que se falar em quebra do princípio da legalidade ou da obrigatorie-dade, posto que não é total ou absoluto.

No Estado Democrático de Direito, não se acusa por acusar, não se denuncia por denunciar, não se processa por proces-sar19.

Tudo porque as Nações Unidas re-comenda aos Agentes do Parquet, de todo o mundo que procurem renunciar e de-clinar dos processos criminais e da pena de prisão, visto que são comprovados os seus efeitos negativos; assim expressam as cláusulas ns. 17 e 18, das Orientações Bá-sicas da ONU de 1990.

Por este motivo encontra-se discipli-nado no art 129 e seus incisos da Consti-tuição federal, a privacidade e titularidade da Ação Penal Pública, o controle externo da atividade policial, dentre outras atribui-ções institucionais.

As investigações criminais pelo Mi-nistério Público, têm gerado grande con-trovérsia jurídica quanto a interpretação legal de legitimidade para tal tarefa, vez que a Constituição federal e o Código de Processo Penal (arts. 129, incisos I, VII e VIII CF; e arts. 4º e segts CPP) disciplinam e regulamentam a função ministerial e da polícia judiciária como órgão de seguran-ça pública para apurar as infrações penais, todas, exceto as de competência da polícia federal (art. 144 § 4º CF).

Ao Ministério Público é atribuída a função de controle externo das investiga-ções policiais, isto é, na forma de requi-sições ou de ordens jurisdicionais, bem como o controle completo do desenvolvi-

mento das atividades da policia judiciária, para a elucidação do crime, da materiali-dade e autoria.

Não se pode alegar que é dado direito e é legitimo ao Ministério Público investi-gar, porque se deve na atualidade ampliar o leque de combate à criminalidade, à cor-rupção, etc.; O Ministério Público não pode investigar – no sistema atual - exatamente porque é detentor do direito de controlar a investigação, de requisitar provas, de denunciar e de pedir a condenação e a ab-solvição, do contrário restaria quebrado o sistema democrático e o Estado Judiciário, bem como a isenção e a imparcialidade.

Ao nosso ver, o Ministério Público poderia investigar determinados crimes, quando expressamente definido em lei; quais os ilícitos e em que casos, assim poder-se-ia ter uma investigação criminal sob a presidência do Ministério Público subsidiária do inquérito policial, propria-mente dito, como prevê a Constituição fe-deral e a legislação penal, art. 5º inc. LIX CF - código penal e de processo penal, § 3º art. 100 CP e art. 29 CPP -, uma espécie de ação penal privada subsidiária da pública; exercendo assim o controle externo da ati-vidade policial, nos termos do art. 129, inc. VII da Carta Magna.

Somente se justificaria a investigação direta pelo Ministério Público quando a polícia for declarada ou reconhecida como incompetente, irresponsável ou corrupta. A investigação ministerial subsidiária do in-quérito policial, poderá existir legalmente nas hipóteses de:

a)- haver inércia quando os órgãos de segurança pública ou a polícia judici-ária não agir de oficio, não cumprir atos e prazos legais;

b)- quando a significatividade do caso exigir a atuação especial do Ministé-rio Público, por exemplo:

- nos crimes contra administração pública e da justiça

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- nos crimes contra instituições finan-ceiras, desfalques e lavagem de dinheiro

- nos crimes de desvios de verbas pú-blicas

- nos crimes contra a criança, adoles-cente e idoso

- nos crimes contra o meio ambiente - nos crimes que envolvam o narco-

tráfico - nos crimes organizados; e/ouc)- quando em algum ilícito existir a

participação direta ou indireta envolvendo policiais ou agentes de segurança pública.

Assim seria lógico e racional, nestes casos, que representam maiores danos aos direitos individuais e coletivos da cidada-nia, e também com motivo de preservar as instituições da Polícia Civil, Federal e Militar, o Ministério Público toma as in-vestigações do caso “in concreto”, dando desta forma mais transparência e imparcia-lidade aos atos de persecução criminal do Estado.

Só nestas hipóteses justificaria a in-vestigação policial-criminal pelo Ministé-rio Público, do contrário configura interfe-rência, dupla função, intromissão indevida, exercício arbitrário, abuso de poder e usur-pação de função pública, no conceito “lato sensu”.

Nestes e em outros crimes o Ministé-rio Público não estaria restrito e obrigado a investigar, também a seu critério ou juízo de valor, segundo sua capacidade estrutu-ral ou interesse direto, teria o poder para delegar a função investigatória ministerial à polícia, através de requisições para ins-taurações de inquéritos policiais e de dili-gências específicas como estabelece o art. 5º II do Código de Processo Penal, acom-panhando o trabalho da policia via a atri-buição constitucional na forma de controle externo previsto na Carta Magna.

Ressaltamos que esta é a maneira para regulamentar o poder de investigação

criminal pelo Ministério Público, legiti-mando a ação e suas atribuições legais, de-finindo assim quais os crimes de sua com-petência direta, a possibilidade de delegar a função à polícia, bem como o direito de assumir, tomar para si, a investigação mi-nisterial subsidiária do inquérito policial. Tudo perfeitamente previsto e disciplina-do, o que não é admissível no Estado De-mocrático e no sistema acusatório, é que o Ministério Público pretenda investigar o que deseja e quando deseja, sem critério legal, única e exclusivamente segundo seu juízo ou interesse, longe de limites legais, isto é, escolhendo casos, o que no mínimo indica, suspeita, para arquivar, absolver ou condenar indevidamente comprometen-do a lisura, a probidade e a honra pessoal de seus membros e da instituição no seu todo.

Sem modificação no Texto Maior através de uma emenda constitucional e sem a vigência de legislação federal, o Ministério Público investigando configura indubitavelmente Promotoria de Exceção, proibida constitucionalmente.

Vários autores, professores e juris-tas renomados são contrários a investiga-ção do criminal pelo Ministério Público (ex. Rogério Lauria Tucci; Flavio Borges D’Urso; Min. Nelson Jobin, e tantos ou-tros penalistas ilustres) por inexistir lei no presente momento que regulamente o pro-cedimento investigatório ministerial; bem como porque o nosso sistema inquisitivo (Código de Processo Penal) não possibilita tal desiderato. Nos países em que o Minis-tério Público investiga, o sistema é outro, é acusatório, existe principalmente a figura do chamado “juiz de garantia”, indepen-dente e desvinculado com a seqüência da instrução e proibido de sentenciar; portanto é um magistrado taxativamente imparcial. No caso brasileiro, não é desta forma que ocorre, posto que o mesmo juiz atua na in-

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vestigação, na instrução criminal e decide. Esta, portanto, é a questão de fundo que deve ser discutida cientificamente, e não o interesse da instituição ou da sociedade para que se combata a criminalidade orga-nizada, os crimes violentos ou a impunida-de. Trata-se de questão meramente formal para garantia da cidadania e da ordem jurí-dica, em outras palavras pela efetivação do Estado Democrático de Direito.

Todos os cidadãos possuem o direito de saber e de ser processado e julgado por promotores e juízes naturais da lide, res-pectivamente, sendo taxativamente proi-bido a criação de Promotorias e Tribunais especiais para investigação e julgamento de casos excepcionais.

Na verdade se existisse a instituição da defensoria pública, obviamente que seus membros ou representantes não iriam admitir a possibilidade de um Delegado de Polícia vinculado diretamente à Promoto-ria de Investigações Criminais (PIC). Esta Promotoria de Justiça de Investigações Criminais pode existir, porém com atri-buições regulamentadas que não ofendam o princípio da imparcialidade e do “onus probandi” no Estado Democrático, garan-tindo-se de outra forma, também os prin-cípios da ampla defesa e do contraditório, indispensáveis à efetivação do devido pro-cesso legal.

O Ministério Público pode e deve investigar, mas na prática esta missão se manifesta através das requisições ministe-riais, o que significa ordem de diligências à autoridade de polícia judiciária, via Inqué-rito Policial e/ou Processo Crime, propria-mente dito, sempre sob controle da legali-dade, isto é em preservação das garantias fundamentais.

No sistema acusatório o mesmo ór-gão que produz a prova, centraliza e con-trola a investigação não pode propor a Ação Penal o “ius persequendi”, do con-

trário o delegado de polícia e também o magistrado poderiam de igual forma. Esta proibição significa respeito aos princípios gerais do sistema acusatório democrático, em nome das garantias fundamentais da cidadania e para a realização da verdadeira justiça imparcial.

É de se lembrar que no passado tanto a autoridade policial como a judiciária tam-bém investigavam e iniciavam a acusação, dando seqüência através da “persecutio criminis, era uma espécie “sui generis” de procedimento criminal via Portaria, o que foi revogado pela Carta Magna de 1988.

No Estado Democrático de Direi-to não se admite que existam dois órgãos ou instituições com a mesma atribuição, a duplicidade de função não é possível no regime democrático, vez que todas as atribuições são perfeitamente divididas e encarregada a cada Poder do Estado, para que independente e harmonicamente se in-tegrem e desempenhem as missões e prer-rogativas constitucionais.

Vejamos por exemplo, na ocorrên-cia de retardo ou desinteresse de exercer o papel determinado pela lei, e o agente não o faz, por má-fé, não realiza o ato para satisfazer vontade própria ou de terceiro, estaria cometendo o crime de prevarica-ção, definido no art. 319 do Código Penal; porém havendo dois órgãos incumbidos da mesma tarefa fica quase que impossível e inviável caracterizar o ilícito e imputar responsabilidade criminal, pela da inércia, posto que um imputará a culpa ou a incum-bência a outro.

Quando se concede a titularidade para a propositura da Ação Penal Pública ao Ministério Público, não se estende esta para a investigação policial, são atribuições distintas, com fases também distintas.

As legislações penais e processuais vigentes em outros países que permitem o Ministério Público investigar, no caso de

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algumas na América Latina como na Eu-ropa, são sistemas distintos, acusatórios e não inquisitivos, onde se encontra previs-to os direitos fundamentais, dentre eles da ampla defesa e do contraditório, bem como os princípios da legalidade da prisão e do processamento – devido processo legal – do ônus da prova, da presunção de ino-cência, tudo perfeitamente observado dire-tamente pela figura do juiz de garantias.

Sistema acusatório significa que o Estado, ou melhor, o Ministério Público quando apresenta uma denuncia contra um cidadão, o faz em base a provas sólidas e robustas quanto ao dolo – conhecimento da proibição legal e intenção de praticar uma conduta ilícita - sem prejuízo da ampla de-fesa e do princípio do contraditório, espe-cialmente no que se refere a garantia mor, a presunção de inocência e o dever maior ministerial, o “onus probandi” (aquele que acusa tem o dever de provar). Não se ad-mite acusar, denunciar ou pleitear a con-denação amparada em indícios, como no passado autoritário.

Note-se. No Estado Democrático de Direito e/ou no sistema acusatório (de jus-tiça penal) o Ministério Público na verdade não acusa, porque a expressão “acusar” ou “acusação” não é a mais correta ou ade-quada a um sistema de garantias constitu-cionais fundamentais, o agente do “Par-quet”, no uso de suas atribuições legais quando oferece denúncia requer ao Poder Judiciário, simplesmente a instauração da ação penal pública correspondente, já o pe-dido de condenação dever ser feito somen-te nas suas derradeiras alegações, quando efetivamente convencido da culpabilidade, provada a autoria e a materialidade deliti-va, tudo em base a elementos concretos e absolutos, do contrário impera o princípio “in dúbio pro reo”.

A quem diga que o Ministério Públi-co pode investigar porque muitos órgãos

e instituições investigam e por que não é dado direito também ao Promotor de Justi-ça, ledo engano; pela única e simples razão de ser o agente do “Parquet” encarregado exclusivo (art. 129, inc. I CF) da proposi-tura da Ação Penal, titular e “dominus li-tis” da “persecutio criminis”.

Por exemplo: os membros das CPIs – Comissões Parlamentares de Inquérito – possuem poder para investigar, também o Poder Judiciário quando da ocorrên-cia de ilícitos praticados por magistrado, ainda os repórteres investigativos, dentre outras várias situações ou hipóteses; mas em nenhum caso, repito, em nenhum caso, possuem o poder de oferecer denúncia no processo criminal, somente o Ministério Público, lhe é dado esta atribuição, e não o poder de investigar.

Em excelente artigo publicado in MP Notícias, de autoria do Prof. René Ariel Dotti, intitulado “O Desafio da Investiga-ção Criminal”, assevera que é simplista a afirmação generalizadora segundo a qual o Ministério Público não detêm poderes de investigação, visto que o Delegado inves-tiga; o agente policial investiga; o escrivão de Polícia investiga; o Advogado investi-ga; o Juiz investiga; o perito investiga. Po-rém, é necessária uma reordenação consti-tucional-legal para estabelecer o concurso de funções. O inquérito policial ou melhor criminal deve constituir um procedimento único, não se admitindo uma investigação paralela, a um Procedimento Administra-tivo Investigatório pelo Ministério Públi-co. Se faz necessário um novo modelo de investigação criminal, mantendo-se a ta-refa policial, do Delegado de Polícia, ao instaurar o inquérito produzirá as provas mínimas e necessárias que o acreditem, e posteriormente ao enviar ao Ministério Pú-blico - não ao Poder Judiciário -, este pro-cedimento – caderno investigatório -não mais retornará à repartição policial, fica

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sob cuidados de continuidade para junta-da de provas complementares pelo agente ministerial natural – promotor competen-te, isto é de investigação criminal -, ante a indispensável supervisão de um juiz de garantia para o devido controle jurisdicio-nal, assegurando desta forma os princípios gerais da ampla defesa e do contraditório, já que o “ônus da prova” compete ao ór-gão “acusador” (MP); porém, este não se encontra obrigado a acusar, pode e cabe pleitear o arquivamento das investigações criminais “ex vi” do art. 28, 41, 43, 647 e 648, todos do Código de Processo Penal.

Inclusive existindo um Procedimento Investigatório sob a presidência do Delega-do de Polícia, que exerce sua função cons-titucional-legal de polícia judiciária (arts. 144, incis. I e VI, e 4º da Carta Magna e do Código de Processo Penal, respectivamente) em paralelo ou com participação direta pelo Ministério Público, na hipótese de configu-rar coação ou constrangimento ilegal, quem seria a autoridade co-atora?, contra quem se impetraria ordem de habeas corpus?

Para René Ariel Dotti, o chamado Procedimento Administrativo Investiga-tório Criminal instaurado e presidido pelo Ministério Público é inconstitucional, por-que ofende o princípio do devido processo legal, não existe prazo para o seu encerra-mento, não existe previsão legal ou regula-mentar para expedir notificação com força de expedir notificação e exigir o compare-cimento coercitivo do notificado. Ofende a ampla defesa porque não permite ao acu-sado requerer diligências, o sigilo é regra e não exceção, fere portanto o princípio da legalidade, e não pode ser objeto de lei estadual, visto que a competência para le-gislar em matéria penal e processual é ex-clusiva da União (art. 22, inc. I CF), assim, qualquer lei federal que estabeleça normas gerais que contrarie lei estadual, suspende sua eficácia, são os limites da competência

do Estado legislar concorrentemente (§ 4º art. 24 CF).

No passado, a exemplo da época da inquisição era dado direito ao juiz ou a au-toridade que sentenciava, investigar, acu-sar e julgar, mas isto era no período da in-quisição ou dos Tribunais do Santo Ofício. Hoje na vigência do Estado Democrático de Direito (art. 1º CF), não é mais possível admitir que órgãos encarregados de ofe-recer denúncia possam antes também in-vestigar e exercer sua função de acusador, pleiteando ao final a condenação.

É óbvio que quem esta investiga e oferece denúncia, conseqüentemente não será outro a não ser o requerimento de con-denação, quebrando desta maneira o prin-cípio da imparcialidade, da ampla defesa e do contraditório.

A investigação criminal pelo Minis-tério Público somente será possível legal-mente quando for modificado o artigo 144 § 4º da Constituição Federal, via emenda constitucional que define a atribuição de investigar à polícia judiciária, seja federal ou civil, de acordo com a competência da justiça penal. Dizer que o Ministério Públi-co pode investigar porque é titular da ação penal e porque tem poder para requisitar diligências policiais, é tentar confundir ou fazer imensa confusão entre institutos jurí-dicos e atribuições dos órgãos e instituições públicas, segundo reza a “lex fundamenta-lis” e a legislação infraconstitucional, isto é, o Código de Processo Penal e a Lei Or-gânica Nacional do Ministério Público dos Estados e da União (Leis nºs 8.625/93 e Complementar 75/93, respectivamente).

Não se pode alegar que é dado direito e é legitimo ao Ministério Público investi-gar, porque se deve na atualidade ampliar o leque de combate a criminalidade, à cor-rupção, etc.; que as Comissões Parlamen-tares de Inquérito investigam, como a im-prensa, o Poder Judiciário quando no fato

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delituoso existe magistrado envolvido, etc. São todos exemplos que não afetam o princípio da imparcialidade e da inércia, porque não postulam a ação penal, não são “dominus litis” da demanda judicial. O Mi-nistério Público não pode investigar exata-mente porque é detentor do direito de con-trolar a investigação, de requisitar provas, de denunciar e de pedir a condenação, do contrário restaria quebrado o sistema de-mocrático e o Estado Judiciário, bem como a isenção e a imparcialidade.

O princípio da transparência e da boa-fé, deve reinar na administração pública, essência de qualquer investigação criminal ou ação penal, vinculando-se ao princípio mor de justiça, diretamente entre o órgão “acusador” e o cidadão que se defende, para a realização do devido processo, justo e necessário, ante os princípios do “onus probandi” ministerial e especialmente o da “presunção de inocência”.

A Carta Magna garante no inciso XXXVII do art. 5º, que não haverá Tribu-nal de exceção, inclua-se Promotoria de Justiça de exceção, aquelas designações especiais para agentes do Ministério Pú-blico atuarem no feito, após o fato consu-mado.

Promotor de Justiça (Natural) é todo aquele agente ministerial com poderes e atribuições administrativas e jurisdicio-nais exclusivas, previamente estabeleci-das na Constituição, em lei penal adjetiva e nas normatizações ou instruções supe-riores do Ministério Público devidamente publicadas na imprensa oficial da União ou dos Estados (ver Maia Neto, Cândido Furtado, in “O Promotor de Justiça e os Direitos Humanos”, ed. Juruá, Curitiba-PR, 2003).

Todos os cidadãos deverão ser jul-gados pelos juízes naturais da lide, sendo proibido a criação de Tribunais especiais para julgamento de casos excepcionais.

Algumas pessoas (autoridades) pos-suem foro privilegiado para o julgamento, de acordo com o cargo que ocupam, trata-se de competência ratione personae.

A competência para o julgamento criminal está definida no art. 69, e seguin-tes do CPP, combinado com o art. 92 re-ferente ao Poder Judiciário, Capítulo III, e seguintes da Carta Magna.

Qualquer designação de agente mi-nisterial “a posteriori” ao fato ilícito, en-carregado para exercer a investigação e a acusação, caracteriza sem dúvida “Promo-toria de Exceção”. As Nações Unidas em seu documento oficial destinado ao Mi-nistério Público (Diretrizes Básicas, ONU – 1990), estabelece que seus agentes exer-cem suas funções de maneira coerente e di-ligente, respeitam e protegem a dignidade humana, defendem os direitos da pessoa humana, contribuindo, assim, para garan-tir um procedimento criminal correto e o bom funcionamento do sistema de justiça (cláusula 12); e ainda, dão prova de impar-cialidade (cláusula 13).

Ao Ministério Público incumbe o “ônus da prova”, isto é “da acusação”, razão pela qual a denúncia deve ser pro-duzida em base a elementos fortes de con-vicção, quanto a autoria, materialidade, tipicidade, sem olvidarmos o instituto da legitima defesa, como excludente de an-tijuridicidade; tudo em fulcro ao princí-pio do livre convencimento e ao “opinio delicti” do Ministério Público (art. 129, I CF). Para solicitar a condenação se faz necessário que existam provas concretas e absolutas da culpabilidade, assim trilha a justiça no Estado Democrático de Direito, com respeito ao devido processo legal e as provas lícitas (inc. LVI art. 5º CF); jamais a condenação poderá ser em base a hipó-teses, suposições, indícios, evidências ou conjecturas, posto que o princípio “in du-bio pro reo” prevalece ante o chamado “in dubio pro societat”.

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Nesse sentido o ius persequendi – persecutio criminis – esta para o órgão que impulsiona a ação penal – Ministério Público -, em outras palavras é o dominus litis da Ação Penal, e também detêm o “ius puniendi” ante a impossibilidade do Poder Judiciário de penalizar sem pedido, em nome do princípio mor da necessidade de imparcialidade total da Justiça.

4. Conclusão

A lei suprema do país não pode e não deve conter dispositivos de normas ordiná-rias, mas sim única e exclusivamente re-gulamentos básicos e gerais de princípios fundamentais, uma vez que a Constituição tem por objetivo uma consistência geral, para ser imutável e rígida quanto ao pro-cesso de reforma.

O que podemos notar e analisar é que a Constituição em vigor, traz um aglome-rado de dispositivos referentes aos princí-pios gerais de direito penal material, for-mal e executivo, e se por ventura alguma transformação ou modificação se fizer no Código Penal ou no Código de Processo Penal, os princípios básicos e gerais deve-rão ser observados obrigatoriamente; este é o lado favorável da questão.

É certo que nem toda política cria um direito, também é certo que criar um direi-to é a suprema verificação histórica a que se pode submeter uma política. Um regime político que dá nascimento e força a um novo sistema de direito positivo (Renova-ção do direito - San Tiago Dantas/Textos de aula Universidade de Brasília/ sessão de 25.10.1941 - Faculdade Nacional de Direi-to da Universidade do Brasil).

A base do ordenamento jurídico é a teoria constitucional do direito penal e dos Direitos Humanos, é impossível, nos dias atuais construir doutrina ou tese jurídica, sem amparo na mencionada teoria, pois se trata do sustentáculo do sistema legal que

possibilita a aplicação e interpretação mais acertada das normas infraconstitucionais ou da legislação vigente.

Por certo, que estamos vivemos sob a égide da ilusão penal, como afirma Maurí-cio Antonio Ribeiro Lopes, em razão da má aplicação da lei penal, via interpretações equivocadas que flagrantemente ofendem princípios gerais e garantias fundamentais individuais da cidadania.

O direito penal possui caráter frag-mentário e subsidiário do direito consti-tucional, ante as diretrizes universalmente consagradas pelos Direitos Humanos, as ciências criminais, somente protegem bens jurídicos relevantes para a convivência pacífica e social, qualquer intervenção do direito penal material ou formal está con-dicionada a importância ou a gravidade da lesão ao bem jurídico-penal tutelado pelo Estado.

Em face desse raciocínio existe uma tendência doutrinária e jurisprudencial para a não intervenção ou melhor para mínima intervenção das normas penais na resolu-ção dos conflitos, evitando-se desta forma a aplicação de leis penais de emergência.

No Estado Democrático onde se pre-serva o direito individual no âmbito do di-reito público encontramos o direito penal e as liberdades públicas civis vinculadas ao direito constitucional e aos Direitos Huma-nos. De outro lado, temos o direito coletivo e o direito privado.

Lei em favor do povo e não em favor do rei, em outras palavras, cidadania versus governo, ou ainda administração pública a serviço das garantias fundamentais, sem-pre em favor do mais fraco, na definição de Luigi Ferrajoli.

A prestação jurisdicional penal so-mente se efetiva com o respeito aos prin-cípios gerais de Direitos Humanos, obser-vando desta forma o devido processo legal, assegurando ao processado e ao preso to-

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dos os direitos, bem como a devida aten-ção às vítimas de crime.

Não podemos mais admitir que o direito penal converta a vítima real e con-creta em um mero conceito, em mais uma abstração para o enfrentamento simbólico com o infrator, para que o direito penal não se distancie ainda mais das partes em conflito. “A vítima que acessa o sistema requerendo o julgamento de uma conduta definida como crime - a ação, regra geral é de iniciativa privada - acaba por ver-se ela própria “julgada” (pela visão masculina da lei, da polícia e da justiça), incumbin-do-lhe provar que é uma vítima real e não simulada” 20.

Por sua vez, como sabemos “a pena não intimida, não ressocializa e não casti-ga. Nem mesmo retribui. Ela perdeu a sua utilidade. Só os pobres a cumprem”, muito bem asseverado por César Barros Leal, e eu direi mais, complementando: “nunca teve utilidade humana a pena privativa de liberdade ou a prisão propriamente dita, sua existência e origem foi transformada de maneira camuflada para apresentar uma aparente solução aos problemas sociais não enfrentados politicamente pela causa”.

É uma idéia muito equivocada pen-sar que o cárcere é reflexo de Justiça, pelo contrário representa a falência da adminis-tração e a inutilidade dos fins da pena, inti-midação e ressocialização.

Existem aqueles que pensam que estão trabalhando com um direito penal moderno, porém não nos distanciamos e muito menos evoluímos o necessário para dizer que as premissas e as teorias aplica-das na práxis jurídico-penal de hoje sejam inovadoras. Tudo se encontra em base a conceitos clássicos e ortodoxos ultrapas-sados, e o princípio moderno da mínima intervenção é esquecido propositalmente ou demagogicamente.

“Quem sacrifica a liberdade em nome da segurança não merece a liberdade, nem

a segurança”, disse com propriedade Ben-jamin Franlkin. Mingúem deve abrir mão de seus próprios direitos, objetivando a prisão ou a condenação de outrem, trata-se de uma opção equivocada em fundamentar o sistema sobre tendências autoritárias e demagógicas.

Existem as normas constitucionais colocadas no mesmo plano de abstração das normas penais.Sempre que houver in-compatibilidade com uma norma da lei pe-nal, esta deve ser considerada totalmente revogada. A própria Constituição, na ver-dade, em sua estrutura, permite largo âm-bito de ação ao legislador ordinário, com dois limites: o formal, do processo de ela-boração das leis, e o substancial, do con-teúdo não incompatível com os princípios constitucionais21.

Sempre que houver norma e se torne inviável o exercício de um direito constitu-cional, poder-se-á impetrar o novo institu-to constitucional expresso no expresso no inciso LXXI art. 5º CF (Mandado de injun-ção), na falta de norma regulamentadora hierarquicamente inferior a suprema lei do país, com caráter complementadora neces-sária, com o fim de se colocar em prática a Carta Magna, para decorativa, sem fazer valer o que ela própria assegura.

Necessário se faria a intervenção popular no processo constituinte nacio-nal, uma vez que o povo deveria ter sido chamado para sancionar ou rejeitar o tex-to, ao todo ou em parte, aprovado pelos representantes legislativos, isto chama-se Referendum constitucional, através de um plebiscito popular22.

Tanto era necessária a intervenção do povo em geral na finalização do texto constitucional, que os próprios constituin-tes previram uma revisão após cinco anos (art. 3º das disposições constitucionais transitórias - ADCT), ao meu ver um abu-so jurídico, pois a lei suprema é feita para

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ser duradoura e não estar constando em seu corpo sua reforma em um pequeno lapso temporal.

O inciso LXXV do art. 5º da Consti-tuição federal reza sobre o direito de inde-nização por erro judiciário, e este ao nosso ver deve ser analisado com mais profun-didade e responsabilidade, trata-se de uma importante ou se senão a maior garantia constitucional da cidadania para assegurar a pronta e boa-fé atuação da administra-ção da justiça. O cidadão não pode ficar a mercê do abuso de poder ou vulneráveis às arbitrariedades cometidas por agentes ou servidores públicos, pois o crime de abuso de autoridade (Lei nº 4.898/65) possui san-ção tímida em relação ou em proporção ao dano causado contra as vítimas individuais ou coletivas desta espécie de ilícito23.

As Cartas Magnas de 1824 e de 1891, prescreviam taxativamente sobre o abuso de poder, estabelecendo desta forma: “Os empregados públicos são estritamente res-ponsáveis pelos abusos e omissões prati-cadas no exercício das suas funções, e por não fazerem efetivamente responsáveis os seus subalternos” (inciso XXIX, art. 179), e “É permitido a quem quer que seja repre-sentar, mediante petição, aos poderes pú-blicos, denunciar abusos das autoridades e promover a responsabilidade dos culpa-dos” (§ 9º, art. 72), respectivamente.

“Direito Penal do Terror” 24 e nunca mais Brasil25, é chegada a hora de efetivar de uma vez por todas o sistema acusatório democrático, e de dar adeus ao sistema in-quisitivo, seja na práxis policial como no meio forense. Inquisição lembra autorita-rismo, pratica usual dos Tribunais do Santo Ofício (séc. XIV; e em 1536, a Bula “cum nihil magis” do Papa João III, ordenou a criação do Tribunal do Santo Ofício em Portugal), o pior período da inquisição foi entre 1721-1730, com a unificação das Co-roas Castelhana e Portuguesa (1580) onde

se agravaram os problemas da administra-ção dos Tribunais do Santo Ofício. Porém a permissão de interrogatório sob tortu-ra oficialmente já acontecia desde 1252, por ordem do Papa Inocêncio IV através da bula “ad extirpanda” que autorizava o emprego da tortura nos interrogatórios ju-diciais.

A aplicação de penas desumanas, infamantes e degradantes era costumei-ra e prevista no direito penal na época do Brasil-Colônia, nas Ordenações do Reino Unido de Portugal - Afonsinas, Manueli-nas, Filipinas e o Código de Don Sebastião -, quebra do princípio da inércia (“no judex ex officio”) e da imparcialidade, existência de juízos de exceção e a aceitação do prin-cípio da culpabilidade; para não falarmos da quebra das garantias fundamentais da cidadania nos regimes militares, quando se cassa o direito de ir e vir (“ius libertatis”), o direito a privacidade e da intimidade, de reunião e associação, entre tantos outros direito e garantias (Emendas Constitucio-nais nsº 01 à 27 e Atos Institucionais).

Definitivamente entendemos que é preciso de uma vez por todas, olvidar os conceitos ortodoxos e dogmas penais ul-trapassados, dos tempos de outrora, da época da abominável inquisição ou dos períodos ditatoriais, antidemocráticos que vergonhosamente reinaram neste país e no mundo todo, para fazer valer as liberdade civis e políticas dos cidadãos e ainda para cada vez mais obrigar as autoridades pú-blicas a se conscientizarem que estão onde estão – desempenhando suas funções em seus postos - por que receberam um dele-gação popular – um mandato -, e em nome do povo devem trabalhar, nada mais do que isto, e simplesmente isto.

Feitura das leis, administração pú-blica e prestação jurisdicional em prol da cidadania, é o que determina o Estado De-mocrático de Direito.

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Note-se que a atual Carta Magna consagra de maneira firme e importante todos os princípios reitores de um Estado Democrático de Direito, assegurando na sua plenitude as garantias fundamentais da cidadania no tocante aos seus direitos e in-teresses indisponíveis sociais e individuais, prevalecendo sempre os direitos humanos, seja a nível nacional ou internacional, isto é, no âmbito do direito público interno e externo, na forma da legislação pátria e do ordenamento jurídico, ante as teorias mais modernas e avançadas de proteção e res-peito à dignidade da pessoa humana, em base a soberania e validade hierárquica das normas.

Aplicar e interpretar a legislação pe-nal ordinária pura e simplesmente, é des-conhecer os valores maiores das leis, seus princípios e fundamentos de inspiram o próprio sistema de justiça criminal demo-crática. No passado, ou melhor, na vigência de regimes ditatoriais ou antidemocráticos era possível aplicar o direito penal pelo di-reito penal, hoje não mais é possível tratar das questões da prevenção e da repressão da delinqüência de maneira desconectada, separada ou sem atenção ao princípio da congruência dos textos legais. A primeira análise que se deve fazer remete obrigato-riamente o profissional do direito ao estu-do da constitucionalidade das leis inferio-res para a correta aplicação e interpretação da legislação, sim se exerce verdadeira e eficientemente o encargo estatal da presta-ção jurisdicional, para a plena realização da justiça em nome e a serviços de todos os cidadãos que buscam através dos litígios judiciais uma solução adequada à pacificar seus interesses individuais ou sociais.

O Estado como ente jurídico se legi-tima por intermédio da sociedade, via prin-cípio da representação popular quando são outorgados às autoridades e servidores pú-blicos à administração dos bens do erário.

A ação estatal se compreende como certa e justa, quando tem objetivo e visa o bem comum no contexto macro do interesse in-dividual, preferencialmente vinculado ao interesse privado; visto que muitas vezes o interesse privado deve prevalecer ante o interesse público, pois a administração es-tatal esta sujeita ao cometimento de equí-vocos, e estes erros prejudica e desrespeita norma asseguradora de direito fundamen-tal estritamente individual da cidadania.

Por esta razão que quando o Poder Judiciário exercita a prestação jurisdicio-nal ao julgar uma causa não esta represen-tando o Estado, mas fazendo valer uma decisão de Poder Público independente e autônomo, principalmente consagrando o princípio da imparcialidade dos julgamen-tos, ou dos juízes, possuidores de prerroga-tiva funcional máxima, a guardada do prin-cípio do livre convencimento. Entende-se assim que todo Poder emana do povo e em seu nome dever exercido.

Os próprios servidores do Poder Executivo devem atuar em nome da cida-dania e não dos interesses do governo – da administração pública -, até os pareceres e pronunciamentos jurídicos dos Procurado-res do Estado – advogados da administra-ção – podem ser no sentido favorável ao cidadão quando amparado pelo direito. A Lei da Advocacia e da OAB (nº 8.906/94) impõem como regra deontológica a liber-dade profissional, a ética e o bom direito acima de tudo, principalmente quando se tratar de questões políticas partidárias. Da mesma forma os representantes do Parla-mento – Congresso Nacional, Assembléias Legislativas e Câmara de Vereadores – quando propõem, discutem e aprovam leis, esta devem ser em benefício da sociedade, em primeiro pleno; quando existem leis de interesse só do governo, estas são por sua própria natureza contra o povo.

Sociedade justa, solitária e democrá-tica – direitos da vítima – assim é a rea-

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lização da Justiça Plena, balança pratos pender, dar a cada um o que é seu, sem dis-criminações de qualquer espécie, interpre-tar e aplicar a lei corretamente, em nome do Estado e do titular do bem jurídico-pe-nal (vítima de crime).

Nesta linha de raciocínio chegamos a conclusão que se respeitadas as garantias fundamentais na íntegra estaremos diante do chamado Estado Democrático de Di-reito (Constitucional-Penal ou de Direitos Humanos) onde os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário exercem suas atri-buições e competências pró-cidadania e não versus sociedade, esta composta por contribuintes e eleitores, verdadeiramente legítimos como detentores do Poder.

No passado a Constituição Imperial de 1824, outorgada por D. Pedro I, decla-rava, entre outras coisas que: “A Dinas-tia reinante é a do Senhor Dom Pedro I, atual Imperador e Defensor Perpétuo do Brasil”, reconhecendo a existência de 4 Poderes, sendo o Executivo e o Modera-dor exercido pelo Imperador. E mais re-centemente a Carta do chamado “Estado Novo”, também outorgada pelo Presidente da República Getúlio Vargas, dissolve o Congresso, e com as justificativas de paz política e social, sob a funesta iminência de guerra civil, pela infiltração comunista, em nome da segurança e do bem-estar do povo, fortalece o Executivo para reprimir as agitações internas, atribui ao Executi-vo um papel preponderante na feitura das leis – inclusive penais -, estabelecendo em suma o primado do interesse público sobre o interesse privado.

Mais adiante as emendas constitucio-nais nsº 1 a 25 de 1969 à 1985, que inspi-raram o regime militar, seguindo o sistema de tipo facista de Getúlio Vargas, com as supressões das garantias constitucionais fundamentais individuais da cidadania, onde o direito e a justiça penal possuíam

características flagrantemente autoritária, assim precisamos olvidar do chamado “Brasil Nunca Mais” – com relação as tor-turas, desaparições de pessoas, execuções extra-oficiais, e muito arbítrio no poder e abuso de autoridade.

Violação dos Direitos Humanos per-mite até o deslocamento de competência, nos termos da Emenda Constitucional nº 45/2004 (art. 109, § 5º), quando o Procu-rador-Geral da República “ex officio” soli-cita ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), para que o fato “sub judice” seja deslocado da Justiça Estadual para a Justiça Federal, ante a gravidade, significatividade e para maior proteção e plenitude da devida apu-ração do abuso ou da ofensa às cláusulas de Direitos Humanos, vigentes nos instru-mentos internacionais em que o governo brasileiro é parte por adesão e ratificação. Nesse sentido, infere-se ainda mais a ra-zão da instituição do Ministério Público na tutela dos direitos individuais e nas garan-tias fundamentais da cidadania; posto que qualquer violação aos Direitos Humanos, por intermédio de seus agentes, sujeita o Estado a responsabilidades internas e in-ternacionais graves.

Já dizia “águia de Haia”, o eminente jurista pátrio, RUI BARBOSA: “a autori-dade investida de seu múnus, ante seu ju-ramento de servidor público, conhecedor de seu dever funcional, quando ultrapassa os limites legais, isto é o circulo da lei, tor-na-se o mais grave dos delinqüentes”.

NOTAS1 DIMENSTEIN, Gilberto: in “Direitos Humanos do Brasil”, ed. Cia das Letras, São Paulo, 1996.2 BOBBIO, Norberto: in “O Positivismo Jurídico. Li-ções de Filosofia do Direito”; ed. Ícone; São Paulo, 1995.3 ANIYAR DE CASTRO, Lola: in “Criminologia da Reação Social”; ed. Forense, RJ, 1983, trad. Ester Kosoviski.

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4 REZEK, Francisco: in Maia Neto, Cândido Furta-do, “O Promotor de Justiça e os Direitos Humanos”, ed. Juruá, Curitiba, 2000, pg. 47.5 BORJAS, Sérgio Augusto Pereira de: in “Teoria Geral dos Tratados” ed. Ricardo Lenz, Porto Alegre, 2001.6 CARRAZA, Roque Antonio: in “Curso de Direito Constitucional Tributário”, ed. Malheiros, 1996, SP.7 TOMASETTI JR., Alcides: in “Aspectos da Prote-ção Contratual do Consumidor no Mercado Imobiliá-rio Urbano”, Rev. Direito do Consumidor, Inst. Brás. de Política e Direito do Consumidor, ed. RT, v. 2.8 SCHUELTER, Cibele Cristiane: in Tratados Inter-nacionais e a Lei Interna Brasileira”, ed. OAB/SC, Florianópolis, 2003.9 MAIA NETO, Cândido Furtado: in Revista de Juris-prudência Brasileira, n. 23, ed. Juruá, Curitiba, 1989. 10 Zaffaroni, Eugenio Raúl: in “En Busca de las penas perdidas”; ed. Temis, Bogotá, 1990; e “Derecho Pe-nal – Parte General; ed. Ediar, Buenos Aires, 2000.11 ANIYAR DE CASTRO, Lola: in “Criminologia da Reação Social”, ed. Forense, Rio de Janeiro, 1983; e “Criminologia de la Liberación”, ed. Univ. Del Zulia, Maracaibo-Venezuela, 1987. 12 FERRAJOLI, Luigi: in “Derecho y razón”; ed. Trotta. Madrid, 1995.13 ÀSUA, Luiz Geminaz: in “Tratado de Derecho Penal”.0 FRAGOSO, Heleno Cláudio: in “Lições de Direito Penal” Parte Geral 5o., Ed.Forense.15 ZAFFARONI, E. Raúl: in “En Busca de las penas perdidas”; ed. Temis, Bogotá, 1990; e “Derecho Pe-nal – Parte General; ed. Ediar, Buenos Aires, 2000.16 MAIA NETO, Cândido Furtado in “Presunção de Inocência e os Direitos Humanos - Justiça Penal e

Devido Processo no Estado Democrático”: Revista Jurídica Consulex, Bsb-DF, ano VIII, no.171, 29 de fevereiro/2004.17 BRETÃS, José Bolívar: IN “A imperiosa necessi-dade da Defensoria Pública”, in Caderno Direito e Justiça, O Estado do Paraná, Domingo 16/12/03, pgs. 8 e 9, Curitiba-PR. 18 MAIA NETO, Cândido Furtado, in Revista Prática Jurídica Consulex, julho/2002, pg. 20.19 MAIA NETO, Cândido Furtado: in “O Promotor de Justiça e os Direitos Humanos”, ed. Juruá, Curitiba, 2000.20 ANDRADE, Vera Regina Pereira de: in Revista Se-qüência p. 104/105 UFSC – Florianópolis.21 NUVOLONE, Pietro: in “O Sistema do Direito Pe-nal”/Capítulo II Estruturas constitucionais do Sistema penal - - Ed. Revista dos Tribunais 1981 - São Paulo.22 MAIA NETO, Cândido Furtado: in “Constituição Federal: legítima ou ilegítima” – Emenda Constitu-cional nº 26 de 27 de novembro de 1985 (artigo não publicado, em preparo e revisão final). 23 MAIA NETO, Cândido Furtado: in “Erro Judiciá-rio, Prisão Ilegal e Direitos Humanos”; Revista Práti-ca Jurídica, Consulex, Brasília, abril/2003. 24 DOTTI, René Ariel: in Tendências e Debates, jornal Folha de São Paulo, 25.03.199125 Brasil: Nunca Mais; ed. Vozes, Petrópolis-RJ, 1986; organizado pela Arquidiocese de São Paulo. Ver: “Inquisição e Justiça Penal Contemporânea”, Maia Neto, Cândido Furtado, Revista Prática Jurídi-ca, ano III, nº 32, 30/11/2004, ed. Consulex, Brasí-lia-DF.

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*Professor dos Programas de Doutorado e Mestrado em Direito da PUC/SP. Livre-Docente em Direito pela USP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais.

1. A idéia de supremacia

Imprescindível se mostrou, desde a concepção constitucional, a consubstan-cial supremacia desse novel código escrito em face das outras espécies normativas1. No exaustivamente mencionado case Mar-bury vs. Madison, imputar-se-á à Consti-tuição, a inexorável nota de sua suprema-

cia (juntamente com a possibilidade de o Judiciário realizar direta e imediatamente o controle de constitucionalidade dos atos normativos infraconstitucionais, assegu-rando-se, assim, “concretamente”, a refe-rida supremacia da Constituição):

“The constitution is either a superior, paramount law, unchangeable by ordinary

A VOCAÇÃO CONTEMPORÂNEA PARA A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO: ALGUNS ASPECTOS DA CONSTITUIÇÃO COMO SUPORTE INTERPRETATIVO DAS

LEIS E CÓDIGOS – O CASO DA INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO

THE CONTEMPORARY VOCATION FOR THE RIGHT CONSTITUTIONALIZATION:

SOME ASPECTS OF CONSTITUTION AS AN INTERPRETATIVE SUPPORT OF RULES AND

CODES – THE INTERPRETATION CASE ACCORDING TO THE CONSTITUTION

anDRé RaMos taVaRes*

Recebido para publicação em agosto de 2005

Resumo: O presente trabalho pretende analisar a figura hodierna da Interpretação conforme. Seu percurso abarca, é certo, questões triviais, como a de seu conceito, aplicação e distinção de outras modernas formas “interpretativas’ do texto constitucional. Mas, mais do que isso, pretende suscitar algumas ponderações, perturbações doutrinárias, acerca de sua relevância no momento chave em que se encontra a figura da Constituição: a sua contestação pela doutrina democrática e o movimen-to de constitucionalização do Direito.Palavras-chave: Direito Constitucional. Constitucionalismo. Hermenêutica Constitucional. Con-trole de Constitucionalidade.

Abstract: The present essay intends to analyze the specific figure of the interpretation in accor-dance to the Constitution. In order to do so, the essay will discuss about trivial aspects of the interpretation in accordance to the Constitution, such as its concept, applicability and distinctions with other forms of interpretation of the Constitution. Furthermore, the present paper will try to instigate an academic debate about the relevance of the instrument hereby analyzed in the peculiar moment that the Constitution lays: its contestation by the democratic doctrine and the process of constitutionalization of the law. Key Words: Constitutional Law. Constitutionalism. Constitution Interpretation. Judicial Review.

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means, or it is on a level with ordinary le-gislative acts, and, like other acts, is alte-rable when the legislature shall please to alter it.

“If the former part of the alternative be true, then a legislative act contrary to the constitution is not law: if the latter part be true, then written constitutions are ab-surd attempts, on the part of the people, to limit a power in its own nature illimitable.

“Certainly all those who have framed written constitutions contemplate them as forming the fundamental and paramount law of the nation, and consequently, the theory of every such government must be, that an act of the legislature, repugnant to the constitution, is void.

“This theory is essentially attached to a written constitution, and is, consequently, to be considered, by this court, as one of the fundamental principles of our society. It is not therefore to be lost sight of in the further consideration of this subject.”2.

Desnecessário dizer-se que o efeito imediato dessa concepção foi a submis-são das leis e atos do mundo normativo à verificação de sua compatibilidade com a Constituição, no que se incluiriam todos os códigos. Ato subseqüente, o modelo do Estado legalista entra em crise, com a lei perdendo a sua exclusividade enquanto fonte de produção do Direito.

Na concepção positivista, a Cons-tituição será, doravante, fonte do Direito (constitucional) e também conjunto nor-mativo que disciplina as demais fontes do Direito.

2. A interpretação conforme a Constitui-ção

Como consectário lógico do princí-pio da supremacia da constituição, tem-se que a interpretação de toda e qualquer nor-ma, ainda que infraconstitucional, have-rá de ter como parâmetro a Constituição.

Nesse sentido, Celso Bastos, ao discorrer acerca da inicialidade fundante das normas constitucionais:

“De evidentes implicações a funda-mentar o caráter distintivo da interpretação constitucional é o fato de ser a Constituição o fundamento de validade último de todas as demais normas do ordenamento jurídi-co. Assim, mesmo que se trate de auferir o sentido de uma norma da legislação or-dinária, proceder-se-á buscando elementos na Constituição” (Bastos, 1999: 52-53).

Em outras palavras, a Constituição apresentaria um papel de standard inter-pretativo. É nesse sentido que muitos dou-trinadores, apressadamente, apresentam a interpretação conforme como um método peculiar de interpretação constitucional (cf. Bastos, 1999: 171), inserindo-a den-tre as modernas técnicas de interpretação constitucional.

Tal raciocínio apresenta uma dupla falha: a primeira, logo abaixo examinada, residiria em considerar a denominada in-terpretação conforme como um caso puro de interpretação; a outra, analisada mais adiante, está no fato de se associar a inter-pretação conforme à idéia clássica de su-premacia constitucional.

3. Onde há interpretação na “interpre-tação conforme a Constituição”?

A interpretação conforme à Cons-tituição haveria de ser melhor entendida como um método de trabalho desenvolvido dentro da atividade de controle de consti-tucionalidade, do que como, propriamente, uma mera fórmula interpretativa (cf. taVa-Res, 2003: 234). Isto porque a sua ratio de utilização se dá no Tribunal Constitucional (no caso de controle concentrado) e, até, nos diversos tribunais e instâncias existen-tes no seio do Poder Judiciário (na hipótese de controle difuso), quando da verificação de eventual (in)constitucionalidade de de-

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terminado ato normativo, vale dizer, quan-do do exercício do que se pode chamar de vertente formal da Justiça Constitucional (taVaRes, 2005). É, assim, uma técnica de decisão da Justiça Constitucional.

Pela interpretação conforme a Cons-tituição enfatiza-se a supremacia desta, mas, de outra parte, reconhecem-se a le-gitimidade das leis e a relevância demo-crática de sua origem, de forma que sua anulação só venha a materializar-se quan-do única solução viável, vale dizer, como medida impositiva, última ratio. Portanto, a decisão que se utilizar desta técnica re-sultará, formalmente falando, na declara-ção de constitucionalidade (no Brasil) ou na declaração de não-inconstitucionalida-de (como ocorre nos demais países).

Mas como deve ocorrer a utilização desta preciosa técnica?

Primeiramente, há de se dizer que sua utilização parte de um pressuposto kelseniano, qual seja, de que cada enun-ciado normativo apresenta diversos signi-ficados (moldura, cf. Kelsen, 1995: 388), e não, apenas, um único, que imporia uma apreciação maniqueísta de sua constitucio-nalidade, pois não se pode falar, como já observava saVigny (p. 85), que só se de-mande interpretação quando houver obs-curidade.

Com efeito, cabe ao intérprete (no caso, ao Judiciário) verificar quais sig-nificados se encontram inseridos dentro da moldura, que é estipulada pela norma constitucional, e quais se situam fora desta moldura. Desnecessário dizer que há, aí, uma dupla tarefa, qual seja, a de estipular o significado da própria norma constitu-cional e, posteriormente, o de estipular os diversos significados da norma ordinária.

Ademais das próprias dificuldades que tal tarefa propicia, uma vez que a pró-pria norma constitucional tem como tônica a indeterminação, o que é suficiente para

engendrar, portanto, diversas significa-ções, há de se respeitar, quando da reali-zação desta atividade, limites tão ou mais obscuros que os significados resultantes da própria atividade interpretativa. Não há como negar-se que a tarefa interpretativa, contrariando a idéia constante do positivis-mo formalista, não é meramente mecânica. Em outras palavras, a interpretação não se afigura, simplesmente, como um ato de conhecimento, mas sim como um irresis-tível ato de vontade do próprio exegeta. Pela importância que assume a lição nas palavras de um autor como Kelsen, vale a referência:

“A idéia, subjacente à teoria tradi-cional da interpretação, de que a determi-nação do ato jurídico a pôr, não realizada pela norma jurídica aplicanda, poderia ser obtida através de qualquer espécie de co-nhecimento do direito preexistente, é uma auto-ilusão contraditória, pois vai contra o pressuposto da possibilidade de uma inter-pretação” (Kelsen, 1995: 393).

Sem embargo, não se pode admitir um ato de vontade absoluto, desenfreado, ilimitado. Fazê-lo seria trilhar as veredas da mais extremada subjetividade e, conse-qüentemente, da insegurança. Nesse senti-do, afigura-se essencial estabelecer deter-minados limites, conforme já dito alhures:

“A técnica, contudo, encontra limites, derivados tanto do âmbito literal da norma quanto da vontade (objetiva) do legislador ao aprovar a lei. Existem, também, limites lógicos ao uso da interpretação conforme à Constituição, não se admitindo que o jul-gador se substitua ao legislador, fugindo da literalidade da lei. (...) deve-se afastar a utilização desse recurso ‘quando, em lu-gar do resultado querido pelo legislador, se obtém uma regulação nova e distinta’” (taVaRes, 2003: 237).

Em outras palavras, não se pode pre-tender a inovação plena, quando da ativi-

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dade exegética, distorcendo, de forma des-compromissada e repudiável, o que consta do enunciado normativo escrito. Esta é a lição clássica de saVigny (p. 105), ao afas-tar os intentos de corrigir o próprio pen-samento da lei, por meio da justificativa não-aceitável do valor intrínseco do con-teúdo resultante dessa interpretação, que consistiria, como lembra o autor, numa tentativa de corrigir o próprio pensamento do legislador3.

No âmbito específico da interpreta-ção conforme, valem as ponderações ela-boradas por Carlos Ayres Britto, quando de seu voto na ADPF 54, no sentido de que a interpretação conforme comporta duas etapas.

Na primeira fase, alcunhada como pressuposto de admissibilidade, deve-se promover, única e exclusivamente, a inter-pretação da lei, justamente para não forçar um conteúdo legal contra o próprio texto da lei.

O desencadear da segunda etapa ou fase processual da interpretação conforme está, por sua vez, condicionado ao resultado da fase prévia. O cotejo do texto normati-vo infraconstitucional com a Constituição, que compõe a etapa derradeira da interpre-tação conforme, somente será cabível se, da atividade exegética da lei (fase inicial), aferir-se, ao menos, duas compreensões dúplices ou plúrimas, não redutíveis a uma e única interpretação. Em outras palavras, na decorrência de um entendimento único ou, até, de entendimentos semelhantes, de-ver-se-á descartar interpretação conforme, em sua fase própria.

Evidentemente que a fragmentação intelectual completa dessa operação é inal-cançável, mas a idéia é valida no sentido de alertar para que não se sucumba ao intento de tomar o lugar do legislador, fazendo-o com pretenso suporte na Constituição, o que não é de ser admitido.

É nesse sentido que se torna preciso o jogral semântico realizado pelo próprio Ministro, ao entender que a interpretação conforme não foi feita para conformar um dispositivo infraconstitucional à norma fundamental, mas, sim, para eliminar uma interpretação que lhe é desconforme.

Deixando de lado os limites a se-rem observados quando da utilização desta peculiar técnica de decisão, frise-se que a sua realizabilidade tem como fundamento precípuo assegurar a mantença e eficácia do ato normativo dentro do ordenamento jurídico, na medida em que se tem como assente a idéia de que a declaração de in-constitucionalidade, embora seja um profí-cuo remédio, apresenta-se, porém, repleto de nefastos efeitos colaterais, dentre os quais se poderia, aqui, pinçar o problema do vazio normativo decorrente da expulsão de um ato normativo do sistema, o qual pode ser mais danoso do que a sua própria manutenção, embora eivada de incons-titucionalidade4. Assim, a falta de outras alternativas pode, em muitas situações, compelir o S.T.F. a deixar de reconhecer a inconstitucionalidade, como quando a fal-ta da lei (pela declaração de sua nulidade) criaria um vazio normativo insuportável e insuperável (taVaRes, 2003: 230).

Por fim, há que se consignar, aqui, que esta técnica, originariamente, foi uma construção jurisprudencial-doutrinária. A “chancela” de legalidade, no Brasil, ocorreu com o advento da Lei 9.868, de 10/11/1999, a qual, em seu art. 28, § 1º, dispôs expressamente que:

“Art 28. Dentro do prazo de dez dias após o trânsito em julgado da decisão, o Supremo Tribunal Federal fará publicar em seção especial do Diário da Justiça e do Diário Oficial da União a parte dispositiva do acórdão.

Parágrafo único. A declaração de constitucionalidade ou de inconstituciona-

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lidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de tex-to, têm eficácia contra todos e efeito vincu-lante em relação aos órgãos do Poder Ju-diciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.”

Há de se atentar para o fato de que o dispositivo em questão menciona dois instrumentos: (i) interpretação conforme a Constituição, e; (ii) declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de tex-to. Embora ambos apresentem efeitos se-melhantes, não se pode considerá-los como sinonímias, como se procura demonstrar.

3.1.1. Interpretação conforme e declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto: elementos de distinção.

Poder-se-ia considerar, na interpre-tação conforme, embutida outra modalida-de, a declaração parcial de inconstitucio-nalidade, sem redução do texto da norma impugnada. É que na primeira modalidade, conforme foi visto, eliminam-se as inter-pretações possíveis da norma objeto da ação que sejam incompatíveis com o sen-tido constitucional, o que a aproximaria, enquanto técnica, da declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto. Ademais, ambas produzem eficácia erga omnes e efeito vinculante5, como se verificou.

Sem embargo, há diferenças entre elas, e a mais importante está na caracteri-zação e nos efeitos da declaração que cada uma dessas modalidades engendra. A inter-pretação conforme à Constituição, embora afaste as interpretações que se situam fora da “moldura” constitucional, não finda por declarar a inconstitucionalidade destas, mas, apenas, por considerar constitucional aqueles sentidos alocados dentro do liame constitucional. Em outras palavras, a resul-

tante desta técnica é a declaração da cons-titucionalidade do ato normativo.

Na declaração parcial de inconstitu-cionalidade com nulidade, sem redução do texto, ocorre o contrário. As significações inconstitucionais decorrentes do enunciado normativo são terminantemente afastadas, por inconstitucionalidade. Isto é, declara-se a inconstitucionalidade, sem que, contu-do, o enunciado normativo sofra qualquer alteração formal, exógena.

Em outros termos, a interpretação conforme a Constituição tem em sua mira as leituras possíveis do enunciado textual, afastando aquelas consideradas incompatí-veis com a Constituição (esta, da mesma forma e previamente, interpretada). Daí que a decisão da Justiça Constitucional te-nha de ser a de manter referido enunciado. Na declaração parcial de inconstituciona-lidade sem redução de texto, ao contrá-rio, trata-se da incompatibilidade com a Constituição de uma hipótese de aplicação (Anwendungsfãlle) contida no texto (não em sua interpretação). É dizer, há uma re-feribilidade expressa do texto que padece de inconstitucionalidade. Daí que o afasta-mento não seja de uma interpretação, mas sim de um dos casos hipotéticos referidos pelo texto, o que demanda a declaração de inconstitucionalidade, e não de consti-tucionalidade (cf., nesse sentido: MenDes, 2000: 54-55).

A diferença, certamente, é sutil. Em termos práticos, a diferença residiria no resultado do controle de inconstitucionali-dade. Em uma eventual ação direita de in-constitucionalidade, se se adotasse a inter-pretação conforme à Constituição, ter-se-ia a declaração de sua improcedência. Já, no caso da declaração parcial de inconstitu-cionalidade sem redução de texto, ter-se-ia a procedência parcial da ação direta de inconstitucionalidade.

Nada obstante, a debilidade da dife-rença faz-se sentir nas decisões do STF,

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nas quais, por vezes, se aglutinam ambos os instrumentos. A título exemplificativo, veja-se a ADIn n. 2.652:

“Ação Direta de Inconstitucionalida-de julgada procedente para, sem redução de texto, dar interpretação ao parágrafo único do artigo 14 do Código de Processo Civil conforme a Constituição e declarar que a ressalva contida na parte inicial des-te artigo alcança todos os advogados, com esse título atuando em juízo, independen-temente de estarem sujeitos também a ou-tros regimes jurídicos”6.

4. A correlação entre supremacia da Constituição e a interpretação confor-me: ponderações contemporâneas

A idéia da supremacia da Constitui-ção, não apenas em sua formalidade, mas também enquanto uma carta norteadora dos valores do Estado (“neoconstitucio-nalismo”), apresenta como contraparte a existência de um guardião, de um órgão responsável pela realização do controle de constitucionalidade (o judicial review nor-te-americano ou o defensor da Constitui-ção nos moldes austríacos).

A decantada natureza rígida de um texto não é suficiente, por si só, para as-segurar a uma mera folha de papel o seu trono normativo autoprometido. Deman-da-se, salutarmente, a existência de um órgão que seja capaz de reforçar a idéia de supremacia, atuando como um preciso fármaco contra corpos indesejáveis do sis-tema normativo.

É nesse sentido que se pode falar em uma consubstancialidade entre supremacia da constituição e controle de constitucio-nalidade. Apartado um do outro, tornam-se, isoladamente, corpos desfigurados, estéreis. No máximo, meras elucubrações teoréticas a servir para uma especulação confusa e imprópria.

O devir histórico, porém, trouxe questionamentos a este binômio suprema-cia-controle. A violência com que se dá o extirpamento de um corpo legal eivado de inconstitucionalidade do sistema jurídico, por vezes, é tão ou mais nefasta à saúde jurídica do que a sua manutenção.

Se não bastasse esta constatação, hodiernamente, há um levante acadêmi-co, quiçá ocidental, contra o exercício do controle de constitucionalidade e, por con-seguinte, à idéia de supremacia da Cons-tituição.

A bem da verdade, este levante, em via de regra, dirige-se contra os “heréticos” Tribunais Constitucionais, cuja atuação, forma de composição, em muito destoam da sistemática democrática (Cf. tushnet, 1999: 194)7.

Contudo, não se pode desconsiderar uma crítica recorrente à própria idéia de Constituição e sua rigidez, a qual cons-trangeria as gerações futuras à vontade das passadas, responsáveis (estas) pela elabo-ração da Constituição (Cf. Paine, s.d.: 42)8. Autores há que conclamam pela volta da dignidade da legislação, ainda que esta seja circunstancial, como JeReMy Wal-DRon (2003: 5):

“O pensamento parece ser que os tribunais, com suas perucas e cerimônias, seus volumes encadernados em couro e seu relativo isolamento ante a política par-tidária, sejam um local mais adequado para solucionar questões desse caráter”.

“Não estou convencido disso; mas não é minha intenção argumentar aqui con-tra a revisão judicial da legislação. Penso que é imperativo, porém, que tal reforma não seja empreendida sem uma percepção clara do que é valioso e importante na idéia de uma legislatura e da dignidade e autori-dade que a legislação pode angariar”.

Evidentemente que a assunção de uma teoria que afaste por completo os tri-bunais constitucionais deverá passar pela

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construção, necessária, de uma nova teo-ria da Constituição, que ofereça respostas satisfatórias aos princípios constitucionais (valores sociais básicos), à inércia legisla-tiva e, sobretudo, às minorias.

No bojo desta panela de pressão, surgem, então, as modernas técnicas de decisão no controle de constitucionalida-de, dentre as quais se apresenta como a de maior importância, a interpretação con-forme à Constituição. Sua função é, pro-priamente, a de um mediador, permitindo uma convivência entre a Constituição e a legislação. Entre o elemento supostamen-te9 rígido e o inovador.

Supera-se, aqui, portanto, uma idéia deveras leviana de que as modernas for-mas, quer sejam de interpretação quer se-jam de decisão, nada mais seriam do que singelas saliências do controle de consti-tucionalidade. Em outras palavras, decor-rências naturais deste processo de revisão judicial, que assim carregariam todas as mazelas a este processo atribuídas.

Muito pelo contrário. Trata-se de um elemento equacionador das novéis pres-sões produzidas pela sociedade jurídica, insatisfeita com as sendas que a clássica teoria da Constituição e do controle de constitucionalidade trilharam. Daí o termo moderno, que não guarda relação com um critério cronológico, mas sim com uma mudança paradigmática.

Nesse sentido, a interpretação con-forme atua como um arrimo da idéia de supremacia da Constituição, pois, se não agrada, plenamente, aos oposicionistas, é capaz de manter uma sobrevida à idéia da supremacia da Constituição.

5. Conclusões na esteira da constitucio-nalização (informal) do Direito

Como já foi mencionado, a inter-pretação conforme apresenta uma função mediadora, pois permite que a concepção

da supremacia constitucional conviva har-moniosamente com a legislação democra-ticamente forjada.

Verifica-se que a técnica da inter-pretação conforme à Constituição promo-ve, parcialmente, o fenômeno da consti-tucionalização do Direito. Evidentemente que não em sua versão “formal”, de incor-poração das mais variadas regras jurídicas ao corpo físico da Constituição. O que ocorre é a versão indireta dessa constitu-cionalização, pela qual o STF “emprega” orientações constitucionais para fazer vi-gentes e eficazes os atos normativos edita-dos pelo legislador.

Com isso a Constituição, longe de passar impune, fica também compro-metida com o significado atribuído ao ato normativo. Surge (é firmada) no conjunto normativo constitucional uma orientação específica para o ato normativo infracons-titucional. Esse fenômeno, portanto, está a demandar uma atenção maior por parte da doutrina. Parte do pressuposto de que qual-quer operação de controle de constituciona-lidade passa previamente pelo controle da Constituição (desenvolvimento de seu sig-nificado). Em outras palavras, a interpreta-ção conforme a Constituição é uma “via de mão dupla”, que acaba por compromissar e comprometer sentidos e significados possí-veis de uma Constituição, numa tarefa que, aparentemente, seria relacionada apenas à legislação infraconstitucional. Portanto, não se pode correr o risco de “forçar” uma interpretação da Constituição para adequar a lei (técnica que não seria de salvamento desta, mas de derrocada daquela), sob pena de promover a indesejável interpretação da Constituição conforme a lei.

REFERÊNCIAS

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NOTAS

1 Em outro prisma, pretendia-se a durabilidade do texto constitucional, conforme se depreende da análise de goeBel: “That a constitution in the nature of things must embody matter basic to the governing of a polity and that its pres-criptions be enduring had become, so to speak, articles of faith and, consequently, chief objec-tives in the process of constitution-making.” (1971: 96).2 Retirado do site http://www.law.umkc.edu/fa-culty/projects/ftrials/conlaw/marbury.html, em 24/10/20043 Consigna-se, aqui, que a idéia de pensamen-to de saVigny ancora-se naquilo que se chama de interpretação histórica, em que se pretende verificar a intenção do legislador. Sobre esta necessidade, gilMaR FeRReiRa MenDes (1999: 282) bem apontou que “A prática demonstra que o Tribunal não confere maior significado à chamada intenção do legislador, ou evita inves-tigá-la, se a interpretação conforme à Consti-tuição se mostra possível dentro dos limites da expressão literal do texto”4 É nesse sentido que stReCK (2004: 572) bem a alcunha de “mecanismo ‘corretivo’ da atividade legislativa”.5 Que não sofreu um efeito revogatório implí-cito (como pretende Lenio Luiz Streck, 2005: 121-2) da EC 45/04. Essas técnicas são próprias da Justiça Constitucional. Se o efeito vinculante está, doravante, constitucionalizado, pelo me-nos para a ADI e para a ADC (com o esqueci-mento da ADPF), maiores são os motivos para a incidência do mencionado art. 28, parágrafo único, da Lei n. 9868/99. Não se pode descurar, especificamente para essa técnica da interpreta-ção conforme, de sua inclinação democrática.

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6 Min. rel. Maurício Correa, D.J. de 08/05/2003.7 “Some think that the Supreme Court’s elabo-ration of constitutional law has given us a rich vocabulary of practical political philosophy. It has not. It may have given the Supreme Court and some constitutional lawyers such a voca-bulary. The populist constitutionalist believes that the public generally should participate in shaping constitutional law more directly and openly. The Declaration of Independence and the Preamble to the Constitution give all of us that opportunity. As Lincoln said, the Constitu-tion belongs to the people. Perhaps it is time for us to reclaim it from the courts”.8 “The vanity and presumption of governing beyond the grave, is the most ridiculous and insolent of all tyrannies. Man has no proper-ty in man; neither has any generation a pro-perty in the generations which are to follow. The parliament or the people of 1688, or of

any other period, has no more right to dispose of the people of the present day, or to bind or to control them in any shape whatever, than the parliament or the people of the present day have to dispose of, bind or control those who are to live a hundred or a thousand years hence. Every generation is, and must be, com-petent to all the purposes which its occasions require. It is the living, and not the dead, that are to be accommodated. When man ceases to be, his power and his want cease with him; and having no longer any participation in the con-cerns of this world, he has no longer any au-thority in directing who shall be its governors, or how its government shall be organized, or how administered”.9 Utiliza-se, aqui, supostamente, porquanto a natureza das normas constitucionais, em tese, é aberta, mutável (trata-se da idéia de living Constitution ou Constituição viva).

anDRé RaMos taVaRes

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* Texto traduzido por Juliana Salvetti e revisto por Marcelo Lamy e Luiz Carlos de Souza Auricchio.** Professore ordinario di Teoria dei sistemi giuridici nell’Università di Teramo. Traduzido do italiano para o português por Juliana Salvetti.

1. Certeza do direito: princípio ou valor?

O tema da certeza do direito não teve, na literatura jurídica italiana, a merecida atenção; tratado incidentalmente em nu-merosas análises de porte especialístico e em alguns artigos, foi, entretanto, aborda-do de forma completa principalmente por duas famosas monografias, agora distantes no tempo e, seguidas mais recentemente de pelo menos outros dois estudos de notável amplitude1. Em outro lugar, o tema foi de-senvolvido por estudiosos de teoria geral com efeitos diversos, com base em uma colocação realística de porte radical2, ou mesmo no âmbito de uma complexa teoria da argumentação do tipo pós-cognitivísti-co 3, e por outro lado, no mais amplo plano da reflexão filosófica, incerteza, instabili-dade e precariedade, são a fundamentação da pós-modernidade, em uma dimensão do efêmero e do transitório os quais desde sempre equivalem temores e tentativas de

resposta, em medida escatológica, como no âmbito das atividades rotineiras4. E, embora, como normalmente se observa, o tema da certeza torna-se cada vez mais central na análise dos sistemas jurídicos complexos, como momento de equilíbrio e harmonização da multiplicidade axioló-gica dos modelos pluralistas; o princípio de certeza, unido ao princípio de confiança do cidadão nos confrontos da positivação do direito por obra do legislador, torna-se, pois, um princípio sistêmico de estabiliza-ção. Ele opera, igualmente, em posterior e estreita conexão com aqueles da igualda-de, e para a obtenção de um fim-valor de justiça determinado de modo contingente, quando a necessária coexistência, e a mul-tiplicação de numerosas instâncias éticas, coletivas e individuais, própria dos mode-los pluralistas, impõem a presença de ins-trumentos mínimos, mas indefectíveis, de homogeneização sistêmica5.

CERTEZA DO DIREITO E MULTIPLICAÇÃO DAS FONTES NORMATIVAS: UMA REFLEXÃO SOBRE O CONTEXTO

ITALIANO*CERTEZZA DEL DIRITTO E MOLTIPLICAZIONE DELLE FONTI NORMATIVE:

UNA RIFLESSIONE DAL CONTESTO ITALIANO

FRanCesCo RiMoli**

Recebido para publicação em agosto de 2005

Sumário: 1. Certeza do direito: princípio ou valor? 2. A certeza como problema definitório. 3. Clareza da norma, certeza das relações jurídicas e funções sistêmicas. 4. Certeza e interpretação. O papel do juiz entre previsibilidade e justiça integrativa. 5. Estabilidade e mutação como problema dos ordenamentos jurídicos. Princípio de certeza e certeza dos princípios. 6. Incerteza integrativa e “direito dúctil”: ainda no sentido de um direito por princípios? 7. Certeza e confiança: a coerência como limite para a nomopoiese (criação da lei)? 8. Incerteza sistêmica e multiplicação das fontes: uma falsa perspectiva.

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Quanto à doutrina constitucional italiana, grande parte dela apontou a sua atenção, essencialmente, aos perfis mais concretos do tema, nela examinando, so-bretudo, as relações com os problemas inerentes à clareza e à perspicácia dos atos normativos, na sua redação e publicação, mas também, obviamente, às ligações en-tre interpretação e aplicação do ditado nor-mativo6.

Contudo, parece que um princípio de tal importância deva ser estudado com maior amplitude, especialmente em relação aos aspectos funcionais que o conectam à mesma dimensão do direito compreendido como medium intersistêmico; no tocante a essa perspectiva, enfim, algumas das mais freqüentes observações à cerca da impor-tância da certeza poderiam assumir uma nova colocação, justificando conclusões que seriam de outra forma aparentemente intoleráveis. Em outros termos, é a certe-za um valor em si, ou deve ser medida por um modelo avaliador mais complexo de eficiência e eficácia do subsistema jurídi-co, tornando-se um princípio, e, portanto um instrumento, mais que um fim-valor7. E, antes ainda, pode ser afirmado realmen-te, com a convicção mostrada por Bobbio, que a certeza “é um elemento intrínseco do direito, mas sim que o direito ou é certo ou não é nem mais direito” 8.

Não poderia, além disso, refletir-se no fato que, às vezes, uma absoluta (quan-to improvável) certeza das conseqüências jurídicas de um comportamento concreto, mesmo colocando-se a priori como con-siderável expressão da capacidade coer-citiva do ordenamento, ou mesmo da sua eficácia, impeça, todavia, a esse assimilar realmente a sua função medianeira e, sob outra perspectiva, alcançar aquele fim de justiça que lhe deveria permitir a assimi-lação das tensões sociais? Na verdade, a solução parece muito mais complexa, co-locando-se por trás de tais interrogações,

a secular disputa entre modelos jurídicos de common law e de civil law, e a conec-tada definição do papel do juiz em ambos os sistemas: se isso parece plausível que, mesmo com uma colocação um tanto radi-cal, pelos sistemas do primeiro tipo, tenha-se extraído a leitura realística extrema de Jerome Frank, ou de qualquer modo uma visão realistíco-comportamentista como aquela exposta por Alf Ross9, não parece igualmente compartilhável que, em mode-los do segundo tipo continuou-se manten-do, mesmo perante as profundas transfor-mações do papel da lei e a fragmentação das tradicionais categorias dogmáticas na reconstrução sistemática das fontes nor-mativas, a idéia pela qual por uma drástica simplificação e redução do ordenamento e por uma melhor redação das disposições possa ipso facto originar, em uma corre-lativa delimitação dos espaços confiados ao intérprete, uma verdadeira atuação do princípio de certeza e, por ele, uma eficiên-cia superior do ordenamento10. Esse breve estudo não pretende, obviamente, acres-centar a uma completa análise dos proble-mas levantados, mas somente apresentar algumas observações sobre o tema, e sobre as conotações que a sua exposição parece hoje assumir na doutrina liderante, a fim de induzir, se possível, a uma mais profunda reflexão futura.

2. A certeza como problema definitório

Mas, antes de tudo, como se pode de-finir o conceito de certeza, e quais são os seus limites? Uma atual síntese apanha o significado da certeza na “previsibilidade das conseqüências jurídicas de atos ou fa-tos”, e mais especificamente em:

A) previsibilidade da intervenção, e, portanto, também da não-intervenção, de órgãos de competência jurídica decisiva ou meramente executiva em relação a um (a cada um) único caso concreto;

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B) previsibilidade do efeito de uma (de cada uma) eventual intervenção de um órgão de competência jurídica decisiva, ou seja, previsibilidade da decisão jurídica;

C) segurança das relações jurídicas em virtude de uma presumível estabilida-de da regulamentação, ou coherence entre normativas subseqüentes no tempo11.

Esse último ponto consente subsistir além de qualquer perplexidade, e em se-guida será abordado; quanto aos dois pri-meiros, é certo que o elemento subjetivo da previsibilidade das conseqüências da própria ação concreta, de fundar, eviden-temente, em uma objetiva conseqüencia-lidade causal dos verdadeiros efeitos da própria ação, quase em forma de necessi-dade, coloca-se por si mesma como forte elemento de estabilização das expectativas comportamentais, e, portanto como instru-mento de assimilação de uma das funções primárias do sistema jurídico, na acepção feita por Luhmann12. Nesse sentido, o mo-delo da certeza inclina-se a colocar como ideal teleológico e tendencial uma mimese entre a lei jurídica e a lei natural: a primeira terá tanto mais sucesso, eficácia e eficiente quanto mais as conseqüências nela previs-tas serão confirmadas infalivelmente, como que no processo causal natural, e com base em um modelo de necessidade que, de cer-to modo, anularia a diferença entre o pres-critivo e o descritivo, em total vantagem desse último; segundo a antiga concepção iluminista, a lei jurídica aspiraria assim ser inviolável tanto quanto a lei natural13. Ob-servada sob esse perfil, a mesma colocação realística, na sua acepção americana como naquela escandinava, usualmente criticada pelos sustentadores tradicionais do princí-pio em questão, termina na verdade com o ser, seja em uma decidida mutação das perspectivas de observação, uma substan-cial reafirmação das instâncias de certeza: uma ciência jurídica compreendida como

ciência preditiva das decisões dos juízes muda o objeto do seu estudo (não mais a lei, mas a jurisprudência das cortes), mas não pode não prover, sob pena de uma per-da de sentido substancial, aos operadores e a todos consociados um instrumento de previsão, um modelo alternativo de certe-za probabilística dos quais esses possam, a fim de evitar conseqüências desagradáveis, modelar os próprios comportamentos14.

A certeza das relações jurídicas, portanto, antes ainda que a certeza (ou a clareza, para ela instrumental) das normas, constitui exigência primária da vida social. E, todavia, o papel de estabilização das ex-pectativas de comportamento cujo direito em fase de medium intersistêmico deve as-similar, não poderia considerar-se realiza-do quando fosse, hipoteticamente, alcan-çada uma total previsibilidade das decisões assumidas, e, com essa, a total assimilação entre lei jurídica e lei de casualidade.

O erro, nesse caso, seria evidente: um direito - ou melhor, um ordenamento - que se colocasse como absolutamente iniludí-vel e inalterável no caso individual, mas só, eventualmente, modificável por meio de generalidade e abstração, seria prova-velmente totalmente inidôneo para desen-volver o papel acima citado. Encobre-se sob esse perfil o problema tradicionalmente posto por aqueles que se ocuparam desses temas: a exigência de certeza, entendida como necessidade sistêmico-funcional, co-lide, todavia com outra exigência, teleoló-gico-axiológica, de realização do fim-valor de justiça. Em outros termos, o excesso de rigidez que se originaria de uma absoluta estabilidade das exauridas relações jurídi-cas, mas, sobretudo, pela absoluta previsi-bilidade dos efeitos das relações penden-tes, terminaria com o comprometimento, em muitos casos, a possibilidade de consi-deração das instâncias postas pela solução do caso individual: aqui a tríade conceitual

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certeza-igualdade-justiça revela totalmen-te à sua íntima natureza antinômica, ofere-cendo ao intérprete da realidade social (o legislador) ou da norma (o juiz e qualquer outro operador jurídico) uma margem ine-vitável - e indispensável - de incerteza e de ambigüidade quanto aos possíveis efeitos das opções15. E por outro lado, no mesmo sistema do direito penal, onde, no grau máximo, se adverte a exigência de certeza, expressa no plano do direito positivo dos princípios de taxatividade (e perspicácia) do caso normativo e de irretroatividade da lei, dos quais nos artigos 25 Const. e 1 c.p., o complexo mecanismo da determina-ção da entidade da pena e a existência de uma sólida margem de discricionariedade do juiz na quantificação da mesma entre um mínimo e um máximo definidos pelo legislador são a prova da impraticabilidade de um cânone absoluto de previsibilidade do ordenamento positivo16. Não apenas. Uma absoluta (quanto hipotética) certeza dos efeitos de um confronto judicial de-senvolvido baseando-se nas disposições perfeitamente unívocas, poderia igualmen-te fragilizar a capacidade de assimilação do conflito, e de legitimação externa da decisão, do mesmo que, de outra forma, o procedimento, segundo a conhecida con-cepção de Luhmann, possui: uma margem de incerteza dos efeitos é, pois, necessário para induzir os titulares dos diversos inte-resses em jogo a alcançar a satisfação des-ses no âmbito dos procedimentos institu-cionalizados, permitindo então um melhor controle social das tensões e a conquista final de um consenso (ou seja, de uma le-gitimação) sobre a escolha do decisor (o sujeito julgador), ou, pelo menos, de uma neutralização das reações dos sujeitos de-siludidos pela mesma, limitando o recurso aos “sistemas de contato” externos17.

Raciocinando de outra forma, as li-nhas de resolução dos conflitos tendem

a recondução a mecanismos externos do alvéolo institucional, freqüentemente ocultando-se, e tornando enfim o sistema jurídico incapaz, de fato, de desempenhar as suas funções essenciais de controle e es-tabilização.

O princípio de certeza revela-se, en-tão, absolutamente problemático, na sua natureza como nos seus contornos: não pode ser considerado um valor-fim, já que tendencialmente colide com um outro ob-jetivo axiologicamente definido, aquele da justiça (cujos conteúdos concretos são muito variáveis, e que, não obstante, se coloca como escopo essencial e fonte de legitimação de todo ordenamento)18, em re-lação ao qual pode colocar-se somente de forma instrumental, e finalmente subordi-nada; e, todavia, mesmo se compreendido como instrumento, como os outros princí-pios (e em estreita conexão com aquele da igualdade), surte efeitos muito diferentes baseados no contexto global do ordena-mento onde é chamado para operar. Se, pois, em um sistema de tipo autoritário. ele pode coerentemente colocar-se como meio de perpetuação do ordenamento, na cons-tante afirmação da sua eficiência, eficácia, coercitividade e iniludibilidade, dentro de um modelo mais complexo, informa-do a cânones de democracia e pluralismo, onde todos esses critérios são bem menos definíveis abstratamente, a certeza não pode ser assumida tout court como fator de eficiência e estabilização, podendo ao contrário, em certas condições, constituir uma das causas da suspensão entre o orde-namento positivo na sua realização efetiva e as dinâmicas que inspiram o agir social, em um determinado contexto, e, portanto, momento lesivo do próprio sistema. Será então oportuno examinar mais de perto os perfis tradicionalmente compreendidos como condições da realização do princípio em questão. Com esse propósito, Guastini

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caracteriza, circunscrevendo o discurso à lei e à sua aplicação, quatro condições para garantir a previsibilidade das decisões, a seguir:

1)- Conhecimento e compreensão da lei;2)- Fidelidade à lei por parte dos juízes;3)- Estabilidade da jurisprudência, e

finalmente,4)- Irretroatividade da lei;Para a estabilidade das relações exau-

ridas, as condições seriam duas, ou seja, novamente a irretroatividade da lei, o e a intangibilidade da coisa julgada19. A subs-tancial superfluidez da separação inicial entre previsibilidade e estabilidade, essen-cialmente tautológica, justifica a repetição das condições acerca do segundo perfil, e conseqüentemente será conveniente de-ter-nos somente sobre os quatro primeiros pressupostos, cuja evidente problemática torna, por essência, tudo menos que unívo-ca a individuação e a atuação da certeza.

3. Clareza da norma, certeza das rela-ções jurídicas e funções sistêmicas

Segundo uma comum quanto óbvia consideração, o direito não pode ser certo até que as normas, mediante as quais o or-denamento se constrói, não estejam expres-sas claramente, ou seja, com enunciados prescritivos perspícuos e não contraditórios, e não sejam igualmente de todo reconhe-cíveis (não necessariamente conhecidos) pelos destinatários, ou mesmo pelos conso-ciados, através de apropriados instrumentos de cognição. O ausente conhecimento, ou melhor, o não conhecimento da lei, induz o indivíduo, e a inteira coletividade, na mais desesperadora impossibilidade de previsão das conseqüências das próprias ações, crian-do situações de caos o de paralisia ao com-pleto sistema. Como é óbvio, o problema da clareza conecta-se intimamente àquele da coerência do ordenamento, ou seja, da eli-minação das antinomias internas e externas

desse, mas também, pelo menos em par-te, com aquele da plenitude tendencial do mesmo, que poderia fornecer qualificações e cânones orientadores de comportamento para todo possível agir humano, segundo as modalidades deonticas fundamentais bem conhecidas dos teóricos do direito. Assim, a produção hipertrófica e vertiginosa de normas próprias dos ordenamentos con-temporâneos é considerada, de modo qua-se unânime, uma das principais causas de inadequação dos mesmos, que no excesso de complexidade e na superabundância de disciplinas findam por perder toda a ho-mogeneidade, impregnando-se de erros e contradições, e não são, na grande maioria, capazes de serem nem eficientes nem efe-tivas20. Isso enfraquece os fundamentos da real possibilidade de conhecimento do di-reito vigente em um determinado momento por parte dos destinatários, fere a confian-ça dos cidadãos na coerência do legislador e, finalmente, na mesma coercitividade e efetividade das determinações, entendidas muito freqüentemente, especificamente em um modelo não autoritário, como mero fla-tus vocis; e isso produz, antes mesmo que desorientação e ansiedade, uma substancial anarquia do ordenamento. E o problema da dificuldade de cognição das normas é levado, como tal, a dar razão à tão conhe-cida quanto criticada sentença n. 364/88 da Corte constitucional italiana 21, com a qual se refreou significativamente (ou talvez se desgastou) o princípio de imperdoabilida-de da ignorância da lei penal, tanto mesmo com uma motivação cuja complexidade manifestava completamente a perturbação do juiz constitucional.

E, todavia, ainda mais uma vez, o problema parece colocado de modo in-satisfatório: por um lado, observá-lo não significa ainda com certeza resolvê-lo, e muitos dos remédios projetados aparecem decididamente utópicos, como será visto

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em breve; por outro lado, segundo o que já foi indicado pela outra doutrina, a exi-gência de clareza e conhecimento, ou seja, antes de tudo, de escritura e codificação das normas, coloca-se de modo diretamen-te proporcional à crescente presença de elementos societários em oposição àqueles comunitários no contexto social, ou mesmo na heterogeneidade do tecido conectivo da própria coletividade22. Em outras palavras, aqui se revela um dos dilemas essenciais dos modelos pluralísticos: a complexidade e a pluralidade das dimensões axiológicas impõem a determinação de mínimos inder-rogáveis e perspícuos de positivação das normas de comportamento, pelo menos para definir as regras basilares do proces-so decisório, mesmo na perspectiva dis-cursiva de Alexy e Habermas; nesse meio tempo, todavia, as mesmas características acabam com a determinação de uma mul-tiplicação das instâncias, e, no plano ins-titucional, uma proliferação de centros de produção normativa que, mesmo sendo ex-pressão imediata da natureza pluralista do ordenamento, comprometem-lhe substan-cialmente a homogeneidade, a coerência e, portanto, a eficácia.

Quanto ao perfil da clareza normati-va, uma excessiva confiança nas técnicas legislativas sobre as quais boa parte da doutrina já há algum tempo vai se detendo e deixa alguma perplexidade: critérios de drafting, instrumentos de legimática, em-prego de meios informáticos de “manuais de legística”, tão sofisticados e completos, colocam-se seguramente como úteis - e às vezes necessários - fatores de integração do ordenamento na sua dimensão evoluti-va, mas não são por si só suficientes para garantir o único caráter que pode atribuir, por fim, efetividade (e com ela eficácia) à determinação legislativa, ou seja, a força integrativa.

Essa deriva ao mesmo tempo, em uma sociedade compósita e competitiva,

onde a cooperação e a orientação no en-tender dos atores (usando ainda as catego-rias de Habermas)23 representa um objetivo tão auspicioso quão infelizmente longe da realidade, pela capacidade de contratação, pela negociação entre as partes em jogo, pela composição de interesses opostos se-gundo relações de força cuja resultante é determinada pelo conjunto, institucional e não, dos fatores que cada uma delas pode fazer intervir no processo em próprio fa-vor.

Nesse âmbito, a função do direito, compreendido ainda como um medium intersistêmico, não pode ser que aquela de impedir que a competição transforme-se em conflito aberto, ele, no melhor dos casos, que através do procedimento, disci-plinado juridicamente, obtenha-se aquele grau de legitimação das escolhas do qual já se falou anteriormente. A importância his-tórica de tal processo mede-se, em toda a sua gravidade, observando, por exemplo, a tendência à nova recondução das mesmas relações de emprego público à dimensão privatizado-contratual; se por um lado isso comporta em perspectiva, para a Adminis-tração, de uma redução de custos e de obri-gações, perseguida através de uma maior mobilidade da relação de emprego, por outro ela responde a exigências de mais ampla expressão institucional, evidencian-do a superação da capacidade efetiva, para os poderes públicos, de definir pela autori-dade estatal as formas e os modos da pró-pria relação, que para legitimar-se deverá surtir de uma negociação entre as partes. E isso pressupõe a equiparação inicial das mesmas, e do sujeito público antes de tudo, em um modelo cooperativo onde não seja mais admissível uma posição privilegiada de um dos competidores em relação aos outros. Daqui, então, a consideração pela qual a eficácia, eficiência e efetividade do ordenamento não têm como pressuposto a perspicácia das normas, a clareza e o co-

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nhecimento das mesmas. Esses caracteres colocam-se mais, de formas diversas, como instrumentos para garantir a certeza, e essa, por sua vez, é meio (e, portanto, assumida como princípio) para os resultados acima mencionados: o pressuposto essencial é, todavia, a respondência da única normati-va - e do ordenamento no seu complexo - às exigências contingentes do complexo dos destinatários, a capacidade daqueles que positivam o direito de compor em unidade a diversidade das instâncias, me-diante compromissos que salvem ao mes-mo tempo a natureza optativa da escolha e a paz social; inteiramente verificável só a posteriori. Em outras palavras, pode ser mostrada freqüentemente mais eficaz uma lei que, mesmo deixando uma margem de ambigüidade interpretativa, permite a todas as partes em jogo (ou a grande parte delas) o reconhecimento dos próprios interesses, em relação a uma outra que, na sua drásti-ca univocidade, coloque-se como fator de exclusão de alguns dos sujeitos em jogo e pré-constitua, então, as formas da própria total elucidação por parte de um grupo so-cial consistente. Assim, por exemplo, a le-gislação de um sistema autoritário, que se incline a recompor coativamente o conflito social, será provavelmente clara nas suas opções e na sua formulação, mas dificil-mente poderá encontrar um consenso que a torne efetiva além da própria coação; em um modelo democrático integrativo isso será por fim intolerável.

Na realidade, na concreta experiência histórica, a escritura e a codificação torna-ram-se necessárias, como já afirmado, toda vez que se manifestou um relevante grau de contraste entre as diversas composições do tecido social: a mesma positivação, to-davia, sempre apareceu como fruto de um objetivo alcançado, de um equilíbrio, tal-vez até provisório, que havia permitido a definição de satisfações recíprocas de inte-resses, segundo a contingente possibilidade

de cada um dos sujeitos contraentes: assim nascem as primeiras cartas constitucionais, assim se define, em formas muito variadas, a inteira função do ius scriptum, que não por acaso inclina-se nesse momento em adquirir espaços preponderantes mesmo nos sistemas de common law, onde, no en-tanto, o mesmo direito jurisprudencial, for-temente estabilizado pelo princípio do sta-re decisis, acaba com a equivalência a um direito escrito. Esse último, mais, torna-se realmente supérfluo ou no caso (hoje im-provável) de uma absoluta homogeneidade de opções axiológicas no tecido social, tal que a norma de comportamento, preponde-rantemente consuetudinária, seja capaz de tornar-se efetiva sem a necessidade de ser explícita, ou no caso (hoje menos impro-vável) de um poder exercitado em forma autoritária e capilar, que ostente e produza consenso aparente, mas reduza ao mínimo as necessidades de consenso real (e é o caso dos sobreviventes regimes teocráti-cos, mas também de algumas autocracias, desenvolvidas em forma de ditadura ou de democracia totalitária), ou finalmente na hipótese (hoje muito freqüente nos ordena-mentos democráticos), onde a diversidade e a força dos interesses em jogo impeça a obtenção de compromissos profícuos, so-bre as questões de relevante importância e complexidade (pensando-se, no contexto italiano, à substancial impossibilidade de reformas constitucionais executadas, ou, sobre um plano diferente, às dificuldades de disciplinar legislativamente fenômenos socialmente e eticamente controvertidos, como a fecundação assistida ou a experi-mentação genética).

A perspicácia compreendida como clareza lingüística, como fator de comuni-cação intersubjetivo, e a imponente coloca-ção de regras de drafting que dela deriva, podem, portanto, constituir um instru-mento necessário, mas não exclusivo nem prevalente na atividade de positivação do

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direito; no plano social e no plano político, o qual mesmo do ponto de vista sistêmico deve fazer referência o ordenamento, as-sume um papel eminente à capacidade da norma de tornar-se aceitável, de satisfazer em um determinado momento a maior par-te dos interesses concorrentes, de produzir equilíbrio contingente capaz de prevenir e assimilar os afastamentos extra-institucio-nais dos efeitos das desilusões sofridas pe-los consociados24.

Nessa perspectiva, então, uma hipo-tética (e improvável) univocidade absoluta da norma seria provavelmente apreciável e auspiciosa no plano lingüístico e comuni-cativo, mas ineficaz, se não inoportuna, no plano político sistêmico, onde a margem deixada ao intérprete, ou durante a redação das disposições (com o uso de conceitos indeterminados ou fórmulas extensivas), ou mesmo durante a definição do papel do mesmo (aos quais sejam conferidos amplos espaços de discricionariedade, até com um prudente emprego de instrumen-tos de heterointegração do ordenamento) poderia representar, finalmente, a única real garantia de efetividade. Nesse sentido o conjunto das regras da legística poderia ser operado em um plano diferente, e su-bordinado; o bom compilador de um texto normativo (admitindo que seja realmente distinguível) deveria ser colocado como limite ao uso de tais instrumentos aquele da avaliação do impacto real da normativa que está elaborando, às vezes privilegian-do a aceitabilidade em relação à clareza lingüística. Deveria, pois, aplicar as regras de drafting, mas somente até que tal apli-cação não torne o resultado desprovido do grau de indeterminação (ou seja, de incer-teza) necessário para torná-lo tolerável das partes as quais, de fato, está acreditada a decisão, ou, ainda mais, a aceitação social e o respeito das normas elaboradas, até na consciência do fato que, em um modelo es-tatal complexo, seria impossível garantir a

observância de normas malvistas somente de modo autoritário. Mas isso diz respeito afinal ao juízo de natureza política que se coloca bem adiante da banal e obrigatória aplicação de poucas regras sintáticas e ta-xonômicas, ligadas à compreensibilidade imediata dos enunciados, e que não poderia de qualquer maneira caber aos órgãos téc-nicos (repartições legislativas ministeriais, comissões de especialistas, e similares). Nem parece que a análise acerca da “ela-boração” das leis, especialmente compre-endida sob o perfil da aceitabilidade social, possa ser suficiente para superar esse obs-táculo: desenvolveu-se fazendo prevalecer o plano estritamente técnico, de fato, essa pode caber aos sujeitos recentemente men-cionados, mas não compreende a dimensão política, que pode ser remetida somente ao sujeitos representativos, os quais poderiam considerar perfeitamente oportuno contra-dizer os resultados da análise, aprovando leis não “elaboráveis”, mas politicamente úteis (pensando-se nas freqüentes doações dos períodos pré-eleitorais) ou exatamen-te necessárias (é o caso de normas talvez irrealizáveis imediatamente, mas coloca-das como fator tempestivo de pacificação social em momentos de tensão)25; se, ao contrário, faz prevalecer, no ano âmbito da análise técnica, uma real avaliação política, a atividade em exame inclui um ato decisó-rio implícito que induz, progressivamente, a uma involução tecnocrática do sistema, com uma paradoxal transformação de instrumentos nascidos como garantia de transparência das decisões em fatores reais de encobrimento das mesmas, em relação à opinião pública.

4. Certeza e interpretação. O papel do juiz entre previsibilidade e justiça inte-grativa

Não é possível aqui abordar o vasto perfil do papel do intérprete na aplicação

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da lei: é, todavia, evidente que o processo de positivação do direito encontra no juiz uma coroação essencial (embora não defi-nitivo, já que a própria pronúncia judicial será, por sua vez, suscetível, em certos li-mites, de interpretação na fase de execu-ção), e que a idéia iluminística pela qual, em um modelo de separação de poderes, a função jurisdicional coloca-se como mera aplicação, coloca-se hoje como mais ain-da insustentável de quanto já não fosse no momento em que foi declarada26. Relevou-se já, mais, como a tradição dos países de common law conhecidos, de fato, no mo-mento da decisão judicial o ato da defini-ção concreta da norma, e nela do direito; certamente a capacidade do juiz de colo-car-se em última instância como aquele que, na multiplicidade das dimensões do jurídico, legais e extralegais, sabe reconhe-cer o critério de solução do caso submetido ao seu julgamento, depende restritamente da homogeneidade do tecido social do qual o próprio juiz é manifesto, pela relação do único órgão julgador (e finalmente da pró-pria magistratura no seu conjunto) com a disposição ideológica da inteira sociedade. Na realidade, a idéia de um sujeito que, em modo variado, saiba sintetizar em si mesmo, a inteira gama das concepções e dos sentimentos mais profundos de uma coletividade, une-se intimamente à dimen-são comunitária da própria coletividade, e desliza rapidamente na conotação caris-mática do intérprete, especificamente si ele se coloca igualmente como chefe, no sentido weberiano do termo. Assim, por exemplo, o Führerprinzip existente no regime hitleriano constituía uma extrema acepção do papel carismático - em certos ângulos, místico - do intérprete dos sen-timentos coletivos, também no plano da produção e da aplicação do direito27. Em uma sociedade fortemente compósita, e no modelo pluralístico que deveria ser-lhe ex-

pressão institucional, o papel do intérprete não poderá de qualquer modo ser justifi-cado baseando-se em presumidas capaci-dades sintéticas, nem, muito menos, com base no reconhecimento de competências e capacidade técnica tais que tornam efe-tivamente neutra a decisão no plano polí-tico. Toda opção, na realidade, constitui o fruto de um julgamento de valor onde a assunção da norma, ou mesmo de uma entre as possíveis interpretações dela, co-loca-se freqüentemente como elemento de justificação racional, perante o auditório dos consociados, para a solução preferida, através da decisão, pelo sujeito julgador 28; e isso não só com base nos processos de précompreensão bem evidenciados por Esser, mas igualmente segundo um mais consciente e instrumental mecanismo de persuasão finalizado na obtenção dos fins (ou seja, fins-valores) essencialmente pró-prios do grupo ideológico e de interesses cujo decisor pertença29.

Em tal perspectiva, conseqüente-mente, no raciocínio argumentativo com o qual, durante a motivação, o próprio su-jeito entende tornar aceitável a própria op-ção, não poderá ser conferida, nem no sen-tido lógico, nem gnosiológico, nem muito menos ético, alguma valência verídica; a subjetividade da solução - e a responsabi-lidade interligada - deverão firmar-se, e o emprego dos espaços discricionais cujo, em maior ou menor medida, decisor pode recorrer, será exclusivamente ligada à sua idoneidade para se apresentar como aceitá-vel em relação ao auditório (esfera que cer-tamente não se exaure com os destinatários diretos da mesma decisão)30.

A interpretação da norma, e, prin-cipalmente, o grau de aderência ao dado textual da mesma, ou à originária inten-ção do legislador - em outros termos o uso concreto do dever ser jurídico na fase mais avançada da sua positivação - é, portanto,

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nesse âmbito, um meio eminente, mas não exclusivo, para perseguição do objetivo da legitimação final da escolha; legitimida-de e legalidade, nas suas diversas formas, são, pois, elementos da ação, traços fortes (e até necessários), mas não decisivos para o efeito conclusivo, ou seja, para a assi-milação dos deveres sistêmicos gerais do sujeito “decidente”. Isso dependerá, subs-tancialmente, do grau de integração que o subsistema jurídico, na sua dimensão inter-sistêmica de medium, é capaz de alcançar em um determinado contexto histórico: o conjunto dos conteúdos e das formas das decisões singulares constitui nesse meio tempo pressuposto e momento de averi-guação de tal capacidade31.

Aliás, a legitimação de todo o siste-ma jurídico fundamenta-se na perseguição do fim-valor da justiça: esse deve ser en-tendido, todavia, não somente como ab-solutamente mutável, mas igualmente, em uma sociedade complexa, como compósito nos conteúdos, e, portanto, tendencialmen-te antinômico seja em relação ao princípio de igualdade, seja em relação àquele de certeza. Em outros termos, seja o critério distributivo, seja aquele comutativo encon-tram, quando vão além da mera acepção abstrata e formal observada por Perelman. Um obstáculo aplicativo dificilmente su-perável quando se entenda o operar do juiz (mas antes ainda do legislador, que inicia o processo de positivação através de uma interpretação do real) como simples apli-cação de esquemas silogísticos, e, sobretu-do, como aquisição de opções axiológicas objetivadas e estáveis.

A multiplicidade das “esferas de justiça” evidenciada por Walzer32, e a ne-cessidade de tutela de cada uma delas no momento pluralístico, permitem, contudo, que toda a escolha deva, no possível, ser alterada pelo sujeito público um segundo um tendencial fim integrativo, preferindo,

pois, entre as várias possíveis, aquela op-ção que permita o máximo de satisfação da pluralidade dos interesses em jogo. Em ou-tros termos, salvos os casos liminares onde não se possa satisfazer nenhuma das partes (ou melhor, das suas instâncias objetivas e das suas concepções) sem com isso excluir completamente as outras, deverá ser dever precípuo do sujeito decidente (cada vez, e com formas e efeitos bem diferentes, legis-lador, Corte constitucional, juízes) tentar descobrir e satisfazer não a vontade pre-ponderante - ou seja, a ideologia dominan-te - no contexto social onde operam, mas a linha de equilíbrio excelente para alcançar uma decisão integrativa, uma escolha que comporte, pois, o máximo um de satisfa-ção obtenível para alguns com o mínimo prejuízo para todos os outros, segundo um critério eminentemente utilitário.

Nessa perspectiva, o princípio de cer-teza não pode operar como instrumento de absoluta previsibilidade das decisões, já que essas deverão estar atentas a um contexto mutável, onde os parâmetros concretos da aceitabilidade serão cada vez avaliados pelo decisor, que, por conseguinte, se mo-verá dentro dos espaços a sua disposição visando, essencialmente, o objetivo da le-gitimação final da escolha, seja perante o auditório, seja, ao mesmo tempo, em rela-ção aos elementos concorrentes endógenos e exógenos, como as próprias convicções, o grupo de interesses ao qual está ligado, o código de comportamento ao qual quer ou deve fazer referência no quadro dos pró-prios sistemas de contato. Isso acontecerá tanto para manter viva a motivação da par-ticipação nos mecanismos institucionais por parte dos sujeitos envolvidos, no sentido já mencionado pelo qual um quid de incerteza é necessário para evitar a rejeição do pro-cedimento e a incontrolada fuga dos meca-nismos de assimilação das frustrações com relação aos modelos extra-institucionais,

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seja para realizar, vez ou outra, aquela fle-xibilidade que se torna hoje indispensável para o total sistema jurídico nas sociedades modeladas pelo pluralismo.

Dessa perspectiva, também o tercei-ro critério individuado por Guastini, rela-tiva à estabilidade da jurisprudência, deve ser interpretado com cautela, já que parece um tanto difícil conjugar as exigências de adequação dos critérios de justiça do caso individual com a mutação do contexto so-cial sem permitir – e, ao contrário, às ve-zes impor - aos juízes uma correspondente mudança de orientação. Por um lado retor-nam aqui as velhas disputas sobre a peri-culosidade da colocação da escola do di-reito livre de Jhering, Kirchmann, Heck e Kantorowicz, e sobre os riscos de uma in-volução neojurisnaturalística cujo excesso de antiformalismos e colocação própria da Interessenjurisprudenz conduzem33, ainda além das intenções dos seus defensores: por outro, deve-se mencionar um dos per-fis mais profundos implicados pelo mesmo princípio de certeza, ou seja, a relação en-tre a estabilidade e mutação, entre estática e dinâmica do ordenamento.

5. Estabilidade e mutação como proble-ma dos ordenamentos jurídicos. Princí-pio de certeza e certeza dos princípios

O princípio de certeza coloca-se as-sim, mesmo no sentido metajurídico, como expressão de aspiração à estabilidade e à segurança, tanto no plano material (segu-rança do modo organizado do viver civil), quanto naquele psicológico (segurança das relações humanas, na sua dimensão inter-subjetiva e temporal); exigência tão mais percebida quanto mais a realidade, como acontece na pós-modernidade, inclina-se, ao contrário, a evitar todo controle, em uma contínua metamorfose que impede qualquer controle efetivo e qualquer previ-sibilidade concreta34.

Perante isso, o sistema jurídico, e nele a multiplicidade dos ordenamentos, que se colocam como expressão positiva do Sollen, não pode, todavia, tornar-se ab-solutamente rígido: evidentemente isso lhe impediria qualquer concreta função sis-têmica, colocando-o na condição de uma substancial inutilidade. O tema da pesqui-sa, cada vez mais árdua, de um equilíbrio entre estabilidade e mutação está hoje cons-tantemente presente para os estudiosos, que com soluções muito variadas preten-dem enfrentar o problema provavelmente insolúvel do ponto de vista de princípio: a renovada discussão sobre os tradicionais temas da rigidez das cartas constitucionais e sobre os limites do poder de revisão, ou aquela sobre o perfil interligado dos vín-culos do futuro legislador espelham um transtorno profundo do jurista, que per-dendo muitas das categorias habituais - e talvez a própria possibilidade de uma ta-xonomia - receia perder o próprio papel35. Não obstante, parece a todos evidente que os modelos dominantes do século XX, e em modo particular aquele do Stufenbau de Merkl e de Kelsen, são hoje totalmente insuficientes para compreender a evolução real dos ordenamentos: as concepções gra-dualísticas e monísticas são nesse momen-to incapazes de justificar a proliferação dos ordenamentos, a intersecção cada vez mais problemática e complexa dos mesmos, e a multiplicação das fontes internas, que são, contudo, uma conseqüência direta da in-tegração supranacional por um lado e do pluralismo institucional do outro36.

Aliás, é igualmente claro que tal crescente complexidade não pode ser facil-mente estigmatizada como uma patologia do sistema; assumidos certos pressupostos políticos e econômicos, antes mesmo que jurídicos, ela é mais a lógica, e antes tra-dução obrigatória, em termos jurídicos, da complicação do tecido social para as quais

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exigências o ordenamento deve responder. Pelo que concerne ao nosso tema, todavia, já se observou como a necessidade de co-dificação, de definição das regras jurídicas tanto, pelo menos tendencialmente, direta-mente proporcional à heterogeneidade das instâncias presentes; em outros termos, o direito, compreendido como conjunto de normas de comportamento claras e inadi-áveis, afirma-se como indispensável quan-do, junto à multiplicação dos sujeitos e das ideologias que os animam, acrescenta-se a probabilidade do conflito, que deve ser prevenido, e eventualmente reprimido, pelo próprio direito.

O princípio de certeza assim se orienta, e é constatação comum, antes de tudo ao fim-valor da segurança apreendida como paz social, como ordem pública ma-terial construída na confiabilidade das rela-ções jurídicas, em todo nível37. E, todavia, é justamente nessa perspectiva que ele se revela como algo diferente da previsibili-dade concreta das decisões: se o fim fun-cional do ordenamento, e dos princípios que o modelam, deve ser aquele acima mencionado, é evidente que, em um con-texto bastante complexo, dificilmente uma certeza entendida como previsibilidade seria realmente idônea para desenvolver o próprio papel teleológico; como já se ad-vertiu, uma hipotética previsibilidade ab-soluta seria antes a antítese da capacidade de integração dos interesses por parte dos sujeitos que decidem, e se colocaria con-seqüentemente como obstáculo, em uma visão mais ampla, à realização dos fins do ordenamento. Assim, do ponto de vista do legislador (ordinário ou constitucional), a necessidade de redução dos espaços ocu-pados pela normalização, origina-se da oportunidade de aumentar o âmbito de discricionariedade, confiado aos outros su-jeitos (administradores e juízes), tornando então realmente mais incerta nos conte-

údos a simples decisão desses, e circuns-crevendo a importância e a aplicação dos princípios em questão à certeza dos princí-pios, determinados de forma instrumental pelo legislador em relação à obtenção dos fins-valores do próprio ordenamento, e an-tes de tudo daquele da segurança. Isso na-turalmente implica em um preço a ser pago pelo cidadão, pelo qual se reduz fortemen-te a possibilidade de previsão dos efeitos de um determinado comportamento, dele ou alheio; tal perda de específica certeza deveria, porém, ser compensada por uma maior garantia geral de respeito e atuação dos cânones fundamentais do ordenamen-to, e especificamente para evitar conflitos sociais que atormentem, enfim, o conjunto dos direitos fundamentais interligados à existência do modelo democrático38.

Nessa perspectiva, deve ser relida, além da idéia da compatibilidade sistemá-tica entre as normas entendida no sentido hierárquico e sincrônico, (consistency), também a idéia da coherence, a qual se conecte diacronicamente, entre outro, o princípio de confiança do cidadão nos con-frontos do legislador e a possibilidade do vínculo ao futuro legislador39. Mesmo aqui não se pode admitir tal princípio como ab-soluto, a menos que não lhe seja conferida uma ampla importância: além das obvias considerações sobre a dimensão diacrôni-ca da sucessão de vontade dos órgãos re-presentativos, e da intima conexão entre essa e o processo de integração política, um vínculo desse tipo, implícito ou ex-plícito, deve ser considerada, de qualquer forma, subordinado à avaliação, efetuada pelo legislador atual, relativamente à ido-neidade contingente do princípio, tratan-do-se da obtenção dos fins acima citados; enquanto se reconhece que uma drástica mutação de orientações seja funcional-mente mais profícua para tal objetivo, uma correta ponderação dos custos e dos bene-

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fícios da escolha poderia legitimamente induzir o legislador a estatuir, também em vivo contraste com tudo que foi exposto em um passado recente, colocando-se, se for o caso, somente o problema da tutela dos direitos procurados e da estabilidade das relações exauridas40. Também por es-ses últimos, no entanto, as exceções não faltam, já no ordenamento italiano vigente (pensando-se ao disposto do último pará-grafo do artigo 30 da lei n. 87/53 acerca dos efeitos das sentenças de aprovação da Corte constitucional sobre as sentenças penais de condenação tornadas irrevogá-veis, ou aquela do artigo 2, parágrafo 2 do código penal), e são a prova do fato que, quando existam exigências concorrentes de tutela consideradas predominantes pelo legislador (naquele caso da tutela da liber-dade pessoal e o princípio do favor rei), o mesmo cânone de certeza, entendido aqui como imodificabilidade das relações exau-ridas, pode e deve ser superado.

6. Incerteza integrativa e “direito dúc-til”: mais uma vez para um direito por princípios?

Por tudo que foi dito, deveria, con-seqüentemente, entender-se o princípio de certeza como instrumento, dirigido à obtenção do fim-valor da segurança, e em tendencial contraste com aquele, de definição assaz árdua, da justiça. É para ser ressaltado, entretanto, que tal relação de conflitos atenue-se, quando da certeza seja adotada uma versão frágil que pode-ria aqui ser alterada em uma “incerteza integrativa”, onde a dimensão política da pluralidade assume valência muito maior de quanto aconteça na acepção mais tradi-cional do princípio. Apesar de tudo, as afir-mações desenvolvidas impõem algumas especificações posteriores, mesmo para reassumir o discurso até aqui conduzido. Nos modelos democráticos cabe ao legis-

lador (constitucional e ordinário), desde que sujeito dotado de representatividade, uma determinação consistente dos fins-va-lores cujo ordenamento deverá ser orien-tado. No âmbito dos conteúdos possíveis, todavia, tal ordenamento deverá ser colo-cado em aptidão para desenvolver as suas funções sistêmicas elementares: assim, tu-tela da segurança social e aspiração a um objetivo de justiça formal constituem dois elementos fundamentais, antes de tudo um no plano da legitimação. Todavia, a obten-ção de tais fins, na complexa sociedade, e na dimensão pós-moderna, não passa pelos caminhos tradicionais: certeza do direito e perspicácia da lei, compreendidas na acep-ção comum, são agora caracteres não só tendenciais (o que sempre ocorreu), mas igualmente, em determinadas situações, contraproducentes para obter a realização do fim de assimilação dos conflitos; por isso, é necessária talvez uma forma de indeterminação controlada, de incerteza programada que permita modular toda de-cisão sobre a situação contingente, que se apresenta em constante mutação, sem ter de recorrer a uma contínua e impraticável modificação formal do direito vigente.

Isso comporta uma redução da in-tervenção legislativa, em todo o nível; uma legislação que opere essencialmente por princípios uma deslegiferação e uma simplificação que confiem à execução e à interpretação de maneira aplicativa a defi-nição das soluções específicas, aparecem comumente como a única via para evitar a paralisia funcional do total sistema41. E, todavia, para tal redução quantitativa de-verá corresponder, justamente pela razão da heterogeneidade das instâncias e da complexidade da sociedade plural, uma maior rigidez e perspicácia dos próprios princípios, postos em intima relação ins-trumental com os fins-valores dos quais já falamos. Aqui somente se pode - e deve-

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se - recuperar uma concepção gradualística das fontes: reservando para a lei (constitu-cional e ordinária) a única determinação das normas de escopo (as opções de valor) e de princípio (as opções instrumentais, pri-márias), segundo um critério de coerência (congruência) tradicionalmente entendido, qualquer outra fonte normativa, qualquer outra modalidade negociada de solução dos conflitos, no quadro de uma disciplina vinculante para o sujeitos que, de maneira procedimental e participativa, tenham con-tribuído para a composição dos interesses em jogo (segundo um modelo já em plena expansão: pensando-se na contratação cole-tiva no emprego público), será por si mes-ma avaliada segundo um cânone teleológi-co e funcional, e para aceitar onde quer que demonstre a sua idoneidade sistêmica42.

Em outros termos, o vínculo, amole-cido para baixo, fortalece -se para o alto; a escolha dos fins-valores e dos relativos princípios instrumentais não pode ser que definida pelos órgãos representativos, junto aos quais somente pode ser concluído (pelo menos teoricamente) o processo inicial dá pré-interpretação integrativa que conduz à formulação da norma: daqui para frente, as adequações contingentes, desenvolvidas dentro de espaços consistentes liberados pelas normas de escopo ou de princípio, deverá acontecer por obra dos outros sujei-tos que decidem do sistema, no quadro de atividades programadas (discricionárias) que somente em casos totalmente especí-ficos (por exemplo, pelo que se refere ao papel dos juízes constitucionais) podem assumir legitimidade de reprogramação43.

Para tais sujeitos, todavia, não pode-rá pertencer uma função law finding nos confrontos dos princípios: nesse sentido a diferença entre o modelo tradicional de common law e aquele da superioridade do direito escrito deve permanecer clara (e talvez seria desejável uma aproxima-

ção ainda mais clara do primeiro do que o segundo). A redução da intervenção le-gislativa deverá ser compensada, no grau mencionado, na maior clareza possível: a certeza, drasticamente reduzida no pla-no da aplicação individual, deverá ser no máximo possível recuperada na dimensão teleológica, que fica de qualquer modo heterônoma e inadiável em relação aos ór-gãos de execução e da aplicação. A certeza torna-se então relativa à previsibilidade dos fins obtidos e dos princípios para isso utilizados, não dos conteúdos específicos da simples decisão, que somente no senti-do probabilístico serão prefiguráveis pelas partes em jogo, como efeito possível das avaliações subjetivas do decisor, por um lado em relação às próprias capacidades de preconcebimento, e pelo outro em relação aos vínculos teleológicos a eles impostos pelo ordenamento.

Nesse sentido, a concepção aqui sus-tentada, distancia-se tanto da famosa visão de Ronald Dworkin, seja, mesmo que em menor medida, pela mais prudente concep-ção do “direito dúctil” afirmado na Itália por Gustavo Zagrebelsky, no quadro de uma democracia “crítica” 44: da primeira, porque o papel que a ela é confiado ao juiz em base da distinção entre rules e princi-ples (e de inspiração da right thesis) não pode que conduzir a efeitos de tipo neo-júrisnaturalístico, absolutamente incom-patíveis com a dimensão pluralística, a despeito de quanto o autor americano de-monstra considerar45; da segunda, porque um jogo de equilíbrio entre os princípios, legitimamente operado pelo legislador parlamentar, ou eventualmente pela obra de nomopoiese concorrente confiada ao juiz constitucional, deixa mais perplexos onde quer que seja remetido por qualquer intérprete46.

Ainda, a idéia de certeza impõe ao legislador, constitucional e ordinário, a

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determinação de princípios, definido, no máximo possível, de forma expressa, com a devida atenção, vigiando a homogenei-dade e a coerência, e evitando a sobrepo-sição; é verdade que aqui também deverá vigiar o problema da ambigüidade com-preendido como compromisso integrativo, mas essa se obtém com um prudente uso dos conceitos indeterminados nos enuncia-dos sintéticos, e não com uma incontrolada multiplicação das normas de princípio47.

Além disso, é igualmente óbvio que tal definição de princípios (e ainda mais de escopos, ou de fins-valores) deveria antes de tudo ser traduzido em normas consti-tucionais, através de adequados e trans-parentes procedimentos de revisão: se a situação concreta impede de fato reformas completas para Constituição italiana, é igualmente verdade que intervenções pon-tuais e circunscritas podem de qualquer modo contribuir para um progressivo es-clarecimento da disposição do ordenamen-to (embora, pois, modificações como aque-la operada no artigo 111 da Carta sejam o retorcido e confuso produto de medíocres compromissos, ao contrário de reais sínte-ses integrativas)48.

No plano da legislação ordinária, além dessa individualização dos princípios, deveria ser desenvolvida segundo critérios de equilíbrio, dirigidos obviamente à atua-ção dos fins constitucionais, mas também para a busca da harmonia entre generalida-de e integratividade que permita aos outros sujeitos que intervirão no processo de po-sitivação de encontrar, ao mesmo tempo, uma orientação para a própria decisão no plano teleológico, e um espaço consisten-te para a adequação da simples decisão à realidade concreta (o caso) com a qual se deparam.

Em outros termos, a cadeia valores-fins / princípios-instrumentos, desenvolvi-da, sobretudo, - raciocinando em termos

assaz simplificativos - entre legislação constitucional e legislação ordinária (pri-mária e concorrente, essa última cabendo ao juiz constitucional, e às vezes ao Gover-no), não se interrompe, mas procede na fase de execução e de aplicação, onde, todavia, será o complexo de valores e princípios a dirigir a ação dos simples operadores, se-gundo o modelo de adequação sistêmica: será, pois, “corrigida” (não no sentido ló-gico, mas teleológico) aquela decisão que demonstre o máximo de conseguibilidade dos fins em relação aos meios escolhidos, operando uma re-composição dos interes-ses em jogo que reflete, na maior medida possível, o modelo de composição que, de modo preliminar e geral, foi colocada à disposição pela legislação através da se-leção, operada com método discursivo, dos fins e dos princípios49. Enquanto entre os primeiros exista aquele da integração plu-ralística, e da conexão tutela das minorias e das diferenças, a decisão mais oportuna (que somente nesse sentido é a mais “ade-quada”, do ponto de vista político e sistê-mico) será, como foi dito, aquela que se inclina a obter o máximo de satisfação de uma das partes em conflito com o menor dano possível para cada uma das outras; isso, no modelo da sociedade complexa, pode ser considerado um cânone de certe-za relativo aos princípios, e através desses, aos fins-valores do ordenamento pluralis-ta: se conduzido além, ou seja, nos conteú-dos das decisões, para torná-las previsíveis sob tal aspecto, um tal princípio pode ser colocado em contraste com o fim-valor da integração.

7. Certeza e confiança: a coherence como limite para a nomopoiese?

O último ponto a ser analisado, mes-mo nas dimensões permitidas nesse breve estudo, é aquele da dimensão diacrônica da positivação, especificamente compreendi-

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da na fase da normalização, nos diversos planos do ordenamento. Já se falou como um dos aspectos próprios da certeza na acepção predominante seja aquele da segu-rança das relações “em virtude de uma pre-sumível estabilidade da regulamentação, o coherence entre normativas subseqüentes no tempo”, isso, no entanto, especifica que tal homogeneidade deve referir-se es-sencialmente no tocante aos parâmetros essenciais de uma determinada cultura ju-rídica, ou seja, na manutenção das opções axiológicas fundamentais de um certo sis-tema50.

E efetivamente, somente nesse limi-tado significado, poderia ser compartilhada uma tal acepção do princípio examinado, embora, pois, ainda tal característica pos-sa ser preservada somente em referência a breves períodos, já que as transformações sociais, nesse momento vertiginosas e radi-cais, impedem qualquer estabilidade real, não só porque exige mutações inerentes à disciplina material de simples fenômenos, mas mais ainda porque impõem, cada vez mais freqüentemente, uma mudança de perspectivas, também - e principalmente - do ponto de vista dos juízos (ou pré-juí-zos) de valor. E essa consideração conduz ao problema mais delicado, que aqui será apenas apontado: a decisão relativa à exe-cução ou à aplicação de uma norma coloca-se como escolha e aplicação de princípios instrumentais, por parte antes do legisla-dor e dos outros órgãos decisivos, pois; desde que o primeiro, na posição de legis-lador constitucional, intervenha, segundo o quanto não só é possível, mas às vezes necessário, para modificar os mesmos fins-valores, pelos quais deve o ordenamento se orientar, isso permitirá uma contempo-rânea transformação dos parâmetros teleo-lógicos cujas sucessivas decisões deverão ser informadas, e conseqüentemente uma inevitável violação daquela idéia de cohe-

rence que se rememorou, especialmente se essa é compreendida no mais correto sen-tido restritivo. Na realidade, esconde-se aqui um erro de perspectiva; não é a cer-teza que pressupõe a coherence, mas antes o contrário: existe substancial estabilidade de regulamentação, no sentido diacrônico, enquanto exista substancial estabilidade das opções axiológicas e teológicas do or-denamento, ou enquanto (já) exista certeza (e estabilidade) dos fins-valores nos quais esse se modela.

E por outro lado, a mesma função in-tegrativa e medianeira do direito impõe que aquele tipo de adequação já individualiza-do como necessária no plano da execução e aplicação, torne-se ainda mais evidente sobre aquele da normalização, quando se-guramente não poderá mais operar na ca-deia valores-fins / princípios-instrumentos, intervindo, portanto, precisamente sobre aquelas características da cultura jurídica que, dados freqüentemente como deduzidos em determinados âmbitos culturais, não o são absolutamente, nem no plano atual (já que, por exemplo, escolhas, como as rela-tivas à pena capital, são diferenciadas de modo abissal, a moderna experiência jurídi-ca européia daquela americana, também por alguns ângulos afins à primeira desde que fruto da sociedade tecnologicamente evo-luída e historicamente dela originada), nem muito menos sobre aquele das perspectivas futuras (enquanto é totalmente ilusória a previsão e em qual medida alguns valores se sustentarão firmes perante a sociedade em contínua transformação) 51.

Sob essa perspectiva, portanto, a mudança axiológica devido ao contínuo desenvolvimento da evolução social não pode não se traduzir até em uma rápida modificação do ordenamento: nesse sen-tido, contudo, deve ser reconhecido que o âmbito de certeza, entendido como neces-sário, reduz-se posteriormente. Da certeza

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dos princípios, passa-se, tendencialmente, à certeza da função sistêmica do medium jurídico, ou seja, do dever ser teleológico do total subsistema constituído pelo direito; nessa dimensão será, portanto, assegurada somente a idoneidade total do ordenamen-to à obtenção contingente dos fins-valores ontologicamente necessários ao subsiste-ma, ou seja, como já citado, a assimilação dos conflitos e a manutenção de uma or-dem material que garanta a sobrevivência da coletividade em conexão com um fim (relativo e contingente) de justiça, utiliza-do em função legitimadora52.

Além desse limite, a evolução trans-forma-se em revolução, e qualquer critério de certeza torna-se absolutamente incon-gruente; enquanto a revisão das opções fundamentais seja efetuada através de meios extrajurídicos (e não somente ex-tralegais), o mesmo princípio de certeza, que - se repete - pressupõe as escolhas de valor, em relação às quais opera como ins-trumento de garantia, não pode ser em ne-nhum modo descoberto, até que as novas opções não se tenham estabilizado, tam-bém e, sobretudo, com base de um mínimo de efetividade.

Superam-se nesse modo, e nem po-deria ser diferente em uma sociedade pro-teiforme como a atual, muitas das habitu-ais considerações dos juristas em relação à função das constituições: essas não po-dem mais ser entendidas como garantia de estabilidade, no sentido tradicional, mas devem ser modelo da mutação, direção da transição, no conhecimento do fato que a própria transição, com paradoxo somente aparente, da condição provisória (como talvez nunca tenha sido) tornou-se agora permanente53.

A metamorfose social não pode de qualquer maneira ser impedida, e função precípua do modelo constitucional, que encontra nas normas sobre a revisão das

constituições rígidas o seu paradigma mais sofisticado, é aquele assistir e orientar a mutação, sobretudo, no plano do procedi-mento, garantindo as próprias opções axio-lógicas mediante a escolha de mecanismos adequados: assim, no modelo democrático pluralista, discursividade, abertura e parti-cipação deverão garantir a presença da to-talidade das instâncias, atuais e potenciais, no processo evolutivo54.

8. Incerteza sistêmica e multiplicação das fontes: uma falsa perspectiva

Por tudo que aqui foi dito, parece evidente que as considerações normalmen-te desenvolvidas pelos constitucionalistas em relação às fontes normativas devam ser, em boa parte, revistas: perante a já completa constatação da fragmentação dos modelos gradualísticos, da insuficiência evidente dos instrumentos de classificação derivados da colocação de Merkl e de Kel-sen, o comportamento mais profícuo pa-rece ser aquele da aceitação dos módulos negociados, e de uma correlativa redução dos espaços confiados à normalização ins-titucional.

Permanecendo a salvo, em outras palavras, uma distinção elementar entre normalização constitucional primária e secundária, baseando-se em um critério hierárquico cada vez mais combinado com aquele – derivado - de competência55, é evi-dente que, no plano dos âmbitos materiais, a amplitude cada vez maior ocupada por aquelas fontes que em outro momento te-riam de ser definidas “atípicas”, e que são a normal variação tipológica de um mode-lo teleológico, que se sintetiza não tanto na forma ou na respondência a modelos pré-ordenados, quanto na sua idoneidade funcional à obtenção de um fim-valor, me-diante a atuação de princípios, comporta uma revisão substancial do próprio concei-to de fonte normativa56.

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Não é possível aqui, obviamente, analisar um problema tão árduo, mas é evidente que, em um sistema aberto, onde o processo de positivação do direito, com-preendido acima de tudo como expressão funcional de uma sociedade complexa e de um paradigma pluralístico, uma rígida predeterminação de tudo o que esteja habi-litado a produzir direito válido é cada vez mais improvável. A “norma de reconheci-mento”, que o próprio Hart põe, entretan-to, em estreita relação com uma “norma de mutação” 57, identifica-se cada vez menos velozmente nos ordenamentos modernos, não só pela pressão operada pela quanti-dade de relações que são de fato reguladas pelos sistemas normativos externos (ou-tros ordenamentos, acordos de negócios não formalizados, regras de comportamen-to próprias de grupos sociais, e assim por diante), mas para as mesmas mudanças in-ternas que, de tempos em tempos, e de for-mas nem sempre homogêneas, a definição de novas modalidades de normalização introduz no processo nomopoiético e nos atos nomotéticos. A incerteza do direito torna-se extrínseca, portanto, em uma mul-tiplicidade de planos: por um lado, a mo-dalidade de produção das normas, ou seja, a existência e a combinação em sistema das simples fontes normativas, atos ou fa-tos que sejam, mostrando-se em constante transformação, e é esse um produto neces-sário - não patológico, mas fisiológico - do pluralismo58; por outro lado, a obra herme-nêutica dos intérpretes na sociedade aberta introduz novamente e incessantemente ele-mentos de variação, cuja amplitude poderá ser somente em parte moderada por fatores semânticos derivantes do texto, que deverá ainda ser - até que possível - corroborada por referência teleológica externa, cujo ju-ízo de valor subentendido ao ato decisório deverá finalmente ser comensurado59.

O objetivo classificatório que ainda agora anima grande parte da doutrina, e

que permanece de fato ancorado aos tra-dicionais esquemas gradualísticos deveria ser, portanto, drasticamente revisto: antes de recorrer à definição de categorias conti-nuamente in fieri, perseguindo uma estabi-lidade totalmente ilusória por que antifun-cional, a acríbia dos estudiosos deveria ser orientada para o exame sistêmico dos no-vos modos da normalização, avaliando-lhe, pois, a idoneidade potencial à assimilação dos deveres primários do sistema jurídico, e nele do ordenamento, naquele determi-nado contexto. Em relação a eles, o modo da positivação assume importância muito maior do lugar: nesse sentido, a definição de procedimentos deverá ser concentrada, ainda mais na predeterminação de exclusi-vas autoridades normativas, na posição da-queles princípios - abertura, participação, discursividade, inclusão - que, mantendo a mais ampla liberdade e formas da inicia-tiva, sejam finalmente capazes de garantir (ou pelo menos de obter com eficácia) o fim da composição dos interesses em jogo e a conseqüente assimilação das frustra-ções e dos conflitos sociais60.

Daqui, a coerente expansão da regu-lamentação negociada, nos diversos níveis, mas também a maior presença de uma le-gislação de princípio, a qual deve corres-ponder, em base atuadora, uma conspícua presença da intervenção da normalização do executivo e, principalmente, da autono-mia da negociação privada.

Uma última consideração deve ser feita acerca do perfil da atuação dos direi-tos de liberdade: aqui parece totalmente evidente que, na sociedade multicultural, a posição de regras de convivência deve ser tão rigorosa no plano qualitativo, quanto reduzido no plano quantitativo61; um poder público - local, estatal, ou supranacional - que se invista de papéis paternalísticos, invadindo esferas que se atenham essen-cialmente na escolha individual, com base

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na defesa de presumíveis interesses públi-cos (e que freqüentemente encobrem ainda mais prosaicos interesses de grupos econô-micos ou políticos bem individuáveis), re-tira o seu papel de responsável de todas as instâncias, e termina por funcionalizar as próprias liberdades, privando-as de gran-de parte do seu efetivo conteúdo (pensan-do-se, em um pequeno, mas significativo exemplo, algumas imposições, do capacete para os motociclistas ao uso obrigatório do cinto de segurança, justificadas em matéria de saúde pública em base de considerações de políticas e de despesa sanitária; assim um direito individual está se transformando em um dever ou mais precisamente em uma obrigação, freqüentemente em vantagem da grande indústria, aos quais interesses os órgãos normativos comunitários oferecem cada vez maior atenção). Aqui se coloca, conseqüentemente, um dos problemas cuja conclusão desse breve estudo deve dirigir seu olhar: obviamente, em uma concepção funcionalística, como aquela aqui descrita em relação ao papel global do sistema ju-rídico, o risco que a dimensão teleológica, compreendida como critério avaliador do agir jurídico acabe por revolver o núcleo das liberdades individuais, que represen-tam sempre o sustento do constitucionalis-mo moderno, não é descartável62.

Não obstante, também na consciên-cia que a existência e a vontade de tutela de tal núcleo são a expressão direta e histo-ricamente definida de um modelo cultural, etnocentricamente definido entre muitos possíveis concorrentes63, até que esse será colocado entre os caracteres essenciais do ordenamento dos países ocidentais, e co-nectado aos fins-valores de justiça e igual-dade neles recolhidos, os quais se corres-pondem da mesma forma que as mesmas opções relativas ao modelo democrático e pluralista, é evidente que a garantia do núcleo em questão, deverá ser considera-

da um dos parâmetros teológicos primá-rios dos quais comensurar toda avaliação política e sistêmica. Em outros termos, a funcionalização deverá sempre - até o mo-mento em que tais valores não serão mutá-veis - ser concebida no sentido exclusivo de uma orientação teleológica em que, na dialética entre liberdade e autoridade, seja de qualquer forma a primeira a prevalecer, e toda escolha seja considerada oportuna e sistemicamente aceitável somente en-quanto, como já foi dito, obtenha resul-tados apreciáveis no plano da eficiência não sacrificando (ou mesmo sacrificando minimamente possível) os espaços reco-nhecidos e garantidos aos indivíduos e à sociedade civil.

Naturalmente, deve se levar em con-ta o fato que, no contexto atual, os ataques mais insidiosos contra a liberdade dos in-divíduos provêem, mais que dos aparatos públicos, da própria expansão das grandes concentrações oligopolistas que, quase em todo o setor econômico, gerem agora o mercado: perante tudo isso, o papel do po-der público, e da positivação que o meca-nismo das fontes normativas, mesmo assim transformado, mantém, não pode ser o de uma passiva e insensata abdicação, justifi-cadas por um liberismo tão radical quanto hipócrita, mas até aquele de uma positiva e concreta obra de compensação, a tutela dos interesses dos grupos mais frágeis, em uma renovada acepção dos tradicionais módu-los do estado social e, principalmente por uma substancial e vital defesa da soberania das instituições democráticas64.

Aqui se pode, portanto, recuperar, fi-nalmente, o sentido restante do princípio de certeza: na integração social, na tutela dos direitos fundamentais que devem mol-dar em si toda democracia, e, sobretudo, na obtenção de um fim de justiça, que, mesmo na sua ontológica ambigüidade e indeterminação, deve encontrar ainda uma

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sua harmonização com aquela igualdade substancial, distributivamente compreen-dida, que o segundo parágrafo do artigo 3 Const. impõe como dever essencial da República italiana. Toda outra acepção, daquela relativa à previsibilidade das de-cisões referidas ao conteúdo das mesmas, ou a estabilidade das instituições ou a co-herence das decisões legislativas, não pode que ser avaliada em relação a esses fins-valores, e renunciada desde que constitua obstáculo para o seu alcance.

NOTAS

1F.LOPEZ de OÑATE, La certezza del di-ritto (1942), de G.Astuti, Milão, Giuffrè, 1968, e de M.CORSALE, Certezza del dirit-to e crisi di legittimità, II ed., Milão, Giuffrè, 1979; acrescentando-se a essas notas as de C.LUZZATI, L’interprete e il legislatore: sa-ggio sulla certezza del diritto, Milão, Giuffrè, 1999, e de E.DICIOTTI, Verità e certezza nell’interpretazione della legge, Turim, Giappi-chelli, 1999. M.CORSALE, Certezza del dirit-to. I) profili teorici, em Enciclopedia giuridica, VI, Roma, Ist.enc.it., 1988, a A.PIZZORUSSO, Certezza del diritto. II) profili applicativi, ibi-dem, e a L.GIANFORMAGGIO, Certezza del diritto, in Digesto. Discipline privatistiche. Sezione civile, vol. II, Turim, UTET, 1988, 274 ss.; um estudo mais especifico é aquele de L.PEGORARO, Linguaggio e certezza della le-gge nella giurisprudenza della Corte costituzio-nale, Milão, Giuffrè, 1988; mais recentemente, sobre o tema, também P.DAMIANI, La certezza del diritto come parametro nei giudizi di costi-tuzionalità. Le esperienze italiana e spagnola a confronto, em Giurisprudenza costituziona-le, 1999, 2347 ss., e ainda L.PEGORARO, La tutela della certezza giuridica in alcune costi-tuzioni contemporanee, em Scritti per Uberto Scarpelli, Milão, Giuffrè, 1998, 705 ss.2J.FRANK, Law and the Modern Mind (New York 1930, I ed. inglesa London 1949), Glou-cester, Mass., 1970; a obra deu na Itália a um de-bite vivaz: a critica, muito dura, de N.BOBBIO, La certezza del diritto è un mito?, em Rivista

internazionale di filosofia del diritto, 1951, 146 ss. Sobre o tema e sobre a obra de Jerome Frank (do qual se pode ver também em Couros on Trial: Myth and Reality in American Justice, Princeton, 1949), leia-se C.FARALLI, Certezza del diritto o diritto alla certezza?, em Materiali per una storia della cultura giuridica, 1997, 89 ss., mas especificamente 92 ss.3R.ALEXY, Teoria dell’argomentazione giu-ridica (1978), tr.it. Milão, Giuffrè, 1998, spec.107 ss. e 141 ss.; com perspectiva dife-rente A.AARNIO, Argumentation Theory and Beyond. Some Remarks on the Rationality of Legal Justification, in Rechtstheorie, 14, 1983, 385 ss.; sobre o conceito de certezza definido por esse autor pode-se ler P.COMANDUCCI, Aarnio ed il problema della certezza del diritto, em Analisi e diritto, 1994, 111 ss.4Z.BAUMAN, La società dell’incertezza (cole-ção de ensaios, 1999), tr.it. Bolonha, Il Mulino, 2000,. 99 ss.; do mesmo A. leia-se La decaden-za degli intellettuali. Da legislatori a interpreti (1987), tr.it. Turim, Bollati Boringhieri, 1992, spec.13 ss. sobre o conceito de pós-modernida-de. Sobre o tema também, por perfis diferentes, as considerações de G.P.PRANDSTRALLER, Relativismo e fondamentalismo, Roma-Bari, Laterza, 1996; J.-F. LYOTARD, La condizio-ne postmoderna (1979), tr.it. Milão, Feltri-nelli, 1981; J.HABERMAS, Il discorso filo-sofico della modernità. Dodici lezioni (1985), tr.it. Roma-Bari, Laterza, 1987, I ed. BUL 1997; A.TOURAINE, Critica della modernità (1992), tr.it. Milão, Il Saggiatore, 1993 (I ed. EST 1997), e di R.RORTY, Habermas e Lyo-tard sulla postmodernità (1984), tr.it. in ID., Scritti filosofici, II, Roma-Bari, Laterza, 1993, 221 ss.5F. RIMOLI, Pluralismo e valori costituzionali. I paradossi dell’integrazione democratica, Tu-rim, Giappichelli, 1999, 245 ss.6M.SALERNO, La tecnica legislativa e la chiarezza normativa nella giurisprudenza cos-tituzionale più recente, em Rassegna parlamen-tare, 1997, 1034 ss.; também em M.AINIS, La legge oscura. Come e perché non funziona, II ed., Roma-Bari, Laterza, 2001; na função da in-certeza das normas leia-se C.LUZZATI, La va-ghezza delle norme. Un’analisi del linguaggio giuridico, Milão, Giuffrè, 1990, spec. 13 ss.

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7F.RIMOLI, op.cit.,. 176 ss.; a concessão te-leológica dos valores está esclarecida por J.HABERMAS, Fatti e norme. Contributi a una teoria discorsiva del diritto e della democrazia (1992), tr.it. Milão, Guerini e associados, 1996, 302 ss.; uma crítica ao uso dos valores na juris-prudência constitucional do Bundesverfassun-gsgericht também em E.W.BÖCKENFÖRDE, Grundrechte als Grundsatznormen (1989), em ID., Staat, Verfassung, Demokratie. Studien zur Verfassungstheorie und zum Verfassungsrecht (coleção de ensaios 1964-1990), II ed., Frank-furt a.M., Suhrkamp, 1992, 159 ss. O quesi-to sobre a natureza - de principio ou de valor – da certezza do direito foi tratado também por R.GUASTINI, La certezza del diritto come principio di diritto positivo?, em Le Regioni, 1986, 1090 ss. 8BOBBIO, op.cit., 150.9ROSS, Diritto e giustizia (1958), tr.it., Turim, Einaudi, 1965, I ed. PBE 1990, spec.62 ss. 10ALAMANDREI, La certezza del diritto e la responsabilità della dottrina (1942), em F.LOPEZ de OÑATE, cit., 167 ss., a recensão do livro de Lopez, aparece compartilhada, mais simplificadas na sua linearidade: desenvolvida no âmbito processual, na relação entre direito subjetivo e teoria da ação, a tese de Calaman-drei, para quem um conceito de ação no senti-do abstrato acabaria por frustrar toda a efetiva realização do direito reconhecido como único, aparece incontestável. 11GIANFORMAGGIO, Certezza, cit., 275. M.CORSALE, em Certezza del diritto, cit., 1, distingue uma certeza no sentido subjetivo, entendido como “sólida convicção da verdade de uma afirmação”, e uma no sentido objetivo, como “atitude de uma afirmação para garantir a sua correspondência com um estado de coi-sas”; R.GUASTINI, op.cit., 1094-95, distingue duas acepções lingüísticas da certeza, uma re-ferida à “previsibilidade das decisões que serão adotadas pelos órgãos da aplicação”, a outra pela “estabilidade das relações exauridas”. C.LUZZATI, L’interprete e il legislatore, cit., 252 ss., o conceito de certeza como previsibi-lidade, entendida como relativa, e coligando-se a essa uma idéia de certeza como controle das decisões, a certeza-controle acontece “quando é possível avaliar, preventivamente ou até em

um momento sucessivo, a conformidade das escolhas particulares de um critério geral pré-constituído” (loc.cit., 274-275).12N.LUHMANN, Sociologia del diritto (1972), tr.it. Roma-Bari, Laterza, 1977; as críticas mo-vidas à concepção funcionalística de Luhmann. J.HABERMAS, Diritto e morale (Tanner Lec-tures) (1988), tr.it. em ID., Morale, diritto, poli-tica, Turim, Einaudi, 1992, 5 ss., 45 ss.13M.AINIS, op.cit., 27 ss.; G.TARELLO, Sto-ria della cultura giuridica moderna. Assolu-tismo e codificazione del diritto, Bolonha, Il Mulino, 1976 (1988), 67 ss. e 223 ss.; sobre a certeza como conhecimento e previsibilidade da lei, por outro lado, insistiam, em diferen-tes contextos e perspectivas, já Th.HOBBES, Elementa philosophica de cive (1646), XIII, 16-17, e XIV, 11-13 (tr.it. di T.Magri, Roma, Ed.riuniti, 1979, 202 ss. e 210 ss.) e Leviathan (1651), XXVI (tr.it. di G.Micheli, Florença, La Nuova Italia, 1987, 259 ss. 265 ss.), e, um sé-culo depois, Ch.L. de SECONDAT de MON-TESQUIEU, De l’esprit des lois (1748), liv.VI, cap.III. J.-J.ROUSSEAU, Du contrat social (1762), liv. II, 12, a lei mais importante é aquela “gravada no coração do cidadão”, que dá lugar “à verdadeira constituição do Estado”, e o juiz deve cobrir as lacunas do ordenamento na base da integridade e do bom senso (assim no cap. X delle Considerations sur le gouvernement de Pologne, de 1770. F. CAPRA, Il Tao della fisica (1975)), Milão, Adelphi, 1980; é eviden-te que tal equação já foi superada também na perspectiva dos juristas, que estão conscientes da absoluta impossibilidade de obter uma total previsibilidade da decisão aplicativa através de uma melhor redação da norma dos diversos perfis técnicos, totalmente factíveis. M.AINIS, Attuazione di norme a mezzo di norme, em Giu-risprudenza costituzionale, 1996, 2015 ss., que cita a propósito a idéia das “funções latentes” do agir social do qual fala R.K.MERTON, Te-oria dell’agire sociale (1968, I ed.1949), tr.it. Bolonha, Il Mulino, VIII ed. 1992, 188 ss. 14O.W.Holmes, para quem o direito é a “profecia de tudo que as Cortes farão de fato, e nada mais pretensioso”, moldada por um behaviorismo radical, segundo qual o direito não é aplicado em quanto valido, mas valido em quanto apli-cado. J.Frank sintetiza com o registro psicoló-

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gico, para quem o direito é valido se é aceito pela consciência popular, na teoria da validade de A.ROSS, op.cit., 70-71. A concepção do juiz Holmes está exposta nas suas decisões e nos seus escritos, uma coletânea de ambos está em O.W.HOLMES, Opinioni dissenzienti, obra de C.Geraci, Milão, Giuffrè, 1975, 255 ss., em particular, o ensaio La via del diritto [1897]: segundo “a gente quer saber em quais casos e até que ponto corre o risco de colidir-se com algo que é tão mais forte que ela (a força do Estado), de modo que se torna necessário es-tabelecer quando tal perigo existe. Objetivo do nosso estudo é então a predição, ou seja, da incidência da força pública através da ativida-de dos tribunais” (loc.cit., 255). Sobre Holmes leia-se J.FRANK, Law and the Modern Mind, cit., 253 ss. , para o qual as opinions e os es-critos do juiz norte americano são “a treasury of adult consels, of balanced judgments as to the relation of the law to other social relations” (loc.cit., 253). Sobre a concepção realista de G.TARELLO, Diritto, enunciati, usi. Studi di teoria e metateoria del diritto, Bolonha, Il Mulino, 1974, 51 ss. e em Il realismo giuridico americano, Milão, Giuffrè, 1962; uma exposi-ção sintética dos modelos de common law está em M.G.LOSANO, I grandi sistemi giuridici, Turim, Einaudi, 1978, 132 ss. 15M.CORSALE, Certezza del diritto e crisi di le-gittimità, cit., 15 ss. e 121 ss., e de C.LUZZATI, L’interprete e il legislatore, cit., 321 ss.16F.CARNELUTTI, op.cit, 201, que criticando Lopez afirma: “uma das chaves da justiça penal é o poder discrecional do juiz, entre o máximo e o mínimo e na aplicação da pena”; posto que nenhum crime e nenhum réu são iguais a ne-nhum outro; da mesma forma C.LUZZATI, La vaghezza, cit., 369 ss.17N.LUHMANN, Procedimenti giuridici e legit-timazione sociale (1969, II ed. 1975, rist.1983), obra de A. Febbrajo, Milão, Giuffrè, 1995, 112 ss. sobre o procedimento judiciário: “a função do procedimento consiste, portanto, no especifi-car a desilusão e na fragmentação e absorver os protestos. Motor do procedimento é a incerteza do êxito. É essa a força motriz do procedimento e o fator efetivamente legitimador. Durante o procedimento tal incerteza deve, portanto, ser salvaguardada e mantida com todo cuidado e

com os meios do cerimonial – por exemplo, mediante uma acentuada representação da inde-pendência e da imparcialidade do juiz, evitando prometer determinadas decisões e dissimulan-do aquelas que já foram tomadas”. Por outro lado, a legitimação mediante procedimento não leva, necessariamente, “a um consenso real, à harmonia comunitária das opiniões”, já que “em geral a função social de um mecanismo de solução dos conflitos deverá ser vista não na ativação de determinados processos psíquicos de aceitação, mas antes pela imunização do sis-tema contra tais processos” (loc.cit., 115-116). Em outro plano, a factual indeterminação do êxito do processo é relevada e teorizada pelo movimento americano dos Critical Legal Stu-dies, sobre os quais fala, R.M.UNGER, The Critical Legal Studies Movement, Cambridge (Mass.), 1986; no sentido crítico, A.ALTMAN, Critical Legal Studies. A Liberal Critique, Prin-ceton, Princeton University Press, 1990, mes-mo J.HABERMAS, op.cit., 51 ss.; ID., Fatti e norme, cit., 254 ss.; G.MINDA, Teorie postmo-derne del diritto (1995), tr.it. Bolonha, Il Muli-no, 2001, 177 ss.18Ch. PERELMAN, La giustizia (1945), tr.it. Turim, Giappichelli, 1958. Por um quadro da complexa evolução das teorias da justiça e do estágio atual da reflexão sobre um perene pro-blema filosófico, até o debate vastíssimo reaber-to pela famosa obra de J.RAWLS, Una teoria della giustizia (1971), tr.it. Milão, Feltrinelli, 1982. M.J.SANDEL, Il liberalismo e i limiti della giustizia (1982), tr.it. Milão, Feltrinelli, 1994; M.WALZER, Sfere di giustizia (1983), Milão, Feltrinelli, 1987; A.MacINTYRE, Gius-tizia e razionalità (1988), tr.it. Milão, Anabasi, 2 volumes, 1995; O.HOEFFE, Giustizia poli-tica. Fondamenti di una filosofia critica del diritto e deli Stato (1987), Bolonha, Il Mulino, 1995; B.BARRY, Teorie della giustizia (1989), Milão, Il Saggiatore, 1996; uma síntese das diferentes tendências em O.HÖFFE, Giustizia (teorie della), em Enc. Novecento, Roma, 1998, 854 ss.; H.KELSEN, Il problema della giusti-zia (1960), Turim, Einaudi, 1975, para o qual resultava especialmente problemática a com-patibilidade entre o valor justiça e a ambicio-nada neutralidade da doutrina pura do direito (Reine Rechtslehre). Sobre a ligação entre cer-

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teza e igualdade formal também C.LUZZATI, L’interprete e il legislatore, cit., 278 ss., para quem “a exigência de ‘certeza’ resulta ser a pro-jeção em grau epistêmico do princípio que quer assegurar a igualdade entendida como justiça formal”.19R.GUASTINI, op.cit., 1096 ss.; sobre a esta-bilidade das relações exauridas como caracte-rizado pela certeza também C.LUZZATI, op. ult. cit., 284 ss.; sobre diversos perfis inerentes à eficiência nos sistemas democráticos, o estu-do de G.M.SALERNO, L’efficienza dei poteri pubblici nei principi dell’ordinamento costitu-zionale, Turim, Giappichelli, 1999, spec. 19 ss. e 187 ss.20M.AINIS, La legge oscura, cit., 17 ss.; G.M.SALERNO, La tecnica legislativa e la chiarezza normativa nella giurisprudenza cos-tituzionale più recente, em Raça. parl., 1997, 1034 ss.; sobre o drafting, C.D’ORTA-V.DI PORTO, L’attività di drafting nel procedi-mento legislativo: strutture, regele, strumen-ti, em Rassegna parlamentare, 1995, 79 ss.; R.DICKMAN, Il drafting come metodo della normazione, em AA.VV., Il Parlamento nella transizione, Quaderni di Rassegna parlamen-tare, Milão, Giuffrè, 1998, ss. Sobre o tema é muito útil a Guida bibliografica al drafting le-gislativo, de M.Ainis e R.Pagano, em M.AINIS, Le parole e il tempo della legge (coletânea de ensaios), Turim, Giappichelli, 1996, 235 ss. uma síntese dos problemas em N.BOBBIO, Teoria dell’ordinamento giuridico, Turim, Gia-ppichelli, 1960; F.MODUGNO, Ordinamento giuridico (dottrine generali), em Enciclopedia del diritto, XXX, Milão, Giuffrè, 1980, 680 ss.; ID., Sistema giuridico, em L.MENGONI - F. MODUGNO - F. RIMOLI, Sistema e proble-ma. Saggi di teoria dei sistemi giuridici, Turim, Giappichelli, 2003, 1 ss. Sobre o difícil tema das lacunas do ordenamento, A. G. CONTE, Saggio sulla completezza degli ordinamenti giuridici, Turim, Giappichelli, 1962; ID., Nor-ma generale esclusiva, em Novissimo Digesto italiano, XI, Turim, UTET, 1964, 329; ID., Norma generale negativa, ibidem, 330. F. MO-DUGNO, Antinomie e lacune, em Enciclopedia giuridica, II, Roma, I.E.I., 1988. C. LUZZATI, op.ult.cit., 291, a certeza não é necessariamente incompatível com o dinamismo jurídico quando

é: “a) relativa, b) do direito no sentido restrito [scil. Usa como parâmetros modelos mais com-plexos de norma jurídica em relação à simples proposições normativas] e c) diacrônica “.21Giurisprudenza costituzionale, 1988, I, 1504 ss.; L.PEGORARO, Linguaggio e certezza della legge, cit., 19 ss.22M.CORSALE, op. ult. cit., 127 ss., oferece in-teressantes pontos de reflexão. 23J.HABERMAS, Teoria dell’agire comunicati-vo. I: Razionalità nell’azione e razionalizzazio-ne sociale (III ed., 1984), Bolonha, Il Mulino, 1986, 395 ss.24C.ESPOSITO, em Decreto-legge (1962), em ID., Diritto costituzionale vivente (coletânea de ensaios de D.Nocilla), Milão, Giuffrè, 1992, 183 ss. 194 ss.25M.AINIS, Attuazione di norme a mezzo di norme, cit., 1996, 2015 ss.; sobre o Comitato, E.BERARDUCCI-R.ALESSE, Comitato per la legislazione, em Enciclopedia giuridica, Atualizações, VIII, Roma, I.E.I., 2000.26H.KELSEN, Teoria generale del diritto e dello Stato, cit., 152 ss.; ID., Teoria generale delle norme (post., 1979) tr.it. Turim, Einaudi, 1990, 390 ss.; o pensamento de Kelsen, desde a primeira edição Reine Rechtslehre, evidencia sobre o tema traços diversos que são bem real-çados por C.LUZZATI, op.ult.cit., 298 ss.27E.FRAENKEL, Il doppio Stato. Contributo alla teoria della dittatura (1974), tr.it. Turim, Einaudi, 1983, 21 ss. e 98 ss.; F.NEUMANN, Behemoth. Struttura e pratica del nazionalso-cialismo (1942), Milão, B.Mondadori, 1999, 95 ss M.WEBER, Economia e società (post., 1922), Milão, Ed. di Comunista, 1961, I ed. Pa-perbacks 1995, I, 238 ss.28F.RIMOLI, Pluralismo e valori costituzionali, cit., 135 ss. 29-J.ESSER, Precomprensione e scelta del me-todo nel processo di individuazione del diritto (1972), tr.it. Nápoles, ESI, 1983, spec.60 ss. e 121 ss.; L.DE RUGGIERO, Sul concetto di precom-prensione, em Politica del diritto, 1984, 577 ss.30Ch.PERELMAN, Logica giuridica nuo-va retorica (1976), tr.it. Milão 1981, 163 ss.; F.RIMOLI, op.cit., 255 ss.; C.LUZZATI, op.cit., 418 ss.; G.TARELLO, Diritto, enuncia-ti, usi (coletânea de ensaios), Bolonha, Il Muli-no, 1974, 425 ss.

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31J.HABERMAS, Fatti e norme, cit., 316 ss.32M.WALZER, Sfere di giustizia, cit., passim; Sulla tolleranza (1997), Milão, Feltrinelli, 1998.33K.LARENZ, Storia del metodo nella scienza giuridica (1960), tr.it. Milão, Giuffrè, 1966, 58 ss.; R.TREVES, Sociologia del diritto , Turim, Einaudi, 1993, 104 ss.; W.WILHELM, Metodologia giuridica nel secolo XIX (1958), tr.it. Milão, Giuffrè, 1974, spec. 97 ss.; R. von JHERING, La lotta per il diritto (1872), tr.it. em ID., La lotta per il diritto e altri saggi, Mi-lão, Giuffrè, 1989, 1 ss.; J.KIRCHMANN, La mancanza di valore della giurisprudenza come scienza (1848), em J.KIRCHMANN-E.WOLF, Il valore scientifico della giurisprudenza, Mi-lão, Giuffrè, 1964, 4 ss. 34Z.BAUMAN, La società dell’incertezza, cit., 55 ss.35J.BRYCE, Costituzioni flessibili e rigide (1884), tr.it. Milão, Giuffrè, 1998 e A.V.DICEY, Introduction to the Study of the Law of the Cons-titution, London 1908 (X ed. de E.C.S.WADE, 1962), o estudo profundo de A.PACE, La causa della rigidità costituzionale. Una rilettura di Bryce, dello Statuto albertino e di qualche al-tra costituzione, II ed., Pádua, CEDAM, 1996, idem F.RIMOLI, Costituzione rigida, potere di revisione e interpretazione per valori, em Giur.cost., 1992, 3712 ss..A.PACE, Leggi di incenti-vazione e vincoli al futuro legislatore, em Scrit-ti in memoria di V.Bachelet, II, Milão, Giuffrè, 1987; mais recente P.CARNEVALE, Riflessioni sul problema dei vincoli all’abrogazione futu-ra: il caso delle leggi contenenti clausole di “sola abrogazione espressa” nella più recente prassi legislativa, em Dir.soc., 1998, 407 ss.. S.HOLMES, Vincoli costituzionali e parados-so della democrazia (1988), tr.it. in AA.VV., Il futuro della costituzione, cit., 166 ss.; ID. Pas-sioni e vincoli. I fondamenti della democrazia liberale (1995), tr.it. Milão, Ed. di Comunità, 1998, spec. 192 ss.36A.RUGGERI, Il sistema delle fonti tra vecchie esperienze e prospettive di riordino costituzio-nale, em AA.VV., La riforma della costituzione (Atti del convegno dell’Associazione italiana dei costituzionalisti, Roma 6-7 novembre 1998), Pádua, CEDAM, 279 ss.; F.MODUGNO, Appunti dalle lezioni sulle fonti del diritto, Turim, Giappichelli, 1999, e da A.RUGGERI,

Fonti, norme, criteri ordinatori. Lezioni, III ed. Turim, Giappichelli, 2001. Sobre os problemas relativos à evolução dinâmica no modelo gra-dualístico kelseniano C.LUZZATI, op.cit., 305 ss. e 399 ss.37M.CORSALE, Certezza del diritto e crisi di legittimità, cit., 258 ss.. N.LUHMANN, La di-fferenziazione del diritto. Contributi alla socio-logia e alla teoria del diritto (1981), tr.it. Bo-lonha, Il Mulino, 1990, 354 ss.. N.IRTI, L’età della decodificazione, Milão, Giuffrè, 1979, 96 ss.38F.RIMOLI, op.cit., 274 ss.; P.P.PORTINARO, Il grande legislatore e il custode della costituzio-ne, em AA.VV., Il futuro della costituzione, de G.Zagrebelsky, P.P.Portinaro e J.Luther, Turim, Einaudi, 1996, 5 ss.; E.-W.BÖCKENFÖRDE, Grundrechte als Grundsatznormen (1989), em ID., Staat, Verfassung, Demokratie. Studien zur Verfasssungstheorie und zum Verfassungsre-cht (coletânea de ensaios 1970-1990), Frank-furt a.M., Suhrkamp, 1992, 159 ss.; sobre a Abwägung, R.ALEXY, Theorie der Grundre-chte, II ed., Frankfurt a.M., Suhrkamp, 1996, 79 ss., 143 ss., 423 ss., 468 ss.; ID., Kollision und Abwägung als Grundprobleme der Grun-drechtsdogmatik, em La ragionevolezza nel diritto, de M.La Torre e A.Spadaro, Turim, Giappichelli, 2002, 9 ss.; A.PIZZORUSSO, Ragionevolezza e razionalità nella creazione e nell’applicazione della legge, ibidem, 45 ss.39Sobre consistency e coherence N.Mac COR-MICK, Legal Reasoning and Legal Theory, Oxford, Clarendon Press, 1978, cap.VII e VIII; ID., La congruenza nella giustificazio-ne giuridica (1984), em N.Mac CORMICK - O.WEINBERGER, Il diritto come istituzione (coletânea de ensaios), de M.La Torre, Milão, Giuffrè, 1990, 335 ss.; J.HABERMAS, op.cit. 303; M.LA TORRE, Norme, istituzioni, valo-ri. Per una teoria istituzionalistica del dirit-to, Roma-Bari, Laterza, 1999, spec. 239 ss.; R.DWORKIN, I diritti presi sul serio (1978), tr.it.. Bolonha, Il Mulino, 1982, spec. ss., dis-tinção entre principles e rules.40L.GIANFORMAGGIO, em Certezza del di-ritto, cit., 276, (sobre o tema também EAD., Certezza del diritto, coerenza e consenso. Va-riazioni su un tema di Mac Cormick, em Ma-teriali per una storia della cultura giuridica,

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1988, 459 ss.). Uma coherence compreendida nesse sentido não poderia ser violada, a menos que não queira reduzir a cultura de referência a um esquema tendencialmente imóvel. 41N.LUPO, in Gazzetta giuridica, 1999, n.22, 1 ss.42J.ELSTER, Argomentare e negoziare (1993), tr.it. Milão, Anabasi, 1993; ID., Lo studio dei processi costituenti: uno schema generale (1991), tr.it. em AA.VV. Il futuro della costi-tuzione, cit.,209 ss., E.DE MARCO, La “nego-ziazione” legislativa, Pádua, CEDAM, 1984, 234 ss.; A.PIZZORUSSO, The Law-Making Process as a Juridical and Political Activity, em AA.VV., Law in the Making. A compara-tive Survey, Berlim-Heidelberg 1988, 62 ss.; E.TUCCARI, Per una teoria della negoziazio-ne legislativa, em Rivista trimestrale di diritto pubblico, 1986, 76 ss.43N.LUHMANN, op.cit., 129 ss.; J.ESSER, op.cit., 141 ss.; F.RIMOLI, op.cit., 104 ss.; L.FERRAJOLI, Diritto e ragione. Teoria del garantismo penale,VIII ed., Roma-Bari, Later-za 2004, p.XXII; C.LUZZATI, op.cit., 321 ss.44G.ZAGREBELSKY, Il diritto mite. Legge diritti giustizia, Turim, Einaudi, 1992, passim; ID., Il “crucifige” e la democrazia, Turim, Ei-naudi, 1995, spec.103 ss.45R.DWORKIN, op.cit., 90 ss.; ID., Princìpi, politiche, procedure (1981), tr.it. em Questioni di principio, Milão, Il Saggiatore, 1985, 87 ss.; ID., L’impero della legge (1986), tr.it. Milão, Il Saggiatore, 1990, spec. 373 ss.; S.BARTOLE, In margine a “Taking Rights Seriously” di Dworkin, em Materiali per una storia della cul-tura giuridica, 1980, 1 ss.; R.BIN, Diritti e ar-gomenti. Il bilanciamento degli interessi nella giurisprudenza costituzionale, Milão, Giuffrè, 1992, 13 ss.; J.HABERMAS, op.cit., 241 ss.; A.ALTMAN, op.cit., 35 ss.; F.MODUGNO, Princìpi generali dell’ordinamento, em Enc.giur., XXIV, Roma, 1991; N.BOBBIO, Prin-cìpi generali di diritto, em Nss.Dig.it., XIII, Turim, Utet, 1966, 887 ss.; V.CRISAFULLI, Per la determinazione del concetto dei prin-cìpi generali del diritto, Milão, Giuffrè, 1941; F.SORRENTINO, I princìpi genera-li dell’ordinamento nell’interpretazione e nell’applicazione del diritto, em Diritto e so-cietà, 1987, 181 ss.

46G.ZAGREBELSKY, Il diritto mite, cit., 92 ss. e 147 ss.47Sobre a relação entre Unbestimmtheit de Kelsen e a open texture de Hart, C.LUZZATI, op.cit.,332 ss. G.TARELLO, Diritto, enunciati, usi, cit., 135 ss.; P.DI LUCIA, Teorie dei rapporti tra diritto e linguaggio, em Scritti per U.Scarpelli, de L.Gianformaggio e M.Jori, Milão, Giuffrè, 1998; R.GUASTINI, Produzione di norme a mezzo di norme. Un contributo all’analisi del ragionamento giuridico, em AA.VV., Etica e diritto. Le vie della giustificazione razionale, de L.Gianformaggio ed E.Lecaldano, Roma-Bari, Laterza, 1986, 173 ss.48D.GRIMM, Il futuro della costituzione (1991), tr.it. em AA.VV., Il futuro della costituzione, cit., 129 ss.; N.LUHMANN, La costituzione come acquisizione evolutiva (1990), tr.it. ibi-dem, 83 ss.; M.DOGLIANI, Potere costituente e revisione costituzionale nella lotta per la cos-tituzione, ibidem, 253 ss.49J.HABERMAS, Sovranità popolare come procedura. Un concetto normativo di sfera pubblica (1989), ora in tr.it. em ID., Morale, di-ritto, politica (coletânea de ensaios), Turim, Ei-naudi,1992, 81 ss.; F.RIMOLI, op.cit., 223 ss.. 50L.GIANFORMAGGIO, Certezza del diritto, cit., 275-277, adequando a tese de Mac Cor-mick que, como foi dito, aparecem, todavia, orientadas oportunamente em um sentido mais circunscrito. 51Ch.Mc ILWAIN, Costituzionalismo antico e moderno (1947), tr.it. Bolonha, Il Mulino, 1990; M.DOGLIANI, Introduzione al dirit-to costituzionale, Bolonha, Il Mulino, 1994; G.ZAGREBELSKY, Storia e costituzione (1993), em AA.VV., Il futuro della costituzio-ne, cit., 35 ss.52N.LUHMANN, op.ult.cit.., 344 ss.53N.LUHMANN, La costituzione come ac-quisizione evolutiva, cit., 95 ss.; F.RIMOLI, op.cit., 212 ss.; L.GIANFORMAGGIO, Tem-po della costituzione, tempo della consolida-zione, em Politica del diritto, 1997, 527 ss.; G.ZAGREBELSKY, I paradossi della rifor-ma costituzionale, em AA.VV., Il futuro della costituzione, cit., 293 ss.; R.GUASTINI, Rigi-dità costituzionale e normatività della scien-za giuridica, in Studi in onore di Gianni Fer-rara, II, Turim, Giappichelli, 2005, 427 ss.;

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F.MODUGNO, Qualche interrogativo sulla revisione costituzionale e i suoi possibili limiti, ibidem, 615 ss.54A.A.CERVATI-S.P.PANUNZIO-P.RIDOLA, Studi sulla riforma costituzionale. Itinerari e temi per l’innovazione costituzionale in Italia, Turim, Giappichelli, 2001; A.PIZZORUSSO, La crisi costituzionale italiana, in Studi in ono-re di Gianni Ferrara,cit., III, 141 ss.. Sobre a reforma citada no título V da parte II da cons-tituição de 1948 com a lei constitucional n.3 de 2001, AA.VV., Nuovi rapporti Stato-Regio-ne dopo la legge costituzionale n.3 del 2001, de F.Modugno e P.Carnevale, Milão, Giuffrè, 2003.55G.AMATO, Rapporti fra norme primarie e secondarie, Milão, Giuffrè, 1962; S.FOIS, em Legalità (principio di), em Enc.dir., XXIII, Mi-lão, Giuffrè, 1973, 679 ss.; A.RUGGERI, Ge-rarchia, competenza e qualità nel sistema costi-tuzionale delle fonti normative, Milão, Giuffrè, 1977; F.MODUGNO, L’invalidità della legge , I-II, Milão, Giuffrè, 1970; ID., voce Validità, em Enc.dir., Milão, Giuffrè, 1993; C.ESPOSITO, La validità delle leggi (1934), rist. Milão, Giu-ffrè, 1964, 59 ss. e 74 ss.; H.KELSEN, Teoria generale del diritto e dello Stato (1945), tr.it. Milão, Etas BPS, 1984, 61 ss.; H.L.A.HART, Il concetto di diritto, cit., 95 ss.56V.CRISAFULLI, em Fonti del diritto (dir.cost.),em Enc.dir., XVII, Milão, Giuffrè, 1968, 925 ss.; G.ZAGREBELSKY, Il sistema costi-tuzionale delle fonti del diritto, Turim, Eges, 1984; F.MODUGNO, em Fonti del diritto (I-dir.cost.), em Enc.giur., XIV, Roma, 1988; L.PALADIN, Le fonti del diritto italiano, Bo-lonha, Il Mulino, 1996; A.RUGGERI, op.cit., passim. 57H.L.A.HART, op.cit., 113 ss.58A.RUGGERI, Sistema delle fonti, ordinamen-to pluralista e garanzie costituzionali, em Scrit-ti in onore di G.Guarino, III, Pádua, CEDAM, 1998, 517 ss. 59Sobre a offene Gesellschaft der Verfassun-gsinterpreten a citação da obrigação está em P.HÄBERLE, Die Verfassung des Pluralismus. Studien zur Verfassungstheorie der offenen Ge-sellschaft (coletânea de ensaios), Königstein/

Ts., Athenaeum, 1980, spec. 79 ss.60F.RIMOLI, op.cit., 181 ss.61Habermas (1992) e Charles Taylor (1996), em italiano no volume de J.HABERMAS-Ch.TAYLOR, Multiculturalismo. Lotte per il riconoscimento, Milão, Feltrinelli, 1998; A.HONNETH, Kampf um Anerkennung. Zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte, II ed., Frankfurt a.M., Suhrkamp, 1998, e J.RAWLS, Liberalismo politico (1993), tr.it. Milão, Ed. di Comunità, 1994. 62R.TREVES, Sociologia del diritto. Origini, ri-cerche, problemi, III ed., Turim, Einaudi, 1993, 313 ss.; A.FEBBRAJO, La sociologia del dirit-to nell’opera di Niklas Luhmann, em Sociolo-gia del diritto, 1974, 325 ss.; J.HABERMAS, Diritto e morale (Tanner Lectures) (1988), tr.it. em ID., Morale diritto politica, cit., 5 ss. 45 ss. 63R.RORTY, La filosofia dopo la filosofia. Con-tingenza, ironia e solidarietà (1989), tr.it. Roma-Bari, Laterza, 1998, spec. 9 ss.; M.WALZER, Geografia della morale. Democrazia, tradizio-ni e universalismo (1994), tr.it. Bari, Dedalo, 1999; S.P.HUNTINGTON, La terza ondata. I processi di democratizzazione alla fine del XX secolo (1993), tr.it. Bolonha, Il Mulino, 1995; L.FERRAJOLI, Diritti fondamentali. Un di-battito, de E.Vitale, Roma-Bari, Laterza, 2001; G.AZZARITI, Il futuro dei diritti fondamentali nell’era della globalizzazione, em Politica del diritto, 2003, 327 ss.; F.RIMOLI, Universali-zzazione dei diritti fondamentali e globalismo giuridico: qualche considerazione critica, em Studi in onore di Gianni Ferrara,cit., III, 321 ss.64M.LUCIANI, L’antisovrano e la crisi delle costituzioni, em Rivista di diritto costituziona-le, n.1/1996, 124 ss.160 ss.; C.PINELLI, Cit-tadini, responsabilità politica, mercati globali, ibidem, 1997, 43 ss.; a relação entre well-being e representação recíproca das desigualdades é também colocado em evidencia por A.K.SEN, La diseguaglianza. Un riesame critico (1992), tr.it. Bolonha, Il Mulino, 1994, 49 ss., 127 ss. e 145 ss.

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NEOCONSTITUCIONALISMO: UM MODELO CONSTITUCIONAL OU UMA CONCEPÇÃO DA CONSTITUIÇÃO?*

NEOCOSTITUZIONALISMO: UN MODELLO COSTITUZIONALE O UNA CONCEZIONE DELLA COSTITUZIONE?

susanna Pozzolo**

Recebido para publicação em agosto de 2005

Resumo: Apresentarei uma breve introdução sobre a noção de neoconstitucionalismo. A isso seguirá a análise de alguns pontos especialmente interessantes e problemáticos sobre os quais se confrontam os opostos susten-tadores do jurispositivismo e neoconstitucionalismo. No ponto 1.1 desenvolverei algumas considerações sobre o modelo preceptivo e sobre sua relação entre direito e moral. No ponto 1.2 apresentarei algumas considerações sobre o modelo preceptivo e sobre a tese da especificidade da interpretação constitucional. No ponto 1.3 de-senvolverei algumas considerações sobre a ponderação dos princípios constitucionais. No ponto 2 apresentarei algumas considerações conclusivas, argumentando a favor de uma diferente configuração do papel da jurisdição no sistema das fontes (nos países de direito codificado). A tese que pretendo defender com essa análise afirma que as exigências interpretativas perseguidas pela doutrina neoconstitucionalista são intimamente dependentes da forma em que ela concebe a constituição, por nada objetivas. Em segundo lugar, os meus argumentos serão dirigidos também à crítica da proposta neoconstitucionalista pela perspectiva do constitucionalismo garantista.Palavras-chave: Interpretação. Constituição. Princípio.

Riassunto: Proporrò una breve introduzione sulla nozione di neocostituzionalismo. A ciò farà seguito l’analisi di alcuni punti particolarmente interessanti e problematici sui quali si confrontano gli opposti sostenitori di giuspositivismo e neocostituzionalismo. Nel punto 1.1. svolgerò alcune considerazioni sul modello precettivo e sul rapporto fra diritto e morale. Nel punto 1.2. svolgerò alcune considerazioni sul modello precettivo e sulla tesi della specificità dell’interpretazione costituzionale. Nel punto 1.3. svolgerò alcune considerazioni sulla ponderazione dei principi costituzionali. Nel punto 2. svolgerò alcune considerazioni conclusive, argomentando a favore di una diversa configurazione del ruolo della giurisdizione nel sistema delle fonti (nei paesi a diritto codificato). La tesi che intendo suffragare con tale analisi afferma che le esigenze interpretative avanzate dalla dottrina neocostituzionalista sono strettamente dipendenti dalla forma in cui essa concepisce la costituzione e per nulla oggettive. In secondo luogo, i miei argomenti saranno diretti anche alla critica della proposta neocos-tituzionalista dalla prospettiva del costituzionalismo garantista.Parole chiave: Interpretazione. Costituzione. Principi.

Abstract: I will propose a short introduction on the knowledge of neoconstitutionalism. It will be followed by the analysis of a few points particularly interesting and problematic which the opposites supportive of legal po-sitivism and neoconstitutionalism are compared on. In the point 1.1. I will develop a few considerations on the preceptive model and on the connection between law and moral. In the point 1.2. I will develop a few considera-tions on the preceptive model and on the thesis of the specificity of the constitutional interpretation. In the point 1.3. I will develop a few considerations on the balancing (ponderazione) of the constitutional principles. In the point 2. I will develop a few (partial) conclusive considerations, deducing in favor of a different configuration of the role of the jurisdiction in the system of the sources of law (in civil law systems). The thesis I intend to support with such analysis claims that the interpretative demands advanced by the neoconstitutionalism doctrine are tight dependent from the form in which it conceives the constitution and for nothing objective. In second place, my subjects will be directed also to the criticism of the neoconstitutionalist proposal by the perspective of the constitutionalism as guarantor of liberties and rights.Key Words: Interpretation. Constitution. Principles.

*Tradução do italiano para português por Juliana Salvetti, revisto por Marcelo Lamy e Luiz Carlos de Souza Auricchio.**Ricercatore in Filosofia del diritto presso la Facoltà di Giurisprudenza dell’Università degli Studi di Brescia (Indirizzo: via del Camoscio 10/7, 16142 Genova (Italia), tel: 00 39 010 8376591-cellulare 0039 347 4140485; email:[email protected]; [email protected])

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Revista Brasileira de Direito Constitucional - Nº 7 - Jan./Jun 2006 - Vol.1 (Artigos)

Introdução

O termo ‘neoconstitucionalismo’ foi originariamente criado para identificar uma perspectiva jusfilosófica que se coloca como intermediária entre positivismo jurí-dico e jusnaturalismo: doutrinas das quais o neoconstitucionalismo teria, por assim dizer, eliminado os defeitos e reunidos os méritos. O vocábulo neoconstitucionalis-mo, todavia, sofreu quase imediatamente algumas depreciações significativas, inter-ligadas à sua ampla difusão no vocabulário dos jusfilósofos, que lhe permitiram indi-car até outros fenômenos. Uma primeira modificação ampliou a sua capacidade de-notativa e reduziu as suas potencialidades conotativas: ‘neoconstitucionalismo’ foi empregado também para indicar o cons-titucionalismo tout court. Uma segunda modificação permitiu ao vocábulo indicar não mais uma doutrina, mas o modelo de sistema jurídico dotado de específicas características (uma constituição longa e densa): o estado constitucional de direi-to (MAZZARESE, 2002). Seguidamen-te, outras modificações, qualitativamente diferentes, permitiram ao vocábulo ser empregado para operar uma série de pará-frases da subdivisão de Bobbio de positi-vismo jurídico: individualizando assim um neoconstitucionalismo como teoria, como ideologia e como metodologia (COMAN-DUCCI, 2002).

Essas modificações, evidenciadas ocasionalmente, criam também uma certa confusão. Os vários sentidos, na realida-de, estão ligados entre si construindo um mosaico cujas pastilhas são difíceis de se-parar, já que entre eles existe uma forte in-terdependência e interligação. Creio que a primeira modificação permitiu a segunda: assumindo ‘neoconstitucionalismo’ como uma espécie de ‘exatidão’ do ‘constitucio-nalismo’, uma vez individuados os carac-teres que determinam sua especificidade,

os mesmos podem ser isolados de modo a reconstruir um modelo peculiar de sistema jurídico. Dado que aos caracteres desse úl-timo modelo pareceriam poder adequar-se em geral as constituições do segundo pós-guerra, o neoconstitucionalismo repre-sentaria a doutrina do constitucionalismo contemporâneo. Por uma perspectiva dife-rente, ‘neoconstitucionalista’ seria aquele ordenamento jurídico que tenha sofrido, em qualquer medida, um processo de ‘constitucionalização’, um processo que leva o ordenamento jurídico ser totalmente impregnado pela constituição (GUASTI-NI, 1998).

O uso de neoconstitucionalismo para indicar o modelo jurídico do estado cons-titucional de direito gera uma espécie de redundância e é fonte de confusão. Consi-dero inapropriado esse uso porque o termo foi originariamente pensado para indicar e continua indicando uma doutrina antijus-positivista que nega utilidade justamente àquele tipo de ciência do direito que se preocupa em individuar o modelo de esta-do o qual se decidiu recentemente denomi-nar neoconstitucionalista. Parece-me, ao contrário, interessante associar a perspec-tiva neoconstitucionalista com o fenômeno da constitucionalização, já que nesse caso serão esclarecidas algumas características peculiares e distintivas. Refiro-me à pa-ráfrase bobbiana, de frente às vantagens analíticas que dela derivam, ela finda por reconhecer um elevado grau de elaboração que o neoconstitucionalismo não possui.

A tese que defendo nessas páginas é dirigida à reafirmação da originalidade do sentido atribuído ao termo ‘neoconsti-tucionalismo’ e é dirigida a oferecer argu-mentos hábeis que sustentem as exigências interpretativas prosseguidas pelo neocons-titucionalismo, em relação ao estado de direito constitucional, são intimamente dependentes do modo em que tal doutrina concebe a constituição. Considero que o

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modo de interpretar a constituição está in-timamente ligado ao modo de concebê-la, ou seja, a metodologia interpretativa e as exigências interpretativas interligadas não dependem de uma configuração, por assim dizer, neutra, objetiva ou verdadeira, mas sim da específica reconstrução neoconsti-tucionalista. Particularmente eles derivam da adoção do modelo preceptivo da cons-tituição como norma. Não compartilho, portanto, da tese daqueles que individua-lizam um modelo institucional essencial-mente neoconstitucionalista, se não como produto interpretativo-reconstrutivo com base em certas assunções ideológicas-po-líticas relativas à constituição. Ocorre, to-davia, lembrar-se que a afirmação de uma concepção da constituição (no nosso caso neoconstitucionalista) determina certas exigências interpretativas e o uso de téc-nicas particulares (por exemplo, a ponde-ração dos valores) que se tornam exercício compartilhado e nesse modo contribuem para redesenhar ou reconfigurar o objeto interpretado (a constituição). Nesse sen-tido, tais práticas acabam conformando o estado de direito constitucional, tornando-o conforme as assunções das concepções de partida, ou seja, a concepção acaba de-terminando uma certa percepção da reali-dade por parte dos operadores, portanto, endereçam-lhes as praxes, e, finalmente, reconfigura a própria realidade onde eles operam: os ordenamentos contemporâneos estão quase todos envolvidos em um pro-cesso de constitucionalização (no sentido de Guastini).

Diversos são os aspectos aptos para caracterizar o neoconstitucionalismo como doutrina da interpretação constitucional. Entre esses, aquele central que consiste na peculiar e específica crítica que os autores subsumíveis, sob esse apelativo, retornem ao positivismo jurídico. Esse último, mui-tas vezes e em diversos modos criticado e elogiado, viu em anos recentes surgir uma

reflexão e uma crítica que, às vezes, pro-vinha do mesmo positivismo jurídico e, outras vezes, de áreas teóricas aparente-mente próximas e não opostas. No mundo anglo-saxão, em especial, foi uma crítica dworkiniana que colocou em dificuldade o sofisticado positivismo hartiano, dando vida a um intenso debate em torno da dico-tomia positivismo inclusivo - positivismo exclusivo (ESCUDERO, 2004).

Na área dos países de civil law as vozes críticas são mais diversificadas, mas tudo somado convergem sobre uma tese de fundo que consiste na afirmação da in-compatibilidade entre positivismo jurídico e constitucionalismo contemporâneo: essa última crítica e a doutrina que a sustenta foi denominada neoconstitucionalismo (POZZOLO, 1997, 2001).

A crítica neoconstitucionalista indi-vidualiza na teoria e na metodologia do positivismo jurídico uma ligação incin-dível com o estado de direito do século VIII, assim sendo, com a supremacia da lei ordinária do sistema das fontes, com a supremacia da vontade do legislador sobre a justiça. Essa ligação e tudo que a segue tornariam inadequado o juspositivismo para enfrentar o direito do estado constitu-cional. Direito que seria caracterizado:

1 - Pela supremacia da constituição sobre a lei ordinária;

2 - Pela subordinação da vontade le-gislativa aos conteúdos de justiça constitu-cionalmente previstos (a constituição não constitui um mero invólucro político e de inspiração para o sistema e nem ao menos um simples grau superior de formalidade, mas introduz um vínculo substancial à criação do direito positivo);

3 - Pela rigidez;4 - Pela garantia da constituição

(PRIETO SANCHES, 2003, pp. 112-117). A capacidade penetrante que caracteriza o texto constitucional, permeado de princípios

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e de conteúdos de valor, determina a cons-titucionalização do inteiro ordenamento (GUASTINI, 1998) e, portanto, favorece:

5 - A aplicação direta da constituição às relações interparticulares, coisa que im-plica;

6 - A exigência da obediência dire-tamente aos cidadãos: a constituição não é mais só norma para os órgãos do estado (GUASTINI, 2001, 63-67).

Para esse direito adequar-se-iam instrumentos conceituais mais moderados e flexíveis do que aqueles positivistas. É apropriado, desde já, notar que atrás da objeção descritivo-explicativa dirigida ao positivismo jurídico se oculta uma norma-tiva que se detém na impermeabilidade do direito, juspositivisticamente compreendi-do, à crítica moral construída baseando-se nos valores constitucionais.

O neoconstitucionalismo, portanto, afirma a arcaicidade do positivismo ju-rídico, não por razões a ele internas, mas porque, como um antigo instrumento de relevância científica, uma vez conferida a maior complexidade do fenômeno que deveria medir, então, constatada a sua im-precisão e ineficiência descritiva, é subs-tituído por instrumentos mais atuais e so-fisticados, resultado da evolução científica. Substancialmente, o argumento neoconsti-tucionalista sustenta que, determinada a mais complexa natureza do objeto ‘direito positivo’ no âmbito do estado constitu-cional (em relação ao estado de direito), o instrumento ‘positivismo jurídico’ deve ser substituído porque obsoleto. Pode-se duvidar dessa reconstrução ‘científico-descritiva’, que torna necessária a escolha neoconstitucionalista, se não outra, porque isso que o neoconstitucionalismo apresen-ta como um objetivo modelo institucional corresponde mais a uma característica concepção da constituição. Para os teóri-cos do direito a adoção de uma concepção preceptiva da constituição não é uma ne-

cessidade, mas uma escolha: um modo de conceber o papel e a função da constitui-ção é tudo o que determina a reconstrução neoconstitucionalista do direito do estado constitucional.

Nas reflexões que se segue sinaliza-rei alguns pontos críticos que, a meu ver, podem contribuir para demonstrar como a doutrina neoconstitucionalista avança em pretensões e exigências interpretativas do direito constitucionalizado que dependem intimamente do modo em que a própria doutrina concebe a constituição e não são, ao contrário, exigências objetivas determi-nadas pelo objeto constituição. No ponto 1.1 desenvolverei algumas considerações sobre o modelo preceptivo e sobre a rela-ção entre direito e moral. No ponto 1.2 de-senvolverei algumas considerações sobre modelo preceptivo e sobre a tese da espe-cificidade da interpretação constitucional. No ponto 1.3 desenvolverei algumas con-siderações sobre a ponderação dos princí-pios constitucionais.

1.1 O ‘modelo preceptivo da constituição concebida como norma’. Direito e moral.

Se o jurispositivismo afirma que o direito identifica-se com a lei e que essa pode ter qualquer conteúdo, o neoconstitu-cionalismo afirma que o direito do estado constitucional não se adapta a essa descri-ção ou, pelo menos, não completamente.

Se bem que ‘constituição’ seja termo polissêmico, aos presentes fins podem ser considerados somente dois tipos abstratos de constituição: um tipo procedimental e um tipo substantivo-preceptivo. As consti-tuições contemporâneas, longas e densas, caracterizam-se por fundir esses dois tipos juntos, apresentando meta-regras no sen-tido lato organizativas e meta-regras que estabelecem princípios e valores aos quais se deve conformar a legislação infraconsti-tucional. Por isso são rígidas e garantistas.

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Depois de ter individuado nesse modo o objeto ‘constituição’ restam, to-davia, possíveis diversas concepções da constituição: pelo menos, uma concepção descritiva de uma concepção preceptivo-substantiva.

Segundo a primeira, a constituição é um conjunto de regras jurídicas positivas consideradas superiores ou fundamentais em relação às outras regras do sistema. A constituição representa uma norma sobre o exercício do poder e em particular sobre a produção do direito: falaremos em primei-ro lugar dos órgãos que exercitam o poder jurídico nas suas várias formas, submete o juiz à restrita observância da lei e o legisla-dor em relação ao princípio de legalidade.

Essa concepção constitucional é di-visionista, visa descrever fenômenos so-ciais que pertencem ao mundo do dever ser mantendo-os separados do ser e cor-responde a uma leitura constitucionalística liberal, baseada na confiança para com os governantes e legisladores de quem procu-ra limitar o poder.

A segunda também concebe, a con-cepção preceptivo-substantiva, a constitui-ção como um conjunto de regras jurídicas positivas expressas e fundamentais, em relação as outras regras, todavia, diferen-temente da outra, afirma que tais regras assumem o caráter constitucional em ra-zão do especial conteúdo que exprimem. Não é qualquer disciplina fundamental dos poderes públicos que pode ser qualificada como ‘constituição’, mas só aquela que ex-prime certos valores, o que permite discri-minar as constituições verdadeiras daquela ‘aparentes’. Essa concepção da constitui-ção não distingue entre o plano do ser e o plano do dever ser, a carta constitucional é concebida como um documento normativo que apresenta especificas características e conteúdos de valor pelos quais se distingue dos outros documentos jurídicos. Nessa

perspectiva, a constituição, caracteristica-mente situada acima das maiorias parla-mentares e acima das vontades contingen-tes, constitui um acordo sobre os valores fundamentais que irradia seus efeitos sobre todo o ordenamento, chamando o legisla-dor ao seu desenvolvimento.

O estado de direito constitucional impõe, efetivamente, uma profunda mu-dança ao sistema das fontes: subordina a lei a critérios formais e materiais de vali-dade. Tal mutação, porém, tem diversos efeitos dependendo do modo em que se concebe a própria constituição. Adotando uma concepção preceptivo-substantiva, a constituição não é só a norma de grau jurí-dico-hierárquico mais elevado, mas cons-titui a norma axiologicamente suprema. A constituição então não exige só respeito, não é só vínculo negativo para o legislador, ela impõe o próprio progresso e a própria declinação positiva. A constituição repre-senta o ponto de conexão entre a esfera jurídica e a esfera moral veiculando uma concepção da justiça que avança preten-sões universais. Nesse sentido o direito do estado constitucional não deve ser só legal, mas também justo: avança pretensões de justiça (“Direito injusto” e “Gelo fervente” seriam ambos oxímoros).

As constituições contemporâneas têm efetivamente demonstrado uma notável e geral força penetrante, que unida a uma concepção preceptivo-substantiva impôs a tendência à adequação do ordenamento (de modo positivo, não só a respeito dos) aos princípios de justiça nelas expressas. A lei, contudo, não pode ter qualquer conte-údo, mas principalmente o direito não se exaure na lei. Todavia, a introdução de um mais elevado nível normativo e de limites à legislação são fatos que não implicam na adoção da perspectiva neoconstituciona-lista. Do ponto de vista de uma concepção positivística descritiva, tais eventos assi-

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nalam a determinação de um duplo nível de legislação e de uma qualquer forma, mais ou menos acentuada, de necessária compatibilidade entre os dois níveis nor-mativos, ou seja, o necessário respeito ou adequação do grau de legislação inferior (lei) àquele superior (constituição). Nesse sentido, é claro que a lei não possa ter um conteúdo qualquer: ela deve ser compatí-vel com a constituição. Nessa perspectiva o direito certamente não se exaure na lei ordinária, mas poderia ser sustentado que se exaure na lei constitucional. O conteúdo do direito é, portanto, um dado contingente determinado pela vontade dos constituin-tes, do legislador e dos intérpretes. Nesse contexto modificado, a lei tendencialmente assumirá deveres de atuação, de progresso e de aplicação da constituição: o grau de desenvolvimento dessa tendência reduzirá de modo diferente o caráter de livre ex-pressão do poder político da lei.

O processo de constitucionalização demonstra como a organização estatal não é um mero árbitro, mas antes um jogador. Embora a simples introdução da constitui-ção, mesmo do gênero longo e denso (so-bre os conceitos ‘densos’ ver CELANO, 2002, 1994), no sistema das fontes deixa abertos muitos caminhos, em relação à de-finição das relações entre órgãos constitu-cionais (entre os quais estão divididas as funções do poder) e à reconstrução do seu sentido e da sua importância, representa de qualquer modo um dos elementos cen-trais daquele processo de juridicização da política e de difusão do léxico dos direitos que, evidenciando a exigência política de recobrir com a neutralidade ou com a uni-versalidade certos valores, permite colocar às claras, paradoxalmente, o caráter ativo e participativo da organização estatal, dis-tribuidora de políticas públicas que rema-nejam a riqueza segundo uma concepção qualquer da justiça ou do bem.

Não é a introdução da constituição que determina a constitucionalização, an-tes é a adoção de uma concepção subs-tancialística e da leitura que dela procede o fator determinante. Mesmo aceitando uma concepção substancialística da cons-tituição, de qualquer modo, os valores que ela exprime poderiam ser diferentemente declinados, nesse sentido permaneceria uma ampla margem de discricionariedade política para o legislador, e o juiz das leis poderia operar um julgamento de compati-bilidade constitucional. Todavia, na medi-da em que se difunde uma concepção pre-ceptivo-substantiva acentua-se o recurso ao sindicato de constitucionalidade e dele se espera um mero juízo de compatibili-dade. Sendo nesse caso um desencontro sobre os valores e sobre a sua leitura, já que são múltiplas as concepções do bem que podem derivar dos princípios e dos valores aceitos no texto de modo amplo e genérico, na medida em que se abandona a postura descritiva (que torna tais concep-ções entre elas compatíveis e, portanto, torna legítima a escolha entre uma delas, escolha que nesse sentido envolve a liber-dade política do legislador), os diversos sujeitos interessados recorrerão ao juízo das cortes (percebidas ainda, pelo menos idealmente, como meros lugares do saber jurídico objetivo) para ver afirmado a pró-pria concepção ‘verdadeira’ do bem. Eis que mudam e aumentam as competências atribuídas à constituição: a ela é confiada a função específica de modelar as relações sociais através da aplicação dos princípios expressos; a constituição perde o caráter de limite e garantia da atividade política, perde o dever de preservar o mais alto grau de legalidade e torna-se programa ou ende-reço que legislador deve perseguir.

Comparando a concepção descritiva juspositivística e a concepção precepti-vo-substantiva neoconstitucionalista deli-

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neiam-se mais claramente os dois modelos constitucionais:

1 - Um próprio do liberalismo ga-rantista, enquanto a constituição represen-ta uma moldura aberta, no qual interior, respeitando alguns limites, desenvolve-se livremente o jogo das forças políticas (por exemplo, a concepção kelseniana);

2 - O outro próprio do neoconstitucio-nalismo, enquanto a constituição é endere-ço vinculante, é um ordenamento de valores estruturados e dominantes do progresso da legislação (por exemplo: ZAGREBELSKY, 1992, p. 209). Definitivamente, embora o es-tado constitucional repouse na noção, torna-da mais genérica, de ‘estado de direito’, na perspectiva neoconstitucionalista distingue-se ou especifica-se pela substancialização e a penetrabilidade da constituição e, sobretu-do, pela pretensão de justiça universalística dos princípios constitucionais, e, portanto, do direito positivo (como na perspectiva jusnaturalista, um direito separado dos con-teúdos de justiça não seria um ‘verdadeiro’ direito, mas mera coerção).

Para defender a pretensão de justiça do direito constitucionalizado, o neoconsti-tucionalismo paradoxalmente saqueia ins-trumentos conceituais positivísticos. Particu-larmente, menciona-se a distinção hartiana entre o ponto de vista interno e o ponto de vista externo, reinterpretando-a como distin-ção entre participantes e observadores exter-nos ao direito. O direito do estado constitu-cional colocaria em evidência a prioridade lógica do ponto de vista do participante sobre aquele do observador, em razão da necessária consideração que se deveria oferecer às ar-gumentações morais, que claramente emer-gem da perspectiva interna (sobre o ponto e as dificuldades que dela resultariam para o positivismo jurídico ver GOLDSWORTHY, 1990; PERRY, 1998; NAVARRO, 2000), assim seria conferida a necessidade de uma interpretação moral do direito positivo.

A essa primeira reutilização de ins-trumentos hartianos segue-se à adoção de uma noção de normas jurídicas insepa-ravelmente ligada àquela de ‘razão para agir’, ou seja, de razão que justifica a ação (RAZ, 1999; REDONDO. 1996; BAYON, 1991): o ordenamento jurídico seria um sistema normativo que oferece razões para agir (NINO, 1994). Para poder oferecer ra-zões capazes de justificar ações e decisões, o direito deve apresentar determinados conteúdos moralmente corretos: um siste-ma separado por tais conteúdos não seria um verdadeiro sistema jurídico, poderia no máximo oferecer razões meramente de cautela, isto é, fundada no temor da sanção cominada (mas uma razão de cautela não é uma razão para agir; por exemplo, RAZ, 1999). O direito do estado constitucional, de fato, não seria um mero sistema coer-citivo e teria, ao contrário, o dever funda-mental de desenvolver o bem comum, por cujo exercício da força não lhe representa o elemento definitório, mas um elemento acessório e determinado por circunstân-cias contingentes. Em última instância, para qualificar como ‘jurídico’ um sistema normativo ou uma simples norma seria necessário o conteúdo de justiça expresso (Alexy, 1994).

Diferentemente das tradicionais for-mas de jusnaturalismo, das quais por essa razão o neoconstitucionalismo delas se distingue, o conteúdo de justiça do orde-namento não seria um ideal externo ou na-turalístico, mas um elemento constitutivo intrínseco determinado por valores cons-titucionalizados. Os princípios de justiça, de fato, primeiramente relegados ao papel de proclamações políticas sem real força vinculante, seriam agora confirmados, en-riquecidos e generalizados, tanto que se tornariam deveres para serem alcançados pelos poderes públicos, cujo agir legítimo deve ser conforme. Nessa perspectiva, fa-

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lha aquela aspiração liberal que dirige a atenção aos direitos em função da liber-dade, para adotar aquela outra perspectiva anti-individualística que pensa nos direitos em função da justiça (ver, por exemplo, ZAGREBELSKY, 1992, pp. 123-125). E, de fato, o neoconstitucionalista afirma que com a positivação dos valores constitucio-nais começou a fazer parte dos critérios de validade o critério moral, de modo que o juízo externo ou ético sobre a justiça do direito positivo (por exemplo, de uma lei) transforma-se em juízo interno na sua va-lidade (PRIETO SANCHIS, 2003, p. 133). Desse modo, a justiça (na verdade, uma concepção do bem) começa a fazer parte dos critérios de validade do sistema, come-ça a fazer parte dos critérios da regra de reconhecimento.

Parece pacífico que as constituições incorporem uma visão ética qualquer, uma concepção qualquer do bem. Todavia, as constituições contemporâneas caracteri-zam-se por um certo grau de pluralismo, ou seja, a visão ética acolhida, afortuna-damente, é mais genérica e ampla, para permitir um número múltiplo de concre-tizações compatíveis com o ditado cons-titucional. Nesse quadro, a perspectiva descritiva juspositivista permite verificar a mera compatibilidade das concretizações interpretativas, de vez em quando propos-tas, com o ditado constitucional, sem que a escolha de uma ou de outra, conservem-se dentro desse pluralismo, incida sobre a va-lidade. Essa perspectiva permite e implica um juízo externo sobre a justiça ao menos da opção escolhida. A argumentação a fa-vor de uma concretização particular, nesse sentido, oferece razões e critérios para in-fluenciar o juízo externo, subjetivo, sobre ela. Mas a tese argumentativa que sustenta a escolha conservar-se sempre uma opção entre mais teses e escolhas compatíveis, capazes de declinar positivamente e, mais

ou menos, coerentemente os princípios constitucionais em questão. Trata-se de uma escolha política, baseada em uma certa reconstrução do conceito de justiça e/ou de bem compatível com as diversas concepções veiculadas pelo texto consti-tucional. Nesse sentido, porém, a justiça e a moral não representam um critério de validade, mas um sistema de valores exter-nos sobre o qual medir e criticar o direito positivo.

Ao contrário, asseverar que a justiça (ou a moral) começa a fazer parte dos cri-térios de validade sugere que a tese argu-mentativa como sustento da concretização escolhida, individua a única solução possí-vel ou aquela correta. Todavia, na medida em que a concretização corresponda a uma concepção do bem geral compartilhada, ela simplesmente reflete uma concepção da moral positiva, uma moral difundida entre os participantes, mas nada autoriza a atribuir-lhe uma objetividade transcenden-tal. O argumento neoconstitucionalista faz colapsar a distinção entre normas jurídicas e normas morais: existe um só conceito de norma, aquele moral, já que para ser juri-dicamente justificada a norma deve apre-sentar uma última justificação, ou seja, ba-seada em um princípio que não se justifica, mas que pode ser somente assumido. Nes-se sentido, aparentemente, é ainda menor a exigência da autoridade, já que tudo que tem valor, vale por méritos intrínsecos.

Do ponto de vista positivista e descri-tivo não se nega que entre direito e moral existam algumas relações, nega-se que seja a bondade do princípio moral que lhe de-termina a juridicidade, por isso ocorre um ato de vontade autoritária: direito e moral continuam dois âmbitos separados. Aqui a distinção entre normas jurídicas e normas morais é de caráter conceitual: mesmo se os conteúdos dos dois conjuntos de normas fossem co-extensivos permaneceriam dois

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conceitos diferentes, já que são diversas as definições das umas e das outras. É claro que nessa direção a descrição do direito positivo remete e exige um juízo externo sobre justiça e a bondade do direito positi-vo e é igualmente evidente que nessa pers-pectiva a investigação teórica em torno ao direito positivo não responde ao quesito sobre a justiça, não oferece razões a favor ou contra a obrigatoriedade do direito. Mo-ral e justiça são sistemas externos ao direi-to positivo.

O neoconstitucionalismo afirma que a regra de reconhecimento pode incorporar critérios morais, de tal modo defende a tese da unidade do raciocínio prático. Como é conhecida a regra de reconhecimento per-mite identificar ou determina os critérios de validade e de identificação das normas do sistema. Embora, diferentemente do neoconstitucionalismo, com uma perspec-tiva descritiva juspositivista, o processo de produção do direito não é necessariamente um processo de pesquisa da correção mo-ral, a eventual presença de critérios morais entre aqueles da regra de reconhecimento não é coisa que falte à tese da separação (NARVAEZ-POZZOLO, 2003). De fato, mesmo se toda regra de reconhecimento exigisse que o direito válido fosse moral-mente correto isso não enfraqueceria a dis-tinção conceitual, já que a correção moral e aquela jurídica seriam de qualquer forma definições diferentes e a sua coincidência seria um fato contingente: haveria co-ex-tensividade, mas não co-intencionalidade. A relação entre direito e a moral social entendida como uma questão de fato, não é negada pelo positivismo jurídico: que a criação e a modificação ou a manuten-ção de normas jurídicas esteja interligada à adoção de certos valores não qualifica, nem ao menos para aqueles que crêem em qualquer tipo de correção moral, como moralmente correto nem os valores nem as

normas jurídicas. A transformação jurídica de um princípio moral depende de um ato de vontade dotado de autoridade. E, enfim, os princípios constitucionais são parte de um documento jurídico autoritário, consi-derado vinculante e observado pelos mem-bros do grupo social, um documento que incorpora uma certa teoria política suscetí-vel de diferente concretização. É sobre essa última que se exercita a argumentação, que é em grande parte uma prática persuasiva, sujeita às contingências que conformam o caso, o tempo histórico, o grupo social, as ideologias dos juristas e dos participantes. E, ainda, é uma decisão autoritária, aque-la que determina o sentido específico dos princípios. Com a adoção de uma perspec-tiva juspositivística, também para análise do direito do estado constitucional, não há nenhuma necessidade de estabelecer um equivalente entre ‘norma jurídica’ e ‘norma obrigatória moralmente’, nem para aqueles que afirmam nem para aqueles que negam a existência da moral objetiva.

1.2 Modelo preceptivo da constituição e especificidade da interpretação consti-tucional.

O problema determinado pela eleva-da conflituosidade entre princípios consti-tucionais parece-me intimamente interli-gada à concepção neoconstitucionalista da constituição. De fato, pode considerar-se que um certo grau de conflituosidade entre princípios, direitos fundamentais e valores constitucionais seja um dado ‘natural’ das constituições longas e densas, ou seja, não se trata tanto de um vício de origem quanto de um elemento característico (CELANO, 2002). Os direitos, especificamente, carac-terizam-se por serem formulados genérica e amplamente, com expressões freqüente-mente ‘absolutas’ que se não determinam antinomias abstratamente quase sempre as

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determinam concretamente. Bem, a deter-minação de tais conflitos e a procura por sua solução torna-se problema na medida em que seja aceita uma concepção precep-tivo-substantiva da constituição, já que ela pressupõe a compatibilidade necessária entre princípios ou direitos constitucionais (COMANDUCCI, 2003). A adoção de uma tal concepção pressupõe a possibilidade de distinguir as ‘verdadeiras’ constituições das ‘falsas constituições’, mas não existe maneira, além da convenção significativa em relação ao termo ‘constituição’, de dis-tinguir entre as primeiras e as outras: o dis-curso neoconstitucionalista, portanto, ten-de a fazer passar por uma descrição tudo o que se caracteriza como, no mínimo, uma sugestão estipuladora e, no máximo, uma prescrição ou um discurso persuasivo.

A isso se une a tese da especificida-de da interpretação constitucional. Que é, se existe, a especificidade da interpretação constitucional? O que distingue a inter-pretação da constituição da interpretação de qualquer outro texto normativo? A in-terpretação da constituição é diferente da interpretação da lei? A minha tese sustenta que as peculiares exigências persistidas pelo neoconstitucionalismo resultam da forma em que ele concebe a constituição, ou seja, pela conformação do objeto que quer interpretar (POZZOLO, 1997).

De interpretação específica do tex-to constitucional pode-se raciocinar em diversos sentidos (PRIETO SANCHIS, 1991; GUASTINI, 1996; 2004), algumas características peculiares da constituição permitem falar de especificidade. Pode-se individuar uma especificidade com base: I) nos sujeitos peculiares da interpretação; II) no uso de características técnicas inter-pretativas/aplicativas adotadas pelo texto constitucional; III) nos efeitos peculiares causados pelas sentenças do juiz constitu-cional; IV) na rigidez ou flexibilidade da constituição; V) no objeto ‘constituição’.

Observando os sujeitos da interpreta-ção constitucional, a especificidade depen-derá da estrutura do ordenamento jurídico (GUASTINI, 1996 b, pp. 238-241; PRIE-TO SANCHIS, 1991, p. 176): se o orde-namento prevê um juízo constitucional concentrado em um órgão, pode-se indivi-dualizar uma especificidade da interpreta-ção da constituição em relação à interpre-tação da lei enquanto que a competência da interpretação/aplicação de uma e de outra é atribuída pelo ordenamento a um sujei-to diferente. Todavia, se tal ordenamento prevê um controle difuso de constitucio-nalidade, a especificidade não acontecerá, dado que diversificado será o sujeito com-petente pela interpretação/ aplicação de constituição e lei.

Se observarmos os efeitos causados pelas sentenças do juiz constitucional, falaremos de especificidade, por exem-plo, em relação aos ordenamentos onde está previsto um controle concentrado de constitucionalidade, já que nesses casos as sentenças de acolhimento do juiz constitu-cional têm efeitos erga omnes, mas não ra-ciocinaremos pelos ordenamentos, onde é previsto um controle difuso, já que as sen-tenças têm validades inter partes. Especifi-cidades, pois, podem originar-se da maior relevância político-social que as decisões constitucionais costumam apresentar.

No tocante às técnicas interpretativas é duvidoso que se possa falar de especi-ficidade se por atividades interpretativas entende-se atribuição de significado para um texto. Todavia, com esse propósito, o neoconstitucionalismo afirma que os enunciados constitucionais que exprimem princípios não são interpretáveis da mesma maneira daqueles que exprimem regras: a operação que aqui atribui significado não se limitaria a uma análise lingüística (aparentemente adaptada às regras), o sig-nificado dos princípios deveria ser toma-

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do baseando-se nas concepções morais e políticas que pressupõem. Esses standard são conceitos que necessariamente re-tornam às concessões, mas na linguagem constitucional eles são convenientemente admitidos como indeterminados para que se adaptem às diversas concepções. Cabe ao legislador e em parte ao juiz (segundo o neoconstitucionalismo, em relação às exigências do caso concreto) estabelecer, a cada vez, a melhor concepção possível conforme e coerentemente com todo o sistema (DWORKIN, 1977). Pode-se in-dividuar uma especificidade em relação às técnicas argumentativas no direito cons-titucional: freqüentemente o juízo consti-tucional (principalmente se concentrado) motiva baseando-se em argumentos de princípio e em argumentos de justiça. Es-sas peculiaridades, todavia, são de caráter contingente, não necessário. E será contin-gente também a especificidade da interpre-tação constitucional em razão da rigidez ou da flexibilidade da constituição.

Parece, portanto, que, querendo susten-tar uma tese da especificidade suficientemen-te forte, deva-se incentivar a especificidade do objeto constitucional. E é isso o que faz o argumento neoconstitucionalista. Aqui, de fato, o objeto constituição está configurado como um documento normativo que se espe-cifica em relação à lei e que, portanto, deve ser tratado de modo distinto. A constituição não é moldura e garantia, mas constitui uma espécie de ponte entre o discurso jurídico e o discurso moral, para a qual sua interpretação e aplicação não podem prescindir de ava-liações éticas. O intérprete constitucional, para atribuir significado às disposições cons-titucionais, e em primeiro lugar àquelas de princípio, deve referir-se a uma tese moral: a linguagem constitucional não é interpretável com os instrumentos habitualmente utiliza-dos para a interpretação do direito infracons-titucional.

A diversidade do objeto ‘constitui-ção’ baseia-se fundamentalmente na pre-sença de princípios que, uma vez caracte-rizados como valores morais positivados, para serem compreendidos necessitam de considerações morais, resolvendo o pro-blema interpretativo do direito constitucio-nal em uma interpretação moral da consti-tuição. Isso pressupõe que o intérprete aja comparando um modelo ideal de consti-tuição com o modelo real e interprete esse último com base nas assunções de valores originados pelo primeiro (NINO, 1996b); obviamente, pressupondo que tudo isso aconteça concretamente e nunca abstrata-mente (ZAGREBELSKY, 1992, capítulo VII, par. 4). Certamente, ainda que a hie-rarquia axiológica que resolve o conflito seja colocada pelo juiz em razão do caso concreto, colocando-se no ponto de vista do ‘bom juiz’, as diferentes interpretações deverão ser argumentadas de modo a for-mar um quadro coerente. Apesar disso a hierarquia axiológica instituída mudará continuamente em relação às exigências de justiça substancial que todo intérprete, a cada vez, considerará relevantes no caso concreto.

Assumindo uma concepção descriti-va positivista, igualmente à lei, a interpre-tação da constituição consiste na atribui-ção de significado de um texto normativo: a atribuição de significado no caso de um juiz ou levantamento de outras atribuições no caso de um observador. Nesse sentido, se trata de especificidade será relativa a outras características peculiares do orde-namento examinado, mas não do objeto ‘constituição’ (GUASTINI, 1996 b, PRIE-TO SANCHIS, 1991). Ela poderá ser de-terminada: a) pelo sujeito específico, se aqui existe, destinado a interpretação da constituição; b) pelo uso específico ou par-ticular de técnicas argumentativas; c) pelos efeitos específicos que possam determinar

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a interpretação da constituição, e assim por diante. Todavia, nessa perspectiva, é evidente que não se possa distinguir entre ‘verdadeiras’ e ‘falsas’ atribuições de sig-nificado ao ditado constitucional, será pos-sível, porém, dar vida a uma crítica externa de tais decisões com base em argumentos de justiça.

A tese da especificidade da interpre-tação constitucional é dirigida a sufragar a necessidade da interpretação moral da constituição que, por sua vez, é operacio-nal a escopos de política do direito e não exatamente a escopos cognoscitivos. Co-locam-se, todavia, algumas dificuldades, pelo menos do ponto de vista garantista.

Em primeiro lugar, a interpretação moral da constituição implica que ela não possa mais ser assumida como norma mais elevada do ordenamento jurídico: a consti-tuição não fecha o sistema, pressupõe ser interpretada com base em princípios su-periores, supraconstitucionais (TROPER, 1996), da qual não está clara a sua natu-reza.

Em segundo lugar, coloca-se em discussão o equilíbrio entre os poderes, oferecendo uma falsa solução. Se ao juiz constitucional que aparece como agente consciente da mutação constitucional (ou da necessária evolução da interpretação constitucional), observa-se que do mesmo dever é empossado também o juiz ordiná-rio, na medida em que o texto constitucio-nal está sujeito a uma interpretação dirigida a deduzir normas diretamente aplicáveis às controvérsias.

Embora esteja claro que a divisão das funções do poder baseia-se em parte sobre o ideal somente regulador de uma jurisprudência neutra, além da sua dimen-são ideológica, ele oferece um instrumento de garantia dos direitos individuais. Nesse esquema, de fato, é só o poder legislativo aquele legitimado para produzir novo di-

reito, posição de poder o qual correspon-de a responsabilidade política, enquanto o poder jurisdicional tem deveres de garan-tia e tutela contra leis lesivas dos direitos. A constituição, desse ponto de vista, age como barreira para as decisões políticas adotadas pelo legislador, limitando e cir-cunscrevendo a sua competência para produzir novo direito. O poder judiciário se configura nesse quadro, mas, principal-mente, se auto-representa como um instru-mento de contrapeso do poder legislativo que anula as decisões que ultrapassam os limites de tal competência legislativa.

A configuração neoconstitucionalis-ta tolhe o dever das escolhas políticas das mãos do legislador aumentando o poder da jurisdição, sem que lhe modifique as res-ponsabilidades institucionais e continuando a pressupô-lo como um poder de qualquer outro sentido, como o detentor do direito objetivo. Nesse modo, possibilita-se o peri-go do chamado ‘governo dos juízes’ e, pelo menos em parte, o perigo de um governo dos juristas, embora se dissolva o receio do perigo da ‘tirania da maioria’.

Todavia, sempre do ponto de vista constitucionalístico, o moderno estado de direito constitucional é uma democracia o que implica, pelo menos: o princípio de igualdade, aquele de autonomia e de auto-determinação dos membros da comunidade política; a regra de maioria (pelo menos como necessidade funcional), não só fecha-da à mudança, mas restrita, da qual sejam excluídos alguns âmbitos normativos. Nes-se quadro os sujeitos delegados a cumprir as escolhas políticas têm, dentro da moldura constitucional, liberdade de instituir hierar-quias axiológicas, das quais são considera-dos politicamente responsáveis, em relação aos objetivos sócios-políticos que eles con-sideram ter de perseguir. Nessa perspectiva, a interpretação moral da constituição des-perta grande perplexidade.

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Se a discussão intersubjetiva que ca-racteriza a democracia é um valor funda-mental (porque estimula a autonomia dos indivíduos, a sua participação à vida so-cial, e assim por diante); se considerarmos que o processo democrático e a discussão intersubjetiva sejam mais profícuos do que a reflexão individual: a superioridade mo-ral do juízo do juiz em relação à avaliação do legislador não se elucida. Isso não inva-lida a utilidade de um controle de consti-tucionalidade das leis, porque as decisões tomadas pela maioria poderiam apresentar alguns vícios de forma e de conteúdos e o controle de constitucionalidade é um juízo de compatibilidade constitucional. Ao contrário, a interpretação moral con-fiada aos juízes enfraquece o princípio da autodeterminação e confia deveres educa-tivos à aplicação do direito. Também essa objeção não invalida a utilidade do juízo de constitucionalidade das leis, na medi-da em que tenham sido os indivíduos (nas autoridades do poder constituinte) a esta-belecer uma forma de autopaternalismo através do texto constitucional. Isso que se atinge com a interpretação moral judicial da constituição são as mesmas razões em favor do processo democrático e aquelas em favor da persistência da constituição. Nessa perspectiva, de fato, coloca-se o sujeito politicamente mais irresponsável e inamovível, para reformular as decisões políticas-valorativas adotadas através do processo democrático: se a reflexão moral individual do único juiz (ou de alguns ‘en-saios’) é considerada superior à discussão intersubjetiva, que sentido há em manter um procedimento para a tomada das deci-sões coletivas de tipo democrático? A per-sistência da constituição, se compreendida como documento auto-obrigatório estabe-lecido pelos cidadãos, não teria razão de ser porque o juízo moral do juiz individual seria cada vez mais justo daquilo que es-

tabelecem as normas constitucionais. Mas se colocam ainda outros problemas. Um desses é do tipo garantístico institucional: quem controla o controlador? (GUAS-TINI, 1990). O outro é mais genérico: na medida em que a tutela dos direitos não é mais confiada às palavras do direito, mas à interpretação moral do juiz, diminui a rele-vância do próprio direito . Todavia, a his-tórica precariedade dos direitos encontrou um terreno mais sólido justamente na sua afirmação jurídica e não meramente moral. Além de que, não tendo obtido atualmente nenhum acordo sobre um conjunto deter-minado de normas morais, a operação que para lá transfere os direitos, tolhendo-os do plano jurídico, cria a ilusão da sua seguran-ça, escondendo a sua intrínseca fragilidade (sobre esse ponto, consultar WALDROM, 1993; contra MORESO, 1997; HOLMES, 1988; BULYGIN, 1991; GUASTINI, 1994).

Finalmente, aplicação dúctil ( ZA-GREBELSKY, 1992) do direito incide diretamente sobre a tutela dos direitos. A perspectiva neoconstitucionalista fia-se naquela do ‘bom juiz dotado de bom senso’. Todavia, do ponto de vista cons-titucionalístico-garantístico, seria melhor adotar a perspectiva do ‘bad man’, já que o direito apresenta duas faces: uma de ga-rantia e uma de opressão. Defender a prio-ridade das exigências de justiça concreta e substancial sobre as exigências de certeza, determinação e legalidade, portanto, da in-terpretação moral sobre a dura aplicação da lei, parece ir bem até quando nos en-contrarmos perante o ‘bom juiz dotado de bom senso’, mas deve estar claro que a di-mensão garantística do direito se dissolve, e assim permanece até quando não seja o bom juiz aquele chamado para julgar.

Em defesa da interpretação moral, contra o duro positivismo jurídico, às ve-zes, é lembrada a tristemente conhecida

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locução ‘a lei é lei’. Isso, porém, é somente um artifício retórico, é necessário de fato es-clarecer a ambigüidade de tal locução, caso venha ser retirada do contexto histórico em que nasceu. No âmbito de uma sociedade constitucional-democrática-pluralista tal lo-cução pode ser interpretada pela perspectiva positiva do garantismo legislativo. Se a au-tonomia e a liberdade são valores e o direito um ‘mal necessário’, a afirmação do valor da lei torna-se uma garantia contra as impo-sições morais de quem quer que seja. ‘A lei é lei’, em suma, pode representar uma pres-crição restritiva da liberdade interpretativa do juiz, uma interpretação que, fazendo re-ferência ao significado comum das palavras, restringe o âmbito dispositivo da interpreta-ção judicial. Isso pode parecer um defeito quando a solução legislativa não satisfaz o senso de justiça, e freqüentemente nesses casos os juízes configuram a existência de uma lacuna axiológica. Mas é necessário fazer uma particularização. Existe diferença entre o caso em que seja judicialmente pre-vista uma exceção ao ditado legislativo em base de uma consideração abstrata da lei e o caso em que a exceção seja construída em base de uma consideração concreta da lei: no primeiro caso, a exceção permanecerá também para os casos futuros (satisfazendo o princípio de igualdade e de certeza), mas não no segundo.

1.3 Neoconstitucionalismo e ponderação dos princípios.

A dimensão constitucionalística do direito do estado constitucional derivaria da introdução dos princípios no sistema jurídico. E seria justamente a interpretação dos princípios constitucionais a pretender uma aproximação e uma metodologia dife-rentes daqueles positivísticos, em particu-lar, seria diferente a sua interpretação.

O argumento neoconstitucionalis-ta opõe à técnica da subsunção aquela da

ponderação, assumindo uma e outra como técnicas interpretativas. A primeira, consi-derada, com razão ou não, própria do jus-positivismo, seria refletida e concebida por um direito formado exclusivamente por regras; a segunda, não empregando ins-trumentos rigorosamente dedutivos, mas somente instrumentos eqüitativos mais flexíveis, ou de raciocínio prático, seria aquela própria de um direito composto (também) de princípios, seria, de fato, di-rigida a equilibrar os valores, levando em conta as exigências de justiça erguidas por cada caso concreto.

Não está claro o que sejam os princí-pios, o que denote e como conote o termo ‘princípio’ (para uma panorâmica sobre esse ponto, consultar POZZOLO, 2001 e bibliografia indicada). Seguramente, são um tipo de norma, mas distintos são os modos para caracterizá-los. Nem ao me-nos está claro o que exija a ponderação (ou balanceamento), ou seja, quais são as suas características. Todavia, podem ser desen-volvidas algumas considerações sobre es-ses aspectos.

Sobre a oposição subsunção/ponde-ração como técnicas interpretativas nota-se o que se segue.

a) A ponderação (ou balanceamento) tipicamente se aplica para conflitos entre normas (princípios) não solucionáveis através dos tradicionais critérios de so-lução das antinomias: trata-se de normas do mesmo nível hierárquico (quando não é aplicável o critério da lex superior), en-tre as quais não se verifica uma relação de especialidade (quando não é aplicável o critério da lex specialis), contemporâ-nea entre elas (quando não é aplicável o critério da lex priori), caracteristicamente normas ou princípios constitucionais (do balanceamento constitucional faz parte ainda um terceiro elemento, constituí-do pela norma da qual deve ser julgada a

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constitucionalidade). Os princípios, além disso, trazem dificuldades interpretativas porque freqüentemente são formulados através de uma linguagem genérica, com tom absoluto e o seu campo de aplicação tende constantemente a se sobrepor, ge-rando (no mínimo) antinomias do gênero parcial bilateral. É necessário notar que, de qualquer modo, a técnica ponderativa não é exclusiva do juízo de constitucionalidade ou não exaure ali os seus efeitos; ela tem influências ou joga um papel também na atribuição do significado às normas infra-constitucionais. A ponderação dos prin-cípios, portanto, é algo com mais de um método de solução das antinomias. Obser-vando, por esse ponto de vista, a pondera-ção, pode-se notar que não se trata tanto de uma técnica interpretativa quanto de uma técnica aplicativa. De fato, para resolver o conflito são comparadas (no mínimo) duas normas, ou seja, duas entidades às quais já foi conferido significado, a interpretação, portanto, já aconteceu: com a pondera-ção escolhe-se qual norma dar aplicação. Também a subsunção acontece quando in-térprete já produziu a norma; poderia ser então sustentado que, depois de ter pon-derado, o intérprete subsume o caso sob a norma a qual decidiu dar aplicação (nesse significado, PRIETO, 2003).

b) O neoconstitucionalismo afirma que para dar conteúdo aos princípios, ou seja, para atribuir significado às disposi-ções que expressam princípios, a fim de resolver o conflito, é necessário recorrer a argumentos morais e sopesar as exigências de justiça veiculadas pelo caso concreto, escolhendo a melhor solução, avaliando todas as variáveis da situação específica, e particularmente o grau de satisfação do princípio vencedor em relação à lesão do princípio preterido (ALEXY, 1994). Isso, na verdade, não diz muito sobre o processo de ponderação, não nos diz como os juízes

equilibram os princípios e como realmente resolvem os conflitos. Isso nos diz somente que o intérprete deve procurar construir a melhor relação entre os princípios em con-flito, defendendo sua base de argumentos morais, que trazem seu sentido de justiça; a argumentação assim oferecida representa a justificação externa da decisão judicial, ou seja, é dirigida para oferecer argumen-tos para suporte da interpretação adotada. Nesse sentido poderia ser individuada uma acentuação das exigências argumentativas a cargo do intérprete, mas a técnica da sub-sunção.

c) A argumentação neoconstitucio-nalista, embora não seja unívoca a carac-terização dos princípios, parece indicar critérios eqüitativos ou de proporcionali-dade para dar conteúdo, tornar compatí-veis, resolver os conflitos entre princípios constitucionais. Também essa indicação deve ser esclarecida. A exigência em em-pregar métodos eqüitativos deriva do tipo de consideração que se deva dar ao caso concreto objeto de juízo. Em particular, o método eqüitativo parece indicar um com-portamento do tipo particularista, ou seja, o quanto é relevante para individuar a so-lução, depende do contexto em que a ação deve se desenvolver: é o contexto da ação que faz a diferença prática e explica a dife-rente importância que assumem as proprie-dades relevantes ao objeto de juízo (sobre particularismo e universalismo das razões para agir, consultar REDONDO, 2005). A oposição com a subsunção, portanto, nesse caso se baseia no fato que essa última pare-ce pressupor uma interpretação do gênero literário, tal que não permita uma renúncia ao ditado normativo: a norma individua-da deve ser aplicada. Ao contrário, o uso do critério equitativo incidiria justamente sobre a aplicação da norma individuada, mas, ainda uma vez, não sobre sua inter-pretação: seria consideração particular do

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caso concreto que conduziria a uma aplica-ção dúctil da normativa, ou seja, permitiria também uma decisão contra legem. Nesse sentido, porém, a configuração do caso pa-receria determinar a construção da norma: é necessário então notar que se é o caso individual que determina a identificação da norma ou do princípio, ou seja, a sua for-mulação ou o seu conteúdo, é difícil sus-tentar que seja aquela ou aquele que regule o caso, já que não preexistiriam à solução.

Sobre a natureza dos princípios e sobre a solução das antinomias daqueles gerados observa-se o que se segue:

a) Segundo uma certa reconstru-ção (por exemplo, GUASTINI, 2004) a ponderação daria lugar a uma hierarquia axiológica móvel entre princípios. O intér-prete atribuindo significado aos princípios em conflito daria a eles um certo peso ou valor instituindo entre eles uma relação de precedência que vale para o caso concre-to. Observada por essa perspectiva, a pon-deração incide ainda sobre a aplicação da norma, mas não sobre sua interpretação. Nesse caso, baseando-se em proprieda-des relevantes externas à formulação dos princípios, propriedades determinadas pelo caso concreto, o intérprete atribui maior peso ou valor ou força a um deles que regulará o caso. A requisição de ope-rar segundo eqüidade incide, justamente, sobre a aplicação dos princípios que serão aplicados seguindo um critério de raciocí-nio eqüitativo. Nessa perspectiva, todavia, a formulação dos princípios não depende das circunstâncias do caso, desse depende a sua hierarquização.

b) Segundo uma outra perspectiva (por exemplo: MORESO, 2002, 2002 b), a ponderação cairia sobre normas defectí-veis; o conflito seria resolvido através da introdução de novas condições de aplicação no antecedente, modificando o conteúdo do princípio e não somente a sua formulação.

Nesse modo, a premissa maior da decisão judicial seria constituída pela reformulação de um princípio que leva em conta uma normativa complexa, obtida para explicitar condições de aplicação precedentemente implícitas. O resultado, portanto, é uma nova norma ou um novo princípio solicita-do pelas circunstâncias do caso.

No primeiro caso, na reconstrução da ponderação como hierarquização axiológi-ca entre princípios, a teoria ética com base na qual, segundo o neoconstitucionalismo, deve operar o intérprete, incide sobre a aplicação: o sentido da norma, o sentido dos princípios é invariável e constante, não muda com as circunstâncias do caso; aqui-lo que muda é a sua relação de força ou de hierarquia com base em propriedades que emergem do caso concreto.

No segundo caso, na reconstrução da ponderação como solução de um con-flito entre normas defectíveis, a teoria moral com base na qual se encontraria a operar o intérprete, parece incidir sobre o significado da norma, sobre o sentido dos princípios: se as normas jurídicas (os prin-cípios) são defectíveis e as razões morais podem modificar o antecedente, então são as razões morais que serão universais e constantes, enquanto aquelas jurídicas são somente auxiliares.

O juízo de ponderação, que resolve o conflito entre princípios constitucionais, representa metaforicamente o estabeleci-mento de pesos diferentes aos princípios para determinar qual deles tem maior força (MORESO, 2002); esse juízo caracteriza-se por estender a uma antinomia concreta, ou seja, sobre uma contradição entre duas normas entre cujas classes de ações regula-das não existe vínculo conceitual, mas que no caso específico mostram-se ambas apli-cáveis, regulando de modo distinto a ação objeto de juízo. Os princípios são ambos válidos, ocasionalmente as suas áreas de

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aplicação se sobrepõem e tal antinomia deve ser resolvida sem expulsar nenhum deles do sistema.

As dificuldades surgem porque nesse quadro não parece possível prever antecipa-damente os casos de contradição de modo a definir um critério estável de solução ou precedência. Isso obviamente determina diversos problemas, mesmo institucionais, colocando em discussão o conhecimento ex ante do direito positivo, o equilíbrio en-tre as funções legislativa e jurisdicional, o papel próprio da jurisdição. É, de fato, o debate em torno do juízo de ponderação ou, melhor ainda, em torno do modo de resol-ver os conflitos entre princípios constitu-cionais deriva do fato que aqui não parece ser oferecida uma solução razoavelmente fundamentada e controlável. O ponto, en-tão, é como evitar a conclusão que o resul-tado da atividade ponderativa, seja para ser considerado como meramente subjetivo e particularista, ou seja, “não [possa] ser jus-tificado e, nessa acepção, que os conflitos entre princípios constitucionais não [pos-sam] ser resolvidos em um modo racional-mente controlável: [senão] a sua motivação não estaria sujeita a controle” (MORESO, 2002, p.206). A idéia de Moreso é aquela de tornar racionalmente controlável e pre-visível a solução do conflito entre princí-pios através da sua revisão, que permane-ce sujeita a múltiplos vínculos, para obter como resultado a produção de duas normas compatíveis. Como explica Comanducci, “As razões, que parecem impelir Moreso a configurar os princípios constitucionais que conferem direitos fundamentais como normas defectíveis, são de ordem ética po-lítica. Se concebêssemos (e aplicássemos) os princípios constitucionais como normas indefectíveis, seriam produzidos, na fase da sua aplicação, conflitos práticos insaná-veis: no sentido que teríamos dois princí-pios constitucionais em conflito, nenhum

dos quais pode ceder frente ao outro. Seria por isso um conflito prático sem solução. Enquanto que concebidos como normas defectíveis, isso permite uma solução ra-cional dos conflitos entre direitos funda-mentais” (COMANDUCCI, 2003, p. 328). Celano, todavia, destacou que somente de-monstrando a estabilidade das revisões dos princípios defectíveis, conseqüentemente a sua definitiva transformação em deveres condicionais indefectíveis, seria possível refutar o particularismo (CELANO, 2002 b). Mas se existem razões éticas-políticas para considerar defectíveis dois princípios constitucionais em conflito, por que essas mesmas razões não deveriam ser consi-deradas nos casos de conflitos entre prin-cípios constitucionais revistos? Por que essas razões jogam um papel na primeira revisão e não deveriam jogá-lo mais nas sucessivas?

Seja concebida a ponderação como instituição de uma hierarquia axiológica móvel que resolve um conflito entre prin-cípios, seja concebida como reformulação de normas defectíveis, persiste o problema do controle da motivação da decisão. Tal controle poderá ser desenvolvido sobre a congruência do raciocínio, da razão, mas certamente isso torna palpável o poder dispositivo em mão dos intérpretes e co-loca em discussão o papel da jurisdição no esquema tripartite do poder no estado de direito constitucional.

A proposta de Moreso é interessante também porque me parece indicar um per-curso, necessariamente jurisprudencial, de especificação e articulação daquelas pro-priedades relevantes, implícitas na formu-lação dos princípios, que poderiam consti-tuir uma complexa grade de condições de aplicação em grau de circunscrever, certo que sempre parcialmente, o poder disposi-tivo dos intérpretes, constituindo também limite à argumentação interpretativa. A

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proposta, em suma, registra de qualquer maneira um movimento já em ato, mas creio que sugira ainda a adoção de um ide-al regulador ao longo do qual se moveria a jurisprudência. Isso tudo que ela põe às claras, realmente, é o papel mudado que se encontra para desenvolver a jurisdição no direito contemporâneo. Voltarei ao assunto nas conclusões.

Sobre princípios e as razões para agir pode-se notar o que se segue.

A noção de defectibilidade não é desprovida da ambigüidade (REDONDO, 2005): uma norma pode ser defeated em duas maneiras diferentes e com diferen-tes implicações no plano da concepção da norma. Uma norma pode ser defeated porque vem modificadas as suas condições de aplicação: seja modificado o antece-dente da norma e, portanto, o conteúdo da própria norma; em tal caso nos encontra-ríamos dentro de uma concepção particu-larista das razões para agir. Uma norma pode ser defeated porque a ela é assinalado um peso menor em relação a uma outra, mas sem que se modifique o conteúdo de qualquer das duas normas; nesse caso nos encontraríamos dentro de uma concepção universalista das razões para agir.

Se concebermos os princípios como uma espécie de regras aptas para regular o caso concreto, pede-se a elas que respon-dam a seguinte pergunta “Como devo agir nesse caso?”. A essa pergunta dá a resposta Moreso, que parece ainda satisfazer exigên-cias de garantia: transformando o princípio em uma norma indefectível explicitam-se suas condições implícitas e determina-se o direito. Todavia, isso funciona somente na medida em que o princípio reformulado não esteja efetivamente submetido a uma nova revisão.

Se concebermos os princípios como normas pro tanto, ou seja, como normas que indicam a relevância de uma proprie-

dade que deve ser considerada no momen-to de decidir um caso, um quadro diferente é obtido. Desse modo o princípio não res-ponde à pergunta sobre como se deva agir em um determinado caso, mas indica uma propriedade que invariavelmente deverá ser levada em conta para definir qual o comportamento deve entrar em ação.

Na hipótese que no caso C possam ser aplicados os diferentes princípios A e B, estaremos frente a um conflito se assu-míssemos os princípios como tipo de re-gra; a solução justificada será obtida com a revisão do princípio o qual será aplicado tornando-o compatível com outro preteri-do.

Mas se assumíssemos princípios como dois deveres incondicionais inde-fectíveis que indicam a relevância de duas propriedades diferentes e contrastantes pelas quais será necessário ter atenção, não nos encontraríamos necessariamente perante a um conflito. Os princípios pode-riam ser vistos como deveres que não indi-cam o comportamento que deve ser man-tido em um determinado caso, mas como deveres dirigidos ao intérprete que deverá, sempre e invariavelmente, considerar no momento de solucionar o caso e do qual deverá ser responsável. Os princípios não indicariam a solução do caso, mas somente a exigência de considerar invariavelmente o dever neles indicado; os princípios im-poriam, portanto, o dever ao intérprete de oferecer uma justificação da relevância a eles atribuída. É claro que nesse panorama, ao intérprete é explicitamente atribuído um notável poder dispositivo, mas ao mesmo tempo ele é explícito e em uma certa me-dida controlável por se basear em critérios de racionalidade, razão e congruência. A solução e a justificação produzidas serão e deverão ser sobrepostas a uma crítica ex-terna baseada em argumentos de justiça, a pretensão de justiça será sempre meramen-

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te jurídica e a crítica externa será sempre ética.

Essa reformulação não soluciona as dificuldades da ponderação, mas conside-ro que somente na medida em que as di-ficuldades não se resolvam, permaneça a necessidade da ponderação ou do balance-amento. Na medida em que fosse possível transformar em regras os princípios se dis-solveria a necessidade de ponderar e seria possível operar com mera racionalidade subsumida. Coisa que, no entanto, não so-lucionaria absolutamente as problemáticas interpretativas. Como já se notou, todavia, uma estabilização da hierarquia axiológi-ca entre princípios constitucionais, para oferecer uma disciplina constitucional racional que satisfaça um outro grau de determinação, evitando as antinomias e reduzindo a discricionariedade interpreta-tiva, como colocou às claras Bruno Celano (2002), não parece possível. Justamente por essas razões parece necessário o juízo de ponderação entre princípios (PRIETO SANCHIS,2003, pp. 199-203) que, defi-nitivamente pode ser representado como um procedimento argumentativo baseado na explicitação das razões que sustentam a escolha do princípio e da sua formulação concreta.

2. Conclusões

Tudo que o tema da ponderação põe claramente é o emergir de uma exigência argumentativa qualitativamente mais for-te em relação a outros sistemas jurídicos, diferentes daquele do estado constitucio-nalizado. Substancialmente, aquela área indeterminada do significado jurídico cuja determinação era reconstruída como resul-tado de uma atividade meramente discri-cionária, parece agora reconstituível como uma sagaz obra argumentativa apta a jus-tificar, através de bons argumentos, a es-

colha significativa operada ou a hierarquia axiológica instituída.

O neoconstitucionalismo reconstrói essa exigência como uma modificação dos critérios de validade: o juízo externo ou ético sobre justiça de uma lei torna-se juí-zo interno sobre a sua validade (PRIETO SANCHIS, 2003, p. 133). Desse modo a justiça, uma concepção do bem, começa a fazer parte dos critérios de validade do sis-tema, começa a fazer parte dos critérios da regra de reconhecimento.

Como já foi indicado, parece pacífi-co que a constituição incorpore uma visão ética qualquer, coisa que já é a escolha de um procedimento em relação a uma outra. As constituições de contemporâneas são pluralistas e permitem um diferente núme-ro de concretizações completáveis (nesse modo parecem quase implicar a idéia do conflito).

Nesse quadro, a adoção de um com-portamento positivista permite coerente-mente verificar a mera compatibilidade da concretização interpretativa escolhida com o princípio constitucional abstrato, abrin-do a possibilidade individuar multíplices e possíveis concretizações, ou seja, a escolha de uma ou de outra não tem repercussões no plano da validade. A isso se sujeita a tese da separação conceitual entre direito e moral que se revela útil ainda para subli-nhar a autoridade que caracteriza o direito (do qual o neoconstitucionalismo parece se esquecer): não é a bondade do princípio que lhe determinar a juridicidade, por isso ocorre um ato de vontade autoritário. E, fi-nalmente, os princípios constitucionais são parte de um documento jurídico autoritá-rio, considerado vinculante pelos membros do grupo social observado. E é ainda uma decisão autoritária aquela que determina o significado específico dos princípios em conflito e soluciona-o construindo entre eles uma hierarquia axiológica.

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Tudo que parece caracterizar o estado constitucionalizado e que realmente muda, dissolvendo definitivamente o mito de uma jurisdição mecanicista, é o papel do juiz. Trata-se de um processo de transformação, provavelmente não previsto nesses termos, em parte principiado pelo próprio modelo constitucional que se afirma no segundo pós-guerra. Não é essa a focalização para ser percorrida novamente, nem mesmo as características proeminentes dessa histó-ria, antes se trata de destacar a existência de uma discrasia entre realidade e modelo teórico que exige ou impõe ao constitu-cionalismo uma profunda reflexão acerca dos instrumentos de garantia à limitação jurídica do poder. A tradicional divisão do poder concede (também na fórmula do check and balances) uma função de garan-tia à jurisdição. E persistente é a idéia que o direito possa ser aplicado ou, no mínimo, individuado em modo objetivo (como uma lei natural), que esse seja o dever da juris-dição, que meramente aplica uma vontade alheia, aquela do legislador, que tem o mo-nopólio da produção jurídica e pela qual é responsável politicamente. Esse sistema de deveres e relações reflete-se na dogmática das fontes do direito, todavia, na medida em que a atividade jurisdicional mostra-se cada vez mais evidentemente construtiva do direito positivo, impõe-se uma profunda reflexão sobre os diversos dogmas, sobre o sistema das fontes, sobre as funções do poder, sobre seus papéis, sobre a estrutura dos contrapesos para limitar juridicamente o poder. Uma vez declinado aquele ideal jurisprudencial, uma vez que tenha sido in-troduzida a idéia que na passagem do texto à norma se desenvolvem algumas avalia-ções, enfraquecendo a própria idéia de uma aplicação teórica do direito. Se as coisas estão assim, corre-se o risco de diminuir também o papel de garantia da jurisdição e com ele o princípio de legalidade.

O tema da ponderação dos princípios colocou definitivamente às claras a geral

complexidade do fenômeno interpretativo: se não acontece em relação biunívoca en-tre disposição (enunciado jurídico, texto) e norma (produto da interpretação, signi-ficado), a intervenção da jurisdição é algo além de uma mera aplicação, trata-se então de encontrar novos ou mais sofisticados instrumentos de garantia. A ponderação dos princípios tornou evidente a deficiên-cia no plano institucional do controle juris-dicional, parece difícil prever os casos de conflito e os critérios de precedência entre princípios de modo a tornar o direito certo. Mas essas dificuldades não são exclusivas da interpretação dos princípios, eventual-mente aqui estão mais evidentes.

A proposta neoconstitucionalista sugere enfrentar essas dificuldades garan-tísticas do constitucionalismo percorrendo uma via jusnaturalística que, atribuindo validade moral ao direito positivo, para-doxalmente apresenta alguns riscos de positivismo ideológico. Considero-a uma falsa solução, mas principalmente uma so-lução não constitucionalística, na medida em que se confia na mera boa vontade do intérprete a cada vez dotado de autoridade; pensando em fortalecer o direito positivo, enfraquece-o, atribuindo-lhe uma pretensa correção moral; criando a ilusão de uma perfeita correspondência entre justo e le-gal, sacrifica a possibilidade de uma crítica externa ao direito positivo.

Pela perspectiva positivista, é ne-cessário, todavia, notar que, tudo somado, propostas como aquela de Moreso buscam reformular o problema dissolvendo-o, ou seja, tão interessantes e úteis no plano da análise, não resolvem absolutamente as di-ficuldades constitucionalísticas.

Creio que seja necessária ter em men-te que, na medida em que o processo de constitucionalização progride e amplia a aplicação direta dos princípios constitucio-nais, a ponderação é também uma técnica para a aplicação elástica do direito infra-

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constitucional, dirigida a evitar a expulsão de normas inválidas que permaneçam pre-teridas para o caso concreto. Nesse modo, o direito se faz mais fluído, diminuem as áreas de certeza e ao mesmo tempo pare-cem crescer enormemente os deveres dis-positivos da jurisprudência.

É necessário notar, contudo, que tais deveres de dispositivos são em determinada medida conaturais a um discurso jurídico (por natureza?) substabelecido. Trata-se, então, de afinar os instrumentos de contro-le da obra de determinação dos intérpretes; trata-se de observar como os intérpretes usam as fontes de direito e como os mesmos contribuem para construí-las. Aceitar que a decisão interpretativa seja considerada em todo caso uma escolha seja que se desen-volva sobre princípios seja que se desen-volva sobre regras, não implica considerar os enunciados jurídicos como caixas vazias (antes da interpretação). Trata-se, mais co-erentemente, de derivar as conseqüências necessárias da tese interpretativa de parti-da: se não há relação biunívoca entre texto e norma, as disposições jurídicas veiculam diversos significados e a interpretação (do-tada de autoridade) torna concreto um de-les (POZZOLO, 2001 b). O intérprete, em suma, tem naturalmente à disposição multí-plices normas, todas reconduzíveis ao mes-mo texto, entre elas escolhe e decide; essa determinação é necessária à concretização do direito positivo.

A natureza substabelecida do discur-so jurídico não se reduz transferindo as dificuldades interpretativas sobre o plano moral, que não é certamente mais deter-minado. Aliás, isso impõe ainda ao posi-tivismo jurídico uma reflexão, pois que parece claro que ficando assim as coisas, um operador competente não é capaz de responder oferecendo uma única solução jurídica para um caso na base da única análise lingüística do texto. Mais de um são os resultados juridicamente possíveis.

Isso mostra o papel necessariamente cria-tivo da jurisdição e impõe o abandono de um certo ideal jurisprudencial. A jurispru-dência aplica normas, mas certamente não faz só isso: ela participa como co-autora da criação das normas. Grande parte daquele background sobre o qual vão ser deposita-das as palavras do legislador foi construído pela jurisprudência e por ela continuamen-te modificado e renovado. A jurisprudên-cia então é, nesse sentido, fonte do direito, não só em um geral e amplo sentido só-cio-político, mas no sentido jurídico: sem a mediação da jurisprudência o direito não seria capaz de intervir onde existe o con-flito e desenvolver o seu papel. Em todo caso, ainda se pode dizer que o juiz decide segundo o direito, porque a jurisprudência é só um co-autor, no meu parecer necessá-rio, das normas. O juiz decide o significado das disposições, produz em parte as nor-mas, mas só em parte, porque a sua obra interpretativa é redefinitória e não criativa no sentido restrito. O assim chamado easy case não desmente esse fato, mas o confir-ma. O caso claro, de fato, é um momento, uma conclusão parcial, no âmbito de um sistema de expectativas recíprocas. Ele, porém não é easy em virtude da interpre-tação da única disposição, mas depende de um bom mecanismo de estabilização e de feedback, que, regenerando-se conti-nuamente, oferece a impressão que como autoritariamente estabilizado não seja fru-to de interpretação e não exija por sua vez interpretação (POZZOLO, 2001 b).

Quanto deve ser modificado da nos-sa cultura jurídica a fim de que se admita que a jurisprudência faz tudo o que efeti-vamente faz; não só integrar e manipular (segundo alguns), mas produzir o direito.

Mas talvez ainda seja lícito questio-narmos se isso seja útil, ou se, ao contrá-rio, não seja melhor um direito em que “o mago-jurista cura os pacientes justamente porque os engana?” (JORI, 1995).

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* Doutouranda pela PUC-SP em Filosofia do Direito.

1. Introdução

O objetivo desse artigo é apresentar a discussão sobre o Neoconstitucionalismo no âmbito de uma Teoria Geral do Direito Constitucional a partir das obras de Ronald Dworkin. Adota-se como ponto de partida que não há um neoconstitucionalismo, mas vários. Isto requer que se use a expressão no plural e não no singular, quando não se referir em caráter geral a um movimento. A Teoria Constitucional estampada nas obras de Dworkin é uma das expressões das te-orias neoconstitucionalitas, que tem como particularidade ter sido montado a partir de um sistema jurídico norte americano, com

forte ênfase nas questões constitucionais. A questão levantada por este artigo é se uma teoria neoconstitucionalista como a de Dworkin, consegue ultrapassar as bar-reiras de um direito positivado, para se efetivar como uma Teoria Geral de Direito Constitucional.

2. Papel da Teoria Geral do Direito

O Neoconstitucionalismo está situ-ado dentro do que se costuma chamar de Teoria Geral do Direito. Esse locus ocupa-do pelo neoconstitucionalismo ajuda a en-tender o seu caráter peculiar, que como a face de Janus não pode ser apreendida em

UMA VISÃO DO NEOCONSTITUCIONALISMOA PARTIR DE DWORKIN

A VISION OF NEOCONSTITUTIONALISM SINCE DWORKIN

gisele MasCaRelli salgaDo*

Recebido para publicação em agosto de 2005

Resumo: O Neoconstitucionalismo surge como um modo de pensar as questões constitucionais do Estado na atualidade, na tentativa de solucionar problemas de uma teoria do Direito de complexida-de proporcional à sociedade que está inserida. Dworkin é um dos que se propõe a pensar alguns des-ses novos parâmetros do Direito, porém sua teoria enfrenta dificuldades inerentes ao descompasso conceitual e metodológico. A grande dificuldade da obra de Dworkin, está em partir de um sistema específico de Direito para pensar uma teoria que se pretende universalizante. Palavras-chave: Neoconstitucionalismo. Teoria de Dworkin. Princípios.

Abstract: Neoconstitucionalismo appears as a way of thinking the constitutional questions of the State, in the attempt of solving problems of a theory of Law that has a complexity, in the same proportional of complexity to the society that is inserted. Dworkin intends to think of Law based in some of those new parameters, however his theory faces inherent conceptual and methodologi-cal difficulties. The higherest difficulty faced by Dworkin work´s, is dealing in his theory with a specific system of Law to compose a theory that intend universal.Key Words: Neoconstitutionalism. Dworkin Theory. Principles.

“Em questões constitucionais é um erro querer distinguir entre o jurídico e o político”

Carl Schmitt

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um só golpe de vista. O Neoconstituciona-lismo apresenta como característica geral em quase todas suas variações, um pensar sobre o direito positivo constitucional, mas que não se limita à legislação vigente de um local específico. Assim o neoconstitu-cionalismo está intimamente ligado a uma determinada situação histórica atual, que englobam: a mudança do papel do Estado, a globalização/mundialização, transforma-ções tecnológicas, etc.. Deste modo o neo-constitucionalismo se apresenta como um fenômeno temporal, com um forte apelo universalizante.

A busca de uma teoria do Direito com caráter universalizante, mas que ao mesmo tempo ocupasse o lugar da Filosofia do Di-reito, fez com que surgisse no século XIX a Teoria Geral do Direito (Allgemeine Re-chtslehre). No auge do positivismo ocor-re o desprestígio da Filosofia do Direito, surgindo em seu lugar uma nova ciência com caráter híbrido, pois não era um mero comentário das leis positivadas do Estado, nem possuía um caráter especulativo como a Filosofia do Direito. Como comenta Ra-dbruch a missão da Teoria Geral do Direito era : “não só de investigar quais os concei-tos jurídicos mais gerais e comuns a todas as disciplinas jurídicas, como de expor, comparativamente, para além da ordem ju-rídica nacional, os conceitos entre si apa-rentados das diferentes ordens jurídicas e até, inclusivamente perscrutar – para além dos domínios do direito- as suas relações com outros domínios da cultura”1.

O que diferencia inicialmente a Te-oria Geral do Direito de uma abordagem da Filosofia do Direito, é a busca de uma solidificação de conceitos, formando pa-drões classificatórios, que poderiam ser utilizados em diversos ramos do Direito. Apesar de distanciar-se do direito positivo a Teoria Geral do Direito admitia alguns pressupostos como fora de questão, para

poder iniciar uma discussão, formados a partir de um certo consenso entre os juris-tas. Os trabalhos de Filosofia do Direito também adotam pressupostos, porém estes podem ser colocados em questão, pois os pressupostos de um autor podem ser derru-bados por outros autores, uma vez que não existe um padrão único ou mesmo um pa-drão preponderante a ser obrigatoriamente adotado. Porém a linha entre Teoria Geral do Direito e Filosofia do Direito é muito tênue, e não raras vezes é difícil saber o lugar que uma começa e a outra termina.

O Neoconstitucionalismo como ma-téria que se insere na Teoria Geral do Di-reito também irá apresentar esse caráter duplo de dogma e de especulação, que tem como objetivo geral, o pensar sobre de-terminados conceitos e padrões presentes no Direito Constitucional. Acrescenta-se com isso mais um fator temporal, que é a própria existência de um Direito Cons-titucional nos padrões modernos. Desta maneira o neoconstitucionalismo vai ga-nhando complexidade no seu tratamento, que dificulta a utilização desse conceito, mas permite por outro lado dar conta de explicações que não cabem mais nas ve-lhas teorias do Direito.

3. Constitucionalismo e Neoconstitucio-nalismo

A complexidade que gira em torno do Neoconstitucionalismo apresenta mais uma faceta, que é a derivação do termo Constitucionalismo. O constitucionalismo pode ser entendido como um conjunto de estudos sobre o Direito Constitucional mo-derno, sendo que esses estudos não apre-sentam um forte caráter positivista.

Meirelles Teixeira chama esse Cons-titucionalismo moderno, de Direito Cons-titucional Geral, e utilizando-se dos con-ceitos de Santi Romano, entende que esse Direito Constitucional geral “consistiria

UMA VISÃO DO NEOCONSTITUCIONALISMO...

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numa série de princípios, preceitos, ins-titutos, que aparecem nos vários Direitos positivos dos diferentes Estados, ou em grupos de Estados, e em cuja base poderí-amos classificá-los e sistematizá-los, numa visão unitária”2. Assim o Constitucionalis-mo moderno é formado, pelo que o autor chama de “patrimônio jurídico-político comum à generalidade dos países civiliza-dos”3. Enfatiza Meirelles Teixeira o caráter híbrido dessa ciência, ao afirmar: “O Di-reito Constitucional Geral entendido nesta última acepção, já não seria mera filosofia jurídica, nem doutrina prática, no sentido próprio, mas teoria jurídica de relevante alcance prático e teórico”4.

O Constitucionalismo também é um estudo que pressupõe uma datação precisa, pois o que se estuda são as Constituições que foram fruto do Estado moderno no mundo ocidental. Deste modo o que a prin-cípio poderia ser tomado como uma teo-ria universal fica restrita a alguns Estados, que tem como origens a Constituição dos Estados Unidos da América ou de Estados europeus. Assim o Constitucionalismo está calcado diretamente em um Estado que tem como características fundamentais: existência de um governo centralizado e altamente burocratizado, predominância do monopólio estatal no âmbito legislativo e coercitivo e com um conceito de sobera-nia forte.

O foco dos estudos Constitucionalis-tas está quanto ao sujeito no Estado e não propriamente o destinatário dessas normas constitucionais; e quanto ao direito está na proteção Estatal como entidade polí-tica-administrativa-jurídica. O ponto de mudança do Constitucionalismo para um Neoconstitucionalismo é controverso na doutrina. Meirelles Teixeira entende que o novo constitucionalismo “vem se deline-ando desde a Primeira Guerra Mundial, e cuja nota específica é o sentido social das Constituições, cujo padrão e marco inicial

foi a Constituição alemã de Weimar de 1919”5.

Canotilho também aponta para a mu-dança de foco do constitucionalismo, que “tem de lidar com problemas de comple-xidade dinâmica, adaptabilidade, auto-or-ganização, emergência e evolução”6. A di-ficuldade dessa tarefa, segundo Canotilho, levou a um esvaziamento e erosão da teo-ria da constituição, pela adoção de teorias da justiça e teorias sociológicas.

O Neoconstitucionalismo figura como uma teoria que busca explicar o Di-reito a partir do âmbito jurídico, porém apresenta entraves decorrentes da própria estrutura do Direito que não tem instru-mentos que permitam, que inovações ocor-ridas no âmbito econômico-social-cultural, sejam absorvidas prontamente pelo sistema jurídico, sem provocar ruídos. Esse proble-ma decorre da estrutura estatal e jurídica, que ainda lida com padrões de um velho constitucionalismo, e não consegue en-quadrar a ampla gama de transformações nos velhos “standarts”.

A superação do velho constituciona-lismo pressupõe o abandono, pelo menos em parte, de um positivismo jurídico ex-tremado. Assim o neoconstitucionalismo irá buscar formas alternativas a essa teoria jurídica, para explicar uma outra realida-de jurídica, que não tem mais como único ponto fundamental a legislação estatal; po-rém admite a inclusão no âmbito jurídico, de princípios, valores morais ou de justiça; relativizando conceitos clássicos como so-berania e território; ou mesmo proporcio-nando um direito estatal ao cidadão para se resguardar contra o próprio Estado.

4. Diferentes Neoconstitucionalismos

Não se pode falar em apenas um Neoconstitucionalismo, mas sim em Neo-constitucionalismos, pois não pode ser en-carado como uma teoria única, nem possui

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um fio condutor que é comum a todas elas, que não seja a mera negativa genérica a um constitucionalismo e a um positivismo ju-rídico. Assim os diversos matizes dos ne-oconstitucionalismos não podem ser redu-zidos a uma teoria comum, na medida em que cada um dos neoconstitucionalismos é fruto de uma resposta para os problemas gerados pela realidade social e que devem ser enfrentados pelo direito.

Porém mesmo o termo Neoconsti-tucionalismo não é unívoco, e é de fun-damental importância uma distinção para saber de que fenômeno se fala. Comanduc-ci propõe a distinção do Neoconstituciona-lismo, aos moldes da divisão que Bobbio utiliza para o termo positivismo, em Ne-oconstitucionalismo como: uma teoria, uma ideologia e um método de análise do Direito. Essa distinção apresenta um ca-ráter didático, uma vez que na obra de um autor que trata do neoconstitucionalismo essas facetas encontram-se entrelaçadas.

O Neoconstitucionalismo teórico é definido por Comanducci, como aquele que se caracteriza “por uma constituição ‘inva-sora’, por uma positivação de um catálogo de direitos fundamentais, pela presença da constituição de princípios e regras, e por algumas peculiaridades da interpretação e da aplicação das normas constitucionais quanto a interpretação e aplicação da lei”7. Como teoria o Neoconstitucionalismo se apresenta como uma contraposição ao positivismo jurídico, e geralmente centra sua análise na Constituição, adotando se-gundo Comanducci, dois modelos: modelo descritivo da constituição e modelo axio-lógico8. Ferrajolli e Gustavo Zagrebelsky são dois autores que defendem um neo-constitucionalismo, nos moldes do modelo axiológico, atribuindo aos valores, grande relevância no âmbito do Direito.

O Neoconstitucionalismo como uma ideologia, apóia a expansão do modelo de

Estado constitucional e democrático, dan-do ênfase a mecanismos institucionais de tutela dos direitos fundamentais. Por essas características Comanducci denomina essa espécie de neoconstitucionalismo, como: “neoconstitucionalismo dos contra-pode-res” e “neoconstitucionalismo das regras”9. O neoconstitucionalismo como ideologia reintroduz a questão da Moral para o âmbi-to do Direito, utilizando-a como um metro ou como um limite na aplicação do Direi-to. Desta maneira o neoconstitucionalismo se apresenta frontalmente contra o projeto kelseniano, que propõe uma purificação da ciência do Direito de tudo aquilo quanto lhe fosse estranho, inclusive questões morais. Porém o Neoconstitucionalismo como ide-ologia assume o problema levantado por Kelsen, ao tratar da aplicação do Direito, que vê entrar no Direito outros elementos (como valores, moral, força, poder), para preencher a moldura legal10.

O Neoconstitucionalismo metodoló-gico é um termo criado por Comanducci para denominar o neoconstitucionalismo, que se contrapõe ao positivismo jurídico, enquanto uma teoria que tenta não se uti-lizar da dicotomia do “ser” e “dever-ser”. Com isso o Neoconstitucionalismo irá afir-mar “pelo menos a respeito de situações de direito constitucionalizado, em que os princípios constitucionais e os direitos fundamentais constituiriam uma ponte en-tre direito e moral, a tese da conexão ne-cessária, identificativa e/ou justificativa, entre direito e moral”11. O que o neoconsti-tucionalismo propõe é a análise do direito como um fenômeno, que engloba regras de direito e da moral, que muitas vezes tem preceitos semelhantes; e propõe que as regras morais sejam a última ratio para decidir questões conflituosas no âmbito da aplicação do direito.

Dworkin em suas obras defende um neoconstitucionalismo que se apresenta ao

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mesmo tempo como: uma teoria, um méto-do e como ideologia. As obras de Dworkin apresentam um modelo complexo de neo-constitucionalismo, assim como também são as de Alexy. Porém ao contrário de Alexy que defende um neoconstitucio-nalismo com forte influência da teoria do discurso, Dworkin baseia-se em uma abor-dagem anti-Bentham e contrapõe-se for-temente ao positivismo jurídico de Hart, afirmando a relação necessária do Direito com a Moral.

5. Neoconstitucionalismo de Dworkin

Este capítulo apresenta o neoconsti-tucionalismo presente nas seguintes obras de Ronald Dworkin: “Uma questão de Princípios” e “Levando os Direitos à Sé-rio”. A crítica a obra de Dworkin é extensa e coloca em xeque as premissas de seus argumentos, quando não levanta incon-sistências e problemas na obra do autor; porém esta nunca ficou inerte as propostas de Dworkin para superar o positivismo ju-rídico.

Ao tratar do positivismo jurídico Dworkin refere-se à Hart, que tem como principal obra “The Concept of Law”. Esse é o positivismo combatido, ficando de lado outros teóricos do positivismo de tradi-ção européia. Essa ausência é identificada como um dos fatores, que levaram a difi-culdade de aceitação da obra de Dworkin. Porém a ausência de um diálogo com a te-oria positivista, inclusive com autores que escrevem a partir da tradição do “roman law”, parece indicar mais do que a mera falta de diálogo com a tradição do “com-mon law”.

Dworkin utiliza-se de um panorama para a sua teoria e para o seu neoconstitu-cionalismo, que pressupõe necessariamente a adoção do Direito aos moldes que existe hoje em seu país de origem. Essa particula-ridade da obra de Dworkin é acentuada por

seu método descritivo de abordar o Direi-to. Para superar os limites do positivismo Dworkin propõe que, o modo de aplicação do Direito é mais complexo, sem lacunas e menos político.

A crítica feita por Dworkin ao positi-vismo jurídico recai em diversos pontos, e um deles é o de utilizar-se apenas da lei ao aplicar o Direito. Para Dworkin o direito não é formado apenas de normas jurídicas, mas também de princípios. O primeiro passo dado por Dworkin é a distinção de normas e princípios. No segundo passo, dá aos princípios um papel relevante no sis-tema jurídico, e é isso que o diferencia de Hart.

São os princípios de direito que de-vem pautar as decisões dos juízes na apli-cação do Direito. Os princípios presentes explicitamente ou implicitamente no Di-reito, permitem a distinção de argumentos de princípio e argumentos de política. “Os argumentos de princípio são argumentos destinados a estabelecer um direito indivi-dual; os argumentos de política são argu-mentos destinados a estabelecer um objeti-vo coletivo. Os princípios são proposições que descrevem direitos; as políticas são proposições que descrevem objetivos”12.

Esses argumentos são utilizados na aplicação do Direito indistintamente pelo positivismo jurídico. O que Dworkin pre-tende é que sejam utilizados apenas os ar-gumentos de princípio, que respeita o di-reito moral do indivíduo, mesmo quando este colide com o interesse de uma maio-ria. O Direito aplicado se vê pautado a uma Moral, sem o que não pode ser levado a sério.

Os princípios pressupõem uma moral que Dworkin chama de moral jurídica, que é formada a partir de um consenso entre os juízes da posição correta, partindo-se do homem médio daquela população e não da própria moral do juiz ou de sua particular visão do mundo. Nas palavras de Dworkin:

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“Denomino princípio um padrão que deve ser observado, não porque deve ser obser-vado, não porque vá promover ou assegu-rar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência da justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade”13.

Assim definido, os princípios não são regras que pautam a aplicação das normas, como sugerem os positivistas na visão de Dworkin. Os princípios não podem ser con-fundidos com as normas, pois tem natureza lógica distintas. As regras se pautam pela lógica da validade ou do que Dworkin cha-ma de “lógica do tudo ou nada”, enquanto os princípios possuem a dimensão do peso ou importância, e podem conviver com outros princípios conflitantes. Dworkin entende que os princípios não são regras válidas acima do direito, e essa é a diferen-ça entre o autor estudado e os positivistas, que também aceitam os princípios dentro do sistema do direito. Por não serem re-gras, os princípios são mutáveis e devem levar em consideração aspectos históricos e temporais. A importância dos princípios é dar um padrão moral que proporciona o respeito aos direitos individuais, ou nas suas palavras: “igual consideração e res-peito”.

Os juízes ao aplicar o Direito ao caso concreto utilizam-se dos princípios, porém esses são indispensáveis naqueles casos em que não há solução fácil pela lei, nos “casos difíceis”, que não raro tratam de questões constitucionais. Porém o juiz ao decidir os casos difíceis não tem amplo poder de discricionariedade, como quer os positivistas, pois está vinculado aos princí-pios. Dworkin elabora uma teoria que não é uma prescrição do que os juízes devem fazer, mas sim, uma análise de como os juízes agem. Nesse ponto Dworkin dife-rencia-se quanto ao método de Kelsen e também de Rawls.

O juiz não é um criador de normas. É uma pessoa que aplica o Direito com base em critérios pré-estipulados, garan-tindo ao Direito uma certa segurança e cer-teza. Essa segurança é reforçada quando Dworkin enfatiza que: “um juiz que adota um princípio em um caso deve atribuir-lhe importância integral nos outros casos que decide ou endossa, mesmo em esferas de direito aparentemente não análogas”14.

A preocupação com a segurança do Direito tem como objetivo evitar o “juiz le-gislador”. O positivismo entende que esse juiz é perigoso, pois não é um juiz que foi eleito pelo povo e com isso não representa seus interesses. Porém para Dworkin o juiz que cria normas para aplicá-las em casos difíceis, está se utilizando de um poder que não tem. Nas palavras de Dworkin: “O juiz continua tendo o dever, mesmo nos casos difíceis, de descobrir quais são os direitos das partes, e não inventar novos direitos retroativamente”15.

A tarefa proposta por Dworkin ao juiz não é menos do que heróica. Seu juiz bem nominado Hércules “aceita que as leis têm o poder geral de criar e distinguir di-reitos jurídicos, e que os juízes têm o de-ver geral de seguir as decisões anteriores de seu tribunal ou dos tribunais superiores cujo fundamento racional, como dizem os juristas, aplica-se ao caso em juízo”16.

Hércules ao se deparar com um caso difícil deve elaborar uma “teoria constitu-cional na forma de um conjunto complexo de princípios e políticas que justifiquem o sistema de governo ... Hércules deve de-senvolver essa teoria referindo-se alterna-damente à filosofia política e ao pormenor institucional. Deve gerar teorias possíveis que justifiquem diferentes aspectos do sis-tema e testá-las, contrastando-as com a es-trutura institucional mais ampla. Quando o poder de discriminação desse teste estiver exaurido, ele deverá elaborar os conceitos

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contestados que a teoria êxitosa utiliza”17. A tarefa de Hércules compreende também a conciliação do princípio, para todo o sis-tema de Direito quanto à sua hierarquia.

Os trabalhos a que o juiz está obri-gado a realizar para bem aplicar o direito, tornam a tarefa hercúlea, porém o juiz de Dworkin está muito mais para Ulisses que para Hércules. Atado aos princípios para poder proferir sua decisão, o juiz como Ulisses não pode sucumbir ao canto das sereias, que o chama para uma decisão que leve em conta suas próprias concepções, que seja uma decisão política/ discricioná-ria. Os positivistas sucumbiram as sereias por não tamparem seus ouvidos, nem se atarem ao mastro dos princípios, ao ten-tar atravessar o perigoso mar do Direito. O juiz como Ulisses também deve ter seus olhos vendados, para não criar visões de seres fantásticos, ou seja, para não criar direitos.

O juiz assumindo esta postura pro-posta por Dworkin assegura a observância à Constituição, pelo que ficou conhecido na teoria constitucionalista de “judicial re-view”, oferecendo em última análise um controle da constitucionalidade. A tarefa de Hércules não é imposta a todos os juízes, mas especialmente àqueles que lidam com casos difíceis, que geralmente são os juízes da Suprema Corte, pois coube a ela histo-ricamente velar pela Constituição. Deste modo a aplicação do Direito fica fadada em seu último grau às decisões de uma corte constitucional, que tem forte compo-nente político, uma vez que seus juízes são indicados pelo chefe de governo.

Ao restringir a interpretação do juiz Dworkin adota posição semelhante a de Kelsen, quando este trata da interpretação conforme/autência. Dworkin entende que a Suprema Corte seria o órgão autorizado a dizer o Direito no seu último grau, fe-chando com isso as possíveis lacunas do

sistema jurídico. Kelsen atribui essa juris-dictio ao órgão aplicador do direito, que serão as autoridades do Estado. O que os diferencia é que Kelsen entende que tal tarefa cria direitos, enquanto Dworkin não defende essa postura. Porém tanto para o positivista quanto para seu crítico, o Direi-to necessita de uma restrição/ampliação de sentidos que lhe é exterior.

Para Dworkin a tarefa de diminuir a discricionariedade do juiz ao decidir é dada pelo método de sua leitura moral. Porém ao delimitar quem faz a leitura, Dworkin faz uma restrição dos tipos de interpreta-ções possíveis não a partir do método, mas sim na figura do juiz. A restrição propos-ta pelo método e pela Corte, aumentam consideravelmente o grau de segurança de um sistema jurídico, porém pressupõe que exista uma Corte constitucional instituída como órgão legitimado a dar o último pa-recer sobre a Constituição.

Utilizando-se da famosa imagem da pirâmide hierárquica de competências das normas jurídicas, amplamente difundida pelo positivismo, a proposta de Dworkin está em garantir o sistema jurídico colo-cando a Corte Constitucional acima do topo da pirâmide, que do alto olharia por todo o sistema. Assim a Corte não deixa de atuar como portadora de argumento de autoridade, fornecendo os parâmetros de como aplicar o Direito, através de uma ge-neralização de sentidos.

No Brasil a função do Supremo Tri-bunal Federal foi estabelecida de modo diferente da Corte Constitucional, adotan-do um sistema misto de controle da cons-titucionalidade, que migra da inspiração americana para a inspiração do modelo austríaco18. José Afonso da Silva chega a afirmar que o S.T.F., por não ser o único órgão a decidir questões constitucionais, não o converte em Corte Constitucional19. O controle da constitucionalidade à bra-

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sileira concilia o controle concentrado e o controle difuso. Esse padrão misto tem migrado paulatinamente para a predomi-nância do controle concentrado, mas há ainda a presença do controle difuso, como aponta Gilmar Ferreira Mendes20.

Nos padrões que Dworkin apresenta é difícil pensar o controle constitucional e o papel do S.T.F., pois ele não figura com tamanha força de autoridade, assim como é a Corte norte-americana, para fixar os sentidos do Direito. Isso porque o próprio sistema de Direito utilizado no Brasil, não utiliza em amplo espectro a decisão do juiz vinculada a um precedente. A Cons-tituição brasileira é uma constituição que principalmente normatiza e não uma cons-tituição de princípios, deste modo é difícil aplicar a proposta de Dworkin de interpre-tação moral dos princípios em um sistema jurídico em que a importância dos princí-pios começa a ganhar força.

A proposta dos princípios de Dworkin não se restringe apenas aos juízes, mas deve ser adotada também pelo governo. Em obra mais recente Dworkin desenvolve como alguns dos princípios do individua-lismo ético garantem uma sociedade me-lhor através de uma teoria liberal, são eles: princípio da igual importância e princípio da responsabilidade especial. Os princí-pios escolhidos por Dworkin pressupõem o liberalismo e a democracia implantados na sociedade.

O governo tem papel fundamental na busca da igualdade e deve ter um papel ati-vo. “O primeiro princípio requer que o go-verno adote leis e políticas que garantam que o destino de seus cidadãos, contanto que o governo consiga atingir tal meta, não dependa de quem eles sejam – seu histórico econômico, sexo, raça ou determinado con-junto de especializações ou deficiências. O segundo princípio exige que o governo se empenhe, novamente se conseguir, por

tornar o destino dos cidadãos sensível às opções que fizeram”21. Para fomentar esses princípios o governo necessita, portanto de uma meta governamental bem estruturada e de uma boa estrutura econômica, social e cultural, para sua implementação. Des-te modo Dworkin impõe mais uma tarefa hercúlea para os governantes.

Outro ponto da teoria de Dworkin que apresenta dificuldades se pensado nos termos do Direito brasileiro, é a leitura moral. Isto porque na Constituição de 1988 há uma ampla gama de direitos protegidos, inclusive coletivos, e os juízes levam isso em consideração; não há uma predominân-cia do direito individual. A leitura moral também pressupõe um consenso nas deci-sões dos juízes, para que o juiz ao buscar pelos princípios, consiga estabelecer a mo-ralidade jurídica.

A concepção de Dworkin que as pes-soas têm direitos contra o Estado, é uma concepção nova no Direito brasileiro, que em geral é um direito que garante a pro-teção do Estado. Porém essa é a base do direito constitucional americano, como afirma Dworkin: “Nosso sistema constitu-cional baseia-se em uma teoria moral es-pecífica, a saber, a de que os homens tem direitos morais contra o Estado”22. Fica mais uma vez a questão de se essa teoria baseada em características tão particulares, serviria para pensar um país com uma for-mação diferente.

Há uma série de pressupostos da teo-ria de Dworkin que não encontram respaldo no sistema jurídico brasileiro, assim como em outros sistemas de tradição romana. Sem dúvida é possível realizar adaptações e dentro de um âmbito genérico, pensar alguns conceitos propostos por Dworkin para superar os problemas do positivismo jurídico. O que se coloca em questão é se essas necessárias adaptações, não corrom-periam a própria teoria de Dworkin, res-tringindo a possibilidade de utilização.

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6. Discussão sobre a possibilidade de uma Teoria Geral do Direito Consti-tucional em Dworkin

A teoria de Dworkin como foi aponta-da no item anterior pressupõe que se admita o sistema da “common law” e de algumas instituições, como a Corte Constitucional, nos moldes estabelecidos historicamente nos Estados Unidos da América. Dworkin utiliza-se de um método de abordagem do direito através de uma crítica conceitual frente à prática do Direito, ou em outras palavras, “Dworkin destrói o pressuposto metodológico positivista da separação ab-soluta entre a descrição e a prescrição”23. Assim descreve sua realidade jurídica e acaba por prescrever as mudanças a partir dessa mesma realidade.

A partir de uma Filosofia do Direito é possível aceitar com maior facilidade a pro-posta de Dworkin, pois a sua regionalidade não compromete de ser uma boa teoria, nem que seja apenas para a sociedade e o mo-mento indicados pelo autor. Porém ao tratar da teoria de Dworkin dentro de uma Teoria Geral, o aspecto da regionalidade entra em conflito diante da busca de universalidade desse campo de estudo. O mesmo ocorre quando o campo é o da Teoria Geral do Di-reito Constitucional, mais especificamente do Neoconstitucionalismo.

Os problemas apontados aqui na obra de Dworkin não invalidam toda sua obra, nem pode levar para uma postura descon-sideração. As dificuldades enfrentadas não são pequenas e deve-se ter extremo respei-to, por aquele que se aventurou na guerra para superar o positivismo. Dworkin pro-põe uma teoria inovadora com soluções interessantes, que devem ser levadas em conta por qualquer jurista.

Como aponta Comanducci, a teoria de Dworkin apresenta dificuldades quando afirma que os princípios e a sua aplicação

no Direito podem aumentar o grau de cer-teza deste e reduzir a discricionariedade dos juízes. Porém a teoria de Dworkin ao enfatizar o papel dos princípios no âmbito de uma hermenêutica jurídica, pode levar a busca de outros valores que não a certeza jurídica, mas que tem importância igual ou maior, como a adequação do direito, ofe-recimento de critérios a órgãos inferiores, etc.24.

As obras de Dworkin apresentam um núcleo baseado no direito americano moderno, restringindo assim a possibilida-de de se pensar em uma Teoria Geral do Direito Constitucional. Porém se analisa-da aos olhos de uma Filosofia do Direito, suas posturas e escolhas não prejudicam sua teoria, pois esta área não pressupõe um conhecimento que seja universalizante. O que foi colocado em dúvida é precisão ao apontar a obra do autor estudado, como parte do movimento Neoconstitucionalis-ta. Dworkin pode ser entendido como um neoconstitucionalista em uma noção muito peculiar dessa expressão, ou seja, entender que suas obras fazem parte dos estudos que tratam da constituição norte-americana. Isso somente reforça a tese da necessida-de de pensar o Direito juntamente com a Política, pois tratam de temas que são in-dissociáveis.

7. Considerações Finais

O Neoconstitucionalismo pode ser entendido como um movimento que re-pensa o Direito Constitucional, trazendo novos conceitos para um Direito que luta para lidar com seus padrões conceituais. Valores, princípios, conceitos como jus-tiça, liberdade e igualdade; são utilizados na tentativa de trazer para o Direito, uma espécie de freio ou de um contrapeso; em especial na interpretação.

A dificuldade de um pensar sobre o Direito atual está na necessidade crescente

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de lidar com uma complexidade quase in-controlável e com uma sociedade em mu-tação acelerada, quase volátil. A perda de valores e bases em que estavam fundados a sociedade e o Direito provoca uma falta de adequação, e conseqüentemente um ruído estridente nos ouvidos das pessoas. Boa-ventura Sousa Santos traduziu esse senti-mento em seu livro “Pela Mão de Alice”, pois como Alice, somos arrastados para dentro de um buraco sem fim, em que a lógica conhecida não ajuda entender o que ela experimenta.

Esta busca em entender a nova re-alidade é uma das tarefas dos Neoconsti-tucionalismos. Enfrentar seus problemas é encarar o sentimento de angústia que permeia o homem moderno, enredado em teorias que não são adequadas a explicar sua realidade. “A longa experiência do pensar ocidental parece dar-se conta, nesse momento, de uma experiência irredutível, nem pensável nem impensável, de um ocul-to que não transparece nem como oculto, de um mistério que não se expressa nem como mistério, enfim que não fala, apenas, angustia. E aí se esconderá o desafio e a in-terrogação do século XXI”25. Esse desafio foi enfrentado corajosamente por Dworkin e por outros autores que propõe um novo jeito de pensar o Direito.

REFERÊNCIAS

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COMANDUCCI, Paolo. Formas de (Neo) Constitucionalismo: un Análisis Metateórico (trad. Miguel Carbonell). Revista Isonomia n 16, 2002. DUARTE, Écio Oto Ramos. Metodologia do Direito e Neoconstitucionalismo. In: Teoria do Discurso e Correção Normativa do Direito: aproximação à metodologia discursiva do Di-reito. São Paulo, Landy, 2003.DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princí-pio. (trad. Luis Carlos Borges). São Paulo, Mar-tins Fontes, 2000.______. Levando os Direitos a sério. (trad. Nel-son Boeira). São Paulo, Martins Fontes, 2002. ______. Domínio da Vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. (trad. Jefferson Luiz Ca-margo). São Paulo, Martins Fontes, 2003.______. A Virtude Soberana: a teoria e a prática da igualdade. (trad. Jussara Simões). São Paulo, Martins Fontes, 2005.FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Estudos de Filo-sofia do Direito. São Paulo, Atlas, 2002.IKAWA, Daniela. Hart, Dworkin e discricionarie-dade. São Paulo, Revista Lua Nova n 61, 2004. KENSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Coim-bra, Armênio Amado, 1984.MENDES, Conrado Hübner. Controle de cons-titucionalidade e democracia. São Paulo, Dis-sertação de mestrado FFLCH da USP, 2003.MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos funda-mentais e controle da Constitucionalidade. São Paulo, Celso Bastos Editor, 1998.MEIRELLES TEIXEIRA, José Horácio. Cur-so de Direito Constitucional. (texto revisto por Maria Garcia). Rio de Janeiro, Forense Univer-sitária, 1991. RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito (trad. Cabral Moncada). Coimbra, Armenio Amado, 1979.SILVA, José Afonso. Curso de Direito Consti-tucional Positivo. 20 ed, Malheiros, 2002.VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça: um ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma. São Paulo, Ma-lheiros, 1999.

NOTAS

1RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. p. 73.

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2MEIRELLES TEIXEIRA, J.B. Curso de Direi-to Constitucional. p, 7.3MEIRELLES TEIXEIRA, J.B. Curso de Direi-to Constitucional. p, 444.4MEIRELLES TEIXEIRA, J.B. Curso de Direi-to Constitucional. p, 7.5MEIRELLES TEIXEIRA, J.B. Curso de Direi-to Constitucional. p, 446.6CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitu-cional e Teoria da Constituição. p, 1187.7COMANDUCCI, Paolo. Formas de (Neo) Constitucionalismo. p, 97.8COMANDUCCI, Paolo. Formas de (Neo) Constitucionalismo. p, 98.9COMANDUCCI, Paolo. Formas de (Neo) Constitucionalismo. p, 100.10KELSEN, Hans. Aplicação. In: Teoria Pura do Direito. p, 463-473.11COMANDUCCI, Paolo. Formas de (Neo) Constitucionalismo. p, 101.12 DWORKIN, R. Levando os Direitos à sério. p, 141.13DWORKIN, R. Levando os Direitos à sério. p, 36.

14DWORKIN, Ronald. Domínio da Vida. p, 204.15DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a sério. p, 127.16DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a sério. p, 165.17DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a sério. P, 167.18MENDES, Conrado Hübner. Controle de Constitucionalidade e democracia. p, 19.19SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. P, 555.20MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Funda-mentais e Controle da Constitucionalidade. P, 253. 21DWORKIN, R. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. p, XVII.22DWORKIN, R. Levando os Direitos à sério. p, 231.23CALSAMIGLIA, Albert. Introdução. In: De-rechos en Serio. P, 8.24COMANDUCCI, Paolo. Formas de (Neo) Constitucionalismo. p, 108.25FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Estudos de Fi-losofia do Direito. p, 132.

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1. Introdução

O pano de fundo teórico do debate in-ternacional contemporâneo sobre constitu-cionalismo é formado basicamente a partir de dois confrontos teóricos em particular: (1) Comunistarismo e Liberalismo e (2) Precommitment and the Paradox of Demo-cracy que também é denominado com os termos: Constitutionalism and Democracy (Elster/Slagstad, 1988). Ao se posicionar perante este debate Habermas mostra que as diferenças entre comunitarismo e libe-

ralismo estão centradas basicamente na forma como essas posições concorrentes compreendem o processo democrático de formação da vontade e da esfera pública. Por outro lado Habermas procura mostrar que o aparente conflito entre democracia e constitucionalismo não passa de aparência de conflito. Na verdade ambos estão ins-trinsecamente interligados em função da conexão interna entre Estado de direito e democracia (Habermas, 1999: 277 e 293). As conseqüências de uma ousada posição

HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL, DEMOCRACIA E RECONHECIMENTO: DESAFIOS DA TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

CONTEMPORÂNEA*CONSTITUTIONAL HERMENEUTIC, DEMOCRACY AND RECOGNITION:

CHALLENGES OF CONTEMPORARY CONSTITUTION THEORY

Giovani aGostini saavedra**

Recebido para publicação em agosto de 2005

Resumo: Este artigo procura apresentar os desafios e as tarefas do Constitucionalismo Contempo-râneo. Com base nas teorias de Ronald Dworkin, Jürgen Habermas e Axel Honneth, o autor preten-de demonstrar que a hermenêutica, a democracia e o reconhecimento não podem ser vistos como conceitos ou áreas de estudo e pesquisa separadas e sim como interdependentes. Indiretamente, portanto, procura-se mostrar que esta forma complexa de compreensão do fenômeno jurídico é o desafio do constitucionalismo contemporâneo.Palavras-chave: Democracia. Hermenêutica. Reconhecimento.

Abstract: This paper aims at presenting the challenges and tasks of contemporary constitutional-ism. Based on Ronald Dworkin, Jürgen Habermas and Axel Honneth theories, the author intends to show that hermeneutics, democracy and recognition can’t be seen as separate study and research areas but as interdependent ones. Therefore, the author tries to show, indirectly, that this approach to constitutional phenomenon is the main issue regarding contemporary constitutionalism.Key Words: Democracy. Hermeneutics. Recognition.

* Agradeço ao meu orientador prof. Dr. Phil. Axel Honneth, ao professor Dr. Christopher Zurn (University of Kentucky - USA) e ao professor Dr. Heikki Ikäheimo (Univeristy of Jyväskylä - Finlândia) pelas valiosas sugestões que foram fundamentais para a realização deste artigo.** Professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Atualmente recebeu uma licença temporária de suas atividades docentes, em função do recebebimento de uma bolsa do órgão alemão de estímulo à pesquisa Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD) e está na Alemanha desenvol-vendo o seu doutorado na universidade Johann Wolfgang Goethe – Universität Frankfurt am Main (Alemanha) sob orientação do professor Dr. Dr. Phil. Axel Honneth.

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como essa não foram ainda adequada-mente testadas na teoria da Constituição. O presente artigo pretende, então, em um primeiro momento (2 e 3) apresentar este debate contemporâneo a partir da discus-são entre Dworkin e Habermas, princi-palmente, procurando delimitar e atribuir novo papel e nova função à hermenêutica constitucional e à democracia.

Parece-me, porém, que enquanto, por um lado, a teoria habermasiana avança no sentido de uma melhor compreensão do vínculo entre democracia e direito, por ou-tro, ao centrar seus esforços nas condições de uma teoria procedimental comunicativa, essa teoria esvazia de tal forma a sua com-preensão material e ética dos direitos fun-damentais que eles passam a não estar em condições de proteger a formação da perso-nalidade e da autonomia dos cidadãos. Com a intenção de suprir este déficit surgiu no âmbito da filosofia social atual a teoria de reconhecimento que se tornou internacio-nalmente conhecida principalmente pelos trabalhos de Charles Taylor (Taylor, 2000) e das Tanner-Lectures de Axel Honneth e Nancy Fraser (Fraser e Honneth, 2003). Esta teoria parece levar a sério a crítica ha-bermasiana da visão liberal e comunitaris-ta de direito e democracia sem ao mesmo tempo abdicar de um pano de fundo ético. De uma forma indireta, portanto, pretendo com este artigo sugerir um terceiro âmbito de pesquisa da Teoria da Constituição que poderia trazer elementos teóricos adequa-dos para uma melhor compreensão do fenô-meno jurídico-consitucional a partir de uma análise imanente da teoria de Axel Honneth, a saber, o estudo das relações sociais de re-conhecimento e sua relação com os direitos fundamentais (4).

2. O tipo de interpretação constitucional contemporâneo: o método Hércules

Dworkin usa como recurso argumen-tativo para explicar a sua teoria da inter-

pretação constitucional a idéia de um ju-rista de capacidade, sabedoria, paciência e sagacidade sobre-humanas, a quem chama de Hércules (Dworkin, 1978: 105). Hércu-les aparece pela primeira vez na obra de Dworkin, no artigo Casos Difíceis (“hard cases”) (Dworkin, 1978: 81-130) tendo como rival o juiz Herbert, que aceita a teo-ria da decisão judicial e se propõe a aplicá-la em suas decisões (Dworkin, 1978: 125). Hércules aparece novamente no livro “O Império do Direito” (“Law’s Empire”) ten-do como rival o juiz Hermes que defende a interpretação das leis conforme a intenção do legislador (Dworkin, 1986).

Dworkin utiliza este artifício para explicar, passo a passo, como deveria acontecer toda a prática interpretativa. De qualquer forma, Dworkin reconhece que um juiz real não poderia realizar sua tarefa da mesma forma que Hércules, mas pro-põe que ele seja um exemplo a ser seguido (Dworkin, 1978: 129-30). Dworkin supõe que Hércules seja juiz de alguma jurisdição norte-americana representativa. Considera que ele aceita as principais regras não con-troversas que constituem e regem o direito em sua jurisdição. Em outras palavras, ele aceita que as leis têm o poder geral de criar e extinguir direitos jurídicos, e que os juí-zes têm o dever geral de seguir as decisões anteriores de seu tribunal ou dos tribunais superiores, cujo fundamento racional apli-ca-se ao caso em juízo (Dworkin, 1978: 105): “[Hércules] Utiliza seu próprio juízo para determinar que direitos têm as partes que a ele se apresentam. Quando esse juízo é emitido, nada resta que se possa submeter a suas convicções ou à opinião pública.(...) Contudo, quando Hércules fixa direitos ju-rídicos, já levou em consideração as tradi-ções morais da comunidade, pelo menos do modo como estas são capturadas no conjun-to do registro institucional que é sua função interpretar” (Dworkin, 2002: 196).

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Para Hércules, o direito real con-temporâneo consiste nos princípios que proporcionam a melhor justificativa dis-ponível para as doutrinas e dispositivos do direito como um todo. Ele guia sua inter-pretação pelo princípio da integridade na prestação jurisdicional, que o força a ver, na medida do possível, o direito como um todo coerente e estruturado (Dworkin, 1986: 373). Hércules deve descobrir a sé-rie coerente de princípios capaz de justifi-car a história institucional de um determi-nado sistema de direitos, do modo como é exigido pela eqüidade e deve ampliar sua teoria de modo a incluir a idéia de que uma justificação da história institucional pode apresentar uma parte dessa história como um erro (Dworkin, 1978: 121).

O caso “saiu darter” tem em sua ori-gem uma lei. A sua decisão depende da melhor interpretação da lei, a partir de um texto legislativo específico. Entretanto, em muitos casos, o direito dos E.U.A. não se fundamenta em uma lei, mas em decisões anteriores tomadas por tribunais. Esses ca-sos são chamados pela doutrina norte-ame-ricana de “common-law cases” (Dworkin, 1986: 238)1. Nesses casos, o pleiteante (“plaintiff”) do caso argumenta que o juiz do seu caso deve seguir as normas estabe-lecidas nesses casos anteriores, os quais, se-gundo alega, exigem um veredicto que lhe seja favorável (Dworkin, 1986: 23-24).

Juristas britânicos e norte-ameri-canos falam da doutrina do precedente (“doctrine of precedent”), segundo a qual decisões de casos anteriores muitos seme-lhantes a novos casos devem ser repetidas nestes últimos. Há, contudo, uma distinção entre os juristas (Dworkin, 1986: 24-25): (a) doutrina estrita: obriga os juízes a se-guir decisões anteriores de alguns outros tribunais, em geral superiores, mesmo acreditando que essas decisões estão er-radas. Os juízes norte-americanos negam

que os tribunais de hierarquia comparável tenham essa obrigação e a maioria dos ju-ristas americanos pensa que os tribunais federais inferiores são absolutamente obri-gados a seguir as decisões já tomadas pela Suprema Corte, mas esse ponto de vista é contestado por alguns; (b) doutrina atenu-ada: exige apenas que o juiz atribua algum peso a decisões anteriores sobre o mesmo problema, e que ele deve segui-las a menos que as considere erradas o bastante para modificar a presunção inicial a seu favor. As diferenças de opinião entre essas dou-trinas explicam por que certos processos são polêmicos. Num mesmo caso, diferen-tes juízes podem divergir sobre o ponto de serem, ou não, obrigados a seguir alguma decisão tomada no passado, envolvendo a mesma questão de direito com que se de-pararam no momento. Qualquer que seja o ponto de vista dos advogados sobre a na-tureza e a força do precedente, a doutrina somente se aplica a decisões passadas que apresentem suficiente semelhança com o caso atual para serem consideradas, no dizer dos advogados: “pertinentes” (“in point”). O contrário de “pertinente” seria o tipo de caso chamado de “discriminável” (“distinguishable”), ou seja, um caso que seja diferente do caso atual em algum as-pecto que isenta da aplicação da doutrina do precedente. Às vezes o debate se limita a discutir se os casos são pertinentes (“in point”) ou “discrimináveis” (Dworkin, 1986: 24-26).

O caso “McLoughlin” é um típico “common-law case”. Para entender me-lhor os argumentos utilizados neste caso, é necessário saber que os juízes britânicos e norte-americanos seguem um princípio jurídico (“common-law principle”) que considera as pessoas que agem com ne-gligência responsáveis somente por danos razoavelmente previsíveis, causados a ter-ceiros, danos que uma pessoa sensata po-

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deria antever se refletisse sobre a situação (Dworkin, 1986: 26). O marido e os quatro filhos da Sra. “McLoughlin” foram feridos em um acidente de carro na Inglaterra. Ao ser avisada, foi ao hospital, teve um colap-so, e mais tarde processou os envolvidos, exigindo indenização por danos morais. O seu advogado chamou a atenção para várias decisões anteriores dos tribunais ingleses que sustentavam as suas teses. Em todos esse casos, porém, o pleiteante viu o aciden-te acontecer ou ali chegou logo em seguida. O advogado da Sra. “McLoughlin” utilizou esses casos como precedentes, ou seja, de-cisões que haviam incorporado ao direito a norma jurídica segundo a qual pessoas na situação dela têm o direito a serem indeni-zadas (Dworkin, 1986: 23-24).

O caso em tela é um exemplo da si-tuação descrita anteriormente: o debate se limitou em definir se o fato de a Sra. “McLoughlin” não ter presenciado o fato tornava o precedente discriminável (“dis-tinguishable”) ou não, e por conseqüência se a doutrina do precedente se aplicava ao caso (Dworkin, 1986: 26-29): (a) na pri-meira instância (“the trial judge”) o juiz foi obrigado, em virtude da doutrina do pre-cedente, a admitir que dar indenização por dano moral a parentes próximos que esta-vam na cena do acidente era razoavelmen-te previsível, porém entendeu que a Sra. McLoughlin não tinha direito por ter visto os resultados do acidente mais tarde, ou seja, ele julgou que poderia fazer uma dis-tinção (distinguish) entre os supostos pre-cedentes; (b) no tribunal de apelação (“the Court of Appeal”) foi confirmada a decisão do juiz de primeira instância, mas com um argumento diferente: era razoavelmente previsível que uma mãe, após incidente, fosse ao hospital e sofresse um colapso emocional. Esse tribunal discriminou os precedentes por uma razão diversa, por uma razão de política judiciária, ou seja,

se esse Tribunal decidisse favoravelmente, haveria um incentivo a processos de dano moral; (c) câmara dos lordes (“House of Lords”): revogou a decisão do Tribunal de Apelação e ordenou novo processo. Não foi considerado razoável o argumento de política judiciária; Para Dworkin, o direito como integridade (“law as integrity”), num caso de direito consuetudinário (“common-law case”) como o “McLoughlin”, pede ao juiz que se considere como um autor na ca-deia do direito consuetudinário (“as an au-thor in the chain of common law”). Deve considerar as decisões judiciais passadas como parte de uma longa história que ele precisa interpretar e continuar, mesmo que tratem apenas de problemas afins.

Dworkin, como já vimos, traça uma distinção entre as duas dimensões princi-pais desse juízo interpretativo: (a) adequa-ção e (b) justificação. Assim, a atividade pós-interpretativa do juiz (sentença) deve ser extraída de uma interpretação que se adapte aos fatos anteriores e os justifique. Porém, o direito, a exemplo da literatura, apresenta uma interação complexa entre essas duas dimensões. Hércules, então, é chamado para executar a tarefa de expor essa complexa estrutura da interpretação jurídica (Dworkin, 1986: 238-39).

Hércules deve formar sua própria opinião sobre o problema. O método Hér-cules começa por formular diversas hipó-teses que correspondem à melhor interpre-tação dos casos precedentes mesmo antes de tê-los lido (Dworkin, 1986: 240): (1) somente há direito à indenização nos casos de lesão corporal; (2) as pessoas somente têm direito à indenização por danos morais sofridos na cena de um acidente; (3) as pes-soas devem ser indenizadas por danos mo-rais quando a prática de exigir indenização beneficiasse o princípio utilitarista; (4) as pessoas têm direito à indenização por qual-quer dano que seja conseqüência direta de

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uma conduta imprudente, ainda que im-provável ou imprevisível que tal conduta viesse a resultar em tal dano; (5) as pessoas têm direito moral à indenização por danos morais ou físicos que sejam conseqüência de uma conduta imprudente, apenas quan-do esse dano for razoavelmente previsível pelo agente; (6) as pessoas têm direito mo-ral à indenização por danos razoavelmente previsíveis, desde que a sentença não im-ponha encargos financeiros pesados e des-trutivos ao agente imprudente.

Hércules rechaça de plano a hipóte-se primeira (1) por ser flagrantemente in-compatível com a história legislativa dos precedentes. As hipóteses (2) e (3) não enunciaram nenhum princípio da justi-ça (“justice”), eqüidade (“fairness”) ou devido processo legal (“procedural due process”), exigência do direito como in-tegridade, portanto não devem ser aceitos da mesma forma. Ademais, para Dworkin, os juízes devem tomar suas decisões sobre o “common law” com base em princípios, não em “políticas” (“policies”).

Dworkin afirma que os juízes não têm liberdade para elaborar regras de res-ponsabilidade não reconhecidas anterior-mente por outros precedentes, esta é uma prerrogativa do legislador. Não se adapta à idéia de comunidade de princípios o ar-gumento de que um juiz tenha autoridade para responsabilizar por danos pessoas que agem de modo que nenhum dever legal impeça sua conduta. As demais interpreta-ções (4), (5) e (6), em princípio, parecem aptas a passar muito bem nas provas ini-ciais (Dworkin, 1986: 242-44).

Na próxima etapa, Hércules deve se perguntar se alguma dessas três deve ser excluída por incompatibilidade com a to-talidade da prática jurídica de um ponto de vista mais geral. Deve confrontar cada interpretação com outras decisões jurídi-cas do passado, para além daquelas que

envolvem danos morais. O juiz que aceita o direito como integridade deve procurar argumentos que justifiquem a rede jurídica como um todo. Porém um juiz verdadeiro só poderá imitar Hércules até certo ponto, pois sua possibilidade de pesquisa a pre-cedentes é limitada (Dworkin, 1986: 245). Hércules conclui seus trabalhos e declara que, após um minucioso exame de todos os aspectos da questão, a melhor interpre-tação é a (5). Entretanto, admite que se ba-seou em sua própria opinião de que esse princípio é melhor – mais eqüitativo e justo – do que qualquer outro que seja aceitável segundo o que ele considera ser o critério de adequação apropriado (Dworkin, 1986: 258-59).

Dworkin utiliza uma série de exem-plos para demonstrar o método Hércules no caso de interpretação da lei. Como, po-rém, o objetivo do presente trabalho não é esgotar as categorias de interpretação da teoria de Dworkin e sim, apenas, situar a questão da legitimidade, se apresentará o “método Hércules” com base em um único exemplo o caso “Tenesse Valley Authority vs. Hill”, também chamado: caso do “snail darter” (Dworkin, 1986: 20-23 e 313-47). A escolha deste caso teve como argumento decisivo o fato de que neste, mais do que nos outros, fica clara a amplitude dos po-deres que Dworkin entende que o juiz deve ter.

Em 1973, durante um grande período de preocupação nacional com a preserva-ção das espécies, o Congresso dos Estados Unidos promulgou a lei das espécies ame-açadas. O ministro do Interior passou, com a promulgação desta lei, a ter poderes para designar as espécies que, em sua opinião, estariam correndo risco de extinção devido à destruição de seus “habitats”. Todos os órgãos e departamentos do governo esta-vam obrigados a tomar as medidas neces-sárias para assegurar que as ações autori-

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zadas, financiadas ou executadas por eles não ponham em risco a continuidade de tais espécies ameaçadas.

Um grupo de defesa da ecologia do Tennessee vinha se opondo aos projetos de construção de uma barragem da adminis-tração do vale do Tennessee, não devido a alguma ameaça às espécies, mas porque esses projetos estavam alterando a geo-grafia da área. Esse grupo descobriu que uma barragem quase concluída (que já tinha consumido mais de cem milhões de dólares) ameaçava destruir o único habi-tat do “snail darter”, um peixe de 7,5 cm, que segundo Dworkin, “é destituído de beleza, interesse biológico ou importância ecológica especiais” (Dworkin, 1999: 26). Conseguiram, então, convencer o ministro a incluir este peixe entre as espécies amea-çadas de extinção de forma que a barragem teve sua construção suspensa. A adminis-tração do vale argumentou que a lei se re-feria ao início de projetos e não a projetos que estão quase concluídos.

Antes de analisar o caso, segundo o método Hércules, Dworkin enfrenta o que considera uma objeção fundamental con-tra a sua teoria: que Hércules não deve se guiar por suas opiniões pessoais pelo sim-ples fato de que esta conduta desconhece o princípio de que o juiz deve se guiar pe-las opiniões, intenções do legislador. Para enfrentar essas objeções, Dworkin cria a figura do juiz Hermes que: “[...] é quase tão arguto quanto Hércules e igualmente paciente, e também aceita o direito como integridade assim como aceita a teoria da intenção do locutor na legislação. Acredita que a legislação é comunicação, que deve aplicar as leis descobrindo a vontade comu-nicativa dos legisladores, aquilo que eles estavam tentando dizer quando votaram a favor da Lei das Espécies Ameaçadas, por exemplo. Já que Hermes é autoconsciente em tudo que faz, irá dar-se tempo para re-

fletir sobre cada uma das escolhas que terá de fazer para colocar em prática a teoria da intenção do autor” (Dworkin, 1999: 382).

Dworkin se valerá de Hermes para provar que a teoria da intenção do legis-lador não se sustenta, principalmente, sob um viés de análise realista do processo le-gislativo, que evidencia o fato de que não temos como identificar quem a representa. Devemos considerar como representantes da intenção do legislativo: os parlamen-tares que votaram a favor ou aqueles que votaram contra o projeto? Os lobistas, as pessoas que mandaram cartas aos parla-mentares, o Presidente que assinou o pro-jeto, ou os funcionários que elaboraram o projeto inicial? Dworkin aprofunda essas críticas com argumentos psicológicos que tornam a empreitada do juiz Hermes mais complexa, pois não temos como identificar qual é realmente a intenção de uma pes-soa. Hermes, então, acaba, por força des-cobrindo que deve aceitar os métodos que inicialmente descartou, ou seja, aqueles elaborados e aplicados pelo juiz Hércules (Dworkin, 1986: 317-337) e nesse ponto: “Podemos deixar Hermes. Seu novo méto-do precisa de uma minuciosa elaboração, mas ela não será feita por ele, uma vez que se tornou gêmeo de Hércules” (Dworkin, 1986: 337).

Hércules entende que as leis preci-sam ser lidas de algum modo que decorra da melhor interpretação do processo legis-lativo como um todo. Para ler a lei Hér-cules, usa, em grande parte, as mesmas técnicas de interpretação que utiliza para decidir casos de “common law”. Tratará o Congresso como um autor anterior a ele na cadeia do direito, embora um autor com poderes e responsabilidades diferentes dos seus e, fundamentalmente, vai encarar seu próprio papel como o papel criativo de um colaborador que continua a desenvol-ver, do modo que acredita ser o melhor,

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o sistema legal iniciado pelo Congresso (Dworkin, 1986: 313). Ele irá se pergun-tar qual interpretação da lei mostra mais claramente o desenvolvimento político que inclui e envolve essa lei. Seu ponto de vista sobre como a lei deve ser lida depen-derá em parte daquilo que certos congres-sistas disseram ao debatê-la. Mas depen-derá, por outro lado, da melhor resposta a dar a determinadas questões políticas, por exemplo: até que ponto o Congresso deve submeter-se à opinião pública em questões do tipo do caso em tela, e se seria absurdo, em termos políticos, proteger uma espécie que, na opinião de Dworkin, é tão insigni-ficante à custa de tanto capital (Dworkin, 1986: 313).

Esse é o ponto crucial da descrição do método Hércules que nos levou a esco-lher este exemplo. Quando Dworkin fala da distinção entre princípio e “política” (“policy”), ele diz que o juiz não poderá se guiar por argumentos de “política” somen-te de princípio (em sentido estrito). Porque então, neste caso, Dworkin aceitou que Hércules utilizasse um argumento de políti-ca para fundamentar sua decisão? Dworkin responde da seguinte forma: “Como a de-cisão política que Hércules está agora in-terpretando é uma lei, e não uma série de decisões judiciais do passado, as questões de política são pertinentes a sua decisão sobre quais direitos se devem considerar terem sido criados pela lei” (Dworkin, 1999: 378, nota de rodapé 1). Logo, quan-do Hércules interpretar uma lei, ele poderá utilizar argumentos de política para deter-minar quais os direitos devem ter sido cria-dos por lei. Inclusive ele precisa apoiar-se em seu próprio julgamento ao responder a tais questões, sem dúvida, não por pensar que suas opiniões sejam automaticamente corretas, “mas porque ninguém pode res-ponder de modo conveniente a nenhuma questão, a menos que confie, no nível mais

profundo, naquilo que acredita” (Dworkin, 1986: 314). A partir de Dworkin, se pode observar que o juiz acaba decidindo ques-tões de justiça social em função da juridi-ficação das relações sociais. Porém essas questões acabam sendo decididas pelo juiz de forma individual com base nas suas concepções de forma de vida para uma determinada comunidade. Ainda que ele procure reconstruir uma comunidade ideal, essa reconstrução é sempre a expressão da opinião de um indivíduo.

Dworkin aplica este método, o mé-todo Hércules, ainda, à interpretação cons-titucional. Em linhas gerais, o seu método aqui segue passos semelhantes àqueles já explanados. Hércules é guiado por um senso de integridade constitucional. Ten-ta trazer o histórico constitucional em sua melhor luz e seus argumentos se baseiam em suas próprias convicções sobre justiça e eqüidade e na correta relação entre elas (Dworkin, 1986: 397-98). Hércules, po-rém, não é um historicista, nem defende alguma idéia de direito natural. Ele não acha que a Constituição é apenas o que de melhor produziria a teoria da justiça e da eqüidade abstratas como uma teoria ideal. Acredita, porém, que a Constituição norte-americana consiste na melhor interpreta-ção possível da prática e do texto constitu-cionais norte-americanos como um todo, e seu julgamento sobre qual é a melhor inter-pretação é sensível à grande complexidade das virtudes políticas subjacentes a esta questão. No que são pertinentes à questão da soberania, seus argumentos agregam a convicção popular e a tradição nacional (Dworkin, 1986: 398-99). Hércules rejeita a idéia, que entende ser rígida, de que os juízes devem subordinar-se às autoridades eleitas, independentemente da parte do sis-tema constitucional em questão. Entende que a interpretação de algumas disposições inclui a proteção da democracia, porém en-

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tende que outras disposições defendem o indivíduo e a minoria da vontade da maio-ria. Ao decidir estas disposições, não irá ceder ao que os representantes da maio-ria considerarem o que é certo (Dworkin, 1986: 398-99). Quando as questões em jogo forem, fundamentalmente, questões de políticas (“policies”) e não de princí-pios (“principles”), Hércules se recusa a substituir a decisão do legislador pela sua. Se os argumentos tratarem das melhores estratégias quanto a satisfazer inteiramen-te o interesse coletivo por meio de metas, tais como prosperidade, a erradicação da pobreza ou o correto equilíbrio entre eco-nomia e preservação. Nos momentos em que Hércules declara a inconstitucionali-dade de alguma lei ou ato o faz a serviço de seu julgamento mais consciencioso so-bre o que é a democracia e a Constituição, levando em consideração que ela é a mãe e guardiã da democracia (Dworkin, 1986: 398-400).

Dworkin apresenta ainda um argu-mento que rejeita a concepção que ele o chama de argumento da democracia. Este consiste na idéia de que as decisões políti-cas devem ser tomadas por pessoas eleitas pelo povo. Este argumento inclui no seu conceito de decisão política tanto a idéia de princípio em sentido estrito quanto à de política (“policy”). Portanto não seriam consideradas corretas as decisões de um juiz que recorresse a argumentos de prin-cípio, muito menos aquelas que recorres-sem a argumentos de política (“policy”). Dworkin entende, porém, que o apelo à de-mocracia somente vale se apelamos para a premissa cética: “Esse simples apelo à de-mocracia é bem-sucedido quando se aceita a premissa cética. Sem dúvida, se as pes-soas não têm direitos contra a maioria e se a decisão política não vai além da questão de saber que preferências serão dominan-tes, então a democracia realmente oferece

uma boa razão para se deixar essa decisão ao encargo de instituições mais democrá-ticas do que os tribunais, mesmo quando essas instituições fizerem escolhas que os próprios juízes detestem” (Dworkin, 2002: 219-20). Dworkin aplica então ao argu-mento democrático as mesmas objeções que fez aos métodos psicológicos e semân-ticos para então concluir que o juiz deve se perguntar sobre quais princípios poderia presumir que um legislador endossou ao votar a favor da lei, de modo que a decisão num caso controverso pudesse ser gover-nada por esses princípios: “Se apenas um conjunto de princípios for compatível com a lei, então um juiz que siga a concepção centrada nos direitos deve aplicar esses princípios. Se mais de um é compatível, a questão de qual interpretação decorre mais “naturalmente” da lei como um todo exige uma escolha entre maneiras de caracteri-zar a lei que reflita a própria moralidade do juiz” (Dworkin, 2001: 25). Aqui não fica claro o que Dworkin pretende afirmar com “mais naturalmente” ou ainda com a expressão “que reflita a própria moralidade do juiz”. Entretanto Dworkin não fornece mais elementos para uma interpretação mais precisa. Dworkin critica ainda o ar-gumento democrático sob dois prismas (a) o da exatidão e (b) o da (eqüidade): (a) ele se pergunta se é razoável que se pen-se que uma decisão legislativa tem maior probabilidade de ser mais exata que uma decisão judicial. E ele mesmo responde di-zendo que não. Segundo Dworkin há mais argumentos no sentido de se perceber que os juízes têm maiores técnicas e preparo para dar respostas certas do que os legisla-dores ou a massa de cidadãos que elegem os legisladores. Os legisladores estão mais vulneráveis a pressões que os juízes e, por-tanto, gozam de uma posição institucional mais segura para fundamentar suas deci-sões, questões sobre direitos (Dworkin,

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2001: 26-27). (b) há razões de eqüidade além das razões de exatidão. O legislativo dificilmente tomará uma decisão contrária a um setor influente politicamente, já o ju-diciário não tem essa pressão direta, tendo em vista que os setores da sociedade não podem “se vingar” do juiz, não votando nele. Por decorrência, Dworkin entende que se pode afirmar que há mais chances de um juiz agir de forma equânime do que o legislador. Dworkin sustenta finalmente que aqueles que defendem o argumento democrático falham porque supõem que o público faz distinção entre as decisões políticas tomadas pelo legislativo e aque-las tomadas pelos tribunais, e acreditam que as primeiras são legítimas e as outras não. Ele entende que o senso público de ilegitimidade desapareceria se os juristas e outras autoridades reconhecessem que tais decisões são compatíveis com a democra-cia e o Estado de direito constitucional.

Para Dworkin todos os temas são propostos de acordo com o filtro de um procedimento argumentativo em que o juiz tem um papel central. A idéia luhmannia-na de sistema autopoiético acaba tendo Dworkin como um grande aliado, pois, a partir da teoria de Dworkin, se percebe que direito é o que o juiz considera um meio adequado a um fim. Este meio, por sua vez, somente é direito se o juiz realiza a sua determinação dentro da sua compe-tência, ou seja, somente enquanto juiz de direito ele pode determinar no caso con-creto o direito (Luhmann, 1997: 203 e ss.). Hércules seria, portanto, o símbolo da ine-vitabilidade da liberdade de interpretação judicial – quando não da geração do direito pelo juiz. Hércules é um exemplo de que, na teoria de Dworkin, o juiz interpreta o papel central. Mais do que isso, o juiz atua como um intérprete, não só da lei, mas do “ethos” de uma comunidade de princípios. Dworkin sustenta uma espécie de interpre-

tação judicial monológica a partir da qual definir os princípios e as formas de vida de uma comunidade não é tarefa de uma es-fera pública, de um debate público em que todos os atingidos possam se manifestar e se entender ao mesmo tempo como desti-natários e autores das leis2.

3. Hermenêutica constitucional e o papel da democracia: a crítica habermasiana ao método Hércules

A tensão entre facticidade e valida-de é imanente ao direito e se manifesta no âmbito da jurisdição como tensão entre o princípio da segurança jurídica e o da pretensão de tomar decisões corretas. Ao princípio de segurança jurídica estão aco-plados os problemas de justificação ou va-lidade e aplicação da ordem jurídica. Se, de um lado, ele exige que as decisões jurí-dicas sejam tomadas de forma consistente no quadro da ordem jurídica estabelecida (aplicação), de outro, a pretensão à legiti-midade da ordem jurídica implica decisões justificadas racionalmente (justificação ou validade). O problema está em como cor-relacionar esses dois momentos da decisão judicial, ou em outras palavras: garantir simultaneamente a segurança jurídica e a correção.

Habermas reconstrói a opinião de Dworkin como uma tentativa de solução deste problema. Em um primeiro momen-to, Habermas tenta precisar a tese que Dworkin sustenta acerca da relação do di-reito com a moral. Dworkin entende que o direito positivo assimilou inevitavelmente conteúdos morais. Habermas aceita esta tese, mas a reconstrói segundo a teoria dis-cursiva do direito, ou seja, o direito entra em contato com a moral através do proces-so de formação democrática da legislação. Para melhor compreensão do argumento do autor, deve-se relembrar que Habermas sustenta o argumento de que na sociedade

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moderna se atingiu o nível de fundamen-tação pós-tradicional, logo a separação to-tal entre direito e moral deve estar sempre pressuposta (Habermas, 1998: 250 e 256).

Nesse sentido sua posição se asse-melha muito com a de Niklas Luhmann. Os conteúdos morais são reconstruídos na forma de equivalentes funcionais para o sistema jurídico (Neves, 1996: 95). No caso de Dworkin, isso significa dizer que os conteúdos morais se transformam em princípios. A diferença entre a posição de Luhmann e Habermas está no fato de que Habermas sustenta que a moral como me-dida para o direito correto tem seu lugar “na formação política da vontade do legis-lador e na comunicação política da esfera pública” (Habermas, 1997: 256). Logo, di-ferentemente de Luhmann, Habermas es-tabelece uma relação entre a formação dis-cursiva do direito e sua justificação como critério para decisões. A legislação depen-de de uma produção legítima do direito. Por isso que no âmbito da aplicação não se pode sustentar uma fundamentação “moral de decisões”. Na verdade, pouco “importa o modo como Dworkin entende a relação entre direito e moral: sua teoria exige uma compreensão deontológica de pretensões de validade jurídicas” (Habermas, 1997: 256). Ou seja, a teoria de Dworkin, na di-mensão de aplicação do direito, deve-se curvar às exigências do código binário do direito: “O discurso jurídico é independen-te da moral e da política, porém somente no sentido de que também os princípios morais e as finalidades políticas podem ser traduzidos para a linguagem neutra do direito e engatadas no código jurídico. Entretanto, por trás dessa uniformidade do código oculta-se um complexo senti-do de validade do direito legítimo, o qual explica porque, no caso de decisões sobre princípios, os discursos jurídicos admitem argumentos de origem extralegal, portanto

considerações de tipo pragmático, ético e moral, introduzindo-os em argumentos ju-rídicos” (Habermas, 1997: 257).

A partir desse prisma Habermas sustenta que Dworkin captou “o nível de fundamentação pós-tradicional do qual o direito positivo depende” (Habermas, 1997: 259). Essa concepção que Habermas utiliza para caracterizar a fundamentação do direito moderno por vezes parece retor-nar à idéia luhmanniana de que na socie-dade moderna o sistema jurídico se dife-renciou por completo dos outros sistemas. De fato, no nível de aplicação do direito, Habermas e Luhmann não têm diferenças substanciais. As suas diferenças aparecem no âmbito da justificação dos critérios de decisão. Luhmann sustenta que ambas as tarefas foram subsumidas em um sistema autopoiético: o sistema jurídico. Habermas entende que o nível de justificação dos critérios não está disponível ao sistema jurídico. Ele está vinculado a um proces-so complexo de formação democrática da legislação que está situado “fora” do sis-tema jurídico. Este processo depende de uma esfera pública desenvolvida que não se diferenciou na forma de sistema. Por-tanto Habermas entende que o processo de diferenciação do sistema jurídico não é um processo que aconteceu no sistema socie-dade como sustenta Luhmann. Na verdade ele faz parte de um processo de diferencia-ção interna do sistema político. Este siste-ma se diferenciou internamente na forma do princípio da divisão dos poderes. Assim a função de aplicação das leis foi relegada ao sistema jurídico e o processo de justi-ficação e elaboração de critérios de deci-são não está a sua disposição (Habermas, 1998: 285): “Ora, a prática de decisão está ligada ao direito e à lei, e a racionalidade da jurisdição depende da legitimidade do direito vigente. E esta depende, por sua vez, da racionalidade de um processo de

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legislação, o qual, sob condições da divi-são de poderes no Estado de direito, não se encontra à disposição dos órgãos da apli-cação do direito” (Habermas, 1997: 297).

Segundo a interpretação Haberma-siana da teoria de Dworkin, a utilização dos princípios no processo de aplicação do direito só é possível, porque eles foram in-seridos como critérios de decisão, a partir do processo democrático de formação da legislação. Ao se transformarem em jurí-dicos, esses critérios adquirem um caráter deontológico. A constitucionalização dos direitos humanos seria um exemplo deste fato. Portanto Habermas não aceita que surjam “novos” princípios extraídos uni-camente da necessidade de um processo de aplicação (Habermas, 1998: 250, 256 e ss.). Para chegar a uma tal conclusão, Ha-bermas precisa “domesticar” e “corrigir” alguns conceitos da teoria de Dworkin a fim de que esta seja reconstruída no marco de uma teoria discursiva. Somente desta forma a teoria de Dworkin se liberta de uma tendência à legitimação pelo proce-dimento. De fato sem estas modificações, a teoria de Dworkin pode ser reconstruí-da a partir da teoria de Niklas Luhmann como procurei demonstrar em outra oca-sião (Saavedra, 2005), pois as dimensões de justificação e aplicação se fundem em um sistema (Habermas, 1998: 277). A pri-meira correção se direciona ao juiz mítico de Dworkin: Hércules. Dworkin entrega o problema da segurança jurídica e da preten-são de legitimidade do direito a uma teoria reconstrutiva do direito com pretensões fortes. Como já vimos, para realizar esta “empreitada” Dworkin deve apelar para um juiz irreal com as forças sobrenaturais de um Hércules. Porém Hércules deve li-mitar a sua tarefa a uma reconstrução do direito vigente e não a uma construção própria do legislador político (Habermas, 1998: 260).

A sua teoria reconstrutiva deve ser suficiente para determinar a “única respos-ta correta para cada caso” conciliando re-construções do passado com pretensões à aceitabilidade racional no presente. Haber-mas livra Hércules de uma conotação ide-ológica a partir de sua reafirmação apenas da idéia reguladora nele incorporada “uma vez que no direito vigente são encontrá-veis indícios históricos que permitem uma reconstrução racional” (Habermas, 1997: 266-67). Tomar Hércules como uma idéia guia somente se torna factível no momen-to em que o inserimos em uma realidade dada de um Estado de direito democráti-co em que existe um direito constitucional que delimita a atuação do juiz. Somente a partir desta contextualização pressuposta, a teoria de Dworkin se despede de uma prática jurisdicional com pretensões meta-físicas: “[...] as idealizações embutidas na teoria de Hércules são deduzidas de uma idéia reguladora que não é talhada direta-mente conforme o problema da raciona-lidade, a ser solucionado pela jurisdição, uma vez que deriva de uma autocompre-ensão normativa das ordens do Estado de direito, inscritas na realidade constitucio-nal. A obrigação do juiz, de decidir o caso singular à luz de uma teoria que justifique o direito vigente como um todo a partir de princípios, é reflexo de uma obrigação precedente dos cidadãos, confirmada atra-vés do ato de fundação da constituição, de proteger a integridade de sua convivência, orientando-se por princípios de justiça e respeitando-se reciprocamente como mem-bros de uma associação de livres e iguais” (Habermas, 1997: 268).

Dessa forma, deve-se diferenciar en-tre os discursos de fundamentação e discur-sos de aplicação. Enquanto que as regras têm uma adequação direta, ou seja, dado o fato se dá a regra. Os princípios passam a integrar um sistema de validade “prima

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facie” de tal modo que, num discurso de aplicação, é preciso examinar se eles po-dem encontrar aplicação numa situação concreta ainda não prevista no processo de fundamentação. O fato de a norma valer “prima facie” significa que ela foi funda-mentada de modo imparcial. Para que se chegue a uma decisão válida, ela deve ser aplicada de modo imparcial. O que passa a valer como fundamentação neste caso é a adequação de uma norma à determinada situação. Só sabemos qual a norma que é aplicável a determinado caso quando se consegue referir todas as características relevantes de uma descrição da situação a normas aplicáveis. Assim quando se fala de colisão de princípios, o que está em jogo não é a validade da norma, e sim a sua adequação a uma circunstância de fato. Po-rém aqui não se resolveu ainda o problema da segurança jurídica. Para solucionar este problema, Habermas novamente insere a teoria de Dworkin dentro de um pano de fundo que garante uma determinação para a ação do juiz. Ao invés de um ideal a ser seguido, se adota um paradigma que será compartilhado pelos especialistas do direi-to e todos os demais parceiros do direito. O pano de fundo pode ser o Estado Liberal burguês, ou o Estado social, por exemplo. Estes paradigmas fogem do risco de trans-formarem-se em ideologias se mantive-rem-se “abertos”. Habermas sustenta esta abertura a partir da “compreensão proce-dimentalista do direito”. Se esses paradig-mas se fecham à história, à possibilidade de mudança, eles se coagulam em ideologias. Os paradigmas fechados se estabilizam através de “monopólios de interpretação, judicialmente institucionalizados, e que podem ser revistos internamente, somente de acordo com medidas próprias” (Haber-mas, 1997: 266-67).

Essa concepção implode o princí-pio monológico que Dworkin aplica ao

juiz, em particular, o seu juiz Hércules. O princípio da integridade que Dworkin sustenta é reinterpretado aqui a partir do princípio do discurso e dessa forma liber-ta Hércules de sua vida de eremita. Com esse passo Hércules rompe o “véu da ig-norância” e passa a enxergar que o prin-cípio da integridade que ele sustenta em suas decisões não aponta para si mesmo, mas sim para “sociedade aberta dos intér-pretes da constituição”. Ele descobre que, apesar dos poderes sobrenaturais, não tem um acesso privilegiado à verdade (e não poderia ser diferente! Hércules não é um Deus, ele é um “semideus”). Logo ele deve se contentar em ter que depender do diálo-go e da ajuda de seus concidadãos para se aproximar da verdade. Portanto Dworkin deve centrar as exigências feitas à teoria do direito neste ideal político “ao invés de apoiá-las no ideal da personalidade de um juiz, que se distingue pela virtude e pelo acesso privilegiado à verdade” (Habermas, 1997: 278).

A “correção” ou “a verdade” de argu-mentos para uma teoria procedimentalista de matriz discursiva significa “aceitabili-dade racional”. Esta teoria aceita os pres-supostos do pensamento pós-metafísico e se guia pela idéia de que a única resposta correta não pode ser explicada com au-xílio de uma teoria, por melhor que seja (Habermas, 1990). A prática da argumen-tação tem como característica principal a intenção de conseguir o consenso, o assen-timento de todos os possíveis atingidos. Esta deve ocorrer em um ambiente livre de coerção que possibilite que venham à tona os melhores argumentos. Assim é preciso que se assuma a perspectiva intersubjetiva ampliada no nível da primeira pessoa do plural. Isso só é possível a partir de uma divisão de trabalho entre discursos de fun-damentação e discursos de aplicação. Nos discursos de aplicação, as normas “supos-

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tas como válidas, referem-se sempre aos interesses de todos os possíveis atingidos”. Porém as formas de argumentação que vão sustentar qual norma é aplicável ao caso dependem apenas das partes envolvidas no processo judicial. O processo de argu-mentação está organizado de forma que “as interpretações de casos singulares, que são feitas à luz de um sistema coerente de normas, dependem da forma comunicativa de um discurso constituído de tal maneira (...) que as perspectivas dos participantes e as perspectivas dos parceiros do direito, representados através de um juiz impar-cial, podem ser convertidas umas nas ou-tras” (Habermas, 1997: 285). A teoria de Dworkin, portanto, revela grandes avan-ços, mas precisa ser “retificada” no marco da teoria discursiva de Habermas.

Entretanto alguns pontos permane-ceram obscuros de forma que é necessária uma complementação dos resultados ob-tidos até agora. Habermas então passa a analisar a tese do caso especial de Robert Alexy. Habermas entende que esta teoria advoga uma “falsa subordinação do direito à moral, porque ainda não está totalmente liberta de conotações do direito natural” (Habermas, 1997: 291). Isso acontece em função de três motivos: (1) as partes podem perseguir seus próprios interesses; (2) Ale-xy não consegue superar a tese da indeter-minação de discursos jurídicos; (3) “uma racionalidade ilimitada da decisão jurídica pressuporia a racionalidade da legislação”. Esta última objeção é fundamental para a análise que estamos desenvolvendo. Ques-tões de validade dizem respeito à qualida-de da norma e elas atuam de forma binária. Não existe mais válido e menos válido. Dessa forma, para que Alexy consiga fugir dessa objeção, ele precisa enfrentar a tarefa de reconstrução que Dworkin impôs à sua teoria. A divisão de tarefas entre discursos de aplicação e discursos de fundamenta-

ção volta a adquirir um posto fundamental na teoria do direito. Portanto discursos de fundamentação e legitimidade do direito adquirem o mesmo sentido: “Quando nos apoiamos numa teoria procedimental, a legitimidade de normas jurídicas mede-se pela racionalidade do processo democrá-tico da legislação política. [...] O sistema dos direitos [...] é interpretado e configura-do no processo democrático da legislação e em processos de aplicação imparcial do direito. [...] O conteúdo da tensão entre a legitimidade e a positividade do direito é controlada na jurisdição como um proble-ma da decisão correta e, ao mesmo tempo, consistente” (Habermas, 1997: 275).

Dessa forma Habermas fundamenta o fato que no âmbito da aplicação, o direito deve guiar-se apenas pelo direito. Ao inse-rir sua teoria no âmbito processual de apli-cação do direito a sua teoria dos discursos de aplicação adquire feições características luhmanianas. A aplicação do direito deve ser imparcial, a “auto-reflexão institucio-nalizada do direito serve à proteção indivi-dual do direito sob o duplo ponto de vista da justiça no caso singular, bem como da uniformidade da aplicação do direito e do aperfeiçoamento do direito” (Habermas, 1997: 294). Portanto, à medida que o “dis-curso jurídico nasce do próprio processo, deve ficar isento de influências externas” (Habermas, 1997: 295).

4. Reconhecimento e Direitos Fundamen-tais: a contribuição de Axel Honneth

A crítica de Habermas a Dworkin mostrou que a hermenêutica jurídica deve reconhecer-se limitada por um processo democrático de formação da legislação. Habermas procura mostrar que os discur-sos de aplicação envolvem apenas a ade-quação das normas jurídicas a casos con-cretos. Definir quais devem ser as normas válidas em uma determinada sociedade

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envolve, por outro lado, um complexo processo de debate público que não pode ser realizado pelo poder judiciário, pois os discursos de justificação e legitimidade do direito são função de uma esfera pública livre. Porém, o próprio Habermas sustenta que uma sociedade democrática depende da efetividade dos direitos fundamentais (Habermas, 2003: 369) e da existência de relações sociais de reconhecimento (Ha-bermas, 1999: 237-276). Habermas, po-rém, vincula o conceito de reconhecimento de tal forma à sua ética do discurso que a simples participação livre na esfera públi-ca parece ser suficiente para que as pessoas tenham preenchidas as suas expectativas de reconhecimento. Honneth entende que a expectativa de reconhecimento envolve uma série de elementos morais e éticos que não estão sendo levados em conta por Ha-bermas (Honneth, 2004: 102).

Honneth procura então, a partir da re-construção das idéias de Mead e do jovem Hegel, delimitar o pano de fundo teórico sobre o qual ele pretende desenvolver a sua própria teoria da sociedade. A interpreta-ção que Honneth faz da teoria destes au-tores deixa claro que uma teoria da socie-dade como aquela que Honneth pretende desenvolver deve partir do princípio que as relações de reconhecimento contêm pre-tensões normativas na sua estrutura, que possibilitam o esclarecimento da mudan-ça social. Ambos os autores identificaram uma ligação entre auto-relacionamento e reprodução da vida social, que está vin-culada estruturalmente com as relações de reconhecimento. Por isso, a dinâmica do desenvolvimento histórico moral da socie-dade deve ser entendida como uma luta por reconhecimento (Honneth, 2003: 148).

Porém somente nos capítulos 5 e 6 do livro Kampf um Anerkennung o leitor encontra de forma explícita uma explica-ção sistemática da teoria da sociedade de

Honneth. Nestes dois capítulos Honneth procura explicar como, no seu entendi-mento, surge e está constituída estrutura tripartide das relações de reconhecimento. Honneth, porém, não quer apresentá-la de forma puramente teórica e, portanto, pro-cura conferir plausibilidade às suas afirma-ções teóricas comparando-as com os estu-dos empíricos e pscicanalíticos de Donald W. Winnicott. Em um primeiro momento, Honneth pretende apresentar a dimensão das relações de reconhecimento do amor, que estão ancoradas estruturalmente na di-mensão da natureza afetiva e dependende da personalidade humana.

Honneth encontra os primeiros ele-mentos da sua teoria do reconhecimento na categoria da Dependência Absoluta de Winnicott. Esta categoria designa a pri-meira fase do desenvolvimento infantil, na qual tanto a mãe quanto o bebê se encon-tram de tal forma ligados que surge uma espécie de relação simbiótica entre eles. A carência e a dependência total do bebê e o direcionamento completo da atenção da mãe para a satisfação das necessidades da criança fazem com que entre eles não haja nenhum tipo de limite de indivualidade e ambos se sintam como unidade (Honneth, 2003: 160 ss.). Aos poucos, com o retorno gradativo aos afazeres da vida diária, este estado de simbiose vai se dissolvendo, a partir de um processo de amplicação da independência de ambos. Com a volta a normalidade da vida, a mãe não está mais em condições de satisfazer as necessidades da criança imediatamente.

A criança, então em média com 6 meses de vida, precisa se acostumar com a ausência da mãe. Essa situação estimula na criança o desenvolvimento de capacidades que tornam o bebê capaz de se diferenciar do seu ambiente. Winnicott atribui a essa nova fase o nome de Relativa Independên-cia. Nesta fase, a criança reconhece a mãe

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não mais como uma parte do seu mundo subjetivo e sim como um objeto com direi-tos próprios. A criança trabalha esta nova experiência por meio de dois mecanismos, que Honneth chama de Destruição e Fe-nômeno de Transição. O primeiro meca-nismo é interpretado, por Honneth, a partir dos estudos de Jessica Benjamin. Jessica Benjamin constata que os fenômenos de expressão agressiva da criança nesta fase acontecem na forma de uma espécie de luta, que ajuda a criança a reconhecer a mãe como um ser independente com rei-vindicações próprias. A mãe precisa, por outro lado, aprender a aceitar o processo de amadurecimento que o bebê está pas-sando. A partir dessa experiência de recí-proco reconhecimento, os dois começam a vivenciar também uma experiência de amor recíproco sem regredir a um estado simbiótico (Honneth, 2003: 164).

A criança, porém, só estará em con-dições de desenvolver o segundo mecanis-mo se ela tiver desenvolvido com o primei-ro mecanismo uma experiência elementar de confiança na dedicação da mãe. Então, com base nos estudos de Winnicott, Hon-neth esboça os princípios fundamentais do primeiro nível de reconhecimento. Quando a criança experimenta a confiança no cui-dado paciencioso e duradouro da mãe, ela passa a estar em condições de desenvolver uma relação positiva consigo mesma. Hon-neth chama essa nova capacidade da crian-ça de autoconfiança (Selbstvertrauen). De posse dessa capacidade, a criança está em condições de desenvolver de forma sadia a sua personalidade. Esse desenvolvimento primário da capacidade de autoconfiança é visto por Honneth como a base das relações sociais entre adultos (Honneth, 2003: 168 ss.). Honneth vai além e sustenta que o ní-vel do reconhecimento do amor é o núcleo fundamental de toda a moralidade (Hon-neth, 2003: 172 ss.). Portanto, este tipo de

reconhecimento é responsável não só pela base de auto-respeito (Selbstachtung), mas também pela base de autonomia necessária para a participação na vida pública (Hon-neth, 2003: 174). Este primeiro e funda-mental nível de reconhecimento é, portan-to, conditio sine qua non do segundo nível do reconhecimento, a saber o jurídico.

Duas perguntas guiam a análise de Honneth da segunda esfera do reconheci-mento: (1) Qual é o tipo de auto-relação que caracteriza a forma de reconhecimento do direito? (2) Como é possível que uma pessoa desenvolva uma consciência de ser sujeito de direito? A estratégia utilizada por Honneth consiste em apresentar o sur-gimento do direito moderno de tal forma, que, neste fenômeno histórico, também seja possível encontrar uma nova forma de reconhecimento. Neste ponto de sua argu-mentação, Honneth entende ser necessária uma diferenciação entre a forma como Mead determina as relações jurídicas da-quela desenvolvida por Hegel. De forma muito curiosa, Honneth parece sustentar a hipótese de que a concepção jurídica de Mead corresponderia a uma visão tradicio-nal de direito (pré-moderna) e aquela de Hegel seria uma espécie de concepção mo-derna de ordem jurídica (Honneth, 2003: 177).

Honneth pretende, portanto, demons-trar que o tipo de reconhecimento caracte-rístico das sociedades tradicionais é aquele ancorado na concepção de status: em so-ciedades desse tipo um sujeito só consegue obter reconhecimento jurídico quando ele é reconhecido como membro ativo da co-munidade e apenas em função da posição que ele ocupar nesta sociedade. Honneth reconhece transição para modernidade uma espécie de mudança estrutural na base da sociedade, à qual corresponde também uma mudança estrutural nas relações de reconhecimento: ao sistema jurídico não

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é mais permitido atribuir exceções e pri-vilégios às pessoas da sociedade em fun-ção do seu status. Pelo contrário o sistema jurídico deve combater estes privilégios e exceções. O direito então deve ser geral o suficiente para levar em consideração to-dos interesses de todos os participantes da comunidade. A partir desta constatação, a análise do direito que Honneth procura desenvolver consiste basicamente em ex-plicitar o novo caráter, a nova forma do re-conhecimento jurídico que surgiu na mo-dernidade (Honneth, 2003: 178 ss.).

Honneth procura mostrar que, junto com o surgimento de uma moral ou de uma sociedade pós-tradicional, houve também uma separação da função do direito e da-quela do juízo de valor (Wertschätzung). Na teoria de Ihrering e na tradição pós-kant de diferenciação de duas formas de Respeito (Achtung), principalmente com base na pesquisa de Darwalls, encontra elementos para determinar a diferença en-tre direito e juízo de valor. Para o direito a pergunta central é: como a propriedade constitutiva das pessoas de direito deve ser definida; no caso do juízo de valor: como se pode desenvolver um sistema de valor que está em condições de medir o valor das propriedades características de cada pessoa (Honneth, 2003: 183 ss.).

Os sujeitos de direito precisam, por-tanto, estar em condições de desenvolver sua autonomia, a fim de que possam de-cidir racionalmente sobre questões morais. Aqui Honneth tem em mente a tradição dos direitos fundamentais liberais e do direito subjetivo em condições pós-tradicionais, que indicam a direção do desenvolvimento histórico do direito (Honneth, 2003: 190 ss.). A luta por reconhecimento deveria en-tão ser vista como uma pressão, sob a qual permanentemente novas condições para a participação na formação pública da von-tade vêm à tona. Honneth esforça-se, na-

turalmente influenciado pelos escritos de Marshall, para mostrar que a história do di-reito moderno deve ser reconstruída como um processo direcionado à ampliação dos direitos fundamentais. Apesar de Honneth utilizar sempre, que ele trata do direito, um conceito problemático de direito subjetivo, a sua correta intuição pode ser encontra-da claramente quando ele explicita a sua interpretação da recontrução histórica de Marshall: os atores sociais só conseguem ter a consciência de que elas são pessoas de direito, e agir conseqüentemente, no momento em que surge historicamente uma forma de proteção jurídica contra a in-vasão da esfera da liberdade, que proteja a segura chance de participação na formação pública da vontade e que garanta um míni-mo de bens materiais para a sobrevivência (Honneth, 2003: 190). Honneth pretende sustentar, portanto, que as três esferas dos direitos fundamentais que foram diferen-ciadas historicamente são o fundamento, da forma de reconhecimento do direito, ou seja, reconhecer-se reciprocamente como pessoas jurídicas significa hoje muito mais do que no início do desenvolvimento do direito. Hoje, a forma de reconhecimento do direito contempla não só as capacidades abstratas de orientação moral, mas tam-bém as capacidades concretas necessárias para uma existência digna (Honneth, 2003: 190).

O direito deve ser visto, portanto, como a forma de expressão simbólica que, através da potencial efetivação da sua fa-culdade de entrar em juízo, permite ao ator social demonstrar que é reconhecido. Po-rém, mesmo assim permanece sem respos-ta a pergunta sobre o tipo de auto-relação característico da forma de reconhecimento do direito. No caso do direito, este tipo es-pecífico de auto-relação é o auto-respeito (Selbstachtung) (Honneth, 2003: 194 ss.). No caso da forma de reconhecimento do

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direito são postas em relevo as proprie-dades gerais do ser humano. No caso da valoração social, são postas em relevo as propriedades que tornam o indivíduo dife-rente dos demais, ou seja, as propriedades de sua singularidade. Portanto, Honneth parte do princípio que a terceira forma de reconhecimento, a saber, a Comunida-de de Valores ou Solidariedade, deve ser considerada um tipo normativo ao qual correspondem as diversas formas prática de auto-relação valorativa (Selbstschät-zung). Honneth não aceita aquilo que He-gel e Mead consideram condição para este padrão de reconhecimento, pois ambos os autores estão convencidos da existência de um horizonte valorativo e intersubjetivo compartilhado por todos os membros da sociedade como condição da existência da forma de relacionamento que Honneth chama de Solidariedade. Honneth procura mostrar ao contrário que com a transição da sociedade tradicional para a sociedade moderna surge um tipo de individualiza-ção que não pode ser negado. A terceira esfera do reconhecimento deveria ser vis-ta, então, como um meio social a partir do qual as propriedades diferenciais dos seres humanos venham à tona de forma genéri-ca, vinculativa e intersubjetiva (Honneth, 2003: 197).

Honneth identifica, porém, um se-gundo nível desta terceira esfera do reco-nhecimento (Solidariedade). No nível de integração social encontram-se valores e objetivos que funcionam como um sistema de referência para a avaliação moral das propriedades pessoais dos seres humanos e cuja totalidade constitui a autocompreen-são cultural de uma sociedade. A avaliação social de valores estaria então permanen-temente determinada pelo sistema moral dado por esta autocompreensão social. Esta esfera de reconhecimento estaria, por-tanto, vinculada de tal forma em uma vida

em comunidade que a capacidade e o de-sempenho dos integrantes da comunidade somente poderiam ser avaliadas intersub-jetivamente (Honneth, 2003: 197 ss.).

Como no caso das relações jurídicas, Honneth analisa a transição da sociedade de tipo tradicional para a moderna como uma espécie de mudança estrutural desta terceira esfera de reconhecimento: assim que a tradição hierárquica de valoração social progressivamente vai sendo dissol-vida, as formas individuais de desempenho começam a ser reconhecidas. Honneth par-te do princípio de que uma pessoa desen-volve a capacidade de se sentir valorizado, somente quando as suas capacidades indi-viduais não são mais avaliadas de forma coletivista. Daí resulta que uma abertura do horizonte valorativo de uma sociedade às variadas formas de auto-realização pes-soal somente se dá com a transição para a modernidade. Em função dessa mudan-ça estrutural, por outro lado, no centro da vida moderna existe uma permanente tensão, um permanente processo de luta, porque nesta nova sociedade há uma busca individual por diversas formas de auto-re-alização de um lado e por outro a busca de um sistema de avaliação social (Honneth, 2003: 204 ss.). Essa espécie tensão social que oscila permanentemente entre a am-pliação de um pluralismo valorativo que permita o desenvolvimento da concepção individual de vida boa e a definição de um pano de fundo moral que sirva de ponto de referência para avaliação social da mora-lidade fazem da sociedade moderna uma espécie de arena na qual se desenvolve ininterruptamente uma luta por reconheci-mento: os diversos grupos sociais precisam desenvolver a capacidade de influenciar a vida pública a fim de que sua concepção de vida boa encontre reconhecimento social e passem então a fazer parte do sistema de referência moral que constituem a auto-

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compreensão cultural e moral da comuni-dade em que estão inseridos. Porém, com o processo de individualização das formas de reconhecimento surge nesta esfera de reconhecimento a possibilidade de um tipo específico de auto-relação: auto-estima (Selbstschätzung). Solidariedade está vin-culada, portanto, nas condições da socie-dade moderna, à condição de relações so-ciais simétricas de estima entre indivíduos autônomos. Simetria aqui significa que os atores sociais adquirem a possibilidade de vivenciarem o reconhecimento de suas ca-pacidades numa sociedade não-coletivista. Nesse contexto está aberta a possibilidade que os indivíduos desenvolvam a sua auto-realização (Selbstverwirklichung) (Honne-th, 2003: 209 ss.).

Para que os atores sociais possam, portanto, desenvolver um auto-relaciona-mento (Selbstbeziehung) positivo e saudá-vel, eles precisam ter a chance simétrica de desenvolver a sua concepção de vida boa sem desenvolverem as patologias oriundas das experiências de desrespeito (Mißa-chtung). O que significa uma experiência de desrespeito permanece ainda sem resposta. Porque à experiência do reconhecimento corresponde sempre uma forma positiva de auto-relacionamento (Selbsterfahrung), Honneth precisa partir do princípio de que o conteúdo do que seja desrespeito deve estar implicitamente vinculado nas reivin-dicações individuais por reconhecimento: se e quando o sujeito social faz uma expe-riência de reconhecimento, ele adquire um positivo entendimento sobre si mesmo; se e quando, ao contrário, um ator social tem uma experiência de uma situação de des-respeito, conseqüentemente, a sua positiva auto-relação, adquirida intersubjetivamen-te, adoece.

Para tornar a sua teoria plausível, Honneth precisa, por conseqüência, en-contrar na história social, traços de uma

tipologia tripartide negativa da estrutura das relações de reconhecimento. Esta ti-pologia negativa deveria cumprir duas tarefas: (1) para cada esfera de relação de reconhecimento deve surgir um equivalen-te negativo, com o qual a experiência de desrespeito possa ser esclarecida seguindo a estrutura da forma de reconhecimento correspondente; (2) a experiência de des-respeito deve ser ancorada de tal forma em aspectos afetivos do ser humano, que venha à tona a sua capacidade motivacio-nal de desencadeamento de uma luta por reconhecimento.

À forma de reconhecimento do amor corresponde as formas de desrespeito de-finidas por Honneth como maus tratos (Mißhandlung) e violação (Vergewalti-gung). Nesta forma de desrespeito o com-ponente da personalidade que é atacado é aquele da integridade psíquica, ou seja, não é diretamente a integridade física que é vio-lentada, mas sim o auto-respeito (selbstver-tändliche Respektierung) que cada pessoa possui de seu corpo, que, como já foi visto, é adquirido por meio do processo intersub-jetivo de socialização originado através da dedicação afetiva (Winnicott) (Honneth, 2003: 214 ss.). Exatamente por causa deste complexo desenvolvimento psico-social do auto-respeito, ele e a sua forma correspon-dente de reconhecimento não podem ser es-clarecidos historicamente.

Eu interpreto aqui as idéias de Hon-neth no seguinte sentido: porque Honneth sempre tem em mente uma específica for-ma de auto-relação e de identidade, que está vinculada estruturalmente a uma pessoa humana; e como o conteúdo normativo da sua teoria sempre é desenvolvido ex nega-tivo, ou seja, ele deve ser sempre deduzido da destruição da respectiva forma de auto-relacionamento ou reconhecimento, fica claro que há sempre como pano de fundo de sua análise um concepção antropofilosó-

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fica não explícita que de alguma forma está permanentemente presente quando Honne-th tenta definir a estrutura das relações de reconhecimento 3. Na minha opinião fica claro também que, quando Honneth escla-rece a a forma de desrespeito correspon-dente à forma de reconhecimento do amor, se delineia também de forma indireta uma espécie de núcleo antropo-ontológico da estrutura das relações de reconhecimento. Para esclarecer o que eu tenho em mente, porém, seria necessário que a teoria da jus-tiça de Honneth fosse exposta aqui neste ponto, o que claramente excede o propó-sito de um artigo de sociologia do direito. Apenas aceno para o fato de que eu enten-do que estas idéias (não muito claras ainda em Kampf um Anerkennung) poderiam ser desenvolvidas a partir das intuições antro-pofilosóficas de Agnes Heller.

À forma de reconhecimento do direi-to corresponde a forma de desrespeito inti-tulada privação de direitos (Entrechtung) e nesta esfera do reconhecimento o compo-nente da personalidade que é ameaçado é aquele da integridade social. Também aqui Honneth precisa encontrar a forma corres-pondente de desrespeito lá onde um tipo específico de auto-relação pode se encon-trado, a saber, o auto-respeito. Central para a análise feita por Honneth das formas de desrespeito é o fato de que todo o tipo de privação violenta da autonomia deve ser vista como vinculada a uma espécie de sen-timento. O sentimento de injustiça ocupa um papel importante na análise que Hon-neth faz do direito (Honneth, 2003: 216). Porém, apesar de Honneth ressaltar em um primeiro momento o papel do sentimento de injustiça, logo em seguida a sua análise passa a considerar um tipo de respeito cog-nitivo da capacidade de responsabilidade moral, que um ator social vivencia numa situação de desrespeito jurídico. Portanto, o que significa ser uma capacidade para responsabilidade moral de uma pessoa

deve ser medido no grau de universaliza-ção e também no grau de materialização do direito (Honneth, 2003: 216).

À forma de reconhecimento da so-lidariedade corresponde a forma de des-respeito da degradação moral (Entwürdi-gung) e da injúria (Beleidigung). Honneth entende que a dimensão da personalidade ameaçada é aquela da dignidade (Würde). Também aqui a experiência de desrespei-to deve ser encontrada na degradação de uma forma de auto-relação, que no caso é aquela da auto-estima (Selbstschätzung). A pessoa aqui é privada da possibilidade de desenvolver uma estima positiva de si mesmo (Honneth, 2003: 217). Ao contrá-rio da esfera do reconhecimento do amor, tanto esta esfera e quanto aquela do direi-to dependem de uma estrutura social que muda e evolui historicamente.

Para esclarecer as formas de des-respeito Honneth adota o conceito psica-nalítico de patologia. Todas essas formas de desrespeito são, portanto, uma forma de patologia. Assim, uma teoria do reco-nhecimento deveria ser capaz de indicar a classe de sintomas que os atores sociais atingidos pela forma de desrespeito em seu estado patológico deixam transparecer (Honneth, 2003: 219). Os sinais corporais do sofrimento psíquico devem ser vistos, portanto, como expressões exteriores, ou melhor, como reações externas de senti-mentos patológicos interiores ou psíquicos. Dessa forma, somente as experiências de injustiça que acarretam fenômenos patoló-gicos devem ser consideradas fenômenos de desrespeito, quando o ponto de partida da análise é uma teoria do reconhecimento como a que Honneth está desenvolvendo aqui (Honneth, 2003: 219 ss.).

As reações do sentimento de injusti-ça devem ser vistas como o estopim par excellence da luta por reconhecimento. Com ajuda dos estudos desenvolvidos

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por Dewey, Honneth procura mostrar que uma experiência social de desrespeito atua como uma forma de freio social que pode levar à paralisia do indivíduo ou de um grupo social. Por outro lado, ela mostra o quanto o ator social é dependente do reco-nhecimento social. Honneth sustenta que o indivíduo está sempre vinculado em uma complexa rede de relações intersubjetivas e que conseqüentemente ele é dependen-te estruturalmente do reconhecimento dos outros indivíduos (Honneth, 2003: 224). A experiência do desrespeito, então, deve ser tal que forneça a base motivacional da luta por reconhecimento, porque essa ten-são afetiva só pode ser superada quando o ator social estiver em condições de voltar ter uma participação ativa e sadia na socie-dade (Honneth, 2003: 224). É exatamente porque os seres humanos nunca reagem de forma neutra a esse tipo de enfermidade social, que o sentimento de injustiça acaba sendo o estopim da luta por reconhecimen-to. Como todo o sentimento, o sentimento de injustiça diz pouca coisa sobre o conte-údo normativo das relações de reconheci-mento. Em outras palavras, os sentimentos de injustiças podem indicar um problema, mas não a sua solução. Honneth entende que é necessária a articulação política de um movimento social para que o sentimen-to de injustiça do indivíduo passe a ter re-levância política (Honneth, 2003: 224 ss.).

Aqui, porém, não fica muito claro qual deve ser a ponte explicativa entre os objetivos impessoais dos movimentos so-ciais e um privado sentimento de injusti-ça. Honneth sustenta que, ao contrário dos modelos atomísticos, utilitaristas ou inten-cionalistas de explicação dos movimentos sociais, o surgimento de um movimento social deve ser explicado a partir da exis-tência de uma semântica coletiva que per-mita a interpretação das experiências indi-viduais de injustiça, de forma que não se

trate mais aqui de uma experiência isolada de um indivíduo, mas sim de um círculo intersubjetivo de sujeitos que sofrem da mesma patologia social (Honneth, 2003: 262 ss.). Aqui Honneth está fazendo jus à crítica hegeliana do atomismo à medida que ele retira do indivíduo a capacidade de explicar os problemas sociais. O indi-víduo só pode ser considerado como tal se é considerada a existência anterior de uma sociedade que lhe dá sentido.

Portanto, quanto mais forte for a in-fluência da luta por reconhecimento de um determinado grupo, ou quanto maior for o número de exigências sociais em função de uma mudança específica, haverá de surgir, por conseqüência, uma espécie de horizonte de interpretação subcultural que explicará a relação motivacional entre sen-timento individual de injustiça e luta co-letiva por reconhecimento. O engajamento político acaba por trazer com ele uma es-pécie de efeito positivo de reconhecimento antecipado, pois na inserção em um grupo social que busca um determinado tipo de reconhecimento ele experimenta concomi-tantemente um tipo de reconhecimento an-tecipado de uma sociedade futura em que a sua reivindicação social será reconhecida socialmente e, dessa forma, o indivíduo tem de volta um pouco do reconhecimento perdido.

A pergunta que surge logicamente desta opção teórica é: todos os conflitos so-ciais são passíveis de serem interpretados pela lógica de uma luta por reconhecimen-to? Para fundamentar sua resposta, Honneth analisa primeiramente a pesquisa histórica de E.P.Thompson e Barrington Moore, para mostrar que pesquisas históricas que não assumem um ponto de vista moral correm sempre o risco de analisar os episódios de forma cega, ou seja, como se eles fossem fatos passíveis de análise pura: aconteci-mentos históricos como revoltas, guerras...

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são apresentados como se fossem apenas fatos. Honneth procura com essa crítica mostrar que por trás dos acontecimentos históricos há um processo de desenvolvi-mento moral que se deixa explicar somente pela lógica da ampliação das relações de reconhecimento. O modelo da luta por re-conhecimento deve, portanto, cumprir duas tarefas: (1) ser um modelo de interpretação do surgimento das lutas sociais e (2) do processo de desenvolvimento moral. Só então esse modelo estará em condições de realizar uma ordenação sistemática dos fe-nômenos históricos e sociais, que sem esse modelo permaneceriam amorfos.

Dessa forma, os sentimentos morais assumem a função de aceleração ou retar-damento da evolução moral e histórica da sociedade e o modelo da luta por reconhe-cimento passa a ser visto como o ponto de vista normativo, a partir do qual é possível definir o estágio atual do desenvolvimento moral da sociedade (Honneth, 2003: 270 ss.). O ponto de partida de um tal processo de formação moral precisa ser, portanto, um momento histórico, em que o modelo tripartide do reconhecimento ainda não se diferenciou. Honneth caracteriza tal pro-cesso como um processo de aprendizagem que tem a capacidade de esclarecer ao mesmo tempo a diferenciação as esferas do reconhecimento e o potencial interno que elas carregam internamente para o desenvolvimento moral da sociedade. O modelo da luta por reconhecimento expli-cita, então, uma gramática, uma semântica subcultural, na qual as experiências de in-justiça encontram uma linguagem comum, que indiretamente oferece a possibilidade de uma ampliação das formas de reconhe-cimento (Honneth, 2003: 272). Com isso, Honneth pretende mostrar que a análise dos acontecimentos sociais é uma tarefa da área da interpretação, que permite explicar esses acontecimentos como estágios de um

processo de formação moral que se dá por meio do conflito e cuja direção é dada pela idéia-guia da ampliação das relações de re-conhecimento (Honneth, 2003: 273).

Na introdução do presente artigo nós nos propusemos a desenvolver uma teoria dos direitos fundamentais a partir da teoria do reconhecimento de Axel Honneth. Não por acaso, porém, na mesma introdução nos impusemos a limitação de apenas es-clarecer de forma imanente as tarefas que todo aquele intérprete que pretende desen-volver essa tarefa precisa enfrentar.

Porque Honneth está convencido que o surgimento de pelo menos duas das es-feras do reconhecimento estão vinculadas a um determinado momento histórico geo-graficamente determinado, a saber, o sur-gimento da sociedade moderna na forma como esse processo aconteceu em países da Europa ocidental, parece óbvio que a primeira tarefa, de um jurista que preten-da desenvolver a sociologia do direito de Axel Honneth, precisa ser vista no esclare-cimento entre este vínculo: história situada geograficamente e teoria normativa. Fica aberta a pergunta se o modelo do reconhe-cimento teria capacidade de interpretação suficiente para esclarecer os acontecimen-tos históricos de luta de outros países que não experienciaram momentos compará-veis com aquele europeu4.

A necessidade e a importância de uma solução para este problema aparente parece óbvia: se o modelo do reconheci-mento, tal como é desenvolvido por Hon-neth, somente tem capacidade de explicar um fenômeno específico da Europa oci-dental, isso implicaria na inutilidade, fal-ta de capacidade interpretativa, talvez na falência do modelo do reconhecimento ou, simplesmente, a sua teoria se tornaria simplesmente desinteressante. Eu estou, porém, convencido que este é apenas um problema aparente. Na minha opinião, a

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chave de leitura adequada para entender a teoria de Honneth sem correr o risco de eurocentrismo é um desenvolvimento da teoria da justiça implícita na antropologia filosófica que está sempre no pano de fun-do do desenvolvimento da teoria do reco-nhecimento de Honneth.

Quando Honneth explicita o pon-to de vista normativo da sua teoria, fica claro também que este aparente problema não passa de uma aparência de problema. Como já foi visto, o modelo de luta por reconhecimento deve oferecer o ponto de vista normativo a partir do qual o estágio atual do desenvolvimento moral seja expli-citado (Honneth, 2003: 274 ss.). Se isso é assim, então Honneth precisa fundamentar filosoficamente este ponto de partida nor-mativo da sua teoria.

Honneth sustenta que a sua teoria do reconhecimento não pode ser identifica-da nem com a tradição liberal, nem com o Comunitarismo. A sua proposta teórica deve ser vista como uma terceira possibili-dade que ele chama de Conceito Formal de Vida Boa ou de Eticidade (Honneth, 2003: 274 ss.). A fundamentação deste conceito deveria esboçar formas pós-tradicionais de reconhecimento, cujo conceito deveria conter todas as condições intersubjetivas que hoje precisam ser preenchidas a fim de que os sujeitos possam realizar a sua con-cepção de vida boa (Honneth, 2003: 275 ss.). Com essa posição, Honneth pretende salientar que o conceito formal de eticida-de não deve abranger somente a autonomia dos seres humanos, mas também as condi-ções qualitativas de realização da vida boa. Honneth compartilha com a posição comu-nitarista a idéia de que é necessário sempre um conceito de vida boa como Telos, mas ele não pretende com este conceito formal de eticidade desenvolver um tipo de Ethos de uma concreta comunidade de valores que se insere em uma determinada tradi-

ção. Esse conceito precisa, ao contrário, proteger de tal forma o atual pano de fun-do moral das relações de reconhecimento, que o horizonte de uma sociedade perma-neça aberto, a fim de que os seus cidadãos tenham a liberdade de desenvolver as di-versas formas de realização do seu concei-to de vida boa. Com essa precisação, que fica sempre entre história e universalidade, sempre caminha junto o perigo de que esse conceito seja apenas uma interpretação de determinados ideais históricos de vida. Honneth acha que está em condições de evitar esse perigo, à medida que ele per-mite que da tradição do liberalismo ele conserve uma pequena intenção kantiana de formalidade. Por isso, o conceito de eticidade por ele desenvolvido precisa ser formal. Contra Kant, porém, este concei-to deveria ser, por outro lado, de tal for-ma material ou substantivo que com a sua ajuda seja possível aprender mais sobre as condições de realização da vida boa (Hon-neth, 2003: 277 ss.).

Como já foi visto, à cada uma das for-mas de reconhecimento correspondem uma forma positiva e negativa de auto-relação. Importante para as conclusões deste artigo é ressaltar que existe uma ligação entre a experiência de reconhecimento e uma es-pécie de relacionar-se-consigo (Sichzusi-chverhalten) que está ancorada estrutural-mente na identidade pessoal: os indivíduos são de tal forma constituídos como pessoas, que eles aprendem a se dirigir a si mesmo a partir da perspectiva do outro e a partir daí desenvolvem-se propriedades pessoais po-sitivas ou negativas. A extensão de tais pro-priedades e, portanto, do grau de auto-rela-ção positiva cresce com o desenvolvimento de cada forma de reconhecimento a partir da qual cada indivíduo pode relacionar-se consigo mesmo. Assim na experiência do amor surge a possibilidade da autoconfian-ça (Selbstvertrauens), na experiência do

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reconhecimento jurídico surge a forma do auto-respeito (Selbstachtung) e, por fim, na terceira forma de reconhecimento, Solida-riedade, vem à tona a auto-estima (Selbsts-chätzung) (Honneth, 2003: 277 ss.).

Com estas precisações, Honneth torna as conseqüências de sua teoria mais agudas: somente com a experiência do re-conhecimento surge uma forma positiva de auto-relação e sem reconhecimento é impossível desenvolver um conceito de liberdade ou simplesmente viver em liber-dade, porque a proteção das relações de reconhecimento é uma condição da liber-dade e não vice-versa. Honneth vai mais além e afirma que somente as relações de reconhecimento são, ao mesmo tempo, as condições e a proteção da identidade, da liberdade, da auto-realização, de uma re-alização plena da concepção de vida boa dos seres humanos e de uma vida realizada em geral (Honneth, 2003: 279 ss.).

Porém, a fim de que sua teoria não corra o risco de ser ahistórica, o conceito formal de eticidade precisa estar herme-neuticamente ancorado no presente: todo o tipo de prognóstico sobre o futuro das rela-ções sociais “não é mais tarefa da teoria e sim do futuro das lutas sociais” (Honneth, 2003: 287). Portanto, com esta frase de fe-chamento do seu livro Kampf um Anerken-nung, Honneth deixa claro que é necessária uma limitação histórica desse tipo, a fim de que o conceito formal de eticidade seja concebido. As condições de realização do conceito de vida boa estão sempre anco-radas, portanto, nas condições oferecidas pelo presente de uma dada sociedade, que, ao mesmo tempo, já estabelecem o pano de fundo normativo a partir do qual se abre a possibilidade para o desenvolvimento de novas formas de reconhecimento (Honne-th, 2003: 280 ss.).

Lado a lado com a historicidade de sua teoria, se desenvolve um núcleo ahis-tórico, que nós identificamos, principal-

mente, quando analisamos a forma de reco-nhecimento do amor. Apesar de ter ficado claro que a estrutura de reconhecimento do amor não se deixa explicar por modifica-ções históricas, Honneth procura salientar que é perfeitamente possível que essas es-truturas imutáveis se desenvolvam quanto mais os envolvidos nesta relação compar-tilharem direitos e estiverem protegidos os seus respectivos direitos fundamentais. A experiência do amor representa, portanto, o núcleo interno de todas as formas de vida ética (den inneresten Kern aller als >>sit-tlich<< zu qualifizierenden Lebensformen) e conseqüentemente o conceito formal de eticidade pós-tradicional deve ser de tal forma desenvolvido que o radical iguali-tarismo da esfera de reconhecimento do amor seja protegido de influências violen-tas externas (Honneth, 2003: 282 ss.). As formas de reconhecimento do direito são, dessa forma, condições da auto-realização e da capacidade de desenvolvimento, por-que somente com a sua ajuda os atores so-ciais conseguem definir a si mesmos como pessoas (Honneth, 2003: 283 ss.). Por úl-timo, foi visto que o direito delimita geral e normativamente a formação do horizonte valorativo de uma comunidade.

5. Conclusão

Se Dworkin, Habermas e Honneth apresentaram argumentos convincentes, então, por via dedutiva podem ser definidas as tarefas da Teoria da Constituição con-temporânea: será necessário em primeiro lugar esclarecer como é possível desenvol-ver uma hermenêutica constitucional que leve a sério o desafio da democracia e da proteção das relações de reconhecimen-to em uma dada sociedade e em segundo lugar, será necessário que as questões do direito não sejam mais vistas apenas como questões de princípios ou de uma sim-ples ponderação de valores, mas o direito constitucional deverá assumir como tarefa

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a compreensão da sociedade e o desen-volvimento de mecanismos institucionais que viabilizem uma espécie de “sociedade aberta dos intérpretes da Constituição”.

Os resultados do presente artigo já adiantaram quais são e quais devem ser as funções dos direitos fundamentais para uma Teoria da Constituição que leve à sé-rio a teoria do reconhecimento: (1) pro-teção das formas do reconhecimento; (2) condição sine qua non da realização do projeto de vida boa ou da auto-realização; (3) facilitador do desenvolvimento moral da sociedade; (4) Delimitação do horizonte valorativo de uma comunidade.

Uma das principais tarefas de pes-quisa que essa nova Teoria da Constitui-ção deveria assumir seria o estudo do lado negativo do processo moderno de juridici-zação dos direitos sociais e de cidadania. Não por acaso Flickinger define esses di-reitos como uma faca de dois gumes. Com esta analogia, ele pretende mostrar plasti-camente o duplo efeito da juridificação das conquistas sociais na forma de direitos so-ciais e de cidadania: o lado positivo deste processo pode ser traduzido na linguagem do reconhecimento, ou seja, ele pode ser considerado como um processo históri-co vitorioso de ampliação das formas de reconhecimento, porém, com ele surgiu também um processo negativo, a saber, a legalidade jurídica parece não ser capaz de efetivar essas reivindicações sociais (Flickinger, 2003: 153 ss.). Em seu livro Die Einbeziehung dês Andere, Habermas analisa uma série de estudos feministas que mostram que a luta do movimento feminista pela juridificação de suas rei-vindicações teve um efeito colateral inde-sejado: ao invés de fomentar igualdade ou materialização destas reivindicações, esse processo de juridificação gerou baixos sa-lários, desemprego e aumento da pobreza entre mulheres (Habermas, 1996: 303 ss.).

Os motivos responsáveis por esse contra-efeito não são difíceis de serem vislumbra-dos: direitos que garantem à mulher um tratamento diferenciado, como o direito a afastamento do trabalho no período de gravidez, apesar de seu valor e corretude moral, representam para o empregador um aumento de custos que, em função da lógica do mercado, só pode ser resolvido de duas maneiras, a saber, ou ele contrata menos mulheres, ou ele é obrigado a pagar menos pelo trabalho feminino.

Ao tentar esclarecer estes fenômenos sociais todo o jurista que quisesse levar a sério a teoria do reconhecimento teria de se confrontar com, pelo menos, três pro-blemas: (1) como se pode entender que o mesmo direito moderno, que permite a ampliação das relações de reconhecimen-to e que surgiu com este objetivo, gera, ao mesmo tempo, experiências de desrespeito e privação de reconhecimento? (2) qual se-ria o critério a ser utilizado a fim de que a forma positiva de direito, o direito que gera reconhecimento, fosse diferenciada da forma de direito que gera desrespeito e privação de reconhecimento?

Os limites de espaço de um artigo me permitem somente trazer à discussão esta nova maneira de fazer direito consti-tucional que me parece estar um pouco à margem da discussão atual. Resolver estes problemas e tentar levar à sério as relações de reconhecimento na sociedade como condições sociais da existência de um di-reito justo deveriam ser as novas e futuras tarefas ou, pelo menos, deveriam importar no surgimento de um terceiro âmbito de pesquisa da Teoria da Constituição con-temporânea.

REFERÊNCIAS

DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1978. 371 p.

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NOTAS

1Para uma visão geral sobre o sistema jurídico da Common Law ver: (SOARES, 2000), (DA-VID, 1996: 279-405). Vale acrescentar que não é muito adequado traçar um paralelo entre o uso dos casos de jurisprudência no Brasil e o uso dos precedentes nos Estados Unidos. No Brasil os casos judiciais podem se apreciados pelos juízes como argumentos para solução da lide, mas não estão obrigados a considerá-los na sua decisão. Nos Estados Unidos, em virtude da regra do “stare decisis”, os juízes estão vincu-lados juridicamente aos precedentes, de forma que estes não são apenas argumentos, mas di-reito legítimo. Esta é uma distinção importante para as conclusões deste trabalho.2As teses do presente parágrafo, principalmente a interpretação do método Hércules desenvolvi-do por Dworkin a partir da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, eu desenvolvi exaustiva-mente no meu livro Jurisdição e Democracia (Saavedra, 2005) que está no prelo e que até o final do ano deverá ser publicado pela editora Livraria dos Advogados.

HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL

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3Essa parece ser também a interpretação de: (Heidegren, 2002) e a sua interpretação foi ex-plicitamente recepcionada por Honneth no seu Nachwort em: (Honneth, 2003: 307 ss.). Sobre o

assunto compare também: (Honneth/Joas, 1980).4Sobre o caso brasileiro, dentre outros, ver: (Neves, 1992).

gioVani agostini saaVeDRa

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1. Introdução

O significado e o “valor” das teorias do direito não são independentes das cir-cunstâncias que formam a sua historici-dade. A consideração da pertinência das teorias a determinados contextos históri-co-culturais não é relevante apenas para explicar o seu aparecimento ou reconsti-tuir a sua evolução; uma etapa necessária da própria tentativa de compreensão, isto é, de interpretação das idéias é a busca das conexões de sentido entre as elaborações teóricas e a contingência das questões e

dos condicionamentos que as precedem e as envolvem, e em função dos quais uni-camente cada teoria se apresenta como algo de inteligível — na medida em que extrapola o âmbito do puramente teoréti-co e se deixa apreender como um esforço, oriundo tanto da dúvida metódica quanto da inquietação existencial, para atribuir (ou reatribuir) um sentido a uma realidade em crise (da legitimidade política, da inde-terminação do direito, da racionalidade do saber dos juristas).

A idéia de contexto coloca proble-mas evidentes de extensão e generalidade:

A EXPERIÊNCIA CONSTITUCIONAL COMO ASPECTO DO CONDICIONAMENTO HISTÓRICO-CULTURAL DAS

TEORIAS DO DIREITO:O CASO DA “JURISPRUDÊNCIA HERMENÊUTICA” E DO

CONSTITUCIONALISMO JURIDISTA DA REPÚBLICA DE BONNTHE CONSTITUTIONAL EXPERIENCE AS AN ASPECT OF HISTORICAL

– CULTURAL CONDITIONING OF RIGHT THEORY: THE CASE OF “ HERMENEUTIC CASE LAW” AND THE JUDICIAL CONSTITUTIONALISM

FROM BONN’S REPUBLIC

gustaVo Just*

Recebido para publicação em agosto de 2005

Resumo: Este artigo esboça alguns elementos de uma compreensão contextual da jurisprudência hermenêutica (isto é, a corrente teórica desenvolvida na Alemanha a partir dos anos sessenta sob a influência direta da hermenêutica filosófica e no âmbito da nova “querela metodológica”), explo-rando, sobretudo, a sua interação com o constitucionalismo juridista da República de Bonn.Palavras-chave: Constitucionalismo. Teoria do direito. Filosofia hermenêutica. Contextualismo. Historicidade.

Abstract: This article sketches some elements of a contextual understanding of the hermeneutical jurisprudence (that is the theoretical stream developed in Germany since the 60’s under the direct influence of the philosophical hermeneutics and in the frame of the new “methodological quarrel”) by reference chiefly to its interaction with the “juridism” of the constitutionalist model first set up by the so-called Republic of Bonn. Key Words: Constitutionalism. Hermeneutical philosophy. Legal theory. Contextualism. Historicity.

* Doutor em Direito.

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no âmbito da discussão de uma episte-mologia hermenêutica e, por assim dizer, “contextualista” das ciências sociais já se advertiu (fazendo-se eco com isso a uma reflexão clássica de Heidegger) para o fato de que a palavra “mundo” seria mesmo o termo mais geral para designar a totalidade holística de significado cultural sugerida pela noção de contexto. Mas os trabalhos de história das idéias jurídicas vêm refe-rendando, ao menos implicitamente, uma solução que consiste em tentar apreender a pertinência histórico-cultural do pensa-mento jurídico a partir da referência, por um lado, às estruturas e à dinâmica da or-ganização política e jurídica e, por outro, aos modelos intelectuais ou mais ampla-mente culturais subjacentes ou explicita-mente adotados — e nada impede que a leitura da teoria contemporânea do direito também adote essa dupla referência como forma de acesso, parcial mas interrogati-vamente fecundo, ao “contexto próximo” das elaborações mais teóricas dos juristas (Just, 2005 b).

É por isso que uma tentativa de com-preensão da chamada “jurisprudência her-menêutica” não pode deixar de levar em consideração o estreito condicionamento dessa corrente pelo processo de reconstru-ção, no segundo pós-guerra, da experiên-cia político-constitucional da República Federal da Alemanha, tanto no plano das formas institucionais como no das corres-pondentes representações. É verdade que a conversão de muitas das teses da jurispru-dência hermenêutica em componentes dou-trinários daquilo que alguns agora chamam de “neoconstitucionalismo” prolongou no tempo e internacionalizou a sua influência, o que faz com que a essa altura seja delica-do, mas finalmente de pouquíssima ou ne-nhuma relevância, saber se o que se propõe aqui é um exercício de história (recente) das idéias ou de interpretação do horizonte contemporâneo do pensamento jurídico.

2. Uma teoria do direito de inspiração hermenêutica

2.1. Antiformalismo e circularidade

O que se quer designar com a expres-são “jurisprudência hermenêutica” (daqui em diante: JH) é a ampla corrente teórica, constituída principalmente ao longo das décadas de 1960 e 1970, em cujo âmbito a teorização da interpretação e do raciocí-nio jurídicos foi reorientada sob influên-cia direta da filosofia hermenêutica, e em especial do pensamento de Hans-Georg Gadamer. Essa corrente, que dominou am-plamente a “nova querela metodológica” alemã e que conta entre seus protagonistas os nomes de Josef Esser, Karl Larenz, Frie-drich Müller, Arthur Kaufmann, Winfried Hassemer, Martin Kriele, Reinhold Zippe-lius, Konrad Hesse, Peter Häberle e Horst Ehmke, insere-se no contexto de um vasto movimento antiformalista que se configura e se desdobra no segundo pós-guerra, e que constitui um dos traços mais marcantes da teoria e da filosofia do direito naquele perí-odo, sobretudo na Alemanha. Um primeiro aspecto desse antiformalismo diz respeito à concepção da práxis decisória e do ra-ciocínio que lhe corresponde, em que de-sempenha agora um papel central a crítica da idéia de que a decisão judicial é ou pode ser obtida ou racionalmente fundamentada, sempre ou como regra geral, segundo um raciocínio puramente dedutivo, axiologi-camente neutro, a partir de um enunciado normativo contido na lei ou dela extraído. Uma concepção “material” do raciocínio e da prática jurídica já estava presente em escolas mais antigas, mas agora aparece associada a um ponto de vista axiológico: rejeita o reducionismo sociológico que atribui valor explicativo ou mesmo norma-tivo autônomo ao momento fático da ex-periência jurídica e valoriza a idéia de que a presença de valorações e, portanto a di-

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mensão criativa da aplicação do direito são essenciais à práxis jurisdicional, ao passo que antes eram pensadas principalmente com referência a situações excepcionais ou então relegadas, pelo positivismo lógi-co mais avançado de um Kelsen ou de um Engisch, ao âmbito (de contornos vagos) do “quadro” das interpretações possíveis. O segundo aspecto é o enquadramento dessa concepção axiológica da aplicação por uma epistemologia de orientação an-tiformalista, que se traduz pelo abandono do projeto de fundar uma ciência jurídica conforme ao paradigma lógico-empírico, e da qual decorre a introdução de eixos de reflexão estranhos ao sentido geometrizan-te do racionalismo próprio desse paradig-ma, tais como a tópica e o “pensamento problemático”, o concreto e a concretiza-ção, a “lógica material”, o direito como “saber prático”, os princípios etc. O livro de Viehweg publicado em 1953, Topik und Jurisprudenz, é muito representativo da convergência dessas duas dimensões do antiformalismo e deflagrou uma série de novas tendências — cujos desdobramentos posteriores, um tanto heterogêneos, iriam do ceticismo retórico de um Ballweg à te-oria do discurso jurídico racional de inspi-ração habermasiana, passando pela “nova retórica” de Perelman e pela própria JH —, sendo ainda revelador de seu amplo pano de fundo filosófico e cultural: historicista, relativista, perspectivista, “problemático”.

A especificidade do ponto de vista progressivamente elaborado no âmbito da JH consiste então em considerar que o irre-alismo metodológico somente poderia ser inteiramente corrigido caso se conseguisse pensar a circularidade hermenêutica da in-terpretação jurídica, o que permitiria supe-rar, para além do dogma da determinação do sentido e do modelo silogístico, uma implicação mais profunda da metodologia formalista, qual seja a imagem de lineari-

dade, hierarquização e secionamento do processo decisório. É a essa ambição que a JH dedica suas considerações sobre os di-ferentes aspectos da dialética do processo de aplicação, e é na filosofia de Gadamer que ela encontra o essencial de seus fun-damentos teóricos. Para a JH não se trata simplesmente de reconhecer que o intér-prete elabora as premissas do seu raciocí-nio, mas de compreender o desenrolar dia-lético dessa elaboração, superando dentre outras coisas a idéia de que a interpretação da lei e a qualificação dos fatos seriam dois atos separados. Não existe uma espécie de construção paralela das duas premissas, que só se encontrariam no momento de confrontar os resultados respectivos a fim de proceder à subsunção. Os dois planos ou lados do raciocínio jurídico, como os chama Esser, o da previsão legal (Tatbes-tandseite) e o da qualificação das relações fáticas (Sachverhaltseite), desenvolvem-se simultaneamente, e não sucessivamente. A experiência do direito penal, marcada pela busca de uma rigorosa “correspondência” entre o caso concreto e o tipo legal, inspira-va uma primeira visão dessa circularidade. Kaufmann, penalista e filósofo do direito, evoca o exemplo de um caso decidido pela justiça alemã, cujos fatos à primeira vista pareciam muito simples: um homem joga-ra ácido clorídrico no rosto de uma opera-dora de caixa a fim de lhe roubar a bolsa. A questão jurídica consistia em saber se o ácido configura uma “arma” no sentido do § 250 do Código Penal que define o rou-bo qualificado. A análise do problema não poderia ir muito longe caso se adotasse a visão tradicional da separação entre pre-missa normativa e premissa fática. Por um lado, no sentido literal o ácido não é uma arma. Por outro lado, se se tratasse de qua-lificar os fatos sem levar em consideração uma norma, a questão de saber se o ácido é uma arma não seria sequer colocada. Só

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se pode deparar com essa questão caso se pressinta (caso se “pré-compreenda”) es-ses acontecimentos com um caso possível de roubo qualificado. Se, ao contrário, são pressentidos de outro modo, por exemplo, como uma tentativa de homicídio, então a questão de saber se o ácido é uma arma não tem mais nenhuma relevância. Kauf-mann identifica aqui tanto a importância da pré-compreensão para o acesso ao pro-blema jurídico pertinente quanto a circu-laridade do processo de compreensão. “Só posso compreender o caso concreto como um caso de roubo qualificado quando eu souber o que é um roubo qualificado; mas não posso saber o que é um roubo quali-ficado sem uma análise adequada do caso concreto. A interpretação que faz de uma norma legal uma previsão normativa (Ta-tbestand) ocorre no caso concreto, e a construção que transforma o caso concreto (os fatos) num caso típico (Sachverhalt) ocorre dentro da norma legal” (Kaufmann, 1994: 161-162).

O reconhecimento dessa circulari-dade afeta imediatamente a imagem da “estrutura” ou da “forma” do raciocínio desenvolvido pelo operador do direito. A concepção tradicional da aplicação, mar-cada pela visão de uma hierarquia entre o normativo abstrato e o fático concreto a lhe ser “subsumido”, não se sustenta mais a partir do momento em que se compreende que o conteúdo do “normativo” não pode ser determinado abstratamente, mas uni-camente em função da situação concreta a ser decidida. Para se ter uma representação realista do que os juízes fazem não basta reconhecer a abertura e a indeterminação da regra jurídica. Essa indeterminação por si só não compromete a hierarquia abstra-to-concreto, apenas transfere do legislador para o juiz, no todo ou em parte, a tarefa de determinar, sempre abstratamente, a premissa maior do silogismo. O passo de-

cisivo para se obter mais “realismo” meto-dológico consiste exatamente em dissipar a antinomia abstrato-concreto enquanto tal, e não apenas enquanto corolário dos dogmas da completude do direito legislado e do automatismo da sua aplicação. A JH procura então explorar a idéia de que não existe interpretação abstrata da norma, que toda interpretação é aplicação, solução de um caso, que a plenitude de sentido não é uma qualidade abstrata da norma em si e que esse sentido só pode ser buscado em vista de uma situação concreta de aplica-ção (real ou imaginária, acrescentam al-guns). Ao mesmo tempo, o secionamento entre interpretação da lei e qualificação dos fatos é agora substituído pela famosa imagem do “vaivém do olhar” (Hin- und Herwandern des Blickes)1 entre os possí-veis significados da norma e as possíveis qualificações da situação material. Um movimento oscilatório do raciocínio que rompe também com a linearidade de sua representação tradicional: em lugar de um encadeamento ordenado e metódico de eta-pas fala-se agora numa alternância entre os dois planos e numa sucessão de hipóteses provisórias referentes tanto aos respectivos resultados (a fattispecie e a qualificação dos fatos) quanto à solução do litígio.

A condução dessas reflexões mostra-se às vezes sensível ao problema, assim implicitamente colocado, da vinculação da concepção metodológica tradicional ao dualismo Sein-Sollen. A consciência dessa questão teórica mais abstrata pode orientar as investigações no sentido de tentar for-mular uma teoria metodológica original concentrada na exploração da relação en-tre “norma” e “realidade”.2 Tal parece ser o caso da audaciosa “teoria estruturante” de Müller, para quem o normativo — isto é, “tudo aquilo que determina o caso con-creto, tudo o que orienta a solução desse caso” (Muller, 1996: 106) — não se encon-

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tra apenas no texto da “norma” legislada, mas também em aspectos da própria reali-dade. A normatividade (no contexto de sua concepção da Rechtsfindung Müller fala em normatividade, mais do que em norma) é construída no curso de um processo, dito de “concretização”, de que fazem parte as “estruturas materiais” da realidade, na medida em que alguns dos aspectos desse âmbito material geral (Sachbereich) são selecionados (recortados) pelo “programa normativo” (resultante da interpretação do texto da norma) e desse modo “alça-dos” à normatividade a título de “âmbito normativo” (Normbereich). Um estudo dedicado exclusivamente à JH deveria ali-ás demorar-se mais a respeito de Müller, porque com ele a concepção hermenêuti-ca da estrutura dos processos decisórios assume ares mais “construtivistas”. Não se trata mais simplesmente de “colocar” a imagem de um vaivém do olhar no lugar da concepção hierarquizada e secionada da aplicação, mas também de a explorar me-todicamente: a concretização inclui tanto a interpretação do texto quanto a análise do âmbito normativo, passando o tratamento metódico dessa análise a constituir todo um programa teórico (Muller, 1976: 246 e 255).

2.2. Da circularidade às condições de pos-sibilidade da interpretação

Todas essas idéias evocam imediata-mente teses e temas muito conhecidos da filosofia hermenêutica: o círculo herme-nêutico da compreensão, a pré-compreen-são ou ainda a impossibilidade de disso-ciar a interpretação da aplicação. Mas não se referem apenas à estrutura ou à forma do raciocínio judicial: os elementos que o compõem, seu desenrolar, seus objetivos, sua dinâmica. Veiculam também, e mais profundamente, uma reflexão sobre as con-

dições de possibilidade do processo deci-sório enquanto processo de compreensão, o que já corresponde a uma outra ordem de preocupações. Pois se estaria de fato dei-xando escapar o significado propriamente filosófico da noção de pré-compreensão caso nela não se visse mais do que uma conjectura inicial ou uma antecipação glo-bal do sentido do texto a ser interpretado, um momento inicial do processo interpre-tativo. Quanto ao círculo hermenêutico como mera imagem da dialética entre a parte e o todo, não se trata de modo algum de uma noção específica da hermenêu-tica gadameriana, mas simplesmente de um velho topos da retórica retomado pela hermenêutica romântica “pré-filosófica”. Assim empregadas essas noções ajudam a expressar a visão que a JH propõe da estru-tura da Rechtsfindung, mas não conduzem, enquanto tais, à tematização das suas con-dições de possibilidade.

Na filosofia hermenêutica essas no-ções veiculam acima de tudo, indo com isto muito além do plano metódico, a pro-blemática da prévia estrutura ontológica da compreensão, transformada em questão fi-losófica fundamental. O movimento circu-lar da compreensão é então uma idéia deri-vada desde Heidegger da temporalidade do Dasein (Gadamer, 1996: 286), da qual não pode portanto ser dissociada. O fundamen-to existencial do círculo hermenêutico im-plica assim a superação não apenas do pla-no da relação formal da parte com o todo, mas também da cisão, própria da teoria hermenêutica do século XIX, entre de um lado o desenvolvimento circular da com-preensão e, de outro, o desaparecimento dessa circularidade quando da compreen-são plenamente acabada: a dissolução final do círculo significaria a eliminação de tudo aquilo que há de estranho ou alheio no tex-to, reconciliando a interpretação com a ob-jetividade das ciências. Ao contrário disso,

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ao círculo se atribui agora um “significado ontológico positivo”, e a compreensão se considera “permanentemente determinada pelo movimento de antecipação da com-preensão”. O círculo corresponde a um “jogo em que se entrelaçam o movimento da tradição e o do intérprete”, e o objetivo do intérprete não consiste em neutralizar esse jogo para, fazendo “abstração de si”, se transportar no autor, e sim em preser-var a relação de relativa alteridade e con-tinuidade que mantém com este último, o que encontra uma expressão na noção de compreensão como um processo de “fusão de horizontes”, que Gadamer desenvolve tendo em mente sobretudo a experiência da interpretação histórica do passado. Se a pré-compreensão continua sendo “a pri-meira de todas as condições hermenêu-ticas” do compreender, a antecipação de sentido que ela opera “não é um ato da subjetividade, determina-se na verdade a partir da comunidade (Gemeinsamkeit) que nos liga à tradição” (Gadamer, 1996: 287, 315-316, 318).

A problemática fundamental das con-dições de possibilidade da compreensão também está embutida na tese segundo a qual a interpretação é indissociável da apli-cação, tese essa presente na referência que Gadamer fazia ao “significado exemplar da hermenêutica jurídica”. É verdade que a afirmação de ordem “metódica” relativa ao caráter necessariamente concreto ou cir-cunstancial da busca do sentido faz parte dessa tese: “(...) o discernimento do sentido de um texto jurídico e sua aplicação a um caso concreto não são dois atos separados, e sim um processo unitário”. Mas o grande préstimo da noção de aplicação para o ra-ciocínio de Gadamer consiste em eviden-ciar a relação entre o presente e o passado e a corresponde dualidade de situações, a do texto e a do intérprete. A aplicação é aplicação a uma situação: no seio da com-

preensão se produz sempre “algo como uma aplicação do texto a ser compreendi-do à situação presente do intérprete”. Se “compreender é sempre aplicar”, é porque o texto “para ser compreendido como o re-quer, ou seja, segundo a exigência que lhe é própria, deve a cada momento, isto é em cada situação concreta, ser compreendido de uma maneira nova e diferente” (Gada-mer, 1986: 330-335, 346). A aplicação pro-voca a tensão entre o presente e o passado, entre duas situações hermenêuticas, entre dois horizontes, com suas diferentes ques-tões, suas diferentes expectativas. O tema da aplicação serve então para introduzir outras duas teses fundamentais. A primei-ra é a da pertinência à tradição como uma condição do exercício da compreensão nas ciências do espírito. Gadamer quer então, e este esforço atravessa diferentes partes de Verdade e método, substituir as preten-sões da consciência histórica “estética”, objetivista, da hermenêutica até Dilthey pela tomada de consciência da pertinên-cia à tradição: para compreender o texto, o intérprete “não se pode (darf) propor a fazer abstração de si próprio e da situação hermenêutica concreta em que se encon-tra” (Gadamer, 1986: 346). A segunda é a da “primazia hermenêutica da questão”, mas dessa tese por enquanto cabe apenas registrar que ela destaca a “importância do conceito de questão para a análise da situação hermenêutica” (Gadamer, 1996: 385) e que em conseqüência a alteridade de situações suscitada pela aplicação é, numa medida significativa, uma alteridade de questões.

É sobretudo em Esser — um autor emblemático, em muitos aspectos, da JH, em cujo âmbito sua obra fundamental Pré-compreensão e escolha do método, de 1970, se impôs rapidamente como uma referên-cia obrigatória e como a principal fonte te-órica comum — que a crítica da visão hie-

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rarquizada, secionada e linear da estrutura e do desenrolar do processo de aplicação do direito se faz por meio de um esquema conceitual que põe imediatamente em jogo a problemática propriamente hermenêutica das condições de possibilidade da compre-ensão no direito, isto é, da interpretação. A dialética dos dois planos da Rechtsfindung, cuja complexidade Esser procura constan-temente ressaltar, é encarada então como uma forma de relação hermenêutica entre duas situações, o horizonte da norma e o da “situação de conflito”. A primazia da pergunta se manifesta tanto na forma como cada horizonte é apreendido pelo intérprete como no mecanismo de busca de um com-promisso que põe em marcha o processo decisório. Assim, o raciocínio do intérpre-te parte da constatação do problema atual, passando imediatamente a vislumbrar a sua futura solução. É por isso que se alude a uma precedência do caso relativamente ao texto normativo, enquanto elemento deflagrador da interpretação. Kriele (1976: 240), um autor cujas formulações geral-mente se aproximam das de Esser (razão pela qual são às vezes alvo das mesmas críticas) observa que muitas teorias da in-terpretação pressupõem equivocadamente que o ponto de partida do processo inter-pretativo é a constatação pelo intérprete do caráter equívoco ou lacunoso do texto que acaba de ler, seguindo-se então a busca de sua compreensão correta — uma pressupo-sição que dissocia a interpretação do texto do problema jurídico concreto. Por outro lado, o intérprete não pode conhecer a lei sem ter acesso ao raciocínio prático que a embasa, o que equivale a interrogar seus objetivos (que precisam ser atualizados) e seus fundamentos, suas razões de ser. Enfim, é apenas a partir, e em função, da prévia compreensão do problema concreto que o intérprete pode interrogar o texto, de modo que a transmissão de uma específica

questão de regulação (relativa ao proble-ma concreto) com vistas ao possível signi-ficado das diretrizes do texto questionado é assim o ato decisivo sem o qual o senti-do regulador de uma expressão contida na linguagem da lei permanece simplesmente inacessível (Esser 1970: 134-135). Todos os elementos de um plano são então re-lacionados com os do outro e referidos à visão da decisão final adequada (mas tam-bém, como se verá adiante, à possibilidade de justificá-la), numa dialética incessante entre olhar retrospectivo dos problemas e das necessidades e visão prospectiva das expectativas e da solução, entre pertinên-cia à tradição e busca de um compromisso com o horizonte alheio.

2.3. Das condições de possibilidade às condições de validade

A assimilação por Esser dessa pro-blemática é portanto essencial à sua radica-lização da visão da complexidade e da dia-lética do raciocínio judicial. Mas o tema da pertinência à tradição como uma condição do exercício da compreensão se introduz de tal forma em seu pensamento que reve-la, por outro lado, a implicação substancial entre o projeto de revisar a concepção da condução efetiva dos processos interpre-tativos e o de buscar os fundamentos da controlabilidade racional desses mesmos processos. (É importante lembrar aqui que o projeto teórico da JH nunca pretendeu ser puramente empírico ou descritivo, ain-da que num primeiro momento a polêmica contra a “metodologia tradicional” tenha mobilizado uma grande parte de seus es-forços para a afirmação e a descrição do poder criador do juiz, e ainda que a distin-ção entre contexto de descoberta e contexto de justificação tenha sempre aqui um papel importante.) No pensamento e nos textos de Esser (eles próprios muitos circulares),

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essas duas preocupações estão imbricadas de tal forma que às vezes é impossível desvencilhar as respectivas passagens. Em todo caso, o ponto de partida consiste em definir a situação hermenêutica do intér-prete enquanto tomador de decisões — o que inclui a pré-compreensão em sua du-pla dimensão de pré-decisão e de projeção de uma tradição — como o “âmbito” no qual se deve elaborar o problema da racio-nalidade: o método precisa “lidar com a decisão, seus horizontes e suas perspecti-vas de escolha” antes de se preocupar com as normas. “O acesso à racionalidade da decisão permanecerá obstruído enquanto continuarmos a considerar a decisão como o produto, metodologicamente sem inte-resse, do trabalho com a norma e da sua compreensão...” (1970: 78, sem itálico no original).

Fazer da situação do intérprete o lugar do problema da racionalidade não significa, todavia, reduzir o julgamento à esfera de sua subjetividade. Desde logo, é unicamente por meio da tomada de consci-ência das “condições fundamentais do seu trabalho” que o intérprete pode evitar os efeitos perversos da alternativa que consis-tiria em neutralizar ou mesmo dissimular o caráter político-jurídico do raciocínio judicial. (No âmbito da JH alude-se com freqüência à “consciência da pré-compre-ensão” como uma condição fundamental da racionalidade das interpretações.) Con-tra aqueles que o acusam de abandonar a interpretação à política, em razão de sua atitude pretensamente “antimetodoló-gica”, Esser responde que o que abre as portas à perversão do direito é na verdade “a pretensa Wertungsfreiheit dos métodos jurídicos e da lógica conceitual, que já de-sempenhou diversas vezes esse papel po-lítico. A suposta Wertfreiheit do raciocínio jurídico está necessariamente mais sujeita às ideologias do que a liberdade de valora-

ção do juiz (Freiheit des Richters zur Wer-tung), que tem a necessidade de justificar o resultado obtido ou pelo menos torná-lo plausível” (Esser, 1970: 116, 138).3 Mas, sobretudo, a esse âmbito assim definido do problema corresponde uma perspectiva a partir da qual Esser se propõe a pensar positivamente a racionalidade dos proces-sos decisórios: a perspectiva do condicio-namento do intérprete e de sua posição de mediador. Abordar a questão da racionali-dade a partir da situação hermenêutica do intérprete conduz à tentativa de fundamen-tar o caráter racional das interpretações precisamente no fato de que são situadas. Se a interpretação enquanto aplicação, no sentido da hermenêutica, implica a dife-renciação temporal, a tensão e a dualidade entre dois horizontes, o intérprete se define não apenas pela função que exerce — a in-terpretação —, mas também pela posição que ocupa numa relação, uma posição es-sencialmente intermediária: entre o objeto interpretado e o destinatário ou benefici-ário da interpretação. Toda a reflexão de Esser sobre as “garantias de racionalidade da práxis decisória dos juízes” (garantias irredutíveis a um critério ou fator unitário) está de fato organizada em função dessa dúplice idéia central da posição e do papel de mediação implicados pela situação her-menêutica do intérprete: o intérprete é um mediador entre os dois horizontes que ao mesmo tempo o condicionam, o horizonte da “norma” e o do “conflito social” (Esser, 1970: 114-137). (É, aliás, essa organização que garante alguma legibilidade a um tex-to desprovido de estrutura sistemática e às vezes obscuro).

No que diz respeito à situação de conflito, Esser evoca sua apreensão pelo intérprete enquanto situação típica, forma-da “não pelas expectativas dos indivíduos que procuram a proteção jurídica, e sim por aquelas (em sua situação de conflito

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com expectativas concorrentes) de qual-quer outro indivíduo potencialmente afeta-do por interesses já reconhecidos alhures”. Mas como esse horizonte de expectativa é geral e conflitual, o juiz só pode integrá-lo ao ato de obtenção do direito (Rechts-findungsakt) levando em consideração “o esperado consenso social em torno de uma decisão ‘razoável’”. Assim, é a par-tir de uma tal expectativa de consenso que “o modelo de regulação se faz interrogar quanto a seu sentido possível em vista do conflito em questão” (Esser, 1970: 136-137). A interrogação do horizonte passado da norma corresponde por sua vez à inter-venção, na constituição da racionalidade dos processos decisórios, de fatores perti-nentes à positividade do direito. Mas a pre-sença do positivo e do sistemático não se contrapõe ao caráter “jurídico-político” ou “material” dos processos decisórios, uma vez que Esser defende (e isso remonta à época pré-gadameriana do seu pensamen-to) uma concepção sócio-axiológica e anti-imperativista da positividade entendida como um processo dinâmico e permanen-te de positivação. A norma se apresenta como algo de inteligível na medida em que não seja encarada como um ato imperativo da autoridade, estabelecido uma vez por todas, e sim como um “modelo de regu-lação”, como um dos pólos de um diálo-go, como uma injunção de atualizar uma finalidade normativa que não se destina, e que em todo caso não se prestaria, a uma execução mecânica, e sim a uma aborda-gem interpretativa, a uma compreensão enquanto fusão de horizontes, que dá um sentido atualizado ao modelo interrogan-do-o a partir do contexto de expectativas da situação de conflito. Em seguida, para que a norma possa funcionar como modelo de regulação, aberto a uma compreensão de sentido, é preciso poder conectá-la a um “esquema interpretativo geral”, que não

é aquele que teria sido imposto por uma vontade legislativa entendida como impe-rativo “histórico”, e sim aquele que deriva do sedimento sócio-axiológico do sistema, e ao qual o intérprete pode ter acesso ao se interessar pelos princípios, pelas idéias jurídicas gerais, pelos brocardos — esse conjunto de elementos daquilo que Esser chama da infra-estrutura pré-positiva da norma, e que inclui tanto os consensos axiológicos recepcionados e controlados pelo direito como aqueles que permane-cem no estado de modelos pré-jurídicos de ação, juridicamente determinantes de uma forma indireta, ainda que apenas por ocasião dos atos críticos de controle da adequação. Um sistema jurídico positivo é, portanto inteligível porque as normas que o compõem não são enunciados iso-lados reunidos de uma forma arbitrária ou aleatória, e sim um produto histórico e provisório de um ciclo permanente no qual se sucedem a descoberta dos problemas, a formação dos princípios e a articulação de um sistema. O sistemático no direito corresponde então no pensamento de Esser não a uma propriedade lógico-formal, mas antes à idéia de uma “ordenação” entre ele-mentos que formam a experiência jurídi-ca: a inserção das normas numa totalidade legislativa (a “superestrutura” da norma), mas sobretudo, no plano da infra-estrutura, a conexidade axiológica e teleológica entre os diferentes bens e finalidades protegidos e reconhecidos ou entre as representações axiológicas pré-positivas. A positividade, por sua vez, implica exatamente a abertu-ra ao mesmo tempo cognitiva e funcional entre o jurídico e o pré-jurídico. “A própria funcionalidade do direito enquanto siste-ma depende inteiramente da inclusão con-trolada dos juízos de valor pré-jurídicos ou em todo caso pré-positivos” (Esser, 1970: 165). O papel do sistemático (assim en-tendido) na racionalidade própria do pro-

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cesso decisório corresponde não apenas à inclusão, na interrogação desse “horizonte alheio” que é a norma, da busca do seu se-dimento pré-positivo, mas também à toma-da de consciência, por parte do intérprete, das exigências ligadas à projeção geral e sistemática da decisão concreta. O sistema positivo é “preservado” na medida em que o intérprete se mostre consciente do fato de que a própria atividade judicial, e, portan-to a decisão por ele tomada, contribui para transformar o sistema, e na medida em que leve em consideração a expectativa de uma evolução coerente, expectativa que decor-re da necessidade ao mesmo tempo formal e material de estabilidade e de continui-dade. “Os critérios [da decisão] não são apreciados levando-se em consideração unicamente a admissibilidade da decisão concreta do caso, mas também em consi-deração da admissibilidade e da utilidade das representações jurídicas subjacentes com relação ao ‘sistema’, isto é, em con-sideração da possível ‘continuidade do tra-balho’ (Weiterarbeiten). As reflexões sobre a aceitação de uma determinada solução não levam em conta apenas sua utilidade concreta ou ocasional, mas também a ap-tidão geral ao prosseguimento de uma cor-respondente práxis jurisdicional” (1970: 148). (Essa passagem lembra naturalmente as noções dworkinianas do direito como integridade e do direito como um romance em cadeia, escrito coletivamente.)

2.4. A controlabilidade da interpretação: qual instância crítica?

A apresentação que se acaba de ofe-recer não relata todas as nuances de um pensamento que quer explorar a fundo a dialética incessante de um “ato de obten-ção do direito” entendido como um “vai-vém do olhar” entre, de um lado, a pres-são do sistema (ou, antes as necessidades de uma inviolável “integridade jurídica”

— Rechtsredlichkeit) e, do outro, a “atra-ção de expectativa”, isto é, a consideração da adequação concreta e geral da decisão à consciência social. Mas já permite mesmo assim entrever as razões pelas quais a vi-são esseriana é muitas vezes considerada incapaz de submeter o processo decisório a uma verdadeira instância crítica metódica, baseada num critério concreto e operacio-nal — frustrando com isso um anseio natu-ralmente associado ao problema da racio-nalidade das interpretações jurídicas.

Inicialmente, o caráter racional do relacionamento do juiz com o horizonte de expectativa da situação de conflito é forte-mente dependente de uma noção de con-senso que permaneça totalmente impreci-sa. Essa noção às vezes parece sugerir uma forma de racionalidade discursiva, mas as suas formulações sempre vagas não espe-cificam, dentre outras coisas, as condições próprias a esse consenso (apresentado qua-se sempre como hipotético, e não efetivo) — a não ser com a referência à exigência fundamental da aptidão ao diálogo (Ges-prächfähigkeit) e da inteligibilidade dos interlocutores, “isto é, a sua capacidade de se deixarem persuadir pela força dos co-nhecimentos racionalmente transmitidos, e não, em todo caso não principalmente, pela autoridade e pela sugestão” (Esser, 1970: 25). Ignora-se ainda totalmente em que medida Esser imagina uma organização institucional das condições favoráveis ao desenvolvimento de uma prática argumen-tativa ou discursiva efetiva, organização essa destinada a envolver o processo judi-cial de obtenção do direito, ou se, muito ao contrário, tudo o que ele tem em men-te é apenas um diálogo hipotético (nesse último caso a Rechtsfindung estaria então destinada a ser essencialmente um proble-ma do juiz, e não a se tornar um processo aberto, plural, comunicacional).

Quando se examina em seguida a par-cela de racionalidade que residiria na con-

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sideração, pelo intérprete, da positividade e do sistema, já não é mais a capacidade de Esser de fundar uma controlabilidade me-tódica que se põe em dúvida, e sim, mais fundamentalmente, o seu próprio compro-misso (todavia sugerido em algumas de suas afirmações) com essa aspiração. A despeito de algumas ambigüidades e tal-vez de algumas incoerências, Esser parece na realidade muito longe, quando evoca a inteligibilidade que seria propiciada ao sistema pelo seu sedimento axiológico, de querer fazer da “reserva” de princípios e idéias jurídicas gerais a fonte ou o fun-damento de um cognitivismo rigoroso ou metódico. Os princípios não são “objetos” postos à disposição de um “sujeito” sobera-no, o intérprete, com vistas a um conheci-mento entendido como apreensão objetiva que permitiria, num segundo momento, a derivação da decisão a partir do conteúdo normativo abstrato assim fixado. Formam apenas um “esquema interpretativo geral”, que aliás não apenas alimenta o sistema jurídico, como também participa do con-dicionamento hermenêutico da sua própria compreensão, na medida em que faz parte de uma tradição cujos efeitos se projetam sobre a pré-compreensão do intérprete. Dessa forma Esser evacua o voluntarismo subjetivista tanto, por um lado, como ex-plicação da produção do direito (a crítica do imperativismo) quanto, por outro, como fundamento do seu conhecimento. Em ou-tras palavras, se não há um sujeito racio-nal autônomo que por sua “vontade” cria o direito, sua interpretação também não é função de uma vontade racional de um au-tônomo “sujeito” conhecedor.

3. A JH e a filosofia hermenêutica: o di-lema

Essas questões conduzem a uma dis-cussão que vai além da obra de Esser e que diz respeito a toda a corrente da qual ele

é, como antes observado, o representan-te mais venerado: não haveria finalmente uma tensão e mesmo uma profunda con-tradição entre os objetivos da JH, que quer ser uma teoria “metodológica” do direito, e a hermenêutica filosófica “relativista” e “antimetodológica” na qual aquela preten-de estar apoiada?

A questão não é simples. A sedução exercida pela filosofia de Gadamer junto à JH não se devia apenas ao fato de lhe for-necer os instrumentos teóricos necessários ao desenvolvimento de uma fenomenolo-gia dialética e “material” do ato interpre-tativo, mas também à perspectiva que a hermenêutica filosófica pareceu oferecer de uma saída para a crise da “racionalida-de jurídica”, à qual estava ligada a crítica da tradição positivista que desencadeia, como se viu, a guinada antiformalista da qual derivou a JH. É que a hermenêutica gadameriana não era insensível às preocu-pações epistemológicas e metodológicas, a despeito dos rótulos algo reducionistas que lhe são atribuídos, inspirados sobre-tudo no debate entre Gadamer e Betti e apoiados numa distinção antagonista entre hermenêutica ontológica e hermenêutica metódica e crítica. A “guinada ontológica” da hermenêutica, embora seja sem dúvi-da uma das grandes marcas distintivas do pensamento de Gadamer, não se apresenta como uma alternativa, uma superação ou um abandono das questões epistemológi-cas, e sim como o seu prolongamento no sentido de um alargamento do campo de reflexão sobre a compreensão, que é assim elevada ao nível de problemática filosófica autônoma e fundamental. O problema da epistemologia e da consciência metodoló-gica das “ciências do espírito” é, como se sabe, o ponto de partida e um tema sempre central de Verdade e Método. Por isso o pro-jeto apresentado por Gadamer de legitimar filosoficamente a pretensão das ciências do

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espírito de dispor não simplesmente de um método próprio, mas de uma noção espe-cífica de verdade, distinta daquela subja-cente às práticas das ciências exatas ou da natureza, pôde parecer anunciar a solução “pós-positivista” que se buscava no âmbito do novo Methodenstreit. Mais do que isso, no desenvolvimento desse projeto a her-menêutica jurídica, no sentido da prática interpretativa dos juristas, é contemplada, como já se indicou, com a atribuição de um “significado exemplar” (Gadamer, 1996: 347-363). Isto é, a filosofia hermenêutica não apenas parecia anunciar a racionalida-de pós-positivista reclamada pelos juristas, como além disso os incitava a buscar em sua própria prática efetiva (e não, em todo caso não principalmente, na elaboração de um modelo contrafático) os elementos que a constituem.

Mas é na concepção concreta dessa controlabilidade que surge o problema. É verdade que não cabe ver na recusa de Ga-damer em prescrever um método interpre-tativo ou em indicar as regras ou critérios da interpretação correta algo como um “ju-ízo de inadmissibilidade” da pretensão de se submeter a compreensão a uma instân-cia crítica. Apel (1994: 32) observa mes-mo a esse respeito que “a fenomenologia hermenêutica só pode exercer sua função corretiva do estreitamento metodologista e cientificista da problemática da verda-de caso ela mesma não se seja indiferente de um ponto de vista metodologicamente normativo”. Ocorre precisamente que uma tal “normatividade” não pode ser mais do que potencial, uma vez que os esforços de Gadamer se situam no plano mais abstra-to da justificação filosófica da aptidão à racionalidade das ciências sociais, de sua “pretensão à verdade”; em outras palavras, situam-se no plano da definição do “lugar” específico dessa racionalidade, mais do que no da elaboração concreta das formas de

seu exercício. Logo, se o apelo feito à her-menêutica filosófica pela teoria do direito às voltas com a crise da racionalidade da operação intelectual dos juristas não tem na verdade nada de aberrante, uma dificul-dade real reside mesmo assim na primazia que a perspectiva hermenêutica confere ao relativismo e à reflexão sobre a historici-dade do conhecimento em detrimento do desenvolvimento de uma instância crítica. Ocorre que no contexto mais geral da te-oria jurídica “pós-positivista” constitui já um problema muito delicado a harmoni-zação entre de um lado as expectativas de decidibilidade e não arbitrariedade, ligadas à prática dos juristas, e de outro a revisão para baixo das ambições epistemológicas de objetividade e de certeza, produzida pela crise do racionalismo. Nessas condi-ções, a vinculação à atitude racionalmente “humilde” da hermenêutica, que se priva de elementos críticos precisos e opera-cionais, pode produzir um sentimento de impotência que não contribui para atenuar esse incômodo. Ainda mais que à desesta-bilização epistemológica geral vem-se so-mar o problema específico da ausência de um “cognitivismo ético” tal como se torna urgente para uma Wertungsjurisprudenz que não tem a intenção de se deixar con-verter em realismo cético.

Trata-se para a JH de um verdadeiro dilema: manter-se coerente com a herme-nêutica e precisar proceder a uma muito hipotética reacomodação das expectativas e mesmo exigências imanentes à função do intérprete do direito, ou então amparar es-tas expectativas e com isso assumir o risco de contrariar a teoria filosófica que lhe tor-na possível uma renovada reflexão sobre os processos decisórios, imunizada contra reducionismos e esquematismos.

Ainda que esse dilema não tenha sido explicitamente elaborado e enfrentado no âmbito da JH, a evolução dessa corrente

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apresenta, às vezes num mesmo autor, os-cilações e vacilações que traduzem exata-mente a tensão entre sua matriz filosófica e as aspirações (ao mesmo tempo teoréti-cas e pragmáticas) indissociáveis do seu próprio surgimento no mundo das idéias jurídicas. Na seqüência se verá como o condicionamento da JH pelo contexto do constitucionalismo “ambicioso” e “juridis-ta” da Lei Fundamental favoreceu algumas soluções por assim dizer “racionalistas” desse dilema, caracterizadas por uma es-pecial sensibilidade às expectativas e às exigências jurídicas e políticas de decidi-bilidade e de controlabilidade das decisões e portanto pela atribuição de uma impor-tância primordial à necessidade de suprir o déficit crítico da hermenêutica.

4. O constitucionalismo da Lei Funda-mental e a “racionalização” da jurispru-dência hermenêutica

4.1. Primazia do direito, juridismo e demo-cracia constitucional

As noções de Estado de direito e de primazia do direito fazem evidentemente referência a processos históricos político-institucionais e a complexos de representa-ções e de valores que são indissociáveis da caracterização geral da sociedade contem-porânea de tipo ocidental ou liberal em seu conjunto. Apesar disso é comum evocar as idéias de juridismo ou de culto do direito a propósito especificamente da República de Bonn4 na medida em que o Estado de direito enquanto princípio de organização e de legitimação encontra uma expressão particularmente acentuada e, num segun-do momento, renovada no processo de reconstrução da experiência político-cons-titucional alemã após o desmoronamento moral e institucional ocorrido ao término do período nazista. Podem-se distinguir dois aspectos. Inicialmente, a idéia de li-

mitação jurídica do poder, tal como legada pela história do constitucionalismo liberal (inclusive pela tradição alemã, pioneira da doutrina publicista do Estado de direito), se projeta de uma maneira central e profunda, possivelmente sem precedentes, sobre a Lei Fundamental de 1949 (mas também sobre as constituições dos Estados-mem-bros) e sobre o modo como foi em geral compreendida. Em seguida acentua-se a importância dessa idéia como princípio de legitimação na medida em que o advento da noção de democracia constitucional reforça sua ascendência sobre o campo político enquanto plano concorrente de le-gitimidade.

Embora o juridismo encontre di-ferentes formas de expressão na expe-riência jurídica do pós-guerra (pense-se por exemplo no “renascimento do direito natural” ou no sobressalto jusnaturalista da doutrina e da jurisprudência constitu-cionais na década de 1950), é a Lei Fun-damental, “enquanto resposta à tirania nacional-socialista” (Maunz e Zippelius, 1994: V), que propicia ao Estado de direito o seu apogeu como princípio de organiza-ção constitucional. Além da declaração de princípio segundo a qual “a legislação está vinculada à ordem constitucional, o poder executivo e a jurisdição estão vinculados à lei e ao direito” (artigo 20, III, sem itá-lico no original), estão previstos diversos mecanismos concretos de enquadramento e de limitação jurídicos do exercício do po-der. Os mais importantes são a garantia dos direitos fundamentais, que ocupa o título primeiro da Constituição, a disposição de um amplo sistema de controle de consti-tucionalidade e a instituição (artigo 79) de limites da reforma constitucional. Esse último ponto é particularmente inovador. Por um lado inaugurou-se uma tendência, que se confirmaria nas décadas seguintes, a atribuir uma grande importância ao esta-

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belecimento de limites materiais ao poder de reforma das constituições produzidas democraticamente após a queda de um regime autoritário e a incluir nesse núcleo rígido o próprio princípio democrático e os elementos que compõem o Estado de direi-to. Por outro lado a Lei Fundamental criou o que a dogmática veio chamar de “obri-gação de modificação do texto” (artigo 79, I), um limite formal à reforma que proíbe a prática, freqüente durante a República de Weimar, da “quebra constitucional” (Ver-fassungsdurchbrechung), isto é, a adoção, com a maioria exigida para uma modifica-ção da constituição, de uma medida con-trária a um dispositivo constitucional mas que se aplica unicamente a uma ou várias situações especificadas e que tem assim um caráter excepcional, de modo que a regra constitucional contrariada não é revogada. Se sob a vigência do texto de 1919 a doutri-na procedia sem maiores questionamentos à dogmática da quebra constitucional (por exemplo: Schmitt, 1992: 115-116), depois da guerra considerou-se muitas vezes que essa técnica havia tornado possível a pro-gressiva substituição, sob os auspícios da legalidade, da democracia de Weimar pelo autoritarismo do Terceiro Reich, em razão da incerteza que gerava quanto ao conteú-do do direito constitucional em vigor e da conseqüente desvalorização do documento constitucional (Loewenstein, 1961: 39-40). A instituição da obrigação de modificação do texto ilustra assim a preocupação de aperfeiçoar, inclusive nos detalhes, os me-canismos jurídicos destinados à “defesa da Constituição” e a evitar o reaparecimento do “Estado de não-direito”.

Se o postulado da submissão da atividade do Estado a normas jurídicas traduz por si só uma juridicização da le-gitimidade, o advento da idéia de demo-cracia constitucional vem, por outro lado, reforçar ainda mais o culto do direito. No

processo de reconstrução da vida política e constitucional da República Federal, o fardo do período hitleriano não produziu apenas o paroxismo do Estado de direito motivado pela preocupação de evitar a vol-ta do Unrechtsstaat; provocaria também a contestação do substrato subjetivo da de-mocracia. A definição da noção de “povo”, cuja autonomia ou autolegislação caberia à democracia realizar, é evidentemente dependente de um critério de pertinência. Ocorre que o famoso “sentimento de cul-pa” dos alemães com relação aos crimes cometidos por seu Estado-nação histórico deslegitimava como elemento de coesão a nação entendida como o conjunto de dados “pré-políticos” tais como a etnia, a comunidade lingüística, a cultura e a histó-ria. A noção de patriotismo constitucional aparece então para propor que se redefina a referência identitária — indispensável ao funcionamento da democracia enquanto princípio de legitimação — sobre a base da identificação com os princípios e as instituições da constituição. Se a sua ela-boração foi estimulada em duas ocasiões pelas reflexões sobre as circunstâncias peculiares à história alemã, o pós-guerra (Sternberger, 1990) e, como o encerramen-to deste, a reunificação (Habermas, 1990), o conceito de patriotismo constitucional faz parte atualmente (graças sobretudo ao efeito universalizante de sua inserção por Habermas em sua concepção proce-dimental e discursiva da legitimidade) do amplo círculo de debates e controvérsias em torno da identidade pós-nacional e da cidadania comunitária.5 Na medida em que a referência identitária é concebida sobre a base da adesão às instituições jurídicas (notadamente constitucionais), o Estado de direito se instala na própria definição da democracia. Nesse esquema represen-tativo a ambição de absorção pelo jurídico do argumento político de legitimidade vai

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ao ponto de fazer do direito um elemento constitutivo da democracia, doravante dita “constitucional”.

O peso do argumento jurídico no conjunto dos princípios de legitimação dá um salto qualitativo tão expressivo que até mesmo o paradoxo da jurisdição consti-tucional, cuja legitimidade é questionada devido à tensão entre o princípio do Esta-do de direito e o princípio da democracia representativa, parece sob controle: com a noção de democracia constitucional o Es-tado de direito deixa de se opor à demo-cracia ou de lhe fazer concorrência para se apresentar, ao contrário, como a solução da crise da legitimidade democrática — uma crise cujo eixo, nesse contexto, foi justa-mente deslocado do problema do vínculo de representatividade para o da referência identitária.6 Com tais premissas a legiti-midade da justiça constitucional põe-se a salvo de qualquer contestação: na medi-da em que o juiz constitucional garante o “império da Lei Fundamental” e portanto a primazia do direito, o culto do direito con-duz, em última instância, ao culto do seu guardião.

4.2. A JH e o constitucionalismo juridista: convergência e tensão

A JH interage intensamente com o constitucionalismo “juridista” que por essas vias se desenvolveu sob a vigência da Lei Fundamental, isto é, com a teoria, a dogmática e a práxis constitucionais que aspiram respectivamente a pensar, tornar aplicável e efetiva, e que ao mesmo tem-po celebram, a constituição democrática e liberal e sua pretensão à normatividade. A teoria da interpretação constitucional (um dos setores mais fecundos da JH) faz parte da nova teoria constitucional, cujos temas extra-metodológicos são além disso também eles desenvolvidos muitas vezes

por teóricos que figuram ao mesmo tempo entre os protagonistas da JH, como Hesse, Müller, Häberle, Kriele, Zippelius etc. Al-guns deles integram ainda a dogmática e mesmo a práxis constitucional, como é o caso de Hesse, que foi juiz e presidente da Corte Constitucional Federal.

A propósito, é certamente a influente e muito difundida obra de Hesse que me-lhor ilustra a solidariedade entre a JH e as premissas fundamentais da teoria constitu-cional da República de Bonn. Ela fornece, antes de mais nada, a justificação teórica da elevada pretensão à normatividade de uma constituição à qual o juridismo confia não apenas o papel mais defensivo de protetor da autonomia do campo jurídico, mas tam-bém um complexo de funções mais amplo e mais ambicioso. O próprio Hesse teoriza essas diferentes funções: de estabilização e de conformação da vida da comunidade, exercidas por meio da regulação do pro-cesso de formação da unidade política e da ação estatal; de racionalização, na me-dida em que desse modo a constituição tor-na identificável e inteligível a conduta do Estado e a formação da unidade política, criando assim a possibilidade de uma par-ticipação consciente e protegendo a vida política do retorno ao amorfo e ao indife-renciado (Hesse 1993: 13). A teoria cons-titucional viria então valorizar a classifica-ção das constituições à vista dos diferentes aspectos de suas relações com a realidade e em especial de acordo com a sua pretensão a regular o processo político, salientando ao mesmo tempo, como por exemplo Bry-de (1982: 27-37), que a Lei Fundamen-tal é uma constituição “normativa” (por oposição às constituições “simbólicas”), “substancial” ou “material” (relevante Verfassung, por oposição às constituições “ritualistas”) e “pretensiosa” (por oposição às constituições “descritivas”). Recusando as concepções “politistas” do direito cons-

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titucional e a velha visão lassalliana de um cotidiano sucumbir da constituição jurídica (a constituição “folha de papel”) diante da constituição material (os fatores reais do poder), Hesse agrupa no conceito de “for-ça normativa da constituição” o conjunto de fatores dos quais depende a realização das normas constitucionais no mundo dos fatos, e que dizem respeito por um lado à “possibilidade de realização” do seu conte-údo (o que se traduz por sua vinculação às forças espontâneas e às tendências de seu tempo), e por outro à “vontade de consti-tuição”, isto é, a vontade atual (e não a do constituinte histórico) dos participantes da vida constitucional de realizar o conteúdo da constituição, de considerá-lo vinculan-te e de realizá-lo mesmo diante de resis-tências ou em sacrifício dos seus próprios interesses imediatos (Hesse, 1991: 18-22; 1993: 13-17). Como se vê, esses pressu-postos “praxiológicos” da força normativa da Constituição aproximam essa idéia da de patriotismo constitucional (surgida po-rém mais tarde, uma vez que as idéias de Hesse foram expostas pela primeira vez em 1959), que pressupõe exatamente, além da identificação com os princípios e as ins-tituições da constituição, a disposição dos cidadãos não apenas a obedecer voluntaria-mente às leis mas também ao engajamento ativo na defesa dos valores fundamentais da sociedade (Zurbuchen, 1995: 117).

Paralelamente Hesse formula uma concepção da interpretação constitucional que de certo modo sintetiza e integra as grandes bandeiras teóricas da JH, aludin-do então a um processo de concretização da norma constitucional que seja “proble-mático (problembezogenes), tópico (mas normativamente limitado e orientado) e consciente da importância da pré-compre-ensão”. É adotando o esquema conceitual de Müller que Hesse imagina então uma distinção entre duas dimensões do processo

de concretização. A primeira é a interpreta-ção do texto da norma, no qual se contém o essencial do “programa normativo” — é aqui que intervêm os métodos interpreta-tivos tradicionais. A segunda consiste em definir “problematicamente” os pontos de vista do âmbito normativo (Normbe-reich). E aos princípios da interpretação constitucional caberia a importante fun-ção de orientar e de limitar o processo de relacionamento, coordenação e avalia-ção dos pontos de vista assim elaborados com vistas à solução do problema (Hesse, 1993 : 26). É no conteúdo desses princí-pios que se dá a convergência explícita da teoria da interpretação constitucional e do constitucionalismo juridista: “unidade da constituição”, “harmonização prática” (praktischer Konkordanz), “proporciona-lidade” (Verhältnismäßigkeit), “correção funcional” (funktioneller Richtigkeit), “eficácia integradora” (integrierender Wi-rkung), “força normativa da constituição” — todos esses princípios orientam a inter-pretação no pressuposto de que a consti-tuição está organizada de modo a realizar as ambiciosas funções de estabilização, ra-cionalização, conformação e limitação dos processos políticos, e na perspectiva de sua máxima eficácia.7

Mas por trás dessa aparente comple-mentaridade entre as idéias metodológicas da JH e os postulados da teoria constitu-cional juridista se esconde uma tensão fundamental. Engajando-se ativamente no constitucionalismo da República de Bonn, às vezes até se confundindo com ele, a JH fez sua a celebração da primazia do di-reito. Isso conduziu naturalmente a uma evolução “cognitivista” de sua teoria da interpretação, o que nessas condições cor-responde menos a uma superação do que a uma ocultação do dilema fundamental da JH, mencionado algumas linhas acima8. Se o argumento jurídico de legitimação já era

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historicamente solidário de um formalis-mo que associa a aplicação do direito aos ideais de neutralidade e objetividade, seu paroxismo implicava, mesmo num contex-to de crítica do formalismo, uma hipertro-fia das expectativas voltadas ao caráter não arbitrário e publicamente controlável da aplicação. A “racionalidade” das decisões judiciais, em primeiríssimo lugar as da corte constitucional, é uma invariável num determinado esquema de legitimidade e corre o risco de se converter em axioma de uma determinada teoria da interpretação. Naturalmente que a JH não podia renegar o seu antiformalismo radical, que comba-tia não apenas a idéia de submeter o co-nhecimento dos juristas ao modelo de uma racionalidade instrumental e tecnicizada, mas também a persistência na consciência dos aplicadores do direito da representa-ção de uma aplicação mecânica, hierarqui-zada, puramente reprodutora e axiologi-camente neutra, de modo que a sobrevida da ilusão do objetivismo já não pode mais ser encarada como algo de funcionalmente positivo. Por isso o que adquire status de postulado é simplesmente, em detrimento do seu caráter eminentemente problemáti-co, a própria possibilidade de fundar — em bases “pós-positivistas”, bem entendido — a controlabilidade racional dos proces-sos decisórios. Seguindo essa tendência, as diretrizes elaboradas pela teoria da in-terpretação constitucional teriam valor de prescrições metodológicas garantidoras da justeza das decisões — uma justeza que a JH bem se lembra de a haver considerado relativa, ao mesmo tempo todavia em que dá a impressão de tratar essa relatividade como uma solução conceitual, mais do que como a abertura de uma autêntica proble-mática.

Revendo os textos da JH a partir des-sa hipótese de leitura, dois traços se sobres-saem. Primeiramente, observa-se que num

autor como Müller o caráter controlável e vinculado dos processos decisórios funcio-na muito claramente como um axioma, na medida em que a formulação dos métodos está explicitamente subordinada ao princí-pio constitucional do Estado de direito: “... os problemas da interpretação jurídica e da concretização normativa não são determi-nados por considerações extraídas da her-menêutica filosófica ou da hermenêutica geral das ciências do espírito, mas acima de tudo pelas formas especificamente jurí-dicas do raciocínio e pelas prescrições do direito em vigor, dentre as quais cabe prin-cipalmente incluir os imperativos constitu-cionais que gravitam em torno do princípio do Estado de direito”. Da pretensão carac-terística do Estado de direito — “o juiz não pode engendrar o poder, pode apenas ser o seu intermediário” — seria possível deduzir uma série de prescrições dirigidas ao próprio direito e à metodologia de sua interpretação, dentre elas a clareza e a sin-ceridade metodológicas, isto é, “a coinci-dência entre o modo de descoberta da de-cisão e a argumentação exposta”. Por essas mesmas vias Müller conclui pela inadmis-sibilidade de determinados procedimentos interpretativos, censurados por seu grau de irracionalidade e de insegurança. O condi-cionamento da problemática metodológica pela ordem constitucional da Lei Funda-mental é expressamente reivindicado por Müller (e também por Hesse), que para justificar a subordinação da metodologia jurídica às decisões do soberano político recorre ao caráter concreto das questões metodológicas e a uma concepção não universalista da ciência e da racionalidade (Muller, 1996: 111, 153, 185-186, 229-230, 236). A axiomatização da aptidão dos processos de concretização à controlabili-dade pública e a conseqüente exclusão de sua autêntica problematização parecem desse modo já decididas.

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O segundo traço que se destaca é a tensão entre de um lado a afirmação de princípio do caráter aproximativo ou rela-tivo da racionalidade à qual podem aspi-rar as interpretações (Hesse, 1993: 29) e, de outro, a presença de uma dose às vezes acentuada de construtivismo metodológi-co, que se traduz pela articulação de um discurso sistemático em torno de diretrizes metódicas e de princípios de interpretação ou de concretização (Hesse, Müller), vei-culado numa linguagem por vezes concei-tualmente rigorosa e sofisticada (Müller), mas também por uma referência insistente e sem maiores explicações à objetividade enquanto valor metodológico (Larenz), em nome da qual aliás determinadas te-ses defendidas dentro da própria JH são freqüentemente descartadas em razão de seus insuficientes préstimos à causa da clareza e da sinceridade metodológicas. (Nesses momentos a JH toma realmente ares de uma nova “querela metodológica”, com o que esse tipo de contenda implica, ao menos implicitamente, em termos de pretensão dos querelantes a uma verdade exclusiva).

A hipótese de uma tendência à axio-matização da racionalidade das interpre-tações, franqueando as portas a uma me-todologização da hermenêutica, se revela porém interrogativamente mais fértil quan-do se refere não às formulações teóricas da JH enquanto tais, mas antes à sua pragmá-tica. É possível distinguir dois aspectos. O primeiro diz respeito à leitura que das teses da JH (de umas mais do que de ou-tras) fazem alguns de seus destinatários, constitucionalistas ou juristas práticos, que na reprodução dogmática ou prática (e eventualmente teórica) dessas teses muitas vezes acentuam, sob a evidente pressão da exigência de decidibilidade com que se defrontam diretamente, a tendência meto-dologizante ou objetivista, enfraquecendo

ainda mais as nuanças e reservas a respeito da pretensão à justeza das interpretações.

O segundo aspecto, intimamente li-gado ao primeiro, refere-se por assim di-zer aos préstimos da teoria hermenêutica da interpretação constitucional à causa, tanto política quanto metodológica, do controle de constitucionalidade, isto é, de seu domínio técnico e de sua legitimidade. Seja por meio de suas teses mais abstra-tas relativas à “estrutura” dos processos e do raciocínio decisórios, seja através das “diretrizes” formuladas para a interpreta-ção constitucional, a JH contribui de fato decisivamente não apenas para a formação e o desenvolvimento, mas também e tal-vez, sobretudo para a justificação teórica dos diferentes métodos ou técnicas empre-gados pela Corte Constitucional Federal alemã quando do exercício de suas amplas atribuições de jurisdição constitucional, notadamente o controle abstrato ou con-creto da constitucionalidade das normas (artigo 93, I, 2 e artigo 100, I da Lei Fun-damental). O aparato conceitual da teoria “estruturante” de Müller, por exemplo, é freqüentemente empregado para explicar e mesmo para aplicar técnicas como a “de-claração de nulidade parcial sem redução de texto” (Teilnichtigkeitserklärung ohne Normtextreduzierung), isto é, o reconhe-cimento de uma inconstitucionalidade que afeta determinados elementos do “âmbi-to normativo” em sua aptidão a integrar o “programa normativo”, razão pela qual se diz então que a decisão tem o efeito de modificar este último ao mesmo tempo em que deixa intacto o texto da norma. Esse mesmo embasamento teórico pode ser as-sociado às técnicas praticadas pela Corte com base na idéia da “abertura temporal” do conteúdo das normas constitucionais, resultado da dinâmica do respectivo âm-bito normativo. É o caso de algumas das decisões ditas “de exortação ao legislador”

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(Appellentscheidungen), particularmente daquelas que conclamam o legislador a modificar uma legislação que “se tornou inconstitucional” em razão de transforma-ções das relações materiais que alteraram o conteúdo da norma constitucional (uma legislação que em determinadas circuns-tâncias a Corte se abstém de invalidar a fim de evitar quer um vazio jurídico quer a invalidação de atos pretéritos às vezes importantes como, por exemplo, um pro-cesso eleitoral recentemente organizado de acordo com os termos de uma lei que “se tornou inconstitucional”). É ainda o caso daquelas que advertem o legislador para a necessidade de modificar rapidamente uma legislação “ainda constitucional” mas que corre o risco de em breve se tornar incons-titucional em decorrência de um processo atual de evolução do âmbito normativo da norma constitucional — um processo que em determinado momento terá modificado o conteúdo dessa norma.9

É, sobretudo propiciando esse tipo de subsídio teórico à práxis e à dogmática10 que a JH contribui de modo significativo para que a atividade da Corte Constitucio-nal se dote de um enquadramento técnico, de uma estabilidade e de uma sofisticação (e mesmo de uma objetividade) conceitu-ais que não podem deixar de reconfortá-la em sua pretensão a um exercício douto e enquanto tal legítimo da jurisdição cons-titucional.11 Prestando tais serviços à as-piração a um domínio técnico do exercício da jurisdição constitucional (e conseqüen-temente à causa de sua legitimidade), a JH age por sua vez sobre o constitucionalismo ambicioso que a havia inicialmente in-fluenciado. Observa-se, por exemplo que as técnicas descritas acima ampliam ainda mais as possibilidades da interferência da Corte na atividade normativa do Estado: as decisões de exortação ao legislador po-dem fixar-lhe um prazo para a edição de

uma nova lei, enquanto que a declaração de nulidade parcial sem redução de texto diversifica as modalidades de intervenção do juiz constitucional sobre o conteúdo da obra legislativa já produzida.

Graças à trajetória “metodologizan-te” de sua pragmática, a JH se torna de cer-to modo inseparável do constitucionalismo ambicioso. E é nessa perspectiva que se pode falar de uma presença discreta porém sólida das suas teses no modo como os ju-ristas (embora principalmente os não teó-ricos) encaram a interpretação constitucio-nal, inclusive fora do espaço germanófono. Isso se deve à propagação de diversos as-pectos desse constitucionalismo: a acentu-ação do Estado de direito como princípio de organização; a representação juridista da constituição, à qual corresponde uma determinada teoria constitucional; o apego à primazia do direito como argumento de legitimação (inclusive como resultado da redefinição constitucional da democracia). É aliás pensando na generalização desse conjunto de formas constitucionais e de re-presentações que se fala hoje em dia, sem nenhuma restrição à experiência alemã, em “neoconstitucionalismo”, uma fórmula que alguns empregam como sinônimo de constitucionalismo contemporâneo (Prieto Sanchís, 2002: 169).

A difusão desse modelo de consti-tucionalismo, no curso da qual a referên-cia ao paradigma alemão desempenha um papel permanente, generaliza uma teoria constitucional marcada pela contribuição significativa da JH, especialmente quando se trata — e neste contexto isto se torna uma parte central do direito constitucional — de assimilar e controlar teórica e me-todologicamente o exercício da jurisdi-ção constitucional. É compreensível que a disseminação do constitucionalismo ambicioso tenha sido mais global e mais precoce em países que vivenciaram uma

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experiência análoga à da Alemanha, isto é, um retorno à democracia e ao Estado cons-titucional de direito após a queda de um regime autoritário: a Itália naturalmente, mais tarde a Espanha, Portugal, diversos países sul-americanos ao longo dos anos oitenta (especialmente o Brasil). A Lei Fundamental converte-se então num pa-radigma de constituição contemporânea e exerce uma influência mais ou menos di-reta na elaboração dos novos documentos constitucionais; a Corte de Karlsruhe, cuja jurisprudência é acompanhada de perto, torna-se um modelo de tribunal constitu-cional; e os constitucionalistas alemães (dos quais muitos, como já se salientou, são também teóricos integrados à JH) pas-sam a constituir uma referência teórica obrigatória. É significativo que a expansão do constitucionalismo juridista tenha mais tarde atingido a cultura e a experiência jurídicas francesas, que não conheceram aqueles traumas político-institucionais, e a despeito, além disso, do ambiente pouco favorável formado pelo legicentrismo pre-sente tanto na organização constitucional (inicial, em todo caso) da Quinta Repú-blica quanto na tradição que a precedia e a envolvia. Uma teoria constitucional ju-ridista, convencida da necessidade (e da possibilidade) de levar a sério a pretensão da constituição à normatividade e da im-portância da jurisdição constitucional para a sua realização, veio inicialmente (na se-qüência das transformações institucionais ocorridas no início dos anos setenta) fazer concorrência à perspectiva politista até então hegemônica no direito francês. Em seguida se verifica uma influência direta da JH nos estudos metodologicamente “cons-trutivistas” destinados à assimilação e ao enquadramento teóricos da agora intensa atividade do Conselho Constitucional.

Além dessa progressiva metodologi-zação da hermenêutica, a reação “raciona-

lista” ao dilema trazido pela tensão entre, de um lado, os postulados e os limites da fi-losofia hermenêutica e, de outro, as expec-tativas com as quais se defronta a JH pode ainda tomar a forma de uma aproximação do modelo da racionalidade discursiva, como demonstra a teoria da interpretação pluralista e procedimental da constitui-ção, apresentada por Häberle a partir de 1975 e muito conhecida nos espaços ger-manófonos e germanófilos. O alargamento do círculo dos intérpretes da constituição, para incluir não apenas os intérpretes ha-bilitados como também todos aqueles que “vivem a norma”, é apresentado como uma conseqüência imanente à lógica de um conceito de normatividade entendida, nos termos da teoria estruturante, como uma fusão de textos normativos com o âm-bito das relações materiais — todos os que contribuem para a conformação da reali-dade constitucional fazem assim parte do processo de interpretação das normas que se referem a essa realidade. Transformada em assunto de responsabilidade de uma ampla “sociedade aberta dos intérpretes da constituição”, a interpretação vê então a sua “justeza” submetida aos mesmos va-lores comunicacionais e deliberativos que, por outro lado, vinham progressivamente completar a idéia pós-representativa de le-gitimidade política, que aparecera com o advento da democracia constitucional.

As idéias de Häberle tinham bem menos chance de conduzir, em suas for-mulações como em sua pragmática, a essa espécie de perversão metodológica da he-rança gadameriana que corre o risco de se produzir quando da repercussão e da repro-dução das idéias da JH em determinados contextos. Elas podem aliás alimentar uma certa leitura contemporânea dessa corrente, que enfatiza a sua incompletude (diante do objetivo que lhe é atribuído) mas também o seu caráter aberto e fundador, sobretudo

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na perspectiva de sua complementação ou aperfeiçoamento pela teoria da argumen-tação jurídica racional (Zaccaria, 1989: 356), portadora da instância crítica que lhe faltava. Uma leitura como essa é sem dúvi-da alguma plausível e fecunda, traduzindo uma perspectiva interrogativa que coloca em primeiro plano o problema da aspira-ção ao exercício público do controle da ra-cionalidade ou justeza das interpretações.

5. Considerações finais

O constitucionalismo juridista não condiciona apenas a evolução da JH, con-diciona também o exercício de sua inter-pretação, na medida em que o seu leitor contemporâneo – seja ele um “consumi-dor” do seu acervo doutrinário-metodo-lógico, seja um crítico mais distanciado – está ele próprio inserido num contexto em que têm vigência aquelas expectativas reforçadas de decidibilidade e racionali-dade das decisões, inclusive no âmbito sempre e cada vez mais problemático da interpretação constitucional – e isso num universo que, como se viu, extrapola já há algumas décadas os limites do mundo ger-manófono. Mas a tomada de consciência desse condicionamento, embora obvia-mente não permita fazer abstração de sua própria situação hermenêutica, produz um efeito de relativização que torna possível a articulação de outras perspectivas a partir das quais a JH, como componente da tra-dição recente da teoria do direito, também pode ser abordada.

Umas delas consiste em colocar em primeiro lugar, quando da interrogação da JH, não a ambição de um domínio norma-tivo (contra-fático) ou mesmo conceitual dos processos interpretativos, e sim a ten-tativa de explorar a diversidade possível do horizonte contemporâneo da teoria do direito. Adotando essa perspectiva, pode-se esboçar uma outra leitura possível da

JH, que não veria a fraqueza da fundação hermenêutica de uma instância crítica con-cretamente operacional das interpretações como uma insuficiência de uma teoria des-tinada a ser complementada, finalizada ou ainda superada pela racionalidade comuni-cacional, pragmático-transcendental, e sim como um indício daquilo que pode consti-tuir a especificidade e a autonomia de um ponto de vista especificamente hermenêu-tico no conjunto do panorama teórico con-temporâneo. (Na formulação dessa conjec-tura interpretativa a identificação de uma tendência imanente à JH e a elaboração da resposta que ela possa inspirar à pergunta que lhe é dirigida, a da especificidade de um atual ponto de vista hermenêutico, não são duas operações rigorosamente separá-veis).

Sintomaticamente, é explorando a obra de um não-constitucionalista, Josef Esser, que essa leitura da JH pode ser, em-bora a muito custo, restaurada (Just, 2005b: 134-138). Expor essa leitura já extrapola-ria dos objetivos deste texto, mas é impor-tante advertir para o fato de que com ela não se pode chegar ao ponto de excluir o condicionamento do pensamento de Esser pelos fundamentos políticos e culturais do constitucionalismo da Lei Fundamental. O projeto de converter o problema da “racio-nalidade” do direito no da reflexão sobre as suas condições de inteligibilidade, e de pensá-las a partir de sua “base” histórico-tradicional (num contexto em que tudo pa-rece convergir para concebê-la do “alto” da adesão racional aos princípios e valo-res constitucionais e dos parâmetros ideais de validade) tira proveito da teorização da autonomia funcional do campo jurídico e com isso revela a confiança em sua reali-zação histórica. Pressupõe, por outro lado, a eficácia da socialização profissional dos juristas – aspecto particular de sua sujei-ção aos efeitos da tradição – no sentido de

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orientar a formação das pré-compreensões segundo a preocupação de assegurar a con-tinuidade ou a integridade de um comple-xo de princípios e de valores historicamen-te construído e juridicamente articulado, impedindo com isso a instrumentalização do direito pela política. Assim, se Köndgen (2001) tem razão ao dizer que a posição de Esser não compartilha do Vernunftop-timismus da teoria do discurso haberma-siana, seria necessário acrescentar que ela demonstra em compensação uma espécie de otimismo da cultura ou da história. Um otimismo de todo modo certamente esti-mulado, é preciso reconhecer, exatamen-te pelas condições favoráveis propiciadas pelo triunfo histórico de uma constituição que celebra a primazia do direito.

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NOTAS1 A metáfora provém ao que parece de Engisch (1997), que a introduzira contudo no contexto de uma visão muito mais ortodoxa do que a da JH, como ele mesmo teve a oportunidade de registrar. 2 A percepção desse problema conduziu por exemplo Kaufmann (1994:162-3) e Esser (1970: 31) a reforçar a crítica da visão de um automatis-mo silogístico explorando a dialética entre norma e fato do ponto de vista de sua diferença “catego-rial”. Nunca poderia existir uma verdadeira “cor-respondência” entre Tatbestand e Sachverhalt, eles não podem ser mais do que “levados” à

A EXPERIÊNCIA CONSTITUCIONAL COMO ASPECTO...

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correspondência por meio de um raciocínio ana-lógico. Em conseqüência, não se poderia mais sustentar uma diferença propriamente qualita-tiva entre analogia, preenchimento de lacunas, “aperfeiçoamento do direito”, interpretação etc. Toda controvérsia jurídica seria nesse sentido fruto de uma lacuna, de que se insinua então um conceito amplo, tal como o formula por exemplo Kriele (1979: 67): « Eine Lücke in weiteren Sinn besteht immer dann, wenn eine juristische Strei-tfrage noch offen ist, weil verschiedene Ausle-gungen technisch vertretbar wären - also in allen juristischen Streitfragen. Die Gesetzeslücke in diesem Sinne ist nicht die Ausnahme, sondern die Regel ». Mas não é certo que essa tendência corresponda a uma orientação uniforme da JH na discussão mais geral sobre a diferença entre o problema das lacunas e o da interpretação (van de Kerchove, 1993). 3 O trecho citado é o único de Pré-compreen-são e escolha do método em que a dimensão axiológica do processo decisório está associada ao termo “liberdade”, e não ao de “responsabi-lidade” (ver também o título do capítulo VIII: Freiheit und Bindung des Richters in Reschts-findungsprozeß). Essa forma excepcional de se expressar desempenha nesse contexto uma ób-via função estilística e retórica.(1990:120), por exemplo, fala nesse sentido dessa “superiorida-de do direito sobre a política que é tão caracte-rística da República Federal da Alemanha”. 4 Ver especialmente: Habermas, 1998 e 2001 ; Hermet, 1997: 75-85 ; Zurbuchen, 1995 ; Cou-tu, 1998 ; Schnapper, 2001.5 Pode-se recordar que a dificuldade de se res-paldar a legitimidade da Lei Fundamental na teoria clássica do poder constituinte, em razão das circunstâncias de sua elaboração (que inclu-íam especialmente a aprovação do texto pelos governadores das zonas ocidentais de ocupação, além da eleição indireta do Conselho Parlamen-tar encarregado de deliberar sobre o projeto) ha-via já levado a doutrina constitucional (trata-se portanto de considerações situados num outro plano) a procurar a justificação da legitimidade democrática da constituição fora dos esquemas representativos clássicos. Nesse sentido evocou-se com freqüência uma legitimação a posteriori que poderia ser reconhecida por exemplo na par-ticipação cada vez mais expressiva do eleitorado nas eleições parlamentares (chegando a 91,1%

em 1969) e na vitória, quando do primeiro plei-to, em 1949, alguns meses após a entrada em vigor do texto constitucional, dos partidos que haviam votado a favor do projeto no âmbito do Conselho Parlamentar, em detrimento daqueles que haviam votado contra. Esses fatos demons-trariam que o povo alemão se teria identificado mais claramente com a Lei Fundamental do que com a Constituição de Weimar, apesar da ela-boração democrática desta última. (Mußgnug, 1995: 255-257; Starck, 1994: 54-55; Gozzi, 1999: 119-122)6 Simetricamente, Forsthoff (1976) veio expres-sar uma posição antitética à de Hesse, tanto no plano da teoria da interpretação, que o primei-ro pretendia manter atrelada essencialmente à “metodologia tradicional”, quanto no da teoria constitucional formulada sob a vigência da Lei Fundamental, notadamente no que diz respeito à discussão sobre a normatividade do princípio do Estado social e dos direitos fundamentais. 7 Sobre o sentido da distinção, todavia sempre ambígua e relativa, entre teorias cognitivistas e teorias céticas da interpretação, ver: Just, 2005a.8 Fora do âmbito mais restrito da metodologia apli-cada ao controle de constitucionalidade, alguns constitucionalistas consideram a teoria estruturante indispensável para a compreensão do fenômeno da “mutação constitucional”, isto é a modificação do conteúdo das normas constitucionais sem transfor-mação do respectivo texto (por exemplo: De Veja, 1991: 212-215; Hesse, 1992: 98-104).9 As técnicas do controle de constitucionalidade são exaustivamente estudadas pela doutrina, que chegou inclusive a elaborar uma minuciosa tipo-logia das decisões tomadas por ocasião do contro-le de constitucionalidade, uma tipologia que leva em consideração a forma da proclamação da deci-são (especialmente em sua parte dispositiva) e os efeitos jurídicos nela especificados — no jargão, a “arte do Tenorierung” (Schmidt, 1990).10 Muitos podem então chegar à tranqüilizadora conclusão de que “de um modo geral a argu-mentação da Corte Constitucional Federal é equilibrada, integra os fatores sociais e utiliza reflexões racionais” (Arnold, 2001: 63).11 Muitos podem então chegar à tranqüilizadora conclusão de que “de um modo geral a argu-mentação da Corte Constitucional Federal é equilibrada, integra os fatores sociais e utiliza reflexões racionais”

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* Mestra em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade Católica Portuguesa. Doutora em Direito Constitucional pela Uni-versidade Federal de Minas Gerais. Professora Universitária e Assessora Jurídica da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República.

Introdução

O desenvolvimento do Estado De-mocrático de Direito vincula-se, indisso-ciavelmente, às revoluções burguesas do século XVIII. Contestatórias e transfor-madoras, tais revoluções simbolizaram a negação a um determinado modelo de so-ciedade ao proporem a articulação de te-mas fundamentais tais como: a igualdade natural dos homens, a defesa do regime re-presentativo e a limitação ao exercício da soberania fundada sobre os direitos subje-tivos individuais.

Do Estado absolutista, de estrutura estamental rígida e divisão de classes mar-cantes, ao Estado de Direito, foram elabo-radas profundas redefinições nas relações de poder.

A evolução da condição de súdito1 para a de cidadão – síntese da ideologia iluminista - passou a atribuir ao Homem papel central na dinâmica histórica e o progresso a ser concebido como imanente e não transcendente ao indivíduo, resulta-do de sua racionalidade e inteligibilidade.2 Sua representação na ordem social é, pois, ampliada e ao Estado cumpre promover o

DEMOCRACIA, DIREITO E LEGITIMIDADE. A CRISE DO SISTEMA REPRESENTATIVO CONTEMPORÂNEO E OS NOVOS

DESAFIOS DO CONTRATO SOCIAL DEMOCRACY, RIGHT AND LEGALITY. THE CRISIS OF

CONTEMPORARY REPRESENTATIVE SYSTEM AND THE NEW CHALLENGES OF SOCIAL CONTRACT

MaRia elizaBeth guiMaRães teixeiRa RoCha*

Recebido para publicação em outubro de 2005

Resumo: Trata-se de análise sobre a crise do regime representativo e seus reflexos no Estado Con-temporâneo. Para tanto, buscou-se discutir os novos contornos da democracia atual e suas premis-sas, surgidas à ilharga das revoluções liberais e que se constituem, ainda hoje, em valores funda-mentais para o constitucionalismo ocidental. Temas como a liberdade, a autonomia coletiva e o sistema político-partidário são levantados, a fim de se avaliar a problemática da legitimidade na ordem jurídica do século XXI.Palavras-chave: Partidos políticos. Sistema representativo. Democracia. Grupos de pressão. Esta-Democracia. Grupos de pressão. Esta-Grupos de pressão. Esta-do liberal. Crise política.

Abstract: A crisis in the representative regime is appointed, as well as its impact on the Contempo-rary State. Focus is set in the outline of modern democracy and its premises, understood as those set by the liberal revolutions, still standing for the fundamental values of the constitutionalism of the Western World. The approach includes discussion on concepts such as freedom, political parties, representative system, aimed at an appraisal of legitimacy under the XXI Century State.Key Words: Political parties. Representative system. Democracy. Lobby. Liberal State. Political crisis.

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bem-estar social, segundo os ditames le-gais.3

As idéias iluministas justificaram a contestação ao absolutismo monárquico e a construção do liberalismo burguês. De-las resultaram a Revolução Americana de 1776, movimento de independência que re-futava a estrutura colonialista; e a Francesa de 1789, que se opunha à própria estrutura social do Estado absolutista. A liberdade era a característica tanto de um, quanto do outro movimento. No primeiro, destacava-se a liberdade de autodeterminação de um povo no processo histórico de construção de uma nação independente; no segundo, a liberdade do indivíduo ante as arbitrarie-dades do Estado, tendo na igualdade prin-cípio contraposto aos privilégios gozados pela nobreza.4

A liberdade e a igualdade, surgidas à ilharga das revoluções liberais do século XVIII, constituiriam-se em valores funda-mentais do pensamento Ocidental. Daí a designação “Estado burguês de Direito”, juridicamente estruturado por uma Cons-tituição que o controlará e imporá limites à atuação governamental.5 A Revolução Americana e, posteriormente, a Revolução Francesa simbolizam, portanto, o marco inicial do constitucionalismo moderno, embora alguns queiram ver essa origem na Magna Carta inglesa de 1215.6

Visto sob este prisma, o constitucio-nalismo inaugurou uma determinada idéia de “poder” relacionada à necessidade de se assegurar as liberdades individuais e a au-tonomia coletiva, que implicou a elabora-ção de um verdadeiro aparato institucional com o objetivo de equilibrar a relação de dominação do Estado.7

Moldura do ordenamento normativo, a Constituição merecerá ser vista não ape-nas como a lei fundamental responsável pela formação do Estado, que, por meio dela, adquire estrutura jurídico-política

e administrativa, mas também como um acordo entre governantes e governados, onde os primeiros aceitam a limitação de seus poderes em respeito a um conjunto de direitos e garantias reconhecidos àqueles últimos.

Juridicamente, a democracia fun-da-se na isonomia ao assegurar a todos a igualdade perante a lei e idênticos direi-tos aos cidadãos. No plano individual, o regime democrático adquire significado a partir da idéia de cidadania, enquanto no plano coletivo prevalece a idéia de povo, conforme se depreende da própria etimo-logia da palavra.8

Neste diapasão, a definição de “povo” para o Direito liberal somente adquire sen-tido a partir do processo constituinte, base consensual do poder - consensus constitu-tionis – a refletir-se na normatividade vi-gente. Liame entre a juridicidade, o políti-co e a legitimidade, o processo constituinte expressa uma decisão individualizada a partir dos valores implícitos no pacto.9

Ao traçar os parâmetros normativos de sua existência, o povo constitui-se em nação una e indivisível. Entretanto, sua existência como ser político antecede à Constituição, e seu papel de titular do Po-der Constituinte, elemento fundador da Carta Magna, tornou-se pressuposto fun-damental da democracia. Quanto maior a participação popular na legislação e na organização do governo, mais efetiva a democracia. Nesse sentido, democracia é também a realização da vontade geral, donde decorre o caráter de homogeneidade implícito em sua definição.10

A concepção jurídica de povo abstrai qualquer noção de divisão de classes no interior da sociedade e desconsidera o fato de que o processo de elaboração de uma Constituição, ou de qualquer outra lei, é permeado por um intenso jogo de forças antagônicas. Na verdade, o pacto constitu-

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cional não elimina as diferenças e divisões reais existentes no seio de uma sociedade, apenas organiza o embate a partir dos valo-res e princípios prevalecentes no contexto social, institucionalizando o acordo.11 No caso das Constituições liberais burguesas, os principais valores são a liberdade, a igualdade e a autonomia coletiva. Diante de tal contexto, a Lei Fundamental legiti-ma-se por meio de um procedimento que busca “conciliar os interesses antagônicos e evitar que as divergências se transfor-mem em conflitos insolúveis”12

Ao contrário da perspectiva hegelia-na onde a oposição, no interior do Estado, é totalmente neutralizada pela preponde-rância da lei em detrimento da vontade particular que pode ser de um indivíduo ou de um grupo determinado, na sociedade democrática não há consenso absoluto no que concerne às preferências particulares, mas, sim, modos de institucionalização dos conflitos, sendo estes, também, intrínsecos à democracia.13

A relação progressiva entre conflito, consenso e legitimidade, exatamente nessa ordem, encontra-se sempre presente quan-do se pretende entender as diversas formas que assumem as sociedades humanas. Isso se deve à constatação da existência de um poder inerente a qualquer organização so-cietária. Desta circunstância decorre uma outra, a existência dos que governam e dos que são governados. Mas, para além da violência e da força, o poder de mando, apoiado no ordenamento jurídico, encontra sua razão de ser na consolidação, preser-vação ou alcance de determinados valores que são caros aos membros da comunidade que almejam o consenso.

O surgimento da idéia de suprema-cia da lei no século XVIII, e a maneira como esta foi conceituada pela filosofia positivista, inculcou nas mentalidades ser legítimo o sistema político que se apoiava

na lei, esta última, resultado de um acordo. Legalidade e legitimidade eram entendidas como sinônimos, atribuindo-se-lhes uma acepção exclusivamente legalista.14

Contemporaneamente o consensus no qual se apóia o poder, transcende o direito positivo, libertando-se da frieza da ratio para almejar a justiça. Função primordial da norma impessoalizar a potestas, todos estão a ela subordinados. Desse modo, a legalidade implica e resulta no estabeleci-mento de uma situação de segurança nas relações dos indivíduos entre si e destes com o Estado.

Na realidade, o problema da legi-timidade adquiriu um significado muito relacionado aos valores partilhados pelos membros da sociedade e que propiciam a adesão e a fidelidade ao poder instituído. O sistema político alcança uma estabilidade satisfatória quando é “capaz de criar e pre-servar um consenso em torno de interesses públicos e de legitimar as normas opera-cionais que regulam os conflitos, permitin-do-o absorver mudanças sociais e adaptar-se as novas circunstâncias, sem perda de sua integridade.”15 Quanto menos o Estado precisar usar a força para garantir o res-peito e a efetividade das normas jurídicas, tanto maior será seu grau de legitimidade.

Como a legitimidade pressupõe con-cordância de opiniões, urge indagar como aferi-la. Segundo alguns teóricos volta-dos para a questão, a sociedade industrial moderna em razão de sua complexidade, depara-se com impasses que impõem a necessidade de instituir-se novos mecanis-mos de legitimação das decisões do poder. Isso porque as funções do Estado se multi-plicam e se especializam de tal forma que a consensualidade se torna mais difícil a cada dia. Por outro lado, a impossibilidade de permanência do modelo de democracia direta cria a necessidade de instauração de governos representativos. Nesse sentido,

DEMOCRACIA, DIREITO E LEGITIMIDADE...

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José Eduardo Faria afirma: “o problema da legitimidade aparece de forma mais con-creta à medida que as comunidades vão perdendo as possibilidades de governos diretos e imediatos, da mesma forma que a escolha dos governantes vai deixando de ser determinada por papéis sociais prepon-derantes.”16

Ora, considerando que os antagonis-mos brotam em todos os aspectos da vida social, e diante da impossibilidade de qual-quer forma de democracia direta a dificul-tar a concordância de opiniões e ameaçar a estabilidade das sociedades democráticas, criou-se o consenso básico entre os cida-dãos.

Segundo Luhmann, no sistema po-lítico moderno, o consenso é estabelecido não sobre a decisão em si, mas em relação às premissas sobre as quais se apóia. É o procedimento que torna legítima a decisão uma vez ser impossível a avaliação indi-vidualizada para obter-se sua aceitação. A complexidade da sociedade moderna traduz-se na “generalização do reconheci-mento das decisões.”17

A legitimidade não se relaciona à crença individual na autenticidade das de-cisões, mas a um processo de instituciona-lização que se opera no âmbito da socieda-de. Somente levando-se em conta esse fato pode-se entender como se dá a aceitação de uma decisão. Os indivíduos acatam as decisões quando as assumem “como pre-missas de seu próprio comportamento e estruturam as suas expectativas de acordo com isso.”18 Nesse processo pode ocorrer, até mesmo a recusa em aceitar a decisão, que acaba sendo assimilada num aprendi-zado onde o indivíduo alcança uma manei-ra de conciliação entre as antigas e as no-vas expectativas. Este aprendizado dá-se no contexto social, pois somente nele pode ocorrer a mudança estrutural das expecta-tivas. Assim, a aceitação e a conseqüente

mudança de expectativas não se esgotam no indivíduo, mas respondem a um impul-so exterior.19

O Estado democrático de direito tem no processo eleitoral, por exemplo, um im-portante mecanismo de legitimação. Ele busca definir uma decisão, uma vez que todo o esforço feito para se chegar a um acordo tem sua razão de ser na tomada de decisão política.

No processo eleitoral, instaura-se o debate público em que todos os cidadãos participam, consoante as regras que limi-tam e organizam a forma como as diver-gências serão propostas e as expectativas expressas. O seu resultado tem o caráter de um consenso generalizado e estabilizador do sistema político.20

O conceito de povo adquire signifi-cado a partir da idéia de igualdade numa determinada comunidade, fazendo parte dele todos os cidadãos indistintamente.21 A sociedade democrática funda-se na crença de que os homens são naturalmente se-melhantes, supondo a existência de uma igualdade intrínseca aos indivíduos, que não se restringe aos cidadãos integrantes de uma organização política individualiza-da, mas alcança todos os seres humanos. Seu sentido é universalista. Por outro lado, a idéia de igualdade em si, somente se cor-porifica quando são estabelecidas as rela-ções contratuais entre os homens, funda-dores de uma determinada sociedade, pois ela se revela natural e intrínseca à condição humana.

Admissível reconhecer, a partir de tal compreensão, que o poder provém do povo e deve ser exercido em seu interesse, don-de emana o pressuposto básico da legitimi-dade democrática, baseada na autonomia da vontade coletiva.22

A igualdade estabelecida pela ideo-logia liberal relaciona-se com a desperso-nalização do poder que não mais pode ser

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exercido ao arbítrio do governante, cujas ações são controladas pelo Parlamento. O poder e as relações sociais em geral deixa-ram, neste novo ideário, de ser entendidos a partir de um fundamento transcendental, passando a ter sua legitimidade explicada com base na dinâmica interna. Por outras palavras, o poder passou a ser legitimado pelo princípio da autonomia coletiva ou soberania popular.

Segundo certos teóricos modernos da democracia liberal, a soberania popular não há de ser concebida como fora ante-riormente pelos contratualistas clássicos. Tanto Rousseau como Kant, preconizavam a possibilidade de um consenso neutraliza-dor de conflitos, consenso este, encarado como instaurador da unidade. Assim, a le-gitimidade democrática, para aqueles au-tores, repousava sobre a formação racional da vontade comum.

Philippe Gerard avalia que, na de-mocracia liberal, o poder está associado à idéia de autoconstituição de um povo res-ponsável por seu destino, o que gerou uma grande indeterminação sobre os conceitos de legitimidade e ilegitimidade, posto esta auto-instituição implicar uma situação de constantes conflitos.23

O eixo central desta colocação pre-sume que o processo de legitimação demo-crática conjectura com a autonomia coleti-va, mas esta não pode ser exercida sem a explicitação das oposições e contradições que lhe são inerentes em razão dos diferen-tes e conflitantes interesses individuais.

1. Liberdade e autonomia coletiva na democracia liberal

A dimensão axiológica do pensa-mento liberal ateve-se, nomeadamente, a garantir a liberdade do indivíduo contra a intervenção do Estado e a limitar a interfe-rência da majestas pública na esfera priva-da como mecanismo de proteção.

Historicamente, a necessidade de afirmar e resguardar a liberdade perante o Estado teve origem na ação de uma classe organizada, a burguesia, que impôs uma nova dinâmica às relações econômicas no século XVIII. Inevitável reconhecer que a liberdade individual, contraposta à inter-venção e ao arbítrio estatal, correspondeu aos interesses do terceiro estado. Daí, o regime democrático moderno ter forte co-notação burguesa, em face da conexidade direta entre democracia e liberalismo.

O teor individualista da democracia burguesa operou a substituição do Esta-do monopolista e interventor pelo Estado liberal limitado por direitos e garantias individuais, dentre os quais se destacam a garantia de locomoção, a liberdade de expressão, o devido processo legal e, so-bretudo, o livre exercício de atividade econômica e o direito à propriedade sem a interferência do poder público.

O modelo liberal de democracia fun-damentou-se na idéia de “liberdade nega-tiva”, também chamada, “democracia de proteção”. A ordem liberal pressupunha que os indivíduos detinham o direito de buscar a plena realização de suas necessi-dades, a traduzir-se na satisfação de seus interesses econômicos privados. Ao Estado cabia contê-los, quando a perseguição de tais interesses chegasse a níveis de compe-tição comprometedores da própria estabi-lidade do sistema. Infere-se, portanto, que o Estado não se encontrava absolutamente impedido de intervir na liberdade do indi-víduo, mas sua intervenção deveria funda-mentar-se na lei. A concepção de liberda-de dicotômica entre indivíduo e Estado24, privado e público, esgotar-se-ia quando a estabilidade do sistema estivesse em jogo, abrindo espaço à “publicização” da ordem privada que dava prioridade à realização do “bem público”, ao invés de apenas fun-dar as conveniências e os interesses dos indivíduos.25

DEMOCRACIA, DIREITO E LEGITIMIDADE...

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A forma como a questão da liberda-de individual se coloca na filosofia liberal, critério central do seu sistema valorativo, tem implicações no próprio conceito de cidadania. Na democracia moderna, a ne-cessidade de proteção nasce pelo meca-nismo de delegação do poder atribuído a uma minoria. Constitui-se uma separação entre indivíduo e cidadão que, ao delegar a gestão da coisa pública, fica livre para perseguir seus interesses privados, mas, ao mesmo tempo, o indivíduo necessita sub-meter-se à ordem pública onde é elaborada a cooperação necessária para o viver em sociedade. Esse fracionamento não ocor-ria na democracia romana, por exemplo, quando o exercício da cidadania era pleno, permitindo a realização do público no pri-vado. “Nessa transferência – seja pela ces-são tácita de direito ao soberano, como em Hobbes, seja pela delegação real por meio de um sistema de representação, como em Locke, Montesquieu e Benjamin Constant – distingüem-se, o público do privado, ca-bendo àquele a constituição do Estado de Paz”26

Com efeito, a democracia de prote-ção ou a liberdade negativa típica da so-ciedade liberal limita o conceito de liber-dade democrática. Segundo esse modelo, a autonomia coletiva e a liberdade, embora sejam elementos essenciais na caracteriza-ção da democracia moderna, estão, de cer-ta forma, dissociadas. Dimensionam-se, pois, duas realidades: aquela relacionada à esfera privada, que corresponde à garantia dos direitos individuais, e aquela relacio-nada à esfera pública, na qual a autonomia coletiva se realiza segundo o modelo re-presentativo.

A rigor, a democracia moderna nas-ceu atrelada, ou mesmo subordinada à ideologia liberal, que orientou a elabo-ração das Constituições e a consolidação do Estado de Direito. Nela, o princípio

da liberdade individual sobressai como premissa fundamental, enquanto a parti-cipação dos cidadãos decorre das pressões ao sistema. Pertinente a esta contradição, certos teóricos da democracia denunciam, por um lado, a incompatibilidade deste re-gime com o liberalismo, e sustentam, por outro, a interpretação de a liberdade indivi-dual constituir-se numa precondição para o exercício da autonomia coletiva, devendo o Estado assegurar as condições necessá-rias ao seu exercício.27

Na sociedade liberal, a participação política do indivíduo é valorada não ape-nas pela estrutura jurídica, característica do Estado de Direito, mas pelas condições econômicas determinadas pelo livre jogo do mercado.28

A conseqüência do estabelecimento dessa igualdade jurídica é o reconhecimen-to do direito de todos os cidadãos partici-parem do governo.29

Determinante para a liberdade hu-mana, a despeito das críticas que se lhe possam opor, o ideário político burguês constituiu-se num “poderoso instrumento doutrinário de alteração das bases relativas à organização do Estado.”30 Contestando o absolutismo, teve como mérito principal, haver prognosticado “o começo longínquo do irreprimível diálogo democrático que impulsionou o progresso político e social” da Civilização Ocidental.31

2. O sistema representativo

Se for certo afirmar que do ponto de vista filosófico a democracia moderna se inspirou no pensamento liberal, no plano político ela é posta em evidência pelo sis-tema representativo. A exigência da parti-cipação do povo nas decisões políticas do Estado como garantia de efetivação do ide-al de cidadania, recupera a tradição da de-mocracia clássica, dando origem às teorias sobre esta forma de governo que se consti-

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tuiu numa versão moderna do exercício da autonomia coletiva na sociedade.32

Historicamente, a elaboração do sis-tema representativo esteve relacionada à dinâmica de desenvolvimento das institui-ções políticas inglesas.33 “A propósito da contenção ou limitação no que se refere à conduta do rei, basta consultar a “Magna Carta”, assinada contra a vontade de João Sem Terra, que significou a reação da no-breza, do clero e da burguesia na defesa de suas liberdades fundamentais.”34

É fato que desde o século XII o mo-narca inglês consultava uma espécie de concilium ou “parlamento”, composto por prelados e barões, embrião da célebre Câ-mara dos Lordes, sendo a Câmara dos Co-muns a porta voz dos interesses burgueses. O “Parlamento Modelo”, integrado pelos três estados do reino - nobreza, clero e bur-guesia – pode ser considerado o embrião do sistema representativo, presente o fato de o desenvolvimento deste modelo ha-ver resultado efetivamente, da atuação das duas Casas parlamentares.35

O desenvolvimento do sistema re-presentativo na Inglaterra há de ser com-preendido a partir da análise de suas pecu-liaridades culturais e vicissitudes políticas. Em princípio, as bases sobre as quais fo-ram erigidas as relações feudais resulta-ram numa centralização do poder, bastante peculiar à formação social inglesa. O rei conseguiu impor uma centralização polí-tica precoce em relação à nobreza feudal. Em contrapartida, teve seu poder absoluto abalado pela associação entre a nobreza e os segmentos médios da sociedade que, or-ganizados, foram conquistando, paulatina-mente, o poder de legislar.36

Cumpre ressaltar que, embora o sis-tema representativo tenha se originado na Inglaterra, não ficou restrito àquele país. A necessidade de limitação do poder real tornou-se parte de uma dinâmica histórica que envolveu todos os Estados absolutistas

ocidentais, guardadas as particularidades e circunstâncias sócio-políticas de cada um.

O fato é que, no século XIX, o siste-ma estava consolidado. Considerado como o único capaz de efetivar o ideal democrá-tico da participação popular nos negócios de governo, simbolizava ele, utilizando a terminologia de Burke, a união de um cor-po de homens, a serviço de um interesse nacional, fundado em um princípio ao qual todos aderem.

Severa crítica sofreu o modelo de democracia representativa até chegar a se impor como a única forma possível de participação do cidadão na gestão da coi-sa pública. A mais contundente delas foi perpetrada por Rousseau. Para ele, a repre-sentação da vontade geral não é possível por não poder a soberania ser outorgada e, menos ainda, alienada. Nestes termos, a lei que não for diretamente ratificada pelo povo será inválida. Dessa forma, a repre-sentação equivale à escravidão, pois “no momento em que um povo se dá represen-tantes, não é mais livre; não mais existe”.37 A restrição rousseauniana ao sistema re-presentativo limita-se ao poder legislativo, uma vez que o poder executivo deve agir de acordo com as determinações legais. O poder executivo, portanto, reproduz a von-tade dos cidadãos na exata dimensão da aplicação da norma, o que, de certa forma, conduz à representação imperativa, em face da vinculação do governante e da li-mitação de sua atuação à lei, condicionan-do-o a pôr em prática o que for determina-do pela vontade geral.38

Indo além, preconiza Rousseau que uma vez adotado o sistema representativo, o povo, mesmo consciente da restrição em sua liberdade democrática de expressão da vontade, deveria elaborar mecanismos de contenção da corrupção tais como, a pres-tação de contas aos eleitores e a renovação periódica dos mandatos.39

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Contrariamente a Rousseau, Stuart Mill vislumbrava na representação a me-lhor forma de governo popular, vetor de desenvolvimento da civilização. Para que um povo estivesse em condições de adotar o governo representativo, imperativa a re-alização das seguintes condições: “ (1) que o povo esteja disposto a recebê-lo; (2) que esteja disposto e seja capaz de fazer o que for necessário para preservá-lo; (3) que es-teja disposto e seja capaz de cumprir com os deveres e desempenhar as funções que lhe impõe”40 .

Embora reconhecesse que a demo-cracia direta é a forma de governo ideal, Stuart Mill argumentava que, sendo “im-possível a todos, em uma comunidade que exceda a uma única cidade pequena, par-ticiparem pessoalmente tão-só de algumas porções muito pequenas dos negócios pú-blicos, segue-se que o tipo ideal de gover-no perfeito tem de ser o representativo”41

A despeito de o poder controlador pertencer ao povo que o exerce por seus representantes - os verdadeiros detentores da “supremacia prática no Estado” - 42 e, conquanto exista o perigo de uma classe governar segundo os seus interesses, de forma contrária ao bem geral da comuni-dade, existem meios de anular esse predo-mínio, organizando-se o sistema de modo a estabelecer um equilíbrio entre os interes-ses parciais, o que resultará na prevalência da justiça e do interesse geral.

Acorde a teoria democrático-liberal, a representação é um vínculo jurídico esta-belecido entre eleitores e eleitos, estes últi-mos portadores da vontade comum, tendo por obrigação expressá-la. Os represen-tantes adquirem, por meio de um processo de seleção de um procedimento eleitoral, legitimidade para agir em nome dos repre-sentados, num ato típico de transferência e/ou delegação de poder.

A faticidade do governo representati-vo como elemento de composição de uma

sociedade democrática, onde a igualdade é entendida como valor fundamental, deu origem a uma determinada concepção de bem comum, expressa pela suposta exis-tência de uma vontade coletiva e pela possibilidade de aferi-la. A escolha dos re-presentantes do povo, embora deva ser efe-tivada respeitando-se a opinião individual do cidadão, não deve resultar da imposi-ção de seu interesse pessoal. Daí a rejeição ao modelo de representação subordinado ao mandato imperativo. A ideologia libe-ral, ao buscar na teoria clássica do con-trato social a justificativa para a negação da possibilidade do mandato imperativo, outorgou à concepção de coletividade um sentido absoluto.43 Dessa forma, o manda-to imperativo é encarado como a negação do interesse geral, à medida que rejeita a relação de reciprocidade entre a coletivida-de e o Estado e reduz o representante a um mero porta-voz das pretensões individuais de seus eleitores, obstando a realização do interesse público.

Quando o parlamentar legisla, dá forma e realiza, ao mesmo tempo, a von-tade nacional. O eleitor influi apenas no momento da escolha de seu representante. Este, uma vez eleito, adquire independên-cia decisória total em relação ao primeiro. Prevalece, portanto, a teoria da dualidade, na qual dois estágios são demarcados no processo de formação da vontade nacional: o primeiro verifica-se no momento da elei-ção quando o cidadão é chamado a partici-par da formação da assembléia legislativa; o segundo ocorre quando os representantes deliberam, consolidando uma concepção determinada do bem comum. O represen-tante atuará, pois, como um catalizador da vontade do povo. Na verdade, o exercício de delegação da voluntas popular ao Par-lamento pressupõe a delegação da própria idéia de bem comum. Aí reside, em última análise, o fundamento da legitimidade no contexto teórico da democracia liberal.

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O deslocamento da soberania do povo para a nação resolveria, até mesmo, o problema jurídico da representação no âmbito dos poderes executivo e judiciário. Uma vez que ao povo cabia apenas eleger os membros da Assembléia Legislativa, impunha-se buscar novos conceitos que pudessem legitimar os demais poderes. A resposta encontrada foi a renúncia à cono-tação imperativa do mandato político e sua substituição pela idéia da representativida-de, na qual se incluem todos os poderes do Estado.44

Na verdade, o problema central que permeia a questão do sistema representati-vo está na sua origem, no ato de redefini-ção do poder, marcado pelo deslocamento da soberania do monarca absolutista para o povo. Ocorre que a concepção de povo não se afigurava a mais apropriada para pro-mover a estabilização do sistema político liberal. Fez-se necessária a elaboração de um conceito ainda mais abstrato - a nação - consolidada pelos processos constitucio-nais. “A titularidade do direito de sobera-nia se deslocou do povo para a nação. Esta entidade ideal passou a concentrar o poder do Estado. Estava operada a translação que, por seus desdobramentos jurídicos garantia à burguesia o controle do poder político”45

Da noção da existência de duas von-tades distintas, a do eleitor e a de seu re-presentante, procede a teoria da duplicida-de, ponto de partida para a elaboração do moderno sistema representativo estatuído nas Constituições liberais, por meio da qual se buscou impor a independência do representante em relação ao representado. “Com efeito, toma-se o representante po-liticamente por nova pessoa, portadora de uma vontade distinta daquela do represen-tado, e do mesmo passo, fértil de iniciativa e reflexão e poder criador”46

Sem dúvida, o formalismo ao qual se encontra vinculada a teoria liberal re-

vela o esgotamento do modelo represen-tativo pela incapacidade de fornecer os elementos necessários à uma redefinição dos conceitos estruturadores do instituto. A interveniência da vontade coletiva dian-te da contemporaneidade do Estado há de ser considerada, não apenas sob o enfoque jurídico, mas levando em conta as dimen-sões política e sociológica. Assim, mister a superação da dicotomia mandato impera-tivo-mandato representativo.

Seguindo esta tendência, a análise de Luhmann acerca do procedimento eleitoral como forma de legitimação da democracia representativa aponta para a superação da dicotomia acima identificada. Segundo ele, o processo de democratização da política explica-se pelo mecanismo de positivação do direito que tornou o sistema político muito complexo e estruturalmente indeter-minado. Esta indeterminação deu abertura ao sistema que, por isso, se encontra num processo permanente de legitimação. Por tal razão sustenta:

“Instituições invariavelmente legi-timadas como a coroa e o altar não são complexas em si mesmas, e não são sufi-cientemente móveis para poderem apro-veitar e ordenar de forma convincente as novas possibilidades; elas não funciona-riam como garantes do poder legítimo. São substituídas pelo fato de o apoio político se converter em problema permanente a ser resolvido pela organização e pelo trabalho cotidiano”47

Na verdade, a questão central não é a de se saber quem tem a soberania, mas, sim, de se entender a complexidade adqui-rida pelo poder, em razão da superação da sociedade hierárquica.48

A indeterminação ou frouxidão dos papéis dos indivíduos nas sociedades mais complexas conduz à necessidade de reelaboração do processo de decisão que serve como garantia de apoio político. O processo deve ser visto como englobando

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dois planos: o técnico operacional e o sim-bólico, constituinte de sentido. A decisão reflete o resultado que envolve, ao mesmo tempo, uma operação técnica e uma sim-bolização do todo.

O processo eleitoral, nas sociedades democratizadas, expressa esta permanente elaboração devido ao potencial de confli-tos presentes na coletividade, onde os pa-péis não estão mais previamente definidos. A posição do governante, por exemplo, não pode mais ser entendida em função de outro papel. “Numa sociedade que evolui, nesse sentido, para uma maior complexi-dade, processos dinâmicos de alistamento substituem as antigas ligações estáticas de papéis.”49 Portanto, tais processos são elaborados de forma a realizar três condi-ções: “têm de ser especificáveis como fun-cionais e separáveis das outras relações de papéis; têm de poder produzir incerteza e alternativas, de acordo com a complexida-de necessária; e têm de conter uma norma reguladora de apoio e controle, que permi-ta que esses problemas sejam resolvidos”50 Os critérios estabelecidos para o processo eleitoral contêm todas as condições acima, que podem ser identificadas na universali-zação do direito de voto e na igualdade de seu peso. Tudo isso concorre para a indivi-dualização do papel de eleitor.51

A produção de incertezas e alternati-vas é outra condição presente no processo eleitoral. A decisão nunca é definitiva, uma vez que o seu resultado perdura até o es-tabelecimento de novas eleições, servindo para solucionar o conflito naquele momen-to. A solução do conflito, contudo, expli-cita o fato de que “a incerteza permanece no primeiro plano como a dramaticidade artificialmente organizada dum aconteci-mento desportivo”52

A eleição traduz-se, portanto, numa etapa do processo político global de assimi-lação de conflitos. Daí Luhmann entender

que o processo eleitoral rejeita a possibili-dade do mandato imperativo: “a separação entre eleição política e imposição direta de interesses absorve conflitos da seguinte forma: em primeiro lugar, na eleição são distribuídos apenas lugares e competên-cias e não, simultaneamente, a satisfação das necessidades”53 O mandato imperati-vo, nesta contextura, torna-se impossível em face da complexidade e variabilidade da organização social, que não está sujeita a influências tão individualizadas, já que o próprio indivíduo mobiliza o sistema den-tro de uma complexidade de papéis.

Luhmann conclui sua análise ressal-tando que a eleição “é uma oportunidade de expressão da insatisfação sem risco para a estrutura (...). Nessa medida ela pertence aos mecanismos de absorção dos protestos, tal como os processos judiciais também desempenham essa função”54

O mesmo esforço em elaborar uma teoria sociológica da representação é en-contrado em Sobolewsky. Ele estrutura suas avaliações acerca da representação política partindo dos conceitos desenvol-vidos pela teoria marxista, situando o sis-tema representativo na esfera das relações entre governantes e governados.

A sociedade de classes referencia sua concepção de Estado, expressão dos interesses do grupo dominante. Ao defi-nir-se a representação como um processo organizado que funciona para perpetuar as estruturas das relações de poder entre governantes e governados, restringe-se sua atuação como um mero mecanismo de “acomodação contínua que se estabelece entre as decisões políticas e as opiniões”.55 Contudo, a despeito de o Estado ser con-trolado por uma elite, esta não impede que os cidadãos exerçam influência sobre de-terminadas decisões.

Como se pode inferir das conside-rações acima expostas, para Sobolewsky,

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a representação deve ser entendida como um processo inscrito numa dinâmica social de relações de poder estabelecidas entre a classe dominante e as massas, cabendo a estas últimas a percepção das brechas apre-sentadas pelo sistema de modo a favorecer o estabelecimento do socialismo.

3. Os Partidos Políticos

O surgimento dos partidos políticos esteve vinculado ao desenvolvimento da democracia representativa - pressuposto inquestionável do autogoverno do povo - tornando-se um dos elementos caracteriza-dores do Estado de Direito.56

No constitucionalismo moderno, as organizações político-partidárias inte-gram-se à estrutura estatal, sistematizadas pelas Constituições e leis regulamentado-ras, compondo o quadro das instituições democráticas.57

“A constitucionalização dos partidos políticos ou “incorporação constitucional dos partidos” (Hesse) implica que eles deixem de ser apenas uma realidade socio-lógico-política (...),”58 para denotar a sua primazia na organização governamental contemporânea.

Três são, basicamente, os sistemas partidários, identificados por José Alfre-do de Oliveira Baracho: o unipartidário, o bipartidário e o multipartidário, sendo possível ainda classificá-los pelo critério da competitividade como: sistemas com-petitivos e não competitivos. O sistema competitivo, por sua vez, comporta uma subsistematização em sistemas multiparti-dários, bipartidários e sistemas de partidos dominantes.59

Submetida às realidades nacionais, às ideologias e às estruturas sócio-econô-micas, a situação partidária de um Estado encontra-se condicionada ao regime políti-co adotado. Neste contexto, a conceituação de partido político adquire conotação va-

riante, consoante o modelo ideológico sob o qual se alicerça a sociedade. Uma ordem legítima não constituiria, pois, pré-requisi-to necessário à atuação representativa dos partidos, institucionalizados como estão, “nos regimes autoritários, nos democrá-ticos, nos Estados em desenvolvimento e nos industrializados.”60

Por tal razão, elaborar um conceito de partido político unívoco, que englobe as diferentes realidades sociais - fator deter-minante para a explicitação de seu verda-deiro sentido - é tarefa árdua. Em termos gerais, “o partido político pode definir-se como um grupo de pessoas organizadas com o fim de exercer ou influenciar o po-der do Estado para realizar total ou par-cialmente um programa político de caráter geral.”61 Dito de outra forma, o partido político pode ser compreendido como uma organização, cujos membros partilham determinadas idéias que os vinculam e os identificam, levando-os a associarem-se com o objetivo de alcançar o poder e ad-ministrar a máquina estatal segundo suas concepções ideológicas.62

Considerado sob esta perspectiva, o conceito acima exposto gera controvérsias teóricas, mormente quando confrontado com a vontade geral de Rousseau. Tal con-trovérsia, contudo, atenua-se ao se consi-derar a distinção estabelecida entre partido e facção, tendo como elemento diferencia-dor a defesa, pelo primeiro, dos interesses nacionais, enquanto a última patrocina causas particulares e interesses individu-alizados. A idéia de facção reproduz, por assim dizer, a antítese, ou mesmo a ver-dadeira negação do partido político, que, num processo de degeneração, poderá ter sua natureza transfigurada, esfacelando-se em uma ou várias facções.63

O critério ideológico é fundamental, por revelar a filosofia político-partidária adotada, inerente e imperativa à sua consti-

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tuição. “A criação de um partido ou a ade-são a um partido não se pode conceber sem um conjunto de idéias políticas.”64

Fruto de um esforço de aglutinação, o fato de ter como meta principal a con-quista do poder objetivando implementar a concepção teórica que os animam, induz os partidos políticos a perquirir os interesses nacionais. Para que uma organização par-tidária se imponha, cresça e se fortaleça, mister um programa de governo que sensi-bilize parte considerável dos eleitores.65

Natural no sistema democrático de governo, o partido expressa o pluralismo das soluções possíveis no exercício da di-mensão social, promovendo o equilíbrio do governo ao garantir a equânime represen-tação das divergências.66Como instituição ligada ao desenvolvimento da democracia representativa, constitui-se num meio bas-tante eficaz para unir tanto eleitores quanto seus representantes.

Do ponto de vista jurídico, a partir do século XX, a definição conceitual de par-tido político não ofereceu mais problemas uma vez que sua estrutura e limites foram normatizados pelas Constituições.67

Sobre o tema, preleciona José Al-fredo Baracho: “Considerados hoje como essenciais à democracia representativa, até há pouco tempo, a existência dos par-tidos desenvolveu-se fora da Constituição e mesmo das leis (...)” entendidos “ como produto dos costumes e da tradição (...)”68

Deste momento em diante, não se questionou mais a necessidade ou legiti-midade dos partidos, mas o âmbito de sua atuação.69

A pretensão da presente análise é avaliar a atuação dos partidos políticos no Estado democrático, buscando apreender aspectos relevantes da relação estabelecida entre os sistemas eleitorais e o conteúdo da representação por eles determinados.70

Entre os teóricos que se debruçam sobre o assunto é corrente o entendimen-

to de que o sistema eleitoral exerce gran-de influência sobre o sistema partidário, embora seja destacada a assertiva de que referida influência não se encontra isolada de outros fatores relevantes, tais como, a realidade cultural e sócio-econômica. Efe-tivamente, ambos os sistemas compõem o governo democrático e, por conseguinte, asseguram a autenticidade da vontade polí-tica estatal. Verifica-se, tanto um processo de influências recíprocas, quanto um for-te vínculo de continuidade entre eles, em razão de o sistema partidário promover a mobilização e organização da sociedade de acordo com as concepções políticas de seus integrantes. Faz-se mister que o siste-ma eleitoral propicie a expressão definitiva deste posicionamento ao fixar as regras que orientam o exercício do direito de voto.

Os sistemas majoritário e proporcio-nal, cada qual a seu modo, promoveram o fortalecimento dos partidos políticos. O procedimento eleitoral estabelece o modus faciendi da realização do sufrágio, organi-zado de maneira a favorecer a composição de um governo coerente e estável. Nesta direção, quase unânime a postura favorá-vel aos sistemas proporcional e majoritário em dois turnos por fomentar o multipar-tidarismo, ao contrário do sistema majo-ritário em um único turno, cuja atuação polariza os partidos, provocando o bipar-tidarismo.71 Referida polarização implica uma representação insuficiente com rela-ção às minorias que, conquanto participem do processo de votação, ficam destituídas de procuradores nas Assembléias. 72

O regime democrático tem no plura-lismo político um dos seus mais importan-tes alicerces, e o partido político constitui-se no mecanismo de expressão da vontade popular na escolha dos governantes. Veí-culo de comunicação entre a sociedade e o Estado, ele canaliza as reivindicações e anseios sociais, exercendo o importante

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papel de inconsciente coletivo da nação.73 E mais, ao possibilitar que os indivíduos se articulem em torno de uma ideologia de-finida, liberta-os de promessas de campa-nhas e qualidades pessoais dos candidatos à medida que “o eleitor moderno não pode mais confiar nas promessas de candidatos não comprometidos com a fidelidade a um programa e a um partido.” 74

Duverger assinala que o desenvolvi-mento dos partidos redefiniu as questões correntes em torno da representação, pois estes vieram a participar da relação já insti-tuída entre representados e representantes. Ele sustenta: “Antes de ser escolhido pe-los eleitores, o deputado é escolhido pelo partido: os eleitores só fazem ratificar essa escolha (...) Se se quer manter a teoria da representação jurídica, é necessário admi-tir que o eleito recebe um duplo mandato: do partido e dos eleitores.”75

Em síntese, o Estado democrático de direito não pode prescindir dos partidos políticos, sobretudo após o estabelecimen-to do sufrágio universal, que incorporou as massas ao jogo político. A sociedade moderna adquiriu contornos de sociedade organizacional, e a conquista de direitos ou mesmo a realização de certos objetivos político-governamentais dependem, inexo-ravelmente, da capacidade de organização das forças populares.

4. A crise da democracia representativa

A reflexão filosófica que intente defi-nir as razões e os fundamentos do sistema representativo necessita, a priori, identifi-car as diversas possibilidades interpretati-vas existentes: a jurídica, a sociológica e a histórica.

Em sua expressão jurídica, o sistema representativo cumpre satisfatoriamente a exigência de igualdade democrática, que pressupõe a participação de todos os ci-dadãos nas decisões de governo, através

do direito de voto. Ocorre, contudo, que a interpretação deste instituto não há de ser vislumbrada, apenas, sob o aspecto formal. Importa considerar o fato de que o sistema representativo foi o mecanismo adotado pelos ideólogos do liberalismo na tentativa de identificar as relações de poder, mor-mente no que tange à questão política, com a democracia.76

A crise do sistema representativo deve ser entendida a partir de um proces-so global de questionamento dos valores democráticos e das práticas políticas ne-les fundamentadas. A democracia liberal, quando posta em prática, torna-se uma realidade de reestruturação do poder. Des-velam-se, nessa dialética múltiplas inter-pretações sociais.

A consolidação do sistema represen-tativo, como foi dito, deu-se no interior de uma dinâmica de contestação ao abso-lutismo monárquico, num conflito que se espraiou pelo corpo social, graças ao esfor-ço burguês em universalizar seu discurso e apresentar seus interesses de classe como sendo o do homem ecumênico. Não é ca-sual a Revolução Francesa ter tido como referenciais ideológicos, a liberdade, a igualdade e a fraternidade, engendrando a destruição das referências simbólicas.77

Apresentado como a única possibili-dade de efetivação de uma ordem política democrática, o instituto da representativi-dade, desde os seus primórdios, enfrentou a contestação ao Estado Liberal.78

Paulo Bonavides identifica três mo-mentos demarcadores, nos quais a socie-dade tentou redefinir o sistema represen-tativo, tomando como base a tradicional dicotomia: princípio da dualidade versus princípio da identidade, segundo o critério da realização da vontade popular. Enten-de o autor ter havido uma decomposição progressiva da vontade una e soberana do povo, a ser observada nas seguintes fases:

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a da representação proporcional, a da re-presentação profissional e a dos grupos de pressão.

A representação proporcional, ca-racterizada essencialmente pelo elemento territorial, promoveu um esfacelamento da vontade geral, devido a expressão de variadas tendências políticas regionais no Parlamento. O representante eleito e vin-culado à uma determinada região do país, de certa forma, contradizia o princípio da dualidade.79

O declínio da teoria da duplicidade no final do século XIX explicitou-se nos movimentos dos trabalhadores que, em-preendendo organizar a classe operária, não contaram com o apoio do Estado li-beral neutro em relação aos conflitos entre trabalhadores e patrões. A ação objetivava a institucionalização de direitos, reinter-pretando o significado da atuação daque-la classe na sociedade. Para o movimento operário, cabia ao Estado criar mecanis-mos de compensação dos contrastes so-ciais, promovendo o estabelecimento de uma sociedade mais justa. Era o prenúncio do Estado social, cujo caráter supostamen-te democrático implicava o abandono, pelo menos em parte, da tradicional concepção do livre jogo do mercado. Seu estabeleci-mento marcou a culminância de uma or-dem de valores, denotando a inclusão das massas no processo de decisão política.

A representação profissional viria num segundo momento, introduzindo o corporativismo.A oposição ao princípio da duplicidade, aqui, revelar-se-ia pela preva-lência dos interesses de um segmento de-terminado da sociedade: os trabalhadores, dando origem à representação classista nos Parlamentos.

A orientação fascista que determinou a adoção da representação profissional no Legislativo levaria à sua decadência. “O descrédito da representação profissional,

pondo termo a essa segunda fase, adveio sem dúvida da vinculação ideológica com a doutrina política do fascismo.”80

A grande inovação do movimento operário, contudo, foi demonstrar que a tão propalada “vontade popular”, como ele-mento formador do ideal de bem comum jamais se realizou historicamente no sen-tido universalista que sempre lhe atribuí-ram. Fez-se necessária a mobilização dos trabalhadores a fim de obterem o direito básico sobre o qual o sistema representati-vo se assenta: o voto. O sufrágio censitário pôs à mostra o caráter aristocrático da de-mocracia liberal.81

Frustrado pelo voto censitário, pela exclusão da participação feminina, por um Parlamento organizado em moldes aristo-cráticos, o Estado liberal expor-se-ia à sua própria vulnerabilidade.82

A luta pelo direito de votar foi a ma-neira encontrada pelos partidos ligados à classe operária para minar o sistema re-presentativo dentro das próprias regras do jogo político. “Tal participação, ao mesmo tempo que reforçou o quadro institucional vigente, ao optar pela via reformista e não revolucionária, introduziu no sistema po-lítico elementos geradores de conflito”83 Contudo, a incorporação das massas no processo decisório do governo, tendo for-çado a abertura do sistema, não resolveu suas falhas.

Conclusão

A crise contemporânea do sistema representativo desencadeada pela atuação de grupos sociais que buscam perpetrar a defesa de interesses específicos tem ori-gem na pacificação do Estado, cuja conse-qüência foi a neutralização da cidadania e sua substituição por uma relação de clien-tela.84

Os grupos de pressão constituem uma forma perniciosa de organização da

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sociedade civil que desmobiliza o sistema representativo tradicional e as casas ele-tivas 85 por reivindicarem a adoção, pelo Parlamento, de medidas que favorecem determinados segmentos de classe, em de-trimento do restante da sociedade.86

Na verdade, a ficção de identidade que impregnou o sistema representativo descortina a imperiosidade de proceder-se a uma revisão crítica do próprio conceito de Estado, cujos acréscimos - Estado libe-ral, Estado social, Estado de partidos, Es-tado de justiça, Estado corporativo, et ca-terva – restam insuficientes para abranger toda a sua complexidade.87

Seu colapso patenteia a inobservân-cia de condição básica inerente à teoria da representação: o controle das ações dos governantes88, acarretando problemas que ameaçam seriamente as instituições demo-cráticas dentre os quais se destacam, a des-crença e a desmobilização dos cidadãos.

Nessa perspectiva, não se pode mais reduzir a democracia somente ao sufrágio devendo-se estendê-la à efetiva participa-ção do indivíduo no processo de constru-ção do Estado. A mudança política de va-lores e enfoques resulta de uma formação construtiva de vontades. Para Habermas, o núcleo da sociedade civil forma uma espécie de associação que institucionaliza os discursos capazes de solucionar pro-blemas, transformando-os em questões de interesse geral no quadro das esferas pú-blicas. Por sua vez, esses “designs discur-sivos” formam uma caixa de ressonância que propicia um desatrelamento do código de poder, libertando o cidadão da política simbólica.

E é justamente neste contexto de atuação transformativa que os atores so-ciais, negligenciados, assumem um papel surpreendentemente ativo e pleno de con-seqüências, quando tomam consciência da situação de crise.

Com efeito, apesar do enfraqueci-mento da esfera pública pela tecnocracia, da desintegração ética e moral dos apare-lhos do Estado, da manipulação das opi-niões pela sociologia da comunicação de massas, quando o público posicionado co-meça a vibrar, as relações de forças entre sociedade civil e sistema político podem e devem sofrer modificações.

Por esta razão, ao utilizarem-se con-ceitos jurídicos como “povo” e “nação”, deve-se expurgar as ambigüidades e os ex-clusivismos reducionistas que encobertam diferenças estruturais e impedem a distin-ção entre a retórica ideológica e a demo-cracia efetiva, na percuciente observação de Friedrich Muller.89

Só assim, sob esta dimensão de revi-talização e aprofundamento das regras de legitimidade política se concebe a Demo-cracia Contemporânea. Uma democracia viva, que não se resume apenas ao voto, mas à arena pública de discussão onde reside, de fato, a soberania de atitudes do Homem-Cidadão.

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NOTAS

1 “Ao rascunhar o texto da Declaração de In-dependência, Thomas Jefferson lançou-se a enumerar as queixas dos súditos de George III, como o fizera na Constituição da Virgínia. Du-rante o trabalho, porém, o revolucionário per-cebeu que a palavra“súdito” era imprópria para descrever os habitantes da nova Nação. Preci-

sava de algum outro termo para aplicar aos ho-mens livres que estavam em vias de fazer nas-cer a República. Procurando pelo substantivo que mais de perto exprimisse sua compreensão do status dos colonos em rebelião, inseriu a pa-lavra “cidadão”, que em sua mente se vincula-va vagamente aos antecedentes romanos. Mais tarde, durante a Revolução Francesa, os súditos rebeldes de Luís XVI tomaram-na emprestada e disseminaram-lhe o uso pelo mundo” HAN-DLIN, Oscar. A verdade na história. São Pau-lo: Martins Fontes- Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1982,pp. 159-160.2 “(...) le monde est intelligible à un observateur sincère, qu’il est organisé rationnellement et que, lorsqu’on détient les lois maîtresses gou-vernant une serie de phénomènes déterminés, on en peut déduire un certain nombre de consé-quences, qui se trouvent généralement vérifiées dans les faits”. In: HAURIOU, André, Droit constitutionnel et institutions politiques. Pa-ris: Éditions Montchrestien, 1972, 5ª ed., pp. 48.3 “Hume, Helvetius, d`Holbach, Morelly, cada qual à sua maneira, realizam o exame crítico do que existe, e propõem as soluções: leis melho-res, mais racionais, próprias para produzir a fe-licidade dos homens.” In:FALCON, Francisco José Calazans. A Época Pombalina: política econômica e monarquia ilustrada. São Paulo: Ática 1982, pp. 113.4 Ver, VIANNA, Luís Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Ter-ra, 1978, 2ª ed., p.12. Segundo este autor: “Sob o feudalismo não se pode propriamente falar em direito e sim numa regulamentação do sistema de desigualdades sociais existentes, face à au-sência de um estatuto jurídico formal e comum a todos. A disciplina de uma hierarquia de pri-vilégios não consiste num sistema jurídico, uma vez que se constitui numa forma de desigualar pessoas. O direito implica na existência de uma unidade de medida comum, formal e impessoal, não podendo subsistir igualdade formal entre indivíduos sujeitos a relações de dependência e de mútua lealdade”. Ver também GÉRARD, Philippe. Réflexions sur la legitimité du droit dans la société démocratique. Bruxelles: Fa-cultés Universitaires Saint-Louis, 1995, p. 114. “L’ordre social inégalitaire, la hiérarchie des ordres et des ranges, se justifiait en dernière

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instance par référence à un fondement externe tel que la volonté divine ou, sous l’effet de la sécularisation de la politique, les principes de justice émanant de la Raison.”5 “C’est à la fin du XVIII ème siècle, au moment des Révolutions américaine et française, que le mot “Constitution”, avec son sens moderne, verra de jour, et que l’adjectif “constitutionnel” s’appliquera à des régimes tempérés, équilibrés, dans lesquels autorité et liberté se limitent mu-tuellement. L’expression “monarchie constitu-tionnelle” en particulier, signifie, par opposition à celle de “monarchie absolue”, un régime dans lesquel l’autorité du monarque est limitée grâce aux libertés individuelles des citoyens et à la participation de ces derniers au gouvernement par l’intermédiaire d’assemblés représentati-ves”. ANDRÉ, Hauriou. Droit constitutionnel et institutions politiques , op. cit.,p. 28.Segundo José Alfredo de Oliveira Baracho, é indispensável para entender-se o Estado con-siderar seu relacionamento com o Direito. “Na evolução das instituições políticas ocidentais, a forma elaborada pela noção de Estado de Di-reito é fundamental para que se compreenda a posição que o Estado adquiriu, desde que sua conceituação é feita, tendo em vista certa or-dem jurídica, com um sistema normativo. (...)“A locução Estado de Direito serviu para ex-pressar a realidade do Estado Moderno, reflexo de um ideal de racionalização jurídica da vida.“É de se convir que está aí um sistema concreto de legalidade normativa, assentado ideologica-mente nos pressupostos filosóficos-políticos da democracia liberal.“Dentro dessa orientação, procurou-se caracte-rizar o Estado de Direito, com certas exigências básicas, sendo que a doutrina passou a eleger os seus elementos imprescindíveis, garantidos por instituições que pretendem assegurar:- o império da lei;- a separação dos poderes;- a legalidade da administração e- os direitos e liberdades fundamentais.”In: Regimes políticos. São Paulo: Resenha Universitária, 1977, p. 126. (grifos no original)6 “Partindo da idéia de um Estado Constitucio-nal, como aquele que limita os poderes do Esta-do, organiza sua estrutura, distribui competên-cias e declara e garante direitos fundamentais da pessoa humana, vamos encontrar uma de

suas manifestações iniciais na Magna Carta de 1215, quando o Rei João Sem Terra, na Inglater-ra, pressionado pelos proprietários ingleses, foi obrigado a reconhecer um texto de compromis-so com os interesses reconhecidos então como direitos dos barões ingleses. Esse fato marca um ponto inicial do Estado Constitucional, que será a necessidade da limitação do poder do Es-tado por um texto legal maior que todos os po-deres do Estado, reconhecendo direitos de ou-tros grupos no ordenamento legal. Um segundo marco importante para a afirmação do Estado constitucional serão as revoluções burguesas do século XVIII, na América do Norte, em 1776, e na França, em 1789 (...) marcando a passa-gem para um modelo de Estado liberal consti-tucional, em que o poder do Estado é limitado e os direitos fundamentais, na época apenas os direitos individuais e políticos, são declarados nas Constituições (...).”MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Poder municipal. Paradig-mas para o Estado constitucional brasileiro, Belo Horizonte,:Del Rey, 1999, pp.31-32.Sobre a discussão acerca do papel da Magna Carta inglesa de 1215, como originária do cons-titucionalismo moderno ver SCHMITT, Carl. Teoría de la constitución, México, Editora Na-cional, 1981. pp. 52-53.7 Nesse sentido, Hauriou afirma: “Si, en effet, on prend comme points de départ l’Etat-Nation et le dualisme “pouvoir-liberté” on s’aperçoit qu’un certain nombre de consèquences suivent logiquement, qui sont, en fait, les caractéristi-ques du Droit constitucionnel occidental, par-ticulièrement à l’époque classique: système représentatif, établissement des représentants comme censeurs des gouvernants, limitation dans le temps des fonctions représentatives, élections disputées, procédures majoritaires (...)” In: Droit constitutionnel et institutions politiques, op cit. ,p. 49.8 Atente-se que, os conceitos de povo e de ci-dadão considerados na presente análise, são os forjados na dinâmica de elaboração da demo-cracia liberal burguesa.Portanto, as origens da democracia na Grécia e Roma Antigas, onde a formulação de povo era, de acordo com as circunstâncias históricas, antagônica àquela desenvolvida nas sociedades democráticas mo-dernas, não será considerada. “O significado original do termo “democracia”, cunhado pela

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teoria política da Grécia antiga, era o de “gover-no do povo” (demos = povo, Kratein = gover-no). A essência do fenômeno político designado pelo termo era a participação dos governados no governo, o princípio de liberdade no sentido de autodeterminação política; e foi com esse significado que o termo foi adotado pela teoria política da civilização ocidental.” In: KELSEN, Hans. A democracia, tradução de Ivone Casti-lho Benedetti e outros, São Paulo: Martins Fon-tes, 1993, p.140.Na democracia liberal o povo é tomado como o conjunto de cidadãos, responsável pela legi-timidade das instituições estatais. A cidadania, nos termos jurídicos-liberais, pressupõe o direi-to à participação política, reconhecido a todos igualmente. Daí, democracia querer dizer parti-cipação exercida pelo direito de voto, ato voli-tivo de vontade política, que exprime a atuação popular na tomada de decisão dos negócios do Estado.9 “El poder constituynte presupone el Pueblo como una entidad política existencial; la pa-labra “Nación” designa en sentido expresivo un Pueblo capaz de atuar, despierto a la cons-ciencia política”. Política existencial; la pala-bra “Nación” designa en sentido expresivo un Pueblo capaz de atuar, despierto a la conscien-cia política” In: SCHMITT, Carl. Teoría de la constitución, op cit, p. 57.10 Na democracia liberal burguesa, povo, na-ção e Estado são conceitos interligados. “Un Estado democrático que encuentra los supues-tos de su Democracia en la homogeneidad de sus ciudadanos, se corresponde con el llamado principio de la nacionalidad, según el cual una Nación forma un Estado y un Estado encierra dentro de sí una Nación. Un Estado nacional-mente homogéneo aparece entonces como lo normal; un Estado al que esa homogeneidad falta, tiene algo de anormal que pone en peligro la paz”SCHMITT, Carl, Teoría de la constitu-ción, op. cit, p. 268.11 Paulo Bonavides diria: “O problema da legiti-midade é basicamente um problema de consen-so: pelo menos em se tratando de estabelecer uma ordem democrática e pluralista, onde o consenso aparece como a categoria central, o eixo da normatividade, o liame da juridicidade com a facticidade, o traço de união do constitu-cional com o real.” In: Teoria do Estado. São

Paulo: Malheiros, 1995, 3ªed., p.215.12 FARIA, José Eduardo. Poder e legitimidade, São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 47.13 “Aussi bien les failles que nous avons repérées dans les théories étiques sur l’universalisation constituent autant d’indices de l’impossibilité d’une conciliation absolue des préférences et des revendications individuelles, voire d’un consensus sur des prétentions de validité.” In: GERARD, Philippe. Réflexions sur la legiti-mité du droit dans la société démocratique, op.cit, p. 107.14 Estigmatizado por seu caráter demoníaco, o Poder tende a corromper-se. “Con el fin de evi-tar ese peligro siempre presente, que es inma-nente a todo poder, el Estado organizado exige de manera imperativa que el ejercicio del poder político, tanto en interés de los detentadores como de los destinatarios del poder, sea restrin-gido y limitado. Siendo la naturaleza humana como es, no es de esperar que dichas limitacio-nes actúen automáticamente, sino que deberán ser introducidas en el proceso del poder desde fuera. Limitar el poder político quiere decir li-mitar a los detentadores del poder; esto es el núcleo de lo que en la historia antigua y moder-na de la política aparece como el constituciona-lismo. Un acuerdo de la comunidad sobre una serie de regla fijas que obligan tanto a los deten-tadores como a los destinatarios del poder, se há mostrado como el mejor medio para dominar y evitar el abuso del poder político por parte de sus detentadores.” LOEWENSTEIN, Carl. Te-oría de la Constitución, tradução de Alfredo Gallego Anabitarte, Barcelona: Editorial Ariel S.A, SD, p. 29.15 FARIA, José Eduardo, op. cit, p 51.16 Id.,p 6217 LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo pro-cedimento, tradução de Maria da Conceição Côrte-Real, Brasília: Ed. Universidade de Bra-sília,1980, p.33.18 Id., p.33.19 Id., pp. 33-34.20 Nesse sentido, Faria afirma: “As campanhas eleitorais, que se processam sob certos proce-dimentos constitucionais, possibilitam o debate público e permitem (uma vez que o processo de criação do direito é missão da comunidade em seu conjunto e força, em suas múltiplas formas, tanto quanto em sua unidade) descobrir a me-

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lhor maneira de agir em conjunto. FARIA, José Eduardo, op cit. p. 66.É na supremacia da opinião pública que Roger Bonnard edifica sua doutrina de soberania na-cional. Para ele, “Si on se place à un point de vue purement réaliste, la Souveraineté Nationa-le se conçoit de la façon suivante.Elle consiste essentiellement dans la supréma-tie de l’opinion publique. Elle est ainsi le pou-voir de l’opinion publique de faire sentir une action de direction sur l’exercice des fonctions de l’Etat en vue d’assurer que cet exercice se fera conformément aux tendances de l’opinion.Ainsi la Souveraineté Nationale implique d’abord la liberté de formation de cette opi-nion. Il faut que tous les citoyens puissent ex-primer leur propre opinion, la répandre, discu-ter celle des autres, car c’est par ce jeu d’action et de réaction des opinions individuelles que s’établit l’opinion publique.Puis la Souveraineté Nationale compor-te l’action de cette opinion publique sur l’exercice des fonctions de l’Etat. Cette action ne peut résulter évidemment que des manifes-tations de volonté émanant de la majorité des citoyens. La règle de la majorité est à la base de l’idée de Souveraineté Nationale.Il résulte de cette conception que le problème de l’organisation de la Souveraineté Nationale consistera essentiellement d’abord à assurer la liberté d’expression et de discussion des opi-nions individuelles, puis à permettre à ce qui est vraiment l’opinion publique de se dégager, de se manifester et d’agir. Un régime qui ne réaliserait pas ces conditions n’est pas un ré-gime démocratique.”In: Précis élémentaire de droit public. Paris: Recueil Sirey, 1932, 2ª ed., pp.20-21. (grifos no original)21 Na definição de Carl Schmitt, incluem-se na definição de povo, “todos los que no son seña-lados y distinguidos, todos los no privilegiados, todos los que no se destacan por razón de pro-priedad, posición social o educación.” In: Teo-ría de la constitución, op. cit, p. 280.22 “En concevant la loi comme l’expression de la volonté du peuple et en affirmant que la li-berté est obéissance à la loi qu’on s’est pres-crit, Rousseau a donné dans le contrat social la formule la plus explicite de l’idée d’autonomie collective qui fonde la légitimité démocrati-que”. GÉRARD, Philippe. op cit, p. 120.

23 Vai daí a decisão coletiva não poder ser enca-rada como um consensus, pois “c’est seulement à travers les conflits et les débats qui les divi-sent que les membres de la société démocrati-que peuvent exercer l’autonomie collective à laquelle ils sont destinés”.GERARD, Philippe, op. cit. p 12224 Segundo Neumann: “Traduzido em política, o aspecto negativo da liberdade leva necessaria-mente à fórmula de cidadão versus Estado (... ). Sua pressuposição básica é o individualismo filosófico, o ponto de vista de que o homem é uma realidade inteiramente independente do sistema político dentro do qual vive(...) O po-der político, incorporado no Estado será sempre estranho ao homem; ele não pode nem deve, se identificar plenamente com ele. Uma teoria política baseada numa filosofia individualista deve necessariamente funcionar com o conceito negativo-jurídico de liberdade, liberdade como ausência de restrições” NEUMANN, Franz. Estado democrático e Estado autoritário, tradução de Luiz Corção, Rio de Janeiro: Zahar, 1969, p. 181.25 VIANNA, Luís Werneck, Liberalismo e Sin-dicato no Brasil, op.cit, p. 9.26 Id, p 1027 A propósito, Philippe Gérard pronunciaria-se: “Ces conditions incluent la sauvergarde de l’intégrité physique et morale des personnes, la satisfaction de leurs besoins élémentaires, ainsi que la garantie de moyens suffisants d’existence. Elles recouvrent non seulement des droits rela-tifs à la culture et à la enseignement, mais aussi les libertés de conscience et d’expression en matières religieuse, morale, scientifique ou po-litique. Elles impliquent également des droits d’association, de réunion et de communication sans lesquels un espace public démocratique ne saurait être établi. Elles requièrent enfin un en-semble des droits politiques au sens strict, tels que les droits de voe et d’éligibité, qui permet-tent aux personnes de participer au processus de décision collective.” Op. cit., p.130.28 A controvérsia mereceu a seguinte observa-ção de Werneck Vianna: “A igualdade formal a todos estendida não decorre de uma igualdade real. A sociedade nacional moderna iguala desi-guais na única dimensão do direito formal – to-dos são iguais perante a lei.” In: op. cit.., p.13.Acorde Paulo Bonavides: “A legitimidade de

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um poder constituinte assentado sobre a vonta-de dos governados e tendo por base o princípio democrático da participação apresenta uma ex-tensão tanto horizontal como vertical, que per-mite estabelecer a força e intensidade com que ele escora e ampara o exercício da autoridade.“A extensão horizontal se mede pela maior ou menor amplitude do colégio de cidadãos que decide sobre matéria constituinte ou elege re-presentantes a uma assembléia constituinte. 0 sufrágio serve de critério e referência com que caracterizar e definir o grau de legitimidade de-mocrática; quanto menores as restrições à par-ticipação, maior a legitimidade que se logra na decisão constituinte.Quanto à extensão vertical, esta se colige de quanto se escreveu dantes com respeito às vias de exteriorização do poder constituinte como manifestação de vontade soberana. A extensão vertical da legitimidade é a que permite mensu-rar os distintos graus de participação dos gover-nos; primeiro, o poder decisório sobre a Consti-tuição, mediante referendum ou distintos meios plebiscitários; segundo, a incumbência de esco-lher os membros da Assembléia Constituinte e, terceiro, a faculdade de eleger um Congresso ordinário, dotado de competência constituinte latente que é a forma mais branda, menos polí-tica e mais jurídica, indireta e arredada de par-ticipação do elemento popular.” In: Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 1996, 6ªed., pp.138-139. 29 Nas democracias modernas a participação popular se efetiva, dentre outras maneiras, pela eleição de um parlamento que representa o povo. Como se sabe, no regime representativo o povo não intervém cotidianamente nos assun-tos do governo, ao contrário do que ocorria na Grécia e na Roma Antigas, exemplos de demo-cracia direta.A sociedade moderna teve na industrialização e urbanização distintas particularidades. Do desenvolvimento industrial, emergiu a chama-da sociedade de “massa”, impossibilitando o exercício direto do povo sobre a gestão da coisa pública.Hauriou enumera vários motivos que justificam a democracia representativa, destacando a am-plitude do Estado a impossibilitar um diálogo direto com os cidadãos. Além da extensão do Estado, o tamanho da população também difi-

culta a comunicação entre governantes e gover-nados. Assinala que o referendum e a iniciati-va popular são instrumentos “qui permettent aux citoyens de prendre directement certaines décisions, dans le domaine constitutionnel ou législatif, ne sont que subsidiaires, par rapport à la procedure représentative, et aussi qu’elles sont mises en oeuvre, non pas à l’initiative du Pouvoir exécutif, mais à celle du corps électoral qui, par suite, prend de lui-même une attitude et une mentalité de censeur.” In: HAURIOU, André, op. cit., pp.198-199. 30 BONAVIDES, Paulo, Curso de direito cons-titucional, op. cit., p. 138.31 BONAVIDES, Paulo, Teoria do Estado, op.cit, p.76.32 As técnicas utilizadas para alcançar os valores democráticos são variáveis, de acordo com pe-ríodos históricos determinados e a experiência política de cada Estado.A emanação da soberania popular pode ser exercida juridicamente por meio de três mo-delos: a democracia participativa ou direta, a democracia representativa ou indireta e a de-mocracia semi-direta.Na democracia direta, o povo participa direta-mente da vida política do Estado exercendo os poderes governamentais, fazendo leis, admi-nistrando e julgando. É, pois, aquela em que o povo exerce de modo imediato as funções pú-blicas.Na democracia indireta ou representativa, o povo não exerce seu poder de modo imediato, mas pelos seus representantes, eleitos periodi-camente, a quem são delegadas as funções de governo.“A democracia representativa pressupõe um conjunto de instituições que disciplinam a par-ticipação popular no processo político, que vêm a formar os direitos políticos que qualificam a cidadania tais como as eleições, o sistema elei-toral, os partidos políticos”, em suma, institui mecanismos disciplinadores para a escolha dos representantes do povo. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, 6ª ed., p.122.Finalmente, na democracia semi-direta foram integrados institutos de participação direta do povo nas funções de governo. Foi a forma en-contrada pelo constituinte originário de conci-

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liar a participação direta e pessoal da cidadania na formação dos atos de governo, utilizando-se mecanismos que mesclam instituições de parti-cipação direta e indireta.Esse encontro do regime representativo com soluções da democracia direta tem raízes his-tóricas na França Revolucionária. Duas obras constitucionais marcam a renovação política daquele país, o projeto da Constituição Gi-rondina de fevereiro de 1793 que não chegou a ser votado pela Convenção e a Constituição de Montagnarde, de 24 de junho de 1793. Elas revelam a intenção de a soberania nacional não mais ser exercida inteiramente pelos represen-tantes designados, mas por cada cidadão. Como diz o artigo 7º da Constituição Montagnarde: “0 povo francês é a universalidade dos cidadãos franceses”.No projeto da Constituição Girondina é institu-ído o veto popular às leis votadas pela Assem-bléia, denominado “censura do povo sobre os atos da representação nacional”.Na Constituição Montagnarde, o controle é prévio. Acorde o artigo 10, o povo soberano “deliberava” sobre leis específicas, propostas pelo corpo legislativo. SAUTEL, Gerard . His-toire des institutions publiques, depuis de la révolution française. Paris: Dalloz, 1978, 4ª ed., pp. 36-38. Sobre o assunto consultar ain-da, DUVERGER, Maurice. Institutions poli-tiques et droit constitutionnel, Paris: Presses Universitaires de France, 1973, 13.ª ed., v. 2: Le systeme politique français, pp. 146-154.Também na Suíça, desenvolveram-se, na legis-lação cantonal e federal, várias formas do go-verno semidireto. “Das seis constituições que a Suíça se deu, a contar de 1798, apenas uma, a de 1801, não foi submetida à ratificação popu-lar. Pela Constituição de 1874, (...) toda matéria constitucional deve ser submetida a referen-dum. Qualquer reforma ou revisão constitucio-nal, tanto na esfera federal, como nos cantões, tem de ser proposta e aprovada pelo povo.“Em matéria de leis ordinárias, porém, a aplica-ção do referendum é muito menos ampla. Nem a Federação, nem os Cantões praticam o regi-me representativo puro, mas algumas espécies de leis, as mais importantes como as de orça-mento, não são submetidas ao referendum Os tratados internacionais, do mesmo modo, não dependiam da aprovação popular No entanto,

de 1921 para cá, a intervenção do povo nesses assuntos tende a firmar-se e generalizar -se”. AZAMBUJA, Darcy. Teoria geral do Estado. Porto Alegre-Rio de Janeiro: Editora Globo, 1982, 21ªed., p. 225. Para um maior desenvol-vimento do tema, consultar BARTHÊLEMY, Joseph e DUEZ, Paul. Traité élémentaire de droit constitutionnel, Paris: Dalloz, 1936, pp. 121 et seq.Por meio do regime semidireto, o “constitu-cionalismo democrático da Idade Contempo-rânea, mais intimamente ligado às inspirações da doutrina da soberania popular, elegeu alguns instrumentos de participação que dão ao povo, conservadas embora em parte, as formas repre-sentativas, a palavra final relativa a todo o ato governativo”. In: BONAVIDES, Paulo. Ciên-cia Política.,São Paulo: Malheiros,1994, 10ª ed., pp. 339-340.Estes instrumentos de participação são enume-rados pela maioria dos tratadistas de direito pú-blico como sendo o referendum, o plebiscito, a iniciativa e o direito de revogação, acrescendo alguns autores, o veto popular, também chama-do referendo facultativo.O referendum é a forma mais tradicional de in-tervenção direta do povo na legislação. Trata-se de um direito do corpo eleitoral de aprovar ou não as decisões das autoridades legislativas ordinárias, “respeitando-se os princípios bási-cos do Estado de Direito democrático-consti-tucional, tanto no procedimento como no seu conteúdo.”CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional. Coimbra: Livraria Almedina, 1991, 5ªed., p.127.“Com o referendum, o povo adquire o poder de sancionar as leis. Tudo se passa, segundo a ponderação de Barthélemy e Duez, como no sistema de governo representativo ordinário, em que o Parlamento normalmente elabora a lei, mas esta só se faz juridicamente perfeita e obrigatória”, depois da aprovação popular, isto é, depois que o projeto oriundo do Parlamento for submetido ao sufrágio dos cidadãos, “que votarão pelo sim ou pelo não, por aceitação ou por sua rejeição.” BONAVIDES, Paulo. Ciên-cia política, op. cit., p. 340.Nos ordenamentos jurídicos, o referendum apresenta diferentes modalidades, dentre as quais se distingüem:

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a) Quanto à matéria: em constituinte, legislativo e administrativo, quando se trata de leis consti-tucionais, ordinárias e matéria administrativa, respectivamente.b) Quanto ao tempo: em sucessivo ou post le-gem, quando se segue cronologicamente ao ato estatal para conferir-lhe ou tolher-lhe validade ou eficácia” In: RUFFIA, Paolo Biscaretti di. Direito constitucional. Instituições de direito público, tradução de Maria Helena Diniz, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, p. 373; e, ainda, preventivo ou ante legem, também de-nominado consultivo ou programático, quando precede o ato legislativo e/ou administrativo, fi-xando para ele princípios gerais. Id., p.373. No referendo preventivo busca-se conhecer, aprio-rísticamente, o “pensamento da massa eleitora”, acorde expressão de Paulo Bonavides, acerca do conteúdo de norma jurídica futura.c) Quanto ao fundamento: em obrigatório, quando a Constituição o imponha como neces-sário à formulação da norma jurídica, e faculta-tivo, “quando se confere a determinado órgão ou uma parcela do corpo eleitoral, competência para fazer ou requerer consulta aos eleitores, consulta esta que não representa (...) obrigação constitucional”, In: BONAVIDES, Paulo. Ci-ência política, op. cit., p.341.d) Quanto aos efeitos ou eficácia: em constitu-tivo e ab-rogativo. O primeiro visa a conferir validade ou eficácia à norma legal; o segundo, ao contrário, visa ab-rogar a norma vigente, fa-zendo-a expirar.Referendum e plebiscito distingüem-se, mal-grado a doutrina e a legislação, não raramente, assemelhá-los.Plebiscito é o mecanismo jurídico por meio do qual o povo é chamado a aprovar ou não um fato, um acontecimento, concernente à estrutu-ra do Estado ou de seu governo. In: ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional ge-ral, tradução de Maria Helena Diniz, São Pau-lo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 316.Trata-se de uma “decisão que, transcendendo a normatividade constitucional e sem quais-quer limites políticos e jurídicos, legitima em termos “democráticos-populares”, uma ruptura constitucional.” In: CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional, op. cit., p.127.O plebiscito deve referir-se não a um ato nor-mativo ou administrativo (como o referendum),

mas sim, a um mero fato ou evento concernente à estrutura essencial do Estado ou do seu go-verno (por exemplo, a adjudicação de território, a conservação ou modificação de uma forma de governo, tal qual ocorreu em 1860-70, no mo-vimento de formação da unidade italiana, tendo sido anexado ao Reino da Sardenha vários ex-Estados e Províncias da Península.Tal definição afigura-se doutrinariamente mais exata do que a sustentada por outros autores como Batelli, Crosa, Laferriere, que caracte-rizam o plebiscito como um pronunciamento popular bastante em si mesmo, sem nenhuma ligação com outro órgão estatal, ou mesmo, a concebida por Hauriou e Duverger, segundo a qual o plebiscito é uma forma inferior de re-ferendum, “imperfeito” e “deteriorado”, inca-paz de oferecer nenhuma alternativa ao corpo eleitoral. Nesse sentido, vide: LAFERRIERE, Julien. Manuel de droit constitutionnel, Pa-ris: 1947, 2ª ed., pp.436 et seq.; RUFFIA, Paolo Biscaretti di. op. cit, pp. 370 et seq.; DUVER-GER, Maurice. Institutions politiques et droit constitutionnel, op. cit., 1978, 4ª ed., 146 et seq.; HAURIOU, André. Droit constitution-nel et institutions politiques, op.cit., 1972, pp. 258 et seq.; PRELOT, Marcel. Institutions po-litiques et droit constitutionnel, Paris: Dalloz, 1969, pp. 642 et seq.Quanto aos seus efeitos, o plebiscito pode ter um caráter confirmatório ou resolutório, caso o povo ratifique ou não o fato sobre o qual foi chamado a pronunciar-se. Outras vezes, ele constitui con-dição suspensiva que terá ou não lugar, acorde a manifestação da vontade popular.A iniciativa popular é o mecanismo por meio do qual uma fração do corpo eleitoral está, consti-tucionalmente habilitada a propor formalmente a legislação que, consoante seu entendimento, atenda ao interesse público. Ela será “simples” quando os seus promotores consignem, apenas, os traços gerais, o princípio da lei, cabendo à autoridade legislativa ordinária legislar sobre a questão, ou formulada – “a iniciativa leva o projeto popular à assembléia num texto arti-culado em forma de lei”, para ser discutido e votado. BONAVIDES. Paulo, Ciência Política, op. cit, p. 351.A revogação ou recall adotada principalmente nos Estados Unidos e Suíça consagra o direito dos cidadãos de “solicitar a destituição de um

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funcionário de natureza eletiva antes de expirar o seu mandato, o qual se levará a cabo median-te decisão tomada pelo corpo eleitoral.” GAR-CÍA-PELAYO, Manuel. Derecho constitu-cional comparado. Madrid: Alianza Editorial S.A.,1984, p.184.O veto popular pressupõe uma lei já feita pelo Parlamento, que a Constituição não obriga a ser referendada pelo povo. Se, no entanto, um número determinado de cidadãos pede que ela seja submetida a referendum, e o povo a re-pudia, tem-se o veto popular. AZAMBUJA, Darcy, op. cit., p.224.Distingue-se do referendum esta modalidade de instituto uma vez que, no primeiro, a lei só se torna obrigatória após a aprovação popular, ao passo que no veto a norma será cogente se, dentro de prazo estipulado, o povo não vetá-la expressamente. 33 A existência de instituições representativas na organização da Igreja Católica durante a Idade Média é vista por alguns teóricos como o em-brião do sistema representativo moderno. A re-presentação tinha como objetivo a eleição dos membros de cúpula da Igreja. Nesse sentido, ver PAIVA, Maria Arair Pinto. Espaço público e representação política, In: Direito, Estado e Sociedade – Revista do Departamento de Di-reito da PUC-RJ, nº 7, julho/dezembro, Rio de Janeiro, 1995, p. 75. 34 LEITÃO, Claudia. A crise dos partidos po-líticos brasileiros. Os dilemas da representa-ção política no Estado intervencionista, For-taleza, Gráfica Tiprogresso, 1989., p. 52.35 Id, p.52.Enfocando a natureza da representação sob o prisma histórico Carl Friedrich pondera: “ (...) vemos que las asambleas se desarrollaron en la mayor parte de Europa durante la Baja Edad Media, formando una pieza decisiva del orden constitucional en el Medievo. Muy a menudo aquellos tres “Estados” los componían, respec-tivamente, la nobleza, el clero y los mercado-res de las ciudades (los burgueses). Pero a este respecto existían las mayores variantes imagi-nables. Las más importante de aquellas asam-bleas es, sin duda, el Parlamento de Inglaterra, donde la alta nobleza se unía al alto clero en los “Lores Espirituales y Temporales”, en tanto los caballeros, junto com los burgueses, formaban los Comunes. Así, los grupos más importantes

de la comunidad - hoy conocidos como “cla-ses” – estaban representados y eran mantenidos unidos por el rey gracias a su “ministro”, con la finalidad de asegurarse el consentimiento de aquéllos cuando se presentaban impuestos o gabelas de carácter extraordinario. Ello era necesario a causa del primitivo funcionamiento de los sistemas de la administración central y de la carencia de métodos eficaces de coerción. De manera muy natural, y al reunirse entre sí, estos representantes se dedicaron al “regateo” de su consentimiento a esas autorizaciones para imponer fiscalmente al pueblo. Solían presen-tar quejas y petitiones que la Corona tenía que conceder, para asegurarse lo que de veras le interesaba. Por lo tanto, aquéllos no eran re-presentantes a escala nacional, sino agentes de los poderes locales actuando según mandatos o instrucciones especiales. Esto era cierto, sin embargo, solamente mientras actuaran por se-parado. Cuando el rey y las dos Cámaras del Parlamento actuaban juntos, tras haber solucio-nado sus diferencias y alcanzado un compro-misso, se estimaba que representaban a todo el cuerpo político. Más particularmente, se supo-nía que representaban a todo el organismo po-lítico del dominio de Inglaterra al actuar como tribunal superior, lo cual era considerado como su función solemne hasta el siglo XVII.” In: Gobierno constitucional y democracia. Teo-ría y práctica en Europa y América. Madrid: Instituto de Estudios Políticos, 1975, Vol. II, pp. 21-22.36 Nesse sentido, Hauriou afirma “Les députés des comtés et des ordres privilégiés étaient con-voqués primitivement par le Roi pour lui don-ner aide et conseil. Mais le Parlament anglais obteint, par la Charte de 1215, ainsi que nous l’avons déjà noté, le droit de consentir l’impôt, assorti du droit de présenter des bills ou péti-tions. Le Parlament anglais sut se servir avec beaucoup d’habilité de ces deux concessions faites par le pouvoir royal pour conquérir le pouvoir législatif. Usant du droit de pétition, le Parlament demande au Roi de prendre telles ou telles dispositions législatives et il n’accorde l’impôt que si le Roi promulgue le statute qui a été proclamé.A partir de 1462, les membres du Parlament prennent l’habitude de rédiger eux-memes les bills, c’est-à-dire les projets de loi. Lorsque

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l’accord s’est fait ente la Chambre des Lords, le Roi n’a plus qu’a promulguer le texte de la loi, dont le contenu a été ainsi établi par le Parlement” HAURIOU, André. Droit constitu-tionnel et institutions politiques, op. cit., pp. 204-205. 37 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social, tradução: Vicente Sabino Júnior, José Buskatsky, 1978. Livro Terceiro, Capítulo XV, p182.38 Para Maria Arair Paiva, “Os ensinamentos de Jean-Jacques Rousseau sobre a soberania popu-lar, embora utilizados para atrair e conquistar o apoio do povo aos eventos revolucionários, não eram perfilados pelas pessoas privadas que compunham a esfera pública burguesa. Esses ensinamentos foram básicos e astutamente pos-tos de lado, por que não conseguiram ser acei-tos como válidos e adequados à racionalidade moral prática.”op.cit, p.76.39 “(...) foi nas Considerações sobre o governo da Polônia (Considérations sur le gouverne-ment de Pologne) que Rousseau, em face de uma forma positiva de organização constitucio-nal, exarou parecer com os remédios concretos apontados à solução ou atenuação dos incon-venientes que as instituições representativas acarretam à plenitude de um poder soberano, esteado no princípio daquela volonté générale, indivisível e inalienável.Querendo, como sempre, guardar coerência com suas teses, não obstante o enorme teor de contradições em que se enredam, Rousseau las-tima que nos grandes Estados, um de seus pio-res inconvenientes seja o poder legislativo não manifestar-se por si mesmo. Daí resultaria a corrupção presente aos corpos representativos.Contra ‘esse mal terrível da corrupção’, que faz do órgão da liberdade um ‘instrumento de servidão’, indica Rousseu dois meios eficazes de atalhá-lo: a renovação frequente das assem-bléias, encurtando-se o mandato dos represen-tantes e a submissão destes às instruções de seus constituintes, a quem devem prestar estreitas contas de seu procedimento nas assembléias.” BONAVIDES, Paulo. Ciência Política, op.cit., pp. 213-214.40 MILL, John Stuart. O governo representa-tivo, tradução de E. Jacy Monteiro, São Paulo: IBRASA, 1983, 2ªed., p, 5041 Id., p 49.

42 Id., p. 61.43 Conforme já foi analisado no presente tra-balho, essa concepção estabelece um liame de dependência entre representante e representado de que o liberalismo se distanciou na tentativa de forjar uma nova concepção de mandato polí-tico. Nesse sentido, Claúdia Leitão afirma: “(...) o mandato político busca se livrar da concei-tuação de mandato no direito privado, em uma redefinição da expressão representação política, distanciada de uma postura jurídica contratua-lista.” op. cit., p 41. 44 Ainda sobre a questão da localização da so-berania dentro do trinômio povo-nação-estado e, tomando como referência as análises de Mi-guel Reale, Maria Arair Paiva faz as seguintes considerações: “REALE remete-nos à alteração fundamental que se processou no âmbito da te-oria do Estado e da teoria do Direito Público, no apogeu do século XIX, por obra sobretudo, de mestres alemães. Eles concluíram que a nação é uma entidade sociológica que se estrutura numa personalidade que é o Estado. A soberania não é mais da nação, mas do Estado. A soberania é uma categoria histórica estatal. A atribuição da soberania ao Estado, visto como nação organi-zada e personalizada, iria apor novas críticas e suscitar novas dúvidas sobre a natureza jurídica da representação. São apresentadas por REALE, duas novas teorias: a teoria do querer nacional e a teoria da representação como representação de interesses. As críticas em relação à primeira (trata-se de uma ficção, não é possível identi-ficar entre o querer do povo, da comunidade e o querer do representante), são semelhantes às que foram colocadas para o mandato imperati-vo. No nosso pensar, não se trata de nova teoria, porque sua pretensão é a mesma da teoria da soberania popular, com a diferença de que esta lidava com os conceitos de povo e nação, ao invés de povo e Estado. A segunda teoria – a da representação de interesses, apareceu, diz REALE, quando se verificou a ficção da teoria da representação do querer. O representante, por ela, age por critérios próprios, mas não em função de seus próprios interesses e sim, dos interesses do povo. A questão do interesse está, desde o surgimento da representação política, envolvida em sua problemática. Basta lembrar-mos o célebre discurso de BURKE, aos seus eleitores de Bristol e os Papéis dos Federalistas

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(Hamilton, Jay e Madison), que remontam ao século XVIII.” op cit., p. 79.45 LEITÃO, Claudia, op. cit, p. 77.46 BONAVIDES, Paulo. Ciência política, op cit, p. 20347 LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo pro-cedimento, op. cit, p. 127.48 “As sociedades primitivas conferem papéis políticos e direitos de decisão, quando os prevê-em assim, na maioria das vezes segundo crité-rios atributivos, isto é, em estreita ligação com outros papéis já atribuídos. Assim se assegura automaticamente que os mais velhos, os atuais chefes de uma determinada linha principal, os primogênitos duma determinada família, os proprietários rurais e urbanos, os presidentes de associações de artistas, ou quaisquer outros, re-presentem as funções político-administrativas. Esses agrupamentos de papéis revelam um grau muito pequeno de diferenciação do sistema po-lítico. A sua estabilidade é alcançada por meio de integração na sociedade, designadamente por meio de apoio e ligação a outros papéis so-ciais de decisores. A soberania baseia-se pois, no apoio mediante os outros papéis próprios dos governantes em contexto de ação de acordo com o status, contextos religiosos, econômicos, militares e familiares. E, correspondentemen-te, o controle social da soberania é transmitido pelo cuidado com os outros papéis próprios dos governantes.” LUHMANN, Niklas, Id, p. 132.49 Ibid., p. 133.50 Id., p. 133.51 Nesse sentido, Luhmann afirma “O acesso à atuação política no papel de eleitor e os seus efeitos situam-se independentemente doutros papéis e o tipo de decisão como eleitor não pre-cisa ser justificado em outros contextos sociais, pois goza da garantia do segredo. O contexto político de decisão consegue, desta forma, uma certa autonomia e indiferença perante outros âmbitos da sociedade. Isso significa o não iso-lamento da política dentro de si própria, o não estabelecimento dum novo poder de decisão arbitrário, mas sim uma variabilidade determi-nada, independente da política em relação com outros âmbitos da sociedade.” Id., p. 134.52 Id., p 135.53 Id., p.137.54 Id., p. 141.

55 SOBOLEWSKY, Marek. Politische repra-esentation im modernen Staat der buerger-linchen demokratie. In: Zur theorie und ges-chichte der repraesentativverfassung, Apud: BONAVIDES, Paulo. Ciência política, op. cit, p. 226.56 Um excelente index enumerando a bibliogra-fia sobre os partidos políticos foi realizado por WITKER, Alejandro na obra intitulada Biblio-grafia latinoamericana de politica y parti-dos políticos. México: Centro Interamericano de Asesoría y Promoción Electoral (CAPEL), 1988.57 Na prática política, contudo, a existência de partidos pode não estar, necessariamente, rela-cionada à concepção democrática. O uniparti-darismo, identificado como sistema típico dos regimes totalitários, admitia a presença dos par-tidos, a exemplo do Partido Nazista alemão ou do Partido Fascista italiano.Acorde o entendimento de José Alfredo de Oli-veira Baracho, no caso da Alemanha e Itália nazi-fascista, e ainda, da Rússia comunista, não vigorou um sistema unipartidário mas um siste-ma competitivo, que se tornou não competitivo devido aos abusos do partido dominante. Para o autor: “Os sistemas não competitivos, que têm no partido ultradominante o limite para diferen-ciá-lo dos sistemas competitivos, pode surgir pelo abuso da posição dominante, que não pas-sa de um partido único, tipo puro e não dissimu-lado, que baseia-se na interdição e repressão de outras formações políticas.” In: Teoria geral dos partidos políticos, Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, Universida-de Federal de Minas Gerais, nº 50, janeiro de 1980, p. 46. ( grifos no original)58 CANOTILHO, J.J. Gomes, Direito constitu-cional, op.cit, p.452.59 Id, p. 46. Desde o século XVIII, a teoria polí-tica busca proceder à classificação dos partidos políticos. A título informativo, alguns auto-res assim os esquematizaram: Hume: partidos pessoais e partidos reais; Bluntschli: partidos mistos políticos-religiosos, partidos baseados em oposições regionais ou nacionais, partidos de estamentos ou de classes, partidos constitu-cionais, grupos governamentais e de oposição e partidos políticos puros; Treischke: partidos que mantêm uma concepção política do Estado e aqueles que mantêm uma social do Estado;

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Radbruch: partidos individualistas, supra-indi-vidualistas políticos e supra-individualistas cul-turais; Stahl: partidos da revolução e partidos da legitimidade; Weber: partidos de patronagem e partidos ideológicos; Burdeau: partidos de opi-nião e partidos de massa; Nawiasky: partidos do movimento e partidos da conservação; Du-verger: partidos de quadros e partidos de mas-sas; Roger-Gehard Schwartzenberg: sistemas competitivos e não competetitivos e Neuman: partidos de representação individual e partidos de integração social.60 BARACHO, José Alfredo de Oliveira Bara-cho, Teoria geral dos partidos políticos, op. cit., p.26.61 GARCÍA-PELAYO, Manuel, Derecho cons-titucional comparado,op.cit., p.192.62 Segundo a famosa definição de Max Weber, o partido político é “ uma associação (...) que visa a um fim deliberado, seja ele ‘objetivo’ como a realização de um plano com intuitos materiais ou ideais, seja ‘pessoal’, isto é, destinado a ob-ter benefícios, poder e, conseqüentemente, gló-ria para os chefes e sequazes, ou então voltado para todos esses objetivos conjuntamente.” In: Economia e società. Milano: Comunitá, 1961, Vol. II, pp.214-241.A conceituação weberiana carrega significativo conteúdo ideologizante. Acorde observa Nor-berto Bobbio: “ Esta definição põe em relevo o caráter associativo do partido, a natureza da sua ação essencialmente orientada à conquista do poder político dentro de uma comunidade, e a multiplicidade de estímulos e motivações que levam a uma ação política associada con-cretamente à consecução de fins “objetivos” e/ou “pessoais”. Assim concebido, o partido compreende formações sociais assaz diversas, desde os grupos unidos por vínculos pessoais e particularistas, às organizações complexas de estilo burocrático e impessoal, cuja carac-terística comum é a de se moverem na esfera do poder político.”In: Dicionário de política, tradução: Carmem C. Varialle e outros, Brasí-lia: Universidade de Brasília, 1991, vol.2, pp. 898-899.63 “Las consideraciones teóricas sobre los par-tidos políticos en el sentido moderno o, si se quiere, premoderno de la palabra - es decir, como distintos de las facciones que había sido tema de permanente atención en el pensamiento

político – comienzan a desarrollarse en Ingla-terra en el siglo XVIII con la germinación del régimen parlamentario y se acentúan con el desenvolvimiento de ésto. La literatura de esta primera época se caracteriza por el plantamien-to del problema de la posibilidad o imposibili-dad de distinguir entre los partidos y las faccio-nes y por su posición polémica en favor o en contra de los partidos. Como ejemplo - quizá el primero – de la distinción entre ambos términos vale la estabelecida por Bolingbroke en 1749: un partido degenera cuando ‘el interés nacional deviene un objetivo secundario o subordinado y la causa (...) se apoya más en el beneficio del partido o facción que en el de la nácion.”In: GARCÍA-PELAYO, Manuel, El Estado de partidos, Madrid, Alianza Editorial, 1996, 2ª ed., pp.12-13. 64 KHEITMI, Mohammed Rechid, Les partis politiques et le droit positif français, Apud: MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direi-tos humanos na ordem jurídica interna, Dis-sertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, 1991, p.404. 65 “O partido busca o poder e tende, por isso mes-mo, a concentrá-lo tanto internamente quanto o poder do Estado, quando o alcança. Exatamente por isso, o partido tende a ampliar a presença do Estado para controlar, sempre mais, as fontes do poder existentes na sociedade.Em suma, o partido visa mobilizar uma parce-la da sociedade com suficiente densidade para assumir o poder, em condições de ( ...) pôr em execução as medidas legais e executivas que permitam a concretização de uma concepção da sociedade, com as prioridades determina-das pelo momento social, segundo o sentir da parcela por ele mobilizada.”WAGNER, José Carlos Graça. Partidos políticos: um estudo crítico, In: Revista de Direito Constitucional e Ciência Política, publicação do Instituto Brasi-leiro de Direito Constitucional, Rio de Janeiro, Forense, 1987, número especial, p. 369.66 Segundo Kelsen, os partidos políticos promo-vem a formação da vontade geral ou da vontade estatal no momento em que contrapõem suas diferentes formulações políticas.Impõe-se superar o conceito ideal de povo pre-sente em Rousseau, para apreender a dinâmica das forças antagônicas, na qual o povo real edi-

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fica a sociedade democrática. In: A democra-cia, op. cit., pp. 35 et seq. 67 Para citar dois exemplos de inserção dos par-tidos políticos na ordem constitucional demo-crática, na Constituição da República Federati-va do Brasil a estruturação jurídica dos partidos políticos encontra-se prevista no art. 17, Título II “ Dos direitos e garantias fundamentais”, que determina: “ É livre a criação, fusão, incorpora-ção e extinção de partidos políticos, resguarda-dos a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos: I- caráter nacional; II- proibição de recebimento de recursos financeiros de entida-de ou governo estrangeiro ou de subordinação a estes; III- prestação de contas à Justiça Eleito-ral; IV – funcionamento parlamentar de acordo com a lei (...)”Avaliando a posição dos partidos na lei funda-mental alemã Heck afirma: “Pelo art. 21, Alínea 1, da Lei Fundamental, os partidos políticos são portadores da formação da vontade política do povo e estão integrados à Constituição. Essa integração contém o reconhecimento de que os partidos políticos não são apenas organizações relevantes no sentido político e sociológico, mas também no sentido jurídico. Eles tornaram-se elementos integrantes da construção consti-tucional e da vida política constitucionalmente ordenada.” HECK, Luís Afonso. O Tribunal Constitucional Federal e o desenvolvimento dos princípios constitucionais: contributo para uma compreensão da jurisdição cons-titucional federal alemã, Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1995, p.245.68 In: Teoria geral dos partidos políticos, op. cit., p.3569 “ Respecto a su orden interno, cabe afirmar que a una organización que tiene tanta impor-tancia en la vida coletiva (Gesamtleben) no se la puede dejar una libertad ilimitada de asocia-ción, y que parece contradictorio otorgar a los partidos derechos jurídico-políticos sin estable-cer jurídicamente sus obligaciones políticas. Los partidos necesitan de una regulación jurídi-ca cuyo contenido concreto debe depender del sistema de partidos de cada país” GARCIA-PE-LAYO, Manuel, El Estado de partidos, op.cit., pp.36-37.70 Marcel Prélot identifica três modalidades de

representação política: a majoritária, a repre-sentação das minorias e a proporcional.Acorde sua definição, “ le système majoritaire exige, pour une désignation valable que con-verge sur le même nom la majorité absolue ou, sous certaines conditions, la majorité relative des suffrages exprimés.La majorité absolue exige plus de la moitié des voix et non pas, comme on le dit souvent, la moité plus une (...).La majorité relative consiste simplesment dans un nombre de voix plus élevé que celui obtenu par un concurrent, ne fut-il qued’une unité.”No tocante à representação das minorias, Prélot assevera: “Assez généralement, le système uni-nominal donne aux minorités un certain nombre des sièges. Leur groupement géografique, joint à la multiplication des circonscriptions interdit, leur élimination (...).Mais cette représentation est empirique et aléa-toire. La représentation des minorités, au con-traire, a pour but d’assurer systématiquement un minimum de sièges aux opinions de consi-dérations.Les principaux procédés usités sont le vote li-mité et le vote cumulatif:- Dans le vote limité, la majorité ne peut désig-ner qu’une partie des élus. Ainsi, en Italie, la loi Acerbo qui fut, en 1924, la fourrière du fascis-me, accordait a priori les deux tiers des sièges à la majorité, mais réservait le tiers restant des mandats aux listes dites “de minorité”. - Dans le vote cumulatif, le électeur réunit tou-tes les voix dont il dispose sur un ou deux noms au lieu de les dispenser sur tous les candidats d’une liste complète. La minorité en se grou-pant habilement peut, de la sorte, devenir majorité pour un ou plusieurs sièges.La représentation proportionnelle est aussi la représentation des minorités, mais elle la dépas-se en donnant à celles-ci leur part entière.Por fim, no tocante à representação proporcio-nal : “ L’object de la représentation propor-cionnelle est, en effet, d’assurer aux diverses opinions entre lesquelles se répartissent les électeurs un nombre de sièges correspondant au rapport de leurs forces respectives. Selon des métaphores bien connues, elle est tantôt le mi-roir rapetissant mais fidèle où le pays retrouve son image, tantôt la carte en réduction des ten-dances qui partagent le peuple.

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Les modes assez divers d’application se ramè-nent tous à quelques opérations d’arithmétique élémentaire.Les sièges s’attribuent au moyen:a) du quotient électoral;b) du nombre unique;c) du diviseur électoral ou de la plus forte moyenne;d) du vote unique transférable.’’ In : Précis de droit constitutionnel, Paris, Dalloz, 1952, deuxième édition, pp. 370-373. (grifos no ori-ginal).71 Trata-se da conhecida posição de Duverger, adotada por outros autores, para quem o sistema majoritário de escrutínio a um só turno tende ao bipartidarismo, enquanto o sistema majoritário de escrutínio a dois turnos e o de representação proporcional tende a multipartidarismo. A ma-téria está tratada na obra Os partidos políticos, op. cit., pp.239 et. seq.72 Por outro lado, embora promova, no geral, uma participação mais democrática, “ a repre-sentação proporcional acarreta a multiplicidade de partidos, mas nem sempre estimula conflitos programáticos definidos”, na observação per-cuciente de José Alfredo de Oliveira Baracho. Teoria geral dos partidos políticos, op. cit, p. 50.73 Diria José Afonso da Silva : “Uma das con-seqüências da função representativa dos parti-dos é que o exercício do mandato político, que o povo outorga a seus representantes, faz-se por intermédio deles, que, desse modo, es-tão de permeio entre o povo e o governo, mas não no sentido de simples intermediário entre dois pólos opostos ou alheios entre si ; porém, como um instrumento por meio do qual o povo governa. Dir-se-ia em tese, ao menos - que o povo participa do poder por meio dos partidos políticos. Deverão servir de instrumento para atuação política do cidadão, visando influir na condução da gestão dos negócios políticos do Estado.” In : Curso de direito constitucional positivo, op.cit, p. 350.74 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Di-reitos humanos na ordem jurídica interna, op. cit, p.394.75 DUVERGER, Maurice. Os partidos políti-cos, op. ci., p.387.Outra finalidade não tem o instituto represen-tativo, no dizer de Carnelutti, senão que “um

outro faça com relação a um interesse alheio o que faria se fosse o respectivo titular.”Apud: SARTORI, Giovanni. A teoria da representa-ção no Estado representativo moderno, In: Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, 1962, p. 85.76 Falou-se em tentativa, porque o sistema li-beral não tardou a demonstrar sua contradição com os ideais democráticos. Nesse sentido, ver Paulo Bonavides: “A crítica de juristas e sociólogos políticos mostrou com clareza que longe de idênticos ou pelo menos análogos, o liberalismo e a democracia na essência eram distintos, senão opostos, oposição mais sentida e identificada na medida em que os princípios liberais buscavam por objeto supremo atender à sustentação de privilégios de classe, numa so-ciedade classista, onde a burguesia empalmara o poder político desde a Revolução Francesa.” Ciência Política, op cit, p. 216.No mesmo sentido, pronuncia-se José Luiz Quadros de Magalhães: “O modelo do Estado liberal não funcionou. O crescimento econô-mico desordenado, a gigantesca concentração econômica e a revolta social, que passa a ser organizada pelos movimentos socialistas na se-gunda metade do século XIX, desafiam a con-tinuidade do modelo que começa a mudar, pri-meiramente nas leis infra-constitucionais, com as primeiras leis trabalhistas, previdenciárias e a lei antitruste, que marcam uma mudança de postura do Estado que de abstencionista passa a intervir nas questões sociais e econômicas, as-sistindo aos economicamente excluídos ou ca-rentes de um lado, e de outro lado intervindo no domínio econômico, no sentido de controlar o processo de concentração econômica, evitando o fim do modelo liberal que se baseava na livre iniciativa e na livre concorrência, inviabiliza-das pela concentração econômica e o domínio de mercados decorrente dessa concentração.” In: Poder municipal. Paradigmas para o Es-tado constitucional brasileiro, op. cit., p.32.77 Uma projeção do liberalismo no constitu-cionalismo atual francês está contida na aná-lise realizada por BARACHO, José Alfredo de Oliveira, no artigo intitulado: A revisão da Constituição francesa de 1958. A permanen-te procura de uma Constituição modelar, In: Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte, Faculdade de Direito da Universidade Federal

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de Minas Gerais, Volume 3, 1999, pp. 63-103.78 Hans Kelsen diria: “É importante ter consci-ência de que o princípio da democracia e o do liberalismo não são idênticos, de que existe até mesmo certo antagonismo entre eles. Pois, de acordo com o princípio da democracia, o poder do povo é irrestrito, ou, como formula a De-claração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão: “ O princípio de toda a soberania resi-de essencialmente na Nação.” É essa a idéia de soberania do povo. O liberalismo, porém, im-plica a restrição do poder governamental, seja qual for a forma que o governo possa assumir. Também implica a restrição do poder democrá-tico. Portanto, a democracia é essencialmente um governo do povo.” In: A democracia, op. cit., p. 143.Para Gustav Radbruch, “ Foi sempre errónea a designação que noutro tempo se dava à Demo-cracia, ao chamar-se-lhe um “liberalismo das esquerdas”, caracterizando-a assim como uma espécie mais acentuada de Liberalismo (...).“A Democracia, sabido é, quer antes de mais nada o domínio incondicional da vontade ma-joritária. O Liberalismo, pelo contrário, quer antes de mais nada a possibilidade de as von-tades individuais se afirmarem e até, em certos casos, a de se oporem à vontade da maioria. Para o Liberalismo são ponto de partida de tôda a construção de filosofia política: os “direitos do homem”, os direitos fundamentais e origi-nários do indivíduo, e entre êles o da liberdade, como elementos do seu estado natural, que já existia antes do Estado, e que só foram trans-portados para dentro dêle sob a condição de serem aí absolutamente respeitados.Este, como se sabe, só tem a justificá-lo precisamente essa missão de os respeitar. Com efeito, como se lia na Declaração de 1789: “o fim de tôda a so-ciedade política consiste na conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem.” Pelo contrário, para a Democracia, é ponto de partida a renúncia definitiva que o indivíduo faz em favor da vontade do Estado, represen-tada pela vontade da maioria, da sua liberda-de prè-estadual, para receber em troca apenas a possibilidade de participar, êle, na formação dessa vontade. Ora, desta diversidade de con-cepções fundamentais derivam para o Libera-lismo e para a Democracia certos princípios de organização política totalmente diversos e cuja

oposição se pode ver materializada na antítese entre MONTESQUIEU e ROUSSEAU. O Liberalismo, por exemplo, acata a doutrina da divisão de poderes do primeiro, cujo intuito era, como se sabe, neutralizar em favor dos di-reitos de liberdade do indivíduo as duas fôrças sociais, monarca e a vontade da maioria, opon-do-se uma à outra. A Democracia, pelo contrá-rio, rejeita, com o segundo, essa doutrina, por-que precisamente aquilo que lhe é mais caro é o absolutismo dessa vontade da maioria que o primeiro combate.“Portanto, dum lado a maioria, do outro, liber-dade. Por um lado, participação na formação da vontade do Estado e conseqüentemente da maioria; pelo outro, liberdade perante o Esta-do. Aqui “liberdade civil dentro do Estado”, acolá, “liberdade civil contra o Estado”; aqui direitos de liberdade concedidos pelo Estado, acolá direitos de liberdade deixados intactos pelo Estado; para uma, a igualdade de todos os direito conferidos, para o outro uma liberdade deixada a todos igualmente, a-fim de poderem utilizar as suas aptidões naturais diferentes - isto é, uma igualdade no ponto de partida, que logo se transforme numa desigualdade no pon-to de chegada. Para a Democracia o conceito de igualdade sobrepuja o de liberdade; para o Liberalismo, inversamente, é o de liberdade que sobreleva ao de igualdade. Além disso, torna-se também claro, depois do que fica dito, que esta diferenciação entre as duas concepções tem como base,respectivamente, não uma total eliminação do elemento liberal pelo elemento democrático-ou vice-versa, do democrático pelo liberal – mas sim apenas o predomínio que nelas é dado a um outro dêsses elementos na sua mútua combinação demo-liberal, segundo a expressão fascista. “Pois bem : isto pôsto, já podemos agora remon-tar até à o posição das concepções filosóficas de que brotam os contrastes que acabamos de pôr em relêvo. Se empregarmos uma fórmula algé-brica podemos dizer que a Democracia atribui ao indivíduo valor finito; o Liberalismo, porém, um valor infinito. Para a primeira o valor do indivíduo é multiplicável e o da maioria dos indivíduos, portanto, maior que o da minoria. 0 valor infinito indivíduo, segundo o Liberalis-mo, é, pelo contrário, necessàriamente inígua-lável por qualquer outro valor correspondente

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a uma maioria, por maior que esta seja. Esta diversa valoração do indivíduo nas duas con-cepções funda-se, por sua vez, numa diferente estrutura dos respectivos conceitos àcêrca dos valores éticos. Para o Liberalismo o valor ético é susceptível de se realizar completamente num único indivíduo. Todo o indivíduo é chamado a realizar um valor ético que é o mesmo para todos e, por conseguinte, insuperável e infini-to. Pelo contrário, para a Democracia o valor ético só é susceptível de receber um conteúdo mediante a sua aplicação aos vários indivíduos, recebendo um conteúdo diferente a respeito de cada um dêles; por forma que só num número infinito de indivíduos é que a riqueza do mundo moral pode a-final manifestar-se em tôda a, sua plenitude.” In: Filosofia do direito, tradução de L. Cabral de Moncada, São Paulo, Saraiva & C.ª, editores, 1937, pp. 92-94. (grifos no ori-ginal)79 Ciência Política, op. cit., p. 222.Igualmente, anota Carl Friedrich : “Se acuer-da generalmente que el método tradicional de basar la representación en subdivisiones terri-toriales es un tanto artificial, dado que ninguna comunidad genuina corresponde con ellas ya, sobre todo en las grandes aglomeraciones ur-banas de hoy. Y con todo nadie há conseguido descrubrir un plan realmente factible de cam-bio, que tuviera en cuenta la transformación de los lazos comunales existentes.” In: Gobierno constitucional y democracia, op. cit., p.37.80 BONAVIDES, Paulo, Ciência Política, op cit, p 223.81 Manuel García-Pelayo aponta as antinomias existentes entre o liberalismo e a democracia, responsáveis, segundo ele, pela crise do Estado democrático liberal: “La raíz fundamental de tal crisis radica en que el Estado democrático liberal se bas en la unidad de dos términos, que si durante cierto tiempo se han armonizado, sin embargo, representan en sí mismos algo anta-gónico y de difícil convivencia cuando los prin-cipios que los informan obtienen el adecuado despliegue. Tales términos son la democracia y el liberalismo.“Cierto que ambos tienen una serie de notas comunes, y que ninguno puede vivir sin un mí-nimum del outro; que la democracia, tal como se há manifestado en Occidente, exige ciertas libertades liberales, y que el liberalismo preci-

sa de ciertas exigencias democráticas. Pero esto es justamente uno de los supuestos de sua anti-nomia. El outro es que, a pesar de esa necesidad mutua, ambos términos son contradictorios en una serie de aspectos esenciales:A) Como manifestaciones de esta contradicción en el plano ideológico, pueden considerarse las seguintes:a) El liberalismo supone la división de poderes como recurso técnico para limitar los propios poderes. La democracia, en cambio, no admite limitación alguna para los poderes del pueblo; por eso su más característica expresión históri-co-positiva há sido el gobierno convencional.b) Para el liberalismo es esencial la salvaguar-dia de los derechos de las minorías, pues todo individuo tiene una esfera intangible frente al poder del Estado; para la democracia, la volun-tad de la mayoría no puede tener límite. El uno es intelectualista, la outra es voluntarista.c) El liberalismo significa así libertad frente al Estado; la democracia, posibilidade de partici-pación en el Estado.d) El uno conduce a la afirmación de la persona-lidad; la outra, a su relativización ante la masa.e) Forma extrema de los supuestos liberales se-ría el anarquismo; forma extrema de los demo-cráticos, el comunismo.” In: Derecho constitu-cional comparado, op. cit., pp.198-199.82 Jorge Miranda, a propósito, escreve: “A passagem para o Estado social irá reduzir ou mesmo eliminar o cunho classista que, por ra-zões diferentes, ostentavam antes uma e outra categoria de direitos. A transição do governo representativo clássico para a democracia re-presentativa irá reforçar ou introduzir uma componente democrática, que tenderá a fazer da liberdade tanto uma liberdade-autonomia como uma liberdade-participação (fechando-se, assim, o ciclo correspondente à contraposição de CONSTANT).Por um lado, não só os direitos políticos são paulatinamente estendidos até se chegar ao su-frágio universal como os direitos económicos, sociais, culturais, ou a maior parte deles, vêm a interessar sectores crescentes da sociedade. Por outro lado, o modo como se adquirem, em regime político pluralista, alguns dos direi-tos económicos, sociais e culturais a partir do exercício da liberdade sindical, da formação de

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partidos, da greve e do sufrágio mostra que os direitos de liberdade se não esgotam no mero jogo de classes dominantes.”In: Manual de direito constitucional, Coimbra Editora Ltda, Tomo IV, 1988, p.23. 83 PAIVA, Maria Arair. Espaço público e re-presentação, op. cit, p 8084 Gastão Alves de Toledo define os grupos de pressão como; “ organizações ou entidades que procuram influenciar no processo de decisão dos órgãos estatais, visando ao atendimento de seus objetivos.” Grupos de pressão no Brasil. In: Revista de Direito Constitucional e Ciência Política, Rio de Janeiro: Forense, número espe-cial , 1987, pp 412-413.Os métodos por meio dos quais os grupos de pressão exercem influência são diversos, porém, de maneira geral, cabe classificá-los observando as seguintes direções: “a) influencia en las elec-ciones; así, por ejemplo, los sindicatos obreros americanos, normalmente indiferentes ante los partidos, apoyan electoralmente a aquel que les promete llevar a cabo una determinada política; b) contacto directo con los legisladores, minis-tros y funcionarios; c) propaganda frente a la opinión pública.”GARCÍA-PELAYO, Manuel. Derecho constitucional comparado, op. cit., p.196.85 HIRST, Paul. A democracia representativa e seus limites, tradução Maria Luiza X. de A. Bor-ges, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992, p. 41.A diferença entre os grupos de pressão e os par-tidos políticos é clara: “a) Los partidos tienen como finalidad la ocupación o participación en el poder político, buscan la investidura jurídico-pú-blica para sus miembros, mientras que los grupos de presión no pretenden la ocupación del poder, sino simplesmente condicionar las decisiones de aquellos que lo ejercen jurídicamente.b) Los partidos tienen una concepción políti-ca total y se sienten responsables de los inte-reses morales y materiales de la totalidad del país; los grupos de presión sólo tienen interés por un problema o por un círculo limitado de problemas, permaneciendo indiferentes ante los demás; sólo se sienten responsables de los intereses de grupo.c) En resumen: mientras que la política es lo fundamental para los partidos y constituye el fin y el sentido de su existencia, en cambio,

para los grupos de presión es lo accidental, es un mero instrumento para realizar outro tipo de intereses materiales o espirituales.“Para concluir, debemos aclarar ahora cúal es la relación dialéctica entre el grupo de presión y el partido político.d) En primer término, la relación entre ambos es fluyente, de manera que puede haber orga-nizaciones que formalmente tengan la configu-ración de partido, pero que en realidade actúen como grupos de presión, sea que no les interes-se ejercer el poder del Estado, sino simplemen-te influenciarlo, sea que, aun participando en el poder, permanezcan indiferentes para lo que no sea un círculo limitado de problemas.e) Existe una relación compensatoria entre ambos, pudiendo afirmarse que, mientras más fuertes y representativos de los intereses de los núcleos sociales sean los partidos, menos ex-tensión tienen los grupos de presión.”GARCÍA-PELAYO, Manuel. Derecho constitucional comparado, op. cit., pp.196-197.86 “Cabría, pues, decir que, cuando los partidos son débiles, el poder social asciende al estatal a través de los grupos de presión.” GARCÍA-PELAYO, Manuel. Derecho constitucional comparado, op. cit., p.197.87 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Regi-mes Políticos, op. cit., pp.127-128.88 Na esteira da definição de Carnelutti, Giovan-ni Sartori acrescenta um novo elemento à teoria da representação: a responsabilidade. Respon-sabilidade esta de caráter político, que deve ser cobrada do mandatário a cada eleição para efei-to de renovação ou revogação de mandatos. Nas suas palavras: “O apelo períodico ao corpo elei-toral obriga a seu modo e por seus caminhos, o eleito a comportar-se com relação aos eleitores como estes fariam se estivessem em seu lugar.” In: A teoria da representação no Estado re-presentativo moderno, op.cit, p. 84.89 In: Quem é o Povo? A questão fundamen-tal da democracia. Tradução: Peter Naumann, São Paulo: Max Limonad, 2ª ed, 2000.

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* Artigo científico elaborado a partir do desenvolvimento de projeto de extensão universitária, financiado pela UNIFRA (Centro Universitário Franciscano), de acordo com a Linha Institucional de Pesquisa e Extensão: Teoria Jurídica, Cidadania e Globali-zação, realizado no município de Santa Maria-RS, durante o ano de 2004.** Graduada em Direito pela UFSM (Universidade Federal de Santa Maria), Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Gradua-ção Mestrado em Integração Latino-Americana, pela mesma Instituição, Especialista em Direito Público pela UNIFRA. Exerce a docência em ensino superior desde 1996, ministrando as disciplinas de: Teoria da Constituição, Ciência Política e Teoria Geral do Estado. Foi a Coordenadora do Projeto Resgate da Memória Constitucional, em que participaram os professores e acadêmi-cos dos Cursos de História e Direito da UNIFRA. É pesquisadora do CNPq.

Introdução

O tema que nesta abordagem se dis-cute, e que foi objeto de projeto de extensão universitária realizado no ano de 2004, vem adquirindo cada vez maior relevância, so-bretudo neste momento da vida política bra-sileira, em face da necessidade de reflexão sobre o papel do Estado e do Direito na con-solidação da ética e da solidariedade como valores supremos de nossa sociedade.

Trata-se de indagar sobre a viabi-lidade ou inviabilidade de se creditar ao conhecimento da história constitucional do Brasil o principal caminho de acesso a

uma cultura de cidadania, ou seja, de po-der-se questionar se o conhecimento da experiência constitucional brasileira pode ser interpretado como vetor de uma efetiva formação cidadã para nosso país.

Por meio de pesquisa de campo, bus-cou-se a obtenção de dados que permitis-sem delinear o perfil, por amostragem, de alunos de escolas de ensino médio, priva-das e públicas, no município de Santa Ma-ria, de modo a organizar as representações desses acerca da relação entre o conheci-mento da trajetória político-jurídica que conduziu o país à Constituição Brasileira de 1988 e as práticas de cidadania.

A CONSTITUIÇÃO COMO PARADIGMA HERMENÊUTICO DA TEORIA DA CIDADANIA NO BRASIL E

OS DESAFIOS DO ENSINO*THE CONSTITUTION HOW HERMENEUTIC PARADIGM OF THE BRAZILIAN

CITIZENSHIP THEORY AND THE CHALLENGES OF THE SCHOOL

luCiana RoDRigues Penna**

Recebido para publicação em outubro de 2005

Resumo: A Teoria da Cidadania no Brasil se transforma a partir da natureza aberta e transdisci-plinar da Constituição, porém essa transformação demanda uma construção hermenêutica apta a instrumentalizar o operador do Direito na re-significação de muitos caminhos teóricos e práticos escolhidos para a solução de conflitos cada vez mais complexos.Palavras-chave: Teoria da Cidadania. Constituição. Escola. Hermenêutica. Direitos fundamentais. Complexidade.

Abstract: The Brazilian Citizenship Theory transforms itself up from the open and trans-disciplin-ary nature of the Constitution, but this transformation demands a hermeneutic construction able to instrument the Law operator in the re-signification of the chosen paths to solve conflicts each more complex.Key Words: Citizenship. Constitution. School. Hermeneutics. Elementary rights. Complexity.

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1. História política: a história constitu-cional

Quando Joaquim Gomes Canotilho nos fala da memória constitucional do povo como uma das condições da efeti-vidade da Constituição, ele nos remete ao conceito político de memória (1999, p.17). O constitucionalista português frisa com muita ênfase o fato de que a memória política é indispensável para compreender os dilemas constitucionais, e que portanto, falar de Direito Constitucional é falar de história.

Daí, impõe-se que falar de teoria da Constituição no Brasil é falar da história do Brasil, e falar de uma teoria geral da Constituição é, necessariamente, falar da história de outras sociedades, de outros pa-íses, de outras épocas.

Memória política, no entender de Ecléa Bosi, é aquela em que ”os juízos de valor intervém com mais insistência. O su-jeito não se contenta em narrar como teste-munha ”neutra”. Ele quer também julgar, marcando bem o lado em que estava na-quela altura da história, e reafirmando sua posição ou matizando-a”. (BOSI, 2004, p.453).

Assim, percebe-se que a constitu-cionalização dos fundamentos da política, processo de longa sedimentação histórica, conduziu no Brasil, o sistema jurídico (o Direito) ao patamar de conceber a cidada-nia como um dos fundamentos da socieda-de política, ou do Estado. Isto se fez muito significativo a partir do processo consti-tuinte que culminou na promulgação da Constituição Federal de 1988.

Mas o renascimento do ideal da ci-dadania tem uma raiz, uma história mais complexa. Sua constitucionalização se inicia no plano político com as revoluções liberais, e no plano teórico com o pensa-mento liberal clássico.

O modo de ser, juridicamente, da cidadania aparecerá na Constituição do

Estado-Nação, a partir dos fins do século XVIII.

Naquele momento, os mecanismos para a prática da cidadania ou para o exer-cício de uma cidadania ativa, herança da construção filosófica ocidental, legada pe-los pensadores da Antigüidade1 e da Idade Média, passam a ter na Constituição Na-cional o seu locus jurídico privilegiado, dentro da concepção individualista típica da cultura liberal.

Os destinatários da Constituição, já no discurso das Revoluções Liberais dos séculos XVII e XVIII, são definidos como “cidadãos” (lembre-se da Revolução Fran-cesa), e a partir desse contexto, o conceito de cidadania aparecerá renovado pelas ex-periências políticas de dois séculos inclui também (com relação aos seus direitos e as suas responsabilidades) as organizações e associações, bem como os próprios pode-res estatais, pois todos são agora sujeitos políticos que atuam no cenário nacional, sendo, portanto às suas ações sociais e políticas que esta juridicização constitu-cional da ética deverá apresentar-se como elemento norteador e legitimador.

Como se referiu anteriormente, a tra-dição filosófica ocidental desencadeou a recepção da cidadania no domínio do Di-reito, colocando a lei como figura central da consolidação da justiça na vida em so-ciedade. Esta apreensão da cidadania pelo Mundo Jurídico se reforça, de forma cada vez mais nítida, com as Declarações de Direitos que vão surgindo na Idade Média, em vários cenários da Europa, aparecendo também em colônias européias na América do Norte, já em vias de se tornarem uma Nação.

Porém, a mais ousada juridicização da idéia de cidadania na dimensão cons-titucional ocorre com o surgimento das Constituições Nacionais Dirigentes, que documentam a reinvenção da política a partir do valor solidariedade e do valor to-

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lerância, reafirmando e consolidando o pa-pel garantista do Estado-Nação, como uma das principais e mais significativas obras do racionalismo político.

Desse modo, a Constituição enquan-to lei fundamental da sociedade moderna possibilitou mudanças nas estruturas da organização política, tornando-se verda-deira feição jurídica do Estado-Nação, alterando a forma de exercício do poder pelos governos, a própria concepção dos direitos fundamentais dos indivíduos, ou seja, consagrando o novo: a ética que o corpo político formado pelo Estado-Nação e pela sociedade civil deverão, a partir de então, vivenciar e assegurar para garantir o bem-estar das futuras gerações. Segun-do Bobbio2, a vida política se desenvolve através de conflitos jamais resolvidos em definitivo, e cuja resolução acontece me-diante acordos simultâneos, tréguas e es-ses tratados de paz mais duradouros são as constituições.

Mister é, entretanto, que ao aludir à Constituição como o lugar privilegiado da definição jurídica da cidadania na Mo-dernidade, cidadania esta identificada nos séculos XVIII e XIX com a liberdade, e liberdade esta concebida como autono-mia do indivíduo perante a sociedade e o Estado, se indague e reflita com acuidade sobre a nova feição que a Carta Política, a partir do século XX, vai adquirir. Isto por-que tanto a política como o Direito estarão, então, encarregados de desempenhar uma nova função, algo que ocupará o centro do discurso e da prática jurídico-política na denominada pós-modernidade: reduzir as desigualdades sociais e regionais.

A Constituição como norma jurídica, resultado de todo o significativo processo político de estatização e codificação do Direito, impulsionado pelas Revoluções Liberais dos séculos XVII e XVIII e pelo Positivismo Normativista do século XIX, passou a ser concebida como a Lei Funda-

mental do Estado, da sociedade e de cada cidadão (permitindo ela própria alterar a concepção de cidadania).

É a Constituição a Carta Política e Normativa, formalizadora, no pacto polí-tico que funda o Estado, do compromisso de juridicização dos valores e dos funda-mentos de legitimação para a ação de seus membros.

É sugestiva a percepção de que a Constituição já nasce no contexto da for-mação de uma noção de Direito que enfa-tiza o legislado, pois que este sistema ju-rídico se apresenta como hierarquizado o que vem a atestar a especialização do papel da Constituição, destacando-se das demais espécies de normas jurídicas, como norma superior ou dotada de supremacia formal e material.

É, portanto, no contexto da teoria constitucional moderna que se irá deposi-tar na Constituição, além da função acima mencionada de ser a Carta de Garantia dos Direitos Fundamentais de um povo (ou a expressão jurídica maior de sua liberdade e da defesa de sua dignidade), também uma função de ser o patamar ou a referên-cia mais importante da concepção da ética nestes novos tempos.

Desse modo, e crê-se que não por descuido, estabeleceu-se na Constituição o domínio eminentemente axiológico do sistema jurídico. E surpreendentemente, este domínio instituído/instituinte da ética que deve imperar nas dimensões privada e pública da vida, é exatamente aquele que ocupa o mais alto grau dentro da hierarquia normativa do Direito Moderno.

Mas de que racionalidade e de que axiologia se está tratando?

2. Novas ou antigas indagações?

Afirma Immanuel Kant, na obra Crí-tica da Razão Prática, que:

Segundo o epicurista, o conceito de virtude encontrava-se já na máxima de

A CONSTITUIÇÃO COMO PARADIGMA HERMENÊUTICO...

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promover sua própria felicidade; contraria-mente, segundo o estóico, o sentimento de felicidade já estava contido na consciência de sua virtude. (...) O estóico afirmava que a virtude é o sumo bem total, e a felicidade apenas a consciência da sua posse como pertencente ao estado do sujeito. O epi-curista afirmava que a felicidade é o sumo bem total e a virtude somente a forma da máxima de concorrer a ela, a saber, no uso racional dos meios para a mesma (KANT, p. 183).

Recorrendo-se, metaforicamente, a tal discussão apresentada por Kant, poder-se-ia perguntar se ainda não foi decifrado o enigma filosófico moderno, qual seja, aquele centrado na possível contradição entre liberdade e igualdade social.

Talvez o problema não esteja ade-quadamente posto, uma vez que ambos os valores estão reconhecidos como funda-mentais na Constituição3, o locus jurídico por excelência da ética individual e da éti-ca pública na Era Moderna.

Porém, se constatamos que não vem ela logrando a esperada efetividade jurí-dica, não ostentando força normativa su-ficiente para garantir o império da ética solidária e da justiça social, para o que o edifício constitucional fora instituído, en-tão eis uma desconcertante constatação. Será a liberdade incompatível com o res-peito pelo outro? Ou melhor: que liberdade é esta que não convive, na prática, com o respeito à dignidade humana?

O problema central que se coloca, a seguir, é o de se saber por que a Consti-tuição, erigida a estatuto jurídico da cida-dania, a partir da Modernidade, sofreu/so-fre a neutralização da sua força normativa (efetividade), inclusive proporcionalmente à elevação do grau de normatização dos valores sociais postos como fundamentos da politicidade4. Eis uma inquietante inda-gação.

Observando a experiência política nacional do Ocidente nos séculos XIX e XX, tanto no contexto europeu, quan-to nas Américas, percebe-se uma grande contradição. De um lado, a evolução cons-titucional, no sentido da incorporação de novos assuntos na dimensão normativo-constitucional, gerando maior abrangência de direitos (constitucionalização de novas dimensões de direitos, novas formas e ins-trumentos de garantia de direitos e do regi-me democrático, bem como as renovadas formas que o próprio Estado de Direito vem a assumir). De outro, (e ocorrendo simultaneamente a esses avanços), o ad-vento de regimes políticos autoritários, an-tidemocráticos e, como o mais assustador, o advento da experiência real dos regimes totalitários na Europa do século XX5.

3. O paradoxo da constitucionalização de valores ético-econômicos e ético-so-ciais versus a fragilização da efetividade da Constituição Social

Embora o Constitucionalismo denso do século XVIII, sobretudo o oriundo da Revolução Francesa, tenha permanecido referência de hermenêutica e valores uni-versalmente conhecidos até os dias atuais, constata-se que, nos países que adotam o Sistema da Civil Law, a Constituição so-mente passou a ocupar uma posição impor-tante ou decisiva na aplicação do Direito a partir da segunda metade do século XX.

Nos países ditos desenvolvidos6 este fenômeno de alteração do significado da Constituição, no sentido do reconhecimen-to de sua posição central no ordenamento jurídico se deu de forma mais rápida do que nos países ditos em desenvolvimento. No caso do Brasil, como será comentado adiante, somente a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 o Direito Constitucional conquistou a devida prima-zia na hermenêutica jurídica.

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Assim, revela-se ao olhar do jurista e do filósofo do século XXI, um paradoxo cuja visibilidade só se tornou possível na pós-modernidade, qual seja: quanto maior a ênfase no domínio jurídico-constitucio-nal, como o caminho mais adequado cami-nho para a consolidação de uma cidadania ativa, adotado pela racionalidade moderna, e quanto mais evidenciado o papel garan-tista de direitos, assumido pela Constitui-ção Normativa, maior também se torna a necessidade de afirmar, construir e defen-der a efetividade das Constituições.

Segundo ensina Streck7, esse fenôme-no de vulnerabilidade constitucional pode ser denominado de “baixa constitucionali-dade”, isto é, pelo desconhecimento acerca da importância da Constituição, de seu valor político, jurídico e social, de sua relevância como instauradora da própria identidade do povo, e é apontado como um dos principais problemas que levou e leva muitas socie-dades à redução, até mesmo à supressão da dimensão ética na vida política8.

4. O grande desafio do Constitucionalis-mo Contemporâneo: a efetividade dos direitos econômicos e sociais

O caráter complexo das sociedades pós-modernas, convivendo com a Teoria do Estado Democrático de Direito, originária das transformações sofridas pelo Constitu-cionalismo no pós-Segunda Guerra Mun-dial, coloca o paradoxo apontado acima como gerador de um grande desafio.

Se de um lado, a ocorrência da Se-gunda Guerra Mundial, pela ruptura que causou com a tradição do pensamento político e filosófico ocidental, implicou na busca pela construção, na maioria dos países ocidentais, de Estados Democráti-cos, ela por outro lado engendrou modelos constitucionais bem mais complexos.

As denominadas Constituições de-mocráticas passam a ser concebidas como

abertas, dirigentes, amplas, analíticas e programáticas. Revelam então, o esforço cada vez mais intenso dos poderes cons-tituintes para alcançarem uma regulação o mais coerente possível com o valor demo-cracia, e que faça da cidadania uma reali-dade social, política, jurídica e econômica. A Constituição Democrática e dirigente aparece como o meio mais eficaz para do-minar a instável configuração política e econômica da atualidade.

4.1. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: a orientação doutrinária para uma hermenêutica pluralista em Peter Hä-berle e sua influência na Teoria Constitu-cional de Paulo Bonavides

Quando Peter Häberle questiona quem são ou quem deveriam ser os intér-pretes da Constituição, na verdade denun-cia o modelo hermenêutico da sociedade atual, “fechada”, tradicional, onde apenas os operadores do Direito, e os órgãos ju-dicantes (tribunais e juízes), possuem le-gitimidade para a interpretação da Consti-tuição.

Häberle sugere uma concepção teó-rica, científica e democrática da interpre-tação constitucional, onde os ritos e proce-dimentos formais exercidos pelos Poderes estatais para tal função competentes, não sejam vistos como o único veículo de transmissão de significações fundamen-tais, ou seja, de valores constituintes.

Desta forma, a interpretação aber-ta de Peter Häberle é aquela feita pela e para a uma sociedade aberta de intérpre-tes, onde é legítima a interpretação oficial dos órgãos estatais, mas também há espaço para que as forças sociais, potência públi-cas, grupos e todos os cidadãos manifes-tem-se sobre a constitucionalidade.

Neste sentido, a Constituição sairia do “exílio” no plano normativo do de-

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ver-ser superior hierarquicamente, porém quase que apenas formal , e adentraria o mundo do ser, de uma existência constitu-cional, preventiva, e não apenas reparatória de lesão a direitos já constitucionalizados.

Assim, a Constituição aberta, traba-lhada por Paulo Bonavides, adquire o sen-tido de uma experiência jurídica e ultraju-rídica, ou seja, a Constituição alcançaria o patamar de um modus vivendi, pois presen-te estaria no cotidiano de uma sociedade, onde a cidadania fosse um valor fundamen-tal, o Estado ideal fosse o Democrático de Direito, e a juridicidade da cidadania fosse dada pela realização dos valores da Cons-tituição. Esse ideal de intérpretes-cidadãos da Constituição, vincula as classes e os gê-neros, vincula governantes e governados, e todas as gerações em torno da materialida-de constitucional. Parte da consciência de uma pré-compreensão da Constituição, da cidadania e do próprio ser da pessoa huma-na em suas dimensões públicas e privadas (como eu, como pessoa, como sujeito e como cidadão), tal como enuncia Marile-na Chauí (2000, p.p. 117-119). Há que se salientar a importância da obra de Paulo Bonavides para a compreensão da Teoria Material da Constituição no Brasil, uma vez que o autor disponibiliza ao público brasileiro vasto referencial teórico sobre a compreensão material da Constituição.

5. A trajetória constitucional do Brasil: o porque do não atendimento das pro-messas da Modernidade

O modelo constitucional democráti-co adotado no Brasil, em 1988, representa o estatuto da cidadania para toda socieda-de brasileira no presente. A Constituição do Brasil, a partir do processo constituin-te de 1987/1988, faz renascer a esperança do povo brasileiro numa sociedade nova e mais justa.

A adoção desse modelo constitucio-nal dirigente, que advém também da influ-

ência sobre os constitucionalistas pátrios, da experiência constitucional portuguesa e espanhola de fins da década de 1970, con-cebida como referência de transformação social e política no caminho da efetiva re-democratização e implementação da cida-dania ativa.

A Constituição Federal de 1988 nos aponta, desde a sua entrada em vigor, para um caminho político e jurídico, onde a ci-dadania é um fundamento do Estado De-mocrático de Direito, ou seja, a República Federativa do Brasil.9

No entanto, esse modelo de Consti-tuição conheceu e vem conhecendo, nas duas últimas décadas do século XX e pri-meiros anos do século atual, uma constante neutralização, uma vez que a cidadania no Brasil vem sendo exercida com menos vi-gor do que o esperado.

Alguns constitucionalistas brasilei-ros, na defesa da democracia participati-va, como um valor fundamental da ética política do presente, reconhecem a sua não implementação plena na trajetória do Constitucionalismo brasileiro, iniciada formalmente a partir da Constituição do Império, de 1824, e estão perplexos10.

Em face da acentuada ênfase na(s) crise(s) econômica(s), na(s) crise(s) do Es-tado, na instabilidade do(s) mercado(s), na transnacionalização das empresas de gran-de expressão econômica, na inevitabilida-de da adesão ao neoliberalismo, presen-ciamos a legitimação da privatização do público através da redução dos domínios do Estado-Nação.

Frente a isso, resta ao cidadão brasi-leiro uma espécie de posição out, ou seja, de permanecer fora do processo, inerte ou impotente em vista da força dos desígnios da política global liberalizante, que vem transformando a política em um determi-nismo absoluto, e a perspectiva de futuro de cada cidadão em um destino pré-deter-minado, inevitável e impassível de ques-tionamento.

luCiana RoDRigues Penna

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Nas palavras de Gisele Cittadino:De todos os ramos do direito, talvez

seja o constitucional o mais atingido pe-las transformações econômicas e políticas destas três últimas décadas. Fruto da enge-nharia política liberal-burguesa do século XIX, que desenvolveu a idéia de consti-tuição como “centro emanador do orde-namento jurídico”, o direito constitucio-nal começou o século XX encarado como sinônimo de segurança e legitimidade, delimitando o exercício dos mecanismos de violência monopolizados pela Estado, institucionalizando seus procedimentos decisórios, legislativos e adjudicatórios, estabelecendo as formas de participação política e definindo o espaço soberano da palavra e da ação em contextos sociais marcados pelo relativismo ideológico e em cujo âmbito o poder do Estado depende de critérios externos aos governantes para ser aceito como válido. No limiar do sé-culo XXI, contudo, a idéia de constituição cada vez mais é apontada como entrave ao funcionamento do mercado, como freio da competitividade dos agentes econômicos e como obstáculo à expansão da economia. O que ocorreu ao longo desse período? O que explica a metamorfose sofrida pelas constituições contemporâneas, deixando de ser aceitas como condição de legitimi-dade da ordem jurídico-política para se converter em objeto de um amplo processo de reforma e enxugamento? O que levou a esse refluxo do constitucionalismo e do próprio direito público e a retomada das pretensões hegemônicas do direito priva-do, especialmente o civil? (2000, p. XV).

Portanto, se recoloca a pergunta proposta acima: o que pode a Constitui-ção, enquanto estatuto da cidadania, se a cidadania adquire o seu sentido em face do exercício da ação política, ou seja, da consciente experiência do indivíduo que poderá gerar uma memória (significados),

enquanto sujeito vinculado à coletividade na qual está inserido e á qual deve a sua condição de cidadão (vida pública)? Desde Heidegger se sabe que ser é ser-no-mun-do.

A particularidade da condição huma-na requer a experiência da publicização da ação, não no sentido da não diferenciação das dimensões privada e pública da vida, mas no sentido de que a anulação do hu-mano no indivíduo procede da sua aliena-ção da coletividade, de seu isolamento, da negação de sua identidade sendo, portanto, possível através da negação/dissolução de seus vínculos com os outros seres huma-nos, com a coletividade, com a dimensão pública da existência. (ARENDT, 2001).

A redução ou a neutralização da for-ça normativa da Constituição, revelada no processo de enfraquecimento do Estado afeta, sobretudo, a possibilidade de con-cretização dos direitos econômicos e so-ciais. Isto, aliado às reformas constitucio-nais diretas (através de emendas ao texto da Constituição), representa um entrave ao projeto de edificação de um país mais cida-dão, coerente com a Carta Política.

Vivencia-se, atualmente, além da manutenção de uma normatividade não coerente com a Lei Maior (como é o caso da legislação penal), a não-atualização da Constituição, em respeito à materialidade do texto original. Veja-se, por exemplo, a Emenda n. 45, que alterou o disposto no artigo 5º, inserindo em um novo parágrafo (parágrafo terceiro), exigência de maioria qualificada para a internalização de trata-dos assinados pelo Brasil no que se refere à defesa dos direitos humanos.

Tal alteração vem a representar um retrocesso jurídico em termos de tutela de direitos humanos no Brasil, pois a Consti-tuição de 1988, em seu texto original, não estabelecera tal exigência, que apenas con-tribui para reduzir a celeridade da interna-

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lização de tratados sobre direitos humanos, afastando cada vez mais os mesmos do ní-vel constitucional, aproximando-os do ní-vel infraconstitucional.

Ao tomar-se como o principal desafio da construção da efetividade constitucional no Brasil a realização dos direitos sociais e econômicos, opção de todo o constitu-cionalista comprometido com a realidade deste país, encontra-se um elo entre esse desafio e aquilo a que Paulo Bonavides denominou de crise constituinte brasileira (BONAVIDES, 2001, p. 165).

Essa crise, que diferentemente da crise constitucional, e mais grave do que a primeira, não pode ser solucionada apenas com a realização de reformas constitucio-nais, é sem dúvida alguma a crise da (au-sência de uma) consciência sobre o valor da Constituição11.

Essa crise constituinte nasce da pró-pria (de) formação jurídica do operador do Direito, e este é o fator que levou Lênio Streck a constatar que a Modernidade bra-sileira é tardia, sendo que aqui as promes-sas da Modernidade ainda não foram rea-lizadas. Salienta-se que uma das principais promessas não cumpridas da Modernidade no Brasil é justamente a da garantia do efetivo acesso e tutela jurídica aos direitos sociais e econômicos para os cidadãos bra-sileiros.

Essa crise de interpretação do Di-reito, que reflete um pensamento jurídico resistente ao reconhecimento do caráter eminentemente social do Ordenamen-to Jurídico brasileiro, como resultado da opção política feita em 1988, decorre do que Streck denomina “senso comum te-órico do jurista”, ou seja, a interpretação legal que inviabiliza, em grande medida, o advento da “nossa” Modernidade, de um Estado Social e Democrático, voltado para o povo.

O Brasil em sua história política reve-la complexa trajetória constitucional, onde

a prioridade passa da meta de consolida-ção da sua identidade nacional, enquanto nação soberana, livre e independente para o alcance de posição soberana na dinâmica política e econômica mundial.

Da posição da Teoria da Constituição, este fato representa a convivência, lado a lado, no texto das Constituições brasilei-ras, dos objetivos de um Estado de Direito e da prioritária tutela constitucional dos di-reitos fundamentais, inclusive e sobretudo, dos direitos econômicos e sociais.

Estes direitos, que por sua própria natureza, possuem um caráter geral, ou seja, são direitos públicos, titularizados por todos os cidadãos brasileiros, vêm apa-recendo associados aos modelos de Estado que o país adotou nas diferentes etapas de sua história política.

Não se deve esquecer a Constituição de 1934, em que se tem a presença da ins-piração social advindo do Constituciona-lismo de Weimar, na trajetória constitucio-nal brasileira.

A incorporação dos novos direitos, econômicos e sociais, ao elenco dos já tradicionais direitos fundamentais de natu-reza individual, e das liberdades públicas, coloca o Constitucionalismo brasileiro na atualidade das Constituições Sociais, for-jadas na associação entre a crise do Estado Liberal mínimo e a decadência de um mo-delo econômico baseado na acumulação individualista dos lucros e na especulação econômica irrefreada.

Para salvar o Capitalismo agonizante e impedir o advento de Estados Socialistas máximos, planificadores da vida pública e privada, aparecem as Constituições So-ciais, típicas de Estados do tipo interven-cionistas e com metas voltada à superação, ou pelo menos, à equalização das profun-das desigualdades econômicas e sociais, já marcantes no século XIX e agravadas no início do século XX.

luCiana RoDRigues Penna

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Assim, os direitos relativos ao traba-lho, ao salário mínimo, à saúde, ao bem-estar coletivo, isto é, os direitos de segunda geração, aparecem consagrados na Ordem Social e na Ordem Econômica Constitu-cional.

Porém, tendo em vista que o Estado Social, como Estado intervencionista e promotor da igualdade, não se realiza em sua plenitude no Brasil, o desenvolvimen-to dos principais e grandes centros urbanos contrasta, ainda na atualidade, com o perfil das periferias e dos subúrbios.

A cisão entre dois Brasis, um dos e para os ricos e um dos e para os pobres, aliada àquela já tão aguda entre os traba-lhadores urbanos e os do meio rural, iden-tificou e ainda identifica, na atualidade brasileira, face ao nosso modelo político e econômico, as mazelas de um país onde a cidadania ainda está em construção.

Ora, um Estado é Estado Social ou não o é. Se as desigualdades regionais e sociais ainda são gritantes, o Brasil ainda não possui um Estado Social.

Não se pode conceber um Estado “relativamente social”, ou “parcialmente social”. Também uma Constituição ou é dirigente ou não é. Ou possui força norma-tiva ou não possui. E sua efetividade reside em sua materialidade ou não possui efeti-vidade. Se a Constituição de 1988 repre-senta a esperança de uma sociedade mais justa, ela ainda não é plenamente eficaz.

Sem dúvida, a contraditória realidade social brasileira reflete a falácia da “nos-sa” Modernidade: estranha fórmula onde o crescimento econômico e o desenvolvi-mento científico-tecnológico não possibi-litaram a inserção do país na condição de um país socialmente justo.

Com a Constituição de 1937 não se vivencia o reforçar do Estado Social, obra iniciada em 1934. Ao contrário, a experi-ência será a de efetivo centralismo autori-tário em torno da figura do Presidente da

República, com extrema concentração de poderes nas mãos do Chefe do Poder Exe-cutivo.

A Constituição de 1937 é a Carta Po-lítica de uma nação “sem cidadãos”, onde estes não possuem acesso a direitos e ga-rantias fundamentais, caracterizando, pois, o Estado brasileiro como Estado de Exce-ção. Foi uma Constituição posta em vigor de forma antidemocrática, onde o modelo de estado passou a ser identificado com o de um Estado Unitário, sem nenhuma ga-rantia e defesa da autonomia federativa.

A Constituição de 1946 não logra, apesar da redemocratização política, uma efetividade significativa dentro do contex-to de grande instabilidade ideológica, face ao advento da Guerra Fria, na reorganiza-ção bipolar da política internacional. No Brasil, a situação se agrava e desencadeia o Golpe de 1964, que põem a baixo o edifí-cio constitucional anterior, rompendo com a Ordem Constitucional vigente e desem-bocando na outorga da Carta de 1967.

Não há Estado Social a ser efetiva-mente experimentado quanto o país se en-contra em um contexto antidemocrático. O caráter do Estado Social, ou seja, a sua natureza essencial que incorpora a função de promoção do bem-estar coletivo às já tradicionais funções do Estado, é incom-patível com um projeto autoritário, onde o interesse nacional é antitético ao exercício das liberdades públicas, bem como a todos os direitos fundamentais da cidadania, in-clusive os sociais e econômicos.

É exatamente nesse contexto, mar-cado pela vigência de Atos Institucionais e de inúmeras outras medidas repressivas e autoritárias, que o Brasil permanecerá inserido até a década de oitenta, com a abertura política e o processo de redemo-cratização, que deu ensejo à reunião da As-sembléia Constituinte, e á promulgação da Constituição Federal de 1988.12

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De acordo com a lógica historicista apresentada na Teoria dos Direitos Funda-mentais13, o Brasil inverteu, com a baixís-sima efetividade das normas que estabele-cem os direitos sociais, todas as prioridades da tutela garantista constitucional.

Assim, a antiga sugestão se renova: o Brasil precisa construir a efetividade dos direitos sociais e econômicos, resgatando o significado do Estado Social e recupe-rando, através de uma nova hermenêutica, a força normativa da sua Constituição.

Isto ainda não foi possível, porque na cultura jurídica e política brasileiras ainda predomina uma concepção tradicional do Direito, vinculada ao Positivismo Norma-tivista.

Vivenciamos um Positivismo tardio, tornado inconseqüente e, por isso mesmo perigoso, pois na interpretação do Direito se opta ainda por partir de uma percepção legalista e formalista, o que muito freqüen-temente conduz somente a resultados do tipo reparatório, e muitas vezes a repara-ções precárias, de lesões a direitos funda-mentais da cidadania.

Isto porque a cidadania é uma atua-ção permanente e motivada por um thelos definido: agir de forma ética, preventiva, respeitando a dignidade do outro como sujeito de direito, e assim, evitar a canali-zação de todas as energias sociais para as ações reparatórias, sempre insuficientes.

Somente a partir de uma nova com-preensão do Direito, de natureza predomi-nantemente preventiva dos conflitos so-ciais, desenvolvida por novos métodos de conhecimento dos meios técnico-jurídicos de defesa da cidadania, poderá conduzir a resultados mais eficazes na solução dos problemas da cidadania no Brasil.

Em verdade, trata-se de ver no Direi-to um instrumento de defesa e de consoli-dação da democracia, “conspirando” para que esta se realize em todas as esferas da

vida social, a partir de uma reflexão sis-temática sobre valores (Filosofia) acom-panhada de uma prática social e política orientadas para a igualdade e a justiça so-ciais, para o reconhecimento da dignidade do outro ser humano.

Sem dúvida, estas propostas remetem a uma hermenêutica jurídica de natureza filosófica, a uma hermenêutica ontológica do Direito e da Constituição, ou seja, em se poder pensar o Direito como um modo de ser. Tal idéia poderia ser aplicada perfei-tamente à Constituição, pois como ensina José Afonso da Silva “Nesse sentido é que se diz que todo o Estado tem Constituição, que é o simples modo de ser do Estado” (1999, p.39).

Sendo esta seria uma das relevantes acepções do termo Constituição, isto é, a sua tradução política, tem-se que o Direito acolhe a significação existencial da Consti-tuição, como identificação político-jurídi-ca de uma sociedade.

Sempre o verbo constituir remete a idéia de essência, ao que há de mais pri-mordial em uma existência e a exprime em termos de totalidade. Quando se per-gunta: de que algo é constituído?, tal inda-gação reflete a intenção de conhecer uma essência, uma identidade concretizada em caracteres que integrados formam um ser, um ente, na linguagem de Heidegger, um dos mais expressivos filósofos da herme-nêutica moderna existencialista.

Lembra-se, na linha da fenomeno-logia de Maurice Merleau-Ponty, que em-preende a (re)aproximação do pensamen-to (científico) humano com as essências, que:

Todo o universo da ciência é constru-ído sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência com rigor, apre-ciar exatamente seu sentido e seu alcance, precisamos primeiramente despertar essa experiência do mundo da qual ela é a ex-pressão segunda. (1999, p.3)

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Assim, também o universo do Di-reito da compreensão do Direito, necessa-riamente parte de uma fenomenologia, ou seja, de uma vivência do operador jurídico e das partes envolvidas em uma questão. A juridicidade, a partir de uma leitura fe-nomenológica, adequa-se mais do que a perspectiva positivista ao desafio da cons-trução da cidadania na Era atual, era de globalizações (SANTOS, 2002, p.25). Isto porque possibilita converter experiências tidas como exclusivamente individuais, em vivências e percepções que nascem de uma inserção da pessoa no mundo social, econômico, político, jurídico, cultural e ecológico.

A cidadania ativa, depende dessa recuperação: do ser como ser-no-mundo, do agir como um agir consciente de sua identidade (referência, situação, condição, classe) e da sua alteridade (dignidade hu-mana, sociedade, meio ambiente, mundo).

A Ciência Jurídica, então, contribui para o aperfeiçoamento da cidadania, na medida em que o Direito representa tam-bém na sociedade uma dimensão de registro da vida pública e privada, temporalizando-as, e permitindo que as ações individuais e coletivas adquiram uma existência, uma forma, um sentido e um destino.

É o próprio ser humano, permeado pela experiência social, que imprime ao seu mundo uma temporalidade, uma me-mória, uma significação, e neste aspecto, a Ciência do Direito (transversal, múltipla, renovada, atravessada pelo contato com outros saberes, também múltiplos) regene-ra a memória e viabiliza a transformação social, econômica, política.

Confessa Nietzsche, em seu poema intitulado “A minha felicidade”: “Depois de sentir-me cansado em procurar aprendi a encontrar. Depois de um vento ter-me feito resistência navego com todos os ventos.” (2004, p. 21). Assim, crê-se que a Ciência Jurídica, a partir da Teoria da Constituição,

ensina a encontrar, a navegar. A Constitui-ção só pode ser a vivência dos direitos fun-damentais, em larga escala, onde os inte-resses privados e públicos se encontrem de forma transparente e responsável, na atu-ação do Poder Público e da sociedade em geral. É a Teoria Material da Constituição somada à noção de sistema constitucional (abertura material, integração dos ramos do Direito, convergência de valores inse-ridos nas leis para a dimensão dos direi-tos fundamentais, hermenêutica filosófica resgatando a feição preventiva e humanista do Direito e dos sistemas jurídicos), é uma das mais densas contribuições que o pen-samento jurídico dos séculos XIX (com Ferdinand Lassalle) e do século XX (com os constitucionalistas da Teoria Material) pode oferecer à Teoria do Direito.

Voltando a Nietzsche, compreende-se a sua inquietação com o Direito, quando afirma que: “Estudar o código penal de um povo como se fosse uma expressão do seu caráter é equivocar-se gravemente; as leis não revelam aquilo que um povo é, mas aquilo que lhe parece estranho, esquisito, singular, exótico. A lei refere-se às exce-ções à moralidade dos costumes (...)” , pois o autor demonstra a necessidade (filosófi-ca) de trazer à tona a discussão sobre a es-sência da identidade social, e nisto volta-se para a seara jurídica, vendo-a radicada no plano do dever-ser, onde a norma apenas contempla o desejo do que não se é, o futu-ro incerto daquilo que não há, e portanto o diferente, o questionável e até, como apon-tado por muitos, o impossível.

Neste ponto, a Constituição, enquan-to dimensão jurídica e política, também contempla uma face voltada para o futuro, ou seja, uma certa projeção, que na lingua-gem jurídica é denominada de dever ser.

Sabe-se, de fato, que mais do que em relação às demais espécies normativas, na Constituição ficam muito visíveis as con-

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tradições sociais, a dialética que marca uma sociedade, com suas identificações projetivas, seus temores e seus ideais, nem sempre conscientes, e nem todos talvez possíveis. A Constituição, sem dúvidas, existe também enquanto abstração, dever ser, desejo de ser diferente do que já se foi, talvez do que se é hoje.

No entanto, a própria dimensão do dever ser constitucional só é pensável a partir da consciência e das representações do vivido, do experimentado, ou seja, do passado e do presente (OST, 2001, p.21).

Entende–se, logo, como indispensá-vel pensar a Constituição como atualidade, como algo que é, como energia positiva e construtiva de novas condições de vida.

Para isso, se faz necessário atribuir à mesma, na perspectiva da Teoria Material da Constituição, aliada à hermenêutica fi-losófica de cunho ontológico, uma feição ontológica, um ser, uma existência, uma atualidade. Onde se pode ver isso? Em seus aspectos políticos e sociológicos, isto é, onde se esboça na Constituição uma ra-dicalidade: nos dispositivos onde as tutelas jurídicas se voltam aos direitos econômi-cos e sociais. Esses dispositivos carac-terizam o Estado Social no Brasil, com a feição atual da Carta de 1988, sintetizado no disposto nos artigos 205 e 214, inciso V da Constituição Federal.

A educação para a cidadania e a edu-cação humanística são indispensáveis para a consolidação do Estado Social e Demo-crático de Direito no país.

Não se pode olvidar, certamente, que é ao Constitucionalismo Social de Wei-mar (1919) que remonta a raiz histórica do Estado Social, o Estado garantidor de um mínimo de padrão de vida digno. Mas esse modelo de Estado reaparece na Constitui-ção de 1988. Se por um lado, tal modelo de Estado, em suas origens no início do século XX, fora pensado para ser tempo-

rário, por outro lado é correto afirmar que acabara transformando-se em realidade permanente.

Apesar de na década de 1960 o Wel-fare State sofrer a crise que refletia a crise econômica mundial (STRECK, 2002, p.63), vê-se a sua colocação, a partir de 1988, como modelo a ser recuperado no Brasil, em face das conseqüências do projeto de privatização e redução do espaço público gerados com as políticas neoliberais.

A arcaica modernidade brasileira (STRECK, 2002, p. 69) não superada com o neoliberalismo das políticas nacionais adotadas depois da promulgação da Consti-tuição Federal de 1988, só pode ser enfren-tada, através de um consistente investimen-to na formação histórica, política e jurídica do brasileiro, o que requer um adentrar-se o universo das universidades e das escolas, para construir com os sujeitos da educação a sua própria condição de sujeitos.

6. A relevância da memória política na formação do cidadão para a consolida-ção da efetividade da Constituição: uma pesquisa sobre a memória constitucio-nal realizada no âmbito do ensino médio no município de Santa Maria

Ao intentar-se uma investigação so-bre a relação entre a memória constitucio-nal e a cidadania, chegou-se à necessidade de pesquisar o universo das escolas parti-culares e públicas da rede de ensino local. Assim, foram selecionadas nove escolas, aleatoriamente, para realizar a pesquisa desenvolvida no município de Santa Ma-ria/RS, no ano de 2004.

Com esta investigação, foi possível coletar dados significativos sobre a repre-sentação que um dos principais atores en-volvidos na dinâmica da aprendizagem, ou seja, o aluno do ensino médio, possui da relação entre a trajetória política brasileira, a Constituição Federal e a cidadania14.

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Assim, a partir da aplicação de um questionário aos alunos, contemplando várias perguntas, cujo objetivo foi partin-do de um mapeamento da condição sócio-econômica do aluno (para isso verificou-se as condições dos pais), passando pelos seus conhecimentos sobre a importância da Constituição de 1988 na história da de-mocracia brasileira, atentar-se para a sua inserção prática em ações voltadas para o exercício da cidadania.

Passa-se às informações obtidas:Descobriu-se15, por exemplo, quan-

to aos alunos da segunda e terceira séries do segundo grau das escolas particulares pesquisadas, que 55,6% dos entrevistados não são eleitores, contra 43,7% que já são eleitores, e 0,7% não responderam. Já nas escolas públicas pesquisadas, 60,4% dos alunos entrevistados são eleitores, contra 39,6% de não eleitores.

Disto percebeu-se que, nas escolas públicas, o índice de alunos eleitores era maior do que nas particulares.

Também se obteve dados relevantes sobre as seguintes variáveis:

a) Quanto ao grau de escolaridade do pai:

a.1) Nas escolas particulares: 51,5% dos pais possuem nível superior e 22,2% dos pais possuem o segundo grau comple-to.

a.2) Nas escolas públicas: 28,3% dos pais possuem somente o primeiro grau in-completo e 25,7% dos pais possuem o se-gundo grau completo.

b) Quanto ao grau de escolaridade da mãe:

b.1) Nas escolas particulares: 59,6% das mães possuem nível superior e 20% possuem o segundo grau completo.

b.2) Nas escolas públicas: 27,5% das mães possuem o segundo grau completo e 25,3% possuem apenas o primeiro grau incompleto.

c) Quanto ao nível de conhecimento sobre a Constituição Federal:

c.1) Nas escolas particulares, tem-se que 51,9% dos alunos entrevistados responderam sim, conhecer um pouco a Constituição; 28,9% disseram não, mas já ter ouvido falar da mesma; 12,6% respon-deram não ter ouvido falar sobre a Consti-tuição e 6,3% responderam que conhecem muito bem a Constituição Federal.

c.2) Nas escolas públicas: 48,7% dos alunos entrevistados responderam que sim, conheciam um pouco a Constituição; 34,7% responderam que não conheciam, mas já ouviram falar da mesma; 10,9% responderam não ter ouvido falar e 5,3% responderam que sim, conheciam muito bem a Constituição Federal.

d) Quanto à avaliação da importância da Constituição na vida das pessoas:

d.1) Nas escolas particulares 82,2% dos pesquisados acredita que a Constitui-ção é importante, contra 1,1% que respon-deram não saber avaliar e 6,3% que res-ponderam não acreditar na importância da Constituição.

d.2) Nas escolas públicas 85,3% responderam acreditar na importância da Constituição, 10,6% respondeu não saber avaliar e 3,8% responderam não acreditar que a Constituição seja importante.

e) Quanto ao acesso ao conhecimen-to sobre a Constituição Federal:

e.1) Nas escolas particulares 32,2% responderam não ter acesso, 27,4% res-ponderam que sim, mas de forma superfi-cial, 26,3% responderam não saber ou não lembrar, e 12,6% responderam que sim, conheciam a Constituição de forma apro-fundada.

e.2) Nas escolas públicas 30,6% dos alunos entrevistados responderam que sim, mas conheciam superficialmente, contra 29,1% de alunos que responderam não sa-ber ou não lembrar, e 23% que responde-

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ram não ter acesso; já 15,5% dos alunos entrevistados responderam sim, conhecer a Constituição de forma aprofundada.

Aqui, mais uma vez, nota-se a dife-rença entre escola particular e escola pú-blica, onde o grau de informação sobre a existência da Constituição Federal é maior no universo da escola pública.

Os resultados obtidos nessa pesqui-sa sem dúvida oferecem matéria-prima importante para a reflexão acadêmica e científica, pois colocou-se luzes sobre con-tradições existentes na realidade escolar brasileira, ainda que no âmbito local.

Deduziu-se a partir dos dados, que apesar de expressiva a quantidade de alu-nos que reconheceram a importância da Constituição, como garantia de direitos e de cidadania, é ainda modesta a quantidade que a conhecem efetivamente (na rede pri-vada e na rede pública, o índice de alunos que conhecem o conteúdo da Carta de 88 não alcança 50%).

Entre os estudantes, percebeu-se a pouca capacidade de relacionar os co-nhecimentos de História do Brasil com o advento da Constituição de 1988, e ma-terializar esta consciência em uma práti-ca cidadã. Memória política desencadeia cidadania, e estas duas dimensões do co-nhecimento ainda aparecem dissociadas na vida dos estudantes do ensino médio local. Veja-se, por exemplo, quanto ao cadastra-mento eleitoral, atinge o índice de 55,6% o número dos não-eleitores na rede privada de ensino, demonstrando a baixa inserção dos adolescentes nas decisões políticas que afetam o nosso quadro representativo, sen-do portanto, indicativo de significativa de-sarticulação cidadã, a ser questionada em tempos de democracia representativa.

Saliente-se ainda, que a memória constitucional relatada é mais significativa nas escolas da rede pública, revelando a rede privada um índice maior de descrença

na importância efetiva da Constituição na vida das pessoas. Onde radicam as razões dessa diferença?

Tanto na comparação das manifesta-ções dos alunos da rede privada com os da rede pública de ensino, quanto no que tan-ge ao conflito entre a realidade econômica e os desafios do mundo cultural da adoles-cência contemporânea em geral, tem-se na investigação científica uma fonte de questionamentos e de especulação sobre as relações entre a (ausência ou presença da) memória histórica e as (poucas ou signifi-cativas) práticas de cidadania. Reafirma-se o estabelecido na Carta de 1988, quanto ao papel da família, da sociedade e do Estado na promoção da educação cidadã.

Considerações Finais

Para além das perplexidades que a vida moderna engendrou, em suas próprias dinâmicas urbanistas, fabris e tecnológi-cas que tornaram as sociedades de hoje informatizadas e extraordinariamente te-lecomunicativas, a complexidade da vida humana colocou o indivíduo do século XXI face a face com mais esse paradoxo: o avanço tecnológico não somente não ha-ver superado (promessa não cumprida pela Modernidade), como poder conviver (nem sempre pacificamente!) com a miserabili-dade, com situações em que se verifica a total ausência de infra-estrutura mínima para uma vida digna, ou seja, o avanço de uns com sub-desenvolvimento de outros que são muitos.

O modelo de desenvolvimento eco-nômico, hoje, neoliberalizado/neoliberali-zante, já demonstra possuir a capacidade de “escolher” onde haverá “prosperidade” (consumo?) e onde não haverá. Isto ser-ve tanto no caso dos globalismos locais, quanto dos localismos globais16

A conhecida divisão internacional/global do mundo em países de primei-

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ro mundo (centrais) e países de “outros” mundos (segundo, terceiro, quarto mundo, ou subdesenvolvidos, ou em desenvolvi-mento, ou as periferias), construída com base na divisão internacional do trabalho e dos Colonialismos e Imperialismos (século XIX), acaba perpetuada na lógica instituí-da pela Guerra Fria (século XX), e conti-nua a servir de referência para a identidade de muitas sociedades, ainda quando se re-conhece e representa a época atual como a era da sociedade dita pós-moderna.

Constata-se que cabe a geração pós-moderna desconstruir a formulação de-sigual da realidade política, social e eco-nômica, resgatando o papel do Direito e sobretudo da Constituição, não como or-denação sancionadora e punitiva apenas, mas, sobretudo, como elementos juridici-zadores e construtores de uma nova cultu-ra, uma cultura de cidadania, do respeito ao outro, da solidariedade humana, da tole-rância para com as diferenças raciais e reli-giosas. Isto significa, sem dúvida, efetivar a Constituição.

Re-significar o princípio-valor da Dignidade da Pessoa Humana é, certamen-te, um dos maiores desafios filosóficos e jurídicos da denominada Pós-Modernida-de, não só no Brasil.

A dimensão constitucional represen-ta a esfera jurídico-política e ético-social mais importante de uma cultura que valo-riza o ideal de justiça, convivendo com um Estado Democrático, em busca de igualda-de e de paz.

Seja na defesa da cidadania estabele-cida na dimensão axiológica constitucional de teor mais abstrato (direitos e garantias, e deveres individuais), seja naqueles dis-positivos em que se encontram a identi-dade e a possibilidade do bem-estar social nos dias de hoje (normas interventivas, programáticas), a Constituição deve estar associada ao papel da cidadania na trans-formação social.

Com a pesquisa realizada junto às escolas, crê-se ter aberto um caminho promissor na investigação científica e na comunicação entre o ensino superior e o ensino médio, no que diz respeito à trans-missão e à conservação dos valores essen-ciais de um povo soberano afetos a sua me-mória constitucional, ou seja, a sua própria identidade: Constituição e cidadania.

No entanto, se tem a plena consci-ência de que o desafio de resgatar a me-mória constitucional das pessoas é uma empreitada de enorme envergadura, e que o caminho dessa recuperação da memória social e política passa, sem dúvida alguma, por uma educação de feição integradora e transdisciplinar, comprometida com os va-lores éticos e sociais da Constituição.

Essa nova educação urge em nossos dias, uma vez que propõe a superação do velho paradigma moderno calcado no indi-vidualismo, um novo paradigma, capaz de atender a complexidade da sociedade atual. Para tanto, sustenta-se a indispensabilidade do encontro das diversas áreas do conheci-mento humano, sobretudo no que se refere à cidadania, das áreas das ciências sociais e sociais aplicadas, tais como o Direito, a História, a Sociologia, a Antropologia e a Psicologia. No caso do Brasil, é pungente a lacuna político-pedagógica ou cultural per-cebida da fala dos estudantes, representada pela inconsistência do conhecimento sobre a importância da história política do país e de sua redefinição democrática a partir da Constituição de 1988.

A questão que se coloca é se a socie-dade atual é saber se a educação está nos capacitando de fato, desde a nossa forma-ção média, a realizar em nosso país as pro-messas não-cumpridas da Modernidade?

Seremos mesmo capazes de demons-trar que a liberdade não é apenas individu-alismo e que a igualdade social não é ape-nas submissão do indivíduo ao grupo? Mas

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que se trata, em verdade e na prática, de valores compatíveis de serem vivenciados simultaneamente?

Seremos capazes de consolidar a ci-dadania através de uma educação social?

A cidadania assume rapidamente no-vos contornos na atualidade. Ao olhar do jurista do século XXI se revelam os pa-radoxos e as contradições da experiência político-jurídica moderna, marcada pela inserção da noção de cidadania, no decor-rer da trajetória constitucional do Estado-Nação, na Constituição Federal.

Logo, se a Constituição foi, pela Mo-dernidade, alçada ao patamar de norma jurídica suprema dentro do Ordenamento Jurídico, do ponto de vista formal e mate-rial, as práticas político-jurídicas modernas efetivaram muito mais significativamente valores individualistas.

Assim, é mister reconhecer que a condição de possuírem uma Constituição formal, concebida como paradigma her-menêutico da ação política, significando acatá-la como domicílio jurídico de valo-res fundamentais, não foi suficiente para defender a cidadania ativa.

Se essa compreensão houvesse an-gariado impedir as Nações ocidentais de mergulharem freqüentemente, durante os séculos XIX e XX, em regimes autoritários e totalitários, que negaram a força norma-tiva da Constituição, enquanto estatuto de uma cidadania política mas também social e econômica, fundada na solidariedade e na tolerância pela diferença, não seria neces-sário, para os juristas da pós-modernidade, dar continuidade ao processo de constru-ção de uma sociedade justa. Bastaria man-ter-se o que já fora conquistado em termos de interpretação constitucional do Direito. Mas este não é o caso.

Crê-se, finalmente, como ação in-dispensável e urgente contribuir para o compartilhamento da memória política e constitucional brasileira, um caminho que

certamente se inicia pela inserção da Teoria da Constituição já na formação escolar dos cidadãos, pois é indiscutível a relação entre a memória político-constitucional e o com-prometimento com a prática da cidadania.

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NOTAS

1 Recomenda-se a consulta a ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos.

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2 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. p. 1463 Ver na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 5º, o inciso XXXII colocado face a face com o disposto nos Princípios Fundamentais, artigo 1º, inciso IV,( valor social da livre iniciativa). Da mesma for-ma, a possível contradição entre o valor social do trabalho e da livre iniciativa, ambos situa-dos no mesmo referido dispositivo. Ainda o dis-posto nos incisos XXII e XXIII do artigo 5º.4 Como o valor social do trabalho, o direito de associação, o direito à proteção do consumidor, o direito de greve, o direito à função social da propriedade, o direito á dignidade na condição de pessoa humana, dentre outros.5 Para aprofundar a discussão sobre os regimes totalitários recomenda-se a leitura da obra As Origens do Totalitarismo de Hannah Arendt.6 Ver HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição.A obra foi escrita em 1959.7 STRECK, Lênio Luis. Jurisdição Constitucio-nal e Hermenêutica.8 Conforme Arnaldo Nogaro a política ocupa o espaço da transformação da situação vigente pela qual passa a sociedade, através da atuação de di-ferentes atores (classes ou grupos sociais, que agem através de partidos políticos, bem como di-versos segmentos da sociedade civil). A falta de paradigmas éticos, característica de nosso tem-po, implica a vivência de uma crise de valores, não propriamente de uma ausência dos mesmos, mas de sua indefinição. Ver NOGARO, Arnal-do. “Crise de Valores” ou ausência da educação ética.In Revista Filosfofazer. Passo Fundo, RS: ANO VI, nº 10 – 01/1997, pp. 9 – 11.

9 Ver CF/88, artigo 1º, inciso II.10 Como José Afonso da Silva.11 Sugere-se sobre o tema a consulta a DAN-TAS, Ivo. O Valor da Constituição: Do con-trole de constitucionalidade como garantia da supralegalidade constitucional. 12 Para um estudo sobre a trajetória constitucio-nal brasileira recomenda-se consultar: SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucio-nal Positivo. São Paulo: Malheiros, 2004. Re-comenda-se também: NOGUEIRA, Octaciano. A Constituinte de 1946 – Getúlio, o Sujeito Oculto. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 13 A característica da historicidade dos direitos fundamentais pode ser aprofundada coma a lei-

tura de SARLET, Ingo. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Também BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus.14 Dados obtidos em projeto de pesquisa e ex-tensão universitária desenvolvido durante o ano letivo de 2004, no âmbito dos Cursos de Direito e História do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA) de Santa Maria/RS, e por esta Ins-tituição financiado. A abordagem adotada nesta pesquisa foi a fenomenológica, pois a meto-dologia de aplicação de questionários escritos a serem respondidos pelo próprio investigado, resultou na coleta de dados e opiniões forneci-das pelos próprios estudantes. As informações foram obtidas por amostragem, com cerca de 80 alunos entrevistados em cada uma das nove escolas pesquisadas, perfazendo aproximada-mente 700 estudantes entrevistados. 15 Resultados parciais obtidos em novembro de 2004. Os dados estão registrados no relatório da pesquisa arquivado na Pró-Reitoria de Ex-tensão do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA).16 As expressões são de Boaventura de Sousa Santos. Ver: A Globalização e as Ciências So-ciais. Pp. 49-50.

luCiana RoDRigues Penna

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* Professor Titular do Centro de Ciências Jurídicas e Políticas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO – cedido para a Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, UnB). Professor Titular de Filosofia do Centro de Ciências Humanas da Universidade Estadual do Ceará (UECE- licenciado). Professor de Filosofia do Direito e Teoria Geral do Direito dos Cursos de Mestrado e Doutorado em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Professor de Filosofia Política do Curso de Mestrado em Direito do Centro Universitário de Osasco, SP, e de Teoria da Ciência do Direito do Curso de Mestrado em Direito da Universidade Candido Mendes (RJ).

PROPOSTA DE TEORIA FUNDAMENTAL DA CONSTITUIÇÃO(COM UMA INFLEXÃO PROCESSUAL)

PROPOSITION OF FUNDAMENTALS CONSTITUTION THEORY (WITH A PROCEDURAL INFLECTION)

Willis santiago gueRRa Filho*

Recebido para publicação em novembro de 2005

Resumo: A presente proposta de Teoria Fundamental da Constituição baseia-se na constatação de que os direitos fundamentais, no atual estágio de desenvolvimento do Estado Democrático de direito, representam a essência mesmo desta fórmula política, sendo em função deles que se passa a organizar o Estado e, mesmo as relações sociais, ou seja, superando a tradicional relação entre cidadão e Estado. Além de se apresentarem como parâmetros para a conduta política e social, os di-reitos e garantias fundamentais fornecem também critérios para o conhecimento jurídico mais ade-quado ao desenvolvimento daquela fórmula, o que se traduz em uma relevância prática também, no encaminhamento pela via processual de soluções para casos concretos. Em circunstâncias em que a aplicação de concepções tradicionais do Direito a tais casos concretos resulta em afronta aos princípios maiores da Constituição de um Estado democrático comprometido com a garantia dos direitos fundamentais em sua mais ampla configuração, verifica-se uma tensão entre princípios e direitos fundamentais associados à legitimação democrática, com outros que seriam mais vincula-dos à legalidade inerente a todo Estado de direito, na modernidade. Para a solução de tais conflitos, com vista à preservação do princípio maior da dignidade humana, incide o princípio da proporcio-nalidade, expressão da garantia que é de se esperar da cláusula do devido processo legal.Palavras-chave: Estado Democrático. Direitos fundamentais. Princípio da proporcionalidade.

Abstract: The present proposal of a fundamental theory of Constitution is based upon the observa-tion that constitutional rights, in the present stage of evolution of the democratic State, corresponds to the very essence of such a political formula. It is according to them that the State is organized and also social relationship, which means to overcome the traditional distinction between citizen and State. Those right are not only parameters do political and social behavior, but also to legal research more accurate to the development of that formula, which means also to have a practical relevance, when it comes to the point of legal settlements through judicial proceeding. In such a circumstance when the application of traditional conceptions of Law to those settlements turns out to be a contempt to the major constitutional principles of the democratic State, engaged in the defense of fundamental right in a most wide conception, we may verify a tension between those principles and rights which are connected with democratic legitimation, at one side, and at the other side the traditional principle linked to the rule of Law in modern State. It is to solve such cases that is needed the balancing principle embedded in the due process clause, in order to preserve the major principle of human dignity.Key Words: Democratic State. Constitutional rights. Balancing principle.

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A proposta aqui avançada, de que se deve reconhecer a existência de uma nova matéria jurídica, a “Teoria Fundamental da Constituição”, advém de uma série de constatações, dentre as quais merecem destaque as seguintes:

1º) As situações jurídicas subjetivas que correspondem à matéria, da Teoria Fundamental da Constituição, no direito objetivo, a saber, os direitos fundamen-tais, apesar de sua natureza constitucional, transbordam os limites desse campo do Direito, irradiando seus efeitos e concre-tizando-se em todas as matérias jurídicas, sejam do direito público, sejam do direito privado, donde se poder afirmar que a Te-oria Fundamental da Constituição trata de matéria que melhor se caracterizaria como pertencente àquele campo intermediário entre o direito público e o direito privado, que se vem denominando, recentemente, de direito difuso. O próprio Direito Cons-titucional, para realizar aquilo que tradi-cionalmente lhe é mais próprio, que é a organização jurídica do Estado, precisa pautar-se pelas determinações dos direitos fundamentais.

2°) O objeto da Teoria Fundamental da Constituição se situa, igualmente, para além da dicotomia entre o Direito Mate-rial e o Direito Processual, visto que nele se situam não somente os direitos funda-mentais em um sentido estrito, como tam-bém as garantias fundamentais, direitos fundamentais em sentido amplo, em geral de natureza processual, tendo por escopo a imprescindível tutela e efetivação dos primeiros. É assim que, da perspectiva jus-fundamental, ações, princípios processuais e garantias objetivas da jurisdição podem revelar uma dimensão subjetiva, justifi-cando-se melhor enquanto projeções de situações jurídicas subjetivas de direitos fundamentais.

3°)Uma outra dicotomia, agora de natureza jusfilosófica, que vem a ser diale-

ticamente superada pela postulação da Te-oria Fundamental da Constituição, é aque-la entre Direito Natural, ou jusnaturalismo, e Direito Positivo, ou juspositivismo, uma vez que no Direito fundamental positivam-se e se tornam direito objetivo pautas va-lorativas universalizáveis, com as quais se busca fundamentar, do modo mais racional e justo possível, o Direito.

4º) Por fim, mas não menos importan-te – ao contrário -, merece reconhecimento da Teoria Fundamental da Constituição por haver uma norma de direito fundamental, identificada no âmbito de uma teoria dos direitos fundamentais, com características que a distinguem de normas jurídicas em geral, decorrentes basicamente de sua na-tureza principiológica. O tratamento me-todologicamente adequado dos problemas atinentes à aplicação dessas normas de di-reito fundamental vem resultando em uma verdadeira revolução no campo da herme-nêutica e da epistemologia jurídica – e, logo, no paradigma da ciência do direito.

Passemos ao desenvolvimento de cada uma desses pontos.

1. Os direitos humanos – e os direitos fundamentais, no plano do direito posto, positivo – vêm adquirindo uma configura-ção cada vez mais consentânea com os ide-ais projetados pelas revoluções políticas da modernidade, tão bem representados pela tríade “liberdade, igualdade e frater-nidade”. Atualmente, já se pode perceber com clareza a interdependência destes valores fundamentais: sem a redução de desigualdades, não há liberdade possível para o conjunto dos seres humanos, e sem fraternidade – ou melhor, “solidariedade”, para sermos mais, “realistas”, visto que a fraternidade às vezes não existe sequer entre verdadeiros irmãos -, sem o reconhe-cimento de nossa mútua dependência, não só como indivíduos, mas como nações e

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espécies naturais – também dependemos do ambiente natural -, não atinamos para o sentido da busca de liberdade e igual-dade. Daí que, como defendem Morin & Kern,1 temos de nos assumir como partíci-pes de uma “comunidade de destino”, que envolve todo o planeta que habitamos, se aspiramos não só à correção ética, mas à própria salvação, individual e coletiva, não podendo haver uma sem a outra.

Pode-se dizer que o Direito, nessa conjuntura, há de assentar-se em uma or-dem constitucional que, em sendo aquela própria de um Estado Democrático, impõe deveres de solidariedade aos que com-põem uma comunidade política, a fim de minorar os efeitos nefastos da desigual-dade entre eles em relação à sua liberdade e ao respeito à dignidade humana. A dig-nidade humana é ofendida, por exemplo, quando um sujeito é tratado como objeto por outro sujeito. A dignidade humana im-plica em tratar desigualmente os desiguais (isonomia comutativa) assim como tam-bém implica na igualdade de todos perante a lei (isonomia distributiva).

Considerando a ordem constitucio-nal do tipo antes mencionado como forma-da, substancialmente, por princípios, tem-se que o princípio fundamental do Estado de Direito decorre da dignidade humana, assim como dele decorre o princípio da legalidade. Tal princípio consubstancia uma garantia fundamental, promovendo a certeza nas relações jurídicas e, com isso, a paz social. Também o princípio funda-mental do Estado Democrático decorre da dignidade humana, sendo de se considerar um princípio de legitimidade. O respeito à dignidade humana requer, por fim, o res-peito do ser humano enquanto indivíduo, partícipe de diversas coletividades, inclu-sive aquela maior, enquanto espécie plane-tária, natural e social.

Para resolver o grande dilema que aflige os que operam com o Direito no

âmbito do Estado Democrático contem-porâneo, representado pela atualidade de conflitos entre princípios constitucionais, aos quais se deve igual obediência, por ser a mesma a posição que ocupam na hierarquia normativa, é que se preconiza o recurso a um “princípio dos princípios”, que representa algo assim como “a prin-cipialidade dos princípios”, enquanto sua relatividade mútua. Trata-se do princípio da proporcionalidade,2 tal como concebido no campo jurídico na tradição germânica, como um princípio, também, de “relativi-dade” (verhältnismäβig), o qual determina a busca de uma “solução de compromis-so”, respeitando-se mais, em determinada situação, um dos princípios em conflito, e procurando desrespeitar o mínimo ao(s) outro(s), sem jamais lhe(s) faltar minima-mente com o respeito, isto é, ferindo-lhes o “núcleo essencial”, onde se encontra entro-nizado o valor da dignidade humana, prin-cípio fundamental e “axial” do contempo-râneo Estado Democrático. O princípio da proporcionalidade, embora não esteja ex-plicitado de forma individualizada em nos-so ordenamento jurídico, assim como o da dignidade da pessoa humana (art. 1o., inc. III, CR), é uma exigência inafastável da própria fórmula política adotada por nosso constituinte, a do “Estado Democrático de Direito”, pois sem a sua utilização não se concebe como bem realizar o mandamento básico dessa fórmula, de respeito simultâ-neo dos interesses individuais, coletivos e públicos, o que nos remete ao Princípio Constitucional da Proporcionalidade.

A exata compreensão do significado do princípio da proporcionalidade requer uma transformação do próprio modo de se conceber a tarefa da ciência jurídica, como diversa da mera interpretação e aplicação de normas jurídicas com a estrutura de re-gras.3 As regras trazem a descrição de dada situação, formada por um fato ou uma

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espécie (a fattispecie a que se referem os italianos) deles, enquanto nos princípios há uma referência direta a valores. Daí se dizer que as regras se fundamentam nos princípios, os quais não fundamentariam diretamente nenhuma ação, dependendo para isso da intermediação de uma (ou mais) regra(s) concretizadora(s). Princí-pios, portanto, têm um grau incomensura-velmente mais alto de generalidade (refe-rente à classe de indivíduos à que a norma se aplica) e abstração (referente à espécie de fato a que a norma se aplica) do que a mais geral e abstrata das regras. Por isso, também, poder-se dizer com maior facili-dade, diante de um acontecimento, ao qual uma regra se reporta, se essa regra foi ob-servada ou se foi infringida, e, nesse caso, como se poderia ter evitado sua violação. Já os princípios trazem ínsitas “determina-ções de otimização” (Optimierungsgebote, na expressão de ROBERT ALEXY),4 isto é, um mandamento de que sejam cumpri-dos na medida das possibilidades, fáticas e jurídicas, que se oferecem concretamen-te - o que já nos remete, de imediato, ao princípio da proporcionalidade, por ele ser a própria expressão deste mandamento e contemplar tal idéia de gradação no cum-primento de um princípio, aí incluindo-se o próprio princípio da proporcionalidade, que também não se pode acatar em termos definitivos, de “tudo ou nada”, como as re-gras.

E, finalmente, enquanto o conflito de regras resulta em uma antinomia, a ser resolvida pela perda de validade de uma das regras em conflito, ainda que em um determinado caso concreto, deixando-se de cumpri-la para cumprir a outra, que se entende ser a correta, as colisões entre princípios resultam apenas em que se pri-vilegie o acatamento de um, sem que isso implique no desrespeito completo do ou-tro. Já na hipótese de choque entre regra e

princípio, é evidente que o princípio deva prevalecer, embora aí, na verdade, ele pre-valece, em determinada situação concreta, sobre o princípio em que a regra se baseia - a rigor, portanto, não há colisão direta en-tre regra(s) e princípio(s).

O traço distintivo entre regras e prin-cípios, por último referido, aponta para uma característica desses, já mencionada, que é de se destacar: sua relatividade. Não há princípio do qual se possa pretender seja acatado de forma absoluta, em toda e qual-quer hipótese, pois uma tal obediência uni-lateral e irrestrita a uma determinada pauta valorativa - digamos, individual - termina por infringir uma outra - por exemplo, co-letiva. Daí se dizer que há uma necessidade lógica e, até, axiológica, de se postular um “princípio de relatividade” (Verhältnismäβigkeitsprinzip), que é o princípio da pro-porcionalidade, para que se possa respei-tar normas, como os princípios, tendentes a colidir, quando se opera concretamente com o Direito.5

A marca distintiva do pensamento jurídico contemporâneo, que se faz notar em autores como JOSEF ESSER e RO-NALD DWORKIN, antes do já referido ROBERT ALEXY, repousa precisamente na ênfase dada ao emprego de princípios jurídicos, positivados no ordenamento jurídico, quer explicitamente - em geral, na constituição -, quer através de normas onde se manifestam de forma implícita, quando do tratamento dos problemas ju-rídicos. Com isso, dá-se por superado um resquício de legalismo que permaneceu no positivismo normativista de KELSEN, HART e outros, para quem as normas do direito positivo se reduziriam ao que hoje se chama “regras” (rules, Regeln) na teo-ria jurídica anglo-saxônica e germânica, isto é, normas que permitem realizar uma subsunção dos fatos por elas regulados (operative facts, Sachverhalte), imputan-

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do-lhes ou cometendo-lhes a sanção cabí-vel. Princípios, por sua vez, se encontram em um nível superior de abstração, sendo igualmente hierarquicamente superiores, dentro da compreensão do ordenamento jurídico como uma “pirâmide normativa” (Stufenbau), e se eles não permitem uma subsunção direta de fatos, isso se dá indire-tamente, colocando regras sob o seu “raio de abrangência”. Ao contrário dessas, tam-bém, se verifica que os princípios podem se contradizer, sem que isso faça qualquer um deles perder a sua validade jurídica e ser derrogado. É exatamente numa situa-ção em que há conflito entre princípios, ou entre eles e regras, que o princípio da pro-porcionalidade (em sentido estrito ou pró-prio) mostra sua grande significação, pois pode ser usado como critério para solucio-nar da melhor forma o conflito, otimizando a medida em que se acata um e desatende o outro. Esse papel lhe cai muito bem pela circunstância peculiaríssima de se tratar de um princípio extremamente formal e, a diferença dos demais, não haver um outro que seja o seu oposto em vigor, em um or-denamento jurídico digno desse nome, ou seja, democraticamente legitimado.6

Para bem atinar no alcance do princí-pio da proporcionalidade faz-se necessário referir o seu conteúdo - e ele, à diferença dos princípios que se situam em seu mes-mo nível, de mais alta abstração, não é tão-somente formal, revelando-se plenamente apenas quando se há de decidir sobre a constitucionalidade de alguma situação ju-rídica ou ato normativo, no âmbito próprio do processo constitucional. Esse seu as-pecto concretizador, inclusive, já fez com que se referisse a ele como uma proposição jurídica, à qual, como ocorre com normas que são regras, se pode subsumir fatos jurídicos diretamente. Não se confunda, porém, a proposição jurídica com a nor-ma de que ela é a representação, como já

KELSEN, na segunda (e definitiva) edição de sua Teoria Pura do Direito, registrara, reservando para a proposição um lugar no campo das idéias, da ciência, e para a nor-ma um lugar no campo da ação, da políti-ca, enquanto sentido de um ato de vontade conformadora de outra(s), por associada a uma sanção.

O princípio da proporcionalidade, entendido como um mandamento de oti-mização do respeito máximo a todo direito fundamental, em situação de conflito com outro(s), na medida do jurídico e fatica-mente possível, tem um conteúdo que, na doutrina e jurisprudência alemãs,7 é repar-tido em três “princípios ou proposições parciais” (Teilgrundsätze): “princípio da proporcionalidade em sentido estrito” ou “máxima do sopesamento” (Abwägungs-gebot), “princípio da adequação” e “prin-cípio da exigibilidade” ou “máxima do meio mais suave” (Gebot des mildesten Mittels).

O “princípio da proporcionalidade em sentido estrito” determina que se esta-beleça uma correspondência entre o fim a ser alcançado por uma disposição norma-tiva e o meio empregado, que seja juridi-camente a melhor possível. Isso significa, acima de tudo, que não se fira o “conteúdo essencial” (Wesensgehalt) de direito fun-damental, com o desrespeito intolerável da dignidade humana, bem como que, mesmo em havendo desvantagens para, digamos, o interesse de pessoas, individual ou cole-tivamente consideradas, acarretadas pela disposição normativa em apreço, as van-tagens que traz para interesses de outra or-dem superam aquelas desvantagens.

Os demais “subprincípios”, como se pode denominar as proposições nor-mativas derivadas do princípio da pro-porcionalidade (em sentido amplo), são ditos da adequação e da exigibilidade ou indispensabilidade (Erforderlichkeit). O

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primeiro determina que, dentro do fatica-mente possível, se preste o meio escolhido para atingir o fim estabelecido, mostran-do-se, assim, “adequado”. Além disso, pelo segundo, esse meio deve se mostrar “exigível”, o que significa não haver outro, igualmente eficaz, e menos danoso a direi-tos fundamentais.

Dessa circunstância, de ter seu con-teúdo formado por subprincípios, passível de subsumirem fato e questões jurídicas, não se pode, contudo, vir a considerar o princípio da proporcionalidade mera regra, ao invés de verdadeiro princípio, como re-centemente se afirmou entre nós,8 pois não poderia ser uma regra o princípio que é a própria expressão da peculiaridade maior deste último tipo de norma em relação à primeira, o tipo mais comum de normas ju-rídicas, peculiaridade esta que RONALD DWORKIN refere como a “dimensão de peso” (dimension of weight) dos prin-cípios,9 e ALEXY como a ponderação (Abwägung) – justamente o que se contra-põe à subsunção nas regras.10 E também, pragmaticamente, caso a norma que con-sagra o princípio da proporcionalidade não fosse verdadeiramente um princípio, mas sim uma regra, não poderíamos considerá-la inerente ao regime e princípios adotados na Constituição brasileira de 1988, dedu-zindo-a do sistema constitucional vigente aqui, como em várias outras nações, da idéia de Estado democrático de Direito, posto que não há regra jurídica que seja implícita, mas tão-somente os direitos (e garantias) fundamentais, consagrados em princípios igualmente fundamentais – ou, mesmo, “fundantes” –, a exemplo deste princípio de proporcionalidade, objeto da presente exposição.

Quanto a saber donde se deriva o prin-cípio da proporcionalidade, se do princípio estruturante do Estado de Direito, ou da-quele da dignidade da pessoa humana, que

se vincula ao outro princípio estruturante de nossa ordem constitucional – e, logo, de toda a ordem jurídica - , que é o Princípio Democrático, adotamos o posicionamento que vincula o princípio da proporcionali-dade à Cláusula do Devido Processo Le-gal (Constituição da República Federativa do Brasil, art. 5º., inc. LIV), com o que se evita este falso dilema, pois para se ter um Estado de Direito com respeito à dignidade humana, isto é, que seja também democrá-tico, pressupõe-se uma compatibilização de legalidade (Estado de Direito) com le-gitimidade (Democracia), obtida, em úl-tima instância, pela aplicação, no âmbito de processos judiciais, administrativos e outros, precisamente, do princípio da pro-porcionalidade. É certo que a idéia subja-cente à “proporcionalidade”, Verhältniss-mäßigkeit, noção dotada atualmente de um sentido técnico no direito público e teoria do direito germânicos, ou seja, a de uma limitação do poder estatal em benefício da garantia de integridade física e moral dos que lhe estão sub-rogados, confunde-se em sua origem, como é fácil perceber com o nascimento do moderno Estado de direito, respaldado em uma constituição, em um documento formalizador do propósito de se manter o equilíbrio entre os diversos poderes que formam o Estado e o respeito mútuo entre este e aquele indivíduos a ele submetidos, a quem são reconhecidos cer-tos direitos fundamentais inalienáveis.11

A questão que assim se coloca, de como melhor fundamentar a inscrição de um princípio de proporcionalidade no pla-no constitucional, se, deduzindo-o da op-ção por um Estado de Direito ou então, dos próprios direitos fundamentais, inerentes a este Estado, enquanto Estado Democrático de Direito, assume relevância mais dou-trinária, já que na prática, como evidencia reiterada jurisprudência do Tribunal Cons-titucional, na Alemanha, não resta dúvida

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quanto à sua inserção na “base” do orde-namento jurídico, como se pode referir de maneira figurada à constituição. Além disso, nosso princípio aparece relacionado àquele que se pode considerar o problema maior a ser resolvido com a adoção de um regime constitucional pelo Estado, nomea-damente, o do relacionamento entre ele, a comunidade a ele submetida e os indivídu-os que a compõem, a ser regulado de for-ma eqüitativamente vantajosa para todas as partes. Para que o Estado, em sua ativi-dade, atenda aos interesses da maioria, res-peitando os direitos individuais fundamen-tais, se faz necessário não só a existência de normas para pautar essa atividade e que, em certos casos, nem mesmo a vontade de uma maioria pode derrogar (Estado de Di-reito), como também há de se reconhecer e lançar mão de um princípio regulativo para se ponderar até que ponto se vai dar preferência ao todo ou às partes (Princípio da Proporcionalidade), o que também não pode ir além de um certo limite, para não retirar o mínimo necessário a uma existên-cia humana digna de ser chamada assim.12

Essas considerações permitem con-cluir claramente pela existência de um conteúdo intangível dos direitos funda-mentais, que não pode ceder sob forma alguma. Esse núcleo vem a ser o denomi-nado mínimo existencial, ou seja, aquele conjunto de situações que caracterizam o ponto limite a partir do qual não se pode avançar sem ofender a dignidade do ho-mem, sem reduzi-lo a meio.

A dignidade da pessoa humana, por conseguinte, presta-se ao mesmo tempo para limitar direitos fundamentais – na medida em que é buscando sua maior efe-tivação que, no caso concreto, um princí-pio que os veicule pode ter sua aplicação restringida em favor de outro – como para coibir restrições excessivas,13 por meio da configuração do mínimo existencial.

2. À mudança de função das cons-tituições e do próprio Estado, que afinal de contas é por elas instaurado, na época contemporânea, resultante da forma como historicamente se desenvolveram as so-ciedades em que aparecem, correspondem também, como não podia deixar de ser, modificações radicais no plano jurídico. As normas jurídicas que passam a ser ne-cessárias não possuem mais o mesmo ca-ráter condicional de antes, com um sentido retrospectivo, quando destinavam-se basi-camente a estabelecer uma certa conduta, de acordo com um padrão, em geral fixado antes essas normas e não, a partir delas, propriamente. A isso era acrescentado o sancionamento, em princípio negativo — i.e., uma conseqüência desagradável — a ser inflingido pelo Estado, na hipótese de haver um descumprimento da prescrição normativa. A regulação que no presente é requisitada ao Direito assume um caráter finalístico, e um sentido prospectivo, pois, para enfrentar a imprevisibilidade das si-tuações a serem reguladas ao que não se presta o esquema simples de subsunção de fatos a uma previsão legal abstrata ante-rior, precisa-se de normas que determinem objetivos a serem alcançados futuramente, sob as circunstâncias que então se apresen-tem.

Em vista disto, tem-se salientado bastante ultimamente a distinção entre normas jurídicas que são formuladas como regras e aquelas que assumem a forma de um princípio. As primeiras possuem a es-trutura lógica que tradicionalmente se atri-bui às normas do Direito, com a descrição (ou “tipificação”) de um fato, ao que se acrescenta a sua qualificação prescritiva, amparada em uma sanção (ou na ausência dela, no caso da qualificação como “fato permitido”). Já os princípios fundamen-tais, igualmente dotados de validade posi-tiva e de um modo geral estabelecidos na

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constituição, não se reportam a um fato es-pecífico, que se possa precisar com facili-dade a ocorrência, extraindo a conseqüên-cia prevista normativamente. Eles devem ser entendidos como indicadores de uma opção pelo favorecimento de determinado valor, a ser levada em conta na apreciação jurídica de uma infinidade de fatos e si-tuações possíveis, juntamente com outras tantas opções dessas, outros princípios igualmente adotados, que em determinado caso concreto podem se conflitar uns com os outros, quando já não são mesmo, in abstracto, antinômicos entre si.

Os princípios jurídicos fundamen-tais, dotados também de dimensão ética e política, apontam a direção que se deve se-guir para tratar de qualquer ocorrência de acordo com o Direito em vigor, caso ele não contenha uma regra que a refira ou que a discipline suficientemente. A aplicação desses princípios, contudo, envolve um es-forço muito maior do que a aplicação de regras, onde uma vez verificada a identi-dade do fato ocorrido com aquele previs-to por alguma delas, não resta mais o que fazer, para se saber o tratamento que lhe é dispensado pelo direito. Já para aplicar as regras, é preciso haver um procedimen-to, para que se comprove a ocorrência dos fatos sob os quais elas haverão de incidir. A necessidade de se ter um procedimento tornar-se ainda mais aguda quando se trata da aplicação de princípios, pois aí a discus-são gira menos em torno de fatos do que de valores, o que requer um cuidado muito maior para se chegar a uma decisão funda-mentada objetivamente.

Em sendo assim, é de se esperar que, na medida em que aumenta a freqüência com que se recorre a princípios para so-lução de problemas jurídicos, cresce tam-bém a importância daquele ramo do direito ocupado em disciplinar os procedimentos, sem os quais não se chega a um resultado

aceitável, ao utilizar um meio tão pouco preciso e vago de ordenação da conduta, como são os princípios. Isso significa tam-bém que a determinação do que é confor-me ao Direito passa a depender cada vez mais da situação concreta em que aparece esse problema, o que beneficia formas de pensamento pragmáticas, voltadas para orientar a ação daqueles envolvidos na to-mada de uma decisão. Procedimentos são séries de atos ordenados com a finalidade de propiciar a solução de questões cuja dificuldade e/ou importância requer uma extensão do lapso temporal, para que se considerem aspectos e implicações possí-veis. Dentre os procedimentos regulados pelo Direito, podem-se destacar aqueles que envolvem a participação e a influência de vários sujeitos na formação do ato final decisório, reservando-lhes a denominação técnica de “processo”.

3. De uma perspectiva estrutural, partindo daquela distinção, já corriqueira, entre normas jurídicas que são regras da-quelas que são princípios, distinção essa elaborada em sede de teoria do direito a partir de trabalhos de autores contemporâ-neos como KARL LARENZ, JOSEF ES-SER, RONALD DWORKIN e ROBERT ALEXY, pode-se, então, afirmar, que normas substancialmente constitucionais têm a estrutura de princípios, com a qual se consagra, explícita ou implicitamente, valores, no plano positivo do direito, con-ferindo-lhes, assim, natureza deôntica di-ferenciada daquela que possuem enquanto determinações absolutas, como o são, em uma ordem ética, religiosa ou ideológica qualquer, os valores. Assim, no modelo mais sofisticado de figuração da ordem jurídica, proposto por ALEXY em sua “Teoria dos Direitos Fundamentais”, dis-tingui-se três níveis, a saber, o dos princí-pios, o das regras e o dos procedimentos.

Willis santiago gueRRa Filho

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É neste último nível em que os interesses e bens da vida, traduzidos em valores, vêm a ser consagrados positivamente enquanto princípios, e qualificadores, ainda que em graus diversos de generalidade e abstra-ção, dos fatos previstos normativamente pelas regras, resultam vertidos em novas normas, aptas a incidirem em determina-das situações concretas, conformando-as juridicamente.

Assim sendo, considerando serem os direitos fundamentais o conteúdo essencial de uma Constituição como, a exemplo da que temos atualmente, as que se apresen-tam para fundar um Estado Democrático de Direito, conteúdo este ao qual se agre-ga a condizente organização institucional do Estado e da sociedade civil, para que se tenha, tudo somado, a Constituição em sentido substancial, então tem-se que as garantias constitucionais integrariam a Constituição em sentido processual. São essas garantias tanto aquelas ditas garan-tias fundamentais, por garantirem direitos igualmente fundamentais, seja do ponto de vista formal, seja daquele substancial, como também as chamadas garantias institucionais, aquelas denominadas na doutrina alemã, em uma terminologia que remonta a CARL SCHMITT, Einrichtun-gsgarantien, as de ordem pública (insti-tutionelle Garantien), e as garantias de instituições (Institutsgarantien), da ordem privada, a exemplo da família, do ensino, da imprensa etc.

Nossa compreensão do quanto o Es-tado Democrático de Direito depende de procedimentos, não só legislativos e eleito-rais, mas especialmente aqueles judiciais, para que se dê sua realização, aumenta na medida em que precisemos melhor o con-teúdo dessa fórmula política.

Historicamente, poder-se-ia localizar o seu surgimento nas sociedades européias recém-saídas da catástrofe da II Guerra

Mundial, que representou a falência tanto do modelo liberal de Estado de Direito, como também das fórmulas políticas auto-ritárias que se apresentaram como alterna-tiva. Se em um primeiro momento obser-vou-se um prestígio de um modelo social e, mesmo, socialista de Estado, a fórmula do Estado Democrático se firma a partir de uma revalorização dos clássicos direitos individuais de liberdade, que se entende não poderem jamais ser demasiadamente sacrificados, em nome da realização de direitos sociais. O Estado Democrático de Direito, então, representa uma forma de superação dialética da antítese entre os modelos liberal e social ou socialista de Es-tado. Nessa perspectiva, tem-se a influente obra de ELÍAZ DÍAZ, “Estado de Dere-cho y sociedad democrática”, bem como a monografia, bem anterior, já clássica na literatura política e constitucional em nos-so País, de Mestre PAULO BONAVIDES, “Do Estado Liberal ao Estado Social”.

Em sendo assim, tem-se o compro-misso básico do Estado Democrático de Direito na harmonização de interesses que se situam em três esferas fundamentais: a esfera pública, ocupada pelo Estado, a es-fera privada, em que se situa o indivíduo, e um segmento intermediário, a esfera cole-tiva, em que se tem os interesses de indiví-duos enquanto membros de determinados grupos, formados para a consecução de objetivos econômicos, políticos, culturais ou outros.

Há quem veja na projeção atual des-ses grupos, no campo político e social, como um dos traços característicos da pós-modernidade, quando então as ações mais significativas se deveriam a esses novos sujeitos coletivos, e não a sujeitos individuais ou àqueles integrados na orga-nização política estatal. Indubitavelmente, o problema básico a ser solucionado por qualquer constituição política contempo-

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rânea não pode mais ser captado em toda sua extensão por aquela formulação clás-sica, onde se tinha um problema de deli-mitação do poder estatal frente ao cidadão individualmente considerado. Hoje entida-des coletivas demandam igualmente um disciplinamento de sua atividade política e econômica, de modo a que possam sa-tisfazer o interesse coletivo que as anima, compatibilizando-o com interesses de na-tureza individual e pública, com base em um “princípio de proporcionalidade”, que se procurou indicar aqui propriedades teó-ricas - e práticas – capazes de torná-lo uma espécie de ponto de Arquimedes para ala-vancar o Estado Democrático de Direito. Nos estudos que realizamos anteriormen-te, evidenciou-se, por exemplo, que aquele princípio pode ser considerado algo assim como o “princípio dos princípios”, de hus-serliana memória, uma vez que é a ele, em última instância, que se recorre para resolver, em “casos difíceis” (hard cases), o conflito entre diversos valores e interes-ses, expressos em outros princípios fun-damentais da ordem jurídica. Isso porque o princípio da proporcionalidade é capaz de dar um “salto hierárquico” (hierarchical loop), ao ser extraído do ponto mais alto da “pirâmide” normativa para ir até a sua “base”, onde se verificam os conflitos con-cretos, validando as normas individuais ali produzidas, na forma de decisões ad-ministrativas, judiciais etc. Essa forma de validação é tópica, permitindo atribuir um significado diferente a um mesmo conjun-to de normas, a depender da situação a que são aplicadas. É esse o tipo de validação requerida nas sociedades hipercomplexas da pós-modernidade – ou, se preferirmos, para evitar o desgaste desse significante, o “pós-moderno”, podemos falar em “socie-dades hipermodernas”, ou em uma só so-ciedade hipermoderna, a sociedade mun-dial, a sociedade da comunicação em rede.

Nela se misturam criação (legislação) e aplicação (jurisdição e administração) do Direito, tornando a linearidade do esquema de validação kelseneano pela referência à estrutura hierarquicamente escalonada do ordenamento jurídico em circularidade, com o embricamento de diversas hierar-quias normativas, as “tangled hierarchies” da teoria sistêmica. Concretamente, isso significa que assim como uma norma ao ser aplicada mostra-se válida pela remis-são a princípios superiores, esculpidos na Constituição, esses princípios validam-se por serem referidos na aplicação daquelas normas. É o princípio da proporcionalida-de, portanto, que permite realizar o que os norte-americanos chamam “balancing” de interesses e bens. A mesma idéia de so-pesamento, ponderação, é expressa pela “Abwägung” dos alemães. E isso porque, para solucionar as colisões entre interes-ses diversos de certas coletividades entre si e com interesses individuais ou estatais, tão variadas e imprevisíveis em sua ocor-rência, não há como se amparar em uma regulamentação prévia exaustiva, donde a dependência incontornável de procedi-mentos para fazer incidir o princípio da proporcionalidade, regulando o conflito de princípios, para atingir, assim, as soluções esperadas.

Compreende-se, então, como o cen-tro de decisões politicamente relevantes, no Estado Democrático contemporâneo, sofre um sensível deslocamento do Le-gislativo e Executivo em direção ao Judi-ciário. O processo judicial que se instaura mediante a propositura de determinadas ações, especialmente aquelas de natureza coletiva e/ou de dimensão constitucional - ação popular, ação civil pública, mandado de injunção etc. - torna-se um instrumen-to privilegiado de participação política e exercício permanente da cidadania, com vista à necessária transformação social

Willis santiago gueRRa Filho

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emancipatória. A Teoria Fundamental da Constituição aqui proposta levanta a pre-tensão de servir como instrumento cog-nitivo para essa transformação, enquanto Teoria jurídica emanada do Direito Cons-titucional do Estado Democrático que, en-quanto fundamental, é de todo o Direito, desde que adequado a esta fórmula política de vigência insuperável: donde ser “funda-mental”, ao invés de “geral”, pois se, por um lado, uma teoria ou é geral ou não é teoria propriamente, de outro lado, não é possível uma teoria do Direito “em geral”, de todo e qualquer um.

4. A constituição é vista por PETER HÄBERLE, em estudo já clássico, como processo, aberto para a participação plura-lística dos representantes das mais diver-sas interpretações. A concepção da ordem constitucional como um processo, no qual se inserem os defensores de interpretações diversas no momento de concretizá-la, e não como ordem já estabelecida, vem se mostrando como uma nova orientação em filosofia do direito, mais consentânea com o modo atual de se conceber o próprio conhecimento, de bases científicas. É que estas bases foram abaladas e substituídas pelas revoluções que superaram na mate-mática e na física o modo tradicional de figuração do espaço, remontando à geo-metria euclidiana, refinada pela analítica cartesiana e corroborada pelos resultados obtidos de sua aplicação no estudo da na-tureza, desde COPÉRNICO até culminar em NEWTON, passando por GALILEU, o que suscitou a conhecida formulação de THOMAS KUHN, sobre a substituição de paradigmas científicos.

Aqui, vem referida uma noção de im-portância capital na epistemologia contem-porânea: aquela de “paradigma”, cunhada por THOMAS S. KUHN, em sua obra “A Estrutura das Revoluções Científicas”, de 1962. O paradigma de uma ciência pode ser

definido, primeiramente, como o conjunto de valores expressos em regras, tácita ou explicitamente acordadas entre os membros da comunidade científica, para serem segui-das por aqueles que esperam ver os resulta-dos de suas pesquisas - e eles próprios - le-vados em conta por essa comunidade, como contribuição ao desenvolvimento científico. Além disso, integra o paradigma uma deter-minada concepção geral sobre a natureza dos fenômenos estudados por dada ciência, bem como sobre os métodos e conceitos mais adequados para estudá-los - em suma: uma teoria científica aplicada com sucesso, paradigmaticamente. Por essa caracteriza-ção, percebe-se a conotação normativa que tem a noção de paradigma, donde se explica o fato, apontado por Kuhn, de que os pa-radigmas, tal como outras ordens normati-vas, entrem em crise, rompam-se por meio de “revoluções”, quando não se consegue, a partir deles, explicar certas anomalias, o que ocasiona sua substituição por algum outro. O exemplo típico é o da substitui-ção, na física, no paradigma mecanicista de COPÉRNICO, GALILEU, GIORDA-NO BRUNO, NEWTON etc., por aquele relativista de ALBERT EINSTEIN, MAX PLANCK, NIELS BOHR, WERNER HEI-SENBERG etc.

Daí ter EDMUND HUSSERL, de sua perspectiva fenomenológica, alertado para o caráter restritivo do conhecimento obtido pelo formalismo científico, apesar de sua indubitável eficácia, consubstanciando-se em ameaça ao “mundo comum da vida (Lebenswelt), assim como BACHELARD, ao mesmo tempo em que, refletindo sobre a nova cientificidade oriunda dos avanços da física relativística e quântica, apontava o seu caráter aproximativo, em um proces-so inesgotável de acercamento das desco-bertas, alertando, também, para a neces-sidade de se complementar os rigores do método científico com a liberdade criativa

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da imaginação poética. É essa nova ciên-cia, processual e, por isso também, aberta, que se nos afigura homóloga à concepção aqui esposada, sobre a importância de se reconhecer um sentido também proces-sual à constituição, para que assim ela se preste, cada vez mais, a ser o fundamento adequado, por dinâmico ao invés de está-tico, para uma ordem jurídica que se faz e refaz a cada dia, com a possibilidade de ir-se aperfeiçoando enquanto instrumento de inclusão dos que a ela se sujeitam, per-manecendo sujeitos dotados da dignidade de seres autoconscientes.

É de todo conveniente o emprego de novas categorias em estudos que levam em conta a complexidade da realidade estuda-da, considerando que a mesma não existe para nós independentemente de nossa ob-servação dela. Só assim poderemos, igual-mente, enfrentar melhor as questões éticas e jurídicas com que nos defrontamos em um mundo que a ciência vem, ao mesmo tempo, revelando e tornando mais com-plexo. Isso quer dizer, em termos sucintos, que se postula dever ser este um instru-mento de promoção do aperfeiçoamento democrático do poder e do saber. Há, por-tanto, desta perspectiva aqui defendida, uma epistemologia que favorece a adoção de valores mais condizentes com o plura-lismo democrático, fórmula política mais respeitosa à dignidade dos seres humanos, tendo tal epistemologia sua adoção favore-cida, no campo jurídico, por uma concep-ção teórico-fundamental da Constituição – e, logo, também do Direito que nela se baseia -, assim como o desenvolvimento deste Direito é fomentado por semelhante teoria de ciência jurídica.

NOTAS1 Terra-Pátria. 3ª ed., trad.: PAULO NEVES, Porto Alegre, Sulina, 2000, p. 186, passim.

2 O tema do princípio da proporcionalidade vem sendo objeto de elaborações sucessivas, que são também em parte coincidentes, em WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, En-saios de Teoria Constitucional, Fortaleza: Im-prensa Universitária da UFC, 1989, pp. 47 ss.; id., Teoria Processual da Constituição, 2a. ed., São Paulo: IBDC/Celso Bastos Ed., 2002, pp. 75 ss., 185 ss., passim; id., Processo Consti-tucional e Direitos Fundamentais, 3a. ed., São Paulo: IBDC/Celso Bastos Ed., 2003, pp. 63 ss., e em diversos artigos, publicados no Brasil e no exterior. De último, WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, “O princípio da proporcio-nalidade em Direito constitucional e em Direito privado no Brasil”, in: Aspectos Controvertidos do novo Código Civil. Escritos em homenagem ao Min. JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES, ARRUDA ALVIM, JOAQUIM PORTES DE CERQUEIRA CÉSAR e ROBERTO ROSAS (orgs.), São Paulo: RT, 2003, pp. 583/596; “So-bre o princípio da proporcionalidade”, in: Dos Princípios Constitucionais. Considerações em torno das normas principiológicas da Consti-tuição, GEORGE SALOMÃO LEITE (org.), São Paulo: Malheiros, 2003, pp. 237/253.3 Nesse sentido, MANFRED STELZER, Das Wesensgehaltsargument und der Grundsatz der Verhältnismäβigkeit, Wien/New York: Sprin-ger, 1991, p. 22.4 Theorie der Grundrechte, Baden-Baden: No-mos, 1985, pp. 75 e s.5 Cf. ALEXY, ob. cit., p. 100, 143 e s., passim; WILLIS S. GUERRA FILHO, Ensaios de Te-oria Constitucional, Fortaleza: Imprensa Uni-versitária da UFC, 1989, pp. 47, 69 e s., passim; id., Teoria Processual da Constituição, 2a. ed., São Paulo: IBDC/Celso Bastos Ed., 2002, pp. 75 ss., 185 ss. e id., Processo Constitucional e Direitos Fundamentais, 3a. ed., São Paulo: IBDC/Celso Bastos Ed., 2003, pp. 63 ss.6 Sobre a função legitimadora do princípio da proporcionalidade cf. RICARDO LOBO TOR-RES, “A Legitimação dos Direitos Humanos e os Princípios da Ponderação e da Razoabilida-de”, in: Id. (Org.), A Legitimação dos Direitos Humanos, Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp. 397 ss., esp. pp. 432 ss.7 Cf. BVerfGE 23, 133 (= Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts, vol. 23, p. 133).

Willis santiago gueRRa Filho

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Em decisão anterior, o Verhältnissmäßigkeits-prinzip já fora apresentado como resultante “no fundo, da essência dos próprios direitos funda-mentais”, acrescentando, de forma assimilável à referida formulação clássica de SVAREZ, que se teria aí uma “expressão do anseio geral de li-berdade dos cidadãos frente ao Estado, em face do poder público, que só pode vir a ser limitada se isso for exigido para proteção de interesses públicos. BVerfGE 19, 348/349.Uma reconstru-ção detalhada do caminho percorrido na doutri-na pelo princípio ora estudado encontra-se na monografia de LOTHAR HIRSCHBERG, Der Grundsatz der Verhaltnismäβigkeit, Göttingen:Tese, 1981.8 Cf. VIRGÍLIO AFONSO DA SILVA, “O Pro-porcional e o Razoável”, in: Revista dos Tri-bunais, vol. 798, 2002, p. 26. Irretorquível, por outro lado, neste trabalho, é a distinção entre os princípios da proporcionalidade e razoabilida-de, a qual constitui seu objeto central.9 Cf. Taking Rights Seriously, Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1978, p. 26 ss.10 O fato de ALEXY, na famosa “página 100” da edição original da Theorie der Grundrechte, com apoio o professor de Direito Constitucional na Universidade de Heidelberg, HAVERKATE, referir à possibilidade dos “subprincípios da proporcionalidade” permitirem, tal como regras jurídicas, a subsunção, não implica, ipso facto, como pretende VIRGÍLIO AFONSO DA SIL-VA, loc. ult. cit., ser o princípio da proporciona-lidade uma regra, pois o conteúdo de uma regra é a descrição (e previsão) de um fato, acompa-nhada da prescrição de sua conseqüência jurídi-ca, e não outra regra. Também, pelo princípio lógico da “navalha de OCKHAM”, pelo qual não se deve multiplicar desnecessariamente os termos, sem que haja entes diversos a serem nomeados por eles, também não pensamos que deixe de haver sinonímia entre o princípio da proporcionalidade em sentido estrito e a proibi-ção de excesso “de ação”, por implicar o prin-cípio também em uma “proibição de (excesso) de omissão” (Untermaβverbot). Em apoio de nossos posicionamentos veio, recentemente, FRANCISCO FERNANDES DE ARAÚJO, em Princípio da Proporcionalidade: signifi-cado e aplicação prática, Campinas: Copola, 2002.

11 Daí se referir ao princípio PAULO BONAVI-DES como “antiqüíssimo”. Cf. Curso de Direi-to Constitucional, 5ª. Ed., São Paulo: Malhei-ros, 1994, p. 362.12 Na constituição alemã, tendo em vista esse fato, consagra o art. 19, 2a parte, o princípio segundo o qual os direitos fundamentais ja-mais devem ser ofendidos em sua essência (Wesensgehaltsgarantie). Exatamente dessa norma é que autores como LERCHE e DÜRIG deduzem, a contrario sensu, a consagração do princípio da proporcionalidade pelo direito constitucional, pois ela implica na aceitação de ofensa a direito fundamental “até um certo pon-to”, donde a necessidade de um princípio para estabelecer o limite que não se deve ultrapassar. Cf. BVerfGE 34, 238; DÜRIG, em “Der Grun-dsatz von der Menschenwürde. Entwurf eines praktikablen Wertsystems der Grundrechte aus Art. 1, Abs. I, in Verbindung mit Art. 19. Abs. II, des Grundgesetzes, in: Archiv für öffentliches Recht, n. 81, 1956, pp. 117 ss., PETER LER-CHE, Übermaβ- und Verfassungsrecht — Zur Bindung des Gesetzqebers an die Grundsätze der Verhältnissmäßigkeit und Erforderlichkeit, Heidelberg: Müller, 1961.13 Nesse sentido, INGO SARLET menciona a dupla função da dignidade da pessoa humana, em Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 119-120.

PROPOSTA DE TEORIA FUNDAMENTAL...

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CONFERÊNCIASE DEBATES

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*Doutor das Universidades de Paris II e Coimbra. Professor Catedrático de Direito e Director do Instituto Jurídico Interdiscipli-nar, Faculdade de Direito da Universidade do Porto.

1. Introdução

Propomo-nos, breve e perfunctoria-mente embora, evocar a figura emblemáti-ca de Tomás Moro (Londres, 1478 - 1535): Jurista, Homem de Estado, Professor de Direito, Santo, e Santo mártir, autor da utopia político-social que deu nome ao gé-nero.

Os três tópicos que pareceram mais adequados no anúncio da palestra podem parecer não corresponder inteiramente ao que acabámos por desenvolver, mas sinte-tizam as preocupações de uma leitura: an-tes de mais, o direito constitucional e a po-lémica constitucional que acabou em crime político sob forma penal – a decapitação de Moro por traição; depois (mas apenas por

LION IN WINTERTOMÁS MORO NA NOSSA ESTAÇÃO

DIÁLOGOS COM O DIREITO CONSTITUCIONAL, O CRISTIANISMO E A UTOPIA SOCIAL

LION IN WINTERTOMÁS MORO IN OUR SEASON.

DIALOGUES WITH THE CONSTITUTIONAL LAW, THE CHRISTIANISM AND THE SOCIAL UTOPIA

Paulo FeRReiRa Da Cunha*

Recebido para publicação em agosto de 2005

Resumo: Sir ou Santo Tomás Moro foi sagrado “um homem para todas as estações” por um bem conhecido filme. O mito (mito e não mentira) de More como homem recto e sábio impregna boa parte da sua biografia. Contudo, contra este mito se foram levantando algumas vozes críticas. More não teria sido digno de ser considerado exemplo para os estadistas, mas apenas um homem do seu tempo, homem de uma única estação. Esta conferência deseja chamar a atenção para a referida pluralidade de perspectivas sobre Tomas Moro, e para a riqueza de aspectos que a sua vida e obra encerram. Moro pode ser ou não ser um homem para todas as estações: mas é certamente ainda um leão no Inverno do nosso descontentamento…Palavras-chave: Tomás Moro. Utopia. Cristianismo. Doutrina Social da Igreja. Filosofia Política. Socialismo. Comunismo.

Abstract: A very well known film sacred Sir or Saint Thomas More as “a man for all seasons”. The myth (not the lye) of More as a righteous, wise man is still the main part of his biography. Neverthe-less, some critical voices begun to rise. He would be not an example to statesmen, but a man for one only season. This conference intended to call the attention to the pluralism of views about More, and the richness of aspects of his life and work. More may be or may be not a man for all seasons: but he still is a lion in the winter of our discontent.Key Words: Thomas More. Utopia. Christianity. Catholic Church Social Theory. Political Philoso-Utopia. Christianity. Catholic Church Social Theory. Political Philoso-Christianity. Catholic Church Social Theory. Political Philoso-Political Philoso-phy. Socialism. Communism.

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comodidade depois, porque está antes de tudo em Moro), o cristianismo, mola pro-pulsora da vida, do pensamento e da obra desta figura; finalmente, a utopia social, o seu contributo para a filosofia política, numa clave que normalmente não é a da maioria dos expoentes recentes do pensa-mento cristão – e daí, também, a sua ori-ginalidade.

Comecemos então pelo princípio, e o princípio pode ser dado pelo ambiente e pelas afinidades. Limitemo-nos, brevitatis causa, a estas últimas, sinais daquele.

É difícil falar de Tomás Moro sem aludir, ainda que rapidamente, aos estra-nhos vínculos do Tempo que o fizeram ser contemporâneo de Maquiavel, e de Eras-mo. Com o Secretário de Florença, aparen-temente não ressaltam senão contrastes: tudo parece afastar Moro de Maquiavel. E contudo, nas suas vidas reais, que não nas suas obras e na fama póstera, são ambos dois grandes perdedores históricos. Moro com a grandeza da condenação, mas após cativeiro doloroso; Maquiavel, caído em desgraça e logo torturado, para depois vir a ser parcialmente reabilitado, mas deixado no limbo da latência ou da potência políti-ca que não se torna acto, humilhantemente presenteado ao final da tarde com um par de garrafas de bom vinho pelo Príncipe a quem dedicara e oferecera de manhã a sua obra imortal homónima. O Príncipe é uma “manual do guerrilheiro político” (ou do “gangster”, como diria Bertrand Russell), para os outros, mas é, para Maquiavel, também uma utopia. Outra coincidên-cia significativa é o facto de as obras que imortalizaram Moro e Maquiavel terem sa-ído no mesmo ano. Pedro Calmon afirma que tal “não é uma coincidência, mas um índice de plenitude” (Calmon, 1952, 174).

Já a relação entre Moro e Erasmo pa-rece mais próxima, foi pessoalmente pró-xima. Moro e Erasmo representam o rosto bifronte do Humanismo na política, como

uma nova díade (obviamente, sempre vá-rios tipos de cotejo e de associação podem ser feitos, v. Amaral, 1992, 91 ss.) unida pelo tempo, pelas preocupações, e simboli-camente apartada pelo destino, como antes sucedera, nos tempos culturalmente mais difíceis dos primórdios da Idade Média, com Boécio e Cassiodoro.

2. Biografia Mínima

Se o próprio Erasmo, amigo de Moro ao ponto de subtilmente o elogiar no título do próprio Elogio da Loucura, se confes-sava incompetente para biografar o protei-forme humanista inglês, a tarefa é, na ver-dade, muito árdua. Mas aqui não se trata de biografias. Atrevamo-nos, então, antes de mais, a apenas um sumário biográfico.

Moro Nasceu em Londres. Os bi-ógrafos britânicos são precisos: foi em Milk Street, na paróquia de Santa Maria Madalena, numa casa de burguesia abas-tada. O próprio Moro evoca uma infância feliz e um pai honesto e afável, primeiro ligado ao comércio e depois ao Direito. É também Direito que Tomás vai estudar, na Universidade de Oxford, onde se formará em 1501. A influência do pai – uma for-te personalidade – para esta opção parece indesmentível, tanto mais que um grande mentor de Moro, o futuro Cardeal Morton, muito provavelmente teria preferido para o seu protegido a carreira eclesiástica, à qual o jovem Tomás, de resto, não era nada insensível. Com efeito, esteve durante qua-tro anos em exercícios espirituais com os monges de Charterhouse, procurando uma iluminação sobre o rumo da sua vocação. Embora plausivelmente tais exercícios não o tivessem absorvido totalmente, nem distraído por completo das suas vocações jurídica, política e humanística (Martz, 1990, 14 ss.).

Decidido pela carreira secular, embo-ra não abandonando a sua devoção, nem a

Paulo FeRReiRa Da Cunha

(Conferências e Debates)

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sua queda eclesiástica (tendo-se nomeada-mente também aplicado a escritos sobre as heresias, ofício pouco comum para um lei-go) subirá os degraus do cursus honorum político: deputado desde 1504, ascende no parlamento à condição de Speaker em 1523. Seis anos mais tarde, torna-se Lor-de-chanceler. Acusado injustamente pelo seu exercício judicial, consegue provar a sua inocência. Mais tarde, apesar de tentar o compromisso pela reserva mental e pelo silêncio até ao limite da sua consciência, Moro não poderá deixar de afrontar o po-der arbitrário do rei Henrique VIII: opon-do-se ao divórcio do rei do casamento com Catarina de Aragão, e ao cisma anglicano, bem como às formas político-constitucio-nais que os permitiram.

Durante o longo processo, em que esteve encerrado na Torre de Londres, onde escreveu Dialogue of Comfort in Tri-bulation, 1534, além de cartas de grande elevação e rara subtileza (para contornar indiscretos olhares dos carcereiros), so-bretudo a uma filha predilecta, Margaret Ropper, conta a lenda que jogava xadrez com o monarca, numa única partida (qua-se) interminável (lembrando o “único con-to” de Shearazade nas Mil e Uma Noites) e, naturalmente, o filme O Sétimo Selo, de Bergman – simbolismo eloquente.

Estavam em causa para Moro o poder espiritual do rei, o cisma com Roma (con-siderando o Papa simples “bispo de Roma” sem jurisdição em Inglaterra). A questão poria em causa os próprios poderes do Par-lamento, já que Moro não lhe reconheceu autoridade para aprovar tudo. O mito de que o Parlamento Inglês (ou o Rei em Par-lamento) tudo pode, salvo transformar um homem em mulher ou vice-versa, já então era um mito. Há limites, há coisas que estão acima do simples jogo parlamentar, e até acima da mera democracia formal ou téc-nica (Montoro, 1979). Grande lição para os nossos dias, grande lição para sempre.

3. O Julgamento

A reconstituição dos diálogos na ses-são que o haveria de condenar é impres-sionante, e pode reviver-se, de certa forma, no clássico filme A Man for all Seasons. Mas aqui fica um breve passo, para que sintamos desde já o tom. Em julgamento, depois de várias acusações, entre as quais a de ter negado que o rei, Henrique VIII, pu-desse validamente ter sido declarado pelo Parlamento chefe da Igreja em Inglaterra, e de lhe ter sido oferecido o perdão se se re-tratasse, Moro, após considerandos sobre a prolixidade das acusações e a escassez das suas forças para as contestar, afirmaria:

“Não me declaro culpado (…) No concernente ao primeiro artigo, no qual se afirma que eu, para expressar e mostrar a minha malícia contra o rei e o seu recen-te casamento, sempre censurei e resisti ao mesmo, só posso dizer o seguinte: que nunca por malícia disse uma palavra contra ele, e que aquilo que disse sobre o assun-to, disse-o exclusivamente segundo o meu pensar, opinião e consciência. E por este meu erro (se lhe posso chamar erro, ou se a este respeito estou enganado) não esca-pei sem castigo, tendo os meus bens e ga-dos sido confiscados, e eu próprio lançado para a prisão, onde ainda me encontro faz já quinze meses. Respeitando, pois, a esta acusação, respondo que, por esta minha ta-citurnidade e silêncio não pode a vossa lei, nem nenhuma lei do mundo, justamente castigar-me, a menos que possais além dis-so acusar-me de qualquer palavra ou acção de facto.” (Ackroyd, 2003, 274-275).

Ao que o advogado da coroa ataca:“Esse mesmo silêncio é sinal e de-

monstração de uma natureza corrupta e perversa, que conspira e murmura contra o Estatuto; sim, não houve súbdito leal e fiel que, tendo-lhe sido perguntado o que pen-sava e opinava sobre o dito Estatuto, não se tenha disposto a afirmar, sem qualquer

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dissimulação, que o considerava bom, jus-to e legítimo” (Ackroyd, 2003, 275).

Moro defende-se com armas de bom jurista que era, invocando os princípios ge-rais de Direito:

“Em verdade, se as regras e máximas do Direito civil são boas, admissíveis e suficientes, então Qui tacet consentire vi-detur (“quem cala presume-se que consen-te”), e este meu silêncio implica e sugere mais uma ratificação e confirmação do que qualquer condenação desse vosso Estatuto. Pois asseguro-vos que nunca, até este mo-mento, revelei e abri a minha consciência e opinião a qualquer pessoa viva neste mun-do” (Ackroyd, 2003, 275).

Segue o julgamento, melhor, a farsa de julgamento, até que tem de ser o pró-prio réu a lembrar que as regras de direito em uso previam que a este fosse dada a pa-lavra antes da sentença. Moro argumenta então juridicamente, considerando a lei do Parlamento em que se baseia o julgamento absolutamente iníqua, por contrária às leis de Deus. Depois de lida a sentença (que, embora depois comutada pelo rei em deca-pitação, constava inicialmente de enforca-mento não total, extirpação das entranhas ainda em vida, decepação do corpo e sua exposição pública – tal foi a vontade de mostrar serviço por parte desses juízes que se tornaram simples lacaios), Moro termi-na com estas palavras dignas de um santo, e santo mártir (que a Igreja depois cano-nizou):

“Nada mais tenho a dizer, meus lor-des, excepto que como o abençoado após-tolo São Paulo, como lemos nos Actos dos Apóstolos, esteve presente e consentiu na morte de Santo Estêvão, e guardou as rou-pas do que o apedrejaram, e no entanto são agora ambos santos no paraíso, e lá conti-nuarão como amigos para sempre, assim eu verdadeiramente espero, e por isso rezarei, que apesar de vossas senhorias terdes sido

aqui na terra juízes da minha condenação, e do mesmo modo desejo que Deus Todo-Poderoso preserve e defenda Sua Majesta-de, e lhe mande bom conselho” (Ackroyd, 2003, 276-277).

4. As Utopias e a Utopia de Moro

No plano da filosofia política, Moro tem lugar sobretudo por algo que, à falta de mais cabal explicação, poderíamos grosso modo enunciar assim: foi não o criador do género literário (tão político e em certa me-dida constitucional) da “utopia”, mas com o seu livro deu a definitiva palavra para uma “coisa”, um quid que vinha de mui-to antes, e tivera já na República de Platão uma altíssima floração. Detenhamo-nos um instante sobre a questão da utopia.

Com efeito, a palavra “utopia” deri-va do livro homónimo de Tomás Moro, e significa etimologicamente “o que não tem lugar”. Referem-se às utopias (eutopias, neste caso, pois também há distopias, uto-pias negativas, infernos fabricados) a ma-ravilhosas terras em que os homens seriam felizes mediante uma organização social mais justa, na perspectiva do seu autor. Por extensão, o termo passou para todo o sonho, impossível, irrealizável. Mas desig-na rigorosa mente o mito da cidade ideal, como sublinhou Roger Mucchieli. Hoje já se sabe que o grande problema das utopias é que podem tornar-se realidade, como acentuou Berdiaeff, e Huxley recordaria na portada do seu Brave new world – uma das mais conhecidas distopias contemporâne-as. A própria Utopia de Tomás Moro não se ficou pelo renome literário, mas houve mesmo quem a pretendesse pôr em práti-ca: como o espanhol Vasco de Quiroga, no México.

Também muitas ideologias – se não todas – propõem mundos fantásticos, de algum modo se aproximando das utopias. As utopias, porém, são concretizações,

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normalmente muito pormenorizadas, das propostas de inovação social. As ideolo-gias são filosofias políticas vulgarizadas, que não têm necessidade desse grau de pormenorização. O problema é que sempre que um tirano ou uma oligarquia, enfim, um grupo no poder, querem construir um paraíso, uma sociedade perfeita, constro-em um inferno. O perigo das utopias é que se realizem. E, aqui como noutras coisas, o óptimo é inimigo do bom.

Diferente da utopia é aspiração utó-pica, utopismo ou “princípio esperança” (desenvolvida por Bloch, 1979): trata-se de não aceitar como uma fatalidade o statu quo, de ousar e de sonhar.

Enquanto a utopia é normalmente enclausurante, geométrica e racionalista, potenciando as prisões e as peias, o utopis-mo deseja-se libertador, imaginativo e até, por isso, mais “realista”.

Pelo seu carácter pioneiro, e pela justeza e sabedoria dos seus ensinamentos, vale a pena que nos detenhamos por mo-mentos na Utopia de Tomás Moro, que na edição latina de Lovaina, datada de 1516, tem nome composto, eloquente sobre o seu conteúdo e escopo: Utopia ou O Tratado da melhor forma de governo.

Nada substitui a importância e o pra-zer de uma leitura integral e pessoal. Se-guimos a tradução do filósofo português José Marinho. Por isso, não faremos um resumo, mas apenas sublinharemos alguns aspectos que se nos afiguram mais interes-santes. Mas, tal como no geral dos autores clássicos, também aqui é muito difícil es-colher.

A Utopia é ao mesmo tempo uma crí-tica da política e da situação, sobretudo a partir da inglesa, do tempo do autor (mas em muitos aspectos permanecendo até hoje) – de que se ocupa principalmente o primeiro livro – e a defesa pormenorizada de uma sociedade de tipo socialista – no

livro segundo. Só nos referiremos mais detidamente adiante ao primeiro, que con-substancia a parte principial basilar do seu sistema, aplicado depois no segundo livro.

As filosofias políticas (e até as ide-ologias) têm essa virtualidade que alguns ignorantes, e alguns puristas se obstinam em não querer ver: é que, por mais estra-nho que tal resulte e pareça (e por mais estranho que realmente possa ser), todas as ideias se podem combinar com todas as outras. E portanto nada há de espantar de um socialismo cristão, como o de Moro. Nem pela parte dos socialistas, nem pela parte dos cristãos (e menos ainda por parte dos que se reclamem simultaneamente de ambas as filiações)… Nem pelos observa-dores nem socialistas nem cristãos. Muito mais de admirar, pelo menos à primeira vista, são outros conúbios. Mas o que uns acham estranho, outros consideram apenas união dos extremos ou atracção dos contrá-rios. Um exemplo de escola é o chamado “nacional-bolchevismo”, associando prin-cípios do nacional-socialismo e do marxis-mo-leninismo. E mesmo comunismos há muitos, e não apenas os leninistas e seus derivados (Vallauri, 1973, 181-211).

Embora, por razões de criação de clima literário e de verossimilhança, Moro se atarde algumas páginas a contar como encontrou o navegador português Rafael Hitlodeu, que lhe fará o relato da utopia, logo no primeiro diálogo com ele coloca os primeiros problemas políticos, que são, antes de mais, a primacial importância da “filosofia do homem em geral”, e especial-mente da Política, superiores à “filosofia natural”, e depois o da participação política individual. Essas eram já questões antigas, que encontra uma interessante discussão, aliás, em Aristóteles (Ética a Nicómaco, I, 1, (1094 a) e ss e 1998, 47).

Por isso, nas suas viagens, sem dúvi-da fantásticas, não se preocupa Moro (na

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verdade, o narrador) ao questionar Rafael com os monstros do bestiário fantástico que tanto comoveram os relatos dos que o precederam, mas com as pessoas, a sua organização política, que pode fazer mais que tudo maravilha, porquanto

“O que é mais raro e digno de inte-resse é uma sociedade sã e sabiamente or-ganizada” (Morus, 1972, 16).

E nesse mesmo passo se explicita a função da utopia (quer na sua dimensão distópica quer na eutópica) – no caso, transportada ficcionalmente para povos dos “novos mundos”:

“Rafael observou que entre esses po-vos há instituições tão más como as nossas, mas encontrou também um grande número de leis capazes de esclarecer e regenerar cidades, povos e reinos da velha Europa” (Morus, 1972, 16).

Além do mais, note-se a ligação des-sa regeneração ao poder das leis…

O outro tema liminar sintetiza-se numa pergunta: “devemos ou não deve-mos entrar na vida pública?” No caso de Moro, atenta a sua circunstância, a questão não se põe tanto na medida do exercício livre, autónomo, de uma cidadania, mas na questão do serviço dos príncipes. E Moro espanta-se (ou retoricamente finge espan-tar-se) que Rafael nunca tenha entrado ao serviço dos príncipes, permanecendo um livre marinheiro. O diálogo é longo e sa-boroso. Hitlodeu, a quem Moro via como ministro, considera que os príncipes pouca distinção fazem entre ministros e lacaios (entre servire e inservire), e depois consi-dera assim a sua relação com o serviço da res publica:

“ (…) mesmo quando fosse cem ve-zes mais dotado seria inútil fazer à repú-blica o sacrifício da minha tranqüilidade.” (Morus, 1972, 19).

As razões são o belicismo dos go-vernantes a par da sua negligência com a

administração, e a imprestabilidade dos conselhos dos soberanos, que assim retrata – usando, certamente, da sua experiência prática na matéria:

“Dos seus membros, uns calam-se por inépcia, e esses precisariam até de ser eles próprios aconselhados. Outros são mais dotados e sabem que o são, mas com-partilham sempre da opinião dos anteriores que estão em melhores graças, e aplaudem entusiasmados as tolices que estes têm por bem propinar. Vis parasitas só têm uma fi-nalidade: alcançar por meio da lisonja mais mesquinha e criminosa, a protecção do fa-vorito do Rei. Há ainda escravos do amor-próprio, que ouvem apenas a sua própria opinião, coisa nada para admirar porque a natureza leva cada homem a afagar amoro-samente aquilo mesmo que cria.” (Morus, 1972, pp.19-20).

A descrição é também demorada, mas dela se conclui que os conselhos são domi-nados pela inveja, o interesse e a vaidade, sendo freqüente a invocação da autoridade do passado para vetar as novidades e per-sistir no imobilismo (nesse tempo ainda não havia o vício simétrico, de tudo querer revolucionar, mais próprio de tempos ul-teriores). E, antes de começar o seu relato sobre a Inglaterra, Hitlodeu conclui que por toda a parte por onde andou encontrou esses tipos de conselheiros: “pusilânimes, tontos e vaidosos” (Morus, 1972, 20).

O relato e diálogo seguintes vão dar oportunidade a Moro de criticar as causas dos males sociais ingleses. Explicando o crime por razões de pauperismo, opon-do-se às penas mais severas (desde logo à pena de morte para o roubo) como po-tenciadoras de mais crimes (Morus, 1972, 33), discutindo quais as melhores penas (e inclinando-se para o trabalho, que poderia até ser livre), verberando o luxo e outros vícios (Morus, 1972, 29), etc. E vai Rafael abonando as suas opiniões com exemplos

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de outros povos por onde teria passado. Por exemplo, os Macários, vizinhos dos Uto-pianos, obrigam o seu rei a um juramento, na sua tomada de posse, que o impossibilita da avareza, porquanto promete não poder guardar nos seus cofres mais de mil libras de ouro ou o equivalente em prata (Morus, 1972, 52). Fazendo assim jus àquela ideia de que os príncipes ricos fazem os povos miseráveis, e os príncipes pobres podem manter os seus povos na abastança.

Nas páginas finais do Livro I, avança a ideia da comunidade dos bens (solução radical, porque os paliativos redistributivos e de restrição aos abusos não funcionam, como discute (Morus, 1972, 59), lembran-do entretanto que Jesus cometeu aos após-tolos a missão de pregar alto e bom som a Boa Nova. E estas máximas, avança o jurista, governante e santo da Igreja Cató-lica, Apostólica e Romana, Tomás Moro, e com elas se sintetiza o essencial do seu pensamento político; o Livro II – como dissemos já – é só uma aplicação concreti-zadora dos princípios:

“Muitas vezes até acontece que a sorte do rico devia caber ao pobre. Não há ricos avaros, imorais e inúteis? Pobres simples e modestos, cuja indústria e traba-lho aproveitam ao Estado, sem vantagem para eles próprios?

Eis o que invencivelmente me con-vence de que a única maneira de distribuir os bens com equanimidade e justiça, ins-tituindo a felicidade do género humano, é a abolição da propriedade. Enquanto o di-reito de propriedade for o fundamento do edifício social, a classe mais numerosa e mais estimável só terá que partilhar misé-ria, tormentos e desespero.” (Morus, 1972, pp- 58-59).

Quase no final da pormenorizada descrição da Utopia, volta Moro, pela voz de Hitlodeu, ao seu tema da igualdade, de novo criticando as sociedades reais:

“Os ricos diminuem todos os dias de uma ou de outra maneira o salário dos po-bres não só com fraudes de vária natureza, mas por meio de leis especiais. Tão mal re-compensar aqueles que mais merecem da república afigura-se, antes de mais nada, crueldade evidente (…)

Eis por que, quando considero e ob-servo as mais florescentes repúblicas de hoje, não vejo nelas, assim Deus me per-doe!, senão uma conspiração dos ricos, que realizam o melhor possível os seus ne-gócios acobertados sob o nome e faustoso título de república. (…) Estas maquinações decretadas pelos ricos em nome do Estado e por conseguinte em nome dos pobres, também, tornam-se finalmente em leis.” (Morus, 1972, 169-170).

E quase a terminar o seu discurso, Moro revela a sua fonte, que não é, obvia-mente, sequer Karl Marx, nesta significati-va passagem:

“Creio até que há muito tempo o gé-nero humano teria abraçado as leis da re-pública utopiana, quer no próprio interes-se, quer para obedecer à palavra de Cristo, porque a palavra do Salvador não podia ignorar o que há de mais útil aos homens, e a sua divina bondade deve ter-lhes aconse-lhado o que sabia ser bom e perfeito.

Mas o orgulho, essa paixão feroz, rai-nha e mãe de todas as chagas sociais, opõe invencível resistência a essa conversão dos povos. Nem o orgulho seria o que é se não houvesse desgraçados a insultar e a tratar como escravos, se o luxo e a felicidade não fossem fruto das angústias da miséria, e se a exibição das riquezas não torturasse a indigência e lhe acentuasse o desespero.” (Morus, 1972, 172).

Com este pensamento, Moro repre-senta ao mesmo tempo a liberdade e a igualdade (embora esta na sua versão mais extrema – mas curiosamente de um iguali-tarismo quimérico baseado na comunidade

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cristã, proposta realmente rara): a integra-lidade do homem livre, que se não verga ante os poderes contra a sua consciência, e o teorizador de uma cidade nova, de ho-mens iguais. Pagou com a cabeça a luta pela primeira, e deixou sobre a segunda um livro que o imortalizou.

5. Desafios Constitucionais

No plano da teoria constitucional, e vendo o seu tempo ao mesmo tempo de-terminados pelos pré-juízos e pós-juízos do nosso tempo, assim como procurando compreender a realidade e as circunstân-cias daquele que foi o seu, os mais clás-sicos problemas que Moro nos coloca são os das ligações do Estado com a Igreja, e o dos limites dos poderes do monarca e do legislativo, como sabemos.

As recentes agruras da Teoria Cons-titucional e do Estado suscitadas pelo empreendimento de uma Constituição europeia codificada levam-nos a recordar uma imagem como que “antecipadora” de Tomás Moro, nesta sua inesgotavelmente inspiradora Utopia, que etimologicamente significa “sem lugar”: pois se a capital da ilha é Amaurota, cidade da bruma (sonho, ilusão), o rio que a banha é o Anidro – sem água. E por isso (interessante lição para a teoria do Estado europeia) o príncipe que governa a comunidade é Ademo: sem povo. Príncipe sem povo, Europa sem povo Europeu… Mas seria efabular demais con-vocar aqui seriamente Moro a depor nes-ta questão, prejudicada pelo fogo da sua candente actualidade. E, evidentemente, o facto de não haver povo europeu não quer dizer que não haja cidadãos… Invocamos obviamente o exemplo cum grano salis.

Outra questão, também recente, convocará, porém, a nossa atenção. É que emergiu não há muito um novo problema constitucional (embora nem sempre se note que assim o é), que aliás se imbricou

na questão da própria personalidade e do “eu” mais profundo de Tomás Moro. Ha-bituamo-nos, na verdade, como salienta Martz (1990, 3 ss.), a uma personagem moldada pela clássica biografia de R. W. Chambers (1981), ou do filme não menos clássico de Robert Bolt A Man for all Se-asons. Contudo, essa imagem seria abala-da por uma polémica de grande impacto e ecos protagonizada fundamentalmente pelas novas visões do crítico G. R. Elton (1974, 23-31), e do biógrafo contempo-râneo Richard Marius (1984). A que mais recentemente James Wood empresta a sua verve, sentenciando, no final de um muito crítico ensaio (em que, além do mais, nem o biógrafo Peter Ackroyd, muito mais pró-ximo do que Chambers da metodologia e da deontologia historiográficas correntes, será poupado):

“On one of those sides was Sir Tho-mas More, cruel in punishment, evasive in argument, lusty for power, and repressive in politics. He betrayed Christianity when he led it so violently into court politics, and he betrayed politics when he surrendered it so meekly to the defence of Catholicism. Abo-ve all, he betrayed his humanity when he surrendered it to the alarms of God.” (http://www.luminarium.org/renlit/wood.htm)

E o mais decisivo anátema será o próprio título do texto que acabámos de citar, propositadamente apontando ao co-ração do mito: A Man for one Season.

Já Louis L. Martz é um dos que pro-curam reabilitar a visão tradicional de Moro como um sereno letrado humanista e jurista, pleno de sabedoria, honestidade, cuja única inflexibilidade vai para o erro (e não para os que erram), e que no limite prefere a morte à afronta à verdade (e à religião que nela inclui como ponto fundamental).

Mas de que se trata, então?Fundamentalmente de uma acusação

que hoje cala fundo. Uma acusação que re-mete para aquilo a que hoje chamaríamos

Paulo FeRReiRa Da Cunha

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violação dos direitos humanos, designa-damente desrespeito pela liberdade reli-giosa. Moro é acusado de inflexibilidade, intolerância, histeria no ataque não só teó-rico (nas suas polémicas, que atingem até Lutero), como prático (estando compro-vada a sua participação em metade – mas realmente são três – dos casos de heresia julgados em Inglaterra durante o tempo em que foi chanceler). Citam-se passagens em que se detecta fúria, ou sanha de inquisidor contra os hereges, para quem consideraria justo que fossem queimados vivos, mas alega-se, de outra banda, constituírem tais expressões apenas a tradução desse som-brio contentamento com a punição da jus-tiça quando atinge quem a merece (ou se julga merecê-la).

Abalar o mito de Tomás Moro é sério empreendimento. Tal como esses mártires da Justiça, como Antígona, ou António, do Mercador de Veneza shakespearea-no (também atingido no recente filme de Michael Radford), para falar dos de fic-ção, ou Boécio, para de novo referir uma personagem histórica, Moro faz parte do nosso imaginário como exemplo. No dia em que as ideologias e as teorias “da sus-peita” (quando não da inversão de valores) dinamitarem por completo os exempla, perigam seriamente as muralhas da cidade ética da política, isto é, a constituição mo-ral ou axiológica, que preside em boa parte a tudo o mais.

A verdade, e desde logo a verdade histórica (que se não pode subsumir nas meras “leituras” ou “interpretações”), exi-ge que se apure realmente se Moro foi um fanático fariseu, atirando primeiras pedras aos heréticos, ou se, pelo contrário, se deve levar a sua eloqüência e a sua participação judicial contra eles à conta de ênfase da sua mestria de estilo e obrigação ex officio, talvez excedida pelo zelo pela verdade re-ligiosa em que firmemente acreditava.

Macular a memória e o mito de Moro com a acusação de contrário aos direitos humanos, e carniceiro que se comprazeria com o fogo e o fumo dos autos-de-fé, vi-braria um profundo golpe na nossa gale-ria de retratos, no nosso álbum de glórias. Mas não podemos esquecer a ferocidade dos costumes político-religiosos da época, e que nem mesmo o santo pode fugir à sua circunstância.

Seja como for, se o mito pode exce-der o Homem, o autor certamente o redime de qualquer acusação de menor fervor an-tropodiqueu ou jushumanista. Porquanto, no melhor governo possível, na sua Uto-pia, não só há muitas religiões dentro da mesma cidade como parece comungarem todas essencialmente de um deísmo ele-mentar – o que seria necessária fonte de acusações de “heresia”, se houvesse nessa bela cidade ideal um tal conceito. No con-tacto com o Cristianismo, narra o viajante interlocutor de Moro que alguns utopianos se converteram, e outros não, vivendo con-tudo em plena harmonia.

Apenas os materialistas ateus são na Utopia discriminados (designadamente das magistraturas e dos lugares públicos), não em nome da religião, mas “da moral” (e realmente como forma de “prevenção”) – pois tal negação da divindade parece a Moro ser sinal de que, só tendo como freio o código penal, teriam mais tendência a, podendo, ocultamente iludirem as leis e praticarem actos condenáveis.

Ainda aqui, porém, se vê o ar do tempo, a que se não foge. Ainda durante muito tempo a própria “tolerância” será “intolerante” para uns tantos. Desde logo a de Althusius já o era (v. as interpretações de Touchard, 1970, III, 71-72, e Kamen, 1968), e a de Locke também.

E será por estas e por outras que o mesmo Tomás Moro, diabolizado por uns como caçador de luteranos, será por outros alçado a primeiro grande defensor da mo-

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derna liberdade religiosa e se, pelas suas ideias económicas e sociais um socialista, pelas suas vistas permissivas no mais alto sentido, um precursor do liberalismo.

Neste último sentido vai a interpre-tação de um Kessler (2002, 207 ss.), que afirma:

“Thomas More advocated religious freedom in Utopia to promote civic pe-ace in Christendom and to help unify his fractious Catholic Church. In doing so, he set forth a plan for managing church-state relations that is a precursor to liberal ap-proaches in this area. Most scholars locate the origins of modem religious freedom in Protestant theology and its first mature arti-culation in Locke’s A Letter on Toleration. This reading of Utopia shows that modem religious freedom has Catholic, Renaissan-ce roots.” (Kessler, 2002, 207 ss.).

Eis, pois, que Tomás Moro encontra em definitivo, simbólica e analogicamen-te, a situação singular da doutrina Cons-titucional nos nossos dias. Na verdade, o conflito das interpretações era sobretudo até aqui relacionado com o teor e a profun-didade do Socialismo ou comunismo do autor, como sintetizaria um Peter Wenzel (http://webdoc.gwdg.de/edoc/ia/eese/ar-tic96/wenzel/10_96.html#Morus). Agora alcançou, como vimos, o cerne do próprio carácter de Moro, em relação com a ques-tão da liberdade religiosa.

Recordemos entretanto o que se pas-sou da banda do Direito Constitucional, e para isso bastará que nos limitemos ao que ocorreu em Portugal: se ainda há cinqüenta anos, o conceito de constituição (mesmo já com Marcello Caetano, que a sensibilizou para a Ciência e a Sociologia políticas) ainda eram a de uma doutrina da forma jurídica do Estado, com muito de positi-vismo e quase nula permeabilidade à ideia de constituição natural e do seu conceito histórico-universal, a evolução foi-se ope-

rando, tendo tido como cume problemático a síntese de Gomes Canotilho, que decisi-vamente liberta, em Portugal, o universo constitucional da perspectiva definitório-positivista dogmática:

“A Constituição é um estatuto refle-xivo que, através de certos procedimentos, do apelo a auto-regulações, de sugestões no sentido da evolução político-social permite a existência de uma pluralidade de opções políticas, a compatibilização dos dissensos e possibilidade de vários jogos políticos, a garantia da mudança através da construção de rupturas.” (Canotilho, 1991, 14).

Ao mito mais ou menos unitário, seja do Estado (de que falou Cassirer), seja do herói-mártir, sucede, de facto, um plura-lismo interpretativo, que ainda não abala decisivamente o segundo, mas que já se não pode ignorar: assim como a crise do Estado e as novidades na Constituição.

6. Conclusão

O facto de Moro poder ser interpre-tado como um liberal, um socialista, um católico, um humanista, e todos estes atri-butos juntos, ou alguns deles, torna-o sim-pático aos olhos de muitos, e recentemente sobretudo, antipático aos olhos de alguns. Independentemente dessas aversões de cardápio, que, quais reflexos condiciona-dos, imediatamente saltam por causa dos rótulos e suas conotações, não esqueçamos que as utopias são utopias, mesmo a “uto-pia” de Moro. M. Delcourt (apud Cheva-lier, I, 1982, 283) agudamente se pergunta-ria como um espírito folgazão como o do autor da Utopia se conseguiria haver com a estrita disciplina da sua cidade ideal. A tal parece responder Marius, o biógrafo ico-noclasta, com estas pesadas palavras:

“This was a man of stern tempera-ment, and his Utopia suits the rest of his life. Nothing in Utopia is more like him than the Utopian law that anyone convicted twice of

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Paulo FeRReiRa Da Cunha

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adultery will suffer the penalty of death. He was a man who considered the monastery but decided, as Erasmus said, to be a good husband rather than a bad priest. I have long maintained that the commonwealth of Uto-pia has the look of a monastic compound where marriage is allowed but strictly con-trolled so that conjugal relations relieve sexual needs without creating any genuine bonds of intimacy between husbands and wives.” (Marius, 1995).

Embora pessoalmente nos não seja simpático o empreendimento desmitifica-dor de Moro, desde logo pelo símbolo de luta contra o poder arbitrário que – seja como for – tem efectivamente representa-do, não podemos, contudo, deixar de dar razão a este crítico. Há na Utopia, em toda a utopia, um dogmatismo e um raciona-lismo geométricos ou geometrizantes que são o contrário da certamente caótica mas contudo livre natureza dos homens reais. E é essa luta contra a natureza, em que a heresia é possível, que choca na mente su-perior de Moro.

Mas o problema subsiste: não deve a cultura (o espírito, a humanidade) superar e por vezes para isso opor-se à simples nature-za? Não é o direito constitucional a clausura jurídica do feroz tigre da política? Não são o silício e o chicote de Moro o seu primeiro carrasco? Ou o seu primeiro libertador? São questões demasiado complexas para serem respondidas, juntas ou separadas. Mas são questões para ir colocando.

No final desta demanda, fica decerto a sensação de que, de tudo, do que menos se terá falado foi de Cristianismo: mas ele é, quando falamos em Tomás Moro, o pano de fundo de tudo o mais. E com aquela ca-racterística dupla, de ser de Cristo e de ser ao mesmo tempo “-ismo”. Como se Cristo pudesse caber ou ser traduzido por “-is-mos”, por melhores que sejam.

E nessa oposição afinal se resume a dicotomia que perpassa todo o debate: os “-ismos” são de uma estação só…

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LION IN WINTER

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Paulo FeRReiRa Da Cunha

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