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1 lago Rodrigues Um nome para o Teatro Um Outro Fimpara A Menina Júlia, a nova criação de Tiago Rodrigues, estreia a 1 de março, no Teatro Nacional D. Maria II (TNDMII), que dirige. Dramaturgo, encenador, ator, uma das vozes mais intensas e dos principais protagonistas da cena teatral portuguesa, distinguido com o Prémio Europa de Teatro, revisita neste espetáculo o clássico de Strindberg, continuando a história e descobrindo as personagens muitos anos mais tarde e, através delas, as mudanças do mundo, como adianta ao jl, numa entrevista em que fala também do seu percurso, nos vários aspetos da sua criatividade, do TNDMII e do que hoje representa, do teatro em Portugal. Ao que juntamos testemunhos de criadores, críticos e estudiosos do teatro sobre o seu trabalho Tiago Rodr lgues "Gosto da tradição muito teatral da reescrita, do voltar as historias' Maria Leonor Nunes N Nunca pensa "onde quer chegar" - a "lógica da carreira" não lhe diz nada - , mas sabe o que o faz correr: o teatro, em todas as frentes. É ator, encenador, dramaturgo, produtor e, desde 2014, diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II (TNDMII). E se não tem "metas", não lhe faltam planos, projetos, desafios, ideias e planos. Tiago Rodrigues, 42 anos, é um dos criadores de que se faz a renovação do teatro em Portugal. Antes de se decidir pelos estudos teatrais, na Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC), expe- rimentou o jornalismo no jornal Grande Amadora, onde dirigiu o su- plemento chamado Mundo Perfeito. E deixaria o curso para rumar à Bélgica, onde trabalhou na compa- nhia tg STAN e na escola de dança contemporânea PARTS, da coreó- grafa Arme Teresa De Keersmaeker. Tem lecionado a convite de várias escolas de artes europeias e foi representado em mais de uma dezena de países, estando os seus textos quase todos publicados em França.

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Page 1: 1 Rodrigues nome para o Teatro1 lago Rodrigues Um nome para o Teatro Um Outro Fimpara A Menina Júlia, a nova criação de Tiago Rodrigues, estreia a 1 de março, no Teatro Nacional

1 lago RodriguesUm nome para o TeatroUm Outro Fimpara A Menina Júlia, a nova criação de Tiago Rodrigues, estreia a 1 de março,no Teatro Nacional D. Maria II (TNDMII), que dirige. Dramaturgo, encenador, ator, uma das

vozes mais intensas e dos principais protagonistas da cena teatral portuguesa, distinguidocom o Prémio Europa de Teatro, revisita neste espetáculo o clássico de Strindberg, continuando

a história e descobrindo as personagens muitos anos mais tarde e, através delas, as mudançasdo mundo, como adianta ao jl, numa entrevista em que fala também do seu percurso, nos vários

aspetos da sua criatividade, do TNDMII e do que hoje representa, do teatro em Portugal.Ao que juntamos testemunhos de criadores, críticos e estudiosos do teatro sobre o seu trabalho

Tiago Rodr lgues "Gosto da tradição muito teatral da reescrita, do voltar as historias'

Maria Leonor NunesNNunca pensa "onde quer chegar"- a "lógica da carreira" não lhediz nada -

, mas sabe o que o fazcorrer: o teatro, em todas as frentes.É ator, encenador, dramaturgo,produtor e, desde 2014, diretorartístico do Teatro Nacional D.Maria II (TNDMII). E se não tem"metas", não lhe faltam planos,projetos, desafios, ideias e planos.Tiago Rodrigues, 42 anos, é um dos

criadores de que se faz a renovaçãodo teatro em Portugal.

Antes de se decidir pelos estudos

teatrais, na Escola Superior deTeatro e Cinema (ESTC), expe-rimentou o jornalismo no jornalGrande Amadora, onde dirigiu o su-plemento chamado Mundo Perfeito.E deixaria o curso para rumar à

Bélgica, onde trabalhou na compa-nhia tg STAN e na escola de dançacontemporânea PARTS, da coreó-

grafa Arme Teresa De Keersmaeker.Tem lecionado a convite de váriasescolas de artes europeias e foi

já representado em mais de umadezena de países, estando os seus

textos quase todos publicados em

França.

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A dimensão internacional do seu

trabalho - acaba de apresentar emToulouse By Heart, uma das suas

muitas apresentações fora do pais, a

que seguirá Austrália, Itália, Canadá

e Espanha - foi sublinhada no ano

passado com a atribuição do Prémio

Europa de Teatro / Novas Realidades

Teatrais.O qualificativo "novo" assenta-

-lhe, de resto, como uma luva e temreescrito não só alguns clássicos,nas suas criações, como reinven-tado o próprio modo do fazer doteatro em Portugal. Em 2003, com

Magda Bizarro, criou a sua compa-nhia, Mundo Perfeito, e apresentouespetáculos como Tristeza e Alegriana Vida das Girafas, Se uma Janela se

Abrisse, Três Dedos Abaixo do Joelho,

Bovary ou Sopro. Também escreve

para cinema e televisão.À frente do TNDMII, tem igual-

mente promovido a "renovação"

e a "abertura", a "qualidade" e a

"pluralidade", batendo-se por umacada vez maior "democratização"do teatro, que quer igualmente mais

"inclusivo", "acessível" e "paritá-rio". Porque o público do D. Maria,assevera, é o "povo português".Leva agora à cena, na Sala Estúdiodo TNDMII, Um Outro Fímpara aMenina Júlia, de 1 a 24 de março, em

que imagina uma narrativa diferen-te, "do nosso tempo", para conti-nuar a peça de August Strindberg,escrita em 1889.

E no palco e fora dele, bate -se

sempre para que também a históriado teatro português continue deoutra maneira.Jornal de Letras: Foi um final feliz

que procurou para A Menina Júlia?

Tiago Rodrigues: Não se tratou tantode dar um final feliz, antes plausível,em que a Menina Júlia não fosse

obrigada a suicidar-se por pressãomoral, religiosa, social. Na realidade,o próprio Strindberg não o mostra,embora no-lo sugira. Ao contráriode outras peças que já reescrevi,como António e Cleópatra, ou mes-mo textos que não são originalmentede teatro, como Madame Bovary eAna Karenina, pensei que mais im-portante do que adaptar A MeninaJúlia era continuá-la.À luz do nosso tempo, para maioratualidade?A ideia não foi atualizar o queStrindberg escreveu, mas continuara história e descobrir as persona-

gens, Júlia, João e Cristina, 30 anosmais tarde, tentar perceber quepessoas eram e, através delas, comoé que o mundo teria mudado. Nestes

130 anos que permeiam entre aescrita de A Menina Júlia e o tempoem que vivemos, a sociedade nãose terá transformado radicalmen-te, nos seus valores e princípios,mas já se transformou o suficiente

para muito daquilo ter deixado defazer sentido. Ainda assim, não o

bastante para que tudo seja já umaabstração, algo muito distante denós. De alguma forma, parece-memais fácil encontrar a atualidade emSófocles ou Shakespeare, porqueestão mesmo muito longe e portan-to o que é atual salta à vista, por ser

universal, enquanto em Strindberg,Tchekov ou Ibsen tudo nos parecedaquele tempo, não do nosso. Por

isso, pensei que era melhor mudaraquele final trágico, o facto de a

Menina Júlia não ter outra opçãoa não ser o suicídio. Acho que isso

corresponde ao que mudou no

nosso mundo.

Porque a pressão religiosa, porexemplo, não tem o mesmo peso?A questão religiosa está presentena peça sobretudo na forma como

aquela jovem menina pode ser umescândalo, por causa da moral do-minante. Certamente, em algumasgeografias do mundo, isso podecontinuar a acontecer. Da mesmaforma, se poderá pôr a questão declasse. A minha leitura, de quemcresceu nos subúrbios de Lisboa e

está hoje a fazer a peça com atores

na Praça do Rossio, é de que embora

possamos ter uma relação próxi-ma sobretudo com as questões de

classe, mas também religiosas, o

que mudou na sociedade já nosfaz parecer antiga a forma como

Strindberg nos apresenta a história.Da mesma forma que a história deum namoro na Covilhã, nos anos

30, nos parecerá também. Esta ideiade uma coisa que é passada, mas

contemporânea, porque a nossa

sociedade tem mudado vertiginosa-mente, levou-me a pensar que se a

Menina Júlia não se se tivesse suici-

dado, iria chegar a uma idade mais

madura, já com filhos crescidos, e

olhar para este momento, pensando

que tinha estado quase a fazer umgrande disparate, dando imensa

importância a coisas que o tempo,a evolução da sociedade e também

pessoal se encarregariam de tornarmuito relativas.

TRANSMISSÃO GERACIONALO que o motiva particularmente nareescrita de textos para a cena?Gosto da tradição muito teatral dareescrita, do voltar às histórias. Areescrita das peças de outros, mastambém a permanente inscrição nomito. A seguir às várias Ifigénias dos

trágicos gregos temos as Ifigéniasde muitos outros autores ao longoda História. Vai-se voltando à

mesma história para a contar comas palavras de cada tempo. E a ideia

que tive, desde logo, em relação aesta Menina Júlia, foi a de quererconhecê-la mais tarde. Aliás, todas

as personagens e sobretudo saber o

que diriam dos jovens que tinhamsido.Essa vontade era antiga? O que ointeressou nesta peça?Interessou-me muito o olhar ex-cessivo, radical, sobre a juventude.Um pouco como se pudéssemosencontrar Antígona, outra rebelde

jovem, ou Romeu e Julieta, para fa-lar de outros trágicos adolescentes,e os fossemos conhecer aos 40 anos

para os ouvir sobre o que viveram.

44A felicidade pode serqualquer coisa que se

encontra enquantose tenta cumprir umsonho e que acaba

por ser mais

importante do que eleEssas são figuras bigger than life,a Menina Júlia e o João estão mais

próximas de nós, à escala da nossavida. Quase poderiam ser do nosso

quotidiano e trata- se também deuma espécie de amor impossível.Strindberg apresenta-os comoanti- heróis, não são pessoas agra-dáveis por quem nos apaixonemosfacilmente, embora sejam fascinantes. Se eles tivessem ficado juntos,quanto teriam que ter negociadocom a vida? Quis também tratar a

ideia de felicidade, não necessaria-mente a do sonho juvenil.

Em que sentido?A felicidade pode ser qualquer coisa

que se encontra enquanto se tenta

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cumprir um sonho e que acaba porser mais importante do que ele. É a

ideia de um percurso de vida como

uma negociação que se vai fazendocom os nosso princípios, sonhos,

utopias. . . Isto é bem diferente dacartilha que imaginamos para nós

próprios ainda jovens, se calhardemasiado cedo porque ainda nãovivemos o suficiente. Na peça do

Strindberg, João tem um sonho deascensão social, é quase como umpostal a ideia de fugirem e irem paraum hotel chique à beira do lago de

Como. A primeira coisa que penseifoi que se eles fugissem realmente,se a Júlia não se suicidasse, talvezfossem antes para uma pensãoresidencial à beira de uma estação decomboios. Aí lembrei-me dos meusavós...

Porquê?Eles tinham realmente umaresidencial junto da estação decomboios, na Guarda, e lembrei-mea propósito da ideia de felicidadedo quotidiano, enquanto aceitação,não como êxtase, mas como paz.Discutimos muito, nos ensaios, o

ter que baixar por vezes a fasquiaem termos de ambição para ficarmais próximo da realização pessoal,pensando mesmo nos desafios dotrabalho de ator. Falámos muitotambém da passagem do tempo, da

noção de percurso de vida.

Uma forma de refletir sobre o

tempo?Sim, sobre a forma como olhamos

para o mundo com o passar do

tempo e o modo como o mundonos vai tratando. Falando do João,da Júlia, da Cristina, dos temas da

peça, da questão do desejo, muitoimportante, e da construção do

futuro, também falamos de nós.

Sobretudo porque estamos numacasa onde temos cinco atores mais

experientes, dos quais participamneste espetáculo o Manuel Coelho, a

Paula Mora e a Lúcia Maria, e esta-

giários da Escola Superior de Teatro

e Cinema, que estão connosco todosos anos, a Helena Caldeira e a InêsDias, nesta peça, em que convi-dei ainda o Vicente Wallenstein a

juntar-se a nós. O D. Maria é umteatro com um longo passado, em

que a questão da memória estámuito presente, com trabalhadores

que estão na casa há muitos anos.É também um lugar de criação, do

novo, cada vez com mais no-vas companhias e novos atores.

Quotidianamente sente -se essaideia de transmissão que quis paraeste espetáculo. Uma transmissão

geracional que é um fenómeno queencontramos muito no teatro, nosbastidores, nas salas de ensaio, e

no palco. O que proponho em UmOutro Fim para a Menina Júlia é a

coexistência de dois tempos, das

mesmas personagens em temposdiferentes e muito cúmplices. Voufazer coabitar aquilo em que nos

tornamos com o que um dia fomos.

Tal como na vida?Só que não é visível. Em muitosmomentos, sou eu, o Tiago com 42anos acabados de fazer, que está a

responder, mas noutros, sei que as

respostas são do Tiago com 18 anos,que não sabia se ia concorrer ounão à Escola Superior de Teatro eCinema. O único que é visto e ouvi-do é o Tiago de hoje... mas no teatroé possível fazer coexistir temposdiferentes na mesma personagem. E

falar de como crescemos, amadure-cemos e envelhecemos, dos sonhos

que temos, das promessas que fize-mos a nós próprios e ao mundo.

SEM METASComo vê hoje os sonhos dos 18

anos?Acho que não está a correr nadama1.... (riso) O teatro não era umsonho de infância ou mesmo de

adolescência. Dava- me muito

prazer desde que comecei a experimentá-10, na Escola Secundáriada Amadora e, aos poucos, foiganhando espaço. Mas foi já depoisdas primeiras peças, em 1998, 1999,que percebi que era o que iria fazer.E hoje continuo a fazê-10, com omesmo espírito, com grande desejoe urgência, mas sem nenhumacerteza de que daqui a quatro oucinco anos o continuarei a fazer. E

que ainda seja a coisa que mais meentusiasma.Mas hoje é?É. E nas várias vertentes em queme envolvo nesta arte. Mas nunca

penso onde gostaria de chegar. Por

exemplo, a ideia de estar na direçãoartística do TNDMII só me ocorreudepois de ter sido convidado. Nesse

sentido, não tenho um percursoplaneado, vou apenas tentando

sempre arranjar projetos para a

frente, nem que seja pelo medo, que

é crónico nos artistas de teatro, denão ter trabalho daqui a três meses.Tento planear o trabalho para terum horizonte de ocupação o mais

longe possível. E desde que come-cei a trabalhar profissionalmente,há 20/21 anos, estou sempre muitoocupado. Tenho essa sorte, tambémresultante de um trabalho constantee justamente da permanente tentati-va de planear, mas sem definir umameta. E parece-me que é assim quefunciona com a maior parte das pes-soas apaixonadas por fazer teatro. É

uma coisa tão efémera, vive-se paracada espetáculo, para a apresentaçãode cada noite. Claro que o percursoé importante, mas não numa lógicade carreira. Consigo perfeitamenteimaginar, por alguma circunstância,perder o prazer do teatro e dedicar --me a outra coisa. Mas enquantome der o prazer que me dá hoje, voucontinuar a esfolar-me... (riso)

Poderá um dia só escrever?Não sei. Na verdade, não tenho

planos para um dia em que deixe defazer teatro. Talvez nunca aconteça.Costumo dizer por piada que um diame hei de dedicar à restauração.Gostava de ter um restaurante?Claro que as palavras me interessammuito, mas a comida também. Tudotem a ver com paixões, desejos. . .

Também gosta de cozinhar ou só decomer?Gosto imenso de cozinhar e do am-biente dos restaurantes. E dos cafés.

Faço muito trabalho em cafés. É umabrincadeira imaginar que podia terum restaurante, mas consigo acredi-tar que seria feliz sem fazer teatro.E é feliz hoje a fazer teatro?Sim. Estou sobretudo muito en-tusiasmado, não só com a minhacriação artística, mas também como facto de estar a frente do D. Maria.RENOVAR E DEMOCRATIZARJá vai no segundo mandato. Quebalanço faz destes anos?Estou muito contente com o

trabalho que conseguimos fazer,mas o que me entusiasma é queainda não se fez tudo o que temabsolutamente de ser feito. Tenhomais dois anos pela frente, porqueo meu segundo mandato terminaem 2020, duas temporadas parapreparar e apresentar publicamentee que encaro com muito entusias-mo. Acho que fizemos muito com os

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Teatro "Não tenho um percurso planeado, vou apenas tentando sempre arranjar projetos para a frente, nem que seja pelomedo, que é crónico nos artistas de teatro, de não ter trabalho daqui a três meses"

recursos disponíveis e as condiçõesque existem.

Renovação foi uma ideia-chave?Claro que quisemos renovar, emtermos artísticos, a programação,o que isso implicou abrir a muitosartistas portugueses que nuncatinham trabalhado no D. Maria 11.

Também uma abertura em termosestéticos e de reportório.Uma abertura mesmo aos novís-simos, por exemplo, com o cicloRecém-Nascidos.Sim, às companhias que estão afazer as suas primeiras peças. Mastambém reforçamos os estágiosremunerados profissionais paraestudantes da ESTC, e criámosa Bolsa Amélia Rey Colaço parajovens criadores. A ideia da emer-gência teve um lugar central, talcomo o trabalho para a infância e

juventude foi sistematizado, for-talecido e é cada vez mais expres-sivo, tanto pela vinda de crianças,jovens e famílias ao teatro, comopela nossa presença em contextoescolar, por todo o país. Houveigualmente uma forma diferente

de encarar a missão dramatúrgica e da produção de escrita parateatro em português.Com a criação de um laboratório deescrita teatral.E não só. Cerca de metade dos

espetáculos que apresentámosforam textos inéditos em português.Essa tem sido uma marca e tam-bém fizemos uma aposta forte nadiversificação de públicos atravésda programação e do trabalho de

mediação que vamos fazendo, na

ligação à comunidade. Quisemosfazer entrar as pessoas no teatro e

com que o teatro saísse do edifício e

estivesse de outra forma na cidade.Aliás, nas cidades, porque sendo

nacional, não deve estar confinadoa Lisboa, embora haja naturalmenteuma relação mais estreita.Foi esse o objetivo da criação darede Eunice?Foi. E tem-nos levado regular-mente a muitas comunidadesem todo o território. Queremoscontinuar a fazê-lo no futuro.Sobretudo, acho que diversifica-mos muito os públicos. Mas temosainda, nesse sentido, algumas

preocupações.Quais?

É muito importante promovera pluralidade, mas também a

inclusão, a acessibilidade parademocratizar verdadeiramente oacesso ao teatro e não pensarmosapenas nos públicos que já o são.Se abrimos as portas a diversospúblicos, acredito que ainda nãofizemos o suficiente para que os

portugueses que ainda não seentendam como espectadoresteatrais, cidadãos com hábitosculturais, o possam fazer atra-vés do Nacional. Queremos seruma chave de entrada no teatro,na fruição artística e cultural. É

com essas pessoas que queremosfalar de uma forma mais cuidada.Daí o projeto Primeira Vez, queorganiza grupos de espectadorespara virem pela primeira vez aoD. Maria, e depois voltarem, aolongo da temporada, para visitas

guiadas, encontros com artistasou ver espetáculos. Essa é umaaposta forte na democratização deuma forma muito humana.

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PARIDADEE REPRESENTATWIDADEQue outras apostas têm para os

próximos anos?Há coisas que só agora conseguimoscomeçar a tratar, porque encon-trámos espaço de reflexão e formas

de funcionamento. Eu aprendimuito com a equipa do teatro. E há

questões simples que precisamosencarar, como a falta de represen-tatividade das negras e dos negrosnos palcos, nas direções. Aí, o tea-tro tem a obrigação de dar o exem-plo. Feitas as contas, imagino quetenham estado mais atores negrosem palco, no D. Maria, nos últimos

quatro anos, do que provavelmenteem todo o século anterior. Mas não

chega. Temos de abrir as institui-ções a essa representatividade. Damesma maneira, ainda não conse-guimos a paridade, no que toca, porexemplo, a mulheres autoras ou a

dirigir e encenar. Também é verda-de que o aumento dos últimos anosé abissal em relação ao passado,mas não é suficiente. Felizmente,vivemos num país e numa comu-nidade artística que promove cadavez mais esse debate. Queremosfazer parte dele e que o trabalho dedemocratização do teatro vá mais

longe. E há muitos artistas com os

quais ainda não trabalhámos e comquem gostaríamos de contar, nalógica de uma programação artísti-ca de grandes desafios. Entusiasmonão falta.A direção artística do TNDMII é

mais uma /rente a somar ao seutrabalho multifacetado de criadorteatral. Que significado lhe atribui?É uma enorme responsabilidade e

carga de trabalho, mas que não se

comparam com o prazer que é estarà frente desta equipa, de contactardiariamente com tantos artistasmagníficos e sobretudo ver o teatrocheio como temos visto.Qual tem sido a media de espeta -dores?Normalmente evito publicitar efalar de números, porque podeter um efeito pernicioso. Acreditomesmo que o serviço público decultura não se pode medir apenasem números. Tem um valor queultrapassa largamente o quanti-ficável, como no caso da saúde ouda educação. Mas é verdade quetemos tido uma média de ocupa-ção das salas que ronda os 900/0. E,além da qualidade dos espetáculosapresentados, não podemos deixarde pensar que é uma respostado público ao que temos feito no

sentido da abertura e tambémà confiança, criada pelo traba-lho extraordinário das equipas e

direções anteriores em relação ao

serviço público de teatro prestadopelo D. Maria. Mas o público doTeatro Nacional é o povo por-tuguês e tenho a convicção de

que nos aproximaremos de maisportugueses e portuguesas.DIMENSÃO INTERNACIONALO que essencialmente tem em contaquando desenha a programação?A qualidade, promovendo a biblio-teca viva da grande dramaturgiauniversal, tornando acessíveis os

grandes textos, clássicos e contem-porâneos, promovendo a escritaem português, a experimentação,a relação do teatro com a educa-

-44É muito importantepromoverapluralidade, mastambém a inclusão

para democratizaro acesso ao teatro

Ensaios da peça "A ideia não foi atualizar o que Strindberg escreveu, mas continuar a história e descobrir as personagens30 anos mais tarde"

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ção. Uma programação que sejauma montra do teatro portuguêse mundial mas que possa ser tam-bém um motor do que poderá serno futuro.

Que seja uma política teatral?O D. Maria tem essa missão. E

o grande trabalho de políticacultural é fazer a ponte entre essa

programação e o público. Umaponte de comunicação, por vezesde descodificação, mas que possacriar sentido, pensamento. Temosmuitos espectadores que, mesmo

que queiram apenas vir ao D. Mariater o prazer lúdico, a experiênciafestiva de sair e ir ao teatro, sabem

que vão assistir a criações artísticas

que as regras do mercado não lhes

permitiriam ver de outro modo,porque é um teatro do Estado e lá

poderão ver os espetáculos que nãosobreviveriam segundo as regrascapitalistas do entretenimento. E

essa é uma chave importante para a

programação artística e para o modode a apresentar. Esse é o jogo quecomeço finalmente a perceber comose faz, porque nunca tinha dirigidoum teatro. O 'estágio' está a dar os

seus frutos (riso). Haverá muitíssi-mas novidades nas próximas tem-poradas. E novos desafios no modocomo pensar a política cultural. Irmais longe no território português é

também uma grande ambição.O seu trabalho como criador tem,desde o inicio, uma forte ancora-gem também a nível internacional.Recebeu, no ano passado, o PrémioEuropa - Realidades Teatrais. Teveum significado especial?Sim, foi muito emocionante, tam-bém porque vem premiar quem temtrabalhado comigo todos estes anose os que têm apoiado o meu traba-lho. E veio alertar a opinião públicaportuguesa, os decisores políticos,o público em geral para a impor-tância que o teatro pode ter comoferramenta da nossa comunicaçãocom o mundo. Mais do que aquelabandeira um pouco provinciana da

internacionalização, pensando-seque caso se seja respeitado lá fora é

porque se é realmente bom, que meparece sempre perigosa, para mimtem que ver realmente com a minhaexperiência, com o facto de ter feito

teatro, desde muito cedo, fora de

Portugal. E isso muda a forma de oolhar.De que maneira?Não tem de necessariamente o

desenraizar, porque sempre senti

que tinha raízes muito fortes emPortugal, onde fazia os meus es-petáculos. Da mesma maneira queum escritor português não é menosamoroso com a sua língua por sertraduzido para inglês ou sueco. Aideia que o teatro que fazia podiater uma dimensão fora de portas,que não passava apenas pela língua,foi qualquer coisa que sempre meaumentou muito. E claro que isso

significa também ter outras condi-

ções de trabalho, outra capacidadede produção e de independência emrelação as fontes de financiamentodisponíveis em Portugal. Além deser uma experiência que me enri-quecia artística e intelectualmente,pelo contacto com outras realida-des, artistas e modos de fazer.

Também tem procurado levaralém-fronteiras o D. Maria?Senti-me bastante mandatado,através da rede de parcerias quevinha construindo, para tentardinamizar a internacionalização doD. Maria e de outros artistas atravésdesse percurso. É o que tem acon-tecido. Sem dúvida que o D. Maria

ÂtuaUdade "Seria um desperdício histórico que aquilo que estamos a viverna paixão pela atividade teatral fosse desaproveitado"

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esteve em mais países nos últimos

quatro anos do que nos 170 prece-dentes. E é hoje não só um teatrode acolhimento, mas uma casa de

produção conhecida e tomada emconta no circuito europeu.Com apresentações dessas produ-ções previstas?A internacionalização é um processolento, mas, através do circuito que se

foi criando, outros artistas começama ver o seu percurso internacionalconsolidado. É o caso da RaquelAndré, que tem apresentado, emtoda a Europa e também na Américado Sul, a sua Coleção de Amantes e

outros projetos subsequentes ou do

Miguel Fragata e da Inês Barahona

que vão, por exemplo, a Françacom Montanha Russa. No Festivalde Viena estarão uma produção,Sopro, e duas coproduções do D.

Maria, Ensaio para uma Cartografia,de Mónica Calle, e As Bacantes, de

Marlene Monteiro Freitas. É um dos

mais importantes festivais europeusde artes performativas. Temos tam-bém tentado alargar esta interna-cionalização à escrita, porque somosuma casa da dramaturgia e este ano,a 24 e 25 maio, em Caen, França, o

festival de escrita contemporâneapromovido pelo Le Panta Théâtreserá dedicado a Portugal.Pela primeira vez?Em mais de 20 edições do festi-val. Com três autores convida-dos, Miguel Castro Caldas, JoanaBértholo e Joana Craveiro, queassim vão ter os seus textos tra-duzidos para francês, publicados e

apresentados publicamente. Temostrabalhado no sentido que a inter-nacionalização do teatro portuguêsnão passe apenas pela apresentaçãoe coprodução de espetáculos, mastambém pela tradução, publicaçãoe leitura dos autores nacionais.Aí há ainda um grande trabalho a

fazer, porque é importante que esta

internacionalização do D. Mariatenha alguma perenidade, inde-pendentemente do meu trabalhoartístico, e para que daqui a dois

anos, com outra diretora ou outrodiretor artístico, não perca esta

capacidade de promover o teatro

português lá fora.

MUDANÇA DE PARADIGMAÉ ator, encenador, dramaturgo,produtor. Mas qual a pele em quemelhor se sente?Tenho muitas saudades de trabalharcomo ator, que é o que consideromais difícil, absorvente e que não é

fácil tornar compatível com as múl-tiplas funções que tenho. Escrever,

encenar, são coisas mais fáceis de

compatibilizar com todo o trabalhode organização e liderança da equi-pa, mas o de ator é mais absorven-

te, sobretudo a nível emocional. Só

tenho conseguido fazer o By Heart,não aprendi novo texto, não estreeiuma peça como ator desde quecheguei ao D. Maria.

E qual o lugar da escrita?Foi ganhando um espaço cada vezmais importante na minha relaçãocom a criação teatral, com a feiturados espetáculos. Acho que é um es-

paço de crescimento. Dá-me muito

prazer, mais do que encenar.

Porquê?Enceno porque escrevo, mas é

sobretudo do escrever e imaginaros atores a dizerem aquelas palavrasque surge o espetáculo, as ideias da

encenação.Escreve apenas para a cena ou tam-bém para publicar?A publicação não é algo que procureativamente. Estou mais apaixonadopela escrita para o que vai acontecer

em palco do que pelo seu registo emlivro que, para mim, é sempre um re-síduo, uma memória do espetáculo. Só

quando acho que têm validade comomatéria de leitura. Nem sequer pensona possibilidade de outros os poderemencenar. Tenho mais teatro publicadoem França - praticamente todos os

meus textos - do que em Portugal.Mas não tenho uma relação infeliz coma edição e quando publico um livro,aí tenho cuidados de relojoeiro (riso).E vou começando a editar noutros

países, na Alemanha, em Itália.

De alguma maneira, sente se umprotagonista de uma mudança noteatro que se faz em Portugal?O teatro português é composto de

muitos teatros. Mesmo que falemosde um momento de mudança, en-contramos uma forte diversidade de

vozes, comparativamente com outros

países. Há uma grande autenticidadede projetos e é difícil dizer "isto é o

novo teatro português". Até porquehá várias camadas de tempo. E não

acho que companhias com mais anosde experiência sejam necessaria-mente menos inovadoras e radicaisdo que outras que estão a começar,embora a tendência natural seja que a

renovação venha dos mais novos. Daía importância de fortalecer as condi-

ções com que todas trabalham.

Acha necessário repensar a políticade apoios do Estado?O teatro em Portugal precisa absolu-tamente de uma mudança de para-digma na forma como é financiadoe apoiado. Já passámos muitos anosa discutir esta questão, os decisores

políticos têm de se confrontar com arealidade cultural, há uma pedagogiaque é preciso ser feita sobre o lugarfundamental da cultura numa so-ciedade democrática. E o papel vitalque pode ter hoje na Europa, na so-brevivência dos valores fundamen-tais da paz nos últimos 70 anos. Esse

valor não é encaixável numa folha deExcel. Portanto, os governantes têm

que carregar no acelerador e mudaro modo de financiamento. Seria umdesperdício histórico que aquiloque estamos a viver, em termos de

renovação artística, de abertura de

portas, de refundação do interessedo público e da paixão pela atividade

teatral, fosse desaproveitado por fal-ta de visão e tacanhez. Acho que esta

oportunidade pode ser capitalizada.Porque se com muito pouco, já se faztanta coisa incrível, com algumasideias e mais dinheiro, estamos pre-parados, no teatro português, paradar um salto enorme. JL

44O grande trabalhode política culturalé fazer a ponte entrea programação e opúblico. Uma pontede comunicação

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RigorcriativoCláudia Madeira*( É sempre muito interessanteo exercido de falar acerca de

alguém cujo percurso conhece-mos enquanto criador. Conheçoo percurso do Tiago Rodrigueshá vários anos, vi-o no palco,

enquanto intérprete e encena-dor , ou na plateia a assistir a

espetáculos de outros artistas

e, também, mais recentemen-te a desenvolver o seu papelde Diretor do TNDM II. Neste

conhecimento que tenho do seu

trabalho vi atenção e uma vonta-de de dar voz a outras e diversas

"narrativas" ou "fragmentos derealidade" onde se entrelaçava a

"ficção" e vice-versa. Lembro-me muitas vezes do seu trabalho

Yesterday Man, que apresentouno Festival Alkantara em 2008com Rabih Mroué, sobre a cidadede Beirute, em metamorfose

contínua, sob o olhar de cinco

"Tiagos", cada um com um mapadiferente da cidade. Vi e continuo

a ver diversos espetáculos seus,atentos a pormenores sensíveis.

Sabemos como a burocraciae a gestão mata muitas vezes a

criatividade mas, apesar disso, o

Tiago parece manter um enorme

vigor criativo, pois não só con-vida os criadores e espetadoresa entrar no Teatro que dirigecomo podemos ler essa utopia nafachada do TNDM II: "Há lugarpara todos" . Mas acima de tudocontinua a criar espectáculos

que frequentemente parecemconstruir outras e mais perfeitasrealidades, ji*

Professem e investigadora da Faculdade

de Ciências Sociais e Humanas da

Universidade Navade Lisboa

Contrabandode palavras e ideias

Maria Helena SerôdioII Na sua companhia MundoPerfeito, Tiago Rodrigues regis-tou em 2003 a curiosa criação deuma Stand-up Tragedy, afinal,uma interessante transgres-são à mais afeiçoada expressão"Stand-Up Comedy". E colabo-rou já com diversas companhiasde teatro numa abertura a dife-rentes processos: Artistas Unidos(entre 1998-2000), CITAC,Companhia Maior, Nova Europa,Suburbe e Teatro de Animaçãode Santa Eufemia. Assinale-se,todavia, a sua atenção tambéma estruturas mais "frágeis" (mastalvez não menos entusiastas)com as quais colaborou, como foio caso da Companhia de TeatroJovem, em Gaia (em 2009) noCoro dos maus alunos, ou o da

Companhia de Teatro do Barreirono espectáculo A mulher queparou (2011).

É autor de vários textos parateatro que encenou no âm-bito do Mundo Perfeito como

Urgências 2006 (2006), Apartir de amanhã (2007), Duasmetades (2007), A festa (2008)O que se leva desta vida (2009),ou a peça para uma bailarina e

um pianista: A perna esquerdade Tchaikovski (2015), levada ao

palco pela Companhia Nacionalde Bailado em 2015.

De um modo geral, o envol-vimento de Tiago Rodrigues nacriação do espectáculo implicauma abrangente atenção a todosos processos criativos- da escritaà encenação -, razão pela qualFernando Matos Oliveira lheatribui - com visível justiça - o

epíteto de "escritor de espec-táculos"]. Foi, aliás, a partirdo desafio que lhe dirigiu oTeatro Académico Gil Vicente,

em Coimbra, para o projecto"dramaturgo residente" quesurgiu a publicação em 2013 -pela Imprensa da Universidadede Coimbra - do livro que reúnetrês peças da sua autoria: Trêsdedos abaixo do joelho, Tristezae alegria na vida das girafas e

Coro dos amantes. Saíram, em2017, numa edição do TeatroD. Maria II Como ela morre e

Sopro, que subiram, entretanto,ao palco.

Outra peça sua que tematraído mais atenção - até peloseu título algo enigmático - é

By Heart . Significa, de facto,

"aprender de cor" - que, emportuguês, esbate, embora o use

também, o sentido de "coração".No espectáculo, que ele própriorepresenta, Tiago Rodriguesensina um poema a 10 pessoas.Enquanto o faz , vai desfiandohistórias sobre a sua avó quase --cega, misturadas com episódiossobre escritores e personagensde livros que, de algum modo,estão ligados à sua avó e a ele

próprio. Esses livros tambémestão lá, em palco, dentro decaixotes. E à medida que cada

par de versos vai sendo ensinadoao grupo, vão emergindo liga-ções improváveis entre pessoasconhecidas internacionalmente- como Boris Pasternak - com,por exemplo, uma cozinheira doNorte de Portugal... É, como járeferiu, uma peça que procuraprovar a importância da trans-missão, do "invisível contraban-do de palavras e ideias" que o

guardar de um texto na memóriapode oferecer. E esse éum dos

eixos importantes da sua drama -turgia.ji.

'Professora catedrática da Faculdade de

Letras da Uni. de Lisboa e investigadorado Centro de Estudos Teatrais

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Um outro fim para a Menina Júlia Em estreia no D. Maria II

ConfiarRui Pina Coelho• O trajecto artístico de TiagoRodrigues é um dos mais

exemplares do teatro portu-guês contemporâneo. De umactor que sente a necessidade

urgente de encontrar processoscolaborativos que exigissemuma contribuição de respon-sabilidade horizontal a todos os

participantes num espectáculo,a um actor que decide escrevere interpretar os seus própriostextos, Tiago Rodrigues foiacrescentando à sua práticateatral a escrita e a encenação,

tornando-se um celebrado"écrivain de plateau" .

Mas, creio, o que mais vaiimpaetando no seu teatro e nasua escrita é a incrível con-fiança no futuro e uma pulsãopolítica, de resistência e amor,alicerçada na memória. E isto,parecendo vago, é o que mais

parecemos precisar. Num clima

pós-Brexit, com o ressurgimen-to de sensibilidades de extremadireita e o fascínio por regimestotalitários um pouco por todo o

lado, com o robustecimento demovimentos separatistas ou in-dependentistas, com repetidascrises de refugiados, a Europaparece estar a soçobrar muitos

dos seus antigos fantasmas pa-recem estar a regressar: a into-lerância, o racismo o fascismo...Por isso, lembrar Shakespeare,Molière, Flaubert, Tolstói,Steiner - tal como o faz TiagoRodrigues - não é inocente nemingénuo. É, pelo contrário, umacto político de extrema vitali-dade e urgência.

O músculo do teatro de TiagoRodrigues está, creio, precisa-mente aí: na convicção de que se

preservarmos a herança culturaleuropeia, se a tomarmos comonossa para a contrapormos à

rudeza dos dias, não haverá,nunca, ameaça suficientementeforte para nos derrubar. Das

conquistas humanistas à refle-xão pós-revolução industrial,da cosmovisão isabelina ao rea-lismo russo e francês, do livrearbítrio ao pós-modernismo,é um teatro que homenageia e

problematiza os mais expressi-vos traços identitários europeus.Hoje, numa Europa que procura,justamente, esses traços iden-titários há muito esquecidos, oteatro de Tiago Rodrigues surgecomo um repositório de espe-rança no futuro..n.

"Dramaturgo, professor auxiliar da

Faculdade de Letras da Universidade

de Lisboa, Centro de Estudos de Teatro

daFLUL

A vozde umageraçãoMiguel Moreira• O Tiago é a voz de umageração no teatro. Isso é, paramim, muito claro, porque a

instituição Teatro Nacional,antes de ele assumir a di-reção, estava praticamente

vedada a tudo o que fossemais experimental, o que erauma forma de silenciar umaestética, que, no entanto,continuava a ocupar espaçosa nível nacional e internacio-nal. Não fazia sentido que nãotivesse eco numa casa como oD. Maria.

O Tiago veio precisa-mente dar voz a criadorese companhias, por vezesjá com 20 anos de carrei-ra e que, estranhamente,nunca tinham apresentadoo seu trabalho nessa casa,

que acho que deve ser umlugar o mais abrangentepossível e representantedas artes performativas emPortugal. O teatro e a dançatocam-se tanto hoje, estãotantas vezes juntos, que nãofaz sentido isolar uma artevigente que merece estarnaquele palco.

Nesse aspeto, o Tiago foimuito corajoso. E foi mui-to novo, julgo que com 38anos, dirigir uma instituiçãodaquela importância, o quenunca tinha acontecido.

Coletivamente ainda nãosoubemos fazer da democra-cia um lugar da diversidade.Mas estes anos em que o Tiagotem estado no D. Maria têmsido muito democráticos. É

possível ver lá diferentes es-téticas è deixou de haver esse

catálogo de criadores maisimportantes do que outros

que espero que desapareçade vez rapidamente. Portugaltem grandes criadores noteatro e na dança, que vão a

grandes palcos na Europa etambém têm que estar nos

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grandes palcos portugueses,no caso o D. Maria. E quan-to maior a hibridez, maisriqueza existirá na cultura e

no próprio Teatro Nacional.E temos que estar orgulhososde ter artistas portuguesestão híbridos e diversificados.E o Tiago abriu as portas a

todos. «H-

* Ator, encenador, diretor da

companhia Útero

Uma escuta do mundo

Isabel Abreu

ÍI Não consigo ser imparcial,porque ele, a partir do momentoem que entrou na minha vida e

por todos os projetos que fize-mos juntos, modificou mesmomuito a forma como vejo e estouno teatro. E porquê? É que o

Tiago tem, antes de mais, umaimensa simplicidade, o que é

extremamente difícil, como ator,encenador, dramaturgo, escritore diretor do Teatro Nacional.E uma grande capacidade deouvir as pessoas, uma escuta domundo. É isso que está muitopresente. Às vezes, perguntampor que o que faz vai tanto à

alma, porque vem direto a nós,a resposta é porque ele tem umagigantesca capacidade de escu-

tar o que o rodeia. Ele ouve.Além disso, o Tiago não

faz um trabalho fechado, queapresenta já na fase final e sobreo qual não se pode dizer nada.Não, ele mostra -o numa fase

quase embrionária. E para ouvirseja os atores, um administra-dor ou um motorista. Todas as

opiniões vão ser tidas em conta e

influenciar o resultado final. Isso

tem a ver com a sua capacida-de de assumir a falha, o erro e

incorporá-los no trabalho.Por isso, é de uma humanida-

de que quase vai além do humanoem cena, não é teatro e é teatroem toda a sua essência, umaforma inteligente de falar sobrea memória, a vida e a morte e a

razão por que estamos aqui.-n.

"Afriz

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