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191 REVISTA BRASILEIRA DE ANÁLISE DO COMPORTAMENTO / BRAZILIAN JOURNAL OF BEHAVIOR ANALYSIS, 2008, VOL. 4, N O. 2, 191-204 RESUMO Desde 1997, praticamente todos os motoristas de Brasília (DF/Brasil) respeitam a faixa de pedestre. Essa mudança de prática cultural ocorreu devido a uma campanha local, envolvendo importantes agências sociais, cujos representantes reuniam-se no Fórum Permanente pela Paz no Trânsito, organizado pela Universidade de Brasília (UnB). O presente trabalho descreveu as ações dessas agências que promoveram uma intervenção cul- tural e que resultou na nova prática cultural do respeito à faixa de pedestre. Através da análise de documentos e da realização de entrevistas buscou-se reconstruir a história dessa campanha, com o objetivo de identificar, analisar e interpretar as contingências comportamentais entrelaçadas responsáveis por tal intervenção cultural. Esse fenômeno social foi discutido à luz dos conceitos de macrocontingência e metacontingência. Palavras-chave: prática cultural, faixa de pedestre, intervenção cultural, macrocontingência e metacontin- gência. ABSTRACT e study of social phenomena has increasingly awakened the interest and concern of Behavior Analysts. Since 1997, practically all drivers living in Brasília (DF/ Brazil) respect pedestrian crosswalks. is changing of cultural practice happened as a result of a local campaign involving important social agencies, whose representatives came together in a Permanent Forum for Peace on Traffic organized by the University of Brasilia (UnB). e present study described the agency’s actions that promoted a cultural intervention and resulted in the new cultural practice of yielding to pedestrians. rough the analysis of documents and interviews this study sought to rebuild the history of this campaign, with the purpose of identifying, analyzing and interpreting the interlocking behavioral contingencies responsible for such cultural intervention. is social phenomenon was discussed in relation to the concepts of macrocontingencies and metacontingencies. Key words: cultural practice, crosswalks, cultural interventions, macrocontingencies, metacontingencies. A TRAVESSIA NA FAIXA DE PEDESTRE EM BRASÍLIA (DF/ BRASIL): EXEMPLO DE UMA INTERVENÇÃO CULTURAL WALKING THE CROSSWALK IN BRASÍLIA (DF/ BRAZIL): A CULTURAL INTERVENTION EXAMPLE O presente trabalho é uma versão abreviada da dissertação de mestrado do primeiro autor, apresentada em agosto de 2007, ao Programa de Pós-graduação em Ciências do Comportamento da Universidade de Brasília (UnB), sob orientação do segundo autor. A primeira autora agradece à Capes e à Finatec pelos financiamentos concedidos. Email: [email protected]. VÍVICA LÉ SÉNÉCHAL-MACHADO JOÃO CLAUDIO TODOROV FACULDADE PITÁGORAS, BELO HORIZONTE, BRASIL UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS E INSTITUTO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR DE BRASÍLIA, BRASIL “... até que, um louco varrido, um sujeito desmio- lado, resolveu fazer a proposta mais louca do mundo, mais maluca, mais inaceitável, mais indecente e mais perigosa do mundo. Ele se levantou e disse: ‘olha, nós vamos respeitar a faixa de pedestres agora. O pedestre na faixa vai ter preferência.’ Foi um pânico geral! Todo mundo ficou pasmo, inclusive os técnicos. ‘Essa cara tá louco?’. O nome desse sujeito é Renato Azevedo. E

1 SENEGÁL-MACHADO, V e TODOROV, J C. a Travessia Na Faixa de Pedestre Em Brasília - Exemplo de Uma Intervenção Cultural

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Análise do programa de Paz no Trânsito no DF para implementação do respeito à faixa de pedestre.

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    Revista BRasileiRa de anlise do CompoRtamento / BRazilian JouRnal of BehavioR analysis, 2008, vol. 4, no. 2, 191-204

    RESUMO

    Desde 1997, praticamente todos os motoristas de Braslia (DF/Brasil) respeitam a faixa de pedestre. Essa mudana de prtica cultural ocorreu devido a uma campanha local, envolvendo importantes agncias sociais, cujos representantes reuniam-se no Frum Permanente pela Paz no Trnsito, organizado pela Universidade de Braslia (UnB). O presente trabalho descreveu as aes dessas agncias que promoveram uma interveno cul-tural e que resultou na nova prtica cultural do respeito faixa de pedestre. Atravs da anlise de documentos e da realizao de entrevistas buscou-se reconstruir a histria dessa campanha, com o objetivo de identificar, analisar e interpretar as contingncias comportamentais entrelaadas responsveis por tal interveno cultural. Esse fenmeno social foi discutido luz dos conceitos de macrocontingncia e metacontingncia.

    Palavras-chave: prtica cultural, faixa de pedestre, interveno cultural, macrocontingncia e metacontin-gncia.

    ABSTRACT

    The study of social phenomena has increasingly awakened the interest and concern of Behavior Analysts. Since 1997, practically all drivers living in Braslia (DF/ Brazil) respect pedestrian crosswalks. This changing of cultural practice happened as a result of a local campaign involving important social agencies, whose representatives came together in a Permanent Forum for Peace on Traffic organized by the University of Brasilia (UnB). The present study described the agencys actions that promoted a cultural intervention and resulted in the new cultural practice of yielding to pedestrians. Through the analysis of documents and interviews this study sought to rebuild the history of this campaign, with the purpose of identifying, analyzing and interpreting the interlocking behavioral contingencies responsible for such cultural intervention. This social phenomenon was discussed in relation to the concepts of macrocontingencies and metacontingencies.

    Key words: cultural practice, crosswalks, cultural interventions, macrocontingencies, metacontingencies.

    A TRAVESSIA NA FAIXA DE PEDESTRE EM BRASLIA (DF/ BRASIL):EXEMPLO DE UMA INTERVENO CULTURAL

    WALKING THE CROSSWALK IN BRASLIA (DF/ BRAZIL):A CULTURAL INTERVENTION EXAMPLE

    O presente trabalho uma verso abreviada da dissertao de mestrado do primeiro autor, apresentada em agosto de 2007, ao Programa de Ps-graduao em Cincias do Comportamento da Universidade de Braslia (UnB), sob orientao do segundo autor. A primeira autora agradece Capes e Finatec pelos financiamentos concedidos. Email: [email protected].

    vviCa l snChal-maChado

    Joo Claudio todoRov

    FACULDADE PITGORAS, BELO HORIZONTE, BRASIL

    UNIVERSIDADE CATLICA DE GOIS E INSTITUTO DE EDUCAO SUPERIOR DE BRASLIA, BRASIL

    ... at que, um louco varrido, um sujeito desmio-lado, resolveu fazer a proposta mais louca do mundo, mais maluca, mais inaceitvel, mais indecente e mais perigosa do mundo. Ele se levantou e disse: olha, ns

    vamos respeitar a faixa de pedestres agora. O pedestre na faixa vai ter preferncia. Foi um pnico geral! Todo mundo ficou pasmo, inclusive os tcnicos. Essa cara t louco?. O nome desse sujeito Renato Azevedo. E

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    a comeou o tal da faixa de pedestres. Prof. Dr. David Duarte Lima (UnB).

    A colocao acima ilustra, muito bem, o que Skinner (1971/1983) afirma sobre o pla-nejamento de uma cultura: muitas vezes uma proposta ambiciosa, quase sempre considerada utpica no sentido pejorativo.

    Cultura e Prticas Sociais

    A Psicologia, de forma geral, considera a cultura como uma forma de viver compar-tilhada por um grupo de pessoas, que inclui costumes, valores, suposies, tradies, etc. que influenciam e guiam o comportamento, tornando possvel s pessoas sobreviver em seu meio (Berry 1992, citado por Huffman, Vernoy e Vernoy, 2001).

    Para Skinner (1953/2000, 1969/1984, 1971/1983), a cultura se refere s contingncias de reforamento social que geram e mantm o comportamento dos membros de uma cul-tura, cuja existncia vai alm do perodo de vida dos membros do grupo. Normalmente, essas contingncias so formuladas por meio de regras e leis que constituem os costumes e tradies, habituais de um povo. Ou seja, um conjunto particular de condies no qual um grande nmero de pessoas se desenvolve e vive. Dessa maneira, o ambiente social aquilo que, tipicamente, chamamos de cultura.

    Glenn (2004) se refere cultura como padres de comportamentos aprendidos transmitidos socialmente, assim como os produtos de tais comportamentos (objetos, tecnologias, organizaes, etc) (p.139). E s prticas culturais como sendo padres simila-res de contedo comportamental, usualmente resultados de similaridades nos ambientes (p. 140). Essa similaridade no contedo operante do repertrio de vrias pessoas, ao longo da passagem do tempo, o que garante nomear

    esse fenmeno como uma prtica cultural. As prticas culturais envolvem, ento, consistn-cia no comportamento de muitos indivduos. Variaes de prticas culturais esto sempre ocorrendo, j que estas envolvem o compor-tamento de geraes sucessivas de indivduos que vivem em ambientes comportamentais um pouco diferentes dos indivduos da gerao anterior (Glenn, 1988).

    Macrocontingncia e Metacontingncia

    De acordo com Skinner (1981), a cultura evolui quando suas prticas contribuem para o sucesso do grupo praticante em resolver seus problemas. E ressalta que o efeito sobre o grupo, e no as conseqncias reforadoras para os membros individuais, que responsvel pela evoluo e seleo de uma cultura.

    A anlise e compreenso dos fenmenos sociais, ento, no se limitam s contingncias que descrevem o comportamento operante de um nico indivduo, implicando a utilizao de uma outra unidade de anlise para a compre-enso de tais fenmenos (Andery, Micheletto & Srio, 2005: Glenn, 1986).

    A partir das contribuies de Skinner (1948/1978, 1953/2000, 1957/1978, 1961, 1969/1984, 1971/1983, 1974/1982, 1986), Glenn (1991) afirma que as contingncias com-portamentais do conta da evoluo e manu-teno das unidades comportamentais (seleo ontogentica) e que as metacontingncias do conta da evoluo e manuteno das unidades culturais (seleo cultural).

    Glenn (1986) apresenta, ainda, o conceito de metacontingncia diferenciando-o do con-ceito de contingncia de reforamento, com o intuito de fazer uma distino entre a seleo do comportamento operante a seleo de prticas culturais. As metacontingncias descrevem re-laes funcionais no nvel cultural envolvem

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    relaes de contingncia entre contingncias comportamentais entrelaadas e um resultado comum a longo prazo.

    Contingncias entrelaadas so mais do que a soma de contingncias individuais, por produzirem resultados que no so possveis de serem obtidos pelos indivduos se comportan-do isoladamente. Dessa forma, as contingncias comportamentais entrelaadas so contingn-cias sociais nas quais o comportamento e os produtos comportamentais de cada membro funcionam como evento ambiental com o qual o comportamento dos outros indivduos inte-rage. O comportamento de cada pessoa possui um duplo papel: de ao e de ambiente para a ao de outros (Glenn, 1988, 1989, 1991).

    O conceito de metacontingncia especifi-ca que os processos cultural e comportamental ocorrem em diferentes nveis de organizao, embora apresentem processos de seleo anlogos. Nenhum processo comportamental novo est envolvido. Na seleo cultural, os resultados culturais no selecionam o com-portamento dos indivduos que fazem parte do entrelaamento de contingncias. Eles selecionam as contingncias comportamentais entrelaadas. O resultado cultural tem a mesma relao com as contingncias entrelaadas que as conseqncias comportamentais tm com o operante. Assim, a evoluo cultural constitui-se no de atos individuais repetidos, mas sim da repetio de contingncias comportamentais entrelaadas que funcionam como uma unidade integrada, produzindo resultados que afetam a probabilidade futura da recorrncia do entrela-amento (Glenn, 1988, 1991, 2004).

    Entretanto, a formulao do conceito de metacontingncia, como relaes funcionais entre contingncias comportamentais entre-laadas e um resultado comum a longo prazo (Glenn, 1986, 1988 e 1991), sofreu algumas modificaes, ao longo dos anos, permitindo

    um melhor entendimento da relao entre as contingncias comportamentais entrelaadas, o produto gerado desse entrelaamento e o ambiente selecionador.

    Glenn (2004), Glenn e Mallot (2004) e Mallot e Glenn (2006) destacam a importncia da distino entre o produto e a conseqncia de um comportamento, apesar de, s vezes, eles poderem ser o mesmo. Assim como o comportamento operante, que envolve um produto comportamental, as contingncias comportamentais entrelaadas tambm ge-ram um produto, que um produto agregado resultado de recorrentes operantes inter-rela-cionados de vrias pessoas. E, assim como o comportamento operante seguido por uma conseqncia, responsvel pela recorrncia ou no desse operante, as contingncias compor-tamentais entrelaadas, e seu produto, tambm so selecionados por uma conseqncia final efeito no ambiente externo responsvel pela recorrncia ou no desse entrelaamento. O ambiente externo o recipiente do produto agregado e funciona como o ambiente sele-cionador das contingncias entrelaadas. Esse entrelaamento no se repetir mais caso no haja demanda por seus produtos.

    O conceito de metacontingncia, ento, explicitado, descreve:

    Relaes contingentes entre recorrentes con-

    tingncias comportamentais entrelaadas, que

    tem um produto agregado, e conseqncias

    funcionais baseadas na natureza desse produto.

    A repetio das contingncias comportamen-

    tais entrelaadas de duas ou mais pessoas cons-

    titui uma linhagem cultural sendo selecionada

    (Mallot & Glenn, 2006, p. 38).

    Mallot e Glenn (2006) distinguem duas fontes de produtos agregados (produtos culturais). Uma fonte a interao organizada

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    e recorrente de mltiplos indivduos, dos quais o comportamento inter-relacionado resulta em um produto agregado. Nesse caso, o produto requer no s o comportamento de todos os indivduos, mas tambm as contingncias entrelaadas recorrentes que mantm a inter-relao entre os comportamentos de diferentes pessoas. Esse o produto agregado envolvido em uma relao de metacontingncia, mantido por uma linhagem cultural que selecionada. Outra fonte se d atravs da soma dos produtos de pessoas se comportando individualmente e recorrentemente. Esse o produto agregado envolvido em uma relao de macrocontingn-cia. Macrocontingncia, ento, diz d relao entre comportamentos recorrentes, e funcio-nalmente independentes, de vrios indivduos, e um produto agregado resultante da soma dos produtos comportamentais individuais. Ou seja, a relao entre linhagens operantes, que so repeties de um comportamento operante como resultado de contingncias de seleo comportamentais, e seu produto agregado (Glenn, 2004; Mallot & Glenn, 2006). Desse modo, na macrocontingncia h apenas uma nica contingncia sendo repetida milhares de vezes, por diferentes pessoas. A repetio su-cessiva de uma mesma contingncia por muitas pessoas caracteriza uma determinada prtica cultural, que produz um efeito cumulativo a longo prazo, como o resultado do somatrio dos efeitos do comportamento de cada um. Nesse sentido, uma caracterstica importante da macrocontingncia que seu efeito cumula-tivo aditivo. Quanto mais difundida a prtica, maior o efeito cumulativo.

    Na macrocontingncia no h seleo cultural. O produto cultural no seleciona o com-portamento individual recorrente das pessoas. O produto no funciona como uma conseqncia que mantm o comportamento que constitui a prtica. As nicas contingncias de seleo en-

    volvidas na macrocontingncia so contingncias operantes. A mudana cultural uma mudana de comportamento de vrios indivduos, como resultado de contingncias comportamentais de seleo operando no comportamento de cada indivduo. Nesse caso, para produzir alguma interveno cultural sobre um efeito cumulativo preciso encontrar maneiras de alterar, indivi-dualmente, o maior nmero possvel do mesmo comportamento dos vrios participantes (Glenn, 2004, Mallot & Glenn, 2006).

    Intervenes culturais so designadas para alterar condies geradas pelo compor-tamento, inter-relacionado ou no, de muitos indivduos. Quando estes comportamentos geram um produto agregado que afeta outras pessoas, ou a prpria sobrevivncia de uma cultura, este produto se torna um problema social, podendo ser perigoso e causar prejuzos sade, segurana ou felicidade de um grande nmero de pessoas. Assim, nessas situaes, uma interveno cultural se faz necessria e justificvel (Mallot & Glenn, 2006).

    Intervenes em uma metacontingncia e em uma macrocontingncia so diferentes. Intervenes culturais para alterar o produto agregado em macrocontingncias tm como alvo somente mudanas comportamentais (li-nhagens operantes especficas). Intervenes culturais em uma metacontingncia tm como alvo de interesse contingncias comportamen-tais recorrentes que produzem um produto agregado (linhagens culturais) e que resultam em inputs (efeitos no ambiente externo) que mantm essas recorrncias (Mallot & Glenn, 2006). Dessa maneira, planejamentos culturais so importantes para que se evite a necessidade de grandes intervenes culturais reparadoras.

    O processo de aprendizagem de com-portamentos sociais, assim como o de com-portamentos no sociais, depende do arranjo de contingncias ambientais que envolvem o

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    estabelecimento de relaes entre o compor-tamento dos organismos e as conseqncias ambientais de tais aes.

    Alguns desses processos comportamen-tais, envolvidos na aprendizagem de grande parte dos comportamentos sociais que cons-tituem prticas culturais, esto relacionados modelao, a exposio direta s contingncias de reforo e ao papel das regras no controle do comportamento.

    Planejamento Cultural

    De acordo com Skinner (1969/1984):Uma cultura bem planejada um conjunto

    de contingncias de reforo, sob o qual os

    membros se comportam de acordo com

    procedimentos que mantm a cultura,

    capacitam-na a enfrentar emergncias e

    modificam-na de modo a realizar essas

    mesmas coisas mais eficientemente no fu-

    turo (p. 207).

    Quando Skinner (1953/2000) afirma sobre o planejamento deliberado de uma cultura, ele quer dizer que uma nova prtica deve ser produzida por causa de suas conseqncias futuras mais favorveis. Mas essas conseqn-cias futuras nunca so suficientes para justificar tal planejamento. Para se entender melhor um planejamento preciso identificar os eventos ambientais anteriores que fazem com que uma mudana cultural seja advogada. Ou seja, pre-ciso a identificao do problema social que esteja causando danos sociedade para que se justifi-que uma interveno (Mallot & Glenn, 2006).

    Mattaini (1995) argumenta que, para que uma determinada prtica cultural seja alterada, em funo de efeitos que podem afetar a via-bilidade de uma cultura, so necessrias inter-venes planejadas sobre os comportamentos dos membros constituintes da prtica.

    O planejamento de intervenes culturais deve, ento, buscar identificar as contingncias operantes dos comportamentos dos indivduos, estejam eles se comportando de forma inter-relacionada ou no. O comportamento do indivduo a base a partir da qual as prticas culturais emergem em uma cultura. Os pro-cessos pelos quais as prticas so estabelecidas e mantidas consistem das relaes compor-tamentais bsicas. No h nenhum processo comportamental novo. Por isso se faz neces-srio identificar os princpios comportamentais subjacentes a estes comportamentos (Mattaini, 1995, 1996; Mallot, 1988).

    Alguns desses processos comportamen-tais, envolvidos na aprendizagem e modificao de grande parte dos comportamentos sociais que constituem as prticas culturais, esto re-lacionados modelao, a exposio direta s contingncias de reforo e ao papel das regras no controle do comportamento.

    A Campanha pela Paz no Trnsito e pelo Respeito Faixa de Pedestres

    O deslocamento a p um dos mais importantes meios de transporte urbano, sen-do o mais utilizado para percorrer pequenas distncias ou servindo como complemento de viagens realizadas por outros modos de transporte (Castro, Santos, Yamanaka & Rosa, 1997; Melo & Moreira, 2005).

    As faixas de pedestres, um dos principais elementos que compem o sistema de trnsito dos usurios, apesar de serem concebidas para sinalizar de forma segura e no ambgua os locais de travessia de pedestres, so foco de polmica por serem, sistematicamente, des-respeitadas por motoristas e, tambm, pelos prprios pedestres (Vialle e Junior, 2003).

    Braslia/DF, nos anos de 1995 e 1996, era uma das cidades brasileiras mais violentas

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    no trnsito, no s pelo grande nmero de acidentes e vtimas fatais, mas tambm pela violncia dos desastres e pelo grande ndice de pedestres atropelados. O nmero de atro-pelamentos nesses anos representava, respec-tivamente, 49,8% e 47,3% do nmero total de acidentes, com morte, em todo Distrito Federal. Nmeros que revelavam a situao grave em que se encontrava a relao pedestre - veculo, em Braslia/DF, uma cidade planejada para a rpida e fcil circulao de carros, com pistas largas e longas, que favoreciam o abuso da velocidade e dificultavam a travessia das ruas pelos pedestres.

    Apesar de a lei estar prevista no Cdigo de Trnsito Brasileiro, desde 1966, pode-se afirmar que, praticamente, ela nunca fora cum-prida por motoristas e pedestres brasileiros. Porm, na cidade de Braslia/DF, desde o ano de 1997, tem sido possvel observar o respeito faixa de pedestres. Esse cumprimento da lei foi possvel a partir de uma mobilizao social que promoveu a unio entre a mdia, o governo e a sociedade civil brasiliense em prol de um mesmo objetivo: a Paz no Trnsito.

    O presente trabalho teve como objetivo identificar e descrever as aes realizadas por pessoas e instituies, que se mostraram funda-mentais na criao e conduo das Campanhas pela Paz no Trnsito e pelo Respeito Faixa de Pe-destre, nos anos de 1996 e 1997, respectivamente, em Braslia-DF, que estabeleceram mudanas significativas no repertrio comportamental de motoristas e pedestres dessa cidade. Mais espe-cificamente, objetivou-se identificar, analisar e interpretar as contingncias comportamentais entrelaadas responsveis pelo estabelecimento da prtica cultural de travessia na faixa de pedestres e, ainda, discutir esse fenmeno luz dos con-ceitos de macrocontingncia e metacontingncia, buscando apontar a relevncia de tais conceitos na interpretao terica desse fenmeno social.

    MTODOFontes

    Foram consultadas para a coleta de dados as seguintes fontes de informao: 1) Mdia Escrita: Jornal Correio Braziliense e Jornal de Braslia; 2) Frum Permanente pela Paz no Trnsito (UnB); 3) Detran DF; 4) Entre-vistas; 5) Outras fontes (contatos e conversas informais).

    Procedimento de coleta de dados e materiais obtidosMdia escrita: Correio Braziliense e Jornal de

    Braslia. Foram selecionadas e registradas, em uma planilha, as datas e manchetes de todas as notcias sobre os vrios aspectos do trnsito da cidade de Braslia-DF (acidentes, leis, ndices es-tatsticos, aes do Detran-DF, perigos e riscos), divulgadas pelo Correio Braziliense, nos anos de 1995 a 1999, e pelo Jornal de Braslia, nos anos de 1996 e 1997. Todas as edies do jornal foram consultadas, pgina por pgina, pela pesquisadora. Esse levantamento foi possvel atravs do acesso aos arquivos dos Centros de Documentao de ambos os jornais, que dispem de todas as edies do jornal encadernadas.

    Frum Permanente pela Paz no Trnsito (UnB). Atravs do acesso a um arquivo pertencente ao Decanato de Extenso da UnB foram obtidos documentos que continham projetos, datas, listas de presena, pautas e atas das vrias reunies realizadas pelo grupo do Frum, no prdio da Reitoria da UnB.

    Detran DF. Foram obtidos documentos nos seguintes setores que compem a institui-o: Biblioteca (trabalhos referentes ao respeito faixa de pedestre); Setor de Campanhas (fo-lhetos sobre campanhas educativas); Diviso de Educao no Trnsito (folhetos sobre o traba-lho do grupo de teatro) e Ncleo de Pesquisa e Tratamento de Dados (dados estatsticos).

    Entrevistas. Foram realizadas entrevistas com algumas das pessoas consideradas mui-

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    to importantes, poca, para o processo de implementao das Campanhas pela Paz no Trnsito e pelo Respeito Faixa de Pedestre. Essas entrevistas foram abertas, sem nenhum roteiro formalmente elaborado anteriormente pela pesquisadora, de forma a evitar qualquer possvel direcionamento das respostas dos en-trevistados. Todas as entrevistas foram gravadas em mdia de udio digital e, posteriormente, transcritas.

    Outras fontes. Obteno de documentos atravs de encontros e conversas informais junto ao Ex-Diretor do Detran e ao Ex-Comandante do Batalho de Trnsito da PM.

    Procedimento de anlise de dadosTodas as informaes obtidas foram usadas

    com o objetivo de reconstruir, o mais fielmente possvel, um relato histrico dos acontecimentos relativos s Campanhas da Paz no Trnsito e do estabelecimento do Respeito Faixa de Pedestre, em Braslia-DF, nos anos de 1996 e 1997.

    Aps construir o relato, a pesquisadora buscou relacion-lo com os dados estatsticos obtidos junto ao setor de Ncleo de Pesquisa e Tratamento de Dados, do Detran-DF, de forma a identificar correlaes entre aes, acontecimentos e ndices estatsticos.

    Por fim, o relato histrico foi analisado e interpretado de acordo com os princpios da Anlise do Comportamento buscando, parti-cularmente, interpretar o estabelecimento da prtica cultural do Respeito Faixa de Pedestre luz dos conceitos tericos de macrocontin-gncia e metacontingncia.

    RESULTADOS E DISCUSSO

    HistricoEm julho de 1995, o Governo do Distrito

    Federal (GDF) criou o Programa de Segurana para o Trnsito. No ano seguinte, em outubro de

    1996, o GDF alterou e ampliou esse Programa, transformando-o no Programa Paz no Trnsito.

    No intervalo de tempo entre a criao dos dois Programas lanados pelo GDF, o jornal Correio Braziliense, em agosto de 1996, lanou uma campanha contra a violncia no trnsito brasiliense. Em quase todos os dias do ms de agosto, houve publicao de, pelo menos, uma matria sobre a violncia no trnsito. Tal seqncia de notcias marcou o incio da Campanha pela Paz no Trnsito, no ms de agosto, e foi essencial para a mobilizao e en-volvimento de toda a sociedade brasiliense, que reagiu campanha iniciada, com a organizao de uma passeata pela Paz no Trnsito, no ms de setembro, reunindo mais de 25 mil pessoas.

    interessante observar que a criao do novo programa do governo para as questes de trnsito, lanado em outubro de 1996, parece ter sofrido fortes influncias da Campanha pela Paz no Trnsito, iniciada pelo Correio Brazi-liense, em agosto de 1996. Um indicador de tal influncia foi a nomeao desse novo progra-ma Programa Paz no Trnsito utilizando a denominao j encabeada pelo Correio Bra-siliense em sua campanha. Alm disso, uma das aes ampliadas no novo programa se referiu organizao de campanhas de publicidade para conscientizao dos cidados sobre os problemas no trnsito.

    Aps o perodo de criao e encabea-mento da Campanha pela Paz no Trnsito pelo Correio Braziliense, no ms de dezembro, este jornal delegou a continuidade do movimento Universidade de Braslia (UnB), que organizou o Frum Permanente pela Paz no Trnsito, ficando este grupo, a partir de ento, respon-svel pelos passos seguintes dessa campanha. Os membros do Frum eram representantes de diversos segmentos do governo e da sociedade: Grupo Executivo do Programa Paz no Trn-sito do Governo (Secretaria de Transportes,

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    de Segurana Pblica e de Comunicao, do GDF); mdia (Correio Braziliense, Rede Globo, Jornal de Braslia, Rede Bandeirantes, CBN); entidades religiosas (LBV, Federao Esprita, Comisso de Justia e Paz da Arquidiocese de Braslia, Congregao Presbiteriana); Polcia Militar; Detran e Universidade de Braslia.

    Na segunda reunio do Frum, em janei-ro de 1997, foi apresentada uma proposta para a Educao de Pedestres para o Trnsito. Essa proposta inclua o fazer com que a faixa de pedestre fosse respeitada em Braslia-DF. Para que essa proposta fosse efetivada era necessria a aprovao do Frum, o que aconteceu. Como ali havia representantes tanto do governo, como da sociedade civil, a aprovao, portanto, representava a posio de ambos os segmentos. Esse acordo entre governo e sociedade parece ter sido fundamental para evitar a aparncia de ao do Governo-DF como uma atitude autoritria, pois as decises passaram a ser descentralizadas das mos do governo e pas-saram a ser tomadas por uma equipe da socie-dade civil, juntamente com representantes do Governo. Tal diversificao promoveu, como afirma Skinner (1953/2000), uma distribuio do controle do comportamento entre muitas agncias que tinham pouco em comum e que por isso, provavelmente, no se juntariam em uma unidade desptica.

    Depois de aprovada a proposta foi ini-ciado, ento, o trabalho educativo do Batalho de Trnsito da Polcia Militar na Campanha pelo Respeito Faixa de Pedestre. Durante os trs primeiros meses do ano de 1997, a Polcia Militar ficou encarregada de instruir motoristas e pedestres sobre a nova prtica, atravs do fornecimento de regras e modelos com campanhas educativas nas ruas e escolas. Nesse perodo, nenhuma multa era aplicada e apenas advertncias eram apresentadas aos motoristas. De acordo com Todorov (1987),

    quando mudanas so propostas preciso um trabalho de determinao de regras especficas, de providenciar consequncias imediatas para o seguimento delas e de avaliao dessas regras. necessrio recorrer ao estabelecimento de regras, pois de acordo com Mallot (1988), as contingncias que formam a base da maioria das culturas so contingncias que no agem diretamente sobre o comportamento, e espe-cificam resultados atrasados.

    Mais uma vez, o Correio Braziliense, entre outras mdias, como o Jornal de Braslia e a Rede Globo, entrou em cena para a divulgao e mobilizao da populao para a adeso campanha do respeito faixa. Vrias notcias, principalmente durante o ms de maro de 1997, foram publicadas, alertando a populao sobre a nova prtica e as campanhas educati-vas que vinham sendo feitas. Nesses casos, as notcias podem ter o papel de regras, funcio-nando como estmulos que alteram a funo de outros estmulos discriminativos, neutros ou reforadores (Sanabio & Abreu-Rodrigues, 2002; Schlinger, 1993). A anlise do relato de algumas manchetes de notcias nesse perodo permitiu identific-las como regras funcionan-do como estmulos alteradores de funo, para o comportamento do motorista de parar antes da faixa de pedestre. As notcias parecem ter estabelecido a funo discriminativa de alguns estmulos tais como a prpria faixa de pedes-tres, o pedestre com a inteno de atravessar a rua, a placa de sinalizao da faixa, e outros. Estes estmulos adquiriram funes discrimi-nativas e evocativas como resultado das regras noticiadas e passaram a controlar, de forma mais eficiente, o comportamento do motorista, produzindo consequncias reforadoras como no se envolver em acidentes, no atropelar pedestres, entre outras.

    A partir do dia 1o de abril de 1997, a lei comeou a vigorar e os policiais comearam

    elianeRealceelianeRealce
  • V.L. L SNCHAL-MACHADO & J.C. TODOROV

    199

    a multar os motoristas que desrespeitavam a preferncia do pedestre na faixa. Nesse mo-mento, as regras deixaram de ser apresentadas pela Polcia e passaram a ser oferecidas pelo prprio Estado, atravs do incio do dever de obedincia lei da faixa. O ndice de multas, logo nos primeiros dias em que a lei passou a vigorar, foi considerado alto. Esse dado sugere que, para o estabelecimento do comportamen-to do motorista de parar na faixa de pedestre, foi necessrio o uso da punio positiva atravs da aplicao de multas. Sustenta-se, assim, que a modelagem do comportamento por exposio direta s contingncias de reforamento carac-teriza uma parte substancial da forma como se aprende comportamentos sociais (Skinner, 1969/1984).

    Na primeira semana de abril os jornais divulgaram o grande nmero de multas que haviam sido aplicadas desde o dia 1o. Mais uma vez, nesse caso, as notcias podem funcionar como regras e, alm de alterar a relao entre os estmulos discriminativos que esto no trnsito e os comportamentos das pessoas no trnsito, podem, tambm, alterar o valor reforador de uma conseqncia. Funo esta que se assemelha muito ao efeito das Operaes Estabelecedoras: uma operao ambiental que altera, momentanea-mente, a efetividade reforadora de algum objeto, evento ou estmulo (Michael, 1993). A dificuldade em identificar o aumento do valor reforador das consequncias dos comportamentos dos moto-ristas no permitiu uma caracterizao to clara das notcias como Operaes Estabelecedoras. Mas estas sugeriram um provvel efeito alterador do valor reforador de consequncias como, por exemplo, parar o carro antes da faixa porque evitava multa.

    Pode-se sugerir que essas notcias tam-bm serviram para que os leitores motoristas aprendessem com outros motoristas que foram multados e que, por sua vez, serviram como

    modelo do comportamento punido por no respeitar a faixa. Dessa forma, a divulgao de notcias de motoristas sendo multados, alm de ressaltar a regra do respeito faixa, serviu, tambm, como um modelo eficiente que afetava muitas pessoas ao mesmo tempo, livrando-as de uma exposio direta s contin-gncias aversivas.

    O Detran, durante a Campanha pelo Respeito Faixa, participou com a atuao dos setores de engenharia e educao. Os agentes comearam a pintar novas faixas em locais que atendessem aos critrios para sua implantao e apagar vrias outras faixas que estavam loca-lizadas em locais considerados inadequados. Tambm foram instaladas, a 100m de cada faixa, placas de sinalizao com os dizeres Pas-sagem de Pedestre. Essas obras tornaram as faixas de pedestre e as placas de sinalizao de faixas, estmulos discriminativos mais salientes, permitindo maior controle desses estmulos sobre o comportamento de motoristas e pe-destres. Alm disso, em setembro de 1997, o Detran lanou a campanha educativa D Sinal de Vida, que tinha como objetivo tornar a travessia dos pedestres sobre a faixa ainda mais segura. Para isso, os pedestres deveriam realizar um sinal com o brao antes de atravessar a rua. Dessa forma, o brao estendido passou a ser mais um estmulo discriminativo que contro-lava o comportamento do motorista de parar o carro antes da faixa.

    ndices estatsticosOs dados estatsticos do Detran-DF

    demonstram, reduo nos ndices de atropela-mentos, a partir do ano de 1995 at o ano de 1998. Os resultados mostrados nas Figuras 1 e 2 permitem analisar a evoluo do trnsito de Braslia/DF, com relao ao respeito ao pedes-tre, que vinha sendo uma das principais vtimas da violncia no trnsito. A Figura 1 mostra a

    elianeRealce
  • INTERVENO CULTURAL

    200

    porcentagem de atropelamentos de pedestres, em todo o Distrito Federal, em relao ao total de acidentes, com morte, por ano.

    Figura 1. Porcentagem de atropelamentos de pedestres em relao ao total de acidentes ocorridos, com morte, em todo o Distrito Federal, de 1995 a 1999.

    Os resultados mostram uma reduo gradual da porcentagem de atropelamentos de pedestres de 1995 a 1998, destacando-se uma reduo de 4,5% de 1995 a 1997. A Figura 2 mostra o nmero de atropelamentos de pedes-tres, nas Vias Urbanas do Distrito Federal, no perodo de 1995 a 199

    9.

    Figura 2. Nmero de atropelamentos de pedestres, com morte, nas Vias Urbanas, em todo Distrito Federal, de 1995 a 1999.

    Uma reduo de 31,9% no nmero de atropelamentos fatais nas Vias Urbanas entre os anos de 1996 e 1997 fica evidenciada nos dados dessa figura, que mostra, ainda, tal redu-o como a maior ocorrida nos anos de 1995 a

    1999. No ano de 1999 possvel observar um pequeno aumento nesses nmeros, fato este que parece correlacionado com a mudana de governo do Distrito Federal e com o fim do Frum Permanente pela Paz no Trnsito, no final de 1998. Essas mudanas parecem ter interferido na evoluo positiva que vinha ocorrendo no trnsito da cidade, desfazendo a parceria formada at ento entre governo e so-ciedade civil, acordada e mantida pelo Frum.

    Macrocontingncia e metacontingncia

    A Figura 3 apresenta o esquema de uma possvel interpretao terica dessa mudana de Prtica Cultural (PC), utilizando os conceitos de macrocontingncia e metacontingncia para tal entendimento.

    A Figura 3 ilustra a situao em que se encontrava o trnsito da cidade de Braslia, nos anos de 1995 e 1996, antes da mudana propos-ta pela Campanha do Respeito Faixa ocorrer. Pode-se dizer que existiam duas Prticas Cul-turais que se caracterizavam pela recorrncia e similaridade no contedo comportamental de vrios indivduos (Glenn, 2004): motoristas no respeitando a faixa (PC1) e pedestres no a utilizando (PC2). Essas prticas produziram um produto cultural alto ndice de atropela-mento de pedestres perigoso e prejudicial, que se configurava como um problema social que passou a ser de conhecimento pblico quando noticiado pelo Correio Braziliense. Es-sas notcias enfatizavam a violncia no trnsito da cidade que culminava em altos ndices de atropelamentos fatais.

    O comportamento operante quase sem-pre envolve um produto, e esse produto define o operante especfico que uma interveno comportamental designada a mudar. Normal-mente, a razo para intervir a no satisfao com tal produto. Quando o que est causando

  • V.L. L SNCHAL-MACHADO & J.C. TODOROV

    201

    insatisfao o produto agregado de muitas pessoas se comportando, ento o problema considerado um problema cultural ou social, para o qual uma interveno cultural pode ser necessria (Mallot & Glenn, 2006).

    No caso de Braslia, em 1997, a fonte desse produto agregado insatisfatrio, que necessitava de uma interveno cultural, era a soma dos produtos do comportamento de muitas pessoas (motoristas e pedestres) agindo individualmente, e de forma recorrente. Vale lembrar que, mudanas no comportamento de muitos indivduos, no ne-cessariamente constitui uma interveno cultural. Os vrios indivduos dos quais o comportamento alvo, em uma interveno cultural, so aqueles em que os comportamentos contribuem para um pro-duto agregado insatisfatrio. No o nmero de indivduos que designa uma interveno cultural, mas sim o produto como resultado do compor-tamento de vrios indivduos funcionalmente inter-relacionados ou no (Mallot & Glenn, 2006).

    E nesse caso, a mudana comportamental de um nico indivduo no causa impacto. Assim parecia ser o caso de Braslia-DF, em que uma interveno cultural para diminuir, significativamente, o alto ndice de atropelamentos fatais, deveria atingir o maior nmero possvel de motoristas.

    Nessa direo terica, pode-se dizer que uma interveno cultural, para mudar o alto n-dice de atropelamentos, foi proposta e acordada no Frum Permanente pela Paz no Trnsito. As reunies do grupo do Frum produziam decises sobre o que fazer com relao a este problema social, alm de discutir sobre outras questes. O grupo pode ser entendido, ento, como um conjunto de contingncias comportamentais entrelaadas formado pelos representantes das vrias agncias dele participantes. Essas pessoas se reuniam e tomavam decises sobre as aes de cada um na sua prpria agncia (e.g. qual seria o trabalho da Polcia Militar, do Detran, e assim por diante), decises essas que contituam o produto

    Figura 3. Esquema representativo da interveno cultural. (PC1: Prtica Cultural 1 - motoristas no respeitando a faixa; PC2: Prtica Cultural 1 - pedestres no atravessando na faixa; MC3: Mudana Comportamental 3 - mudana no comportamento de motoristas; MC4: Mudana Comportamental 4 - mudana no comportamento de pedestres; PC3: Prtica Cultural 3 - motoristas respeitando a faixa; PC4: Prtica Cultural 4 - pedestres atravessando na faixa).

    Diminuio dondice de

    atropelamento

    Alto ndice de atropelamento

    de pedestre

    PC1

    XX

    XX

    PC2

    Y

    Y

    YY

    Decisestomadas noFrum

    MC3 3

    ZZ

    ZZ

    MC4

    W

    W

    WW

    Metacontingncia de curta durao (1997 1998)

    Macrocontingncia (1995 1998)

    PrticasCulturais

    Produto:ProblemaSocial

    ContingnciasComportamentaisEntrelaadas(Frum)

    ProdutoAgregado

    Efeito no ambiente externo

    PrticasCulturaisalteradas

    PC3

    Z

    ZZ

    PC4

    W

    W

    WW

    Z

    Detran e produto

    Igreja e produto

    Mdia e produto

    Polcia e produto

    UnB e produto

    Diminuio dondice de

    atropelamento

    Alto ndice de atropelamento

    de pedestre

    PC1

    XX

    XX

    PC1

    XX

    XX

    PC2

    Y

    Y

    YY

    PC2

    Y

    Y

    YY

    PC2

    Y

    Y

    YY

    Decisestomadas noFrum

    MC3 3

    ZZ

    ZZ

    MC3 3

    ZZ

    ZZ

    MC3 3

    ZZ

    ZZ

    MC4

    W

    W

    WW

    MC4

    W

    W

    WW

    Metacontingncia de curta durao (1997 1998)

    Macrocontingncia (1995 1998)

    PrticasCulturais

    Produto:ProblemaSocial

    ContingnciasComportamentaisEntrelaadas(Frum)

    ProdutoAgregado

    Efeito no ambiente externo

    PrticasCulturaisalteradas

    PC3

    Z

    ZZ

    PC4

    W

    W

    WW

    Z

    PC3

    Z

    ZZ

    PC4

    W

    W

    WW

    Z

    Detran e produto

    Igreja e produto

    Mdia e produto

    Polcia e produto

    UnB e produto

    Igreja e produto

    Mdia e produto

    Polcia e produto

    UnB e produto

  • INTERVENO CULTURAL

    202

    agregado desse entrelaamento. Nesse momento, a fonte do produto agre-

    gado se caracteriza pela interao organizada e recorrente de vrios indivduos (representantes das agncias), dos quais o comportamento entre-laado resulta em um produto agregado. Depois, cada representante, na sua prpria agncia (que tambm pode ser entendida como um conjunto de comportamentos entrelaados, mas que no o foco da presente anlise), articula aes que caracterizam o produto de cada uma das agncias identificadas e analisadas no presente trabalho. Assim, pode-se sugerir o entendimento das in-tervenes das agncias como um procedimento que articula diferentes conjuntos de contingncias comportamentais entrelaadas e seus produtos, para se promover uma mudana cultural.

    O produto do Frum (decises tomadas) e os produtos de cada agncia (aplicao das decises) produziram um efeito selecionador no ambiente externo. Esse efeito a Mudana Comportamental (MC) no repertrio de mo-toristas (MC3) e pedestres (MC4), que leva a uma reduo dos ndices de atropelamentos.

    Esse efeito parece ter sido responsvel pela seleo do entrelaamento dos representantes no grupo do Frum, caracterizando, assim, uma metacontingncia. Como afirmam Mallot & Glenn (2006), metacontingncias so relaes entre contingncias comportamentais entrelaa-das e seus ambientes selecionadores. Se a ao no ambiente externo, contingente ao produto da organizao, funciona para manter a recorrncia das contingncias comportamentais entrelaadas e seu produto, a seleo cultural est presente, selecionando uma linhagem cultural de contin-gncias comportamentais entrelaadas. A relao entre recorrentes contingncias comportamentais entrelaadas e seu produto, e o input mantenedor, chamada de metacontingncia.

    Optou-se por denominar de Mudanas Comportamentais, o efeito no ambiente externo,

    porque estas s se configuram como Prticas Cul-turais (PC3 e PC4) ao longo do tempo, conforme os comportamentos envolvidos vo sendo recor-rentes. Pode-se dizer, portanto, que a mudana de Prtica Cultural foi resultante da metacontingncia que deu certo: os efeitos no ambiente externo (mu-danas comportamentais e reduo nos ndices de atropelamento) selecionaram o entrelaamento dos representantes do grupo no Frum e seu produto (tomada de decises).

    Essa metacontingncia pode ser nomeada como de curta durao, j que o entrelaamento dos representantes do Frum acabou no fim de 1998. O Frum foi dissolvido no final de 1998, permitindo, ento, poucas recorrncias desse entrelaamento. Ao longo dos anos de 1997 e 1998 esse entrelaamento no Frum sobreviveu e permaneceu relativamente estvel, mesmo quando certas linhagens operantes de alguns indivduos foram alteradas pela modificao de partes dos representantes. Se as contingncias comportamentais entrelaadas mantm a re-corrncia suficiente dos comportamentos dos participantes substitudos, produzindo um pro-duto agregado que satisfaa ao receptor (efeito no ambiente externo), ento as contingncias comportamentais entrelaadas continuam sendo selecionadas (Mallot & Glenn, 2006). Entretanto, no incio de 1999, com a mudana do governo do Distrito Federal, muitos representantes foram substitudos e outros se desligaram do Frum, o que alterou de forma fatal esse entrelaamento.

    A descrita metacontingncia de curta durao pode ser interpretada como um pro-cesso de interveno cultural para alterar uma macrocontingncia, entendida como a relao entre os comportamentos recorrentes de vrios indivduos e uma produto resultante da soma dos produtos comportamentais individuais (Mallot & Glenn, 2006). Esta Macrocontingncia refere-se ao perodo de 1995 a 1998, caracterizado, inicial-mente, pela existncia de Prticas Culturais (PC1

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    203

    e PC2) que geravam um produto insatisfatrio (alto ndice de atropelamentos), seguido por uma interveno cultural planejada (que envolveu o Frum como metacontingncia de curta dura-o) e a alterao dessas prticas culturais (PC3 e PC4). Na macrocontingncia, a situao que justifica uma interveno o produto agregado do comportamento de muitos (PC1 e PC2) que precisou ser alterado (PC3 e PC4). Essa interpre-tao elucida, ento, metacontingncias podem ser estar embutidas em uma macrocontingncia.

    A partir de 1999, o Respeito Faixa de Pedestre continuou ocorrendo em Braslia, sendo observado at os dias atuais. O presente trabalho no teve como objetivo investigar a manuteno dessa Prtica Cultural nesse perodo. Esta seria uma outra proposta de investigao, com o intuito de entender os processos mantenedores dessa Prtica, mesmo com a ausncia de uma interveno to estruturada e bem articulada, como foi a implementada pelo Frum e pelas aes simultneas das agncias representadas nele.

    Concluso

    O Respeito Faixa de Pedestre, em Bra-slia/DF, representou um fenmeno social de sucesso, graas a uma efetiva interveno cul-tural, prpria e nica, desenvolvida atravs de decises estratgicas tomadas pelos represen-tantes de importantes agncias, do governo e da sociedade civil, reunidos no Frum Permanen-te pela Paz no Trnsito, que funcionava junto Universidade de Braslia (UnB). Interveno esta que mostrou a importncia da integrao entre governo e sociedade, mediadas pela m-dia, no planejamento de mudanas culturais.

    A interpretao terica do processo de mudana da Prtica Cultural do Respeito Faixa de Pedestre, apresentada no presente trabalho, no exclui outras interpretaes plausveis acerca desse mesmo fenmeno social, pois grande parte

    da utilizao dos conceitos de metacontingncia e macrocontingncia, no estudo dos fenmenos sociais, ainda requer interpretaes tericas dos fenmenos. Isso ocorre pelo fato de a grande maioria dos estudos sobre costumes culturais, como este, no ser pesquisas experimentais e por isso, no ser possvel a manipulao de variveis. Uma caracterstica da anlise comportamental das sociedades que ela , fundamentalmente, descritiva, ao invs de experimental.

    O presente estudo um exemplo de como experimentos em situaes naturais podem ser aproveitados para novos estudos, sendo relevantes social e cientificamente. Essa pesquisa traz benefcios sociais podendo servir como modelo para novos planejamentos des-sa prtica em outras cidades do Brasil, como vm ocorrendo, e cientficos, ao se caracterizar como uma vertente de estudos promissora, que amplia o campo de pesquisa da Anlise do Comportamento, to concentrado em pesqui-sas experimentais no laboratrio.

    Dessa maneira, estudos como o presente trabalho ainda so um desafio para os Analis-tas do Comportamento, pois, como ressalta Skinner (1953/2000), as situaes prticas so quase sempre mais complexas que aquelas do laboratrio, pois contm muito mais variveis e, freqentemente, muitas desconhecidas. Este o problema especial da tecnologia contra a cincia pura (p. 472).

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    Artigo submetido em 9 de outubro de 2008Aceito em 21 de abril de 2009

    Publicao referente ao 2. Semestre de 2008, impressa em maio de 2011