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1. The ghost and the goth

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The

and

The Goth

Stacey Kade

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Prólogo

Alona Dare

Era fácil o suficiente fugir da escola. Eu sabia a partir de experiências anteriores.

Desta vez, tudo que eu tinha de fazer era esperar até que a Sra. Higgins tivesse levado

todos para a pista ao ar livre e, em seguida, deslizar por trás da arquibancada e

caminhar até a outra abertura da cerca de arame.

Regressar, contudo... Seria difícil. Mas eu só lidaria com isso quando voltasse.

Como sempre.

Eu tremi na brisa fresca da manhã. Eram sete horas — ou um pouco depois —

do primeiro dia de maio e não estava quente o suficiente para se andar por aí com a fina

camiseta estúpida e shorts curtos que eles nos faziam vestir para ginástica.

Pelo menos na pista, as arquibancadas bloqueavam o vento e as negras cinzas

mantinham uma parte do calor do dia anterior. Aqui fora eu não tinha nada, senão a

raiva para me manter quente.

Como ela pôde fazer isso comigo de novo?

Ela não entendeu. Isso nunca iria acontecer. Não haveria nenhum final de conto

de fadas para ela. Não desta vez. E eu estava doente de todas as chamadas de telefone

estúpidas dele perguntando sobre ela e das veladas perguntas dela sobre ele.

Eu acelerei o ritmo indo em direção as quadras de tênis. Depois de um rápido

olhar sobre o meu ombro — para me certificar de que tinha colocado distância

suficiente entre mim e a pista —, abri meu celular — que eu tinha escondido na mão

fechada para evitar a ira da Senhora Higgins — e acionei a discagem rápida. O número

um, é claro.

O telefone tocou na outra extremidade e eu o imaginei piscando

esperançosamente no balcão de granito pegajoso na cozinha escura. Ela não

responderia. Isso iria contra o objetivo, mas ela saberia que era eu quem estava ligando.

Ela estaria no andar de cima segurando o telefone sem fio ao seu peito e verificando o

ID no chamador na esperança de que fosse ele e não eu.

Eu esperava ser morta antes que eu me tornasse tão desesperada pela atenção

de alguém. Sério, era patético. E ela estava arruinando vidas. Especificamente, a minha

vida. Agora, eu não só tinha que mentir novamente para a Sra. Higgins sobre o porquê

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de eu ter fugido de sua classe — algo do qual eu não sou contra na circunstância certa

pelo motivo certo, o que não era o caso — como eu também não poderia ir encontrar-me

com Chris e Misty — meu namorado e minha melhor amiga — antes que as aulas

começassem oficialmente, o que exigia outra mentira. Eles apenas se toleravam por

minha causa e odiariam se eu não estivesse lá como árbitro. Pior ainda, era a Celebração

do Dia Sênior e agora o armário de Chris — ao contrário do resto dos outros atletas

sêniores — teria que permanecer sem ornamentação até o almoço, quando eu tiver

tempo novamente para decorar.

Não que ela se preocupasse com nada disso. Ela nunca se importou com

ninguém além dela mesma.

Quando a secretária eletrônica finalmente entrou eu estava além de brava.

Atravessei os campos de tênis, em direção a Henderson Street, à espera do bip

perfurante. Quando ele tocou, eu gritei para o telefone para que ela pudesse me ouvir

sobre todas as formas do seu ninho de lençóis emaranhados e amassados.

— Eu sei que você pode me ouvir e eu não posso acreditar que você está me

obrigando a fazer isso de novo. Você não tem algum orgulho? Ele me chamou, a mim,

não a você. Está começando a sentir um padrão aqui? Meu Deus, apenas ultrapasse

isso...

Um sopro de ar quente pressionou contra minha pele surpreendendo-me e me

fazendo calar por um milésimo de segundo. Então, eu percebi que tinha atravessado a

calçada para a rua sem mesmo perceber. Nesse momento ouvi o ressoar de buzina,

cheirei o cheiro desagradável de exaustão e queima de pneus e, vi o plano brilhante

amarelo-alaranjado nariz de um ônibus escolar se aproximando do meu rosto em uma

velocidade imparável.

Deus, os ônibus são tão feios quando você os vê tão de perto.

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Alona Dare

Morrer deveria ter sido o pior momento da minha vida. Quero dizer, ser

atropelada por um ônibus escolar cheio de nerds da banda enquanto usava o

regulamentado uniforme de educação física — shorts de poliéster vermelho curto e uma

camiseta branca praticamente transparente. Mais trágico do que isso não há. Ou, era o

que eu pensava.

Na quinta-feira, três dias DM (depois da morte... duh), eu acordei na forma

usual — deitada de costas e logo à esquerda das linhas amarelas na Rua Henderson

com o calor de um motor de ônibus passando por cima do meu rosto.

Não era "o" ônibus, obviamente. O que me matou provavelmente ainda estava a

ser reparado ou desclassificado, ou sei lá o que eles fazem com veículos que agora têm

fama ruim.

Tossi e sentei-me agitando as plumas quentes que saíam do escape do ônibus.

Eu sei, estranho, né? Sem pulmões, sem corpo, sem respiração, mas hey, o que seja... Eu

não faço as regras, eu só vivo aqui... Tá, mais ou menos.

Levantei-me bem na hora em que a Land Rover de Ben Rogers (seu pai é dono

de uma concessionária… sortudo) passava através de mim. Eu estremeci, mas não

machucou. Agora nada machucava, mas estava demorando um pouco para me

acostumar a isso. Ben, é claro, não percebeu nada disso, só continuou tagarelando no

celular pressionado a sua orelha. Ele não podia me ver. Ninguém podia.

Se eu pareço bastante calma sobre toda essa coisa de estar morta, é só porque eu

tive alguns dias para me ajustar. As primeiras 24 horas? Definitivamente não estão entre

as minhas melhores. Ouça, se alguém tentar puxar todo aquele clichê de "eu não tinha

ideia de que eu estava morta até que me virei e vi minha própria lápide", estarão

mentindo.

Primeiro de tudo: lápides — como elas são adequadamente chamadas —levam

meses. Especialmente aquelas de encomenda especial de mármore-rosa italiano com

anjos chorando no topo. Em segundo lugar: estar em pé com seu corpo mole e

amassado na rua não é pista suficiente, tente segui-lo para o hospital e ver um médico

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de aspecto cansado da sala de emergência pronunciar "você" como morta — mesmo que

você esteja gritando para ele te ouvir, para olhar para você. Depois, que tal quando seu

pai finalmente chega a essa fria e pequena sala no porão do hospital onde as pessoas

mostram a ele ―você" neste granulado e horrivelmente fechado circuito de televisão

nada lisonjeador?

Eu tentei falar com ele. Meu pai, eu quero dizer. Ele não podia me ouvir. Nada

completamente novo sobre isso. Russ Dare só ouve o que ele quer ouvir ou pelo menos

é o que ele sempre diz. Isso é o que faz dele um negociador de empresa tão bom... Ou

um completo bastardo se você ouvir algumas pessoas. Mas desta vez ele não estava me

ignorando. Eu podia dizer que seus olhos não estavam fazendo aquele arco irritado em

seus cantos. E, então, ele começou a chorar.

Meu pai — a pessoa que me ensinou que ―não mostrar nenhuma emoção" é a

primeira regra para se conseguir o que você quer — ficou em um quarto minúsculo com

cheiro de antisséptico, sozinho, o rosto cinzento sob o seu bronzeado de golfe e lágrimas

iluminando listras de prata em seu rosto — devido à cintilação das luzes fluorescentes.

Foi quando eu soube. Mesmo antes de ele dizer: ―é ela‖ — num sussurro

engasgado, que não era nada parecido como a sua voz habitual. Eu estava morta.

Talvez não completamente, afinal, alguma parte de mim ainda estava aqui e vendo

tudo isto acontecer. Mas era definitivamente o meu corpo na tela da televisão, coberto

por um lençol branco puro, parecendo menor e mais frágil do que eu jamais me vira e,

meu cabelo todo emaranhado e enrolado ao redor do meu rosto imóvel.

Isso tinha sido o ponto de ruptura para o meu pai. Mesmo quando as pessoas

do hospital lhe tinham empurrado os papéis para ele assinar, ele pediu uma e outra vez.

— Alguém vai arrumar o seu cabelo? Ela não... Não é como ela iria querer se

parecer. Ela iria odiá-lo.

Respirei fundo (irônico, eu sei) e balancei a cabeça. Nada disso importava agora

de qualquer maneira. Em breve, muito em breve, uma brilhante e grande luz ia brilhar

na distância e me envolver. Então, eu estaria vivendo uma vida ou alguma imitação

dela — de banhos de sol em uma praia de areia branca sem nenhum filtro solar, mojitos

com álcool e um sem fim de lojas de calçado, onde tudo era grátis. Ei, isso era o paraíso,

certo? Antes que acontecesse, porém, eu queria ver tudo o que eu podia. Uma garota só

morre uma vez, sabe?

Dobrei a esquina para o estacionamento com energia em meus passos

silenciosos e percebi que pela primeira vez na minha... Bem, pela primeira vez, eu não

podia esperar para chegar à escola.

As pessoas sempre assumem que ser popular e bonita faz a escola ser algum

grande recreio. Isso mostra como as pessoas podem ser estúpidas.

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Quando você é rainha do baile três anos seguidos, co-capitã das líderes de torcida e a

primeira atendente júnior no comitê de organização do baile, há certas

responsabilidades e expectativas que devem ser cumpridas. A menor variação como:

falar com a pessoa errada, vestir o mesmo moletom que uma nerd — que em um raro

momento de consciência de moda, está vestindo também —, bem como a compra de um

hambúrguer em vez de uma salada pode levar você ao esquecimento ou pior.

Caso em questão: Kimberly Shae. Kim tinha tudo a favor dela. Uma família rica,

feições asiáticas impecáveis e um metabolismo que a deixava comer qualquer coisa e

ainda ficar leve o suficiente para permanecer no topo da pirâmide de torcida.

Como a maioria de nós, no círculo central, Kim tinha bebido, ou fingido, em

todas as festas de fim de semana de Ben Rogers. Exceto desta vez. Kim bebeu demais —

ou pelo menos o suficiente para esquecer um dos principais dogmas da garota popular:

beber o bastante para ser boba e flertadora —, mas nunca o suficiente para ficar

estúpida e com tesão. Alguém com um celular com câmera a pegou no ato com sua

queda de longa data e nosso anfitrião, Ben Rogers, atrás da árvore espírito da escola.

Yeah. Todos os rapazes teriam matado para estar no lugar de Ben e nenhuma

garota na festa poderia dizer honestamente que não tinha fantasiado fazer a mesma

coisa — Ben era considerado o mais elegível cara da nossa turma desde a terceira classe,

e, consequentemente, toda menina sonhava em ser a primeira a quebrá-lo. Mas ser

pego? Isso é uma história completamente diferente.

Fotos circularam em poucas horas e, a partir da semana passada, Kim sabia

melhor do ninguém que não poderia sentar-se conosco na cafeteria. Ela escorregou para

uma das mesas de segunda linha1. A nossa cafetaria funciona como um auditório —

com um grande palco na frente da sala — então, há etapas e níveis embutidos. Quanto

mais perto você estiver do fosso da orquestra — o menor e mais exclusivo nível — mais

popular você é.

Eu trabalhei duro praticamente toda a minha vida para manter meu status na

mesa do fosso (um nome repugnante, mas não foi minha ideia, por isso, que seja). Você

não pode simplesmente contar com a sua aparência. Minha mãe me ensinou isso em sua

própria maneira embaralhada. Manter a ilusão de perfeição e ser a inveja de qualquer

outra menina na escola tomava um monte de tempo e esforço, mas eu dei o meu melhor

e valeu a pena.

Quero dizer, veja o meu funeral ontem, por exemplo. Eu nunca tinha visto

tantas pessoas da minha escola aparecerem em um só lugar. Fora da escola, é claro.

Graças a Deus minha mãe tinha estado muito "perturbada" para participar do funeral.

1 No sentido de serem dos populares, mas não os mais populares, como se estivessem em segundo lugar na

hierarquia.

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Explosões emocionais teriam sido aprovadas. Vomitar nos arranjos de flores... Nem

tanto. Enfim, alguém tinha chegado a organizar e distribuir braçadeiras negras com o

meu nome pintado em rosa sobre elas. Eles levaram flores, velas e caixas de lenços de

papel. Pessoas que eu nem sequer realmente conhecia — como a garota gorda de pré-

cálculo que sempre usava estas camisolas largas e feias como se a fizessem parecer mais

magra... Sim, claro, vieram e choraram sobre o meu caixão. Ou bem perto dele, de

qualquer maneira.

Eu até ouvi falar de uma foto permanente no memorial do salão principal, ao

lado da vitrine de troféus de beisebol e futebol. Como líder de torcida da escola, posso

assegurar-vos que somos uma droga no futebol e, se os poucos troféus serviam de

indicação, tínhamos sido uma droga no futebol desde 1933.

Parece ruim, mas para ser honesta, eu me senti um pouco aliviada por estar

morta. Não no começo, é claro. Depois que eu superei o choque, eu tinha estado bem e

realmente brava por um tempo. Então, novamente, passar a noite no necrotério com o

seu corpo tende a tornar qualquer pessoa um pouco irritada. Tudo o que eu conseguia

pensar era em todas as coisas de que eu sentiria falta. Não mais sundaes às escondidas?

Não mais beijos? Ou qualquer coisa mais? Eu tinha morrido uma maldita virgem... E

esse não era o plano.

Mas então, na manhã seguinte, quando eu me encontrei transportada para a

linha central da Rua Henderson, o sol quente no meu rosto, o elevado barulho dos

ônibus, eu percebi outra coisa. Todas as coisas de que eu não iria sentir falta. Entre elas,

eu tinha estado temendo o pensamento da faculdade no próximo ano. Começar de

novo, criar seguidores de novo e competir com outras garotas como eu de escolas da

região... Ugh, totalmente desgastante. Agora eu não tinha que me preocupar com isso.

Minha popularidade foi congelada para sempre no seu pico. Eu me sentia como se

tivesse atravessado a linha de chegada de uma corrida que eu nem sabia que estava

correndo. Morri antes que eu pudesse arruinar minha vida e, apesar de isso ser uma

droga, de certa maneira também era ótimo.

Enfim, depois da impressionante exibição de luto ontem, eu não podia esperar

para ver o que meus amigos fariam a seguir. Será que as minhas companheiras líderes

de torcida — Ashleigh Hicks e Jennifer Meyer — tinham tido tempo para trabalhar na

escultura com cera de vela com o meu rosto que elas tinham discutido ontem entre

soluços e suspiros?

Acelerei o meu ritmo, ansiosa para chegar ao edifício e dar uma olhada no salão

principal antes da campainha tocar e todos começarem a correr em torno. Todos

aqueles corpos passando através de mim — eles não podiam me ver para me evitar e eu

não conseguia fugir de todos — me faziam sentir enjoada.

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O primeiro sinal de que algo estava errado, porém, apareceu antes mesmo de

eu chegar perto do salão principal. No meio do estacionamento peguei Kate Goode,

uma estudante de segundo ano que queria ser popular — terceiro nível em termos de

mesas da cafeteria — olhando em volta disfarçadamente antes de retirar a faixa preta

em torno de seu braço esquerdo e deixá-la cair no chão.

O tecido foi capturado pela brisa viva e flutuou pelo cascalho, finalmente

ficando preso na borda áspera de uma rocha perto dos meus pés para que eu pudesse

ler as palavras: Alona Dare. Descanse em paz.

— Hey! — Eu gritei indignada para Kate, mas, claro, ela nem sequer hesitou ao

som da minha voz inexistente.

Cruzei meus braços sobre o peito. Bom. Vamos ver se ela é a única esquisitona

sem a braçadeira preta. Ela nunca irá chegar à mesa do fosso a esse ritmo.

Exceto que quando eu assisti Kate se juntar a seu grupo de estúpidos amigos do

segundo ano, eu percebi que nenhum deles usava braçadeiras. O grupo de nerds da

banda — quarta camada, melhor do que nerds de matemática, mas não tão bons como

os nerds de ciência porque os nerds de ciência poderiam sempre ser confiados para fazer

explodir alguma coisa — mesmo atrás do grupo de amigos de Kate, também estava sem

a braçadeira preta.

Meu coração começou a bater um pouco mais rápido e uma película de suor

frio cobriu a parte de trás do meu pescoço. Para alguém morta, eu com certeza ainda

"sentia" muito e, neste exato momento, esse sentimento era de terror total e absoluto.

Virei-me em um círculo só para ter certeza — o cascalho estranhamente

silencioso sob meus calcanhares —, mas não... Não havia uma única pessoa em minha

linha de visão usando o símbolo de luto tão orgulhosamente como tinham exibido

ontem. Como isso pode ser?

Ignorando o instinto de longa data para manter a calma e parecer entediada, eu

disparei para a entrada da escola e o Círculo.

Três bancos de madeira — doados por ex-alunos — faziam uma forma de U ao

redor do mastro da bandeira e este era o domínio do meu povo. Primeiro nível em todo

o caminho. A multidão popular tinha relaxado e permanecido aqui por quase uma

década passando a posse para o próximo grupo de jovens esperançosos.

Os bancos estavam gastos por centenas de bundas perfeitas — como a de Ben

Roger — e o mastro da bandeira tinha sido testemunha silenciosa de, tipo, centenas de

amassos pré-primeira-aula-do-dia. Tudo isso ocorria mesmo em frente do escritório,

também, porque nós podíamos fazer isso. Nós éramos "os bons garotos." Deixe um

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pária tentar algo assim e você veria bilhetes para detenção voando. Eu não estou

dizendo que é justo, só que essa é a forma como funciona. Todo mundo sabe disso.

Cheguei ao Círculo um pouco ofegante (sim, eu sei, morta! Mesmo assim...) e

muito mais perto do toque da campainha do que eu queria. Foi mais difícil do que o

normal atravessar a multidão de estudantes bamboleando em direção ao prédio. Eu

nunca percebi como contava tanto com o fato de as pessoas me reconhecerem e saírem

do meu caminho. Pena que acabou.

Como sêniores nós finalmente ficamos com os assentos nos bancos e os meus

amigos tinham tomado os seus habituais lugares. Ben Rogers estava completamente

estendido sobre o banco mais próximo do estacionamento — o seu grupo de pretensas

concubinas circundando-o. Sério, a única coisa que faltava eram as uvas destinadas à

alimentação dele e esses grandes leques do Egito.

Não havia braçadeira no braço coberto de Ben, mas, novamente, ele também

não se preocupou em usar uma na noite passada.

Abri caminho através das futuras conquistas de Ben para encontrar Ashleigh e

Jennifer, juntamente com Leanne Whitaker — outra líder de torcida sênior —

amontoadas perto do mastro da bandeira e digitando mensagens de texto sobre críticas

de moda das massas por levarem jeans da Target e T-shirts sem marca umas às outras.

Elas não tinham braçadeiras também.

Suprimi a vontade de vomitar, virei-me em um círculo rápido e procurei por

um cabelo preto brilhante inconfundível que pertencia à minha melhor amiga — e co-

capitã das líderes de torcida — Misty Evans.

Após um momento interminável — em que o meu coração teria parado, se você

sabe, ele já não o estivesse — achei-a no banco mais distante de mim, meio oculta por

Leanne e as outras.

Eu só podia ver o ombro esquerdo de Misty e o lado da sua cabeça. Seu rabo-

de-cavalo estava balançando enquanto ela conversava com quem estava ao lado dela.

Isso foi suficiente, no entanto, porque na parte superior do seu braço esquerdo, eu

peguei um vislumbre de tecido preto familiar e letras rosa.

Com um sorriso de alívio me dirigi a ela evitando cuidadosamente Miles

Stevens enquanto ele andava para trás e para frente conversando com Ben e Leanne —

que se recusam a falar um com o outro por razões desconhecidas para o resto de nós —

e, em seguida, esquivando de Ashleigh e Jennifer — que decidiram abandonar Leanne

saltando para o colo de Jeff Parker rindo e gritando, quase esmagando seu violão em

sua pressa de fingir serem fãs dele.

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Ashleigh e Jennifer eram amigas desde o jardim de infância e elas faziam tudo

juntas, incluindo comprarem roupas combinando — ou pelo menos cores combinando

— para o ano inteiro. Parou de ser fofo por volta da sétima série, mas elas descobriram

seu truque e iam continuar com ele, não importa o porquê. Apenas uma das muitas

razões para que Leanne as chamasse de as ―gêmeas Idiotas‖. Em seus rostos. Sua

resposta? "Duh. Nós não somos nada parecidas". Hum, sim. Leanne pode ser uma puta,

mas isso não faz com que ela não tivesse razão.

Como acabou por se revelar, Leanne tinha razão sobre muitas coisas.

— Deus, a Misty é tão cadela. Alona ainda nem sequer está fria — Leanne disse

para Miles, enquanto eu passava.

Eu gelei ao ouvir o som do meu nome. Nesse momento de distração, Ashleigh

— com Jennifer ao lado dela — se lançou através de mim — elas estavam tentando fazer

com que Jeff começasse a persegui-las. A sensação de seu corpo demasiado sólido e

quente passando através de mim me roubou a respiração e balançou meu estômago.

Mas, mesmo isso não foi suficiente para me fazer perder a resposta de Miles.

Ele bufou.

— Alona estava fria mesmo antes de ela estar morta.

— Verdade — Leanne sorriu para ele, seu rosto com sardas enrugando perto de

seus olhos.

Eu olhei para eles, atordoada. Nenhum deles tinha falado sobre mim assim

antes... Pelo menos não na minha cara. Eu não duvidava que Leanne falasse mal de

mim pelas minhas costas, mas Miles? Fui eu quem o trouxe para dentro do maldito

Círculo quando ele era novo aqui no ano passado. Ele era o único

garoto negro em nossa escola que não era um atleta. Ele realmente tinha sido um

membro do clube de xadrez (pelo Amor de Deus) antes que eu o salvasse. Não que eu

fosse totalmente altruísta ou coisa parecida. Ele me ajudou com trigonometria e, no

processo, eu descobri a sua capacidade de executar comentários perversos sobre quase

todos da escola. Inclusive eu, pelo que parecia. Deus, o que mais ele tinha a dizer sobre

mim?

— Babaca ingrato — eu disse, incrédula.

Anos de hábito me fizeram caminhar em direção a Misty para dizer a ela o que

eu ouvira. Até que duas coisas muito óbvias clicaram dentro de mim. Primeiro: Misty

não seria capaz de me ouvir. E segundo: o que Leanne e Miles tinham falado sobre mim

tinha realmente começado como um insulto sobre Misty. Leanne tinha a chamado de

puta — algo que Misty iria negar, apesar de suas duas relações semanais com os garotos

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da fraternidade de Milliken, a faculdade na cidade. Garotos do ensino médio não

valiam o esforço, de acordo com Misty.

Eu não podia imaginar o que teria desencadeado em Leanne um assalto no

caráter de Misty. Não era como se houvesse caras da faculdade aqui ou que eu tivesse

interesse em algum deles, mesmo se houvesse. Mas então, quando eu finalmente me

abaixei e desviei caminho para chegar até Misty, tudo ficou claro.

A braçadeira preta com o meu nome destacava-se claramente na blusa de

mangas comprida branca que Misty usava sob sua parte superior do uniforme de

torcida. Seu rabo-de-cavalo preto e lustroso ("condicione com maionese e enxágue com

cerveja", ela costumava aconselhar-me) ainda balançava com os seus movimentos. Mas

ela não estava falando. Ela estava beijando... Beijando meu namorado.

— Misty! — eu gritei. Claro, ela não reagiu. Ela simplesmente continuou

beijando Chris na frente de todos da escola. UM dia após o meu funeral.

Eu não sei se isso me fez sentir melhor ou pior, mas ele também ainda estava

usando sua braçadeira. Misty parecia exausta — com olheiras sob seus olhos fechados

— e sua máscara tinha secado em suas bochechas em longas faixas de lágrimas. Mas

eles estavam se beijando.

— Você acha que Alona sabia sobre eles? — Leanne perguntou a Miles, suas

palavras deslizando de volta para mim. — Quer dizer, eu ouvi dizer que foi por isso

que ela se jogou na frente daquele ônibus. Ela descobriu e não podia enfrentá-los e todo

mundo sabendo.

— Eu não me atirei na frente de nada — eu gritei para Leanne, embora eu não

pudesse afastar o meu olhar de Misty e Chris. — Foi um acidente...

— Eu continuei esperando que ela pudesse vê-los. Vir aqui e jogar alguns gritos

gigantescos... — Leanne fez uma pausa. — Agora isso teria sido alguma coisa, certo? —

sua voz continha tanta decepção quanto alegria malvada.

— Por favor, Alona não via nada a não ser Alona — Miles disse.

Empurrada para lá do meu ponto de ruptura, me afastei de Misty e Chris,

sentindo-me como se estivesse prestes a vomitar. Não parecia provável — considerando

que eu não tinha realmente comido nada em três dias — mas não estava disposta a

apostar contra isso, dada a forma como as coisas vinham acontecendo. Suor frio cobriu

minha pele e meu estômago se contraiu de forma alarmante. Engoli seco.

— Por que mais que ela estaria fugindo da escola no meio da hora zero? —

Leanne continuou.

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— Cale a boca! — eu me dobrei ao meio, embalando meu estômago com os

braços e percebi que podia ver através das minhas pernas. Tipo, completamente através

delas, como se elas nem sequer lá estivessem. A partir dos joelhos para baixo eu

começara a desaparecer. — Não! — eu uivei. Isso não era justo. Eu estava sendo levada

agora? Por que não ontem quando eu podia ter morrido ou avançado, ou o que seja, em

felicidade? E não havia sequer uma luz branca... Em lugar nenhum!

— Talvez ela tenha esquecido sua mascara de backup e teve de correr para casa

para ir buscá-la — Miles ofereceu um sorriso de escárnio na sua voz.

Levantei a cabeça para encará-lo. Eu contei-lhe sobre a minha teoria da máscara

de backup em segredo.

Leanne riu.

Eu tentei correr para sair de lá, mas as minhas pernas — meio desaparecidas

como estavam — não funcionaram. Eu desmoronei na grama observando a linha de

invisibilidade subindo até à bainha de meus shorts. A este ritmo, eu teria desaparecido

em menos de um minuto.

Incapaz de me impedir, eu girei a cabeça para ver minha ex-melhor amiga com

o meu ex-namorado em um embaraço de línguas — algo que, aparentemente, não era

sequer uma novidade. Há quanto tempo eles estavam juntos? Há quanto tempo estavam rindo

de mim? Misty sabia quase tudo sobre mim. Coisas que eu não queria que ninguém mais

NUNCA soubesse. Ela era a única pessoa a quem eu tinha dado permissão para vir a

minha casa durante anos. E se ela disse a Chris tudo sobre isso? Leanne tinha estado

zombando de mim por trás das minhas costas todo esse tempo? Pior ainda. E se as

pessoas tivessem tido pena de mim, Alona Dare?

Lágrimas quentes deslizaram pelo meu rosto, mas quando eu cheguei para

enxugá-las... Minha mão tinha desaparecido.

— Não, não, não. Isso não é justo. Isto é uma besteira. Eu não mereço isso. Eu

fiz tudo certo! — eu soluçava, perdendo o controle completamente. Chorar arruína sua

maquiagem, para não mencionar a cascata eventual de catarro com que você tem que

lidar — razão pela qual eu nunca me deixei derramar uma única lágrima na companhia

dessas pessoas. Mas nenhum deles poderia me ver agora e eu nunca iria ver nenhum

deles novamente, então, quem se importava, certo?

A campainha tocou e todos ao meu redor se mexeram para recolher mochilas,

bolsas, e malas de guitarra. Então, eles apenas passaram por mim em seu caminho até a

porta. Primeiro, Jeff, que foi rapidamente seguido por Ashleigh e Jennifer — cujas

bolsas minúsculas não possuíam espaço para carregar qualquer tipo de escultura em

cera de vela, não importa quão pequena fosse. Em seguida, passou Ben, com um braço

em torno de suas duas calouras virgem escolhidas para os sacrifícios. Leanne na

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verdade ficou em cima de mim e verificou o batom em seu reflexo sobre a brilhante

superfície do seu celular.

— Cadela — eu cuspi.

Chris e Misty — segurando as mãos — não andaram através de mim, mas

apenas porque eles já estavam perto da porta. E, além disso, eles já não me tinham

humilhado o suficiente?

Com apenas minha cabeça restando eu observei a escola inteira desfilar por

mim rindo, brincando e se preocupando com testes pop como se eu nunca tivesse

existido. Como se eu não tivesse acabado de morrer tragicamente há apenas TRÊS dias.

— Isto é o inferno. Isto tem que ser o inferno — disse eu, com a voz anasalada e

trêmula com lágrimas.

Como que para confirmar esse fato, Will Killian — o maior perdedor esquisito

de todos os tempos — olhou diretamente para mim e sorriu quando ele passou perto de

mim, apenas à frente de seus amigos maconheiros.

— Hey! — eu gritei, furiosa. Como ele tinha o direito de rir de mim! Mesmo

morta eu era mais popular do que ele. Ele era material perdedor total. A pele era tão

pálida que ele praticamente brilhava e o cabelo preto despenteado pendia na frente de

seus assustadores olhos azuis. Sério, eles eram tão pálidos, que eram quase brancos. E,

ei, ele agia como uma total aberração — sempre usando fones de ouvido e puxando o

capuz de seu moletom para cima, mesmo no interior do edifício. Segundo os boatos, ele

até passou um verão em algum hospital mental em algum lugar. Não havia uma

camada de popularidade baixa o suficiente para sinalizar onde ele pertencia. E ele

estava rindo de mim?

Killian desviou o olhar rapidamente, curvando seus ombros em seu moletom e

olhando para o chão — seu habitual comportamento antissocial-psicológico-em-

formação.

Espera... Espera. Alguma coisa sobre isso...

Eu franzi o cenho. Embora estivesse certa de que minha boca se foi e meus

pensamentos estavam ficando nebulosos. Se ele estava rindo de mim, isso só poderia

dizer que ele podia me ver. E isso significava...

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Will Killian

Rir da morte nunca é uma boa ideia, mas eu não podia evitar. A grande Alona

reduzida a uma idiota chorando descontroladamente e de nariz escorrendo? Quantas

vezes você pode ver coisas assim?

Não muitas.

A menos, claro, que você seja eu. Sortudo, eu sou muito sortudo. Mas também

era eu que, acima de qualquer outra pessoa, devia ter compreendido que rir de alguém

sempre vem com um preço kármico.

— Sr. Killian — o diretor Robert "Sonny" Brewster cumprimentou-me logo que

o meu pé atravessou a entrada da escola. — Ainda bem que você pôde se juntar a nós

hoje. Embora você pareça estar atrasado... De novo.

— Eu não estou — protestei.

Brewster apontou para o teto, e, como se por vontade dele, a campainha tocou.

— Atrasado — eu murmurei.

Atrás de mim, Erickson e Joonie se arrastaram passando pela porta e indo para

a aula deixando-me lidar com Brewster novamente. Joonie me deu um olhar de

desculpas por cima do ombro, mas eu não culpava a ela ou a Erickson. Eles estavam

apenas contentes por ele ter decidido concentrar-se em mim e deixá-los sozinhos.

Afinal, eles estavam tão atrasados quanto eu, mas, aparentemente, eles não acionavam

"o detector de aberrações" de Brewster — como ele o chamava, tanto como eu o fazia.

Achava isso um pouco difícil de acreditar — considerando o número de piercings que

Joonie usava no rosto e como os olhos de Erickson estavam injetados. Mas, por alguma

razão, eu era o favorito de Brewster.

Brewster sorriu. Uma expressão que não fez nada para suavizar a dureza do seu

rosto e as linhas de cortes brutais de seu penteado militar. Um completo ex-militar. Era

isso que Brewster era. Ah, e não se esqueça da homofobia mal reprimida, das explosões

16

violentas — impulsionadas pela testosterona — e da obsessão pelo seguimento das

regras porque são REGRAS.

— Eu acho que é hora de ter outra conversa sobre o seu futuro, Sr. Killian — ele

juntou suas mãos atrás das costas e balançou novamente em seus calcanhares.

— Outra vez? As pessoas estão começando a falar.

Sua mão se esticou pegando o ombro do meu moletom e esmagando o tecido

em seu punho. Tropecei em direção a ele sob a força da sua garra. Seus olhos escuros

brilhavam com fúria e avidez.

— Vá em frente — disse eu. Se ele me batesse, seria demitido. Ele sabia disso.

Todo mundo sabia disso. Já havia um monte de queixas contra ele por seu

temperamento. E então se eu o ajudei um pouco? Minha vida seria muito mais fácil se

ele se fosse.

Ele me soltou e esfregou a mão em seu paletó — como se tocar-me o tivesse

coberto de lodo.

— Meu escritório, agora.

Ele atravessou todo o salão principal para os escritórios administrativos, sem

sequer verificar para ver se eu o seguia. Era tentador fugir e deixá-lo sentado ali

sozinho, mas eu só tinha que aguentar mais algumas semanas. Apenas 28 dias e, então,

eu teria dezoito anos e seria um graduado do ensino médio — ambas as condições

necessárias de acesso ao pouco dinheiro que meu pai e minha avó me deixaram. Uma

vez que eu tivesse isso, sairia daqui com destino a algum lugar com apenas algumas

pessoas e, portanto, ainda menos fantasmas. Como alguma ilha deserta... Ou Idaho.

Se Brewster me suspendesse, seria o final do plano.

Então, segui-o como ele tinha instruído. Só demorei o meu próprio tempo para

fazer isso.

Veja... Eis a droga sobre a escola e, acredite em mim, eu tive bastante tempo

para pensar nisso. Professores, pais, conselheiros de orientação... Todos eles estão

sempre dizendo essa porcaria sobre ―como está tudo bem em ser diferente‖, basta ser

você mesmo. Não ceder à pressão do grupo, blá, blá, blá. A verdade é que realmente

está tudo bem em ser você mesmo, desde que dentro de uma faixa aceitável de

"normal." Você gosta futebol em vez do basquete, Johnny? Bem, ok, eu acho, desde que

você ainda goste de esportes. O que se passa, Susie, você pretende vestir a blusa azul,

em vez da vermelha? Você sabe que nós somos todos a favor de expressar a

individualidade aqui... Desde que ainda seja uma blusa.

17

Como você pode esperar que qualquer um de nós acredite que não há problema

em ser diferente quando nem mesmo os adultos acreditam? Só porque os populares —

os tão chamados garotos de primeira linha — parecem "normais" e dizem as coisas

"certas", ninguém sequer olha duas vezes para eles. Ben Rogers fornece maconha para a

escola quase toda, mas ele já foi investigado alguma vez? Só este ano eu já fui chamado

ao escritório de Brewster doze vezes e tive o meu armário examinado uma vez por

semana.

Brewster estava esperando na porta de seu escritório pessoal quando eu

finalmente cheguei à mesa da secretária. De onde eu estava era possível ver seu

músculo da mandíbula contraindo.

Assenti na direção da Sra. Piaget — a secretária da escola —, que sorriu de

volta, mas logo desviou o olhar. Ela sempre teve um fraquinho por mim —

provavelmente vendo todas as notas ao longo dos anos para várias consultas no médico

e sobre as doenças —, mas mesmo ela sabia que era melhor não desafiar Brewster.

Brewster fechou a porta do escritório com força quando eu entrei, quase

arrancando meu ombro no processo.

— Mochila — ele exigiu estendendo a mão.

Oh, por favor. Eu resisti à vontade — com dificuldade — de rir dele. Eu aprendi

muito tempo atrás que mochilas eram, para todos os efeitos, vistas como propriedade

da escola. Você nunca vai encontrar nada ilegal na minha.

Deslizei a mochila para fora dos meus ombros e a entreguei para ele e, então,

me deixei cair em uma das cadeiras plásticas azuis para visitantes na frente de sua

mesa.

— Quem disse que você poderia sentar-se — perguntou ele.

Dei de ombros e não me mexi. Ele estaria muito interessado em pegar-me com

alguma coisa ilegal na mochila para forçar a questão da cadeira imediatamente. Eu

tinha percorrido esta rotina vezes suficiente para saber isso.

Brewster abriu o zíper da mochila e despejou e seu conteúdo na imaculada e

polida superfície da sua mesa de madeira. Pelo brilho da mesma, Brewster tinha estado

liberando uma grave frustração sexual.

Balancei-me na cadeira, inclinando-a para trás nas duas pernas traseiras.

— Você a lustra sozinho? Isso deve requerer muita ação de pulso.

Seu olhar se ergueu a partir da pilha — agora desordenada de pastas, papéis e

livros — para avaliar a minha expressão.

18

Abri os olhos arregalados, a verdadeira imagem de inocência.

— O quê? — perguntei. Há muito tempo que eu dominava a arte de manter

meus sentimentos para mim mesmo. Confie em mim. Se você vê os mortos andando

por aí, você aprende a não gritar, rir ou irritar-se muito rapidamente.

— Você pensa que é esperto, Sr. Killian?

Eu encolhi os ombros.

— Não particularmente — eu sabia que o irritava, porém, porque ele tinha visto

a pontuação do meu teste.

Fiz 32 — dos 36 pontos — no ACT2 do ano passado e eu tinha estragado

totalmente a curva padronizada de todos os testes que eles poderiam oferecer. Eu não

podia evitar. Apenas um dos poucos, muito poucos, benefícios do meu dom. Afinal de

contas, não era difícil lembrar-se da história quando eu era cercado por pessoas que a

tinham vivido. E os fantasmas que andava na escola o tempo todo estavam muitas

vezes entediados o suficiente para ler sobre o seu ombro e fazer a sua lição de casa em

voz alta — mesmo que ninguém pudesse ouvi-los. Ninguém, exceto eu, é claro.

— Você só tem mais um mês aqui e, então, você estará lá fora no mundo muito

além do meu alcance — ele começou a folhear as minhas coisas, como se estivesse

procurando alguma coisa.

— Cara, não há nada para encontrar, eu lhe poderia ter dito.

— E mesmo assim, Sr. Killian, eu vou me sentir um fracasso como um

educador.

— Ei, não seja tão duro consigo mesmo, Sr. B., todo mundo falha às vezes — eu

não podia acreditar que ele estava me dando isso. — Algumas pessoas mais do que as

outras, porém, eu acho.

Ele rangeu os dentes e as articulações da mão — segurando meu livro de física

— ficaram brancas.

— Eu vou me sentir como um fracasso se você não sair daqui sem pelo menos

uma lição aprendida — deixou cair o livro de volta em sua mesa e cavou na minha

mochila novamente, desta vez o pequeno bolso na frente. — Ah, aqui estamos nós —

ele soltou o meu iPod nano3 na mesa com um barulho descuidado. Os pequenos fones

arrastando.

2 Abreviação para American College Testing (algo como um teste padrão para os alunos do ensino médio, para as

admissões na faculdade).

3 Modelo de iPod.

19

— Ei, cuidado! — assentei minha cadeira em todas as quatro pernas novamente

com um baque. O nano — que eu apelidei de Marcie, em homenagem à garota lógica e

inteligente dos desenhos animados Peanuts — era vital para mim nestes dias.

— A lição é — ele continuou como se eu não tivesse falado — que você não

pode ter sempre tudo como quer — ele pegou Marcie, envolvendo os fones de ouvido

ao seu redor e despejou-a na gaveta de sua secretária. — Sem música durante uma

semana.

— Você não pode fazer isso — eu disse imediatamente. Minhas palmas das

mãos começaram a suar, coçando pelo conforto frio de Marcie na minha mão. — Eu

tenho uma condição médica que...

— Oh, sim, Sr. Killian, eu sei tudo sobre a sua ―doença‖ — ele sorriu muito

satisfeito por ter obtido uma reação de mim. — Visitas duas vezes por semana com seu

psiquiatra durante o horário escolar, nada menos. Permissão para sair da aula conforme

o necessário. Música permitida durante as suas aulas de modo que, as ―vozes‖ — ele

sacudiu as mãos perto de sua cabeça — não incomodem você. Mas você sabe o que eu

acho? — ele fechou a gaveta com um empurrão e puxou um chaveiro de dentro do

bolso do casaco. — Você é uma semente ruim. Em alguma altura ao longo do caminho

você descobriu como era fácil enganar todos e passar a vida com uma "deficiência" —

separou uma pequena chave de prata do chaveiro e trancou a gaveta. — Mas você não

me engana.

Sem Marcie, eu estava fodido. Os mortos falam o tempo todo, mesmo quando

eles acham que ninguém está escutando. O barulho é enorme, sem mencionar o esforço

que leva para não responder.

De repente, eu não conseguia respirar. Ir para as aulas, andar pelos corredores

sem a minha música... Eu estaria enrolado em um canto antes mesmo de a primeira

hora acabar. A semana em que Marcie tinha ido — para substituir a bateria —, minha

mãe tinha quase assinado os papéis de compromisso. Eu não podia deixar isso

acontecer novamente. Eu teria que assumir o risco com Brewster.

Brewster sacudiu a cabeça, fazendo tesk4.

— Demasiados mimos em casa e autoindulgência nesses voos de fantasia. Se a

sua mãe tivesse enviado você para a escola militar como eu...

— Como seu avô enviou seu pai para escola militar, esperando que

espancassem a fantasia para fora dele? — perguntei, incapaz de acreditar que as

4 Som de reprovação.

20

palavras tinham escapado, apesar de tudo o que eu prometi. Ele realmente deveria ter

deixado Marcie fora disso.

O rosto de Brewster ficou branco e depois vermelho.

Eu fiquei tenso no meu lugar, mas mantive a voz firme.

— E funcionou por um tempo — continuei. — Até a sua mãe morrer e ele se

aposentar na Flórida, onde conheceu o bom vizinho, Charlie.

Brewster nem se incomodou em dar a volta na escrivaninha. Ele se esticou na

cadeira, sua mão estendendo-se para se fechar em torno de minha garganta.

Eu empurrei a cadeira para trás no mesmo instante e os dedos dele não

agarraram nada, senão o ar.

— Você pode me ouvir — disse o avô morto de Brewster — jovem novamente e

vestido com o seu uniforme da Segunda Guerra Mundial — surpreso do seu lugar sobre

o aparador de madeira polida ao lado da escrivaninha. Seu cigarro sem filtro — ainda

aceso — caiu da sua boca para o chão e rolou até parar próximo do meu pé.

Eu ignorei o vovô Brewster e o cigarro com a prática de muitas visitas a este

escritório.

O avô Brewster estava aqui na maioria das vezes — conversando com seu neto

predileto, desejando que ele fizesse as pazes com seu pai, enquanto ainda havia tempo

para que eles tivessem um relacionamento decente, algo que ele nunca tinha

conseguido enquanto estava vivo.

Essa era a chave com os mortos. Ignore-os tempo suficiente e eles vão desistir.

Oh, eles não vão parar de falar... Nunca. Mas eles vão parar de esperar que você

responda, imaginando que o que eles pensaram que era conscientização fora apenas um

acaso.

— Você pervertido retardado — cuspiu Brewster. — Você não sabe de nada.

Meu pai é um bom homem — deu a volta à mesa para chegar a mim.

Eu tencionei — pronto para me mover — e simulei um fácil encolher de

ombros.

— Tenho certeza que ele é. Ele provavelmente estaria terrivelmente

decepcionado ao ouvir que seu filho foi demitido por tentar sufocar um estudante.

Brewster congelou.

21

— O que você acha que está fazendo, garoto? — vovô Brewster exigiu. Ele tinha

recuperado o suficiente de seu choque para deslizar para fora da borda do armário e

ficar em cima de mim. — Mexendo com o meu Sonny dessa maneira?

Eu encontrei o olhar de Brewster sem vacilar.

— Dê-me a minha música de volta e nada disso aconteceu. — era uma aposta,

mas ele tinha me encurralado.

Sua mandíbula se apertou furiosamente e pude vê-lo pensando nas alternativas.

— Ninguém mais viu. Não existem marcas em você. Vai ser minha palavra

contra a sua.

— Verdade — disse eu, fingindo considerar a possibilidade. — Mas neste

momento eu me pergunto se seria necessário muito mais do que palavras para

convencer o conselho escolar? Ouvi dizer que foi uma votação muito apertada da

última vez.

Brewster me encarou, mas eu me recusei a desviar o olhar. Então, o cheiro

pungente de algo queimando atingiu o meu nariz.

Automaticamente olhei para o chão, buscando pelo cigarro do vovô Brewster e

encontrei a borda de borracha do meu tênis ardendo. Uma pequena chama azul

surgindo ao lado.

— Merda — levantei-me em um pulo, torcendo o pé contra o tapete para apagar

o fogo.

— Você vê isso? — o avô Brewster disse com uma nota de admiração na voz

dele. — Eu estarei condenado.

— Sem brincadeira — eu murmurei. Com o fumo embaixo do meu sapato

diminuindo, eu parei os meus esforços de extinção, tempo suficiente para esmagar o

cigarro debaixo do meu calcanhar. Um cigarro que o diretor Brewster não podia ver.

Eu parei e ergui o olhar para encontrá-lo me observando. Nojo se espalhando

pelo rosto.

— Patético — zombou Brewster. — Você acha mesmo que vou acreditar em seu

ato ―louco?‖ — disse. De sua perspectiva, eu pulei de minha cadeira para esfregar meu

sapato contra o tapete sem nenhuma razão aparente. A história da minha vida.

Brewster balançou a cabeça.

— Você pode dizer ao conselho da escola o que quiser. Ninguém vai acreditar

em você.

22

Infelizmente, ele estava certo sobre isso. Eu tinha um pequeno problema de

credibilidade nestes dias.

— Eu poderia ligar para minha mãe — eu estremeci interiormente. Deus, não

havia nenhuma maneira de pronunciar essa frase com qualquer tipo de dignidade.

— Se você fizer isso, sabe que ela vai te tirar daqui para fora em um instante e

despejá-lo no manicômio — seu olhar desceu para os meus pés no tapete. Só vovô

Brewster e eu podíamos ver as marcas chamuscadas. O dano no meu sapato era

bastante real neste mundo, mas a menos que alguém tocasse na borracha derretida do

lado de minha sola para descobrir que ainda estava quente e que tinha sido queimada

recentemente, poderia ter acontecido a qualquer momento. — Estou começando a achar

que é o lugar que você pertence.

— Então me deixe ter a minha música de volta. Ela... Ajuda — dei um rápido

olhar de esguelha para o vovô Brewster — que ainda estava ao meu lado, em silêncio

pela primeira vez — enquanto observava a nossa conversa. Isso não poderia ser bom.

Brewster sorriu. Uma expressão que eu aprendi a temer. Ele virou-se — já não

era sem tempo — e caminhou até a porta do escritório, puxando-a aberta.

— Sra. Piaget — ele latiu.

Algo caiu e eu ouvi o barulho de lápis ou canetas ao baterem na mesa e rolarem

pelo chão de linóleo.

— Uh, sim, senhor?

— Escreva ao Sr. Killian um passe para a aula. Informe seu professor da

primeira hora que ele não pode ter qualquer tipo de distração durante as aulas,

incluindo a música. Em seguida, certifique-se de que o resto de seus professores

também saiba.

— Mas, senhor, ele tem...

— Isso é tudo — fechou a porta com força.

— Eu podia matar aula — eu indiquei quando ele voltou a ficar atrás de sua

mesa maciça. Não era como se eu nunca tivesse feito isso antes. Eu ainda consegui um

3,4 no GPA5.

— Eu poderia recomendar a expulsão — disse ele.

5 Média escolar de notas, nos EUA a escala vai de 0 a 4, portando um 3.4 corresponde a um B, que é a segunda

melhor classificação, só superada por um A.

23

Dr. Miller, meu psiquiatra, ficaria feliz. Dar-lhe-ia a desculpa perfeita para fazer

o regime mais permanente do que eu precisava para "estar seguro". Tradução: um

gotejamento contínuo de lítio e um garoto que comesse cascalho como meu

companheiro de quarto.

— Qual é o seu problema? — exigi. — Eu nunca fiz nada contra você. — até

hoje, obviamente. Mas ele tinha mantido este rancor desde o primeiro instante em que

eu o conheci.

— Não é óbvio, Sr. Killian? — ele começou a empurrar os meus livros, cadernos

e pastas de volta na minha mochila sem cuidado, amassando páginas e rasgando

papéis. — Você é um insulto a todos os estudantes daqui que fazem um esforço

verdadeiro. Você é uma má influência para garotos responsáveis e bem comportados,

como a jovem Miss Turner.

Senti-me como se tivesse sido socado com a menção de Lily, mas me recusei a

demonstrar isso. Essa era uma festa de primeira linha — de jeito nenhum eu estaria lá.

Ela também não deveria ter estado lá.

Brewster me ignorou.

— Sem mencionar que você é um desestabilizador e uma distração com todas as

suas "necessidades especiais‖.

— Você diz isso para todas as crianças doentes?

Ele fez uma pausa, sentindo problemas de uma nova direção. As escolas

públicas não tinham permissão para discriminar... Por qualquer motivo.

— Você não está doente, Killian. Você está perturbado, talvez, e desesperado

por atenção vindo de qualquer maneira que você possa obtê-la, incluindo manipulando

sua mãe e escavando meu lixo para saber mais sobre minha vida pessoal. Mas você não

está doente.

Revirei os olhos. Por que as pessoas sempre pensavam que era do lixo? Como se

eles não reparassem em alguém remexendo seu lixo na calçada. Eu não conseguia

lembrar quantas vezes já tinha ouvido esse argumento.

— O que você poderia ter eventualmente jogado fora e que me dissesse que o

seu pai é gay e...

— Você acha que é tão inteligente. É o meu trabalho te ensinar que você não é

preparado para o mundo real — ele lançou minha mochila agora cheia para mim, mas

eu a peguei antes que atingisse minha barriga.

— E se eu estou dizendo a verdade? Você alguma vez considerou isso?

24

— É apenas um monte de bobagens que você vendeu para esse charlatão a

quem sua mãe te leva.

Na verdade, o Dr. Miller tinha me diagnosticado como esquizofrênico — uma

doença real e que estava nos livros de medicina e tudo, mas que não era o que havia de

errado comigo. As vozes que eu ouvia e as coisas que eu via... Elas eram reais, embora

ninguém pudesse vê-las. Até onde eu sabia a medicina não reconhecia essa condição. A

cultura popular sim, graças a programas de TV como A Médium e Ghost Whisperer

(Jennifer Love Hewitt é gostosa, mas a série é uma droga) e diversos filmes. Mas tente

dizer a um dos três psiquiatras para adolescentes desta cidade elegante que é Decatur

que você vê pessoas mortas. Veja o que acontece. É chamado de internamento

involuntário 24 horas.

— Estamos terminados aqui — Brewster saiu detrás de sua mesa e abriu a

porta. — Vá para a aula.

Tanto quanto eu odiava estar em seu escritório, era mais seguro aqui do que no

corredor ou mesmo nas salas de aula. Quanto menos pessoas vivas na sala, menos

mortos seguiam. Aqui eu só tinha o vovô B. com quem lidar, mas lá fora, eu estaria

cercado, engolfado, me afogando em um mar de gente morrendo de vontade de ser

ouvido. Um deles em especial, também parecia disposto a me matar para conseguir o

seu objetivo, qualquer que fosse.

O pensamento de enfrentá-lo sem Marcie ou qualquer outra coisa para servir

como uma distração fez minhas palmas das mãos úmidas de suor. Se ele me

encontrasse aqui e agora, exposto como estava, eu seria afortunado se acabasse na ala

psiquiátrica.

— Olhe, eu só tenho mais algumas semanas aqui — me focando numa zona

branca no bocado de carpete onde alguém tinha obviamente tentou limpar uma

mancha. Forcei as palavras para fora, mantendo o meu olhar para baixo. Eu não

suportava ver o seu entusiasmo. — Eu quero sair daqui tanto quanto você quer que eu

vá. Apenas me deixe ter a minha música de volta. Por favor.

— Significa assim tanto para você, hum? — seus altamente polidos sapatos

pretos entraram no meu alcance de visão balançando para trás em seus calcanhares e

depois avançando para frente novamente.

— Sim — fiz uma careta e forcei a próxima palavra a sair — Senhor.

— Ótimo. Assim as consequências de ter que ficar sem ele terá algum

significado para você.

Eu levantei meu olhar do chão e olhei para ele em choque.

25

— Bastardo.

— Cuidado, garoto — resmungou o avô Brewster junto ao meu ouvido.

Um sorriso arrogante se espalhou no rosto de Brewster. Sem tirar os olhos de

mim ele gritou para o escritório exterior novamente.

— Sra. Piaget, defina ao Sr. Killian uma detenção depois da escola também.

— Ah... Ok — veio a resposta distante e vagamente consternada.

Ele apontou para a porta aberta.

— Hora de recolher os seus ganhos, camarada.

No processo de colocar a minha mochila nos meus ombros de novo, eu parei.

De todos os estúpidos nomes que ele poderia ter escolhido...

— Não me chame assim.

— O quê? — Brewster parecia confuso por um segundo antes de surgir

compreensão, junto com um brilho maligno nos olhos dele. Nunca dê a um valentão

mais munições, eu sei, mas eu não poderia deixar essa passar. Eu simplesmente não

conseguia.

— O que há de errado com camarada, camarada? — ttriunfo vibrou em sua voz.

Ele havia encontrado uma arma para mexer comigo, e a usava com alegria.

— Não.

— Por que não… Camarada?

Eu podia ter-lhe dito a verdade — que tinha sido apelido do meu pai para mim

e que ouvi-lo vindo dele, com tal desprezo e condescendência me fazia querer socar o

seu rosto. Mas isso só teria lhe dado mais com que trabalhar. Eu podia também ter

seguido o caminhos dos direitos humanos, eu sou uma pessoa com um nome, use-o,

mas ele não se importaria com isso. Assim, em vez disso fui para a rota mais direta.

— Não me chame assim ou eu vou te dizer coisas que vão fazer com que você

deseje a Deus ter virado a sua arma de serviço para si mesmo, naquela noite, em vez de

jogá-la no Rio Sangamon.

Sua boca trabalhou impotente, mas não emergiram palavras.

Brewster tinha quase se matado trinta anos atrás, poucos anos depois que ele

voltou do Vietnã. Um jovem que tinha visto e feito muito em uma selva a meio mundo

de distância. Ele acabou atirando sua arma no rio em vez disso, envergonhado com o

fato de ter sequer pensado sobre a possibilidade de suicídio — uma saída para

26

perdedores. Seu avô morto há apenas um par de anos nessa altura, tinha estado ao lado

dele o tempo todo. Os mortos veem tudo, cara, quer você queira quer não e, eles dizem

muito para mim, mesmo que não saibam que eu estou ouvindo.

— Você não devia estar falando isso, miúdo — vovô B. parecia alarmado.

Eu o ignorei e empurrei Brewster para recolher o meu passe — papel de

detenção — e um simpático sorriso da Sra. Piaget no escritório exterior.

Eu estava abrindo a porta para o corredor principal quando Brewster recuperou

o suficiente para sair de seu escritório, olhos selvagens, as mãos crispadas ao seu lado.

— Vamos ver como você sobrevive o resto do ano sem os seus privilégios

especiais, sua pequena aberração — ele cuspiu em mim, mas não se aproximou. Bom o

suficiente para mim.

— Bob! — Sra. Piaget voltou-se para olhar para ele.

Seria um milagre se eu conseguisse sobreviver uma hora. Mas, pelo menos

quando eles me carregassem para fora, ele não estaria me chamando de desportista. Eu

assenti. Ponto para mim.

27

3

Alona Dare

A superfície abaixo de mim era mais dura que a minha cama e estava longe de

ser suave o suficiente para ser uma nuvem. Estendi a mão sem abrir meus olhos e os

meus dedos roçaram... Cascalho?

Abrindo os olhos eu me encontrei. Onde? Do lado esquerdo da linha amarela

na Henderson. Não um sonho, não o céu, simplesmente exatamente de volta para onde

eu tinha começado. Morta no meio da estrada.

Sentei-me engolindo a vontade de começar a chorar novamente. Quero dizer,

claro que eu estava presa no inferno, certo? Condenada a viver, invisível e inaudível,

enquanto a minha melhor amiga dá amassos, vai para a faculdade e eventualmente se

casa com meu namorado. Apenas o pensamento me fez querer me enrolar numa bola

ali mesmo na estrada.

Então eu o fiz, descansando a minha bochecha contra o aquecido asfalto. Como

se eu tivesse outro lugar para onde ir. Como se alguém pudesse me ver. Então eu

lembrei quantas vezes vira pessoas caipiras cuspindo tabaco pela janela do carro a

caminho da escola, nojento! Então me mudei para a calçada.

Atrás de mim os campos de tênis estavam preenchidos com sons da vida. As

pessoas rindo, as bolas de tênis caindo e as cercas de arame chocalhando. Virei-me

assustada. Era a aula de ginástica na primeira hora da Sra. Higgins. Eu costumava vê-

los agrupados atravessando todo o campo de softball até às quadras quando eu estava

na administração e olhando pela janela em total tédio, desejando que eu estivesse em

qualquer lugar, menos lá.

Já estava no meio da primeira hora? Não era assim que as coisas normalmente

funcionavam. Durante os últimos três dias sempre que eu tinha ficado cansada (sim,

isso ainda acontecia) eu ia para casa, me enrolava no sofá do escritório do meu pai e

fechava os olhos. Então, pronto. Quando eu abria meus olhos, eram 7:00 de novo — eu

podia dizer pelos ônibus passando — e eu estava na estrada. Literalmente. Era como se

algum botão de reiniciar gigante fosse pressionado a cada dia.

28

Mas desta vez... Eu não sabia o que pensar. Nunca fui "reiniciada" no meio da

manhã antes. Claro, eu também nunca tinha desaparecido antes. Estremeci. Para onde

exatamente eu tinha ido? Eu não conseguia me lembrar. Será que isso importava? Não

por isso. Eu ainda estava presa aqui, isso era claro. Presa e impotente.

Olhei para lá dos campos de tênis, para a janela onde a minha aula de

administração prosseguia sem mim. Agora eu teria matado para ter a chance de ser

entediada pelo Sr. Klopinski. Para estar viva. Para derrubar Misty na frente de toda a

cafeteria. Então, nós veríamos quem ria de Alona Dare. Ninguém.

Exceto talvez Will Killian.

Franzindo a testa, levantei-me e comecei a andar, mesmo a tempo do

calhambeque verde e desagradável de Jesse McGovern passar através de mim —

quando ele acelerou a partir do estacionamento para ir para suas aulas dadas para

perdedores na escola de comércio da cidade. Eu ignorei a sensação de frio arrepiante,

tentando me focar em uma vaga lembrança que lutava para vir à superfície. Lembrei-

me de ouvir Leanne e Miles falando mal de mim e de ver Misty beijando Chris, isso era

bastante claro. Depois disso, porém, tudo começou a ficar um pouco borrado. O sino

tinha tocado e as pessoas começaram a entrar no edifício, e então...

O sorriso zombeteiro de Will Killian e o azul claro de seus olhos apareceram na

minha cabeça. Ele riu de mim. Ele olhou para mim e sorriu, deleitando-se de minha

miséria. Qualquer outro dia teria estado preocupada que alguém como ele estivesse

tirando sarro de mim, mas hoje, tudo que eu conseguia pensar era que, para fazer isso,

ele tinha que ter sido capaz de me ver. Ou mesmo me ouvir.

Se Killian podia me ver ou ouvir, talvez outras pessoas pudessem também.

Talvez eu não estivesse realmente morta ou pelo menos, não completamente. Embora o

que eu tinha visto no meu funeral indicasse o contrário. Eu os tinha visto enterrarem o

caixão e...

Balancei minha cabeça fazendo o meu cabelo voar contra meu rosto. Não. Eu

não podia pensar sobre isso agora. Estar morta e presa aqui para sempre, incapaz de

fazer qualquer coisa, não seria justo.

Tinha que haver outra explicação e Killian provavelmente sabia de tudo, tendo

em conta a aberração que ele era.

Tudo o que eu tinha que fazer era obrigá-lo a me dizer.

Muito fácil. Afinal, ele podia me ver, certo? Aberração ou não, Killian ainda era

um garoto.

29

Mandei o meu cabelo para trás sobre meus ombros, alisando-o para baixo.

Depois de outro segundo para puxar meus calções de volta para o lugar.

Evidentemente, ser atropelada por um ônibus faz com que você fique com a roupa

desalinhada semi permanentemente. Eu não podia fazer nada sobre a grande marca de

pneu que atravessava uma diagonal por todo o meu suéter branco — embora eu o

odiasse — e o meu batom favorito provavelmente ainda estava no armário que eu

compartilhava com Misty. Se ela não tivesse ficado com ele, também.

Contudo, eu parecia muito bem para uma menina morta — disse para mim

mesma. Não que eu pudesse ver o meu reflexo nem nada, mas quando eu acordei aqui

dias atrás, eu imediatamente verifiquei meus braços e as pernas procurando cortes

abertos com ossos saindo e coisas nojentas como essas. Não achei nada além de alguns

hematomas e arranhões que desapareceram no dia seguinte. Minha cara — que eu

havia explorado com cautela com os meus dedos — também me tinha parecido intacta.

Aparentemente — de acordo com o legista — eu tinha morrido de maciças

lesões internas. Mas nada que fosse visível. Impressionante. Killian não tinha uma

chance.

Pela segunda vez hoje, eu me dirigi ao redor dos campos de tênis e até ao

prédio da escola. Infelizmente, eu não cheguei muito mais longe do que tinha chegado a

primeira vez. As portas duplas — aquelas grandes de vidro, com material de arame

entre as vidraças — bloqueavam a principal entrada. Normalmente, elas estavam

abertas quando toda a gente chegava aqui de manhã, mas agora com as aulas

ocorrendo, o Diretor Brewster tinha trancado tudo. O melhor que podia fazer para

impedir que um psicopata aleatório entrasse, não importando quantos estudantes

fossem bloqueados pela mesma medida.

Estendi a mão para o punho de metal, só para abanar levemente para ver se a

porta podia abrir e minhas mãos passaram através dela. Puxei minha mão para trás e

embalei-a contra o meu peito até que o frio formigamento que sentira passasse. Isso não

fazia sentido. Carros e pessoas passavam por mim, sim, mas eu ainda conseguia andar

no chão, sentar em uma cadeira no funeral, e...

De repente as portas na minha frente pareciam mudar de forma e crescer. Que

diab...?

Olhei para baixo e encontrei meus pés afundando na calçada de concreto, como

na praia, quando você cava com os dedos dos pés e as ondas trazem mais areia para

você até que seus pés parecem ter desaparecido. Só isso era real.

Oh, não, não, não. Fechei meus olhos com força. O chão é sólido, o chão é sólido.

Apenas continuei a repeti-lo até que pude sentir, mais uma vez,

a sensação de concreto debaixo de mim.

30

Abri um olho para verificar e vi que estava de volta sobre chão, em vez de

dentro dele. Infelizmente, meus sapatos e meias não fizeram a transição. Minhas unhas,

pintadas de Very Berry, brilharam para mim, sob uma leve camada de pó. Ótimo.

Que seja. Pelo menos eu aprendi alguma coisa.

— A terra é sólida, mas a porta não é. A terra é sólida, mas a porta não é — dei

um passo para frente, preparada para me sentir uma idiota quando minha cabeça

batesse no vidro. Em vez disso, o formigamento frio que senti na minha mão quando

ela passou através da porta se espalhou pelo meu corpo todo.

Então, de repente, eu estava do outro lado da porta — no vestíbulo

superaquecido entre as portas externas e internas — de pé sobre o tapete de borracha de

apoio que eles tinham deixado de fora no último dia chuvoso. Sim! Finalmente algo

estava acontecendo como eu queria.

Seguindo a mesma técnica, eu andei para o segundo jogo de portas e, em

segundos, eu me encontrei com os pés descalços sobre o linóleo frio no salão principal.

— Certo! — Levei um segundo para dançar como uma idiota, jogando meu

cabelo da maneira que eu e minha ex-melhor amiga traidora costumávamos fazer

quando éramos apenas nós e estávamos sendo estúpidas e assistindo vídeos na MTV.

Em alguns aspectos, ser capaz de fazer o que queria sem me preocupar sobre alguém

ver era meio refrescante.

— Fico feliz em ver que alguém está tendo um bom dia — uma voz rabugenta

disse em algum lugar à minha esquerda.

Eu pulei e virei para ver um zelador — vestido com um macacão azul-escuro —

aproximando-se lentamente conforme empurrava um daqueles baldes sobre rodas. A

escola era criada como um H gigante. O corredor principal, onde eu estava, era o traço

horizontal do H. Ele vinha do ramo esquerdo do H, onde estava a biblioteca e as salas

de aula de Inglês.

— Você pode me ver? — eu sussurrei, mal ousando acreditar.

— Claro que eu posso te ver — fez uma pausa, levantando o esfregão até ao

espremedor no topo do balde e o espremendo. A água suja desagradável fluiu para

fora. — Você está deixando pegadas por todo o meu agradável e limpo chão.

Eu me virei para olhar para o chão para trás mim e não vi nada, só telha

brilhando.

— Uh, tudo bem. Que seja — eu balancei minha cabeça. — Se você pode me ver,

também, isso significa que não devo estar morta. Pelo menos, não completamente,

certo? — eu pulava nos meus pés com excitação. Esquecendo o fato de que eu estava

31

falando com o zelador, um cara de trinta anos de idade, com pele ruim e que nunca

deixava a escola. Olá, sua imagem era a definição de perdedor e eu finalmente tinha

uma prova de que as coisas não eram tão ruins quanto eu pensara.

Ele soltou uma risada alta, revelando dentes horríveis e uma grande

necessidade de tiras branqueadoras.

— Querida, você está definitivamente morta. Você simplesmente não é a única

aqui.

Ele puxou o esfregão do balde e o estatelou no chão, o chão atapetado. Só o

chão do salão principal é que era de ladrilho. Todos os ramos do H, incluindo aquele

em que ele estava de pé, tinham aquele carpete nojento que o governo sempre tinha em

grande quantidade e que era de todas as cores, mas ao mesmo tempo não tinha cor

nenhuma.

— Eu não entendo — disse eu.

Ele me ignorou, empurrando o esfregão para trás e para frente no chão.

— Malditos garotos, sempre deixando tudo uma bagunça.

O tapete não se molhou, embora, pelo menos não que eu pudesse ver, e então

ele estava passando através de mim com seu espanador.

— Cuidado — pulei para trás, esperando que uma cascata de água fria nojenta

me alcançasse os dedos, mas a água parecia se juntar apenas diretamente abaixo do seu

esfregão. Estranho.

— Nunca pensando no que fazem, no tipo de trabalho que obrigam o resto de

nós a fazer — ele murmurou, avançando com seu balde através de mim.

— Espere — virei-me para seguí-lo. — O que você quer dizer com eu não sou a

única? Quero dizer, sim, claramente eu não sou a única pessoa que já morreu, mas... Oh,

meu Deus... — enquanto eu o observava, o zelador atravessou diretamente a vitrina de

troféus no salão principal, ainda murmurando e resmungando para si mesmo. Por que

ele fez isso? Não havia nada por trás desse muro, exceto o pátio e...

Inalei agudamente. O ginásio velho. A entrada tinha sido ali antes. Antes de

eles construírem o novo complexo... Por volta de 1992. Fora tão antes do meu tempo,

mas Maura Sedgwick, bajuladora como era, uma vez tinha feito um grande projeto de

história na escola. Totalmente cafona, mas as fotos antigas eram meio legais. Você devia

ter visto como as pessoas antigamente tratavam seus cabelos. Totalmente nojento.

Minha mãe... Quero dizer, alguém me disse uma vez nos anos sessenta as mulheres

costumavam usar água com açúcar para fazer seu cabelo ficar duro e elas acordavam

para encontrar baratas fazendo ninho lá dentro. Ecaaa.

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Penteados trágicos e insetos à parte... Isso significava que o zelador estava

morto, também? Ele podia atravessar paredes e outras coisas, como eu. Mas ele podia

me ver e me ouvir, como Killian. Killian não estava morto. Ele apenas se vestia como se

estivesse.

Fiz uma careta. Respostas seriam boas. Infelizmente, nenhuma das que eu

encontrei fazia qualquer sentido. Isso me deixou apenas com o meu plano original.

Encontrar Killian e fazê-lo me dizer o que estava acontecendo.

Antes que eu pudesse escolher uma direção para seguir, no entanto, o sistema

de alto falantes na parede fez um zumbido de crepitação estática. A excêntrica Sra.

Piaget — ela tinha tipo quarenta anos e me odiava totalmente, quero dizer, devido à

minha aparência... Olá, um pouco de hidratante não iria matá-la — ia fazer anúncios.

Droga. Isso significava que eu só tinha alguns minutos antes da segunda hora terminar

e todo mundo enchesse os corredores. Tendo em conta como eu me sentia — arrepiada

e abalada — quando uma ou duas pessoas passavam através de mim, eu não tinha

interesse em ficar presa em um corredor com quatrocentos corpos humanos se

empurrando.

— Atenção, atenção — a voz da Sra. Piaget explodiu no corredor principal. —

Mark Jacobsen e Tony Briggs, por favor, se apresentem no escritório antes do início da

terceira hora.

Em pânico corri em direção ao ginásio — no segundo ramo direito do H. A loja

Auto Body estava em uma pequena dependência anexada ao lado do ginásio através de

uma passarela provisória que eles nunca tinham começado a tornar permanente. Ela

inundava toda vez que chovia. Não que eu tivesse muitas oportunidades de ir lá, de

qualquer maneira. A loja de Auto Body era onde todos os excêntricos, marginais e

perdedores viviam. Sempre recebendo um passe do professor da loja, o senhor Buddy

— não, sério, esse era mesmo o seu nome —, que lhes dava permissão para saírem das

aulas regulares para terminarem algum "projeto".

Enquanto atravessava o escritório — que também fazia parte do corredor

principal — eu ouvi os sons de comoção nas proximidades. Pessoas chorando, gritando,

até mesmo o que soava como alguém a implorar. Oooh, uma luta, talvez? Se me tivesse

perguntado quando eu estava viva, eu teria negado totalmente, mas não havia nada

mais divertido do que assistir a uma briga.

Intrigada, apesar de tudo, desacelerei até parar, meus pés escorregando um

pouco no ladrilho e olhei para baixo no segundo ramo esquerdo do H de onde todo o

ruído parecia estar vindo. Lá, parecendo como a última estrela de hip-hop a ser

chamada ao palco, estava Will Killian, cambaleando pelo corredor, a sua cabeça

abaixada sob seu capuz do moletom e seus ombros curvados. Joonie Travis — a

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estranha garota gótica psicopata com o cabelo tingido de preto da minha aula de

psicologia — estava debaixo de seu braço, o ajudando a caminhar.

Uma multidão de pessoas que eu nunca tinha visto antes cercava Killian. Um

homem em um velho uniforme de militar, uma garota em um — vomitado — vestido

de baile rosa com bolinhas, um rapaz em um smoking azul bebê com uma frente de

babados — talvez o par da garota de bolinhas? —, um cara vestido como um jogador de

basquete — só que sua cueca era demasiado curta e suas meias estavam puxadas para

cima até os joelhos —, duas garotas com saias poodle6 — sério! — e aqueles sapatos em

preto-e-branco... E esses eram apenas os que eu conseguia ver. A massa ficava

mudando e movendo junto com ele, o que tornava impossível de ver todos eles e a

algazarra era inacreditável.

— Diga à minha neta que...

— Meus pais precisam saber que foi um acidente.

— Me desculpe, garoto. Eu não sabia que isso ia acontecer. Ouça, no entanto, você pode

dizer ao meu garoto...

— Eu consegui? Será que ganhamos? Eu não consigo lembrar-me.

— Graças a Deus, você pode nos ver. Esperamos tanto tempo para dizer a alguém...

Eu enfiei os dedos em meus ouvidos para bloquear as vozes.

Infantil, eu sei, mas era isso ou gritar. Havia tantos deles e os pedidos e choros

comeram o meu último nervo. Por que a Sra. Pederson — professora de literatura

britânica — não estava aqui fora acabando com isso? Ela odiava "perturbações no

corredor" e eles estavam mesmo do lado de fora da sua sala de aula. Quem eram essas

pessoas, afinal? Alguns deles pareciam jovens o suficiente para andarem aqui na escola,

mas eu nunca os tinha visto antes. E com suas roupas — você pode dizer total crise de

moda? — eu teria me lembrado bem deles.

Então eu vi um rosto familiar na multidão. Ele tinha abandonado o esfregão e o

balde por aí, mas eu reconheceria aquele macacão azul repugnante em qualquer lugar.

Meu amigo, o zelador assustador, estava falando com Will.

Baixei os dedos dos meus ouvidos para tentar ouvi-lo.

— Eu não queria magoar ninguém — lamentou, arranhando no ombro de Will.

— Você tem que dizer-lhes isso. Essas crianças... Elas estavam pedindo por isso, me

provocando daquele jeito. O juiz não tinha o direito de me matar.

6 Ver:

http://3.bp.blogspot.com/_yrn3VNUd7N0/TVFhpEzTRTI/AAAAAAAAAJs/RwS_cPtdWNA/s1600/Adult+Light

+Blue+Poodle+Skirt+with+Blue+Sequin+Belt.jpg

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Santo Deus. Ele estava morto... Pelo menos tão morto como eu. Isso significava

que provavelmente todos estavam: garota das bolinhas, o cara de smoking, o cara

jogador de basquete, todos eles. E cada um deles tinha chegado ao Will Killian antes de

mim.

Ugh. Eu odeio esperar na fila.

35

4

Will Killian

Tudo o que eu tinha de fazer era sobreviver a este dia. Não era fácil, mas era

possível. Eu tinha sobrevivido durante anos antes que o Dr. Miller me ensinasse o

truque da música — algo que tinha verdadeiramente ajudado pacientes

esquizofrênicos. Mas assim que eu chegasse em casa, esta tarde, eu ia casualmente

mencionar que Brewster me tirou meus privilégios autorizados por chegar menos de

um minuto atrasado. A coisa do atraso seria a única desculpa que Brewster poderia

oferecer sem dar crédito às minhas "histórias selvagens". Por isso, minha mãe ia estar ao

telefone com a escola em um instante. Era tudo sobre parecer que eu não precisava dele.

Ridículo, mas eu sabia que ia ser difícil.

O problema era que isso significa que ainda existiam cerca de seis horas de

tortura entre mim e meu objetivo e, o Vovô Brewster não estava ajudando.

— Eu sempre soube que havia algo diferente sobre você — ele me seguiu para

fora do escritório, soando muito feliz. Todos eles soavam, no início. — Eu preciso que

você faça algo para mim.

Abaixei minha cabeça e comecei a andar para a minha aula de literatura

britânica, ignorando-o.

— Agora, não faça isso, garoto — ele me perseguiu. — Nós dois sabemos que

você pode me ouvir. Eu só preciso que você entregue um par de mensagens por mim.

É assim que começa. Apenas mensagens. Parece bastante simples, mas espere.

— Primeiro, meu filho, ele mora na Flórida. Eu preciso que você vá lá e

converse com ele para mim. Eu quero que ele saiba que eu sinto muito por todas as

coisas que fiz e disse para ele... Eu não sabia. Eu não entendia.

Uh-huh. Vê? Agora não só eu devo voar para fora do estado como também

devo falar com um homem que eu nunca vi antes para explicar-lhe que seu pai morto

quer ser perdoado. Quando eu era jovem, eu costumava tentar ajudá-los, todos os que

falavam comigo. Obviamente, voar para fora do Estado para entregar uma mensagem

não era possível, mas eu fiz o que pude. Isso só piorou as coisas, no entanto. As pessoas

que não acreditavam em mim. Inevitavelmente acabavam gritando comigo ou ligando

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para minha mãe, ou pior ainda, para a polícia. As pessoas que acreditavam teriam me

mantido lá por dias, chorando e implorando para ficar comigo como um mediador para

os seus entes queridos. Como um garoto, isso me assustou mais do que as pessoas que

gritavam comigo. Não, obrigado.

— Então, eu preciso que você lhe diga para não desistir de Sonny. Eu sei que

você e Sonny não se dão muito bem, mas você tem que falar com ele, também. Diga-lhe

que não é tarde demais. Ele não tem de estragar tudo como eu fiz...

Eu falando com Sonny, o Diretor Brewster, voluntariamente? Acho que não.

Prendi melhor minha mochila sobre meus ombros e virei para baixo no corredor para a

aula da Sra. Pederson. Talvez ela tenha um filme para hoje, algo no qual eu não tenha

que me concentrar enquanto estiver tentando ignorar o bom e velho vovô sussurrando

em meu ouvido.

— É importante — insistiu o vovô Brewster. — Por favor. Você é o único que eu

encontrei que pode fazer isso.

Minha resolução vacilou um pouco. Os agradáveis eram sempre mais difíceis

de ignorar. Eu me sentia mal por eles. Presos naquele lugar intermediário, observando o

mundo e as consequências de seus erros, mas incapazes de fazer alguma coisa para

corrigí-los. Contudo, eu não podia envolver-me. Eles ainda me poriam em um hospital

psiquiátrico, se eu deixasse.

Agarrei a nota da Sra. Piaget do meu bolso e abri a porta da sala de aula da Sra.

Pederson, interrompendo-a no meio da leitura. Ótimo. Eu não ia ter nenhum momento

de paz hoje.

Dei-lhe o meu passe e deslizei em direção ao fundo da sala para o meu lugar.

Joonie, no assento na frente de mim, virou a cabeça ligeiramente para trás em minha

direção, fingindo examinar o verniz preto partido e lascado em suas unhas.

— Tudo bem? — ela murmurou. De perto, podia ver a maquiagem escura

borrada sob seus olhos e os piercings em seu lábio inferior brilharam quando ela falou.

Hoje ela estava vestida em seu uniforme padrão: uma jaqueta militar comum, camiseta

preta, uma saia xadrez esfarrapada, meias rasgadas e Chucks7 pretas. Além dos

piercings, ela também usava uma variedade de brincos na parte externa de sua orelha

— desde a parte inferior do lóbulo até onde seu ouvido tocava seu couro cabeludo. Um

desses brincos era um pequeno aro de prata que combinava perfeitamente com os três

no meu ouvido esquerdo que estavam praticamente na mesma posição, fizemos ao

mesmo tempo. Nós tínhamos sido amigos desde o primeiro ano, quando seu nome era

7 Marca de ténis.

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April, o cabelo dela era loiro e ela era a melhor estudante — por isso ela sabia de minha

situação com Brewster, mesmo que ela não soubesse o porquê.

Mantive o meu olhar apontado para baixo, para a minha mochila, enquanto

retirava o livro de Literatura Britânica e minha pasta. Nós aprendemos — do jeito mais

difícil — que a Sra. Pederson provavelmente não pegaria você conversando na sala de

aula se ela não te visse olhando para a outra pessoa.

— O mesmo de sempre — afirmei.

Isso não era exatamente verdade. O vovô Brewster estava a uns quinze

centímetros de distância do meu cotovelo direito, encarando-me e os outros mortos na

sala estavam notando.

Em cada sala cheia de pessoas, você tem cerca de metade desse número de

mortos. Alguns deles estão associados a pessoas em particular, alguns estão associados

a um determinado local e alguns são apenas andarilhos. Em Literatura Britânica, havia

apenas cerca de sete ou oito regularmente. A maioria deles ficava fora do caminho —

eles odiavam a sensação de serem atravessados — e não costumavam causar bagunça.

Isso iria mudar, muito rapidamente, no entanto, se descobrissem que alguém podia vê-

los e ouvi-los.

Hoje na aula tínhamos alguns avôs e avós. Eu só podia dizer por causa do estilo

de roupa: uniformes militares antigos, saias largas-e-inchadas à June Cleaver com saltos

agulha e gravatas muito curtas e largas nos homens que usavam ternos. Quando as

pessoas morrem naturalmente de velhice ou o que seja, a sua energia fica aqui, essa

energia geralmente aparece sob a forma de como as pessoas pensavam em si mesmas.

Ninguém pensa em si mesmo como uma pessoa de idade, por isso eles costumam voltar

aos seus vinte anos e a roupa muda também.

Na frente da sala você tinha Liesel Marks — a melhor amiga da escola da Sra.

Pederson — e o namorado de Liesel, Eric. Eu ainda não tinha conseguido pegar o

último nome de Eric. Liesel era quem falava na maioria das vezes. Eu nem estava muito

certo porque Eric ainda andava por aí. Ele parecia entediado a maior parte do tempo.

Liesel e Eric tinham morrido em um acidente de carro nos finais dos anos setenta

enquanto iam a caminho de casa depois do baile, daí o longo vestido de bolinhas dela e

o smoking azul dele. Os fantasmas de pessoas que morreram violentamente e/ou

inesperadamente ficam, essencialmente, presos em seu momento de morte.

Pelo que eu tinha recolhido durante as incessantes divagações de Liesel, ela

tinha abandonado os planos que fizera com Claire — a Sra. Pederson — para ir ao baile

com Eric, um garoto de quem Claire também gostava. Agora, ela estava convencida de

que essas duas coisas — juntamente com o sexo que ela tinha tido com ele no banco

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traseiro — a haviam condenado a estar neste lugar intermediário até que Claire a

perdoasse.

Jackson Montgomery, no entanto, estava amarrado à escola ao invés de a

qualquer pessoa em particular. Ele morreu inesperadamente na quadra de basquete

aqui na escola no início dos anos oitenta, graças a um desses ocultos defeitos cardíacos

de que às vezes você ouve falar. Ele tinha sido uma estrela em ascensão, levando a

equipe para a final estadual, quando ele caiu no chão no meio do jogo decisivo. Não

havia desfibriladores no local naquela altura. Ele morreu e o time perdeu, mas Jackson,

ou Jay, não parecia ter conhecimento de qualquer uma dessas coisas. Hoje, como todos

os outros dias, ele ocupava uma mesa vazia, com os pés batendo contra o chão em sua

ânsia de ser chamado para a academia para animar o comício antes desse último jogo.

E, claro, tínhamos o vovô Brewster.

— Você não pode ignorar-me para sempre. Eu vi o que você pode fazer com

meus próprios olhos — disse ele, muito alto.

Fiz o meu melhor para não estremecer. Maldito Brewster por me tirar Marcie.

Um dos avôs de aparência mais jovem disparou um olhar irritado ao Vovô.

— Ei, amigo, você se importaria de diminuir o volume por aí? Minha neta está

tentando aprender aqui.

— Ela não pode me ouvir. Oláaaa? — vovô B. colocou as mãos em concha e

gritou para a garota — Jennifer Meyer — uma das líderes de torcida comparsas de

Alona Dare, por acaso. Claro, ela nem sequer piscou. Ela parecia que estava prestes a

cochilar.

— Pare com isso — o avô de Jennifer ordenou. Ele estava vestindo um terno e

uma dessas gravatas pequeninas patetas, parecia um mafioso de um filme antigo.

Vovô B o ignorou e voltou a me encarar.

— Você vê o que eu tenho que aturar, criança? Basta fazer este favor para mim e

eu posso sair desta estação ao caminho do inferno — ele olhou sobre seu ombro para o

avô de Jennifer, que, surpreendentemente, reagiu mostrando-lhe o dedo.

A ideia parecia boa, fácil até, mas a experiência me tinha ensinado o contrário.

Metade do tempo os mortos nem sequer sabiam porque ainda andavam por aí. Só

porque ele estava ansioso por entregar mensagens para o seu filho e neto não era

garantia de que ele estaria livre depois. Na verdade, podia ser o oposto. As poucas

vezes que eu testemunhei pessoas "seguirem em frente" foi só depois de fazerem ou

admitirem algo que tinham adiado. Mesmo na morte, as pessoas estavam na negação.

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Eu olhava resolutamente para frente da sala, tentando concentrar-me na Sra.

Pederson.

— Alguns dizem que Shakespeare não escreveu todas estas peças de teatro —

ela zumbia adiante.

— Você quer ir visitar Lil esta tarde? — Joonie sussurrou pelo canto da boca.

— É apenas quinta-feira — eu disse sem pensar. Durante os últimos oito meses

nós tínhamos ido ao hospital na sexta-feira. O único dia em que minha mãe trabalhava

no turno da tarde no restaurante e, que, portanto, não iria pirar porque eu não voltava

para casa imediatamente.

Joonie se torceu em seu assento, seus brilhantes olhos azuis piscando com raiva.

— Você tem algum problema com irmos mais de uma vez por semana?

— Não aceite essa atitude dela — vovô avisou sobre o meu ombro.

Eu me peguei balançando a cabeça para ele e obriguei-me a parar.

— Claro que não — disse a Joonie, surpreendido um pouco pela sua fúria

repentina. — É só que...

— Não é mesmo, Menina Travis? — Sra. Pederson veio para frente das nossas

mesas, baixando o olhar para nós.

— Sim — respondeu Joonie emburrada.

— Sim, o quê? — Sra. Pederson, perguntou sarcasticamente.

— Romeu e Julieta foi escrito como uma tragédia e não como um romance, como

a maioria das pessoas pensa — Joonie tinha a incrível capacidade de conseguir dizer o

que ela tinha ouvido, mesmo que sua atenção estivesse ocupada em outros lugares.

Minha vida seria muito mais fácil se eu tivesse esse dom.

Algumas pessoas riram.

A boca da Sra. Pederson franziu e ela girou o dedo no ar — o sinal que maioria

de nós associaria a "grande coisa" em uma maneira sarcástica. Só que aqui significava

―dê a volta‖.

Antes, Joonie teria revirado os olhos para mim e teríamos rido sobre isso, mas

agora ela apenas se virou de costas para mim em desgosto e caiu para trás na cadeira.

Eu esperei até que a Sra. Pederson seguisse em frente, seus olhos concentrados em

alguma outra parte da sala.

— Joon — eu sussurrei.

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Ela me ignorou, se atrapalhando para puxar a mochila para o colo.

— Vamos lá... — eu implorei.

Ela baixou a cabeça e cavou ao redor em seu saco, resolutamente fingindo que

eu não existia.

— Ela não vai falar com você, mas eu vou — vovô B. ofereceu.

Ótimo. Do jeito que as coisas estavam indo com os poucos amigos que eu tinha

— basicamente Joonie —, eu poderia ter concordar com ele.

Antes de Joonie se transformar na massa de roupas pretas e atitude ruim que

ela era agora, ela tinha sido aquela garota estranha que se recusava a tomar ducha

depois da aula de ginástica; aquela garota cujas roupas não combinavam muito bem e

cujo cabelo ficava levantando em lugares estranhos, como se ela nunca tivesse se

preocupado em escová-lo antes de sair de casa de manhã. Ela tinha duas irmãs mais

velhas — uma era médica e a outra estava estudando com uma bolsa integral em

alguma faculdade para mulheres arrogantes na costa leste — que nunca faziam nada

errado. Joonie nunca estava ao nível delas e seu pai — um ministro batista

ultraconservador da cidade — sempre deixou isso muito claro.

Naquela época eu tinha sido praticamente o mesmo cara que sou agora — o

nerd que muitas vezes era apanhado resmungando para si próprio ou debatendo-se no

chão em algum tipo de convulsão bizarra. Então, no final do meu primeiro ano do

ensino médio, quando o meu pai... Fez o que fez, só piorou as coisas, de todas as

maneiras imagináveis.

No início Joonie e eu tínhamos comido juntos, caminhado juntos para a aula e

sido parceiros em projetos — porque isso significava que não estávamos sozinhos.

Agora éramos amigos. Nós ainda não tínhamos muito em comum, mas a nossa amizade

funcionava. Pelo menos, costumava.

Isso mudou quando Lily se mudou para cá. Lily Turner tinha vivido em alguma

cidade pequena no sul de Indiana até a metade de seu segundo ano do ensino médio

quando sua mãe recebeu uma transferência de trabalho para cá. Ela é uma gerente de

topo de uma das instalações de fabrico de Caterpillar.

Joonie encontrara Lily parecendo perdida e perto de começar a chorar na

cafeteria em seu primeiro dia e se aventurara com um cauteloso ―oi‖.

Lily mais tarde disse-nos que a sua escola e casa tinham consistido em cerca de

uma centena de crianças no total. Seu sotaque era pesado e suas roupas eram todas

erradas. Ela usava roupas de igreja todos os dias — uma longa saia estampada e uma

camisa de gola alta ou suéter.

41

As crianças do clube de Jesus não a aceitavam — porque Joonie que era

claramente uma adoradora do diabo pela forma como se vestia, tinha falado com ela. Os

nerds estavam zangados com ela porque ela era inteligente o suficiente para que a sua

chegada pudesse estragar o ranking das classes. Ela não tocava um instrumento, nem

tinha um amor natural para a matemática ou ciências. A elite de primeira linha não

sabia que ela existia. Em resumo, ela não pertencia a lugar algum. Então Joonie a tinha

acolhido.

Algo sobre Lily fazia com que todos, especialmente Joonie, se alegrassem. Ela

era apenas tão... Espontânea, tão refrescante em sua honestidade. Ela era fascinada pela

nossa escolha de nos rebelarmos contra a corrente principal, sem entender realmente

que, não era tanto uma escolha, era mais como um processo de eliminação. Ela nunca

tinha visto ninguém com piercings no lábio antes, exceto na televisão. Ela ria e corava

facilmente.

Dentro de algumas semanas, ela tinha revelado suas próprias sujeiras secretas.

Ela era viciada em novelas e dramas de Celebridade. A People8 era seu livro preferido...

Contanto que ninguém a visse lendo. Tendo em conta o tamanho de sua antiga escola e

de ter conhecido quase todas

as crianças de lá desde o nascimento, ela nunca tinha experimentado algo tão

complicado e complexo como a nossa estrutura social. Para ela, as crianças de primeiro

nível eram um fascínio equivalente a estrelas de cinema, com quem ela podia esfregar

cotovelos. Ela rastreava suas idas e vindas, seus rompimentos e seus recomeços de

namoro, com um fervor que era enervante.

Isso provavelmente devia ter sido um indício para nós.

Independentemente de todas as pistas que podiam ou não estar lá, o resultado

final era o mesmo. Lily... Tinha ido e esses dias, Joonie parecia como se tivesse ido

embora também. O que me deixava sozinho, exceto, é claro, por meus amigos

sobrenaturais.

— Por que você continua falando com ele? — Liesel perguntou para vovô Brewster

de seu poleiro na escrivaninha da Sra. Pederson.

— Ele pode me ouvir — vovô Brewster proclamou orgulhosamente.

Droga. Era exatamente por isto que eu deveria ter mantido minha boca fechada

no escritório de Brewster.

8 People é uma revista semanal norte-americana fundada em 1974 que publica notícias sobre cultura popular e

celebridades. A publicação talvez seja mais conhecida pelas suas edições especiais anuais que listam "Os 50 Mais

Belos" e "Os Mais Bem Vestidos‖.

42

Olhei relutantemente para Joonie. Seu celular era uma imitação do iPhone. Se

ela não estava com ele, sempre o deixava em casa carregando e, se não estivesse muito

chateada e me emprestasse, eu provavelmente poderia escondê-lo no meu bolso e

esconder os fones sob o meu moletom. A Sra. Pederson ainda podia perceber, mas valia

a pena o risco.

— Joon — eu sussurrei. — Tem o telefone com você? — olhei novamente para

Liesel para encontrá-la franzindo as sobrancelhas para mim. Isso não poderia ser bom.

Joonie ergueu a cabeça ligeiramente, mas não quis olhar para mim.

— O que há de errado? — soava cautelosa, como se não tivesse certeza se ainda

devia estar zangada ou não.

— Ninguém pode nos ouvir, exceto nós — disse Liesel ao avô B., mas ela não

parecia completamente convencida. As coisas estavam prestes a ir de mal a pior.

— Eu preciso de música, tipo, imediatamente.

— Onde está Marcie? — Joonie não conhecia a natureza exata da minha

condição médica, não era algo que você anunciava na mesa do almoço, mas ela sabia

que eu tinha permissão para ter o meu iPod comigo em todos os momentos.

— Brewster.

— Ele não pode fazer isso, pode? Você tem uma permissão — Joonie disse.

Liesel pulou da secretária da Sra. Pederson em uma nuvem cor-de-rosa que era

seu vestido e veio direta para mim.

— Eu não acredito em você — ela disse ao avô B., que ainda estava ao meu lado.

— Prove isso.

— Não devia poder... Você tem o seu telefone ou não?

Joonie abanou a cabeça.

— Está em casa — ela virou-se para mim, sua raiva de antes esquecida. Ela

parecia preocupada e sua língua chocou seu piercing contra os dentes, um hábito

nervoso. — Você vai ficar bem?

Vovô B. inclinou-se junto ao meu ouvido.

— Ei, garoto, vamos lá. Basta nos informar se você pode ouvir-nos. Faça esta

idiota... — ele apontou o dedo em direção Liesel "calar a boca".

Nada bom. Levantei a minha mão.

43

— Sim, Sr. Killian? — a Sra. Pederson soava irritada.

— Posso ter um passe para o banheiro? — dane-se Brewster. Se eu conseguisse

sair até meu carro e chegar em casa sem ser seguido, eu estaria em casa seguro. Os

mortos não eram omniscientes mais do que eu. A não ser que eles tivessem o meu

endereço, eles não podiam me achar. O truque era dar o fora daqui.

— Oh, ótimo, agora você o assustou — vovô B. disse.

— Will, você chegou 20 minutos atrasado para a minha classe. Você só tem que

esperar mais 20 minutos.

— Eu sei, mas...

— Mas nada. Não vou tolerar esse tipo de perturbação na minha sala de aula. O

passe que você me deu — ela recuou e puxou-o do pódio metal que segurava suas notas

— afirma que os privilégios normalmente atribuídos a você foram revogados.

— Estou apenas pedindo para ir ao banheiro — tentei manter minha voz calma,

mas ainda assim, uma onda de risinhos e sussurros varreu a sala de aula. Deus, eu

odiava isso.

— Depressa — Liesel pediu vovô B. — Ela vai deixá-lo ir.

— Não, ela não vai — Jay Montgomery ofereceu a partir do outro lado da sala. —

Ela é má.

— Ei, olhe aí — Liesel estalou. — É da minha melhor amiga que você está falando.

Confie em mim, ela vai ceder. Claire odeia quando ela acha que as crianças estão com raiva dela.

Ela é tão insegura — ela revirou os olhos dramaticamente.

Eu balancei a cabeça, tentando ignorar todas as vozes simultâneas. Estava

ficando cada vez mais difícil não gritar com eles para calarem a boca.

— Por favor, Sra. Pederson. Eu realmente não estou me sentindo bem — limpei

as palmas das mãos úmidas nas pernas da calça para secá-las.

Ela franziu a testa para mim e com certeza, sob o olhar desaprovador, eu vi a

sua expressão amolecer um pouco.

— Se você está doente, vá direto para o escritório, Sr. Killian. Não se preocupe

em ir ao banheiro para um cigarro. Eu vou verificar, acredite em mim.

Não adiantava tentar explicar-lhe que eu não fumava. Pelo menos, não cigarros

e definitivamente não nas dependências da escola com Brewster verificando-me a cada

cinco segundos.

— Obrigado — juntei meu livro e caderno e enfiei-os de volta em meu saco.

44

— Veem? Eu vos disse — Liesel cruzou os braços sobre o peito. — Ele é igual a

todos os outros.

Quando me levantei e pendurei minha mochila no ombro, o vovô Brewster

deu-me um pequeno empurrão. Eu deveria ter adivinhado, dado o que ele tinha visto

com o cigarro no escritório de Brewster. Mas eles normalmente eram tão relutantes em

tocar-nos...

Eu cambaleei para o lado, como um bêbado e tropecei nos meus próprios pés,

caindo sobre um joelho.

Tanto os vivos quanto os mortos, ofegaram.

— Oh, meu Deus — sussurrou Liesel.

— Sr. Killian, você está bem? — Sra. Pederson andou na minha direção.

— Will? — Joonie estava meio sentada em seu assento, segurando a bolsa

contra seu peito.

— Ele pode nos ver? Será que ele sabe que a pontuação final do meu jogo? — Jay

perguntou.

— Você está bem, garoto? Eu não tive a intenção de empurrá-lo de modo tão duro.

— Ele pode nos tirar daqui? — Eric perguntou.

— Eu só preciso que ele converse com minha esposa — o avô de Jennifer disse. — Ela

está pensando em casar com esse homem velho que possui a casa de parque ao lado da nossa, no

Arizona.

Eu puxei meu capuz sobre minha cabeça e cobri meus ouvidos com as mãos em

cima dela.

— Eu preciso sair — eu gritei sobre o barulho. — Muito alto, Will, muito alto.

O olhar arregalado de medo no rosto da Sra. Pederson confirmou isso. Para ela,

é claro, eu estava gritando por nenhuma razão.

— Joonie... Quero dizer, April, leve-o para o escritório agora — veio seu

abafado comando.

Para seu crédito Joonie saltou de seu assento quase derrubando a mesa. Ela

puxou a alça de sua mochila sobre a cabeça dela para descansar em seu ombro do lado

oposto e tomou meu pulso em sua mão fria.

— Vamos lá. Vamos embora — ela me ajudou a ficar de pé, suas palavras um

murmúrio distante sobre o zumbido nos meus ouvidos.

45

Nós contornamos as mesas para atravessar a sala. Sra. Pederson voltou para

trás da segurança de seu pódio e, enquanto nós saímos da sala e entramos no corredor,

cada par de olhos nos seguiu.

Infelizmente, o meu clube de fãs fantasmagórico também o fez.

— Dibs9 — Liesel anunciou.

— Não seja ridícula. Você não pode simplesmente chegar e dizer "dibs" para algo assim

— disse o avô de Jennifer.

— Estávamos esperando há mais tempo. Eric e eu devemos começar primeiro. Você só

morreu há um par de anos atrás.

— Fui eu que o encontrei — vovô B. apontou. — O resto acabou de entrar na

fila atrás de mim, especialmente você, senhorita.

— Tudo que eu quero saber é o placar. Quão difícil pode ser isso? Ganhamos? Você tem

que descobrir, cara. — Jay agarrou no meu outro braço.

— Perderam por dois — eu disse, embora eu soubesse que, em algum lugar lá

dentro, ele já sabia disso.

Joonie virou a cabeça para olhar para mim. Seu rosto, emoldurado pelos cabelos

azeviche, ainda mais pálida do que normal.

— Will? Você ainda está comigo? — apesar de ter visto este tipo de coisa de

mim antes, ela estava assustada. Eu não podia culpá-la. Isto me assustava toda vez,

também.

Ele puxou o meu braço com mais força.

— Eu não acredito em você.

Tentei liberar meu braço de seu aperto, fazendo Joonie tropeçar e ir fortemente

para a esquerda. Seu ombro colidiu com a ponta dos armários na parede e ela

estremeceu.

— Joon, você está bem?

Ela assentiu apesar das lágrimas fazerem seus olhos azuis mais brilhantes e

vermelhos.

— Você tem aguentar aí, Will. Depois do que aconteceu com Lily... Eu não

podia lidar. Eu não posso.

9 'Dibs', ou 'shotgun' são formas informais convencionadas para reservar ou declarar posse total ou parcial de um

recurso comunitário, como uma cadeira ou a capacidade de ter prioridade a falar com um cara gostoso, etc.

46

— Você está mentindo, cara. Você está mentindo. Nós ganhamos. Eu sei — Jay

insistiu.

— Verifique a vitrine de troféus e deixe-me sozinho, inferno — eu disse a ele

antes de virar a minha atenção de volta para o olhar suplicante de Joonie. — Eu estou

tentando. Brewster não iria acreditar em mim e...

— Não ponha a culpa disto nele — vovô B. esbarrou em meu lado, disputando

a posição com os outros.

Eu peguei um lampejar de movimento pelo canto do olho e, de repente, Evan, o

zelador fantasmagórico que limpava o chão todos os dias, apareceu ao meu lado. Ele

empurrou o vovô B. para fora do caminho.

— Eu não queria magoar ninguém — confessou Evan, puxando meu ombro. —

Você tem que dizer-lhes isso. Essas crianças... Elas estavam pedindo por isso, me provocando.

Não que o juiz tivesse o direito de me matar.

— Apenas me deixe ir, por favor — eu disse.

Mas foi Joonie que me escutou. Joonie que largou meu pulso com um olhar

magoado no rosto. Sem apoio no meu outro lado, Evan conseguiu me puxar para baixo,

apoiado no chão com um joelho. Outras mãos começaram a me agarrar.

Eu resisti ao impulso de cair ao chão e me enrolar em uma bola para me

proteger.

— Joon... — eu comecei.

— Hey! — uma voz feminina desconhecida gritou. — Ouçam, pessoas mortas...

Isso pegou a atenção de todo mundo. Os fantasmas pararam de clamar, puxar-

me e discutir e olharam ao redor. Eu fiz o mesmo e me vi olhando para um par de

pernas femininas tão suaves que brilhavam. Músculo liso curvado debaixo da pele

levemente bronzeada, especialmente na panturrilha, onde a imaginação facilmente

fornecia a sensação da minha mão pousada ali. Apesar de tudo, meu coração bateu um

pouco mais rápido.

Então eu levantei meu olhar um pouco mais e encontrei... Um short vermelho

de ginástica, uma camiseta branca com uma marca de pneu grande em diagonal, o

cabelo loiro brilhante caindo sobre um ombro. Eu gemi.

Alona Dare.

Carrancuda, Joonie ajoelhou ao meu lado.

— Você está bem?

47

— Sim, eu... — balancei a cabeça e olhei para Alona, parada em frente de mim,

as mãos nos quadris, como se estivesse se preparando para receber algum tipo de

aplauso. — Pensei que você estava indo direto para o inferno.

Alona me encarou.

— Hey!

Joonie parecia chocada.

— Eu?

— O quê? Não, não importa. Você pode apenas ajudar-me? — aparentemente

Alona tinha conseguido distrair a dúzia mortal, bem, meia dúzia, e eu queria tirar

vantagem disso enquanto podia.

Joonie se ajoelhou ao meu lado e levantou o meu braço sobre seu ombro

novamente, mas ela ainda parecia abalada.

— Você é nova? — Liesel perguntou a Alona. Em seguida, voltando-se para Eric,

ela sussurrou: — Ela deve ser nova.

— Todos vocês, deem um passo para trás e vão assombrar outra pessoa — disse

Alona. — Eu o encontrei primeiro.

Seu pronunciamento produziu uma explosão caótica de sons dos outros, mas,

pelo menos, era dirigida a ela em vez de a mim desta vez.

— Você não pode...

— Ei, garota nova, alguns de nós têm estado à espera durante...

— Só quero saber o resultado.

— Vamos sair daqui — eu sussurrei para Joon.

Ainda pálida, ela assentiu. Nos levantámos e começamos a contornar o grupo

de fantasmas. Se Joonie pensou que era estranho a forma como eu me desviei para

evitar obstáculos invisíveis para ela, ela não disse nada. Ela estava acostumada a um

comportamento estranho ocasional de mim e era algo que nunca discutíamos. Havia

muitas coisas sobre as quais nós não falávamos. Era mais fácil dessa maneira às vezes.

— Olhem, o negócio é o seguinte — declarou Alona. — Eu não estou tendo um

dia muito bom, então, eu só vou dizer isto uma vez. Encontrei-o esta manhã. Se ele vai

ajudar alguém, é a mim que ele ajuda em primeiro lugar. Ele é meu. Fim da história.

No momento em que ela terminou de falar, uma estranha rajada de vento

percorreu o corredor, balançando o cabelo perfeito de Alona e enviando um arrepio por

48

cima da minha pele. Uma estranha sensação de algo sendo clicado no lugar se abateu

sobre mim.

Eu parei.

— Você sentiu isso? — eu perguntei Joonie.

— Senti o quê? — Joonie repetiu.

— O vento. É...

Joonie deu um passo cauteloso para trás, se afastando de mim, os olhos

arregalados. Ela colocou as duas mãos em sua bolsa, como se a temperatura tivesse

acabado de cair para apenas abaixo de zero e essa fosse sua única chance de salvar

todos os dedos do congelamento.

— Você está ouvindo alguma coisa? — ela perguntou, a voz ligeiramente

trêmula.

Eu balancei minha cabeça, odiando a confusão e o medo nu que vi em seu rosto.

— Não se preocupe. Esqueça. Vamos embora.

Mas ela não se moveu. Seu olhar estava fixo em mim e suas mãos se

atrapalharam dentro da sua bolsa para alguma coisa, talvez o telefone que ela havia

esquecido que tinha deixado em casa? Que ela se sentisse como se precisasse chamar

alguém, porque estava com medo de mim... Isso doía.

— Joonie? Eu não...

Um movimento passou perto do canto do meu olho e eu automaticamente me

voltei, esperando outro assalto lateral de Evan, o zelador. Em vez disso, uma nuvem

negra de energia estonteante pairava a cerca de três metros de distância. As bordas da

coisa ondularam no ar, como a sombra do calor escapando a partir de um carro fechado

num dia de agosto. Foi aumentando, mais alto, mais largo e mais escuro até que

bloqueou as luzes do teto.

Meu coração partiu em minha garganta e eu não podia respirar. Tinham

passado algumas semanas desde que eu o tinha visto e, assim como todas as vezes

anteriores, eu esperava que fosse a última vez. Quero dizer tipo, última vez em que eu o

via, não a última vez em que eu sobrevivia.

— Will? — Eu ouvi a voz do Joonie distante. — Você está bem? Você ainda está

ouvindo... O vento?

Os fantasmas dispersaram, Liesel correu gritando, com Eric em seus

calcanhares, vovô B. passou correndo por mim, provavelmente para o escritório

49

novamente. Jay e a maioria dos outros apenas se virou e caminhou em silêncio através

da parede dos armários.

Mas não Alona. Ela permaneceu enraizada no lugar, olhando para cima, para a

nuvem horrível.

— O que... Que coisa é essa, Killian? — sua voz ainda soava notavelmente

normal, apesar do tremor na mesma.

Esta "coisa" era a razão de eu saber que Alona Dare não tinha cometido suicídio,

não importa o que os rumores diziam. Quando você se mata, todas as energias

negativas — a tristeza, a auto repugnância, o medo e o desespero — permanecem. A

maioria desses fantasmas eram apenas tristes e silenciosos andarilhos, sombrios

contornos vagos de quem eles tinham sido uma vez. Neste caso, a energia negativa era

tão forte, que tinha consumido qualquer indício de quem a pessoa tinha sido, deixando

pouco mais do que uma manifestação física da raiva pura. Eu nunca tinha visto nada

parecido antes, mas não importava. Eu não preciso de dicas para descobrir isso.

— Ei, papai — eu disse, tentando parecer calmo. — O que você está fazendo

aqui?

50

5

Alona Dare

Pai? Essa nuvem negra nojenta era o pai de Killian? Por um lado, fazia sentido.

Talvez agora eu pudesse ver porque Killian era tão confuso. Por outro lado... Caramba,

e eu que achava que tinha problemas em casa.

Ao som da voz de Killian, a massa de fumaça negra subiu e se lançou em

direção a ele. Infelizmente, ele teve que passar por mim para alcançá-lo. Ar frio se

abateu sobre mim como pequenas lascas de metal fatiando minha pele.

Eu gritei e tentei me enrolar sobre mim mesma, só que eu acho que tinha

desaparecido novamente da cintura para baixo. Torcendo minha cabeça, eu consegui

pegar um último vislumbre de Killian. Ele empurrou Joonie para fora do caminho e

ficou lá, pálido e com determinação, apenas vendo esta… Coisa correndo na direção

dele...

Envolveu-o e atirou-o com força para a esquerda, contra os armários. A cabeça

de Killian bateu no metal com um baque doentiamente alto. Ele escorregou para o chão,

de olhos fechados, seu corpo imóvel.

Lá se vai o Plano A. Gostaria de saber se Killian ainda seria capaz de me ajudar

se ele estivesse morto. Certamente, mesmo morto, ele teria mais conhecimento do que a

maioria…

A sensação agora familiar de formigamento subiu através do meu pescoço e do

meu rosto. Eu suspirei. Aqui vamos nós...

…novamente.

Acordei de repente esperando sentir o cascalho morder meus ombros mais uma

vez. Em vez disso, me encontrei sentada no banco traseiro de um carro desconhecido

que parecia estar viajando com velocidade excessiva e dando curvas um pouco rápido

demais até mesmo para o meu conforto.

51

O que estava acontecendo? Primeiro, toda a coisa de desaparecer e agora um

local diferente? Eu não gostava disso. Será que os quatro primeiros dias da minha

experiência pós-vida não significavam nada?

Não que eu estivesse reclamando. Despertar em um carro era mais confortável,

pelo menos, do que acordar na estrada. Se bem que dependia se eu iria morrer,

novamente.

Estávamos passando na frente da escola na Rua Elm (eu sei, certo?), mesmo

passando a virada para Henderson, onde eu morrera. Ele fazia uma virada brusca à

direita, para evitar cortar através do Cemitério de São Paulo e as pessoas estavam

sempre a errar na curva e acertar o poste de luz.

— Ei, você não quer reduzir a velocidade? — gritei para o motorista de cabelos

escuros, cujo rosto eu não podia ver.

Para minha surpresa, o motorista virou ligeiramente ao som da minha voz,

revelando sua identidade. A amiga de Killian, Joonie. Ou, a Alta Sacerdotisa da Dor,

como eu gostava de chamá-la. Ela usava piercings em seu rosto. Pelo amor de Deus.

— Will, você está bem aí atrás? — ela perguntou, soando nervosa.

Killian? Ciente de repente de um peso morno pressionando contra meu colo.

Olhei para baixo. Ei, meus sapatos e as meias estavam de volta… E a cabeça de Killian

estava descansando em minhas pernas! Seu cabelo era mais macio do que eu teria

pensado... E eu podia senti-lo. Isso era estranho.

— Eca — eempurrei seus ombros e realmente fiz contato. Minha mão tocou sua

camiseta e eu podia sentir o calor e a solidez do seu corpo sob ela. Bem, isso explicava

como os outros fantasmas estavam pendurados nele. Algo era definitivamente estranho

sobre Killian e não era apenas a sua obsessão em comprar no Walmart — ou onde quer

que ele compre suas roupas.

Empurrá-lo não fez muito bem, embora. Apenas fez a sua cabeça rolar para

longe de mim. Ele estava completamente desmaiado, seu corpo mole. Um vermelho e

grande galo tinha crescido num lado da sua cabeça, que eu podia ver, mesmo através de

seu cabelo escuro. Isso não poderia ser bom.

— Will? — Joonie chamou novamente.

Uma buzina apitou e com uma praga abafada, ela virou-se para frente

novamente. Oh, meu Deus, eu sabia exatamente onde estava agora. Eu estava andando

no Inseto da Morte10. Joonie Travis tinha pegado um pequeno e fofo VW Beetle11 — um

10 Trocadilho com o nome da marca do carro, porque Bug é Inseto, mas também é o nome do carro. 11 Ver: http://volkswagentalk.net/wp-content/uploads/2008/11/vw-beetle.jpg, também chamado de VW Bug.

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dos antigos — e o tinha pintado de preto, exceto pelo crânio branco e ossos cruzados

que ela tinha pintado com spray na porta. Repita comigo: ABERRAÇÃO. Certo? Quero

dizer, o quão retorcida você tem que ser para pegar em alguma coisa tão alegre e

transformá-lo em algo tão horrível e gótico? Pensei com saudade em meu presente de

formatura — um VW Eos12 prata conversível — parado na entrada da garagem do meu

pai, esperando que eu voltasse para um passeio. Eu franzi o cenho. A menos que meu

pai já o tivesse vendido...

— Você quer despertar novamente e me dizer exatamente porque eu não vou te

levar para o hospital? — Joonie gritou por cima do ombro, sem se virar de novo, graças

a Deus. Se ela tivesse olhado com atenção suficiente, ela teria visto que a cabeça de

Killian parecia estar flutuando alguns centímetros acima do assento, em vez de

descansar totalmente sobre ele, pelo menos de sua perspectiva.

Will não respondeu. Sua cabeça continuou em minha coxa, seu ombro esquerdo

aninhado do lado direito do meu quadril. Eu me perguntei, por um breve segundo, se

eu estivera aqui, embora não consciente, quando ele escolheu essa posição, ou se ele

simplesmente tinha caído nesta posição e eu me tinha materializado debaixo dele,

apenas por acaso.

Huh. Parecia uma enorme quantidade de acaso.

— Killian, levante-se — estendi a mão sobre seu peito e sacudi os seus ombros.

— Apesar de todas as células cerebrais que você deve ter queimado, sua cabeça está

muito pesada e está colocando a minha perna para dormir.

Além disso, estava me deixando um pouco desconfortável. Sua cabeça no meu

colo sugeria uma intimidade que eu não tinha sequer compartilhado com Chris. O

pensamento sobre Chris, tão repentino, tornou difícil para eu respirar por um segundo.

Não, eu não tinha planejado casar com ele nem nada. Por acaso, eu nem sequer tinha

planejado me casar. Eu testemunhara as consequências do divórcio dos meus pais bem

de perto, e eu mais cedo... Bem, morreria, do que passaria por isso. Mas, ainda assim,

Chris tinha sido meu, você sabe? Sim, ele falava demasiado sobre wrestling e parecia

mais feliz quando eu não estava falando, mas ainda assim. Eu sinto falta de algumas

coisas sobre ele.

A suavidade da parte de trás do seu pescoço sob as pontas dos meus dedos, do

jeito que ele sempre mascava chiclete antes de beijar-me para que ele tivesse um gosto

de hortelã fresco... Lágrimas brotaram nos meus olhos. Nada disso me pertencia mais.

Ele era da Misty agora, essa cadela maldosa.

12

http://www.goingfast.info/04_05/ebay_sales/images/vw_eos_jedesign_fr1.jpg

53

Sentei-me em linha reta, empurrando a cabeça de Killian do meu colo. Será que

ela lhe prometeu sexo? Será que fora por isso?

Killian gemeu, virando-se no banco até que ele estava deitado de lado... Com a

mão enfiada debaixo do meu joelho!

— Em seus sonhos — dei uma tapa em seu ombro.

— Se você não falar comigo, eu vou levar você para o hospital e ligar para sua

mãe — Joonie ameaçou.

Foi-se o efeito das minhas ações ou das palavras de Joonie, eu não sabia, mas ele

pareceu acordar um pouco. Ele continuou com a mão por trás do meu joelho, mas rolou

a cabeça para trás para olhar para mim com um sorriso estúpido, com os olhos meio

vidrados.

— Nenhum hospital. Casa, por favor — ele estava pior do que um calouro

deixado aos cuidados de Ben Rogers. Adorável. Ele seria todo tipo de ajuda nesta

condição.

Seus olhos se fecharam novamente quase imediatamente e seu corpo ficou

mole... De novo. E sua cabeça AINDA estava no meu colo.

No banco da frente, Joonie relaxou, deixando sair um suspiro profundo.

— Você estava começando a me assustar.

Hum, começando?

— Você estava conversando com pessoas que não estavam lá... De novo — ela

disse com um riso trémulo. — Alguém que nós conhecemos? — o olhar dela voou para

o espelho retrovisor como se ela estivesse esperando que ele se sentasse e tivesse uma

conversa; desespero brilhou através de seus olhos. — Will? Você está acordado?

— Sim, ele está apenas encarando a parte de trás das pálpebras com muita

concentração — eu murmurei.

— Droga — disse ela.

Eu suspirei.

— Fica fria, psicopata. Se você não vai levá-lo para o hospital, que

provavelmente não é a escolha mais brilhante que você já fez, mas então você está

vestindo calças deliberadamente desfiadas, por isso, que seja, você pode fazer o favor

de levá-lo para casa onde ele pode ter uma chance de acordar e me ajudar? Sério, eu

estou tendo, tipo, o pior dia de sempre.

54

Como se ela tivesse me ouvido, Joonie virou o Inseto da Morte para fora da rua

principal em Groundsboro, que, acredite ou não, se chama Rua Principal, de volta para

o bairro por trás da estação de correios. Pequenas casas em forma de caixote com

gramados ainda menores alinhadas de ambos os lados da rua.

Eu já estive no bairro antes. Ilsa, a nossa senhora da limpeza, costumava viver

aqui e há um longo tempo atrás, antes do divórcio, minha mãe teria me deixado aqui

para brincar com a filha de Ilsa, quando o meu pai estava em uma ―viagem de

negócios‖ e ela precisava de ―uma tarde‖. A ‖viagem de negócios‖ correspondia a um

fim-de-semana fora com Gigi — sua assistente na época e sua mulher agora. ―Uma

tarde‖ significava um pouco de tempo de qualidade com Jim, Jack e Smirnoff. Às vezes

eu sentia que eu vivi minha vida inteira entre aspas invisíveis.

Ilsa sempre tinha salgadinhos frescos e sua casa perpetuamente cheirava a

canela. Minha boca encheu de água com a memória, mas o meu estômago não deu sinal

de vida. A boa notícia sobre estar morta era que eu provavelmente poderia comer o que

eu quisesse e não engordar. Contudo encontrar comida que eu podia tocar e, portanto,

comer, podia ser complicado. Outra coisa a perguntar para Killian quando ele decidisse

regressar à terra dos vivos... Ou onde quer que nós estejamos.

Resmungando baixinho como uma verdadeira psicopata em formação, Joonie

diminuiu a velocidade a cerca de metade da rua, encostando-se à entrada de cascalho

de uma casa marrom de um piso, bonita, mas com aparência desgastada, com janelas

brancas e uma porta vermelha. A garagem, quase tão grande como a casa, estava fora

para a direita. Uma cesta de basquete enferrujada e torta estava pendurada sobre a

porta amassada e agredida.

Encostei-me contra a janela lateral do Inseto — que pareceu

surpreendentemente sólida dada a minha experiência anterior de passar através de

metal e vidro — e saí de debaixo de Killian. Sua cabeça atingiu o banco com um baque

surdo.

— Graças a Deus — eu murmurei, mas, honestamente, estar meio agachada no

banco traseiro de um VW Inseto não era muito agradável, tampouco.

Joonie desacelerou o carro, parando atrás da casa. Desconfortável e impaciente,

eu me mexi, dando passos pequenos no chão até ficar de frente para a porta do lado do

passageiro. Dei um passo em frente totalmente preparada para passar por todo o frio e

formigamento por atravessar objetos sólidos... E meu cotovelo travou no encosto de

cabeça do banco do passageiro.

Mas que diabos?

55

— O carro não é sólido, o carro não é sólido — eu repeti uma e outra vez. Mas o

plástico, metal e — vamos enfrentá-lo — provavelmente amianto13 me segurou tal como

teria se eu tivesse tentado isso quando estava viva.

Joonie puxou a alavanca de câmbio para a posição parada, estalou ao abrir a

porta e pulou de seu assento, lançando-se para frente para poder chegar a Killian.

— Will — inclinou-se para dentro do carro, colocando a sua mão na borda do

assento, e sacudindo-o suavemente. — Vamos lá. Vamos embora.

Isso é ridículo. Eu fiz isso uma vez. Eu posso fazer isso novamente. Concentrei-me,

imaginando a sensação do cascalho debaixo dos meus sapatos, o cheiro do ar fresco em

vez de óleo queimado e maconha velha. Apenas um passo confiante e eu estaria...

Meu joelho bateu solidamente com o carro, sacudindo a coisa toda. Eu tropecei

para trás, agarrando meu joelho. Só o meu equilíbrio e superior coordenação me

impediram de cair sobre o assento e sobre Killian.

— Droga — gritei. — O que está acontecendo aqui? — coloquei meu pé no chão,

estremecendo quando meu joelho agora dolorido dobrou, sim, ainda estava morta e eu

ainda sentia dor, onde está a justiça nisso? Virei-me para encontrar Joonie olhando com

olhos arregalados para o carro, enquanto ele chocalhava por causa do meu movimento.

— Olá? — ela disse em voz fraca. A pouca cor dela tinha sido drenada de seu

rosto. Ótimo. Se ela pensava que seu carro estava mal assombrado ou possuído ou

alguma coisa, ela provavelmente nunca iria entrar nele novamente para deixar a casa de

Killian.

— Booooooo — eu disse acidamente.

Ela não se moveu, apenas continuou a olhar ao redor, a maquiagem dos olhos

escuros e rosto pálido fazendo-a parecer com um guaxinim albino assustado. Eu

suspirei.

— Não tão alto — Killian gemeu sem abrir seus olhos.

Carrancuda, Joonie voltou sua atenção para ele.

— Vamos lá, vamos levá-lo para dentro.

— Casa — ele murmurou.

13

O Amianto, uma fibra mineral natural extraída de certas rochas, foi largamente utilizado na indústria até que se descobriu o seu perigo para a saúde pública. Em 1994 foi proibido o uso das fibras mais perigosas, no entanto, a partir de 2005 nenhuma variedade é permitida.

56

— Sim, você está em casa — ela se inclinou e agarrou seus braços. Em seguida,

apoiando seus pés contra o chão, ela puxou-o em uma posição sentada e depois com

outro puxão grande ela levantou-o.

Pensei que ele ia cair e levá-la com ele, ele era uns dez centímetros mais alto que

ela, mas eles pareciam familiarizados com esta rotina. Ele tropeçou para frente, mas

conseguiu ficar de pé enquanto ela passava ao lado dele, puxando seu braço sobre os

ombros. Aw, ela era como uma muleta com piercings incrustados.

Depois de Joonie dar uma rápida olhada em volta para as casas vizinhas, os

dois cambalearam em direção à casa. Graças a Deus ela tinha deixado a porta do carro

aberta. Caso contrário, eu poderia ter estado presa lá dentro para sempre. Incrível como

eu continuava encontrando novos círculos do inferno.

Saí para a calçada, aliviada por estar livre e a respirar (ou que seja) ar fresco, e

segui-os a um ritmo calmo. Na porta, parecia haver alguma confusão sobre a chave,

qual é a chave, quem tem a chave, algo que levou Joonie a procurar primeiro em seus

bolsos e, em seguida, nos do Killian.

Então... Mais espera. Sério, nada há na vida após a morte, ou o que é isso, além

de esperar? Com um suspiro, encostei-me ao lado da casa... E passei através dela.

Cobertura de madeira, gesso... E isso era um piano? E tudo atravessado

friamente à pressa. Caí no chão — este com um carpete terrível a imitar mármore

marrom e creme — com um baque que eu senti, mas que não consegui ouvir.

Atordoada, fiquei lá por um segundo, olhando para o piano negro e para as minhas

pernas presas no meio.

Claramente, esse negócio de andar através das paredes e tal era muito mais

complicado do que eu pensara. Como é que eu podia cair na maldita casa por acidente,

mas não conseguia sair do carro, não importa o quão duro eu me concentrasse? Isso não

fazia nenhum sentido.

A não ser que nem sempre tivesse a ver comigo. Talvez fosse outra coisa. Tipo,

talvez porque a casa era de madeira e não metálica como o carro, as moléculas fossem

afastadas para que eu pudesse deslizar com mais facilidade ou algo assim... Eu não

tinha ideia. Só mais uma coisa que eu tinha que descobrir. Com uma careta, eu enrolei

minhas pernas em direção ao meu peito, meio que esperando sentir a parede e o piano

raspando minha pele. Mas não doeu.

Quando todo o meu corpo atravessou a casa, eu rolei para o lado e me levantei.

Sacudi-me novamente não porque era estritamente necessário, mas porque era

reconfortante de alguma forma e dei uma olhada ao redor. Definitivamente a sala de

estar. Não havia televisão, pesadas cortinas cobriam a janela grande no outro lado da

sala e um sentimento de vazio e de falta de uso enchia a sala. Molduras baratas de cor

57

prata cobriam a parte superior do piano. Um homem — que se parecia com Killian só

que muito mais velho — dominava as molduras ao longo do piano. Seu pai,

provavelmente. Ele parecia significativamente menos escuro, sinuoso e enublado nessas

fotos.

À minha esquerda, duas estantes de madeira escura continham uma variedade

de xícaras de chá de aparência delicada e cerâmicas de figurinhas com alguns livros de

capa dura para decoração. À minha direita, um feio, mas perfeitamente preservado sofá

de xadrez pêssego e azul-petróleo, de, tipo 1993, ocupava a parede. Próximo a ele

estavam duas portas giratórias com aquelas terríveis molduras de madeira baratas. Elas

estavam fechadas, mas pareciam ser a única maneira de sair da sala.

Como que para confirmar esse fato, eu ouvi uma comoção através das ripas de

madeira, um súbito barulho de tropeçar e o tilintar das chaves e percebi que Killian e

Joonie tinham finalmente conseguido atravessar a porta traseira e entrado em qualquer

que fosse a sala que estava por trás das portas giratórias.

Caminhei em direção às portas, mas parei logo antes de tentar atravessá-las. Se

elas fossem sólidas e eu chegasse arrebentando através delas, Joonie com certeza veria.

Não a mim, mas às portas abertas. Embora isso pudesse assustá-la e fazê-la ir embora,

ela me parecia mais como o tipo que ia ficar e ia exigir uma explicação de Killian, o que

eu não queria. Então, esperei até que o som de sua confusão soasse mais distante. Então

eu estendi a mão para as portas e minha mão escorregou na hora. Perfeito.

O resto de mim seguiu minha mão sem problema e eu me encontrei no que

acabou por ser uma cozinha, pintada de laranja brilhante e com ENORMES flores

laranja no papel de parede; será que alguém era daltônico? Quer dizer, sério, mesmo a

tempo de ver Killian e Joonie aos tropeços em outra entrada no outro lado da sala.

Eu segui à distância, indo da cozinha para uma sala minúscula. Havia três

portas no corredor, não incluindo a cozinha. Era isso. Esta NÃO era uma daquelas casas

que eram maiores por dentro do que por fora.

Diante de mim, Joonie e Killian escolheram a porta número dois, que acabou

por ser, sem surpresa, o quarto de Killian. Ele não era tão nojento quanto eu esperava.

Nenhum alimento mofado ao redor ou gosto gótico de tinta preta ou cartazes de

Marilyn Manson. Apenas um quarto de um cara de aparência normal: paredes brancas,

carpete bege, cortinas azuis-e-verdes em xadrez a combinar com o edredom de flanela

azul e verde em xadrez e com os lençóis sobre a cama. Uma dessas estantes baratas que

você é que monta, cheia de livros e quadrinhos, estava do lado esquerdo da cama. Um

criado mudo a combinar estava à direita. Do outro lado do pé da cama, uma

escrivaninha com aparência maltratada segurava mais livros e a cadeira, virada de

costas para a secretária, estava coberta com várias camadas de camisetas pretas e jeans

esfarrapados.

58

Cheirei o ar. Cheirava a roupa fresca e a garoto. Não tinha cheiro de meias de

ginástica suadas de garoto, mas sim aquele cheiro bom e limpo que eu às vezes cheirava

quando beijava Chris no pescoço e ele tinha se esquecido de colocar a sua colônia.

Não que Will Killian cheirasse bem. Não, não, não. Eu não estava dizendo isso.

Só que o quarto dele cheirava.

— Aqui — Joonie ajudou Killian a subir na cama, e ele quase caiu de cara nela.

— Obrigado, J — disse ele, soando abafado pelo travesseiro.

Oh, Deus, eu esperava que ele não se sufocasse. Então, novamente, talvez isso

fizesse esta conversa acontecer mais rapidamente.

Eu bati meu pé, esperando que Joonie saísse, mas ela só ficou lá, ainda

respirando com dificuldade do esforço de movê-lo e o observou. Sim, porque isso não

era assustador nem nada.

O som da respiração profunda e constante Killian, não um roncar, mas

certamente não aquele silencioso e quase inexistente respirar que ele tinha feito antes,

encheu o quarto. Ainda assim, ela não partiu.

Ela puxou um dos piercings no lábio, como um tique nervoso ou algo assim e

eu estremeci.

— Eu tenho que ir — disse ela, finalmente, falando para o traseiro adormecido

de Killian. — Se eu faltar à educação física novamente, Higgins irá me chumbar e eu

não vou me graduar. E você sabe — ela deu um risinho estranho —, eu tenho que sair

daquela casa.

— Ok, descendo a um novo nível de loucura aqui.

— Eu preciso que você seja honesto comigo, Will. Eu acho que você está

mentindo para mim, tentando me proteger.

Um sibilo minúsculo soou e eu olhei para baixo a tempo de ver um de seus

piercings deslizar por todo o piso de madeira. Nojento.

— Você tem que dizer a verdade — disse ela, soando à beira das lágrimas. O

sangue agora pontilhava seu lábio onde o piercing com que ela tinha estado a brincar

escapou. — Caso contrário, isso nunca vai funcionar e eu preciso que isto funcione. Ok?

Eu gemia.

— Tenha um pouco de orgulho, sim? Implorar que alguém goste de você é tão

patético. Implorar que Killian goste de você é... Eu nem sequer tenho uma palavra para

o quão triste é.

59

— Eu te amo, você sabe — ela fungou e limpou debaixo de seus olhos, seu dedo

vindo preto do delineador borrado. — Eu sinto muito que você se tenha machucado.

— Fique feliz por estar dormindo — eu disse a Killian. — Eu gostaria de estar.

Felizmente, essa última declaração pareceu finalizar a necessidade de Joonie de

discursos dramáticos e implorantes. Ela respirou fundo, balançou a cabeça e com um

último olhar a Killian, ela finalmente saiu. Alguns segundos depois, ouvi a porta dos

fundos.

Eu me deixei cair na cadeira, exausta. Tudo isso para ter uma conversa a sós

com alguém que eu nem ao menos gosto. Estar morta era uma droga.

60

6

Will Killian

O padrão familiar de manchas de água amarelada no teto do meu quarto me

cumprimentou quando abri os olhos. Casa. Seguro e na cama, se o conforto suave

debaixo de mim era qualquer indicação. Eu tinha a vaga memória de tropeçar para

dentro do carro de Joonie com seu apoio, mas não muito mais que isso. Encontros com

os restos retorcidos e fantasmagóricos de meu pai sempre me deixavam fraco, drenado

com a energia que ele absorvia de mim. Acrescente a isso tudo os danos que vovô

Brewster e os outros tinham infligido primeiro e...

Vovô Brewster. Diretor Brewster. Expulso. Cada palavra desencadeou a seguinte,

como uma série de luzes ao clicar em sequência até que o retrato inteiro foi revelado.

Uma sensação de horror amanheceu dentro de mim. Eu abandonei a escola, ainda que

por uma boa razão, não que isso importasse, menos de uma hora depois de Brewster

me ter ameaçado com expulsão. Expulsão significava uma chamada para a minha mãe,

que por sua vez ligaria para o Dr. Miller e por esta tarde seria "Bem-vindo ao Hospital

Psiquiátrico de Ivythorner, Sr. Killian‖.

— Merda — ssentei-me em uma posição vertical e balancei cinco segundos

depois, quando minha cabeça deu uma pulsação feroz e as trevas encheram as bordas

da minha visão. Muito, muito rápido.

— Finalmente. Preciso lhe perguntar em que ano estamos, quem é o presidente

e esse tipo de coisa? — uma voz estranhamente familiar exigiu. Mais do que um pouco

de imperiosidade coloriu o seu tom de voz, portanto definitivamente não era Joonie, e...

— Porque você tem agido de todas as formas bizarras possíveis. Não — ela

fungou — que isso seja algo de novo para você.

— Não. Não, não, não, não — isso não estava acontecendo. Eu me recusei a

acreditar, mas meus olhos se abriram por vontade própria. Minha visão clareou o

suficiente para revelar Alona Dare, a Alona Dare — como ela provavelmente se referia a

si mesma — sentada na minha cadeira em cima de camadas de roupa limpa, com as

pernas elegantes de líder de torcida puxadas contra o peito. Ela parecia mais pálida do

que o usual. Não era de todo surpreendente para alguém que estava, de fato, morta.

61

— Você está aqui.

Ela fez uma careta.

— Você não precisa ficar irritado sobre isso. Eu não quero mais ficar aqui do

que você me quer aqui.

— Ótimo. Vá embora — o relógio na minha mesa dizia 11:33. Eu tinha perdido

mais de três horas. Tempo de sobra para Pederson falar com Brewster e para Brewster

fazer a chamada para a minha mãe. A única razão para eu ainda estar aqui era porque

Sam, chefe da minha mãe na lanchonete, não a deixava ter seu telefone celular enquanto

ela trabalhava. Principalmente porque ele sabia que ligaria para mim a cada cinco

minutos. Eu tinha o número da lanchonete para se houvesse uma emergência séria e a

"regra" de Sam me dava alguma aparência de normalidade e liberdade. Eu gostava dele

por isso.

— Isso é maneira de tratar alguém que acabou de salvar sua vida? — Alona

exigiu.

— Ele não ia me matar. Ainda não — eu disse severamente. — Ele estava

apenas fazendo um ponto... — levantei-me devagar, esperando a tontura passar e o

resto de suas palavras me atingiu. — Você salvou a minha vida? Em que planeta você

está vivendo?

— Exatamente. Essa seria a questão — ela assentiu com satisfação.

Olhei para ela.

— Desculpe, talvez isto seja o ferimento na cabeça, mas... O quê? — ela abriu a

boca para responder e eu balancei a minha cabeça.

— Não se preocupe. Esqueça isso. Eu não posso fazer isso agora — o turno da

minha mãe terminava ao meio-dia. Ela estaria verificando o telefone às 12:01. Imagino

que leve uns dez minutos para alcançar o Dr. Miller e explicar a situação, vinte minutos

ou menos para eles virem da cidade para cá... Sim, eu tinha provavelmente cerca de

quarenta e cinco minutos de liberdade restantes. Tempo de sobra.

Certo.

Eu me ajoelhei ao lado da minha cama — tomando cuidado para manter a

cabeça nivelada — e procurei a minha mochila atrás do saiote da cama14 que minha mãe

insistiu em colocar para esconder a minha versão de armazenamento (também

conhecido como jogar tudo debaixo da cama e esperar não precisar daquilo novamente

em breve).

14

Não sabia como traduzir. Do original ―dust ruffel‖, que são tipo aqueles lençóis que parecem uma saia, para que

não se veja o que está debaixo da cama.

62

Eu tinha que sair por alguns dias. Deixar as coisas se acalmarem. Esperar até eu

poder falar com a minha mãe sozinho... E tentar descobrir uma maneira, novamente,

para explicar o que tinha acontecido sem dizer a verdade. Os pais de Erickson — ambos

advogados — sempre estavam fora. Eu podia ficar lá por alguns dias e eles

provavelmente não iriam nem perceber. Inferno, até Erickson podia não perceber.

— Eu estou falando sério, Killian — Alona chutou as pernas para fora e se

levantou. A cadeira, que era daquelas que balança e que tem rodas, nem sequer se

mexeu. Ela devia estar fora de alcance15.

Apesar do fato de que eu deveria estar me concentrando em encontrar o meu

estúpido saco e ir embora, eu a vi se aproximar, em uma espécie de hipnose pelo

movimento de suas pernas longas e bronzeadas.

— Onde, exatamente, eu estou? Como você pode me ver e ouvir? Eu estou

morta, viva, em algum lugar entre os dois? Estou presa aqui para sempre? Como faço

para fazer a luz branca vir para mim? Onde está a comida? — ela enumerou as

perguntas com seus dedos enquanto se aproximava.

Balancei a cabeça para limpá-la.

— É difícil acreditar, mas eu acho que você era menos irritante quando estava

viva. Será que não me ouviu dizer que não posso falar com você agora? Vá assombrar

outra pessoa — meus dedos se fecharam sobre a borda de uma alça e eu puxei o saco

para fora, trazendo uma nuvem de poeira junto com ele.

— Confie em mim, eu iria encontrar alguém se eu pudesse. Você só está bravo

porque eu nunca falei com você quando estava viva.

— Sim, as ondas de pesar estão passando por mim — comecei a me levantar,

mas tive que parar em um joelho, apertar o lado do colchão com a mão e fechar meus

olhos novamente. A mudança repentina na posição fez a minha cabeça ficar tonta.

Outras 24 horas de sono (que eu não tinha) e eu estaria totalmente recuperado se as

minhas experiências anteriores eram indicadoras de alguma coisa. Eu tinha visto meu

pai, ou o que foi deixado dele, dez ou doze vezes nos últimos oito meses, desde aquela

noite no Hospital Santa Catarina depois do acidente de Lily, quando eu disse a minha

mãe e a Joonie que ia embora após a graduação. Ele tinha sido declarado morto naquele

hospital e eu acho que uma parte dele ainda permanecera lá.

Aparentemente, ele não estava feliz com a minha decisão de partir. Nada

surpreendente, dado que a última vez que eu falara com ele, ele me fez prometer que ia

cuidar de minha mãe. Eu não tinha percebido na época, é claro, que ele quis dizer em

15

Aqui ele faz uma referência a algo que se percebe mais para frente, quando ele diz que ela está fora de alcance, é

fora do alcance dele, a uma distância muito grande para a ―habilidade‖ dele funcionar.

63

vez dele, sempre. Tinha sido apenas uma normal segunda-feira de manhã. Ele beijou a

minha mãe como despedida e disse-me para cuidar dela, assim como ele sempre fazia.

Então, ele havia dirigido três milhas de distância para um caminho-de-ferro que ainda

não tinha sido atualizado com luzes e barreiras de segurança, estacionou na pista e

esperou. Ele tinha trabalhado na linha de trem para o Southfolk Northern durante o

último ano e meio fazendo reparações, então, ele sabia os horários dos comboios e que o

engenheiro não seria capaz de parar a tempo.

Às vezes, mesmo depois de ter acontecido, eu tentei imaginar no que ele

pensou enquanto estava ali à espera. Então eu percebi que não queria saber.

— Olá? Terra para Killian? — ouvi Alona se movimentando ao redor, e então

de repente, a base da minha cama afundou com seu peso. — Uau — ela sussurrou. —

Isto é estranho — ela ficou quieta por um segundo feliz. Então ela começou novamente.

— Sabia que por vezes...

— Quando você está perto de mim, a uma distância de poucos metros, você têm

peso e substância de novo — abri novamente os olhos e me forcei a ficar de pé

completamente. — Tudo responde a você como se estivesse viva e em seu corpo físico

novamente. Sim, eu sei — deixei a sacola na cama ao lado dela e abri o zíper.

Ela ofegou.

— Você está fazendo isso? Como? E não é assim tanto peso — ela acrescentou, a

voz irritada.

Eu balancei minha cabeça.

— Meu Deus, você é tão frívola. Nem mesmo a morte te mudou.

— Costuma mudar a maioria das pessoas? — ela dobrou as suas pernas esguias sob si mesma, suas unhas dos pés perfeitas pintadas em alguma cor brilhante de garota entre o vermelho e o rosa. — Pelo o que eu vi hoje parece mais que ela liofiliza16 as pessoas no lugar, tornando-as tal como eram antes de morrerem.

Eu fiz uma careta. Essa foi uma observação relativamente decente. Talvez ela

não fosse tão burra como eu pensei. Desloquei-me com cuidado, em deferência à minha

cabeça ao redor da cama para a cadeira para pegar um punhado de roupa.

Ela olhou da bolsa para mim e para trás novamente com leve interesse.

— Onde nós estamos indo?

16

Liofilização ou criodessecação (Freeze drying, em inglês) é um processo de desidratação usado para preservar alimentos perecíveis, princípios ativos, bactérias, etc, onde estes são congelados e a água é retirada, por sublimação, sem que passe pelo estado líquido.

64

— Nós não estamos indo a lugar algum — vvoltei para a cama e joguei as

roupas na minha bolsa.

— Sério? — ela estendeu as pernas em todo o seu comprimento na minha cama,

minha cama! Afastando a sacola com uma coxa bem torneada e tonificada. Engoli em

seco.

— Isto é tão legal — disse ela com espanto, mais para si do que para mim.

— Alona... — eu comecei.

Ela recostou-se sobre os cotovelos.

— Olha, eu vejo as coisas do seguinte jeito, Killian. Você pode me ajudar e me

dizer o que eu quero saber ou eu posso simplesmente seguir você por toda parte — ela

me deu aquele falso doce sorriso que eu a tinha visto usar com tanta frequência na

escola. Seu olhar continuou tão afiado e impiedoso como sempre. — Vai ser tão bom ter

alguém com quem conversar 24 horas por dia. Você sabe, eu já não durmo. Pelo menos,

eu acho que não. Eu realmente nunca...

Eu gemi.

— Tudo bem, tudo bem — eu devia a ela alguma coisa. Ela havia despachado o

vovô B., Liesel e Eric e o resto deles com surpreendente eficiência. Claro, nada ficava no

caminho de Alona quando havia alguma coisa que ela queria. Uma vantagem de ser um

leproso social propiciava-me tempo de sobra para observação ininterrupta. Do que eu

tinha testemunhado, Alona Dare era unidirecionada, determinada e implacável. Se o

ensino médio era um jardim zoológico, ela era a leoa correndo à caça dos turistas

infelizes que haviam vagado no compartimento errado.

Ela estudava as pessoas, aprendia seus pontos fracos e, então, aproveitava para

oferecer doces sorrisos e cílios esvoaçantes ou comentários cortantes e uma sobrancelha

levantada em desprezo, o que fosse mais eficaz. E funcionava. As pessoas cediam e se

encolhiam. Alguns fingiam não se importar, mas eles estavam de volta à sua mesa,

implorando por sobras em questão de semanas. O fato era que, a menos que você fosse

Misty Evans — sua melhor amiga e a única que parecia ser exceção no reinado todo-

poderoso de Alona — você se dobrava, rastejava e ficava longe de seu caminho.

Era nojento. E, no entanto, alguma parte de mim a admirava por isso. Saber o

que você quer e que você vai tê-lo se pressionar o suficiente, nem mesmo o dinheiro

podia comprar esse tipo de confiança. É claro, eu também ouvi inúmeras histórias de

espectadores inocentes sendo eviscerados pelo ―charme‖ pessoal de Alona. Uma boa

coisa para se manter em mente.

Eu olhei o relógio novamente.

65

— Você tem dez minutos — disse a ela.

— Fechado — ela se sentou de novo rapidamente, dobrando suas pernas

debaixo dela novamente. Perguntei-me se ela as tinha estendido deliberadamente para

chamar minha atenção. Não a considerava incapaz disso.

— Ok, primeira pergunta — contou com os dedos. — Por que você é assim? Por

que você me vê e ouve e ninguém mais pode?

Essa era fácil.

— Eu não sei.

Ela me deu um olhar fulminante.

— Você deve ter alguma ideia. Quer dizer, sério, você tem todos esses livros

sobre a morte e coisas estranhas — ela acenou com a mão para a minha estante. Ela

tinha estado espionando pelo meu quarto? Ótimo. — Eles devem dizer algo e eu sei que

você tem pelo menos uma teoria.

— O que faz você pensar isso? — me senti um pouco lisonjeado por ela pensar

assim.

Ela encolheu os ombros e sacudiu os cabelos brilhantes para trás de seus

ombros.

— Que mais você tem para fazer com seu tempo além de pensar em coisas

como essas? Não é como se você estivesse envolvido em atividades extracurriculares.

Além disso, você é todo, tipo, gótico e seguidor da morte, certo?

Alona Dare, a rainha do insulto-elogio.

— Uau. Obrigada. Alguém já lhe disse que você é boa com as pessoas?

Ela franziu o cenho.

— Não.

— Ótimo. Eu não sou gótico.

— Seu cabelo é preto, você tem piercings, se veste de preto e age de forma

estranha o tempo todo.

— Meu cabelo é naturalmente desta cor. Eu tenho três brincos em uma orelha e

é só. Esta camisa — puxei o tecido em meu peito — é azul-marinho e se eu ajo de forma

estranha o tempo todo, é por causa de fantasmas como você.

Ela revirou os olhos.

66

— Ok, Killian, que seja. Então, você não é um gótico. Não seja um bebê... E não

me chame de fantasma — acrescentou ela com uma carranca.

— Por que não?

— Olá? Você vê um lençol e correntes presas a mim? — gesticulou

dramaticamente para si mesma.

Isso trouxe à minha mente todos os tipos de imagens não fantasmagóricas...

Balancei minha cabeça para limpar os meus pensamentos.

— O que você prefere, então? Vividamente enfraquecida17?

Ela suspirou.

— Cale-se e explique a sua teoria, ok?

— Tudo bem — sentei-me na extremidade oposta da cama. Se ela ia me fazer

passar por tudo isso, eu queria poupar a minha força para sair daqui quando a nossa

"conversa" terminasse. — A melhor teoria em que eu consegui pensar é esta: os vivos

ocupam uma dimensão, uma localização específica no tempo e no espaço, certo?

Quando você morre, sua energia transita dessa dimensão para outra — fiz uma pausa.

— Você está familiarizada com a ideia de diferentes dimensões, certo?

— Ah, sim, com certeza — ela mentiu, mexendo-se um pouco inquieta.

A cama balançou em resposta ao seu movimento, lembrando-me mais uma vez

que a menina mais bonita que eu já vira na vida real estava no meu quarto, na minha

cama, a pouca distância de mim. Cabelo reluzente, boca exuberante, pescoço longo e

gracioso e era renda que ela tinha sob a marca de pneu e de sua quase transparente

blusa branca de ginástica?

É claro que, ao contrário da fantasia ocasional que eu tinha, ela estava morta e

nós estávamos falando sobre a vida além da morte e diferentes dimensões, em vez de

ela estar batendo seus cílios e fazendo beicinho enquanto se oferecia para fazer

"qualquer coisa" se eu a ajudasse a passar a prova final de Inglês. Ainda assim, a

semelhança era um pouco extasiante.

— Killian? — ela acenou com a mão para pegar a minha atenção. — Você está

divagando ou o quê?

De volta à realidade. Minhas chances com Alona Dare, viva ou morta, eram

praticamente as mesmas... Zero. Pigarreei. — As dimensões se sobrepõem um pouco, eu

17

Do original ―viving impaired‖, que é tipo viver com uma deficiência a algum nível ou enfraquecida de alguma

forma, neste caso é porque ela nem está viva, nem totalmente morta, então é como se vivesse enfraquecida, de forma

incorpórea.

67

acho, e quando as pessoas morrem, por vezes, elas ficam presas no meio. Como isto —

me estiquei de volta e vasculhei na minha gaveta do criado mudo por um pedaço de

papel e algo para escrever. Encontrei um recibo da compra do último Manhunter18 e

uma ponta de um lápis quebrado antigo. Bom o suficiente. Desenhei dois círculos

entrelaçados e identifiquei todas as partes adequadamente19.

Eu lhe entreguei o recibo.

— Será que isso ajuda?

Ela estudou-o atentamente por um longo momento antes de levantar o olhar

para encontrar o meu com uma carranca.

— Então, você está dizendo que eu estou presa aqui — ela levantou o recibo e

bateu nele. — No meio. Tipo num purgatório.

Eu levantei minhas mãos.

— Eu não lido com religião. Vira o suficiente de mortos de todas as religiões e

de nenhuma religião para saber melhor do que tentar explicá-lo nesses termos.

— Você disse que pensou que eu ia direto para o inferno — ela ressaltou.

Droga, ela era definitivamente mais perspicaz do que eu pensava.

— Eu quis dizer ido para lá, no sentido de sair totalmente deste mundo.

Ela baixou a mão com o recibo, olhando para baixo para ele.

— Quando eu desapareci esta manhã, em ambas as vezes, eu não sei para onde

fui. Não me lembro de nada. O tempo passa, eu acho, com base na altura em que eu

acordo aqui. Mas eu simplesmente... Desapareço — seus olhos verdes encontraram os

18

Livro de quadradinhos.

19 Legenda: Living: vivos; You: você; Me: Eu; Dead: Mortos; Middleground: Meio Termo (refere-se à condição de

fantasma, no meio das duas dimensões).

68

meus desafiadoramente, mas luziam um pouco mais do que o normal, como se

estivesse à beira das lágrimas.

— Você está dizendo que eu estou no inferno, quando não estou aqui?

— Eu não sei — cruzei os braços sobre o meu peito. — Seu cabelo cheira como

enxofre quando você volta?

Sua testa franziu.

— Como eu sei se... — os olhos dela se arregalaram quando ela percebeu. —

Oh, você é um asno! — ela jogou o recibo de volta para mim. — Eu estou falando sério.

— Eu não sei, ok? As pessoas desaparecem em Middleground o tempo todo. Às

vezes elas voltam, na maioria das vezes não — fiz uma careta. — Normalmente, porém,

os que ficam têm questões não resolvidas, coisas com que eles precisam lidar.

— Sim, e...? — os olhos dela brilharam perigosamente, como se eu estivesse

perigosamente perto de dizer a coisa errada.

Mexi-me desconfortavelmente.

— Que tipo de problemas você poderia ter, de qualquer das formas? — Além de

ser uma cadela. Eu mantive esse pequeno pensamento para mim, mas não pareceu

ajudar.

Sua cabeça voou para trás como se eu tivesse dado uma tapa nela e ela abriu

um pouco a boca. Em seguida, seus olhos verdes estreitaram e ela se empurrou para

fora da cama, seus pés de pousando com uma batida na madeira.

— Eu não tenho problemas? Eu não tenho problemas? — ela agarrou a coisa

mais próxima à mão, que era, infelizmente, o meu meio-embalado-saco e jogou uma

camiseta na minha cabeça. — Você nem mesmo me conhece, sua... Aberração.

— Hey! — levantei minhas mãos em uma posição de defesa.

— Eu estou morta e eu estou presa aqui. Eu absolutamente tenho problemas!

— um par de jeans voou na minha cara.

— Só porque tudo parece estar bem por fora... — ela fez uma pausa para

recarregar, dando um passo em frente para pegar alguma coisa da estante desta vez —

...não significa... — vários livros voaram na minha cabeça e eu me abaixei — ...que está!

O Guia Espírito de Tobin bateu em minha cabeceira e caiu para o chão,

pousando com um baque sólido.

— Cuidado — eu disse. — Você podia ter arrancado minha cabeça com essa

coisa.

69

— Alguém sentiria falta dela? — ela disso sarcasticamente, agarrando outra

braçada de livros.

— Pare! — saí da cama, debaixo da sua linha de fogo, estremecendo com o

palpitar resultante na minha cabeça.

— Eu sinto muito, ok?

— Não é bom o suficiente — disse ela por entre dentes cerrados, cada palavra

pontuada por um livro. Pelo menos ela havia se mudado para os livros de bolso.

Juntando o que restava da minha força, eu agarrei-a pela cintura e a puxei para

longe da estante, tentando ignorar o fresco cheiro de flores do cabelo dela e o modo

como ela se contorcia contra mim. Então, ela atacou com uma dessas pernas longas que

eu admirara mais cedo e me pegou por trás do tornozelo.

Nós caímos em cima da cama, que deu um estalo ameaçadoramente alto e fez

um baque quando a atingimos. Novamente, não fazia exatamente parte da fantasia.

70

7

Alona Dare

Sentei-me jogando meu cabelo para trás do meu rosto em um único movimento

e encontrei Killian debaixo de mim. Com a confusão — tudo sua culpa estúpida, por

sinal — eu acabei estatelada sobre seu peito, que era mais largo do que parecia. Azul

marinho é uma cor de emagrecimento20, eu acho.

Suas mãos — também maiores do que eu pensava — descansavam levemente

sobre minhas pernas e eu senti o calor de sua pele e o tecido macio de sua camiseta

esfregando contra o interior dos meus joelhos enquanto ele respirava.

Três dias sem contato humano não era tanto tempo, a menos que todo mundo

em que você tocasse transformasse seu interior em uma confusão fria e trêmula. Então

parece que foi uma eternidade... E tocar Killian foi realmente muito bom.

Ele olhou para mim e eu vi que os seus olhos de um azul pálido assustador

tinham um anel mais escuro de azul em torno deles — como a borda de algum lago de

montanha que não está bem congelado ainda. Lambeu os lábios nervosamente,

revelando dentes brancos e alinhados que eu nunca tinha visto antes, porque — Olá? —

ele não era muito sorridente. E sim, eu tenho uma coisa por dentes bonitos, e daí? Não é

como um fetiche por pés ou algo desagradável como isso. Só por eu reconhecer o

trabalho de um bom ortodontista não significa que eu tenho que gostar da pessoa que

tem ―os‖ dentes ou não.

— Hum, Alona? — perguntou ele, hesitante.

Voltei para a realidade nesse momento. O que eu estava fazendo? Este era Will

Killian, pelo amor de Deus. Dei uma tapa em seu ombro.

— Fique longe de mim.

Ele gritou.

— Você está sobre mim!

20

Que faz as pessoas parecerem mais magras, porque ela achou que o peito dele não era tão largo antes.

71

— Você planejou isso — eu tentei empurrar-me fora dele, mas seu corpo

prendeu meu pé esquerdo na cama abaixo de nós.

— Ah, sim, eu planejei tudo, começando com você lançando os livros em mim.

Eu parei de lutar por um segundo para encarar ele.

— Eu não teria jogado livros em você se você não tivesse...

Seu corpo inteiro ficou tenso de repente sob o meu.

— Você ouviu isso? — seus olhos se arregalaram e ele se sentou. Seu

movimento libertou meu pé, mas enviou o resto do meu corpo deslizando para o chão.

Ele pegou meus braços debaixo dos ombros e puxou-me para cima, então, agora eu

realmente estava sentada em seu colo.

— Killian... — eu avisei.

— Cale a boca. Estou tentando ouvir.

A urgência em sua voz parecia verdadeira, então, apertei a minha boca fechada.

Se essa coisa preta sombria estava de volta...

Mas tudo que eu ouvi foi um carro lá fora. Soou como se pudesse estar

estacionando em uma entrada próxima. Nada de sobrenatural aí, mas Killian parecia

assustado com isso.

Ele me levantou do seu colo e me pôs de lado, certo, então ele era mais forte do

que parecia, antes de se arrastar pela cama e se colocar de pé em cima dela para espiar

fora da janela, no alto da parede atrás de sua cabeceira. Ele esticou a cabeça para a

esquerda, olhando para a calçada.

— Merda — abaixou-se com cuidado, primeiro para a cama e, em seguida, para

o chão.

— O que está acontecendo? — eu exigi. — Meus dez minutos não terminaram

ainda — ele não ia seriamente se afastar de mim, pois não? — Eu só fiz uma pergunta

que você nem sequer realmente respondeu. Você estava apenas adivinhando.

Ele me ignorou, inclinando-se para pegar as roupas que eu tinha jogado nele e

jogando-as de volta na sua bolsa.

Levantei-me em sua cama, balançando um pouco e fui até a janela para ver por

mim mesma. O carro — um sedan marrom (completamente eca) de algum tipo —

estacionou na entrada da casa de Killian. Enquanto eu olhava, as duas portas da frente

se abriram. Uma mulher pequena com o mesmo cabelo de Killian saiu do lado do

passageiro. Seus olhos estavam visivelmente vermelhos, mesmo a esta distância e ela

72

estava torcendo alguma coisa branca, um lenço ou um chumaço de Kleenex, talvez, em

suas mãos pequenas. Um homem baixo e largo, com barba e um daqueles coletes com o

couro manchado nos braços veio ao redor do lado do motorista para colocar o braço em

torno dela.

— Sua mãe e seu padrasto — eu adivinhei. — Qual é o problema? — além de

que seu padrasto tem um terrível mau senso de moda. Ele estava usando esses sapatos

velhos de homem com uma espessa sola de borracha. Eu não conhecia ninguém que na

verdade os usasse. Pensava que era apenas o equivalente ao bicho-papão, mas dos

sapatos. Feios, horrorosos, relatados em lenda, mas nunca vistos claramente na vida

real.

— Minha mãe nunca se casou novamente — fechou o saco e o jogou por cima

do ombro.

— Ok, então... — eu pulei fora da cama e segui-o quando ele saiu do quarto.

— Você tem que ir. Agora. — Killian me ignorou. Ele se moveu pelo corredor,

passando pela cozinha até a porta que eu não tinha visto da primeira vez.

Provavelmente, a porta da frente da casa.

— Nós tínhamos um acordo!

Ele parou de forma tão abrupta que quase me fez bater contra suas costas. Ele

se virou para mim, pontos luminosos de cor em seu rosto que seria pálido de outra

forma. Ele estava seriamente incomodado com alguma coisa.

— Aquele cara lá fora? — ele apontou um dedo em direção à calçada. — Ele é o

Dr. Miller, o meu psiquiatra. Ele quer me trancar no manicômio por ver coisas que não

estão lá. Compreende?

Não exatamente.

— Mas eu estou aqui.

— Não para ele e você teria um inferno para provar isso a alguém além de mim.

Então, se você quer o resto de seus dez minutos, você tem que calar a boca e ficar fora

do caminho até que eu possa sair daqui — Killian se alinhou ao lado da porta. Com

muito cuidado, puxou o ferrolho, fazendo uma careta quando este deu um rangido alto

contra o encaixe. Evidentemente, eles não usavam muito esta porta.

O pânico cru em sua voz tirou algum do insulto de suas palavras, mas também

me deu uma ideia. Eu me aproximei mais perto.

— Prometa-me que você vai me ajudar.

73

— O quê? — ele olhou para mim, sua mão congelada em uma garra na

maçaneta da porta. Atrás de nós, através da cozinha, eu podia ouvir o som de vozes.

Eles estavam conversando lá fora na calçada. Claramente, Killian estava contando com

eles vindo através da porta traseira, enquanto ele saía pela frente. Poderia funcionar,

mas o tempo certo seria crucial.

— Se eu não posso voltar ao que eu era — e confie em mim, depois do que eu

tinha visto no consultório do médico-legista, ninguém ia voltar para aquele corpo —

então eu quero seguir em frente. Os anjos, as harpas, as nuvens, atirar raio sobre a

cabeça de Misty, Krispy Kremes21 três vezes por dia sem engordar, eu quero tudo. Ficar

por aqui é só... Deprimente — inclinei minha cabeça para um lado, abaixei minhas

pestanas e dei-lhe o olhar que uma vez tinha feito Chris dirigir até Peoria para me

comprar uma moca latte de hortelã quando o Starbucks da cidade ficou sem a calda de

hortelã. — Eu vou ficar quieta e fora de seu caminho. Basta você fazer a luz branca vir

para mim.

Ele balançou a cabeça com um sorriso apertado.

— Eu não posso fazer isso.

— Por que não? — exigi.

— Não cabe a mim.

Pousei minhas mãos em meus quadris.

— Bem, a quem cabe então?

Ele não respondeu, apenas inclinou a cabeça para o lado com um olhar severo,

ouvindo algo e levantou a mão para eu ficar calada.

Ah, sim, certo.

— Eu estou falando sério, Killian — eu continuei. — Eu não posso ficar aqui,

não desta forma. Preciso de ajuda. Você não é a minha primeira escolha, claro, mas eu

preciso.

Ele deixou sua respiração sair em um assobio frustrado.

— Tudo bem, tudo bem. Eu vou te ajudar — disse ele em um duro sussurro. —

Agora se cale. Por favor.

Foi o "por favor" que me pegou. Ele parecia bravo, mas com medo também.

Não era nada divertido mexer com ele quando ele estava assim, não importa o que você

21

Nome de uma cadeia internacional de lojas de donuts.

74

possa ter ouvido, eu não gosto de torturar as pessoas. Além disso, eu tinha conseguido

o que queria.

Então, calei a boca... Por agora.

Através da cozinha, ouvi o rápido tap-tap dos passos e o tilintar de chaves.

Alguém estava subindo pela calçada até a porta dos fundos. Killian esperou um

segundo a mais do que eu teria esperado — mas ei, era sua grande fuga — depois ele

torceu a maçaneta e abriu a porta exatamente quando sua mãe enfiou a chave na porta

traseira.

Teria sido perfeito. Eles nem teriam ideia de há quanto tempo ele fora embora,

provavelmente nem sequer se dariam ao trabalho de procurar fora da casa. Exceto...

Quando Killian abriu a porta, o Dr. Miller estava atrás dela, com a mão para cima e

prestes a bater. Eu não poderia ter dito qual deles estava mais chocado.

Sapatos de borracha bicho-papão, sobrenaturais em seu silêncio, voltam a

atacar. Eles o levaram de volta para seu quarto e para sua cama. Rápido como um flash.

Só levou alguns segundos na sua companhia para eu perceber que, apesar de ser o

psiquiatra de Killian que tinha o poder para mandá-lo embora, era sua mãe que

comandava o show. Não por implorar ou lamentar, não como minha mãe. Ela estava

quebrada, pela perda do marido e pela quase-perda de seu filho e, claramente se

esforçando para ser forte. Um pedido dela deixou Killian lutando por obedecer, seu

rosto cheio de culpa nua. Ele largou a sacola na porta e seguiu sem hesitação. Se ela lhe

entregasse uma camisa de força, ele a teria colocado com um sorriso.

Fabuloso. Isto estava indo bem. Eu sei que todos os apresentadores de talk

shows22 falam sobre ter pais que se preocupam e se envolvem, mas eu ainda acho que

há algo a ser dito sobre pais apáticos e que não dão à mínima. É muito mais fácil.

Acomodei-me na cadeira de Killian novamente, para assistir ao show. Eu tinha

um grande interesse aqui.

— Aonde você ia, Will? — Dr. Miller passeou no pé da cama enquanto a mãe

de Killian pairou perto da porta, provavelmente não querendo apinhar o quarto para o

grande médico. Que seja. Eu odiava terapeutas. Uma cambada de inúteis todos eles.

Sempre pedindo que você fale sobre seus sentimentos. Que bem isso faz a qualquer um

de nós? Apenas faz você pensar e sentir ainda mais sobre coisas que você não pode

mudar.

— Apenas um lugar onde eu pudesse pensar.

22

Talk show é um gênero de programa televisivo ou radialístico em que uma pessoa ou um grupo de pessoas se junta e discute vários tópicos que são sugeridos e moderados por um ou mais apresentadores. Existe um público, na maioria das vezes, que observa tudo e tem direito de manifestação. São usadas técnicas de descontração e informalidade.

75

— Você quer falar sobre o que aconteceu na escola hoje? — Miller tirou as mãos

dos seus bolsos para colocar um braço sobre sua própria cintura e descansar o cotovelo

do outro braço sobre esse. Segundos depois, assentou o seu queixo na mão. O cara se

afastava de sua mesa por algumas horas e já não podia suportar a própria cabeça. Um

esfregador de queixo. Ótimo. Revirei os olhos.

Killian encolheu os ombros, um pouco na defensiva.

— Nada sobre o que falar.

Miller franziu o cenho.

— O Diretor Brewster queria te expulsar. Eu diria que é alguma coisa.

— Você falou com ele? — ele perguntou.

O médico fez uma pausa e, pela primeira vez, hesitação atravessou seu rosto.

— Eu estava com sua mãe na lanchonete quando ela recebeu o telefonema, —

disse ele finalmente.

Killian lançou um olhar para sua mãe.

Ah... Alguma coisa acontecendo entre sua mãe e o psiquiatra? Que revoltante.

— William, eu estou preocupada com você — sua mãe deu um passo dentro do

quarto, suas finas mãos pálidas torcendo uma na outra. — As coisas têm piorado.

— Mãe. Estou bem — Killian passou suas mãos pelo cabelo. Eu o vi estremecer

quando tocou o galo do lado da cabeça, mas o escondeu bem. — Brewster estava apenas

a ser um imbecil novamente. Ele me tirou a Marcie.

— Essa é a única razão para você não ser expulso, isso e os esforços de sua mãe

com o Diretor Brewster em seu nome — Miller não parecia muito feliz com isso.

Killian enrijeceu, sem dúvida imaginando a suplicante conversa que havia se

passado. Brewster era um osso duro de roer, isso era certo, mas ele gostava de ter poder

sobre os fracos. A coisa mais inteligente a fazer era apenas respeitá-lo em seu rosto e se

manter em seu lado bom desde o início. Claramente, Killian tinha estragado isso.

— Está tudo bem — disse sua mãe suavemente. — Não foi tão mau assim — ela

deu um sorriso cansado.

Eu podia ver, no entanto, que não estava bem, pelo menos não para Killian.

— Nós já conversamos sobre isto, Will — Miller usou sua calma voz de eu-sou-

o-terapeuta-então-sei-o-que-é-melhor. Cada palavra que saiu da sua boca me fez odiá-lo

76

mais. Ele e o Dr. Andrews devem ter andado na mesma escola para psiquiatras. — Sua

música é para ajudá-lo, mas se você está dependendo demasiado dela...

— Eu não estou — protestou Killian. Eu podia ter dito a ele que não importava.

Miller já havia tomado sua decisão.

O bom médico caminhou mais perto. Ele baixou uma mão para engatar as

calças para cima, obviamente, com a intenção de sentar-se no pé da cama. Então ele

percebeu a inclinação da cama, o lado esquerdo três ou quatro centímetros mais baixo

que o direito. Oops. A cama tinha evitado a nossa queda e nós a tínhamos quebrado.

Miller endireitou-se com uma carranca.

— O que aconteceu aqui?

— Nada — disse Killian novamente.

— Ele não está comprando essa — disse eu. — Invente alguma coisa.

Ele deu um aceno de cabeça quase imperceptível.

— Julia, a cama do garoto está quebrada — Miller pronunciou.

— O quê? — sua mãe correu para mais perto, seus pequenos pés se movendo

silenciosamente no tapete. Claramente, Killian tinha conseguido o seu tamanho e altura

do pai. — O que aconteceu aqui, William? — ela parecia horrorizada, olhando para a

cama. Se o sofá horrível na sala era qualquer indicação, ele iria, provavelmente, acabar

dormindo em sua inclinada cama pelos os próximos anos.

— Foi o espírito de novo? — Miller perguntou. — Eles atacaram você?

Ele era bom. Você quase não podia perceber a ânsia por trás das grossas

camadas de falsa preocupação.

— Não, não. Nada como isso. — ele balançou a cabeça vigorosamente em

resposta à pergunta de Miller.

— Então o quê? — Miller solicitou.

Killian mudou de posição na cama.

— Foi uma garota, ok? — Ele olhou para sua mãe com olhos suplicantes.

— Ela te atacou? — Miller parecia surpreendido, e muito animado.

Killian só hesitou por uma fração de segundo. Então ele esticou os braços para

fora outra vez, enfiando as mãos atrás da cabeça com um arrogante sorriso preguiçoso e

parecendo totalmente como um cara que tinha saído sortudo.

77

— Sim, eu acho que você poderia dizer isso.

— Em seus sonhos — eu protestei.

O rosto de Miller caiu.

— Você quer dizer uma garota real.

— Que outros tipos de garotas existem, Doc? — Killian perguntou, ainda

sorrindo. Ah, sim, eu totalmente ia bater nele quando o médico estúpido saísse daqui.

Sua mãe franziu o cenho, confusa. Ela olhou para a cama, provavelmente

tentando lembrar se tinha estado quebrada da última vez que tinha estado aqui.

— Quando isso aconteceu? Eu não gosto da ideia de garotas visitando o seu

quarto.

— Agora, Julia, a interação entre colegas é boa. Vamos apenas tentar mantê-la

na sala, está bem, Will? — Miller estendeu a mão e deu uma tapinha na perna de Killian

no que ele pensava, que seria um gesto paternal. Então ele fez uma pausa dramática e

eu estremeci em antecedência. Quatro anos de terapia com o Dr. Andrews, o rei dos

esfregadores de queixo, me ensinou o que esperar. Mostre alguma pequenina fagulha

de felicidade, algo que poderia tirá-lo de suas consultas regulares e semanais, e tenha

cuidado.

— O que você acha que Lily pensaria sobre isto? — Miller perguntou

casualmente.

O sorriso de Killian desapareceu como se o médico tivesse estendido a mão e o

tivesse arrancado.

— Quem é Lily? — eu perguntei.

— Ela iria querer que eu fosse feliz. Fomos amigos uma vez — disse Killian

defensivamente.

— Não — eu levantei, alarmada. — Acalme-se. Você está lhe dando uma

oportunidade — Killian não tinha prestado atenção nenhuma na terapia? Caras como

Miller viviam deste tipo de material.

— Você está certo. Isso é bom. Ela não iria querer que você se sentisse culpado.

Ela gostaria que você vivesse a sua vida feliz. Não foi culpa sua que você não atendesse

ao telefone — as palavras de Miller e o seu tom conseguiram transmitir coisas opostas.

Era uma coisa de psiquiatra. Não faço ideia de como eles faziam isso, mas era sua arma

secreta.

78

— Ela sabia que eu nem sempre respondo ao meu telefone. Eu não consigo

ouvi-lo se tiver meus fones nos ouvidos. Ela poderia ter ligado para Joonie, seus pais,

para qualquer um para pedir ajuda — a frase não dita que pairava no ar era: mas ela

telefonou para mim.

Vi Killian recuar para dentro de si, dobrando os braços debaixo das cobertas.

Ótimo. Nesse ritmo, ele ia estar muito deprimido para sair da cama, muito menos para

me ajudar. Eu não sabia quem Lily era, mas ela estragou tudo.

— Vamos — mudei-me para estar do outro lado de Killian na cama com um

suspiro exasperado.

Sua mãe franziu o cenho.

— Você ouviu isso? — ela perguntou o médico. — Pareciam passos.

Killian me lançou um olhar de advertência. Oops.

Dr. Miller deu-lhe um olhar excessivamente paciente.

— Não, Julia.

Aproveitei a distração.

— Miller está mexendo com sua cabeça — eu sussurrei para Killian, como

precaução, contudo, não parecia que qualquer um deles pudesse ouvir a minha voz, ou

já teriam pirado há algum tempo atrás. — Ele quer que você se sinta mal porque

quando você se sente mal, ele é pago — pensei por um segundo, e depois acrescentei: —

Indiretamente. Mas você percebe a ideia. Sai dessa.

— Não, ele está certo. Lily merecia coisa melhor do que aquilo que ela recebeu.

Ela merecia melhores amigos.

Suguei uma respiração, observando o rosto do Dr. Miller mudar à medida que

ele percebia que não era com ele que Killian falava. Foi ganância que brilhou em seus

olhos?

— Ótima jogada, Killian — eu respondi. — Ele percebeu.

Killian rígido e sem olhar na minha direção, levantou-se novamente da cama.

— Sinto muito. Eu quis dizer, você está certo, Dr. Miller.

— William, o que aconteceu com aquela garota... Isso não foi culpa sua — a voz

de sua mãe tremeu apenas muito levemente.

Ooooh. Agora, apesar de tudo, eu estava intrigada.

79

— Por quê? O que aconteceu com ela? Você engravidou-a? Empurrou-a em um

lance de escadas? Ajudou a gêmea má a raptá-la e levá-la para o México para algum

tipo de cirurgia plástica para alterar rosto dela? — hum. Meu vício por televisão diária

— obrigado, TiVo23, um presente para pessoas com vidas em todos os lugares, poderia

estar se revelando um pouco.

Todos, inclusive Killian, me ignoraram. Surpresa, surpresa.

— Eu sei — disse Killian, mas as palavras soaram vazias. Ele não acreditava e

ele não esperava que eles acreditassem também.

— Você deveria descansar um pouco — disse Miller com aquela voz suave e

condescendente. — Uma noite no Ivythorne.

— Não — Killian e sua mãe disseram simultaneamente.

Miller fez uma careta.

— Julia, eu aconselho fortemente você a...

A mãe de Killian hesitou por um longo momento.

— Mãe — Killian sussurrou e eu podia ver o medo em seu rosto. Ela era tudo o

que estava entre ele e uma vida no manicômio.

Então, ela endireitou os ombros e encontrou o olhar do Dr. Miller e eu vi a

mulher que ela devia ter sido antes de toda esta tragédia se abater sobre sua vida. Nesse

segundo, eu invejei Killian um pouco. Minha mãe teria lutado pela oportunidade de me

mandar para Ivythorne, provavelmente esperando que finalmente assim ganhasse

alguma atenção do meu pai.

— Tenho certeza que vocês irão concordar que este é um incidente isolado

provocado pelo diretor Brewster intimidando meu filho — disse a mãe de Killian. — Ele

é um homem crescido que devia saber melhor do que torturar um garoto perturbado.

Miller balançou a cabeça.

— Eu sei que você gostaria de acreditar...

— Max, eu disse não.

— Bom para você. Finalmente, alguém nesta família com um pouco de

personalidade — disse.

23

TiVo é uma marca popular de gravador de vídeo digital, que pode também ser chamado de gravador de vídeo pessoal. Trata-se de um aparelho de vídeo que permite aos usuários capturar a programação televisiva para armazenamento em disco rígido, para visualização posterior.

80

— Tudo bem — Miller levantou as mãos, desistindo menos do que

graciosamente. — É sua decisão, claro. Eu trouxe alguma coisa para ajudar, só no caso

de ser necessário. Ele enfiou a mão no bolso do casaco de seu terno para tirar uma

seringa tampada. — É um ligeiro sedativo — Miller continuou. — Só assim você poderá

ter uma boa noite de sono hoje.

— E durante metade do próximo século — eu protestei. — Diga-lhe que não.

Você prometeu me ajudar.

Killian ignorou-me e olhou para sua mãe.

— Eu não preciso disso.

Sua boca curvou em desgosto quando ela olhou a seringa, mas ela acenou para

ele.

— Você precisa descansar.

— Um sedativo em cima de um ferimento na cabeça? — eu disse. Qualquer

observador novato de House podia dizer que isso era um erro. — Vocês são loucos —

tudo bem, sua mãe não sabia sobre a pancada de sua cabeça, mas mesmo assim...

Killian ofereceu seu braço com relutância.

Corri para puxar o seu braço para baixo, mas a cama estava no caminho e

Miller, depois de anos a dopar pacientes, avançou mais depressa do que eu. A agulha

estava no braço de Killian antes que eu pudesse chegar até ele.

Endireitei-me.

— Você é um covarde. Eu retiro todas as coisas boas que eu pensei sobre o seu

peito.

— Você tem razão — disse Killian. Então, ele olhou para mim com o cenho

franzido. — O quê?

— Eu disse que eu quero que você durma um pouco — Miller repetiu um

pouco mais alto. Ele tirou a seringa do braço de Killian, tampou-a, e colocou-a em seu

bolso.

Os olhos vidrados de Killian encontraram os meus.

— Que coisas boas você pensou? - perguntou ele, já aturdido.

— Oh, esqueça — eu atirei.

81

Miller se afastou, estalando a língua. Ele acenou para a mãe de Killian e os dois

saíram para o corredor. Eu segui, escapando por pouco antes que a Sra. Killian fechasse

a porta.

— Agora, Julia, eu não quero alarmá-la, mas com o seu histórico de família...

Ela se encolheu.

Ele pegou-a pelos ombros, envolvendo-a em um muito-mais-apertado-do-que-

profissional-abraço.

— Um esfregador de queixo que gostava de dar abraços. Ainda melhor — eu

enruguei meu nariz, imaginando o cheiro empoeirado do casaco de seu terno e o cheiro

persistente de fumo de cachimbo.

— Pode não ser nada, mas qualquer súbita mudança de comportamento é algo

que devemos ficar de olho — ele hesitou dramaticamente, afastando-a, mas ainda

mantendo seus dedos surpreendentemente grossos e gordurosos sobre os ombros dela.

— Com este incidente mais recente, devemos considerar a hospitalização novamente.

— Ele está melhor — disse ela com firmeza, como se ela pudesse tornar isso

verdadeiro só pela força de suas palavras.

Oh, Deus, eu nem conseguia assistir a isto. O esfregador de queixo teria Killian

em restrições dentro de uma semana e não havia nada que eu pudesse fazer para pará-

lo.

— Eu sei, eu sei. E você pode estar certa, este poderia ser um evento isolado,

mas os últimos oito ou nove meses... Eu me importo Julia. Então, eu estou preocupado

— ele abraçou-a, novamente, seu corpo mais volumoso quase engolindo todo o corpo

pequeno dela.

— Bastardos nojentos, é o que todos eles são. Acorde, Julia — eu gritei bem para

ela.

Desgostosa, eu me pressionei contra a parede para fugir deles. Sério, o que eu

deveria fazer agora? Minha primeira e única ideia brilhante estava agora dopado e,

provavelmente, babando em seu travesseiro. E a informação que ele me deu? De pouca

ajuda.

Eu pisei silenciosamente pelo corredor através da cozinha e entrei na sala,

caindo pesadamente no sofá xadrez. Apesar de penetrantemente feio, era bastante

confortável. Talvez fosse por isso que eles ignoraram todo o bom senso e ficaram com

ele.

82

Eu precisava de um plano. Killian estava fora do jogo, provavelmente

indefinidamente. Com acordo ou sem acordo, ele não ia arriscar ajudar-me, não com a

sua liberdade em risco. Eu quase não podia culpá-lo. Infelizmente, as outras pessoas

mortas que eu conhecia não pareciam ter qualquer pista sobre como sair daqui ou então

eles já o teriam feito, portanto eu estava por conta própria. Nada de especial, eu tinha

tratado das coisas sozinha praticamente desde que tinha treze anos. Embora, pagar as

contas e manter a minha mãe sóbria o suficiente para ir às conferências de pais e

professores uma vez por semestre não era igual a determinar o destino da minha alma

eterna, mas enfim.

Eu podia fazê-lo. Eu sempre conseguia o que queria, de uma forma ou de outra,

certo? Você só tinha que continuar empurrando até que alguém ou alguma coisa

desistisse. A que desiste em último, ganha. Eu costumava ter uma camiseta do

acampamento de líderes de torcida que dizia isso.

As coisas mais importantes primeiro. Eu precisava de uma caneta e algum

papel. As coisas pareciam sempre mais concretas quando estavam escritas. Eu não

ganhei como Rainha do Baile três vezes, sem um pouco de esforço e planejamento, sabe.

Chutando as pernas, deixei o impulso me tirar do sofá, me levantando. E, no processo,

um dos meus tornozelos atravessou uma maleta de couro marrom surrada inclinada

parcialmente contra a lateral do sofá.

De Miller. Tinha que ser. Não tinha estado aqui quando cheguei... Bem, vamos

investigar. O zíper do bolso principal estava com um grande número de pastas de

arquivo em papel pardo e cadernos preto-e-branco, todos atolados desigualmente e em

ângulos estranhos. A alça de nylon tinha rompido em ambos os lados e os pedaços

restantes da alça brotavam como tufos de penugem marrom. A maleta parecia algum

tipo de criatura estranha capturada a metade do processo de mastigação.

Eu sorri. Perfeito. Nenhum bom esfregador de queixo seria pego sem um

caderno e uma infinidade de canetas. Com apenas um pouco de concentração...

Abaixando-me, eu me concentrei na mala, imaginando o couro desgastado sob

meus dedos e o metal frio dos dentes do zíper.

A pasta tombou para o lado e prontamente derramou o seu conteúdo. Canetas,

do tipo caro, rolaram livres, juntamente com uma infinidade de arquivos. Agarrei o

caderno que parecia em melhores condições... E minhas mãos passaram através dele.

— Droga.

Tentei novamente com os mesmos resultados. Desta vez, concentrando-me em

fazer o caderno ficar sólido, eu estendi a minha mão para ele e ela tocou no canto dele,

mas apenas por uma fração de segundo.

83

— Oh, esqueça. — se era tão difícil pegar um caderno sem Killian bem perto de

mim com o seu vodu pessoal ou o que seja, como eu iria conseguir segurar uma caneta,

quanto mais escrever? — Isso é péssimo — disse em voz alta para ninguém em

particular.

Tudo bem, então sem caneta e papel. Eu ainda podia pensar a estratégia na

minha cabeça. Sentei-me no chão, cruzando as pernas. Killian disse que isso era sobre

assuntos inacabados; questões que eu precisava resolver. Na verdade, ele disse que eu

não tinha quaisquer problemas. Isso mostrou o quanto ele sabia.

Mas como é que alguém na minha condição podia supostamente resolver

alguma coisa? Ninguém podia me ver ou ouvir, a não ser Killian, e eu não parecia ter

ganhado nenhum tipo de super poderes relacionados com a vida após a morte, como

assombrar os sonhos das pessoas ou algo assim. Eu tinha toda a coisa de passar através

das coisas sólidas e dos objetos trabalhando para mim, mas decididamente não me

parecia útil no momento.

Puxei meus joelhos até o peito e envolvi meus braços ao redor das minhas

pernas, piscando de volta o súbito e indesejado picar de lágrimas. Parecia uma espécie

de teste injusto. Claro, você pode ir para o céu, se você puder fazer o impossível. Caso

contrário, você está presa aqui... Para sempre. Sozinha.

Não. Eu balancei a cabeça e me endireitei. Eu não ia deixar isso me derrotar.

Tinha que haver uma maneira de ganhar. Eu sempre ganhava. Pensando, eu mastiguei

um pouco da unha do meu polegar por uma segundo antes de parar a mim mesma.

Morta ou não, unhas ásperas e babadas eram inaceitáveis.

Se Killian não estivesse inconsciente, eu poderia ter lhe dado mensagens para

ele entregar em meu nome. O imaginei andando até Chris e transmitindo que sua

namorada morta não estava muito feliz com ele esses dias. Sim, Killian realmente

precisaria de uma estadia no hospital depois disso.

Olhando para a maleta derrubada de Miller e para a bagunça de arquivos,

pastas e papéis no chão na minha frente, eu tive uma ideia. Talvez eu estivesse

pensando muito literalmente. Comunicação do grandioso além, mesmo que não fosse

tão grandiosa e nem tão do além, devia ser sutil.

Concentrando-me no arquivo superior, eu dei-lhe um empurrão e ele deslizou

para baixo da montanha de papelada antes de se fixar no tapete. A partir daí, movê-lo

através do tapete e colocá-lo em posição com pequenos empurrões foi realmente muito

fácil. Eu decidi que precisava de cerca de mais cinco ou seis arquivos para fazer o meu

ponto.

84

Felizmente, Miller era do tipo falador, nenhuma surpresa aí. Eles começaram a

descer o corredor em direção à cozinha há um tempo, mas ele parou lá para trocar

idéias novas e eu podia ouvir pedaços de sua conversa enquanto eu trabalhava.

— ...Incentivo-a reconsiderar, Julia.

— Eu aprecio isso, Max. Realmente. Mas ele é meu filho e...

— E se ele tivesse dirigindo durante este último ataque? Já considerou isso?

Resposta de Júlia foi um murmúrio baixo e aparentemente irritado que eu não

consegui ouvir. Bom para ela. Os terapeutas não são os possuidores totais de

conhecimento. Às vezes, eles são apenas outra forma de perder dinheiro.

Sem fôlego pelo esforço necessário, eu empurrei o último livro à composição —

eu havia misturado um pouco entre os cadernos e as pastas para o efeito ser maior — e

dei um passo atrás para admirar minha obra. Muito bom, mas talvez um pouco mais

fosse necessário? Um pouco de arte, talvez?

Ajoelhando-me novamente, eu empurrei outra pasta. Só que esta, muito mais

pesada e grossa, com mais papel do que as outras, derramou o seu conteúdo em vez de

deslizar pelo chão. O documento no topo parecia uma carta e os outros eram...

Capítulos? Páginas nitidamente digitadas com diálogo e cabeçalho...

Inclinei-me mais perto para ver melhor. A carta no topo era de Page Seven

Books e estava dirigida ao Dr. Miller.

Caro Dr. Miller,

Estamos muito intrigados por esse parcial de seu livro, Os Mortos Não Falam.

Gostamos do ilícito romance entre o psiquiatra e a mãe do garoto aflito assim como do mistério de

saber se o menino, o jovem Billy, está verdadeiramente assombrado ou apenas é um doente

mental. Será que seu pai cometeu suicídio ou foi assassinado pelos mesmos espíritos que

assombram agora o seu filho? Também achamos que você tem uma excelente plataforma, como

psiquiatra que tem tratado muitos casos deste tipo. Por favor, envie um manuscrito completo

quanto mais cedo lhe convir.

Atenciosamente,

Roger Fillmore

Editor Sênior de Aquisições.

85

Oh, meu Deus. Inacreditável. Miller estava tornando sua vida em um livro. Não

admira que ele estivesse pressionando tanto para Killian ser internado. Ele precisava

escrever o fim. Sem mencionar a liberdade de seduzir abertamente a mãe de Killian.

Eca!

Estendi a mão para afastar a carta e ler os capítulos abaixo, mas depois ouvi a

voz de Miller se aproximando.

— Eu só vou pegar minha maleta e vou embora. Eu tenho outros pacientes

esperando — disse Miller rigidamente. Evidentemente, a mãe de Killian o colocou em

seu lugar, pelo menos por agora.

Com um pouco de esforço, consegui empurrar a carta do editor e o primeiro

capítulo sob o sofá. Então eu fiquei sem tempo.

Miller chegou através da cozinha e entrou na sala, parando quando viu sua

maleta derramada.

— O que...?

Então ele se virou e viu a minha exibição. Duas pastas de papel representavam

os olhos, e uma terceira ocupava o lugar de um nariz. Depois, cinco cadernos, com suas

capas pretas-e-brancas, formavam uma ameaçadora — tão ameaçadora como se podia

conseguir com produtos de papel — carranca. Em resumo, era uma grande cara feia

gigante feita de seus bens no meio do carpete da sala.

O rosto de Miller ficou branco e eu ri.

— J-J-Julia — ele gaguejou.

— O que se passa? — ela apareceu no batente da sala de estar com uma

carranca. Então ela pegou um vislumbre do meu trabalho. Sua boca se abriu, e os

joelhos cederam, obrigando-a a agarrar-se à parede.

Eu estremeci. Isso não era contra ela.

— Você fez isso? — Miller exigia.

— Idiota — eu disse a ele. — Quando ela tinha tido tempo? Ela estava com

você, lembra?

Mas a Sra. Killian não estava pensando claramente.

— É o Danny — disse ela, parecendo que ia desmaiar. — Ele sempre fazia

truques como este, movendo as coisas de sítio. Uma vez eu encontrei meu relógio de

cozinha no congelador. Ele jurou que não o fez, mas... — Ela caiu de joelhos e começou

a chorar.

86

— Não seja tola — ele vociferou. — Seu marido está morto. Ele foi para um

lugar melhor. Ele não está brincando com cadernos e enviando-lhe mensagens. Se você

não fez isso, então foi esse garoto. Ele olhou na direção do quarto de Killian como se

pudesse ver através das paredes.

— Oh, sim, porque depois que você o dopou, ele passou por você no corredor,

fez isto e em seguida, esgueirou-se de volta para o quarto sem você perceber — revirei

os olhos.

Julia levantou o queixo e enxugou seu rosto com as costas da mão.

— Você deu-lhe um sedativo, Max.

— Isto é ridículo — ele agarrou sua bolsa e começou a jogar os conteúdos de

volta para dentro. — Os fantasmas fazem parte da imaginação das pessoas, projetados

para confortá-los em momentos de perda. Ponto final. Fim da história — mas suas mãos

tremiam quando ele se inclinou para baixo para pegar as pastas e cadernos de meu

rosto feio.

— Oh, Max, não estrague o final para nós — eu insultei. — Você ainda tem de

escrevê-lo.

Ele correu em direção à cozinha, quase derrubando a mãe de Killian no

processo.

— E o nosso próximo compromisso? — ela perguntou entre soluços.

— Eu ligo para você — disse ele secamente.

Em seguida, a porta traseira bateu e os ombros da Senhora Killian afundaram

ainda mais, tremendo enquanto ela chorava.

— Você devia ouvir o seu filho — disse a ela. — Ele está dizendo a verdade — o

grande sucesso da minha primeira comunicação estava desaparecendo um pouco com

ela chorando. Na verdade, eu estava me sentindo um pouco tonta, mais ou menos como

esta manhã, quando...

Olhei para baixo e descobri que podia ver através dos meus braços cruzados

sobre o peito. Na verdade, eu podia ver completamente a estante atrás de mim. Ah,

merda.

87

8

Will Killian

— Você sabia disso? — a voz da minha mãe invadiu um sonho no qual uma

grande berinjela animada chamada Bob oscilava à beira de um precipício com

pensamentos de suicídio e parmesão.

Acordei devagar, sem abrir os olhos. Minhas pálpebras estavam grudentas e

presas a meus olhos, minha cabeça latejava pior do que ontem e minhas costas doíam

de dormir durante horas sem movimento. Eu podia sentir o sol brilhando através das

cortinas abertas, mais quente e mais brilhante do que ontem. Tinha que ser de manhã

novamente.

— William, eu estou falando com você. Acorde! — sua voz tinha um tom

incomum.

Abri minhas pálpebras e olhei para ela. Ela estava ao pé da minha cama agora

torta, com um punhado de papéis na mão.

— Sobre o que você está falando? — eu murmurei.

— Isso — ela caminhou para frente e segurou os papéis, espalhados na mão, na

frente do meu rosto.

O início parecia ser uma carta para o Dr. Miller sobre um livro...

Sentei-me reto, ignorando os diversos machucados.

— Ele estava escrevendo um livro sobre nós? Onde você encontrou isso? Ele

deu isto...

— Não, não — ela balançou a cabeça. — Achei ontem debaixo do sofá quando

estava limpando depois do truque que você fez.

A parte da limpeza fazia sentido. Minha mãe sempre limpava quando estava

chateada. O ano em que meu pai morreu, ela estragou três aspiradores de pó. Quanto

ao resto...

— Do que você está falando?

88

Ela juntou os documentos em suas mãos e deu uma risada nervosa.

— Ah, não tente fazer isso comigo. Sou sua mãe há muito tempo e, além disso,

seu pai costumava usar os mesmos truques antes de você. Mover as coisas quando eu

não estava olhando e alegar não saber nada sobre isso.

Alona. Deixei cair minha cabeça sobre o travesseiro. Tinha que ser. Ela era a

única pessoa que tinha estado aqui ontem, pelo menos até onde eu sabia.

— Que truque você encontrou ontem? — eu perguntei cautelosamente.

Ela revirou os olhos.

— Existem outros mais óbvios? Os trabalhos do Dr. Miller espalhados por toda

a sala e o rosto carrancudo feito a partir das pastas e cadernos. Ele estava muito

assustado — ela olhou para os papéis em suas mãos e apertou a boca em desagrado. —

Um susto que ele ricamente merecia, em minha opinião.

— Oh! — eu disse. — Esse truque — Uau. Deve ter tomado uma quantidade

enorme de energia dela para mover tudo isso por aí sem mim por perto. Os mortos

podem tocar em coisas no nosso reino brevemente, daí todas as histórias de fantasmas

sobre as fotos caindo das paredes, as portas batendo, as luzes sendo desligadas ou

ligadas, mas apenas com intensa concentração e isso realmente os esgota.

Minha mãe se sentou no lado da minha cama, pressionando seus pés contra o

chão para evitar deslizar para o chão.

— Foi você, não foi? — ela perguntou hesitante. — Você descobriu o livro de

alguma forma e queria puni-lo? Você ligou para um amigo vir aqui quando nós

estávamos lá em cima. Joonie, talvez. A porta dos fundos esteve aberta o tempo todo, eu

verifiquei.

Ela parecia tão esperançosa, como ela tinha pensado em tudo sem fantasmas ou

elementos sobrenaturais envolvidos. As palavras do meu pai para mim quando eu tinha

seis anos ecoaram na minha cabeça. Ela não entende. Ela não quer entender Will. Isso a

assusta. Ele tinha tamborilado com os dedos sobre o volante, enquanto esperávamos que

minha mãe se juntasse a nós no carro. Ela estava chorando no banheiro. Eu tinha

acabado de arruinar uma noite rara para nós em um restaurante, anunciando que a

vovó Reilly disse para não pedirmos peixe porque não parecia fresco. Vovó Reilly, mãe

da minha mãe, morrera seis meses antes de um ataque cardíaco. É uma maldição,

camarada e eu lamento tê-la passado para você. Faça o melhor que você pode para viver uma vida

normal e tente não deixar isso machucar as pessoas que você ama. Isso é tudo que posso dizer.

Só que o meu pai tinha feito asneira com o último conselho. Eu não sei como

minha mãe teria reagido ao ouvir que seu marido falava com os mortos, mas eu estava

89

disposto a apostar que ela teria preferido isso a ele morto. Ainda assim, ele era meu pai

e tinha ido embora, então, eu fiz o meu melhor para cumprir o que ele queria.

— Sim — eu disse à minha mãe. — Fui eu.

Ela suspirou alto aliviada.

— Foi isso que eu pensei. Por que você simplesmente não me disse o que estava

acontecendo? Porque toda essa encenação e drama?

Boa pergunta. Alona poderia simplesmente ter me dito o que ela tinha

descoberto. Quando eu acordasse das drogas que eu tinha permitido que Miller me

administrasse apesar de seus protestos. Ok, tudo bem. Talvez ela tivesse razão para

duvidar do meu potencial para ajudá-la em algo como isso. Isso ainda não explicava a

sua súbita compaixão pelos problemas de outra pessoa, que era o verdadeiro mistério.

— Eu não achei que você acreditaria em mim se eu não tivesse provas — disse à

minha mãe. Uma explicação bastante razoável, se não até mesmo verdadeira.

Ela suspirou.

— Você ainda vai me colocar em uma sepultura precoce. Da próxima vez, diga-

me.

— Ok, ok.

Ela se levantou e começou a ir para a minha porta.

— O que você vai fazer sobre o Dr. Miller?

Ela parecia cansada de repente.

— Eu não sei. Você não vai voltar para lá. Eu acho que preciso denunciá-lo para

alguém e obter uma recomendação de outro médico.

Exceto que Miller tinha sido a opção mais acessível e o único com uma abertura

imediata para um novo cliente em uma base regular. Agora, talvez a gente soubesse por

quê.

Que idiota. Eu desejava poder ter visto seu rosto quando ele viu os trabalhos

manuais de Alona. Isso fora realmente um movimento bastante inteligente da parte

dela para alguém tão recém-morta. Eu estava começando a suspeitar que ela escondesse

uma inteligência bastante considerável debaixo de seu rosto bonito e de uma atitude de

cadela. Ok, era uma inteligência direcionada principalmente para concursos de

popularidade, traições e autopromoção, mas inteligência é inteligência.

Sua ação contra Miller — quer fosse para meu benefício ou para sua própria

diversão — tinha me dado o alívio que eu precisava. Levaria algumas semanas, talvez

90

mesmo um mês, para encontrar outro psiquiatra e tudo estaria bem, salvo os incidentes

mais importantes — como o de ontem — e eu talvez tivesse um plano para lidar com

esses se Alona concordasse. Sentia-me bastante seguro de que poderia encontrar um

incentivo bom o bastante para convencê-la.

Afastei as cobertas e saí da cama, me sentindo melhor do que eu me tinha

sentido desde antes de meu pai morrer.

A boca de minha mãe caiu.

— Onde você acha que está indo?

— Escola. Você falou com Brewster para que eu pudesse voltar, né? —

atravessei a sala para remexer na roupa da cadeira e nas peças que tinham

transbordado para o chão — graças a Alona — procurando uma camiseta limpa e

boxers.

— William, você não tem que provar nada — ela começou gentilmente.

— Mãe, estou bem. Eu posso fazer isto — fiz um rápido teste de cheiro sob os

braços da minha camiseta preta favorita. Dizia em letras maiúsculas simples em toda a

parte da frente, não há colher. Ninguém mais percebia, mas funcionava para mim,

lembrando-me que a realidade estava sempre pronta para ser questionada.

— E Marcie? A sua música? — ela franziu o cenho. — Brewster lhe deu uma

suspensão dentro da escola para o resto desta semana.

— Não se preocupe. Eu vou ficar bem. Eu tenho um plano — tecnicamente, eu

tinha um suborno e uma rainha do baile morta que queria minha ajuda. Perto o

suficiente.

Baixei-me para beijar a minha mãe assustada na bochecha e depois fui para o

chuveiro.

Alona Dare morrera durante a primeira aula na linha amarela central da Rua

Henderson, há apenas vinte metros de distância da propriedade da escola.

A primeira aula era notoriamente mais fácil de escapar, especialmente se você

se dava ao trabalho de aparecer em primeiro lugar, como Alona fizera naquele dia.

Os boatos continuavam a voar sobre o porquê de ela ter ido à escola só para ir

embora novamente com tanta pressa que ela nem se preocupou em olhar para os dois

lados da estrada. Algumas pessoas diziam que ela nem sequer olhou para onde ia,

esperando que tudo e todos se afastassem de seu caminho. Por isso não foi tanto um

acidente como o fato de que sua arrogância a matara. Eu suspeito que essas pessoas

91

estavam procurando dar sentido ao mundo, ao transformá-la em um conto de

advertência, sendo a lição a reter a seguinte: Olhe para os dois lados. E não seja uma cadela.

Outras pessoas sussurravam sobre suicídio, apontando para o namorado, Chris

Zebrowski, que já estava enrolando línguas com Misty Evans, a melhor amiga de

Alona. Um subconjunto deste mesmo grupo alegava ter testemunhado um duelo

particular entre Misty e Alona, que terminou com Alona fugindo do edifício.

De qualquer maneira, o resultado era o mesmo. Alona estava morta, Chris e

Misty estavam publicamente dando amassos após um tempo indecentemente curto ter

passado desde o funeral de Alona e a população da escola Groundsboro High tinha

algo sobre o que fofocar e sussurrar durante pelo menos mais algumas semanas.

Encostei o Dodge24 ao lado da estrada Henderson — próximo dos campos de

tênis — liguei as luzes de perigo e esperei. Alona não tinha cometido suicídio, eu sabia

disso. A garota tinha arrogância e autoestima suficientes para sufocar um cavalo. Ela

tinha, no entanto, morrido violentamente e de uma morte não natural, o que

provavelmente significava que ela ainda estava vinculada ao lugar exato de sua morte.

Neste caso, o centro da Rua Henderson. Apesar das manchas de sangue já terem sido

limpas, uma parte de Alona provavelmente ainda permanecia aqui, a chamando de

volta uma e outra vez no momento da sua morte. Como bônus, eu só teria que esperar

alguns minutos para ver se estava certo.

Carros indo para a escola passavam, pessoas olhando para fora das janelas,

para mim, enquanto passavam. Que seja. Por esta altura, eles provavelmente já ouviram

falar sobre o que aconteceu ontem e estavam provavelmente olhando tanto por isso

como por eu estar sentado aqui. Ainda assim, baixei minha janela, puxei o meu celular

do meu bolso da frente e segurei-o na minha mão para dar um ar de autenticidade. À

espera de um reboque no meu carro avariado, esse era eu.

— Ei, Will Kill.

Olhei automaticamente, em resposta àquele nome estúpido com que alguém do

primeiro nível25 me apelidara. Ben Rogers abaixou a cabeça para fora da janela de seu

Land Rover.

— As aulas são ministradas no interior do edifício, aberração.

Sorri forçadamente, meu rosto doendo com o esforço.

— Sério? Muito obrigado — babaca. Pela milionésima vez, eu me perguntei o

que Lily tinha achado tão fascinante sobre ele e os de seu tipo.

24

Marca de automóveis.

25 Nível dos populares.

92

Alguém atrás de Rogers, esperando para entrar no estacionamento da escola,

apertou a buzina. Parecendo descontente com a minha falta de reação, Ben puxou a

cabeça para trás e acelerou abruptamente, seus pneus chiando quando ele contornou a

esquina para o estacionamento.

— Deus, eu odeio quando ele faz isso — a voz de Alona de repente soou junto

ao meu ouvido e eu saltei. — O que ele acha que isto é, O Duque de Hazzard26? Ele

definitivamente não é o Johnny Knoxville.

Virei-me para encontrá-la no meu banco do passageiro. Esticou os braços sobre

a cabeça com um grande bocejo, aparentemente indiferente ao seu súbito e inesperado

aparecimento.

— O que você está fazendo aqui? — eu exigi. — Você morreu lá fora — eu

sacudi meu polegar para trás em direção à estrada.

Ela baixou os braços e olhou para mim.

— Obrigado, Senhor Óbvio. Como eu deveria saber? Ontem, quando eu

desapareci, continuava acordando em seu quarto. Como se isso não fosse uma dor na

bunda — ela revirou os olhos. — Tive que continuar andando em toda parte. E, além

disso, você ronca.

Eu olhei para ela boquiaberto.

— Do que você está falando?

Ela me ignorou.

— O que você está fazendo aqui, afinal? — ela perguntou com uma careta. — Eu

achei que você estaria puxando suas correntes no manicômio por esta altura.

Prendi a respiração e contei até cinco antes de responder. Era assim que Alona

era. Ela não quis me humilhar e... Na verdade, sim, ela quis.

— Você me ajudou, eu vim para dizer obrigado — eu disse entre dentes.

Ela franziu a testa novamente.

— Você quer dizer por espantar o esfregador de queixo?

Levantei minhas sobrancelhas, confuso, até que ela franziu a testa e assentiu em

falsa reflexão enquanto sua mão se aproximava para apoiar o queixo com os dois

primeiros dedos tamborilando mesmo abaixo de seu lábio inferior.

26

Série televisiva.

93

Surpreendido por sua inteligência, mais uma vez, eu assenti com um sorriso

relutante.

— Esfregador de queixo, sim.

Ela assentiu com a cabeça.

— Ele é um dos piores que eu já vi.

Fiz uma careta.

— Nós encontramos os papéis sobre seu livro. Você os deixou para nós?

— Ele é nojento — ela levantou um ombro. — Imaginei que você poderia querer

saber sobre isso.

— Obrigada — eu disse cautelosamente. Então, ela realmente me fez um favor?

Talvez ela não fosse tão ruim como parecia. Talvez.

Ela deu um suspiro profundo.

— Sim, você é bem-vindo, eu acho — sua cabeça caiu, ela afundou em seu

assento e esticou suas longas pernas na frente dela.

Pigarreei tentando arrastar os meus olhos para longe da vista. O que posso

dizer? Eu sou um cara que aprecia pernas.

— Qual é o problema?

— Além do óbvio? — ela jogou as mãos no ar. — Eu não sei. Eu pensava que

tinha descoberto tudo ontem.

— Descoberto o quê?

— A vida após a morte. O que eu devo fazer para... Seguir em frente, encontrar

a luz, o que seja — ela acenou com as mãos dramaticamente.

— E o que é? — iisso não era nada bom para o meu plano, se ela encontrasse o

seu próprio caminho para corrigir a situação. Eu não teria nenhum valor para ela e

Alona Dare não faz favores. Pelo menos, eu teria pensado que não até hoje.

Uma buzina soou e Alona automaticamente ergueu os olhos, um sorriso

começando a se formar e sua mão levantando para acenar... Até que percebeu que não

podiam vê-la. O sorriso desapareceu e sua mão caiu de volta para seu colo.

— Isto é uma droga — ela murmurou.

— O que você descobriu? — perguntei, lembrando-me para ser paciente.

94

Ela se virou para mim, enfiando uma perna debaixo dela.

— Ok, então eu pensei sobre o que você disse e... — ela parou, franzindo a testa.

— Você não está preocupado com o que as pessoas vão pensar ao ver você aqui falando

sozinho?

— Na verdade, eu...

Ela levantou a mão.

— Espere, esqueça. Quero dizer, eles já pensam que você é louco. Falar sozinho

pode ser uma das coisas mais normais que você faria.

Meu queixo apertou e eu levantei o telefone celular na minha mão.

— Viva-Voz.

Ela arqueou uma sobrancelha.

— Você tem viva-voz, nessa coisa velha?

— Não, mas eles... — apontei para as pessoas nos carros à espera de vez no

sinal de parada "não sabem disso.‖ Celular com viva-voz ou, ainda melhor, bluetooth,

era a melhor invenção até então para disfarçar conversas com pessoas que ninguém

mais podia ver. Tornou-se tão normal ver alguém aparentemente conversando com o ar

que metade do tempo eu suspeitava que as pessoas nem sequer pensassem em checar o

telefone. Além disso, salvava-me do esforço de inventar uma mentira menos crível. Na

sexta série, eu disse à minha mãe que estava ensaiando as falas para uma peça de teatro

quando ela me pegou. Meu pai percebeu a verdade, mas minha mãe ficou me

perguntando durante quase todo o ano quando era o primeiro show e como ela podia

comprar os ingressos.

— Oh! — Alona pensou por um segundo — Muito inteligente.

Mordi de volta uma resposta sarcástica. No momento, eu precisava dela e não

queria chateá-la ainda.

— Então o que você estava dizendo sobre descobrir tudo?

— Oh, sim — ela rapidamente tornou-se mais animada. — Então, eu pensei no

que você disse sobre resolver os meus problemas e avançar para o mundo dos espíritos

— ela enfatizou seu termo escolhido e me atirou um olhar de advertência.

Eu levantei minhas mãos, protestando inocência. Se ela não queria ser chamada

de fantasma, tudo bem. Mesmo que fosse isso que ela era.

— Só que não funcionou muito bem. Tentei comunicar. Você sabe, enviando

sinais da minha presença, tombando coisas...

95

Fiquei de boca aberta.

— Você tentou assombrar pessoas?

— Não, eu tentei comunicar. Não é minha culpa que eles ficassem com medo.

Além disso, foram apenas algumas pessoas e eles totalmente mereciam — disse ela na

defensiva.

— Quando você fez isso? — exigi.

— Ontem, quando você estava na terra do sono.

Esfreguei minha testa. O fato de que ela ainda estava aqui era um milagre,

então. Para os fantasmas, nada drena mais sua energia como a tentativa de causar

danos. E quando sua energia fica muito drenada, eles desaparecem... Definitivamente.

— O que você fez exatamente?

— O que te importa? — ela atirou de volta.

— Apenas me diga — eu teria que fazer controle de danos. Se ela fosse

desaparecer permanentemente a qualquer segundo, então meu plano era história.

Ela pegou na ponta de sua unha do polegar.

— Entre outras coisas, eu posso ter visitado uma ex-amiga na sua casa e

derrubado algumas coisas enquanto ela estava saindo com... — ela fez uma careta de

desgosto "seu novo namorado".

— Chris e Misty — eu suspirei. —Eles não são seu assunto inacabado.

— Como você sabe?

— Porque, a não ser que eu tenha completamente incompreendido o que eu vi,

você nem sabia sobre eles até ontem. Tipo três dias depois de você já estar morta e presa

aqui — pude ver que ela não queria acreditar em mim. — Tanto faz. Você assustou-os?

Um sorriso arrogante surgiu em seu rosto.

— Sim, um pouco — ela hesitou e então se inclinou para mim, empolgação

fazendo seu corpo inteiro ficar tenso. — Foi tão legal. Eu apenas derrubei fotos deles

comigo, certo? Dessa forma, eles sabiam que era eu — ela franziu o cenho. — Mas já não

havia muitas fotos comigo, então, realmente eu só pude empurrar uma e eles nem

sequer notaram porque a música estava tão alta.

— Alona — eu tentei interromper. Mesmo enquanto ela falava, as pontas de

seus dedos estavam ficando translúcidas.

96

— Mas então eu decidi encontrar o seu anuário porque...

— Alona!

— O quê? — ela olhou para mim, decididamente irritada.

Peguei o pulso dela e segurei sua mão transparente na frente de seu rosto.

Seus olhos verdes se arregalaram.

— Oh merda, não novamente. Está ficando cada vez pior. Ontem quando eu

tentei comunicar, eu continuei sendo puxada para fora... Para aquele outro lugar — ela

estremeceu. — Aquele que eu não lembro.

— Você acha que poderia ter sido uma pista? — eu murmurei, libertando-lhe o

pulso antes que ele desaparecesse também. — Diga algo bom — ordenei.

Ela estreitou os olhos para mim.

— Em seus sonhos.

— Não tem que ser sobre mim — eu disse com alguma exasperação. — É

provavelmente melhor se não for, porque tem que ser verdadeiro.

— Sobre o que você está falando? — ela olhou mim.

Eu resisti à vontade de sacudi-la.

— Olhe, eu não tenho tempo para um monte de explicações sobre isto. Seus

tornozelos já se foram.

Ela olhou para as suas pernas sem pés e guinchou de horror.

— Diga algo legal — eu repeti, sentindo um crescente sentimento de pânico. Se

ela "comunicou" o dia todo ontem, esta poderia ser sua última visita a Middleground.

— Por que você está me ajudando? — ela perguntou com uma carranca.

— Por que você se importa? — eu estalei. — Apenas faça isso.

— Will? Está tudo bem? — a voz de Joonie veio da minha direita.

Olhei para encontrar o VW Bug preto de Joonie, com os necessários ossos

cruzados e crânio gravados na pintura da porta do lado do motorista, parado na

estrada, mesmo à frente do sinal de pare. Joonie tinha sua janela abaixada, para olhar

para mim mais claramente.

— O que aconteceu, o Dodge finalmente deixou você ficar mal? — Joonie

perguntou, suas sobrancelhas pretas dolorosamente finas se juntando sobre seus olhos

97

azuis injetados de sangue. Eu sempre me perguntei se com seus piercings na

sobrancelha, lhe doía fazer certas expressões.

— Mais ou menos.

— Como é que dizer algo de legal está relacionado com alguma coisa? — Alona,

agora só com o tronco visível, exigiu.

— Você está esperando uma carona? — Joonie perguntou, descrença colorindo

seu tom. Não admira, considerando que eu provavelmente poderia ter me arrastado até

a escola em minhas mãos e joelhos e ainda chegaria a tempo.

— Caminhão de reboque? — eu ofereci como uma possível explicação, mas

quando ela visse meu carro no estacionamento mais tarde, isso poderia desencadear

algumas perguntas. — Faça-o, a menos que você queira desaparecer para sempre —

disse a Alona, pelo canto da minha boca.

— Isso é besteira — Alona murmurou. — Tudo bem — ela respirou fundo e

disse em voz alta: — Eu estou feliz por estar aqui — ela jogou os braços para cima, já

transparente abaixo do cotovelo. Nada aconteceu.

Eu fingi tossir.

— Tem que ser genuíno.

— Você tem certeza que está bem? — Joonie franziu o cenho mim. — Você

parece um pouco... Desconectado.

— Pare de ser minha mãe, J. Recebo mais do que o suficiente em casa — eu

disse suavemente.

Ela endureceu, abriu a boca para me dar um sermão de novo, sem dúvida,

quando se conteve.

— Desculpe — disse ela com um sorriso forçado. — Você traz para fora a mãe

pássaro em mim, eu acho — sua expressão ficou nublada. — Especialmente quando eu

tive que arrastar seu traseiro semi consciente para fora da escola no dia anterior.

— Eu estou bem. Prometo — ou, pelo menos, eu poderia ficar bem, se

conseguisse convencer Alona a dizer uma coisa verdadeiramente positiva.

— É um dia quente de primavera e isso me faz feliz — ela gritou com raiva.

Ceeeeerto.

— Ouça — Joonie inclinou-se para fora de sua janela. — Eu passei pelo hospital

ontem. Vi a Lily.

98

Ao meu lado, Alona parara de gritar elogios aleatórios e falsos — "o piercing na

língua de sua amiga é muito brilhante‖, ―o campos de tênis parecem muito… verdes

hoje‖ e olhou para mim. Eu senti o olhar dela, mas mantive meu foco em Joonie,

tentando manter uma expressão neutra. Alona não precisava de mais munição contra

mim.

— Sim?

— Precisamos conversar.

Mexi-me desconfortavelmente. Joonie se considerava responsável pelo acidente

de Lily, pela discussão que tinha, em teoria, impulsionado Lily a partir. Mas Joonie me

culpava também e eu não sabia o porquê. Quer dizer, ela estava certa, é claro, mas ela

não sabia nada sobre a ligação de Lily para mim — a que eu não tinha atendido. Eu não

podia dizer-lhe porque eu sabia que uma vez que ela pensasse bem sobre isso, ela ia

perceber que eu teria sido a segunda escolha de Lily para obter ajuda. Ela sempre foi

muito mais próxima de Joonie... Até que houve a discussão estúpida.

No Verão passado, poucas semanas antes da escola começar, Joonie apareceu

na minha casa sem Lily para a noite de cinema. Quando eu perguntei o que acontecera,

Joonie acenou para eu esquecer o assunto e, finalmente, com a minha pressão, disse que

elas tiveram uma briga.

— Sobre o quê? — eu perguntei.

Ela olhou para longe, olhando pela janela em vez de olhar para Arnold

Schwarzenegger bombando na tela como o Exterminador.

— Garotos.

Eu ainda não entendia como uma briga sobre garotos poderia ser tão ruim,

especialmente porque nenhuma delas estava namorando ninguém. Mas compreender

garotas, mesmo que fossem minhas amigas, não era exatamente algo em que eu era

muito bem sucedido, por isso que seja.

O problema era que, agora, eu não sabia como me sentir mais culpado e mais

envergonhado do que eu já me sentia e eu não podia pedir desculpas a Joonie por algo

que ela desconhecia. Em suma, era horrível e estava destruindo o que restava de nossa

amizade.

— Sim, tudo bem — disse eu, finalmente, não sabendo mais o que dizer.

99

Outro carro — o antigo Geo metro27 de Kevin Reynolds — parou atrás de Joonie

e buzinou. Joonie respondeu mostrando-lhe o dedo.

— Se você não estiver na aula de Pederson, eu voltarei para encontrar você, —

advertiu Joonie quando ela avançou com o Bug.

Balancei minha cabeça.

— Eu tenho suspensão dentro da escola nesta semana, aparentemente.

Ela franziu o cenho.

— Eu vou conversar com você, prometo. É melhor se apressar. Brewster vai

esperar que você chegue atrasada.

O Bug chocalhou e depois acelerou, parando no sinal de parada, onde Joonie

conscienciosamente parou, recebendo outra buzinada de Kevin.

— Seus amigos parecem se importar com você — Alona disse ao meu lado,

segurando em sua voz mais do que um traço de melancolia. — Como se eles realmente

sentissem sua falta se você se fosse.

Eu olhei para ela, uma cabeça alguns centímetros acima do assento do

passageiro, como algum tipo magia de tela verde do cinema e vi como o resto do seu

corpo tomou forma e apareceu novamente. Ela realmente acreditava no que tinha dito,

e, embora não fosse exatamente um sentimento alegre, ela tinha-o dito como um elogio.

Eu caí para trás na cadeira, exausto.

— Aí está. Foi assim tão difícil?

27

Ver: http://static.cargurus.com/images/site/2009/01/09/20/22/1996_geo_metro_2_dr_lsi_hatchback-pic-

168.jpeg

100

9

Alona Dare

Estiquei as minhas pernas recém-sólidas, dobrando-as na altura do joelho e

girando meus tornozelos regozijando-me por enfim, estarem lá e, então, virei-me para

olhar Killian recostado no assento, de olhos fechados.

— Como você fez isso? — eu exigi. Eu tentara tudo para evitar o

desaparecimento — bem, se tudo significasse gritar, berrar e xingar para que parasse —

e isso não tinha sequer retardado o processo.

Ele abriu um olho para olhar de soslaio para mim.

— Eu não fiz nada. Você fez.

— Oh, não, não — apontei o dedo para ele. — Nem sequer tente isso comigo.

Você sabia como fazer. Como?

— Positivo equivale à energia — ele murmurou sob sua respiração.

Franzi o cenho.

— O quê?

Ele sentou-se lentamente.

— Nada. Esqueça isso.

— Não vou esquecer. Eu preciso saber como você fez isso.

— Por quê? Para assim você poder assustar as pessoas e depois se recompor no

último segundo?

— Bom...

— Desculpe, não funciona desse jeito, querida.

Eu olhei para ele, mas seu olhar já estava focado em algo no espelho retrovisor.

— Tiras — disse ele. — Hora de ir.

101

Olhando para trás, por cima do meu ombro, eu vi um viatura fazendo uma

curva lenta em Henderson. Ele acelerou e parou ao nosso lado enquanto Killian ligava o

motor. O policial, um mais velho de aparência grisalha, baixou a janela do lado do

passageiro.

— Está tudo bem aqui? — perguntou ele. Seu olhar afiado observou o cabelo de

Killian, sua roupa escura, o carro.

— É melhor sorrir, ou estamos feitos — eu disse. — Tudo sobre você grita

descontentamento social com um rancor e uma mala cheia de armas.

As mãos de Killian ficaram tensas no volante e eu sabia que ele estava

morrendo de vontade de me mandar calar. Em vez disso, ele forçou um sorriso de

aparência razoável no rosto.

— Sim, oficial. Tudo está bem. Só esperando por uma pessoa que não apareceu.

— Oh, ha, há — eu disse.

O policial assentiu com a cabeça depois de um longo momento.

— A rua não é um parque de estacionamento, filho. Se mova.

— Sim, senhor — Killian desligou o sinal de perigo, acionou a alavanca de

mudança de direção, colocou o carro em marcha e saiu da beira da estrada.

— Bem, bem, se você não é um bom cidadão? — Eu sorri.

— Cale a boca — manteve o seu olhar no espelho retrovisor enquanto

descíamos a Henderson a três milhas abaixo do limite de velocidade. Ele virou à direita

para Elm e cortou na frente da escola, atravessando o parque de estacionamento dos

professores até à zona mais distante do estacionamento dos estudantes. Eu a conhecia

como A Fileira dos Queimados28. Ele estacionou e caiu de volta em seu assento com um

suspiro alto de alívio.

— Se ele pudesse prender alguém por parecer culpado — eu disse. — Você teria

sido preso. Você nem sequer estava fazendo nada de errado.

— Não importa. Não posso me arriscar a ter mais problemas agora.

Eu me virei de lado na cadeira para encará-lo, grata pela primeira vez por ser

invisível para todos os outros. Dificilmente ainda havia alguém no estacionamento por

esta altura — todos eles se deslocando em direção ao edifício e às aulas —, mas mesmo

assim, nunca em meus mais loucos sonhos eu poderia ter imaginado um cenário, até

mesmo uma vida após a morte, em que eu estaria sentada no carro de Will Killian na

28

Algo como a zona de estacionamento dos perdedores da escola.

102

Fileira dos Queimados. Porém, esta zona oferecia uma bonita vista para a pista e para o

campo de futebol.

— Então, por que estou aqui? E nada de respostas espertinhas, por favor — eu

acrescentei rapidamente.

Killian não respondeu imediatamente, batendo com as mãos incansavelmente

no volante, bíceps pálidos, mas bem formados puxando as mangas de sua camiseta.

Wow, então o garoto gótico encontrou tempo para fazer exercício. Interessante.

— Tenho uma proposta para você — ele disse finalmente.

Ao que eu respondi da única maneira que podia.

— Eu não vou dormir com você, mesmo que você seja o único que eu posso

tocar. Eu estou morta, não desesperada — caí para trás no banco do passageiro e

chequei a ponta das minhas unhas não por danos, mais por hábito do que qualquer

outra coisa. Trabalhei muito duro para deixá-las longas para o baile e formatura, não

que isso importasse agora.

Ele fez um barulho de nojo.

— Não se lisonjeie a si mesma.

— Não sou eu que continuo olhando para as minhas pernas — eu apontei.

Duas manchas vermelhas surgiram em seu rosto pálido.

— O que aconteceu ao ser agradável?

Levantei um ombro indolentemente.

— Quebre o vidro em caso de emergência, você sabe? — balancei a minha mão

completamente formada e não invisível na frente dele. — Eu não estou desaparecendo

ainda.

— Infelizmente — ele murmurou.

— Hey! — sentei-me. — Eu só estava desaparecendo porque você não ia me

ajudar, em primeiro lugar. Você não pode pegar o crédito por arrumar uma bagunça

que você próprio criou.

Ele passou as mãos pelo cabelo preto desgrenhado, que podia ser realmente

atraente, com o corte certo.

— Tanto faz. Estou pronto para ajudá-la agora.

Deixei minha mão cair.

103

— O quê?

— Você me ouviu — ele se recusou a encontrar os meus olhos.

— Por quê? — eu perguntei desconfiada.

— Que importa? — ele perguntou com impaciência. — Apenas...

— Oh, não importa? Ontem, você continuou tentando me mandar embora. Eu

tive que torcer o seu braço29 para você me dar dez minutos do seu tempo, e então você

vai e fica nocauteado pelo resto do dia. Além disso — eu adicionei com um pouco mais

de indignação — você disse que pensou que eu fosse para o inferno.

Ele suspirou.

— Você vai continuar trazendo isso à tona?

Fingi considerar a questão.

— Sim, acho que sim.

— Tudo o que importa é... — ele brincou com um rasgão no plástico do volante,

seus dedos deslizando sobre ele uma e outra vez — Olhe, você quer sair daqui ou não?

— Depende — eu disse lentamente. — Para onde você vai me mandar?

Ele fez um som exasperado.

— Não é assim que funciona. Eu não tenho esse tipo de influência sobre... Você

tem que entender... — eele deu uma respiração profunda e libertou-a lentamente.

Depois se virou ligeiramente em seu assento para me encarar, com o rosto sério.

Sentindo um arrepio de antecipação pelo que ele estava prestes a dizer, eu me

inclinei para frente.

— Nem todo mundo que morre acaba aqui — Killian disse, com ar de alguém

transmitindo um grande segredo.

Eu caí para trás em meu assento com um suspiro.

— Duh!

Ele fez uma careta para mim.

— Sério, você espera que isso seja um choque para mim? — balancei a cabeça

em descrença. — Eu já estou aqui há cinco dias e ainda não vi nenhuma das pessoas

29

Do original ―twist your arm‖, que é uma expressão usada quando alguém convence ou coage outra pessoa a fazer

algo.

104

mortas que eu conheço... Conhecia — fiz uma careta. — Que seja. Além disso, isso aqui

estaria bem mais lotado.

Ele parecia surpreendido.

— Isso é verdade. Como você...

— Só porque eu me preocupo com minha aparência — olhei para a sua

camiseta preta e calça jeans surrada com alguma aversão — não significa que eu sou

idiota.

— Tudo bem, tudo bem — esfregou as mãos sobre o rosto. — Apenas ouça, ok?

Nem todo mundo que morre acaba por aqui. Alguns deles vão diretamente para o seu

destino final. Não passe na Partida30, não visite o seu próprio velório. Ele me deu um

olhar penetrante.

Encolhi os ombros. Sim, eu fui à minha própria visitação e funeral, e daí? Quem

não o faria? É literalmente uma oportunidade única na vida — na verdade até menos

que isso — para ver quem realmente se preocupa com você e o quanto.

Ao pensar sobre isso agora, eu não me lembro de ver Killian na casa funerária,

na Igreja ou no cemitério. Sim, cada local tinha estado gratificantemente lotado — o

superintendente tinha até deixado que todos saíssem da escola mais cedo só para que

eles pudessem ir —, mas confie em mim, você presta um monte de atenção para quem

entra e sai quando você é o convidado de honra, por assim dizer.

Senti uma espécie estranha de pontada no peito — quase como se machucasse.

Então, eu era boa o suficiente para ele discutir, olhar e fantasiar — desde a sexta série e

sim, era óbvio — mas não especial o suficiente para garantir um desvio de quinze

minutos no decorrer de seu dia? Ok, o número de outros espíritos que provavelmente

pendurava em torno de uma funerária e igreja poderia ter feito um pouco

desconfortável para ele, mas mesmo assim.

Que seja. Como se isso importasse. Quem era ele para fazer luto por mim? Só

um perdedor social que eu nem sequer teria percebido que não tinha ido ao meu

funeral, se eu não tivesse morrido e precisado de sua ajuda. Certo, ok, um pequeno

problema de lógica nisso, mas você sabe o que eu quero dizer.

Ele acenou com a mão na frente do meu rosto para chamar minha atenção.

30

Refere-se ao popular jogo ―Monopólio‖ onde há uma carta que diz: ―Vá diretamente para a Cadeia. Não passe na Partida. Não recolha o dinheiro‖, esta expressão passou a ser usada também em conversas informais, neste caso ele quer dizer que essas pessoas não têm que continuar no jogo, não passam pela casa ―Partida‖ do tabuleiro de jogo, que inicia uma nova jogada/rodada, vão diretamente para o destino final. Rsrsr

105

— Eu não estou fazendo isto só para me ouvir a mim próprio falar. Você está

comigo?

Dei uma tapa em sua mão.

— Sinto muito, os meus olhos vidrados de tédio te distraíram? Por favor,

continue.

Ele rangeu os dentes por um longo segundo, mas por fim continuou.

— Como eu estava dizendo, para pessoas como você — ele fez soar como se

ninguém fosse como eu, mas não no bom sentido — acabarem por aqui, uma de três

coisas acontece.

Agora isto era o que eu precisava ouvir. Forçando de lado a pequena e estranha

irritação sobre Killian não ir ao meu funeral — estar morta realmente fode com suas

emoções — me sentei reta e virei para ele novamente, dobrando as pernas debaixo de

mim.

— A maioria das pessoas não fica aqui por muito tempo.

Eu fiz uma careta.

— Mas esses fantasmas... Espíritos na escola...

Ele soltou um suspiro por entre os dentes, um assobio impaciente.

— Peraí, eu estou chegando lá.

— Bom, se apresse — Jesus, não era como se tivéssemos todo o dia. Na verdade,

um de nós tinha muito mais tempo do que isso, mas, novamente, ouvir Killian balbuciar

não era exatamente como eu queria passar o resto da eternidade.

Ele olhou para mim.

— Você é sempre assim irritante?

— Só quando a minha alma imortal está em risco — eu respondi cortante.

— Eu sabia que você era católica — ele murmurou.

— Cuidado.

Ele me ignorou.

— Como eu estava dizendo, quando as pessoas aterram aqui, elas não

permanecem por muito tempo. Na maior parte das vezes, eles desaparecem em poucos

dias.

106

— Desaparecem como? Essa é a parte que eu preciso saber.

Ele fechou a boca e os músculos de sua mandíbula contraíram debaixo da pele.

Para que conste, ele tinha um bom queixo, firme e quadrado. Pena que ele arruinasse

isso sendo todo pálido e assustador.

— Para alguns deles, alguém ou alguma… Coisa vem pegá-los.

— Uma luz branca brilhante? — perguntei ansiosamente. Eu não tinha visto

nenhum sinal dela em torno de mim, mas pelo menos eu sabia o que estava

procurando.

Killian, pela primeira vez, não parecia irritado com a interrupção. Ele balançou

a cabeça, pensativo.

— Não, não como o que você vê na televisão. É difícil descrever. À distância,

parece quente e acolhedor, como se alguém capturasse um perfeito dia de verão em um

frasco e o derramasse sobre sua cabeça — seus olhos encaravam um ponto acima da

minha cabeça, um leve sorriso puxando sua boca.

— Tão poético — eu disse com um sorriso afetado.

Ele voltou à realidade, olhando para mim.

— Você perguntou.

— E as outras? — eu persisti. — Você disse que uma de três coisas acontecia. A

feliz luz dourada é uma alternativa. Ficar presa aqui para sempre ou pelo menos por

vários anos, como as pessoas na escola, é claramente a opção número dois.

Ele assentiu a contragosto.

— Então, qual é a terceira coisa que pode acontecer? — eu aposto que ele

simplesmente adorava ter-me pedindo todas estas informações, fazendo-o se sentir

especial e importante e uma merda assim.

— A maioria deles simplesmente desaparece — disse ele, soando como se isso

fosse o que ele queria que me acontecesse bem ali naquele momento. Alona

desaparecida, puf. Mas por uma vez eu não me sentia minimamente tonta.

— Quanto tempo dura a coisa de desaparecer? — eu realmente odiava essa

coisa de deslizar dentro e fora de existência. Era chato, como nunca ser capaz de

terminar uma frase antes de ter que começar tudo de novo.

Killian balançou a cabeça.

107

— Isso é o que é estranho. Para a maioria deles, só acontece uma vez. Quando

você desaparece, está terminado — ele olhou para mim, seus olhos azuis distantes e

frios, como se ele estivesse me imaginando desaparecendo.

— Então o que acontece quando você desaparece completamente? Quero dizer,

é ruim lá? — senti lágrimas picando em meus olhos. Ok, talvez eu não tivesse sido

perfeita, mas certamente, eu não merecia ser totalmente destruída, certo?

— Eu não sei — disse ele, erguendo as palmas das mãos para cima. — Nunca

ninguém voltou e me contou.

— Mas eu não entendo — parei, um sentido de horror se apoderando de mim

quando suas palavras fizeram outra peça do puzzle clicar no lugar. — Foi por isso que

você riu de mim ontem. Antes de a escola começar. Você não se importou que eu visse

que você conseguia me ver porque pensava que eu desapareceria para sempre — senti a

verdade das minhas palavras, mesmo sem a sua resposta.

Ele olhou para longe, olhando pela janela lateral para o estacionamento.

— Eu não devia ter rido. Isso foi errado.

— Você pode ter a maldita certeza que foi — eu não podia acreditar nele,

desfilando por aí como um cara agradável, embora louco, quando secretamente ele não

queria nada mais do que me ver desaparecer... Permanentemente. — Eu nunca fiz nada

a você para merecer...

Ele riu amargamente.

— Ah, certo. A grande e preciosa Alona Dare. A original Miss Perfeita.

Recuei como se tivesse sido picada.

— Eu nunca disse ser...

Mas ele não tinha terminado ainda.

— Um olhar de desprezo seu ou uma palavra desagradável destrói vidas e você

tem prazer nisso...

— Já tive o bastante disso — virei para longe dele para passar pela porta do

carro e sair para a rua, mas meu pé — seguido de perto pelo resto do meu corpo —

bateu solidamente contra metal e plástico. — Ai — estendi a mão para segurar a

maçaneta da porta do carro.

— Becca Stanhope.

Parei com os dedos em volta da maçaneta de metal.

108

— A gorda... — fiz uma pausa e rolei olhos. — A garota de ossos grandes de

pré-calculo que usa blusas largas? O que ela tem a ver com alguma coisa? — joguei um

olhar triunfante sobre o meu ombro para Killian. — Ela veio ao meu funeral e chorou.

— Provavelmente com alívio, por você estar morta e não a estar incomodando

mais.

— Do que você está falando?

— Você a fez chorar.

Levei um segundo para lembrar sobre o que ele estava falando. Eu dissera algo

para ela, nem sequer me lembrava o quê. Só que ela tinha fugido correndo da sala

chorando com o suéter balançando atrás dela.

— Uma vez e isso foi, tipo, há meses atrás.

Ele me deu um olhar acusador.

— Você disse que ela devia comprar suas roupas no tamanho certo.

— E então? — dei de ombros, sentindo-me surpreendentemente defensiva. —

Ela devia. Há um monte de coisas bonitas na seção de tamanhos grandes. Só precisa de

um pouco de esforço e...

— A avó dela lhe faz os suéteres.

— A avó dela devia saber melhor. É como se ela estivesse tentando fazer a

garota parecer ainda pior — eu franzi o cenho. — Como você sabe disso? Sobre os

suéteres da avó, eu quero dizer?

— Porque ela chorava todos os dias no final de Educação Física quando estava

se vestindo para a sua próxima aula. Pré-calculo — afirmou categoricamente.

— Você espionou o vestiário das garotas, Killian? Eu não pensei que você

estivesse tão desesperado — minha resposta não tinha energia. A imagem de Becca

Stanhope aos soluços nos corredores do vestiário das garotas fez minha consciência

formigar. Eu não tinha querido necessariamente ser cruel. Só me incomodava como as

pessoas se importavam tão pouco consigo mesmas e com a sua aparência. Você não se

importa com o que o mundo pensa? Tudo bem, mas não espere que o mundo te aceite e

aplauda por isso.

— Joonie tem aula com ela. Ela me disse — Killian disse com aquela voz

sublime de moral superior. Ele soou como o Father Rankin31.

31

Nome de um padre.

109

— Tenho certeza que Becca e Joonie são amigas íntimas, certo? — cruzei meus

braços sobre o peito. — Joonie provavelmente foi até ela, deu-lhe um grande abraço e

disse-lhe que tudo ia ficar bem.

Becca não estava em minha hora de almoço, então eu não tinha ideia de onde

ela se sentava, mas com base na aparência dela, eu acho que nas mesas da cafeteria da

quarta ou quinta camada, provavelmente flutuando entre os nerds da banda e do clube

de espanhol. Em nenhum lugar perto do pátio cheio de perdedores como Joonie e

Killian.

Killian desviou o olhar.

— Ela ouviu Becca dizendo a Sra. Higgins.

— Sim, veja... Você e seus amigos excluem pessoas, também.

Na verdade, Becca provavelmente nunca teria falado com Joonie de qualquer

maneira por isso era mais uma exclusão mútua, mas o meu ponto era o mesmo. Todo

mundo fazia isso.

Killian balançou a cabeça.

— Nós não somos deliberadamente malvados.

Fiquei boquiaberta a olhar para ele.

— Eu não sou...

—Joey Torres — disse ele imediatamente, como se estivesse apenas esperando

que eu negasse isso.

— Joe ―cara-de-pizza‖? — franzi o cenho.

Killian estremeceu. Que seja. Eu não dei esse apelido a Joey.

— Ele te convidou para sair e você zombou de sua pele. Ele teve que pedir

transferência de escola por causa de você.

— Isso é o que as pessoas estão dizendo? — eu perguntei incrédula.

Ele arqueou uma sobrancelha.

— Não foi isso que aconteceu?

— Primeiro de tudo, eu tinha um namorado na altura e ele sabia.

— Nem todo mundo acompanha todos os detalhes de sua vida social.

110

— Ótimo, então ele devia ter sabido. Não é essa a primeira regra de convidar

alguém para sair, certificar-se que ela está solteira?

—Você está dizendo que teria saído com ele se não tivesse namorado?

Estremeci.

— Claro que não. Ele não é, de todo, o meu tipo.

— Por que ele se se senta à mesa errada da cafeteria? — Killian zombou.

— Não, porque ele se veste como um stormtrooper32 no fim-de-semana — eu

atirei. — Ele me convidou para algum tipo de convenção de ficção científica.

Killian parecia surpreendido.

— A questão é... — eu continuei — Isso não importa. Ele me convidou para sair

sabendo que eu tinha um namorado e esperando que a culpa ou piedade me forçassem

a aceitar. Eu recusei e isso é tudo.

Ele balançou a cabeça.

— Você é problemática.

Agora eu estava ficando com raiva. O que era isto, o dia de ―Vamos Quebrar a

Cabeça de Alona‖? Alguém devia ter dito à minha mãe que ela tinha criado um novo

feriado.

— Oh, sim, como vai o seu bom amigo Joey agora?

— O que você quer dizer?

— Ele anda em São Viator, certo? Na cidade?

Killian encolheu os ombros, desconfortável.

— Eu não sei.

— Eu sei — soava presunçosa e não me importava. — Eu o vi num jogo de

basquete há alguns meses atrás quando jogamos contra sua equipe. Sua pele estava

clara e ele tinha os braços em torno de uma nerd bonitinha muito parecida com Jennifer

Garner33, por acaso.

— Você leva crédito por isso, eu vejo.

32

Os Stormtroopers são a tropa de elite do Império Galático, no Star Wars.

33 Atriz norte-americana que interpretou o papel de Sydney Bristow, na série Alias.

111

— Claro que não. Eu apenas fui honesta com ele e disse que não. O mundo é

cruel Killian e você deve saber disso melhor que ninguém. As pessoas não conseguem

emprego se aparecem descuidadas. Ter deficiências físicas não significa que você deve

confiar na piedade para arrumar encontros. Só porque sua vida não funciona

automaticamente do jeito que você quer não significa que você pode desistir e esperar

que o resto do mundo te ajude. Você tem que jogar no interior do sistema para ganhar.

— Diz a garota com o rosto perfeito, o corpo perfeito, a vida perfeita... — ele

disse.

Eu devia ter ficado contente por ele ter comprado a minha imagem; eu passara

anos cultivando-a e incontáveis e extenuantes horas a refinando e ajustando,

comprando apenas as roupas certas, planejando exatamente a coisa certa a dizer,

fazendo com que parecesse fácil. Mas em vez disso, eu senti uma onda de fúria se

construindo em meu peito. Ele estava me julgando? Como se essa tão-chamada

perfeição simplesmente tivesse caído no meu colo e eu devesse ter estado grata ou algo

assim?

— Vamos — eu atirei. — Dirija.

Ainda era cedo. Minha mãe provavelmente ainda estaria desmaiada. As

garrafas vazias de vodca que eu ontem meticulosamente arranjara no chão para

formarem a palavra PARE ainda deviam estar no lugar. Deixe-o dar uma boa olhada na

minha vida perfeita.

Ele me deu um olhar confuso.

— Dirigir para onde? Nós já estamos aqui. E... — ele olhou para o celular com

uma careta — Com dez minutos de atraso. Brewster vai me matar.

Estendi a mão e puxei a alavanca de mudanças para baixo, para inverter a

marcha e o metal contra metal guinchou.

Assustado, ele enfiou o pé no freio.

— Alona! A transmissão não é...

— Você quer perfeição? — eu disse em voz neutra, mal me reconhecendo a mim

própria. — Eu vou mostrar-lhe perfeição.

112

10

Will Killian

Eu nunca tinha visto este lado de Alona Dare e, para ser honesto, estava me

fazendo pirar. Ela tinha estado silenciosa — a não ser para me dar indicações sobre

onde virar — e quieta — exceto pelo seu pé batendo contra o piso, desde que tínhamos

saído do estacionamento da escola. Eu nunca tinha percebido o quanto ela era

movimento, energia e vida — mesmo após a morte — até vê-la assim.

Virei numa rua alinhada com casas grandes de tijolo e quintais enormes. Ben

Rogers vivia em algum lugar por aqui. Não estávamos muito longe de onde Lily tinha...

Tido seu acidente. Este definitivamente não era o meu lado da cidade.

— E agora? — eu perguntei. Deixei o carro deslizar para frente lentamente,

esperando que parecesse que estávamos perdidos e verificando endereços.

Provavelmente não seria preciso para as pessoas neste bairro chamarem a

polícia. Um carro com aparência terrível fazendo uma longa movimentação podia ser o

suficiente.

O pé de Alona aumentou seu ritmo frenético e em seguida, parou de repente.

— Nada — disse ela após um longo momento. — Esqueça — mas seu olhar

estava fixo em uma casa em particular. Parecia muito como todas as outras. Salvo que

todas as cortinas estavam fechadas, um pedaço de contraplacado desgastado cobria

uma das janelas do andar de cima, os arbustos perto da porta da frente e sob as enormes

janelas estavam irregulares e por podar e, as latas de lixo estavam tombadas ao pé da

garagem, derramando tabuleiros pretos de refeições para aquecer no micro-ondas e um

monte de garrafas de vidro. Observando mais de perto, pude ver duas linhas paralelas

e profundas — marcas de pneu — no gramado da frente, como se alguém tivesse

calculado mal o local da garagem.

— Esta foi uma má ideia — disse ela. — Vamos apenas voltar para a escola.

Eu bati os freios e olhei para ela.

113

— Você arrastou-me todo o caminho até aqui, o que vai fazer com que eu

chegue realmente atrasado e só vai chatear Brewster ainda mais, só para olhar para

alguma casa aleatória.

— Não é uma casa aleatória — ela estalou. — Minha casa. Lar doce lar.

Eu congelei. A casa dela? Eu não tinha ideia de para onde ela estava me

levando quando nós começamos a nossa pequena viagem, mas esta era a última coisa

que eu teria esperado. A base de uma garrafa de vodca quebrada rolava para frente e

para trás na sarjeta, capturando minha atenção como o balanço de um relógio de bolso

antiquado em uma sessão de hipnotismo.

Ela não podia ter vivido aqui. Quero dizer, sim, eu podia imaginar. Bairro

agradável, uma casa claramente cara, mas alguma coisa estava, obviamente, errada no

interior. Isto não combinava com a Alona Dare que eu conhecia. E isso, eu percebi, tinha

sido seu ponto.

— Legal, né? — ela perguntou com bastante amargura. — Estamos tentando

toda aquela aparência de lixo-branco-junto-com-alcoolismo34. Quero dizer, poderia

estar mais enfeitado. Claramente, nós estamos perdendo uma oportunidade com o carro

estacionado na garagem, em vez parado no meio do quintal.

Como se ela tivesse ordenado, a amassada porta da garagem da casa subiu.

Alona enrijeceu.

Uma mulher loira com os pés descalços, vestida com um robe de seda rosa mal

amarrado tropeçou para fora com uma mão levantada contra a luz e a outra arrastando

um saco de lixo plástico com o seu conteúdo chocalhando. A semelhança entre a mulher

e a garota sentada ao meu lado era inconfundível. Mas era como olhar para o Elvis

velho e o Elvis jovem. Você ainda podia ver um indício da bela mulher que ela fora uma

vez, sob o inchaço do peso extra, os raios de rugas ao redor dos olhos e o ar geral de

derrotada pela vida.

— O que você está olhando? — a mulher gritou para nós. Ou melhor, para mim,

dado que eu era o único que ela podia ver.

Ela cambaleou até a calçada na nossa direção, mais rápido agora. A bolsa vinha

arrastada atrás dela, aparentemente esquecida na sua mão. O vidro quebrado que caíra

do caixote de lixo brilhava intensamente no chão da entrada da garagem, mas não

parecia que isso ia detê-la.

— Pare de olhar para mim!

34

Do original ―white-trash-meets-skid-row‘‘, sendo que ‗‘white trash‘‘ é um termo ofensivo para pessoas brancas e correspondendo ‗‗skid row‘‘ a uma seção pobre da cidade geralmente frequentada por alcoólatras indigentes, vagabundos, párias, etc., será portando uma fusão das duas coisas.

114

— Hum, Alona.

— Cale a boca e nos tire daqui — disse ela, sua voz tensa.

Virei o volante para a esquerda com força e os pneus do Dodge protestaram um

pouco diante da súbita mudança de curso.

— Você quer falar sobre...

— Não.

— Você quer voltar? — eu perguntei.

— Não.

Eu hesitei.

— Você sabe se há algo te segurando aqui, pode ser...

— Eu disse não!

Levantei minhas mãos.

— Ok, ok. De volta para a escola, então — virei para a rua principal na sua

subdivisão anterior.

Ela forçou uma risada.

— Agora você pode voltar e dizer a todos os seus amigos o quão fodida Alona

Dare realmente é... Era. Tenho certeza que será a maior excitação de suas vidas patéticas

— virou-se de costas para mim, lançando seu cabelo sobre o ombro, mas não antes que

eu pegasse um vislumbre de seus olhos, mais brilhantes do que normal.

Pigarreei.

— Infelizmente toda gente que eu conheço, incluindo eu, tem uma vida

bastante fodida, por isso duvido que eles estejam interessados.

— Pode dizer isso mais uma vez — disse ela, mas faltava o seu veneno habitual.

Ela ficou em silêncio o resto do caminho de volta para a escola.

***

No momento em que chegamos ao estacionamento novamente, eu estava 45

minutos atrasado para primeira aula. Em outras palavras, na hora certa para o início da

115

segunda aula. Brewster podia já estar fora da sala procurando pessoas matando aula.

Estava numa corrida contra o tempo.

Estacionei na minha vaga na última fileira.

— Você está bem? — eu perguntei a Alona.

Ela se virou de repente, seus olhos estreitados.

— Por que você está sendo legal comigo? — perguntou ela. — Você sente pena

de mim? — sua voz tinha um tom perigoso.

Isso seria uma coisa tão horrível? Mas até eu sabia que não devia dizer isso em voz

alta.

— Só porque você sabe… Coisas sobre mim agora, isso não nos faz amigos —

ela acrescentou.

— Nunca pensei que faria — eu disse, tentando não cerrar os dentes. Como ela

fazia isso? Fazer-me querer confortá-la num minuto e querer despejá-la para fora do

carro no minuto seguinte.

Ela me olhou com cuidado.

— Então o que você quer?

É isso, Killian. Faça com que valha a pena.

— Olhe, nós... Eu só tenho algumas semanas de escola restantes. Com Miller

fora do caminho, eu poderei ter uma chance de completá-las. Eu só preciso me graduar

e sair daqui.

Ela franziu o cenho.

— E ir para onde?

— Algum lugar menos lotado. Menos pessoas significa menos fantas...

Espíritos.

— O que isso tem a ver comigo?

— Você fez com que os outros fantas… Espíritos recuassem ontem, me

deixassem sozinho.

— Até que a… Coisa apareceu — ela estremeceu. Então olhou para mim. —

Desculpe.

Levantei um ombro.

116

— Como eu disse, todo mundo tem seus problemas.

— Então... — ela inclinou a cabeça para um lado. — Você quer que eu seja, tipo,

o seu guarda-costas.

Fiz uma careta.

— Uma descrição humilhante, mas precisa.

— Uh-huh. O que eu recebo em troca?

— Eu lhe ensino tudo o que sei sobre este lugar e como ele funciona.

— Você pode fazer a luz vir para mim?

— Não, eu te disse, não funciona assim. Isso é tudo sobre você e seus…

Problemas — eu disse, evitando o seu olhar. — Mas eu acho que posso ensiná-la a parar

de desaparecer antes...

— Que eu desapareça para sempre? — perguntou ela. — Sem luz brilhante,

nem mojitos com álcool, nem lojas de sapatos? — ela murmurou baixinho.

— O quê?

Ela balançou a cabeça.

— Nada. Empurrou seu cabelo para trás, prendendo-o atrás das orelhas e se

virou para mim em seu assento. — Vamos dizer que eu acredito em você. Como isso

funciona?

E aqui estava, a pior parte. Quem disse que Deus não tem um senso de humor?

— Você tem que ser agradável.

Ela fez uma careta.

— Certo.

— Estou falando sério — ao longe ouvi a campainha tocar sinalizando o fim da

primeira aula. Eu não podia esperar mais, não sem pôr em risco o que minha mãe tinha

feito para evitar que eu fosse expulso da escola. Saí do carro, as chaves e o celular na

mão e comecei a atravessar o estacionamento para a escola, esperando que Alona me

seguisse.

Ela se arrastou para fora do carro atrás de mim.

— Seja agradável? — ela assobiou. — Você disse que isso não tinha nada a ver

com o céu ou o inferno ou o pecado ou...

117

— Não, eu disse que não explicaria as coisas nesses termos. Demasiadas

rasteiras, demasiados tons de cinza quando você olha para todas as religiões.

— Mas, ―seja agradável‘‘? — ela jogou as mãos para cima, no ar. — Isso é

totalmente toda aquela coisa de ―não faça aos outros o que não quer que façam a você‖.

— Sim, mas é também um princípio com base científica — eu apontei. —

Pergunte a qualquer um dos garotos do clube de ciência, eles vão te dizer. Enquanto

estiver aqui, você é essencialmente uma forma de energia. Ser positiva permite que

mais energia flua através de você, ajudando você a ficar aqui. A energia negativa, como

quando você diz todas aquelas coisas espertalhonas e desagradáveis sobre as pessoas,

drena você, comendo sua capacidade de ficar aqui. Em termos simples, é como uma

bateria. Ser legal ajuda você a recarregar.

Ela parou abruptamente.

Olhando para trás, por cima do meu ombro, eu a vi ali de pé, braços cruzados

sobre o peito.

— Eu sou uma bateria?

— Eu disse, em termos simples... Mas, sim.

Desafio brilhou nos olhos dela.

— Eu não vou dizer que adoro quando chove, que pessoas feias são bonitas, ou

que eu gosto da sua T-shirt.

— O que há de errado com a minha T-shirt? — exigi.

Ela me ignorou.

— Eu simplesmente não o farei. Já passei demasiados anos mentindo — sua

expressão continha uma escuridão que eu nunca tinha visto antes... Até hoje.

Lembrei-me de como ela congelou quando sua mãe apareceu e senti minha

raiva amolecer.

— Olha, você não tem que mentir. Na verdade, você não pode. Tem de ser

verdadeiro, lembra?

Ela assentiu.

— Agora, você disse algo desagradável sobre a minha T-shirt. Então diga algo

agradável para compensar.

Ela arqueou as sobrancelhas.

118

— Sobre a sua T-shirt? Impossível.

Eu suspirei.

— Tudo bem. É o seu destino. Se você quer passar o resto de seu tempo.

— Você tem dentes bonitos — ela deixou escapar.

Encarei-a. Ela encolheu os ombros.

— O quê? Eu tenho uma coisa por dentes brancos e direitos, ok? Não é nada de

especial — ela disse, cruzando os braços sobre o peito.

— Dentes bonitos — repeti lentamente.

— Eu teria dito que você tem um sorriso bonito, se eu já o tivesse visto para

saber — ela estalou e eu não pude evitar, comecei a rir.

— Não é assim tão engraçado — ela murmurou quando eu me dobrei de rir,

minha barriga doendo. Ela estava certa. Não era assim tão engraçado, mas foi a última

gota de ridículo que quebrou a tensão que eu vinha carregando dentro de mim desde

ontem.

— Dentes brancos e direitos são um sinal de boa saúde — ela insistiu. — Podem

ser uma característica muito atraente — sua boca começou a curvar em um sorriso

relutante.

— Peço-lhe para dizer algo agradável — arfei — e você escolhe o menor e mais

insignificante.

— Não é insignificante para mim — ela caminhou para frente e me deu um

empurrão suave no ombro, mas estava sorrindo pelo menos. — Higiene dentária é

muito importante. Quem quer beijar uma boca cheia de dentes amarelos nojentos? —

ela estremeceu.

Demorou um segundo para que suas palavras afundassem dentro de mim.

— Quem falou em beijar? — tentei soar casual enquanto meu coração trovejava

no meu peito. Como eu disse, cada indivíduo tem sua fantasia e para o melhor ou pior,

desde a sexta série, a minha sempre se centrou em Alona Dare.

Ela revirou os olhos.

— Por favor. Eu quis dizer isso metaforicamente. Além disso, como você vai me

beijar?

Ofendido, eu enrijeci os ombros.

119

— Nunca tive nenhuma reclamação. Eu sou bom.

Ela continuou falando como se eu não tivesse dito nada.

— Você pareceria um lunático. Sua cabeça toda inclinada com a língua de fora

— ela jogou as mãos para cima, como se estivesse segurando a garganta de alguém,

fechou os olhos, inclinou a cabeça drasticamente e sacudiu a língua para fora de sua

boca.

Eu bufei. Ela parecia ridícula e tinha um ponto.

Ela parou e abriu os olhos.

— Então você tem um senso de humor. Nunca teria imaginado isso — seu olhar

se direcionou para algo atrás de mim. Ela inclinou a cabeça para o lado.

— Você vai precisar dele também. Problemas às dez horas.

Virei-me para a minha esquerda um quarto de volta e não vi nada, a não ser o

campo de futebol.

— Não — disse ela, impaciente. — Dez. Dez horas — ela puxou meus ombros e

me virou para a direita.

— Isso são duas horas.

— Para você, sim! Eu quis dizer dez horas... Que seja. Basta olhar — ela passou

a mão pelos cabelos, impaciente.

— O tempo passa no sentido dos ponteiros neste universo... — fechei a boca,

vendo o diretor Brewster se aproximando, seus sapatos brilhantes triturando cascalho e

levantando nuvens de poeira. — Oh merda.

— Agora, só me escute — disse Alona.

— Eu não vou puxar o saco dele — retruquei.

Ela colocou as mãos nos quadris.

— Quem falou em puxar o saco? Estou protegendo meus próprios interesses

aqui. Então, basta ouvir — ela respirou fundo. — Ele quer que você diga algo estúpido.

Tal como os policiais querem te pegar em excesso de velocidade.

— Ei, eu tenho um tio que é policial — protestei.

— Não importa. Você sabe o que eu quero dizer. Eles têm quotas que precisam

cumprir. Brewster tem uma reputação a manter como um osso duro de roer. Se você lhe

120

der a oportunidade, ele vai te usar para fazer isso. Então, basta — ela deu de ombros —

não lhe dar.

— Esse é o seu conselho? — eu perguntei, levantando uma sobrancelha.

— Não — ela sorriu afetadamente. — Este é: seja agradável.

Olhei para ela.

— O quê?

— Seja agradável.

— Oh, não.

— O quê? Funciona para mim, mas não para você? — ela exigiu.

— Não é a mesma coisa, de jeito nenhum.

— Tanto faz — ela revirou os olhos. — Você não tem muitas opções.

Simplesmente experimente — cruzou os braços sobre o peito e afastou-se enquanto

Brewster se aproximava.

— Bom dia, diretor Brewster — eu disse com os dentes cerrados.

Ele parou, os sapatos brilhantes deslizando no cascalho e olhou para mim.

Provavelmente porque era a primeira vez que eu falava com ele voluntariamente.

— Sr. Killian. O que você está fazendo aqui?

— Sem sarcasmo — ela sussurrou urgentemente na minha orelha — e diga

―senhor‖. Ele adora isso.

Virei-me de costas para Brewster e falsifiquei uma tosse alta para cobrir as

minhas palavras para Alona.

— Por que eu quereria fazer isso?

— Porque ele adoraria ainda mais te expulsar — ela ressaltou.

Respirei fundo e voltei-me para enfrentá-lo.

— Desculpe, senhor. Perdi a hora e então tive que terminar um telefonema —

dei-lhe o meu melhor sorriso radiante e ergui o meu celular.

— Não é um mau começo — disse Alona. — Agora não foda isso.

Um lampejo de incerteza cruzou o rosto de Brewster. Ele não conseguia

perceber se eu estava falando sério ou não.

121

— Sem vadiagem. As aulas começaram há quarenta e cinco minutos. Você está

dentro ou está fora.

— Peço desculpas pelo meu atraso — eu disse, com um tom um pouco mais

afiado do que eu pretendia. Não pude evitar, o cara me irritava totalmente.

— Cuidado — Alona murmurou perto da minha orelha. Ela estava tão perto

que eu podia sentir a sua camiseta escovando o meu braço. Não era uma experiência

desagradável.

Tirei um quadrado de papel dobrado do meu bolso.

— Aqui está um recado da minha mãe, desculpando a minha ausência de

ontem.

Brewster tirou o papel da minha mão, franzindo as sobrancelhas.

— Surpresa, surpresa. Um recado da mamãe para um garotinho da mamãe.

Avancei na direção dele, minhas mãos se apertando em punhos.

— Uh-uh — Alona disse, colocando uma mão fresca no meu braço. — Vê o que

ele está fazendo? Ele está apertando um botão ao qual ele sabe que você vai reagir. Veja

seus olhos.

Com uma careta, eu olhei para cima e encontrei o olhar de Brewster. Seus olhos

escuros brilhavam com diversão e avidez. Ele estava jogando um jogo.

— Ele ganha se você reagir — disse ela. — Nunca nenhum de seus pais fez esse

tipo de porcaria em você?

Não, não tinham. Minha mãe, emocional e exagerada como ela podia ser, nunca

poderia dirigir suas emoções de forma tão manipuladora, e meu pai... Bom, ele tinha

muita coisa com que lidar para perder tempo mexendo com a minha mente. Mas isso

certamente me deu uma percepção ainda maior da vida de Alona em casa. Assustador.

— Muito bem, Sr. Killian. Estamos honrados por você poder se juntar a nós

novamente hoje — Brewster se inclinou um pouco mais perto. — Você vai, no entanto,

servir dois dias de suspensão na escola sob a minha supervisão pela sua atitude e por

falar besteira ontem no meu escritório. E... — ele sorriu. — Há o pequeno problema de

seu atraso esta manhã.

— Eu tenho um recado — eu protestei.

— Não diz nada aqui sobre estar atrasado — eele virou o recado da minha mãe,

fingindo procurar mais alguma coisa escrita.

122

— Você quer outro recado? — Eu perguntei estupidamente. Ser cooperativo era

bem mais desgastante do que simplesmente socar seu rosto. Ele enfiou as mãos atrás

das costas e balançou para frente sobre os dedos dos pés.

— Eu acho que uma detenção serviria muito bem como castigo, não é?

— Uma hora a mais neste inferno? Eu acho que você está cheio de...

Alona espetou-me fortemente nas costelas e eu recuei.

— Botões — ela assobiou.

Brewster ficou me olhando com uma sobrancelha levantada.

— Tudo bem, detenção. Que seja — eu resmunguei.

— Bom — ele assentiu bruscamente. — Depois de você — ele girou e estendeu

seu braço em direção à escola num gesto largo.

Engoli um suspiro e me dirigi novamente para o prédio. Contudo eu odiava

fazer qualquer coisa que parecesse uma ideia ou um pedido dele.

— Vê? — Alona sussurrou em meu ouvido. — Não foi tão...

— Antes que eu esqueça, Sr. Killian — disse Brewster atrás de mim. — Devo

elogiá-lo pelo seu... Gosto interessante na música.

Congelei.

— Eu esperava muito mais gritos e lixo musical, mas Beethoven, Tchaikovsky e

Pachelbel35? Não são exatamente estrelas da MTV hoje em dia.

Primeiro de tudo, era MTV236 de hoje em dia. Eles nem sequer passam música

na MTV e não é "a" MTV. Em segundo lugar, ele ouvira o meu iPod? Os fones brancos e

limpos de Marcie estiveram em seus ouvidos velhos e nojentos?

Cerrando os punhos, eu comecei a dar a volta. Brewster talvez conseguisse

concretizar seu maior desejo de me expulsar. Valeria a pena se eu pudesse socá-lo nem

que fosse uma vez. Sentir sua mandíbula colidir com as juntas dos meus dedos e a

contusão resultante na minha mão seria um troféu que valeria a pena exibir.

35

Os três são músicos clássicos.

36 A MTV2 é um canal de televisão por assinatura que está amplamente disponível nos Estados Unidos no cabo digital e satélite, e

aos poucos é adicionado às listas de canais básicos do cabo por aquele país. Lançado em 1 de agosto de 1996, a proposta original do canal era fornecer para os fãs de música um local para ver videoclipes sem comerciais, já que a MTV original estava começando a se concentrar em reality shows e telenovelas. Hoje em dia, a MTV2 leva ao ar uma seleção de videoclipes, especiais relacionados à música e programas não musicais focados na cultura jovem. Esses programas têm como público-alvo os adolescentes e jovens adultos (na faixa dos 20 anos).

123

Alona estava sussurrando algo freneticamente em meu ouvido.

— Caindo direitinho em sua armadilha. Deus, você é terrível nisso. Você não

tem nenhum autocontrole?

— Diga alguma coisa legal — eu disse a ela automaticamente.

— O que você disse? — Brewster perguntou, franzindo a testa.

— Oh, pelo amor de Deus — murmurou Alona. — Tudo bem. Acho que você

está fazendo a coisa certa, enfrentando um valentão, mas este é um jogo e você tem que

aprender a jogar pelas regras se quer ganhar.

Tecnicamente, eu não tinha certeza se isso contava como algo agradável, pois

ela ainda estava me criticando...

Como se estivesse lendo meus pensamentos, ela continuou, em um tom

bastante irritado.

— Seus olhos não são tão assustadores quanto eu pensava que eram. Eles são

meio... Legais.

— Puxa, obrigado — eu disse.

— O quê? — Brewster estava começando a parecer um pouco irritado. — Sr.

Killian...

— Eu disse que você disse uma coisa legal. Obrigado por isso — eu improvisei

— era parecido o suficiente para que ele provavelmente não percebesse e jogá-lo fora de

seu jogo mesmo que apenas um pouco havia reduzido drasticamente o meu desejo de

socá-lo. Ou talvez não fosse apenas por ter irritado Brewster, mas também pelo que

Alona tinha dito. ―Meio legais‖ vindos da Rainha dos Comentários Depreciativos e dos

Olhares de Desdém era praticamente um cântico de louvor.

Brewster parecia surpreso.

— Eu vou te gravar um CD, se quiser — eu ofereci, só para vê-lo se contorcer.

Sua boca trabalhou silenciosamente por um longo momento enquanto olhava

para mim. Antes que ele pudesse se recompor o suficiente para me dar um sermão

sobre as leis federais em relação à cópia não autorizada de músicas, o carro de Jesse

McGovern acelerou passando por nós no estacionamento, vomitando pedaços de

cascalho e uma enorme nuvem de poeira

enquanto ele estacionava em um dos últimos lugares de estacionamento restantes.

A boca de Brewster fechou-se e ele começou a caminhar em direção a Jesse sem

outra palavra.

124

— Nada mal para um novato — Alona observou perto do meu ombro, as

extremidades de seu sedoso cabelo escovando o meu braço.

— Obrigado — fiquei parado, esperando tolamente que ela ficasse perto, mas

ela deslizou para longe, tão suave e graciosa como ela tinha sido em vida. — Essa foi a

parte fácil.

Ela franziu o cenho.

— O que você quer dizer?

Apontei para a porta da frente da escola, onde até mesmo a esta distância, dava

para ver uma multidão reunida. Um lampejo de um vestido rosa, o brilho opaco de um

balde para esfregão sendo empurrado para frente, um permanente Afro37 do início dos

anos oitenta a alguns centímetros acima das cabeças do resto... Sem dúvida sobre quem

estava esperando por mim, mesmo que eu não estivesse perto o suficiente para ver seus

rostos.

— Oh, eles — Alona acenou com a mão em desdém. — Eu posso lidar com eles.

Ergui uma sobrancelha para ela.

— Sem ser cruel?

Seus ombros caíram.

— Mas eu estou fazendo uma coisa boa, ajudando você...

Balancei minha cabeça.

— Se você quer arriscar...

Ela deu um suspiro exagerado.

— Tudo bem, tudo bem. Mantê-los longe de você e não ser cruel para eles. —

ela descansou as mãos nos quadris e ajeitou o cabelo para trás. — Quero dizer, o quão

difícil pode ser? Fui eleita rainha do baile três vezes, você sabe. Conquistar as pessoas é

algo natural para mim.

Certo. Eu devia estar preparado para correr, apenas no caso.

37

http://1001suicidealbums.files.wordpress.com/2011/05/afro1.jpg

125

11

Alona Dare

— Pronta? — Killian perguntou baixinho quando alcançamos a calçada que

conduzia à porta principal.

— Claro — revirei os olhos. Ele estava agindo como se estivéssemos indo para a

guerra, ou algo assim. Que seja. Exceto se o pai de Killian aparecesse todo escuro,

retorcido e sombrio de novo — nesse caso todas as apostas estavam fora —, eles eram

apenas pessoas. Mortos, mas mesmo assim. Sou uma pessoa social. Vamos enfrentá-lo,

você não consegue vencer concursos de popularidade — que é basicamente no que

consiste o ensino médio desde a orientação até à graduação — se você não sabe como

trabalhar a multidão.

Falando nisso, a multidão estava agora vindo em nossa direção, atravessando as

portas — literalmente andando através do vidro e metal, claro — gritando e clamando

por Killian.

— Aqui vamos nós — disse ele em voz baixa.

Os espíritos o rodearam, me dando cotoveladas e me afastando para fora do seu

caminho.

— Cuidado — eu protestei, mas duvidava que alguém me tivesse sequer

ouvido. O barulho era inacreditável. Todas essas vozes, gritando e implorando, ao

mesmo tempo.

— Você voltou. Eu disse que ele voltaria...

— Nunca disse que ele não iria.

— Um pequeno favor. Por favor, você tem que...

— Minha neta precisa saber que a mãe dela...

Percebi que não conseguia mais ver Killian no meio de todos eles. Eles o tinham

devorado.

126

— Hey — eu tentei. Gritar com eles tinha resolvido ontem. — Ei, pessoas

mortas — a garota do feio vestido de baile com bolinhas me lançou um olhar sujo por

cima do ombro, mas mais ninguém parecia sequer me notar.

Isto poderia ser um problema. Devo confessar, eu não estou exatamente

acostumada a ser ignorada. Então, eu posso ter ultrapassado um pouco os limites.

Baixando a minha cabeça, eu empurrei o meu caminho através da multidão

ignorando todos os grunhidos de dor e gritos de protesto quando eu pisei nos pés deles

e meus cotovelos se conectaram com suas costelas. Killian estava congelado no centro,

os seus ombros curvados e os seus olhos fechados, parecendo que estava a rezar para

que alguém o salvasse. Bem, eu não sabia nada acerca disso, mas eu sabia que não ia

deixar estes perdedores me empurrarem. Killian também não deveria permitir isso, não

quando ele tinha algo que eles queriam. Ele devia ter estado no controle, pelo amor de

Deus, mas enfim. Ele não conseguia cuidar de si mesmo, então isso me deixava espaço

para fazê-lo por ele enquanto ele me ajudava. Todos ganhavam, eu acho.

Virei-me para enfrentar a maioria deles, colocando as minhas costas contra as

de Killian. Ele endureceu por um segundo antes de, evidentemente, descobrir que era

eu.

— Tudo bem, ouçam aberrações.

— Aberrações? O que ela quer dizer por...

— ...sofre de delírios de grandeza.

— Basta ignorá-la. Ela não tem nada a dizer aqui.

Esta última frase foi do meu amigo, o assustador zelador, que realmente tentou

me afastar de Killian, enquanto falava.

— Oh, não, você não vai — dei uma tapa em suas mãos. — Killian é meu. Meu,

meu, meu. Você quer alguma coisa dele, você vem a mim, em primeiro lugar.

Então a coisa mais estranha aconteceu. Assim que as palavras deixaram minha

boca, todos os fantasmas... Er, espíritos, pararam. Eles simplesmente congelaram, sem

trocadilho pretendido38. Então, esta explosão de vento saiu do nada e empurrou-os a

todos para trás, como se eles fossem vestidos em uma prateleira. Eles pairaram,

flutuando no vento, a cerca de três metros de nós.

Eu tremi, mas o vento não me moveu.

— O que está acontecendo?

38

Trocadilho porque ela diz ‗‘stiff‘‘ que tanto pode ser congelar no local, parar, como pode significar um cadáver, ou

uma pessoa morta.

127

Killian não respondeu.

Eu lhe dei uma cotovelada nas costas e ele resmungou.

— Ouch!

— Fiz uma pergunta. Abra os olhos e me diga o que está acontecendo.

Suas costas se moveram contra as minhas quando ele se endireitou e olhou em

volta. Ele soltou uma respiração afiada.

— Isto é tão...

— Estranho? Louco? Totalmente ao acaso? — joguei adjetivos para ele, na

esperança de mantê-lo a falar e que ele me explicasse o que estávamos vendo.

— Eu não sei — disse ele finalmente. — Eu nunca vi nada como isso antes.

Exceto... — ele fez uma pausa.

— Oh, meu Deus — eu atirei — Falar com você é como misturar um mortal com

espaguete39.

— O quê?

— Desconfortável, doloroso e não particularmente útil em uma rotina de

ginástica — virei-me para encará-lo. — Exceto o quê?

— Ontem — disse ele lentamente. — No corredor. Quando você conseguiu

fazê-los recuar...

Fiz uma careta, tentando lembrar.

— Sim, você está certo. Esta brisa totalmente estranha apareceu vinda do nada,

mas não era nada assim — acenei com minha mão para os corpos rígidos.

— O que você disse?

Olhei para ele.

— Eu disse que o que aconteceu ontem não foi nada assim...

— Não, quero dizer, o que você disse ontem, quando isso aconteceu? — Killian

parecia um homem com uma ideia.

Encolhi os ombros.

39 Do original ‗pull a backflip into the splits‘ que é um movimento de ginástica em que se faz um mortal e depois se termina no chão fazendo um espaguete, quem quiser pode ver um vídeo do movimento aqui: http://www.youtube.com/watch?v=hd-uotb19To

128

— Eu não sei. Não me lembro... Ei, pessoas mortas, se afastem?

Olhou em volta como se esperasse um vento, mas nada aconteceu. Ele suspirou.

— O que você disse hoje? Você se lembra disso? — ele perguntou com algum

sarcasmo.

Eu fiz uma careta.

— Morda-me.40

— Estou falando sério. O que você disse?

Revirei os olhos.

— Nada de especial. Você estava mesmo ali. Você me ouviu.

— Apenas...

— Tudo bem, tudo bem. Eu disse que eles teriam que passar por mim para

chegar até você.

Um vento leve surgiu de novo, soprando o cabelo de Killian para trás de seu

rosto. Prendi a respiração, esperando que me jogasse para trás como fez com os outros,

mas o ar simplesmente fluiu em torno de mim.

— Isto é tão legal — ele murmurou. Olhou para mim, seus olhos pálidos

iluminados com prazer.

Eu cruzei os braços sobre o peito, assimilando os rostos congelados com um

arrepio.

— Não me agradeça ainda. O que significa isto?

Ele balançou a cabeça, girando em círculo para ver todos eles.

— Eu não sei. Eu acho que pode...

— Pensando duas vezes, Sr. Killian?

Nós dois girámos para encontrar Brewster caminhando até a calçada, com um

taciturno Jesse McGovern no reboque.

— Merda — Killian murmurou. — Não, senhor, Sr. Brewster — ele olhou para

mim com um olhar de questionamento.

40

Deixei a tradução mais literal, mas é no sentido de ‗‗foda-se‘‘.

129

— O quê? — encolhi os ombros. — Meu trabalho aqui está feito. Eles não vão

incomodá-lo. Nunca mais, pelo que parece — eu fiz uma careta. — Então, vá para a

aula... Ou suspensão, ou o que seja. Encontre-me quando tiver terminado para me

ensinar mais coisas.

— Você tem certeza? — perguntou ele.

— Sim — eu disse. Ao mesmo tempo em que Brewster, agora a poucos metros

de nós, perguntou.

— Certeza de quê, Sr. Killian?

Killian rangeu os dentes e se dirigiu para o edifício.

Estranhamente, senti-me um pouco... Triste por vê-lo ir. Agora que ele não

estava sendo tão chato e tentando fugir de mim era meio legal tê-lo por perto, um alívio

não estar mais tão sozinha. Mesmo que fosse o estranho Will Killian. Ele nem sequer me

fizera sentir mal com o que viu em minha casa.

Dei a volta em torno dos espíritos congelados, para descansar em um dos

bancos de madeira do Círculo. Havia algo um pouco assustador sobre estar lá sozinha

no meio de todos eles. Como se eles estivessem apenas esperando por algo acontecer e...

As portas se fecharam com um chiado atrás de Killian e uma onda se propagou

pela multidão de espíritos. Um por um, eles se libertaram do que fosse que os tinha

segurado... E todos se viraram para mim. Alguns deles pareciam, talvez, um pouco

irritados. O zelador assustador estava até mesmo estalando os dedos em antecipação.

Levantei-me, surpresa ao encontrar meus joelhos tremendo. Hmmm.

— Vocês têm que passar por mim para chegar a ele — eu disse rapidamente.

Mas... Nenhum vento estranho, nenhum congelamento no lugar.

— Felizmente — o zelador disse, avançando em direção a mim.

Levantei as mãos até meu rosto e dei um grito muito feminino. Embora, se eu

tivesse oportunidade de pensar sobre isso, eu me teria perguntado o que eles me

poderiam fazer. Quer dizer, eu já estava morta.

— O que — uma voz feminina falou revoltada — vvocê está fazendo?

Baixei as mãos lentamente e encontrei-os todos formando uma fila, alguns deles

empurrando e chutando, mas mesmo assim, uma linha comigo na frente. A princesa do

vestido de bolinhas ficou em segundo lugar atrás do zelador e se inclinou para frente

em torno dele para olhar para mim.

130

— Bem... O que vocês estão fazendo? — esta parecia uma questão razoável de

perguntar.

Ela franziu a testa para mim.

— Você prefere que tomemos números?

— Hein?

— Sem dúvida — o zelador disse —, esta é tão estúpida como parece.

— Hey!

— Olha, querida... — o rapaz que eu tinha visto ontem no corredor com Will,

vestido com um uniforme militar azul antiquado, pisou fora da linha. “Guarde o meu

lugar”, disse ele por cima do ombro para um rapaz usando uma gravata curta e grossa

sobre uma camisa branca, antes de ele andar na minha direção. Algumas vaias

emanaram da parte de trás da fila, mas ele ignorou isso com um aceno. — Não estou

passando à frente na fila. Estou apenas tentando ajudá-la. Calem-se todos — ele virou-se para

mim. — Querida, todos nós ouvimos você. Temos que passar por você para chegar até ele — sua

voz tinha matizes de um sotaque nova-iorquino, mas ele parecia familiar...

Ele deve ter me visto tentando lembrar quem ele era, porque ofereceu sua mão

para um aperto de mão.

— Robert Brewster, o primeiro.

Apertei sua mão automaticamente.

— Brewster, como em diretor Brewster?

Se o diretor estava assombrado, isso poderia ajudar a explicar muito do seu

humor fodido.

Ele sorriu.

— Esse é o meu garoto.

— Seu filho?

Ele franziu a testa para mim.

— O meu neto — acenou com uma mão para seu uniforme. — Isto é da

Segunda Guerra Mundial. Você não consegue ver quantos anos... Ah, esqueça. Vocês

jovens não têm nenhum sentido da história — ele balançou a cabeça.

Encolhi os ombros.

131

— Nada disso é meu ponto de qualquer jeito. É o seguinte. Você se ofereceu

para ser seu guia, por isso nos diga como seremos ouvidos.

Encarei-o.

— Eu não... Eu não entendo.

— Eu disse. Estúpida — resmungou o zelador.

— Já chega de você — Brewster disse por cima do ombro e o zelador se calou

imediatamente. Então ele se virou para mim. — Olha, tenho certeza que você é uma

garota muito legal e que você não tem ideia de onde se meteu quando fez aquilo lá

atrás, mas você não está nos deixando nenhuma escolha nem nos ajudando de forma

nenhuma.

— Desculpe? — eu ofereci, ainda não tendo ideia do que ele estava falando.

Ele soltou um suspiro profundo.

— Olha, vamos apenas começar do início.

Alguém na fila gemeu.

— Calem a boca — gritou para eles. Rolou seus olhos para mim. — Tão

impacientes e você não pensaria que já estão mortos, certo?

Eu assenti. Parecia a melhor coisa a fazer.

— Então, aqui está... Nós estamos todos mortos e todos nós temos últimos

pedidos. Você está me acompanhando até agora?

Assenti novamente.

— Talvez haja coisas que nos estão mantendo aqui, nos impedindo de seguir

para a luz.

— Talvez? — eu perguntei.

Ele deu de ombros.

— Nós realmente não sabemos. Estamos adivinhando.

— Ok — eu disse lentamente. Parecia uma coisa meio ruim de adivinhar, mas

enfim. Eu não estava tendo muito mais sucesso.

— De qualquer forma, é muito raro encontrar um entre os vivos que pode nos

ouvir e ver, como o seu garoto Will.

132

— Ele não é o meu garoto — eu protestei e imediatamente senti um súbito

aumento da tensão. Olhei para eles e vi todos eles olhando para mim, como se eu

estivesse à beira de negar algo importante. Diga algo rápido.

— Ok, ele é meu, do jeito ele me ajuda, eu o ajudo — mas não do jeito

namorado/namorada.

Vovô Brewster balançou a cabeça como se não pudesse acreditar no que estava

ouvindo.

— Tanto faz. O ponto é: você o reivindicou como seu. Ele é seu. Então, se nós

queremos que ele faça algo por nós, nós temos que passar por você. Puro e simples.

— Passar por mim como...

— A fila, querida — ele fez um gesto impaciente para os espíritos de pé atrás

dele. — Nós todos vamos aguardar a nossa vez de dizer o que nós precisamos que ele

faça por nós e então você diz a ele — ele balançou a cabeça. — Deus Todo-Poderoso, eu

estou começando a achar que ônibus mexeu com seu cérebro para a eternidade.

— Eu avisei — resmungou o zelador.

— Espere, espere — eu levantei a minha mão. — Eu não compreendo.

— Que choque — disse o zelador, um pouco mais alto.

Troquei a minha atenção para ele.

— Você, vá para o fim da fila.

Sua boca caiu aberta em sinal de protesto.

— Você não pode fazer isso.

— Ela pode e ela acabou de fazer — Brewster apontou. — Mova-se.

Murmurando sob sua respiração, o zelador afundou as mãos nos bolsos e foi

para o fim da linha.

— Nada de chamar nomes feios — eu gritei atrás dele. Depois eu me virei para

o Sr. Brewster. — Então, se eu tenho todo este poder só porque disse que Killian é meu,

porque é que nenhum de vocês o reivindicou ou que seja antes que eu o fizesse?

Um murmúrio baixo cresceu na linha, os espíritos cochichando e falando entre

si de repente.

— O quê? — eu perguntei. — O que é que eu disse?

133

— Nenhum de nós sabia sobre ele, até ontem — Brewster disse, olhando para as

pessoas na linha por cima do ombro. — Ele era muito bom em se esconder entre os

outros.

— Ok, mas você ainda tinha tempo de sobra para...

— Ela merece saber a verdade, Bob — a garota do vestido rosa de bolinhas

falou. Então ela me deu um maldoso sorriso alegre. — Ninguém o reivindicou, porque

ninguém quer ser o que você é agora.

— Liesel — Sr. Brewster disse em um tom de aviso.

Olhei para ela.

— Todo mundo sempre quer ser o que sou. Do que você está falando?

— Você é uma guia espiritual agora. Você está à disposição de todos, mas

especialmente dele, do médium.

De repente, me senti completamente gelada. Balancei minha cabeça.

— Não.

Ela suspirou, impaciente.

— Você tem acordado em lugares estranhos ultimamente?

Olhei para ela. Eu não tinha acordado na estrada desde a manhã de ontem.

Tinha sido perto esta manhã, mas não... Eu acordara dentro do carro de Killian.

— Onde ele está, é aí que você também está, certo? — ela incitou.

— Isso não significa...

— Você se amarrou a ele. Você é sua guia — ela me olhou com um brilho

maldoso de diversão. — Ele já começou a te chamar?

— O quê?

— Se ele pensar muito em você, se concentrar em você, puf! Você será

arrastada para longe de tudo o que estava fazendo, onde quer que fosse, para onde ele

está.

Senti-me um pouco enjoada. Poderia ser verdade?

Liesel olhou para o céu, a mão dela tocando o queixo.

— Qual é a frase que os garotos usam hoje em dia? Ah, sim. Você é sua puta,

sua puta do mundo espiritual — ela riu, encantada de sua própria inteligência.

134

— Ei, Liesel, você está parecendo um pouco mais magra hoje, você não acha? —

eu perguntei. — Um pouco mais transparente do que o habitual?

Seu riso cessou imediatamente e ela olhou para si mesma.

— Não, eu não estou... Estou? Oh, Deus. Eric? Eric, onde você está? — ela

vagou para fora de seu lugar na fila, à procura de alguém para verificar o seu estado de

existência.

— Isso não foi muito agradável — Sr. Brewster falou.

Eu pensei nisso por um segundo.

— Seu cabelo parece... Ótimo, muito saudável — eu gritei atrás dela.

Sr. Brewster me encarou.

Encolhi os ombros.

— Era o melhor que eu podia fazer e ainda ser honesta. Além do mais, ela foi

cruel antes de mim.

Ele abriu a boca, como se para protestar, e em seguida, levantou os ombros.

— É justo.

— Então, o que ela disse é verdade? — eu perguntei.

Ele hesitou tempo suficiente para que eu não precisasse ouvir a sua resposta.

— Esqueça — eu disse com firmeza. — Eu não sou a puta de ninguém, mundo

espiritual ou não.

— Eu certamente não teria colocado as coisas dessa forma — Sr. Brewster disse.

— É muito desrespeitoso, mas...

— Mas nada. Eu não pertenço a Killian.

— Você está negando a conexão? — Sr. Brewster perguntou casualmente.

— Eu... — ocorreu-me que se eu dissesse que sim, eles provavelmente iriam

passar através de mim para entrar na escola e começar a chatear Killian novamente. Ele

seria expulso da escola e em seguida seria trancado em algum hospício e eu ficaria

presa aqui para sempre. Então, novamente, se ele gostasse de ter um espírito-guia, eu

poderia ficar presa aqui de qualquer maneira. Mas ele prometeu me ajudar. A questão

era: eu acredito nele?

— Bem? — a impaciência de Sr. Brewster se mostrou completamente.

135

Olhando de uma perspectiva puramente egoísta... Se eu não ajudasse Killian

com esses caras ele não seria capaz de me ajudar, mesmo se quisesse. Claro, isso não

significa que ele iria me ajudar, mas ele parecia muito disposto a fazê-lo antes e, além

disso, mesmo que ele mudasse de ideia, eu conseguia ser muito persistente. Faz parte

do meu charme.

— Não — eu disse finalmente. — Eu não estou negando isso.

Gemidos surgiram da fila.

— Oh, apenas se acalmem — eu atirei.

— Tudo bem então — Sr. Brewster disse com um suspiro. — Então como você

nos quer? Em uma fila e o primeiro a chegar é primeiro a ser atendido? Por ordem

alfabética?

— Oh, não — disse eu, balançando a cabeça e segurando minhas mãos em

frente de mim na clássica posição para ―PAREM‖. — Só porque eu estou reivindicando

Killian — me recusava a pensar na situação como se fosse ao contrário — não significa

que eu tenho que lidar com vocês.

Isso os calou por um segundo.

— Você vira as costas para sua própria espécie? — vovô Brewster perguntou,

espantado.

— Nenhum de vocês é da minha espécie... Exceto, possivelmente, ela — Inclinei

a cabeça na direção de uma garota loira bonita, com rabo-de-cavalo e uma saia poodle,

batendo seus sapatos41 impacientemente contra a calçada, no meio da fila. — Se ela se

vestisse melhor.

— Alguns de nós já esperamos anos, décadas até, para fazer nosso último

pedido — vovô B. disse. — Você acha que gostamos de estar presos aqui?

Eu fiz uma careta. Agora que ele mencionou isso...

— Não, Provavelmente não.

— Você vai nos negar a nossa única chance de endireitar as coisas? —

perguntou ele. — Pessoas como o Will, os especiais, eles não aparecem muito

frequentemente.

Senti uma pontada de culpa. Ninguém tinha mencionado esta parte do trabalho

de guarda-costas.

41

Do original ‗saddle shoes‘, não sabia como traduzir, mas são uns sapatos baixos e com duas cores, segue a imagem:

http://www.privatelabelfootwear.net/saddleshoes/saddleline_group.jpg

136

— Você nem sabe se ele pode ajudá-lo. Ele disse que não sabe o que faz com

que uma pessoa fique aqui presa e que outra seja puxada para a luz.

— Mas você nem nos vai deixar tentar — vovô Brewster apontou.

— Por que tem sempre que ser eu? — tentei soar petulante ao invés de

reclamona. Confie em mim, há uma pequena, mas muito importante diferença entre os

dois.

— O que você vai fazer em vez disso? — vovô exigiu. — Espiar os vivos? Isso se

torna aborrecimento muito rapidamente.

— Não, eu tenho outras coisas para fazer. Eu tenho uma vida. Uma vida após a

morte.

— Como o quê? — vovô perguntou, divertido. — Derrubar coisas, fazer sons

assustadores e assustar os vivos como o inferno?

— Como você sabia disso? — eu exigi.

— Confie em mim querida, se alguém tem esse olhar vingativo, é você.

— Oh! Obrigado?

— Você sabe, fazer essas travessuras vai te fazer desaparecer mais rápido do

que qualquer coisa outra coisa — aconselhou o vovô.

— Eu sei isso... Agora — me estatelei de volta no banco, nem mesmo tendo o

cuidado de cruzar as pernas apenas para a direita para que a minúscula ondulação de

gordura do lado da minha coxa esquerda não aparecesse. Eu estava muito deprimida.

Tudo isso era deprimente.

— Ajude o seu garoto a nos ajudar — pediu o vovô. — É melhor do que estar

sentada a olhar para a vida. Além disso, ainda vai contar como uma boa ação. Talvez

você só precise de uma grande boa ação para capturar a atenção deles lá em cima,

então, eles vão enviar a luz para você.

Eu olhei para ele.

— Eu pensei que Liesel disse...

Ele acenou isso para longe com a mão, impaciente.

— Não a ouça. Ela se encontrou com um guia espiritual quando estava presa

com Claire de férias em Porto Rico e agora pensa que é uma especialista. Nenhum de

137

nós tinha encontrado um dos ghost-talkers42 antes de ontem. Ninguém sabe como isso

funciona. Tudo o que sabemos se baseia em rumores que se mantêm circulando deste

lado das coisas. Mais o que vemos na televisão — ele deu de ombros. — Você pode ter

uma hipótese de se ajudar a si mesma, garota. Não a desperdice.

Eu suspirei.

— Tudo bem, tudo bem. Eu vou tentar. O que eu tenho que fazer?

42

Vou deixar assim porque a tradução ficou um pouco brega, mas traduzido literalmente é Faladores de Fantasmas,

pessoas que conseguem se comunicar com eles.

138

12

Will Killian

Normalmente, estar preso em uma sala especial minúscula, superaquecida e

raramente usada — com Brewster entrando e saindo a cada dez minutos — teria sido

um pesadelo. Especialmente com vovô Brewster e os outros sabendo quem eu era e o

que eles podiam fazer para chamar minha atenção. Após os primeiros quinze minutos,

eu teria estado escondido debaixo da minha mesa tentando me proteger de seus

empurrões e beliscões e, isso não teria terminado bem com Brewster.

Mas esta manhã... Foi diferente de tudo o que eu já tinha experimentado. Estava

silencioso — na pequena sala a qual eu suspeitava que costumasse ser um armário de

abastecimento pela falta de janelas e pelos buracos na parede, onde as prateleiras

costumavam estar — e eu estava sozinho. Realmente e verdadeiramente sozinho. Nem

sequer um fantasma apareceu para se queixar e gemer ou tentar me enganar para me

fazer falar.

Brewster apareceu no meio da manhã e jogou Marcie para mim. Eu

provavelmente deveria ter estado chateado por ele não a ter devolvido imediatamente,

como era suposto. Mas não havia jeito de que eu usasse Marcie até ter desinfetado

completamente seus fones de ouvido ou até ter comprado novos e, além disso, eu não

precisava da música. Às vezes, o completo e absoluto silêncio em torno de mim

realmente fazia meus ouvidos felizes. Era ótimo. O que quer que fosse que Alona estava

fazendo, estava dando resultado.

E, então, veio o almoço.

A Sra. Piaget apareceu um pouco antes do meio-dia.

— Eu tenho o dever da cafeteria hoje. O Sr. Brewster vai-se reunir com o

superintendente no escritório regional agora, mas ele diz que você pode vir comigo

para conseguir alguma comida. Você tem que voltar aqui para comer, embora... — ela

me deu um sorriso de desculpas.

— Ok — afastei-me da minha mesa, levantei-me e me estiquei. Era bom ser

capaz de sentar-me sossegado e me concentrar no que eu deveria estar fazendo em vez

de desperdiçar tanta energia bloqueando tudo à minha volta.

139

— Você parece melhor hoje — disse a Sra. Piaget quando me juntei a ela no

corredor principal.

— Não ser expulso realmente combina comigo.

— Eu posso ver isso — ela disse com um riso surpreso.

Segui-a pelo corredor para a cafeteria. Joonie — com a sua mochila velha

surrada amarrada em todo o seu peito — esperava do lado de fora das portas, perto do

início da linha de servir. Ela se endireitou quando me viu, mas o olhar dela deslizou

para a Sra. Piaget e ela não se aproximou.

A Sra. Piaget hesitou e então se virou para mim.

— Lembre-se, pegue alguma comida e depois volte para a sala. Não lhe dê

nenhuma desculpa — não havia necessidade de especificar o "lhe" nesta situação, eu

acho.

Assenti.

— Obrigada.

A Sra. Piaget desapareceu através das portas da cafeteria e eu me aproximei de

Joonie. Ao chegar perto, eu pude ver que algo estava claramente errado. Sombras roxas

de cansaço pareciam hematomas sob os olhos dela, listras escuras de maquiagem

manchavam seu rosto e um dos buracos em seu lábio estava vazio e com um pouco de

sangue seco.

Resisti à vontade de tocar meu próprio lábio em simpatia reflexiva.

— O que está acontecendo? Você está...

Do fundo do corredor, um grupo de desordeiros calouros se aproximava de

nós. Joonie agarrou meu braço e puxou-me para a cafeteria, para o lado.

— Eles vão deixá-la morrer.

Quem, a palavra chegou à ponta da minha língua, mas eu calei a boca a tempo.

Eu sabia quem era, é claro.

— Do que você está falando?

Ela brincava com a alça da bolsa dela, retorcendo um dos botões que ela tinha

prendido lá. Este dizia: Vamos apenas dizer que eu tenho um problema com autoridade. Foi

um presente de Lily no ano passado, antes de tudo ficar ruim.

— Fui visitar Lily depois da escola ontem e ouviu algumas das enfermeiras

conversando — ela mudou seu peso para trás e para frente, andando sem dar sequer

140

um passo. — É sobre o seguro de seus pais ou algo assim. Eles vão tirar o tubo de

alimentação e deixá-la morrer de fome... — sua respiração ficou presa em sua garganta

e ela teve que parar, sufocando com a emoção. — Ou eles vão levá-la embora, pô-la em

alguma instituição mais permanente em Indiana.

Dei um passo involuntário para trás, suas palavras vieram do nada como uma

tapa. Eu sabia que, em algum momento, este dia chegaria. Eu só não tinha percebido

que seria hoje.

Seus olhos se encheram de lágrimas.

— O que vamos fazer?

Joonie e eu tínhamos visitado Lily desde o primeiro dia em que foi permitido.

Eu tocara sua mão, vira os olhos dela. Ela tinha ido. A essência de tudo o que fazia Lily

ser Lily tinha ido embora há muito tempo. Ela não tinha ficado por aqui tempo

suficiente para sequer assombrar seu quarto de hospital. Ou o lugar onde ocorrera o

acidente de carro. Eu tinha verificado. Só para ter certeza. Assim, não havia mais nada a

fazer.

— Joonie, nós não podemos — eu tentei.

— Você não entende. Para começo de conversa, a culpa é minha que ela esteja lá

— lágrimas escorriam pelas suas bochechas e ela não se preocupou em limpá-las. —

Ora, porque vocês brigaram meses antes que ela parasse de falar conosco?

Eu achei que Joonie e Lily resolveriam as coisas e, não pensei muito sobre isso.

Até Joonie e eu chegarmos para o primeiro dia de nosso último ano — penúltimo ano

de Lily — e vermos como Lily — vestida com uma saia curta e cambaleando em saltos

altos — se juntou à margem da classe júnior de elite. Ela passou por nós como se não

nos conhecesse, com o nariz empinado. Duas semanas e meia mais tarde, ela perdeu o

controle do carro de sua mãe e bateu contra uma árvore.

Eu balancei minha cabeça.

— J, não faça isso com você mesma. Você tentou pedir desculpas pelo que quer

que tenha acontecido e ela não quis ouvir. Ela optou por sair com essas pessoas e ela

escolheu ir a essa festa. Nós não temos nada a ver com isso.

Enquanto eu o dizia, percebi que era verdade. Talvez eu pudesse ter mudado as

coisas, talvez eu pudesse ter salvado a vida dela se tivesse ouvido o meu telefone

naquela noite. Mas foi ela quem escolheu deixar de ser nossa amiga. Tudo que eu fiz foi

perder uma chamada telefônica de alguém que não tinha falado comigo durante meses.

Ela nem sequer tinha deixado uma mensagem.

141

Eu me senti mais leve, de repente. Aliviado de alguma forma. Eu ainda teria

dado qualquer coisa para ver Lily inteira e saudável novamente, mesmo que ela não

quisesse ser minha amiga. O fato de que eu não podia, porém, não era minha culpa. Foi

a combinação de uma centena de elementos, sobre os quais apenas um — responder ao

meu telefone — eu tinha controle.

No entanto, minhas palavras não tiveram o mesmo efeito sobre Joonie.

— Você não entende — disse ela sem emoção, os olhos fixos em algum ponto

invisível na distância.

Eu peguei-a pelos ombros e sacudi suavemente.

— Você tem que parar. Isto não foi sua...

Foi nesse exato momento que vi Alona no palco, rodeada por cada pessoa

morta que eu já tinha visto assombrando os corredores de Groundsboro High e eu

soube que estava em apuros.

Primeiro, se você está se perguntando por que a nossa cafeteria tem um palco, é

pela mesma razão que temos mesas de cafeteria em diferentes níveis. A nossa cafetaria

funciona como um auditório, que algum gênio apelidou de ―cafetorio‖. À medida que

você sai da linha do almoço, você fica no mesmo nível que o palco, mas do lado oposto

a ele. Em seguida, existem as escadas que te levam até os vários níveis de mesas. O

grupo de Alona — a tão chamada de primeira linha — fica, ironicamente, no nível mais

baixo, que serve como o fosso da orquestra quando o clube de teatro decide abandonar

seus teatros angustiados e apocalípticos, escritos pelos alunos e opta pelo raro musical

alegre. É o mais distante da supervisão dos professores, portanto, não é surpreendente

que eles o tenham escolhido. De lá, o nível da popularidade diminui à medida que se

sobe. Joonie, Erickson e eu comemos no pátio envidraçado quando está agradável o

suficiente para isso, o que nos coloca totalmente fora do mapa no que se refere à

popularidade. O que é ótimo por mim.

Mas o palco... O palco era o santo graal para a multidão de primeira linha.

Claramente, era uma posição que eles achavam que devia ser deles, situado logo acima

da repugnante multidão normal, mas esse era um benefício que lhes fora negado. Desde

que algum garoto — sem dúvida alguém da primeira linha — quebrou a perna saltando

para fora do palco há alguns anos atrás, ninguém está autorizado a estar lá durante o

almoço, exceto os membros do clube de teatro e, só se eles estiverem se preparando

para uma produção.

Este inverno todos ficaram excitados quando eles pintaram os cenários para a

sua produção de Primavera: Morte e Sundaes. Eu não tenho ideia do que se tratava, mas

envolveu um monte de cenários pretos e vermelhos e queixas das garotas da primeira

linha quando os respingos ocasionais voavam sua direção.

142

Então, realmente, eu acho que não deveria ter sido uma surpresa que Alona

tenha se aproveitado de seu estatuto de invisível para quase todo mundo e reivindicar o

palco para si mesma. Ainda assim, foi mais do que um pouco chocante encontrá-la

sentada em um banco atrás de um balcão do que parecia ser uma lanchonete de 1950 —

outra parte do cenário... Não pergunte, não tenho ideia de como se relaciona com a

morte ou sundaes — escrevendo o que pareciam ser anotações enquanto os fantasmas

esperavam pacientemente em uma fila longa e sinuosa pela sua vez de falar com ela

individualmente.

— Que diabos? — eu murmurei.

Joonie voltou à realidade o suficiente para me olhar, realmente me olhar.

— Você está bem? — ela descansou seus dedos frios no meu braço. — Parece

que você viu um fant...

Eu não esperei para ouvir o resto. Afastando-me de seu suave aperto no meu

braço, eu me dirigi para as escadas, indo em direção ao palco. Eu não vou ser

melodramático e dizer que todo o cafetório percebeu e segurou a respiração de forma

coletiva, mas eu vi cabeças girando. Afinal, eu não tinha passado da terceira camada

desde que entrei aqui quase quatro anos atrás. Isto era apenas como pedir a um dos

atletas da primeira ou da segunda camada para te bater — uma luta que você também

seria responsabilizado por ter começado.

— Will, o que você está fazendo? — o sussurro alto de Joonie me seguiu ao

descer as escadas, mas eu não me voltei.

No entanto, assim que o meu pé pousou sobre o tapete da primeira camada,

uma onda de ruído e movimento se espalhou pela sala, as pessoas voltando-se para

sussurrar e observar. As conversas normais foram morrendo até que tudo ficou tão

silencioso que eu podia jurar que ouvi o farfalhar das fibras do tapete debaixo dos meus

sapatos quando eu dei meus primeiros passos.

O grupo de Alona no começo não fez nada, exceto me encarar. Afinal, este era o

seu santuário. Ninguém conscientemente ousou invadí-lo e aqueles que acabavam aqui

por algum tipo de acidente ou mal-entendido — garoto novo, garoto nerd sob a ilusão

de que o fato de Misty ter pedido para copiar seu teste de química ele seria autorizado a

reconhecer sua existência; o ocasional tolo utópico que pensava que as pessoas

populares "são apenas pessoas também‖ — e etc. Normalmente quebravam

rapidamente sob o peso de um olhar desagradável de tantos rostos perfeitos e fugiam.

Mas não eu, oh, eu não.

Fiquei longe dos amigos de Alona e me aproximei da mesa das elites da classe

júnior — a segunda mesa encostada ao palco. Eles ainda achavam que eram melhores

143

do que eu, mas hesitariam em começar uma luta, esperando os sêniores reagirem

primeiro.

Quando perto o suficiente, eu puxei o celular do meu bolso...

— O que você está fazendo aí? — eu perguntei, tentando soar casual. — Quem

são os seus novos amigos?

No início, eu não achava que ia funcionar. Como Alona ia me ouvir e, além

disso, saber que eu estava falando com ela? Neste caso específico, porém, o silêncio total

que acompanhou a minha abordagem em território proibido realmente me beneficiou.

— Will?

Eu ouvi sua voz, mas não ousei olhar para o palco. Neste ângulo, eu pareceria

louco, olhando para o nada. Bem, mais louco ainda.

Segundos depois, seus sapatos brancos de ginástica apareceram e ela se

ajoelhou, seus cabelos loiros balançando sobre os ombros, liberando esse aroma

familiar, doce e perfumado.

— O que você fazendo aqui? — ela parecia perplexa. — Você vai se matar.

— O que estou fazendo? O que você está fazendo? — eu perguntei com os

dentes cerrados. —Você tem metade do cemitério de Groundsboro aí em cima com

você.

Ela olhou por cima do ombro, como se não tivesse tido conhecimento desse

fato, até que eu falei.

— Sim, bem, eles continuam aparecendo. Eu acho que alguém está distribuindo

panfletos ou algo assim — ela riu.

— Oh, ha, ha. Muito engraçado. O que você está fazendo lá em cima?

Ela encolheu os ombros.

— Tomando notas. Como sua guia espiritual, é meu trabalho.

— Como a minha o quê? — desta vez, eu não pude evitar olhar para ela.

Ela revirou os olhos.

— Sua guia espiritual. Você sabe, alguém que te ajuda a trabalhar com os

espíritos — ela fez uma pausa pensativa. — Eu sou meio que a sua manager.

— Minha o quê? — eu disse fracamente. Eu parecia não conseguir parar de me

repetir.

144

— Manager. Você sabe, tipo você é o talento e eu sou aquela que te junta com as

pessoas que precisam de você. Além disso, mantém-nos sossegados — ela sacudiu a

cabeça para os fantasmas atrás dela — Acho que alguém está ouvindo e me dando a

chance de fazer algo bom, certo? — ela mudou ligeiramente para olhar para alguém ou

alguma coisa sobre o meu ombro direito.

— Mas eu... — eu não sabia nem por onde começar.

— Ah, cuidado. Nove horas. Você está prestes a ser socado — ela virou a cabeça

e me deu um sorriso radiante. — Veja, já estou sendo útil.

Comecei a virar para esquerda, mas virei para direita — lembrando a

dificuldade anterior de Alona com o conceito de relógio quando estava de frente para

mim — para as três horas, encontrando Chris Zebrowski e Ben Rogers se aproximando.

— Se você sair daqui agora, eles provavelmente vão te deixar sozinho — Alona

se levantou.

— Espere —- eu disse.

— Não posso. Você vê o quão longa está a fila? — ela revirou os olhos com um

suspiro. — Eu vou estar aqui todo o dia — ela balançou a cabeça e começou a voltar

para a sua posição no balcão.

— Alona — eu sussurrei tão alto como ousei. Nada como gritar o nome de uma

líder de torcida morta no meio da cafeteria para fazer as pessoas encararem você. Não

que eu precisasse de ajuda.

— E aí, Will Kill? Está perdido? — a voz oleosa de Ben Rogers veio detrás de

mim.

Virei-me para encontrar a ele e a Chris atrás de mim. Estavam prontos para

brigar. Ben estava com as mãos nos bolsos, uma enganosa pose relaxada, mas a tensão

percorria seus ombros. Ele podia ser um filho da mãe rico e preguiçoso, mas ele não

fugia de uma briga. Ao lado dele, Chris — o ex de Alona — não tentou fingir de modo

nenhum que isto era outra coisa que não uma luta. Ele era um cara mais baixo e largo

com anos de experiência na equipe de luta livre e, estava lá, com as pernas afastadas e

punhos rígidos.

— Anormais não são permitidos no primeiro nível — acrescentou Chris.

Eu levantei minhas mãos para a posição de ―não atire‖, meus dedos ao redor de

meu celular.

— Nenhum problema aqui, pessoal. Apenas tinha que fazer uma chamada, e

precisava de uma melhor recepção. Estou saindo — por muito que eu odiasse suas

145

bundas privilegiadas, eu não estava prestes a iniciar uma luta em seu território. Eu seria

responsabilizado por ela e eu iria perder. Dois contra um não era justo. Dezesseis contra

um — como iria acabar por ser quando todas as ovelhas saltassem para seguir seus

líderes — seria um banho de sangue.

Comecei a andar ao redor deles, em direção às escadas, mas não cheguei muito

longe. Um tufo pequeno de fumo negro apareceu do nada no centro do corredor sobre

os degraus da segunda camada. Parecia o escape de um carro queimando óleo. Eu

parei, meu coração batendo forte com pavor. Quase que instantaneamente — como se

estivesse esperando que eu o visse — o pequeno tufo de fumo cresceu para uma massa

rolante e ardente de vapor preto.

— Hum, Killian? Massa Sombria ao meio-dia — Alona disse por trás de mim, a

tensão fluindo através de sua voz.

Pela primeira vez ela acertou com o relógio.

— Sim, eu vejo — eu disse tenso.

Ouvi-a descer do palco, o aterrar levemente no chão atrás de mim.

— Então qual é o plano? — sua voz tremeu um pouco e, mesmo assim ela ainda

estava lá comigo.

— Eu não sei.

— Você não sabe o quê, Will Kill? — Ben caminhou até ficar na minha frente.

Ele sorriu, mostrando os dentes um pouco demais. Chris seguiu, batendo com o punho

na palma da sua outra mão em uma utilização bastante eficaz de um cliché.

Porra, eu tinha esquecido deles.

Todo mundo na cafeteria estava assistindo, esperando ver o que aconteceria em

seguida. Joonie, no topo do corredor central, parecia estar rezando, com as mãos

dobradas de forma segura dentro de sua bolsa. Seus olhos semifechados e os lábios

movendo-se silenciosamente.

Então a Massa Sombria, como Alona aparentemente a apelidou, veio para

frente, de repente, dirigindo-se para nós em uma corrida.

— Alona, saia daqui agora — eu disse de forma acentuada e sem pensar. A

parte do sem pensar acabou por ser bastante importante.

— O que você disse? — Chris exigiu.

Ah, merda.

146

Vinte minutos depois, eu me sentava no gabinete da enfermeira com um bloco

de gelo contra o lado esquerdo do meu rosto. Ok, então, lições aprendidas: em primeiro

lugar: conversar com a namorada morta de um cara na frente dele, mesmo quando ele

já se mudou para pastagens mais verdes, é um grande erro. Em segundo lugar: a

entidade, uma vez conhecida como meu pai, agora conhecida como Massa Sombria, não

gostava de concorrência. Ele desapareceu, graças a Deus, no momento em que Chris me

bateu. Em terceiro lugar: Alona Dare pode ser a minha guia espiritual, ou o que seja,

mas a Sra. Piaget é o meu anjo da guarda. Ela fez o Sr. Gerry separar a briga e continua

firme na sua convicção de que o Chris foi o primeiro a fazer um movimento violento.

Eu ganhei outra detenção, mas eu podia viver com isso.

Recostei-me na desconfortável cadeira de plástico no gabinete da enfermeira,

estremecendo devido à recente dor em minhas costelas e apertei o saco de cubos de gelo

com mais força contra o meu rosto que estava a inchar. A cadeira ao meu lado sacudiu e

balançou, enviando pequenos choques de dor na minha lateral.

— Qual é o seu problema? — eu disse a Alona, que não conseguia ficar quieta,

passando de uma posição para outra. No momento estávamos, felizmente, sozinhos.

Julgando que não seria sensato juntar Chris e eu em um quarto tão pequeno, a

enfermeira Ryerson tinha saído para cuidar dele. Sim, eu consegui dar um golpe ou

dois. Ensanguentei seu nariz, pelo menos.

Ela mexeu os pés no chão e olhou para eles por um longo tempo antes de olhar

para mim.

— Você me defendeu. Por que você faria isso?

— Isso é o que está incomodando você? — eu perguntei. — Tecnicamente, eu só

estava me defendendo dos punhos da fúria do seu namorado — abri minha boca e mexi

meu queixo experimentalmente. Porra, os caras de luta livre realmente sabiam usar os

punhos, talvez, até mais do que os jogadores de futebol que tinham brigado comigo em

meus anos mais jovens.

Ela balançou a cabeça com um barulho impaciente.

— Não dele. Embora... — um leve sorriso apareceu em seu rosto — Deve ter

deixado Misty realmente puta ver vocês dois brigando por mim.

Revirei os olhos.

— Nós não estávamos brigando por causa.

— Além disso, boa jogada ao gritar o meu nome no meio da cafeteria — ela

bateu no meu ombro com força e a sensação viajou para as minhas costelas, fazendo-me

147

gemer de dor. — Mas o que eu quis dizer foi você tentando me proteger da Massa

Sombria.

— Oh.

— Você só estava protegendo a sua própria bunda, certo? Quero dizer, eu sou a

sua guia espiritual agora e você provavelmente ama a ideia de poder me controlar

demais para abandoná-la tão cedo.

As palavras soaram como algo que ela diria... A arrogância perversa delas, mas

por trás disso, eu podia ouvir a pergunta que ela não estava fazendo, a vulnerabilidade

que ela estava tentando esconder. Nunca ninguém a tinha defendido em sua vida,

exceto quando isso os beneficiava? É verdade, ela não parecia precisar de muita

proteção, mas todo mundo quer sentir que alguém está cuidando deles.

Ela tinha sua cabeça inclinada para baixo, fingindo examinar as unhas. A

cortina brilhante do seu cabelo escondia o seu rosto de mim. Era o momento perfeito

para dizer algo elegante, algo que a convenceria... Mesmo que ela me deixasse maluco

às vezes, eu admirava a sua força — ainda mais agora que eu conhecia um pouco do

que ela deve ter vivido para obtê-la.

— Hm... — o meu coração bateu mais rápido na parte de trás da minha

garganta e as palavras, quaisquer palavras, pareciam ter desaparecido do meu cérebro.

Ela fez um som de nojo.

— Não se preocupe. Esqueça isso — ela ajeitou o cabelo para trás sobre seu

ombro.

— Hey! — eu protestei. — Você tem que me dar pelo menos me uma chance

para...

A porta do gabinete da enfermeira abriu e Joonie enfiou a cabeça dentro,

olhando ao redor. Não demorou muito. O escritório consistia em uma pequena mesa,

duas cadeiras e uma cama. A outra porta na sala levava a um banheiro microscópico.

— Você está sozinho? — ela sussurrou.

Alona revirou os olhos.

— Sim — eu disse.

Joonie franziu o cenho para mim e entrou na sala.

— Então, com quem você estava falando? — ela pousou a sua mochila no chão

em frente à cadeira ao lado da minha, mesmo em cima dos pés de Alona.

Alona ganiu.

148

— Cuidado, aberração.

— Ninguém. Eu não estava falando com ninguém. É legal que você tenha vindo

— encarei Alona.

— Tudo bem. Tudo bem — Alona resmungou. — Ela é uma boa amiga. Blá, blá,

blá.

— Olá? Killian? — Joonie acenou com a mão na frente do meu rosto. — Eu

estou aqui — ela se moveu para sentar na cadeira de Alona e Alona fugiu de lá para

evitar que Joonie sentasse em cima dela. — Você está bem? — o olhar de Joonie era

intenso demais e tive que afastar o olhar.

— Eu estou bem.

— Eu só vi você andar em território de primeira linha para atender uma porra

de um telefonema falso. Ontem você teve uma convulsão no corredor.

Afastei suas palavras com um aceno.

— Eu estou bem, ok? — pelo canto do meu olho, eu peguei Alona franzindo o

cenho para alguma coisa no chão.

— Não, não está bem — Joonie brincava com os anéis de prata em sua orelha.

— Você está agindo completamente bizarro, mesmo para você e, eu não posso me

preocupar tanto assim com você e Lily, ok? Não há o bastante de mim — ela me deu um

sorriso trêmulo. — Então, me diga o que está acontecendo.

Alona se ajoelhou no chão perto dos pés de Joonie, sua cabeça inclinada para

um lado.

— Veja isto — ela sussurrou, de forma completamente desnecessária. Em

seguida, usando o efeito de minha presença ao seu redor, ela puxou o topo da mochila

esfarrapada de Joonie. O canto de uma placa de madeira lisa, decorada com números e

letras, foi aparecendo. Parecia familiar, mas eu não conseguia dizer o que era até...

Pulei do meu assento.

— Jesus, Joonie, isso é um tabuleiro Ouija? — sim, era apenas um jogo

assustador, mas inofensivo para garotos... A menos que você brincasse com um em

torno de alguém como eu.

Joonie parou. A boca entreaberta no meio de uma palavra e olhou para mim e,

em seguida, com culpa para o chão. Seu rosto ficou vermelho e depois empalideceu.

— Eu tenho que ir.

Ela se levantou e puxou sua bolsa do chão antes de fugir da sala.

149

— Joonie, espere — eu disse.

Ela não respondeu, nem parou e a porta do escritório da enfermeira se fechou

atrás dela.

Virei-me para Alona, que agora se inclinava para trás contra a mesa da

enfermeira, os braços cruzados sobre peito e um olhar complacente no rosto.

— Como você faz isso? Como você sabia que estava lá?

Alona encolheu os ombros.

— Eu estou morta. Eu sei de tudo agora. Por exemplo, como você procura um

tempinho pessoal cada manhã antes de...

— Pare — eu disse cortante, tentando fingir que o meu rosto não estava ficando

vermelho. — A morte não faz de você, ou qualquer outra pessoa, onisciente — o que

significava que ela era uma adivinhadora assustadoramente boa ou eu era

chocantemente previsível. — Tente novamente.

— Você não é divertido — suspirou. — A ponta do tabuleiro apareceu por um

segundo, quando ela largou sua bolsa estúpida e feia em cima de mim. Levei um

segundo para reconhecer o que era — ela deu de ombros. — Qual é o grande problema

de qualquer maneira? Além de ser uma prova total de sua esquisitice que ela ande com

essa coisa por aí.

Eu balancei minha cabeça.

— É mais do que isso.

— Você não acha que a coisa realmente funciona... Né? — ela arqueou uma

sobrancelha para mim.

— Em torno de mim, funciona.

— Certo.

— Estou falando sério — baixei o saco de gelo do meu rosto para que eu

pudesse vê-la mais claramente. — Para pessoas normais, não é grande coisa, mas para

mim... — parei. — Ok, imagine que você está tentando fazer uma chamada para alguém

em outro país, mas você não tem um telefone.

— Eu sou estúpida nesse exemplo? Como você faz uma chamada sem um

telefone?

— Cale a boca por um segundo. Estou tentando explicar — respirei fundo. —

Você quer fazer a chamada, você está concentrando todos seus esforços em comunicar,

mas sem um telefone, nada acontece.

150

— Duh — ela murmurou.

Eu ignorei.

— Dê a alguém um tabuleiro de Ouija e você tem um telefone, mas nenhuma

recepção no telefone.

Ela assentiu com a cabeça.

— Use um tabuleiro de Ouija em torno de mim e, de repente, você tem um

telefone com um pacote mega potente de recepção. Mas em vez de apenas mandar

vozes, é como abrir uma porta entre os dois lugares. O tabuleiro de Ouija funciona

como um foco, ajuda a concentrar e enviar a sua energia, mas não pode ir lugar nenhum

sem mim. Eu, o que seja que eu sou, dou-lhe alimentação e um lugar para ir, um

conduto para viajar. Lembre-se, eu estou preso no meio tal como você, mas eu posso

interagir com ambos os lados. Energia em ambos os lados é apenas energia até que ela

me encontra e aí essa energia passa a ter peso e substância e forma... — uma gota de

água gelada vazou do saco e correu por toda a minha mão e tremi devido a mais do que

só o frio.

— Então, Joonie chama um casal de parentes mortos para vir através da porta

para um bate-papo — ela encolheu os ombros. — Qual é o problema?

— Não — eu disse com firmeza. — As pessoas que se foram, realmente se

foram, não podem ser alcançadas. E tentar fazê-lo desta forma... Você nunca sabe o que

receberá. Só porque você está ligando para uma pessoa em particular, por assim dizer,

não significa que vai ser essa a pessoa que responde.

Ela franziu o cenho.

Eu suspirei.

— É como se o telefone estivesse tocando e qualquer um que passasse pudesse

pegá-lo. E alguns dos que estão presos no meio não são pessoas com quem você quer

mexer — às vezes as pessoas são loucas antes de morrer. Às vezes, morrer as tornava

loucas... Ou mais loucas. Vovô B., Liesel e o resto deles, eram irritantes às vezes, mas

não particularmente prejudiciais. Esse não era um caso como os outros que eu tinha

visto e tido o cuidado de evitar.

Ela me deu um olhar arrasador.

— Eu percebo o que você está dizendo. Não sou idiota — ela fez uma pausa,

levantando uma mão para a boca para mordiscar a unha do polegar antes de perceber o

que tinha feito e afastar a mão. — Eu estava apenas me perguntando... Quantas vezes

você já viu a Massa Sombria? Quero dizer... Você sabe quem.

151

— Sim, eu sei — eu disse secamente — Dez, doze vezes, talvez.

— O que faz você pensar que é... O seu pai?

Deixei escapar uma respiração lenta, levantando o saco de gelo aguado para o

meu rosto.

— Porque eu vi alguns suicídios e eles, tipo assim, não estão inteiros — dei-lhe

um olhar de esguelha. — Foi assim que eu soube que você não tinha se machucado

intencionalmente, não importa o que Leanne Whitaker está dizendo.

— Cadela — Alona murmurou.

— O que você estava fazendo nesse dia, afinal? — eu perguntei.

Ela levantou uma sobrancelha para mim.

— A minha pergunta está em primeiro lugar. Porque você acha que ele é seu

pai?

Eu a encarei por um longo segundo e ela encontrou o meu olhar de forma

constante. Abri minha boca para lhe dizer para esquecer esse assunto, mas em vez

disso, a história da minha última manhã com meu pai saiu. Era a primeira vez que eu

contava a alguém, exceto o Dr. Miller e Joonie e, eu lamentei mesmo enquanto falava.

Mas Alona apenas balançou a cabeça, pensativa.

— Isso ainda não explica por que você acha que é ele, porém. Certamente

existem outras pessoas que já... — ela fez uma careta.

Com um suspiro, eu continuei.

— Essa coisa... Ele parece especialmente focado em mim. Sempre que ele

aparece, ele vem em linha reta atrás de mim — ergui um ombro, estremecendo pela dor

em minhas costelas. — Ele é o único suicídio que eu conheço pessoalmente.

— Eles são todos assim? — ela pressionou. — Grandes nuvens negras de

fumaça ou o que seja?

— Não, eu nunca vi um como esse antes. Ele tem... Mais ondas de emoção do

que qualquer outra coisa. Mas eu já vi muitas coisas diferentes ao longo dos anos.

Aonde você quer chegar? — eu perguntei impacientemente.

— Seu pai morreu, tipo, três anos atrás, certo? Isso é o que você disse — ela me

encarou, me desafiando a desafiá-la.

— Sim, e daí?

— Quando você começou a ver A Massa?

152

De repente, eu não gostei da direção em que isto estava indo.

— Isso não significa nada. Às vezes leva um tempo para os espíritos

encontrarem o seu caminho.

— Quando? — ela chutou minha canela levemente.

Abaixei-me e esfreguei minha perna com a minha mão livre.

— Não sei, cerca de oito ou nove meses atrás, eu acho.

Na verdade, eu sabia exatamente quando o vira pela primeira vez. Tinha sido

na primeira noite em que os médicos permitiriam que Joonie e eu visitássemos Lily

após o acidente dela. Minha mãe tinha vindo com a gente. E depois que eu vi Lily e o

que o meu dom tinha causado indiretamente, foi quando eu percebi que não podia

ficar.

— Logo depois que eu disse à minha mãe que ia embora após a graduação. Ela

fugiu do hospital em lágrimas. Isso provavelmente tinha sido mais do que suficiente

para chamar meu pai de onde ele tinha estado. Eu prometi cuidar da minha mãe, foi a

última coisa que eu disse ao meu pai.

— Então você está dizendo que seu pai sabia que você era um ghost-talker e

apenas ficou por aí à espera, durante três anos, de que você fizesse algo para irritá-lo

antes que ele tentasse falar com você... Ou te matar, conforme pode acontecer?

Quando ela colocava dessa forma soava ridículo, mas Alona não sabia como as

coisas funcionavam. Inferno, às vezes nem eu sabia como elas funcionavam. Além

disso, quem mais, ou o que mais, podia ser?

— Você alguma vez o vê quando Joonie não está por perto? — Alona perguntou

baixinho.

Eu congelei. Contra a minha vontade, minha mente reproduziu todos os meus

encontros com o fantasma irritado e em todos eles, com certeza, Joonie estava por perto,

se não em pé ao meu lado.

— Não — eu disse com firmeza. —Não é possível.

— Por que não? — Alona levantou-se. — Porque ela é sua amiga? Você não a

viu na cafeteria hoje?

Eu não tinha percebido que Alona tinha notado também. Joonie podia ter

estado a rezar, como eu pensava. Ou talvez ela estivesse tentando se concentrar no

tabuleiro de Ouija em sua bolsa... Não. Eu balancei minha cabeça. Eu não permitiria que

o preconceito de Alona manchasse meus pensamentos.

153

— E eu não quero nem mesmo falar na estranheza que presenciei dela em seu

quarto ontem. Ela está, tipo, apaixonada por você ou alguma coisa, mas... — Alona

franziu o cenho. — Não, não é bem isso, também. Algo está muito errado com essa

garota.

— Pare com isso — eu respondi. — Você não a conhece. Você não sabe nada do

que nós passamos no ano passado.

— Oh, o quê, a misteriosa Lily? — ela dobrou os braços sobre o peito. — Por

que você não me conta? Eu pedi várias vezes.

Balancei minha cabeça.

— Isso não importa. Joonie não tem ideia do que eu posso fazer, então, ela

nunca pensaria no que você está sugerindo. Sem dizer que não há nenhuma razão,

mesmo que ela soubesse. Ela não quer me machucar. Ela é minha amiga.

Alona caiu no assento ao meu lado e se virou para me encarar, dobrando as

pernas embaixo dela.

— Então por que — ela perguntou baixinho — ela fugiu quando você lhe

perguntou sobre um jogo de tabuleiro estúpido sua mochila?

Golpe direto. Quando eu tinha duvidado da inteligência de Alona Dare?

— Ela provavelmente estava apenas constrangida — eu insisti. Mas eu tinha

visto o olhar no rosto de Joonie há poucos minutos atrás. Se não era culpa, era um

primo próximo.

— Uh-huh — ela ajeitou o cabelo para trás sobre seus ombros. — Posso ser

bonita, mas não sou estúpida. Ela está escondendo alguma coisa.

— Não é... — de repente, lembrei-me da mudança de intensidade de Joonie, ao

mudar rapidamente de se preocupar com Lily para me fazer perguntas. O que foi

aquilo?

— Eu podia segui-la, estou invisível esses dias — Alona se virou em seu assento

de novo, esticando suas longas pernas para fora na frente dela e eu me encontrei

encarando.

— Ei, meu rosto está aqui — ela estalou os dedos na minha frente e eu desviei

meu olhar para cima.

— Você não tem que segui-la — disse eu. — É Sexta-feira. Eu sei exatamente

aonde ela vai depois da escola — de jeito nenhum Joonie ia perder uma visita a Lily,

não depois do que ela me disse hoje.

154

— Então vamos também ou o quê? — Alona tirou um pedaço de… Fibra

fantasma de seus shorts?

Eu fiz uma careta.

— Eu tenho detenção após a escola — pensei sobre isso. — Na verdade, eu

tenho detenção hoje e segunda-feira. Não posso me dar ao luxo de faltar.

Ela se animou.

— Ah, bom! Então, você vai ter algum tempo para fazer um pouco de trabalho.

Sirenes de alarme soaram na minha cabeça.

— Do que você está falando?

Ela levantou a bainha da sua blusa, revelando pele bronzeada suave sobre a

barriga apertada, seu umbigo um pequeno botão na superfície tensa — ser líder de

torcida faz bem ao corpo — e tocou na cintura de seus shorts para tirar uma pilha de

pequenos pedaços perfeitamente dobrados de papel.

— Desculpa — disse ela. — Não tenho bolsos.

Pigarreei.

— Sem problema.

Ela me entregou os papéis e eu os peguei — ainda quentes de sua pele — e os

desdobrei. O papel do topo dizia: Rua Brewster. Quer o perdão do filho por ser homofóbico

em relação a ele e que seu neto se reconcilie com seu pai. Anônimo. — Cartas?

Levantando a primeira folha e a colocando de lado, eu li a segunda, ou comecei

a ler, de qualquer maneira. Liesel Marks e Eric... Olhei para Alona. — O que é tudo isto?

— O que parece? Encontrei-me com todos os seus espíritos e anotei o que eles

queriam — ela sacudiu seu cabelo para longe de seus olhos. — Ei, você sabe que se você

morrer ou transitar, ou que seja, com alguma coisa você ficar com essa coisa? Graças a

Deus que uma menina morreu com uma caneta e caderno em sua bolsa ou eu teria que

lembrar tudo isso — inclinando-se mais perto de mim, ela apontou para os papéis. —

Eu até negociei por você e consegui excluir as visitas ou telefonemas — ela recostou-se

na cadeira com um encolher de ombros. — Basicamente, tudo que você tem a fazer é

escrever algumas cartas, encontrar alguns itens perdidos. Esse tipo de coisa.

— Não — eu disse categoricamente.

Ela se virou na cadeira para me encarar, o cabelo dela bateu-me nos olhos

quando ela se virou.

155

— Você está brincando? Passei a manhã inteira fazendo isso.

Baixei a bolsa de gelo e olhei para ela.

— Oh, pô, me desculpe. O que você vai fazer com o resto da eternidade?

Ela respirou fundo, abriu a boca... E depois parou. Segurando as mãos na sua

frente, ela inspirou e expirou lentamente.

— O que você está fazendo, meditando?

— Não, eu estou tentando me acalmar para não chutar seu traseiro — disse ela

com os dentes cerrados.

Eu engoli um suspiro.

— Eu aprecio o que você tentou fazer, realmente, e você me ajudou por mantê-

los ocupados, mas...

— Escute, eu também não estava bem com isso no início — ela colocou o cabelo

atrás das orelhas. — Quero dizer, sério, quem sou eu para ser a sua garota mensageira?

— ela revirou os olhos. — Mas se você apenas ouvir o que eles estão pedindo, não é...

— Eu não estou entrando nisso de novo — ergui as mãos, papéis em uma e saco

de gelo na outra.

— Tudo que eles querem é o que você tem. Ser capaz de falar e ser ouvido. É

isso aí. Aparentemente, o que você é — ela olhou afetadamente para mim — é muito

raro. Exceto, talvez, em Porto Rico.

— O quê?

Ela me ignorou.

— Então, se você for embora eles pode não conseguir essa chance de novo.

— Chance de fazer o quê? Enviar-me para fazer um monte de recados inúteis

que não ajudam ninguém? Eu te disse. Isso não funciona — segurei os papéis de volta

para ela.

Ela cruzou os braços sobre o peito.

— E se não fosse você e seu pai estivesse tentando seguir em frente e um ghost-

talker não o quisesse ajudar?

Eu congelei.

— Meu pai não é seu negócio.

156

— Sério? Parece-me que ele é muito meu negócio dado que você acha que é ele

quem anda aparecendo por aí te deixando inconsciente e te tentando matar, que, deixe-

me dizer-lhe, poria um sério empecilho em meus planos de sair daqui — ela

estremeceu. — Eu nem sequer quero saber o que acontece se um espírito guia permite

que sua pessoa seja morta.

— Alona, esqueça isso — disse eu, cansado.

Ela examinou as pontas das unhas.

— Eu acho que você quer que a coisa da nuvem negra assustadora seja seu pai

porque pelo menos assim você tem algum tipo de contato com ele. Caso contrário, ele

apenas o terá deixado aqui pendurado e, de todas as pessoas você sabe que ele poderia

ter voltado para falar com você, se ele quisesse.

— Chega — eu gritei e joguei os papéis nela. Eles caíram no chão com um som

seco e rouco como folhas mortas.

— O que está acontecendo aqui? — a enfermeira Ryerson explodiu passando

pela porta. Ela parou quando me viu sozinho no quarto.

— Nada — eu disse firmemente. — Nada está acontecendo aqui.

— Malditamente certo sobre isso — resmungou Alona. Ela se levantou e passou

por cima dos papéis sobre o chão, com cuidado para evitá-los.

— Eu pensei ter ouvido... — a voz da Enfermeira Ryerson vacilou. Ela enfiou a

cabeça mais para dentro, tentando ver atrás da porta, como se alguém pudesse estar

escondido lá atrás.

— Esse grito, você quer dizer? — eu perguntei.

Ela assentiu com a cabeça.

Eu dei de ombros.

— Não veio daqui.

Ela franziu o cenho e lentamente se afastou da porta.

Alona começou a segui-la.

— Onde você pensa que vai? — eu exigi em um sussurro.

Ela ergueu um ombro.

— Claramente, você não precisa de mim e eu não tenho mais que ir para a aula.

Uma das poucas vantagens de estar morta.

157

— E sobre...

— Os espíritos? Os que estavam a incomodá-lo? Eu não sei — ela retrucou. —

Eu tinha feito uma proposta a eles e você concordasse em ajudá-los, eles te deixariam

sozinho. Eu acho que está fora da mesa agora, certo?

Eu suspirei.

— Alona.

— Boa sorte com as aulas — disse ela com falsa alegria. — Espero que você

goste de musicais. Eu vou ter certeza de lhes contar que Annie é o seu favorito.

— Espere, apenas espere, hum?

Sem outra palavra ela deslizou através da porta fechada cantarolando

— Amanhã — sob sua respiração.

Ótimo. Não só eu tenho um espírito-guia, mas também um espírito-guia com

raiva, uma raia vingativa e um conhecimento não natural de canções. Cada vez ficando

melhor.

158

13

Alona Dare

Fui até ao fim do corredor principal, atingindo as portas de vidro duplo e parei.

Eu não tinha ideia do que fazer ou para onde ir a seguir. Na verdade, para ser honesta,

eu estava um pouco surpresa por ainda me encontrar intacta. Eu não tinha sido

exatamente legal para Killian lá atrás, mas mais uma vez, eu estava lutando pela coisa

certa. Ele não tinha passado as últimas horas ouvindo todas as histórias, vendo todos os

rostos...

Olhe, eu não fico cheia de pena só porque as pessoas têm histórias difíceis. Você

faz suas próprias escolhas ruins, você tem que viver (ou não) com as consequências.

Mas a maioria das pessoas com quem eu tinha falado anteriormente estava resignada

com seu destino. Eles tinham vindo falar comigo após ouvirem rumores sobre a

capacidade de Killian — os mortos aparentemente amavam fofocar — na mais fina

possibilidade de esperança. Alguns deles tinham estado aqui por anos, assistindo, sem

poder interferir, como todas as pessoas que eles conheciam ou amavam haviam seguido

em frente ou se perdido em uma meia-vida de miséria e de arrependimento.

Tricia — a menina que me deu a caneta e papel — tinha estado presa aqui

desde 1988 — a polaina43 teria sido uma grande pista, mesmo que ela não me tivesse

dito. Ela estava perseguindo o seu cão de família, Mooshi, quando ela saiu para a rua,

mas Tricia tinha caído em uma poça de gelo e batido com a cabeça. Ela morreu quase

instantaneamente. Tudo o que ela queria agora era dizer a seu ―irmãozinho‖ que não

era culpa dele. Ele havia deixado a porta aberta, apenas uma abertura pequena, depois

que ele e Tricia tinham vindo para casa da escola e Mooshi tinha aberto a porta com o

nariz. Ele tinha apenas oito anos e foi apenas um erro estúpido. Mas mesmo agora, ele

ainda se responsabilizava pela morte de Tricia, pelo divórcio de seus pais e por cada

coisa ruim que veio depois isso. Segundo Tricia, ele tentara se matar duas vezes.

Nós, Killian e eu, podíamos mudar isso. Podíamos dizer a Dave o que a irmã

queria que ele soubesse, ajudando os dois ao mesmo tempo. E sim, talvez não fosse

funcionar em todos os casos. Talvez alguns dos espíritos estivessem se enganando sobre

43 Peça, geralmente de lã, que se usa por cima do sapato, cobrindo o peito do pé.

159

o que os estava realmente mantendo aqui, mas e aqueles — um ou dois, ou cinco — que

não estavam enganados?

Um redemoinho preto em movimento no ramo direito do H chamou minha

atenção. Eu me virei, esperando ver a Massa Sombria vindo me rasgar de verdade desta

vez. Em vez disso, era apenas Joonie emergindo do banheiro, sua bolsa de livros

agarrada firmemente contra o peito. Seu rosto estava pálido, exceto ao redor dos olhos,

onde estava vermelho. Ela estava com aspecto de quem tinha chorado.

Abaixando a cabeça, Joonie correu para a biblioteca. Segui-a. Killian dissera que

não havia necessidade de segui-la. Ele sabia sua programação às sextas-feiras. Ele nunca

se preocupou em explicar-me, embora, então, eu teria que fazer o trabalho de detective

por conta própria. Nenhum problema. Não era como se eu tivesse mais alguma coisa

para fazer agora.

— Ei, Alona! — o zelador assustador acenou para mim com grande alegria

quando eu passei por ele — mais uma vez limpando o tapete.

Deus, se Killian não respondesse a pelo menos alguns desses pedidos, minha

reputação ia ficar arruinada. Eu acenei de volta e segui meu caminho, seguindo Joonie

através das portas da biblioteca e até uma das estações de computador contra a parede.

Com um olhar nervoso por cima do ombro, ela pousou sua bolsa, agora

fechada, com cuidado no chão ao lado dela.

— Ah, bom — eu lhe disse. — Agora você se preocupa com quem pode vê-lo.

Depois de poucos cliques, ela estava na internet e em seguida, no Google. Seus

temas de pesquisa? Comas, fantasmas, entrar em contato com o mundo espiritual e meu

favorito pessoal, reencarnação.

Eu bufei. Não, Joonie não estava envolvida nesta bagunça, de jeito nenhum. Eu

gostaria de poder imprimir tudo o que ela estava pesquisando e mostrá-lo a Killian. Ele

nunca acreditaria em mim de outra forma, encontrando alguma outra explicação

perfeitamente racional para seu comportamento, que não incluía invocar um espírito

realmente irritado ou qualquer outra coisa que a maldita Massa fosse.

A pergunta era: por quê? Por que ela iria fazer uma coisa tão perigosa? Sua

última parada na Web forneceu uma resposta possível.

Depois de um rápido olhar sobre o seu ombro para verificar a localização do Sr.

Müller, o bibliotecário, Joonie digitou um endereço do MySpace Web. Uma brilhante

160

página rosa apareceu no monitor, juntamente com as primeiras notas demasiado altas

de uma música pop de algum ex-American Idol44.

Enquanto Joonie se atrapalhava com o mouse para diminuir o volume, inclinei-

me para dar uma olhada melhor. Para minha surpresa, a moça da foto de perfil parecia

vagamente familiar. Bonita naquele jeito de garota da fazenda inocente. Cabelo

castanho liso puxado para trás em um rabo de cavalo — com algumas luzes loiras e um

corte decente, seria aceitável—, pele pálida — Olá, Bronzeado Místico? —, e olhos

castanho-claros que teriam sido cativantes — não até mesmo bonitos — com a correta

aplicação de produtos. A pequena caixa que listava suas estatísticas vitais dava-lhe

dezesseis anos, possivelmente do segundo ano, talvez uma júnior. Isso explicaria por

que eu não a conhecia, mesmo apesar de sua página alegar que ela frequentava a

Groundsboro High45.

Eu fiz uma careta. Por que eu me lembrava do rosto dela? Algo picou na parte

de trás do meu cérebro, mas eu não conseguia perceber o quê.

Joonie clicou para visualizar as fotos dela e, enquanto as imagens surgiam por

toda a tela, uma grande peça do puzzle caiu no lugar. Algumas fotos vagamente fora de

foco de um cão e de um quarto demasiado infantil com papel de parede de princesa

passaram e, então, eu vi pessoas que eu reconheci: Joonie mostrando sua língua para a

câmera; Killian, com o braço protetoramente ao redor da menina enquanto ela esticava

os braços para fora para tirar uma foto dos dois juntos. Killian sorrindo para a câmera,

revelando os seus dentes perfeitamente brancos e direitos. Eu nunca o tinha visto tão

feliz. Ela não estava olhando para a câmera, no entanto. Ela tinha a cabeça inclinada

para trás para olhar para ele, adoração brilhando em seu rosto.

Meu olhar voltou para o endereço da web. Lilslife. Lil. Lily. Aquela sobre quem

eu tinha ouvido falar tanto, esta era ela. Ela era — O quê? — namorada de Killian? Ele

disse que eles eram apenas amigos; eu ouvi-o contando isso ao psiquiatra babaca. Mas

ainda...

Um picar incômodo começou no meu peito. Envolvi meus braços em volta de

mim mesma. Não era ciúme, no entanto. Não. O que havia para que eu tivesse ciúmes?

Um cara pseudo gótico e sua possível-namorada-plain-Jane46?

Só porque eu nunca olhara para ninguém dessa forma, nem mesmo para Chris

em nossos melhores dias — e agora já era tarde demais, porque eu estava morta —,

Killian nunca sorriu para mim.

44 Ex vencedor do concurso American Idol.

45 Escola deles.

46 ‗‗Plain Jane‘‘, expressão que se refere a alguém comum, sem nada que a distinga de outras, sem graça.

161

Um espirro forte de Joonie interrompeu meus pensamentos.

— Sinto muito, Lil. Eu estou tentando — ela sussurrou. Sua maquiagem preta

dos olhos escorreu em listras por suas bochechas. Ela olhou por cima do ombro,

controlando a posição do Sr. Müller, depois se virou de volta para o computador, beijou

a ponta de seu dedo indicador e apertou-a contra a boca de Lily na imagem.

Whoa. O que estava acontecendo aqui?

Enquanto eu olhava para ela estupefata, Joonie saiu do navegador e

desconectou o computador. Ela se levantou, pegou sua bolsa do chão e caminhou para a

porta da biblioteca — o seu colar em forma de crânio tilintando — com o que parecia a

ser um renovado sentido de propósito.

Eu, é claro, segui-a, meus pensamentos todos alvoroçados. Se Lily era a

namorada de Killian, Joonie com certeza tinha uma maneira estranha de mostrar isso.

Quer dizer, sério! Eu não tenho medo de pessoas gays, caras ou garotas. Eu não acho

que toda a lésbica na escola me deseja; eu sei que elas o fazem, tal como todos os caras

hétero. Mas também sei que elas não vão me pegar na esquina do banheiro das garotas

e tentar me converter. Por favor, Alona Dare como uma residente das Lesbos47? Não me

parece. Eu gosto da forma masculina um pouco demais para isso. Além disso, eu odeio

flanela.

O comportamento de Joonie era apenas... Estranho. Além disso, claramente,

algo havia acontecido com essa garota Lily. Quando eles falavam sobre ela, era sempre

em um tom sussurrado e sagrado. Será que ela estava morta? Então, por que Joonie

tinha dito algo a Killian sobre visitá-la no hospital?

Segui Joonie o resto da tarde, largando-a apenas algumas vezes quando vi

Killian chegando. Ele não parecia feliz comigo. Muito ruim, que pena. A melhor parte

era que nunca tinha sido mais fácil evitá-lo. Não era como se ele pudesse gritar o meu

nome, certo?

Infelizmente, quanto a Joonie, nada mais aconteceu. Nada de sessões no

banheiro ou sacrifícios de sangue em seu armário. Joonie foi para a aula normalmente,

ou o mais próximo possível do normal que ela podia chegar, de qualquer maneira. Até

a última hora.

Joonie puxou a mochila mais próxima em seu ombro e se apressou para a aula

de química. Eu franzi a testa, o meu tédio total e absoluto quebrado pela pequena, mas

estranha mudança de comportamento. Em minhas vastas horas de experiência com ela,

Joonie nunca se apressou para nada, especialmente não para uma aula. Sua inteira

personalidade era baseada em uma total falta de preocupação por qualquer coisa.

47 Lésbicas.

162

O que é um total absurdo, é claro. Primeiro de tudo, porque ela obviamente se

preocupava com fazer as pessoas pensarem que ela não se importava com nada. Mas

que seja.

Segui-a, olhando com espanto quando ela se sentou em sua mesa de

laboratório, puxou o livro de química e um caderno de sua bolsa com cuidado, e

alinhou-os em sua mesa... Dois minutos antes da aula sequer ter começado.

O Sr. Gerry assentiu com aprovação para ela de seu banquinho na frente do

laboratório.

— O que está acontecendo aqui? — eu murmurei.

O resto de classe chegou, incluindo Jennifer Meyer — que usava a

pior minissaia xadrez existente no planeta. Estremeci. Xadrez era tão... Meados dos anos

noventa.

A campainha tocou e, durante os trinta e três minutos seguintes, eu vi uma

Joonie Travis completamente diferente. Ela levantou a mão em quase cada pergunta,

ofereceu-se para distribuir os óculos de segurança à classe e até mesmo colocou uma

luva protetora — que ninguém tinha que usar, o Sr. Gerry tinha dito que achava que o

piercing que ela tinha entre o dedo polegar e o primeiro dedo podia ficar superaquecido

perto das chamas do bico de Bunsen — sem se queixar.

Agora, você provavelmente está pensando: — Ah, que bom. A Sacerdotisa da

Dor encontrou algo em que ela é boa e que também é relativamente socialmente

aceitável.

Assim, deixe-me dizer-lhe que... Ela era uma droga. Ela errou a maioria das

respostas e as que ela não errou foi só porque ela folheou descontroladamente o livro

antes de levantar a mão. Ela também deixou cair dois copos — vazios, graças à Deus —

e derreteu parcialmente seus óculos de segurança quando se inclinou muito perto da

chama do bico de Bunsen. Resumindo, ela era um desastre. Mas ela continuou

tentando... Algo que eu não entendi. Pelo menos, não até chegarem os últimos dez

minutos de aula.

Quando o relógio atingiu as 14:15, um total de quinze minutos antes do final da

aula e do final da escola, Joonie parou de trabalhar e começou a guardar todos os seus

equipamentos. Pelas 14:20, ela estava parada em sua banqueta de laboratório, os livros

arrumados e o saco fechado, olhando para o Sr. Gerry.

Depois de suspirar para outra tentativa patética de concluir a experiência diária

por parte de Jennifer Meyer e Ashleigh Hicks, o Sr. Gerry finalmente olhou para cima e

viu Joonie — seu pé batendo contra as pernas do banco e seu corpo ereto com a tensão.

163

Ele assentiu relutantemente para ela e Joonie se levantou imediatamente — o sua

mochila pendurada no ombro e praticamente saiu correndo da sala.

Apanhada desprevenida pela sua saída repentina — eu estava entretida

observando Jesse McGovern usar o bico de Bunsen para aquecer e dobrar palhas de

plástico roubadas da cafeteria em esculturas de palavrões — eu tive que correr para

alcançá-la.

Joonie abaixou sua cabeça e disparou pelo corredor e para as escadas, pela

entrada principal e para fora pelas portas dianteiras. Interessante... Era melhor ela

esperar que Brewster não a avistasse. Ele era exatamente o tipo de castigá-la por escapar

da escola, mesmo que fossem apenas aos últimos dez minutos.

Partindo com uma corrida — eu odeio suar — alcancei-a perto do círculo e

segui juntamente até seu carro, o Inseto da Morte. Ela jogou a bolsa na parte traseira,

subiu para dentro e ligou o carro enquanto eu ainda estava me convencendo a correr

através do metal.

Ela começou a recuar.

— Ei, cuidado! — atirei-me para dentro do carro, tentando ignorar o frio e

arrepiante sentimento de passar pela porta. — Qual é a sua maldita pressa?

Joonie saiu do estacionamento, tipo, à velocidade da luz, jogando cascalho em

toda parte e deixando um rastro enorme da poeira à sua passagem. Ela virou à direita

para Henderson e depois à esquerda para a Main48. Mais um par de voltas e era óbvio:

estávamos indo para a cidade.

Referir-se a ele como ―cidade‖ dava a impressão de que Decatur era o centro

cultural da área. Era, no entanto, onde a maioria dos postos de trabalho estavam

localizados — as pessoas só viviam nas cidades pequenas de fora, como Groundsboro e

se dirigiam para o trabalho nas fábricas. Em um dia com uma brisa forte, você podia

apanhar uma lufada da ADM ou Staley, do processamento de soja na cidade. Cheirava

como purê instantâneo de batatas. Tinha havido dias em que eu não podia esperar para

fugir daqui e daquele cheiro. Mas agora, honestamente, se eu tivesse sentido o cheiro,

poderia ter sentido um pouco de conforto. Eu tinha morrido, mas algumas coisas ainda

permaneciam iguais.

Enfim, Decatur oferecia algumas coisas — um cinema, um shopping e um

hospital. Na verdade, o grande cinema e o shopping eram tecnicamente parte de

Forsyth, outra cidade pequena próxima dos limites de Decatur, mas isso provavelmente

não importava, pois eu duvidava que Joonie fosse para qualquer lugar para se divertir.

48 Estrada principal.

164

Minha intuição foi confirmada quando, vinte minutos depois, o Inseto da Morte

parou no estacionamento para visitantes do Hospital Santa Catarina. Joonie havia

mencionado visitar Lily no hospital. Eu me endireitei no meu lugar. Finalmente, isto

estava ficando bom! Talvez agora eu obtivesse algumas respostas.

Joonie fez mudança de marcha para estacionar, pegou a bolsa do chão aos meus

pés e se empurrou para fora do carro em direção ao hospital. Com um suspiro, eu a

segui, embora a um ritmo mais lento. Eu não entendia qual era a pressa. Se Lily estava

no hospital, não era como se ela tivesse outros planos para qualquer momento em

breve, certo?

Joonie se empurrou através das portas giratórias e eu deslizei para dentro do

compartimento atrás do dela, deixando-a fazer todo o trabalho de deslocar o vidro

pesado e metal. Ela se dirigiu imediatamente para o elevador e apertou o botão para

subir. Enquanto esperávamos — eu podia ter descoberto a forma de atravessar paredes

e objetos sólidos, mas a levitação parecia um pouco demais e não me apetecia

particularmente procurar as escadas — vi um monte de enfermeiras indo e vindo com

suas lancheiras e jaquetas. Mudança de turno, provavelmente?

O elevador finalmente chegou e Joonie apertou o botão para o quinto andar.

Um pequeno passeio mais tarde, durante o qual eu muito deliberadamente me

concentrei em pensar em como o chão do elevador era muito sólido, chegamos a nosso

destino, o andar das crianças. A parede em frente ao elevador estava pintada com

nuvens macias, arco-íris e carinhas amarelas sorridentes — exatamente o mesmo tipo

que você vê em adesivos para carros dizendo: a merda acontece. Eu suspeitava que

qualquer criança que residisse neste andar provavelmente já sabia desse fato melhor do

que a maioria, de qualquer maneira.

Joonie saiu do elevador e se dirigiu imediatamente para a esquerda, como se ela

soubesse exatamente onde estava indo. Os enfermeiros aglomerados no balcão desse

andar nem sequer olharam acima, enquanto checavam as fichas dos pacientes e

conversavam com o próximo turno de enfermeiros.

Eu vi Joonie parar na frente de uma porta no meio do corredor e entrar. Um

segundo depois, a cabeça dela reapareceu, olhando para cima e para baixo no corredor,

antes de ela colar um adesivo amarelo ou um ímã do lado de fora da porta e fechá-la

suavemente.

Interessante. Automaticamente olhando para trás sobre meu ombro para as

enfermeiras ocupadas, como se elas pudessem me ver, eu me dirigi para a porta agora

fechada. Quando cheguei mais perto, pude ver que foi um ímã que ela colocou na

moldura de metal da porta, e dizia: Tomando banho. Privacidade, por favor.

— Que diabos? — eu murmurei.

165

— Você não sabe que você está no andar das crianças?

Assustada, olhei para baixo para ver uma menina loira com tranças, olhando

para mim de sua antiquada cadeira de rodas de madeira.

Ela suspirou com desgosto e seguiu em frente, passando através da parede.

Sim, morta como eu. Talvez fosse uma boa coisa que Killian não tenha vindo comigo. O

hospital estava provavelmente cheio de espíritos.

Aproximei-me da porta que Joonie fechara e espiei cautelosamente, ignorando o

frio contra o meu rosto.

No início, parecia ser um quarto de hospital normal. Parede bege horríveis com

um piso de cerâmica combinando, uma cortina verde vômito estava pendurada em um

ferro na altura máxima para que pudesse ser puxada para a privacidade entre

companheiros irritantes e uma televisão estava montada no alto da parede. Esse antigo

desenho animado Super Mouse49 estava ligado, mas o som estava desligado.

A garota na cama, no entanto, foi a minha primeira pista de que nem tudo era

como parecia. Eu reconheci-a, de alguma forma, como a garota na foto que Joonie tinha

visto mais cedo. Quero dizer, eu reconheci-a, mas ela apenas se assemelhava vagamente

à pessoa que ela tinha uma vez sido. Seus olhos vidrados e embaçados olhavam direto

para frente, a cerca de um metro abaixo da televisão. Uma cicatriz irregular, ainda

inchada e vermelha, decorava o lado esquerdo do seu rosto, desde sua linha do cabelo

até ao queixo. Não havia tubos ou qualquer outra coisa a não ser uma IV50 e um

monitor que mostrava o batimento cardíaco dela, por isso ela estava obviamente

respirando por conta própria, só não estava fazendo muito mais.

A parte estranha foi que vê-la dessa forma, como uma imagem tridimensional,

como uma pessoa, ainda que danificada, ao invés de uma imagem plana em uma tela,

finalmente fez um clique em mim. Eu sabia onde a tinha visto antes. Meses atrás, ela

tinha sido uma das garotas de Ben Rogers, outra caloura estúpida e disposta.

Realmente, eu só a vi algumas vezes com Ben antes de eles acabarem... Ou pelo menos,

foi isso que eu assumi que acontecera.

Ela era nova, entrara o ano passado, eu achava. Não tinha muitos amigos. Eu

nunca a tinha visto com Killian ou Joonie... Até onde eu sabia. Para ser justa, porém, até

recentemente eles não eram um grupo demográfico com o qual eu teria me incomodado

em notar. Pessoas como eles nem sequer votavam na rainha do baile.

49

http://pt.wikipedia.org/wiki/Super_Mouse

50 Terapia intravenosa (IV) é uma via de administração que consiste na injeção de agulhas ou cateter contendo princípios ativos, vacinas ou hemoderivados nas veias periféricas dos membros superiores.

166

Tentei me lembrar da última vez que eu vira esta garota, Lily Qualquer coisa...

Turner, sim, isso soava certo. Talvez na festança de regresso às aulas de Ben? Eu me

lembrava de algo sobre um acidente de carro a poucos quilômetros de distância, um

que eles tinham querido relacionar com a nossa festa, mas o motorista não tinha bebido,

então, eles não tinham nada com que nos culpar. Mas isso foi, tipo, em setembro. Ela

tinha estado assim desde então?

O silêncio absoluto sobre ela era a pior parte. Ela ainda se movia — mesmo

enquanto eu observava, seus dedos, repousando sobre a parte superior da colcha, se

esticaram e se contorceram — mas ela parecia... Vazia. Eu nunca tinha pensado sobre a

vida como energia antes, pelo menos não até Killian ter falado dela dessa forma, mas

agora eu podia ver o que ele quis dizer. Mesmo alguém dormindo, com os olhos

fechados e não se movendo, teria parecido mais vivo do que ela e pude ver isso do

outro lado do quarto.

Joonie, no entanto, não parecia notar ou se importar e, essa foi minha segunda

pista de que algo estava realmente errado. Ela estava correndo ao redor do quarto,

organizando o que pareciam ser pequenos discos de prata de hóquei no chão em

intervalos definidos em torno da cama e conversando com Lily, ao mesmo tempo.

— Sinto muito — disse ela. — Eu tentei fazer Killian vir comigo. Eu pensei que

fosse resultar melhor com ele aqui, mas... — ela fez uma pausa, provavelmente

lembrando sua reação à tábua de Ouija. — Ele não quis. Sinto muito, Lil.

Eu bufei. Ele não quis. Certo. Bem, quero dizer, ele não queria, mas ela nem

sequer tentou explicar o que estava acontecendo ou porque ela queria que ele viesse ao

hospital. Falando nisso, por que ela queria que ele viesse ao hospital? Isto era,

obviamente, mais do que apenas uma visita amistosa para fazer companhia à garota em

coma.

— Mas isso não importa — disse ela com firmeza. — Eu vou arrumar isto, não

importa o que aconteça — seu olhar vagou para a forma ainda na cama. — Eu vou

trazer você de volta.

Joonie voltou a ficar em movimento e sua bota de combate chutou um dos

discos de prata em direção à porta, onde eu ainda estava de pé, metade dentro e metade

fora. Olhei para baixo e vi que era uma vela branca pequena em um invólucro de metal,

como do tipo que meu pai costumava colocar na minha abóbora esculpida quando eu

era pequena.

Velas, garota morta-viva, arrepiantes declarações de intenções, além do

tabuleiro de Ouija que Joonie carregava... Uh-oh... Eu não sabia nada sobre bruxaria,

magia, vodu ou qualquer outra coisa que isso pudesse ser — e eu aposto que Joonie

167

também não, considerando os resultados até agora —, mas eu vi reprises de Charmed51

suficientes para saber que isso era problema.

— Ok, então — enfiei-me totalmente para dentro do quarto. — Ei, Joonie, pare.

O que seja que você está aprontando, pare.

Joonie me ignorou, é claro e alcançou na bolsa para retirar o isqueiro e o

tabuleiro de Ouija.

Ah, merda. Eu dei um passo ou dois e levantei o meu polegar para os meus

dentes — e agora? Não era como se eu pudesse marchar para o corredor e gritar para os

enfermeiros me ajudarem.

Enfermeiros. Ajuda. Botão de emergência. Se não havia uma lâmpada pendurada

no ar acima da minha cabeça, deveria ter havido. Se eu tinha força suficiente para me

concentrar e empurrar pastas ao redor do chão, certamente eu podia pressionar um

pequeno botão.

Caminhei confiante para o outro lado do quarto, evitando Joonie quando ela se

agachou para começar a acender as velas. De tão perto, Lily era trágica... E assustadora.

A luz da televisão brilhava em seus olhos em branco, adicionando uma assustadora e

superficial centelha de vida. O controlo remoto com os controlos da cama e com o botão

para chamar a enfermeira estava pousado sob o braço de Lily, um grande sinal da

ilusão de alguém.

— Não seja um bebê — disse a mim mesma. Tentando não pensar sobre os

germes que tinham de estar flutuando por aqui — era um hospital depois de tudo,

cheio de repugnantes pessoas doentes. Abaixei-me, pretendendo puxar o controle

remoto de debaixo do braço dela com uma série de pequenos empurrões. Minha mão

devia ter atravessado o braço com pouco mais de um formigamento gelado, mas no

instante que eu toquei sua pele, senti-o. Um intenso calor irradiou até meus dedos. Em

seguida, a solidez que era o braço de Lily derreteu sob o meu toque e a minha mão

afundou em seu braço. Não através, mas dentro. Minha pele, a mais escura das duas,

graças às minhas horas no sol para a preparação para o baile, fundiu com a dela.

Eu respirei fundo e puxei minha mão. Seu braço seguiu, se erguendo da cama.

Eu assisti com horror. Por um momento interminável, o vínculo entre nós segurou

firme, então alguma coisa se soltou e o deixou ir. Seu braço caiu de volta em cima da

cama, pousando diretamente em cima do controle remoto. Não empurrou nenhum dos

botões. Oh, não, isso seria bom demais para ser verdade. Isso me impediu de outra

tentativa de alcançar o botão de chamada, a não ser que eu quisesse tocá-la novamente.

51 Charmed (Jovens Bruxas no Brasil) foi uma série do canal norte americano The WB que relata a história das irmãs Halliwell, que são as mais poderosas boas feiticeiras/bruxas que são conhecidas na comunidade sobrenatural como as Charmed Ones.

168

De jeito nenhum. Eu tropecei para longe da cama, segurando o meu braço

contra o meu peito. Eu não sabia o que tinha acontecido, nem queria saber.

Passei por Joonie correndo, que, tendo cumprido finalmente suas funções de

acólito, se estava instalando no chão com o tabuleiro de Ouija no colo. Eu passei pela

porta, mal sentindo o formigamento disso e disparei pelo corredor.

Corri para a sala dos enfermeiros. Mas o que eles poderiam fazer? O que

alguém poderia fazer? Eu estava aterrorizada de sequer olhar para a minha mão, com

medo de que veria a pele pálida da Lily, em vez da minha.

Quando cheguei ao posto de enfermagem o elevador tilintou e as portas se

abriram. Algum instinto me fez olhar para lá. Killian — de cabeça baixa e as mãos

dentro dos bolsos — saiu do elevador e então se dirigiu para o corredor em minha

direção e do quarto de Lily.

— Will! — eu disparei em direção a ele, alívio ao vê-lo aqui lavando o restante

de minha raiva de mais cedo esta tarde.

Ele olhou para cima, assustado.

— O que você...

— Joonie está lá agora e ela está fazendo algo com aquele estúpido tabuleiro —

falei o mais rápido que pude.

Ele correu pelo corredor em direção ao quarto de Lily. Eu fiquei ao lado dele,

tentando explicar.

— Eu disse a você, ela é quem está fazendo isso, chamando o fantasma

assustador e quando eu tentei impedi-la, minha mão tocou o braço de Lily e... —

estremeci. — Algo está errado. Eu não entendo...

O ar de repente se transformou em gelo em volta de mim e Killian parou de

repente. Eu vi a cor fugir de seu rosto, enquanto olhava para algo abaixo no corredor.

Virei-me lentamente de costas para Killian, sabendo já o que iria encontrar. O

assustador fantasma de sombra estava de volta. Desta vez, cresceu, se expandindo nas

bordas, para preencher o corredor inteiro, bloqueando a luz das janelas, no final do

corredor. Dentro de seu corpo nebuloso, coisas se moviam sob a superfície, como cobras

deslizando debaixo de um cobertor.

Ele se agrupou, puxando as bordas até que pairava sobre nós como uma onda

prestes a rebentar.

— Killian — eu disse, minha voz vacilante.

169

— Sim? — ele não parecia muito bem também.

— Corra! — eu empurrei-o para longe.

Com um rugido que devia ter abalado o edifício, o espírito sombrio caiu sobre

mim. Lascas do que parecia metal congelado rasgaram minha pele e eu gritei. Então

tudo ficou escuro.

170

14

Will Killian

Eu estava começando a pensar que o universo estava unido contra mim em

algum tipo de vasta conspiração. Eu deveria estar na escola em detenção neste

momento e eu teria estado... Se alguém não tivesse acidentalmente ateado fogo a um

monte de palhas no laboratório de bioquímica durante a última aula. O alarme de

incêndio disparou exatamente quando a escola estava terminando o dia. Reconhecendo

a perspectiva sem esperança de manter todos nós — delinquentes — em uma área tão

não confinada como o estacionamento, a Sra. Bernardino — a professora de detenção de

hoje — tinha cancelado e remarcado a detenção para a próxima semana. Eu tinha estado

lá por quatro anos e tive mais do que a minha cota de detenções provavelmente, mas eu

nunca ouvi falar delas sendo canceladas antes.

Sentindo-me inesperadamente sortudo — realmente, eu deveria ter sabido

melhor — eu fui para o Dodge, que ligou na primeira tentativa e depois para Santa

Catarina. Eu sabia que era onde Joonie estaria.

Eu não podia esquecer o que Alona tinha dito sobre ela. Ela, Joonie, tinha agido

de forma muito estranha ultimamente. Mas ela tinha sido minha amiga — praticamente

a única — durante anos. Por que ela iria querer mexer comigo assim? Claro, ela não

teria nenhuma maneira de saber o que um tabuleiro de Ouija fazia quando eu estava

por perto. Mas Alona estava certa. Por que mais ela agiria tão culpada? Por que fugir?

Por que ela não riu ou pareceu confundida com a minha reação estranha ao vê-la com

um?

Eu tinha receio de já saber a resposta, mas precisava saber com certeza. Eu

precisava falar com Joonie. Se ela estava envolvida, isso mudava tudo, inclusive — mais

provavelmente — a verdadeira identidade da entidade que Alona chamava de Massa

Sombria. Como um bravo e desanimado fantasma, meu pai poderia ter-me atacado para

mostrar a sua desaprovação. Talvez. Mas ele não precisaria de Joonie ou de um

tabuleiro de Ouija para isso.

Eu tinha chegado ao hospital em tempo recorde e encontrado um espaço de

estacionamento na fila para os primeiros visitantes. Um elevador que tinha estado à

espera, que também se revelou livre tanto de pessoas como de fantasmas, tinha me

171

levado diretamente para o quinto andar. E então a minha sorte mudou, com uma

vingança.

Enraizado no local, vi o fantasma de sombra colapsar sobre Alona e rasgá-la —

os olhos verdes dela se alargando pela dor antes que ela desaparecesse.

— Não! — eu gritei furioso. Por que ela não correu? Ela sabia o que esta coisa

lhe podia fazer, sabia que cada vez que desaparecia, havia uma crescente chance de ela

não poder voltar.

Porque ela estava me salvando. A realização me fez dar passo para trás. Ela tinha

visto o que a Massa me podia fazer e Alona Dare acabara de se sacrificar... Por mim.

Minha garganta se apertou e o corredor ficou borrado diante dos meus olhos.

Talvez essa ação não egoísta fosse o suficiente para mandá-la para a luz, embora eu não

tivesse visto nenhum sinal dela antes que ela desaparecesse. De qualquer modo, eu não

deixaria que fosse em vão.

— Joonie, saia daí! — eu forcei as palavras a passarem pelo nó na minha

garganta.

Passos apressados soaram atrás de mim quando os enfermeiros abandonaram

seus postos e correram para baixo no corredor na minha direção.

— Senhor? O senhor não pode gritar aqui. Isto é um hospital.

— Joonie, eu disse saia — repeti.

O fantasma de sombra preta, tendo a muito dissolvido Alona, apenas ficou

pairando ali no meio do ar como se estivesse esperando para ver o que eu ia fazer a

seguir.

— Joonie...

— Senhor, você vai ter que vir conosco.

Fortes mãos femininas agarraram meus braços e ombros.

— Alguém chame a segurança, por favor.

Por todo o corredor as portas começaram a abrir e os rostos pálidos e sombrios

de garotinhos espreitaram para ver o que estava acontecendo. Então, a porta de Lily

abriu e Joonie saiu.

— J — disse eu. — Pare com isso, você não sabe o que está fazendo.

Ela balançou a cabeça, os olhos azuis brilhantes e avermelhados.

172

— Eu não posso, Will. Eu apenas... Não posso.

Então ela entrou de novo no quarto e fechou a porta.

— Senhor, você tem que vir conosco — aquelas mãos em meus ombros

começaram a puxar-me os braços para trás, mas não era suficiente. Eu sabia que não

seria suficiente.

O fantasma sombrio se derramou sobre mim, me cercando em um frio mortal e

me rasgando das garras dos enfermeiros. Eu lutei, me puxando para trás com todas as

minhas forças, mas... Ele? Ela? Facilmente me dominou, me jogando de cara na parede.

Algo no meu rosto, possivelmente o meu nariz, possivelmente um osso malar, rachou e

alguém gritou. Poderia ter sido eu.

— O que você quer? — eu empurrei as palavras para fora.

A coisa não me deu nenhuma resposta, apenas um vago som de uivo, como

vento avançando através de uma janela quebrada. Então isso me arrastou para longe de

parede e me atirou pelo corredor. Tentei me levantar e tropecei, batendo com a minha

cabeça no lado de um carrinho de medicina abandonado ali e tudo ficou

misericordiosamente preto.

Acordei em restrições, minhas mãos presas à cama abaixo de mim com velcro e

tiras de tecido. Nunca um bom sinal, realmente. Antes mesmo de abrir meus olhos, eu

reconheci o cheiro único de antisséptico dos hospitais. Então eu não estava na prisão —

isso era uma coisa boa pelo menos.

Todo o meu corpo doía e a minha cabeça latejava com uma intensidade que eu

suspeitava que só fosse aumentar quando eu finalmente decidisse enfrentar a luz e abrir

minhas pálpebras.

— Will! — um vago sussurro à minha direita. — Acorde. Eu sei que você está

aí. Eu vi você puxando essas braçadeiras repugnantes. Quero dizer, seriamente, você

acha que eles as limpam após cada utilização? Duvido muito. Você está, tipo,

compartilhando células da pele com o último depravado lunático suado que esteve aqui

preso. Pessoas doentes são tão nojentas.

Alona! O desgosto em sua voz era tão distinto como o cheiro de antisséptico do

hospital. Enfrentei a luz o suficiente para olhar de soslaio na direção da sua voz.

Quando os meus olhos deixaram de estar enublados e focalizaram, encontrei-a sentada

na cadeira de visitante perto da minha cama, os joelhos encolhidos junto ao peito como

se ela não quisesse nem mesmo os seus pés fantasmas tocando no chão. Ela parecia

pálida e cansada e, pela primeira vez, uma linha de contusões decorava o lado esquerdo

do rosto dela. Isso significava que ela não tinha energia suficiente para se projetar sem

falhas, ou que ela realmente estava cansada.

173

— Você está bem? — eu perguntei, a minha boca se sentindo cheia de algodão.

Ela endireitou-se e jogou o cabelo longo sobre seus ombros quando me viu

olhando para ela.

— Eu estou bem — disse ela rapidamente. — Mas não sou eu que estou presa

com um rosto quebrado.

Automaticamente, eu tentei tocar meu rosto, mas o meu esforço só reforçou o

sistema de retenção em meu braço.

Alona saiu de sua cadeira e mudou-se para sentar na minha cama. Seus dedos

ágeis trabalharam o velcro e tiras até que minha mão ficou livre.

— Eu vou ter que recolocá-las, você sabe, ou então eles podem prendê-lo mais

apertados da próxima vez que vierem para verificar você.

— Sim, eu sei — tracei as linhas do meu inchado rosto cuidadosamente com os

dedos. Inchado como uma almofada e, quente; o lado direito do meu rosto parecia

como se tivesse ido ao micro-ondas.

— Eles fizeram raios-X ou uma ressonância magnética ou o que quer que fosse

uma hora atrás. Você tem uma fratura em seu malar. Ouvi-os falando sobre isso antes

que você acordasse.

Eu gemi. Bem, isso explicava a dor irradiando para a minha mandíbula e até

minha têmpora.

Ela puxou as pernas para cima da cama e se enrolou perto de mim, seu quadril

e parte traseira um calor firme contra minha cintura.

— Por que você não correu? Eu lhe disse para correr.

— Eu pensei que Joonie ia me ouvir, que ela ia parar quando eu a confrontasse

— disse.

Ela revirou os olhos.

— Bem pensado.

— Hey! — eu protestei.

— Estou falando sério. Agora você está preso aqui — ela sacudiu a cabeça e o

cheiro do seu shampoo flutuou em minha direção. — Estão todos convencidos de que

você é esquizofrênico e possivelmente epiléptico. Você está em um andar normal, por

agora, mas eles vão levá-lo tão logo abra uma vaga no andar da psiquiatria. E o

esfregador de queixo está de volta.

174

— Não — lutei para me sentar.

— Yeah. Ele aqui tem privilégios do hospital ou alguma coisa assim. Sua mãe

está tentando se livrar dele.

— Minha mãe está aqui? — estendi a mão para soltar as restantes tiras.

— Não — Alona empurrou o meu ombro, forçando-me para baixo. Ela apontou

para a porta quase fechada. — Eles vêm aqui a cada quinze minutos. Eu não sei se

consigo prender você novamente sem ser apanhada. Eu sou boa, mas talvez não tão boa

— ela me deu um sorriso fraco — do tipo que eu nunca tinha visto antes vindo dela — e

isso me assustou.

Ao longo dos anos, eu vira todos os tipos de sorrisos dela. O tipo projetado para

fazer todo o seu sangue drenar de sua cabeça e se recolher atrás de seu zíper. O tipo

dado com olhos frios mostrando que ela estava furiosa como o inferno, mas que não ia

quebrar sua pose para mostrar isso. O sorriso superior era um favorito particular dela

nos últimos anos, como se ela não pudesse evitar, mas achar engraçado que você — um

ser pequeno e insignificante — iria tentar interagir com ela. Nenhum desses parecia

relacionado com sua atual expressão. Ela parecia... Derrotada.

— O que aconteceu lá? — eu perguntei, não inteiramente certo de que queria

ouvir a resposta.

Alona levantou um ombro em um encolher de ombros.

— Ela tinha velas e aquele tabuleiro estúpido. E ela continuou conversando com

a garota-do-coma... Quero dizer, Lily — ela hesitou. — Eu acho que ela estava tentando

curá-la.

Franzi a testa.

— O que você quer dizer, curá-la? Lily está... — parei para tomar uma

respiração profunda, necessitando-a para forçar as palavras a saírem — Em morte

cerebral. Ela tem estado desde o dia do acidente — oitenta e cinco km por hora em

torno de uma curva que tinha um limite de velocidade de cinquenta km por hora. Uma

árvore. Nenhum cinto de segurança. Lily, como nós a conhecíamos, não voltaria. Nunca

ficava mais fácil perceber isso. Continuei pensando que ficaria, mas não.

Alona balançou a cabeça lentamente.

— Eu não acho que ela está falando de uma cirurgia no cérebro aqui, Killian.

Lily está vazia, você sabe? As luzes estão acesas, mas ninguém em casa?

Eu fiz uma careta, mas assenti. Alona tinha um jeito com as palavras.

175

— Então, primeiro, eu fico me perguntando o que Joonie está tentando fazer

com todas as velas e os espíritos e tudo mais — Alona fez um gesto com desdém. —

Quero dizer, Olá, até eu reconheço algum tipo de ritual estranho e assustador quando o

vejo — fez uma pausa, seus penetrantes olhos verdes se concentrando em mim como se

tentasse me obrigar a acreditar em suas palavras. — Eu acho que ela está tentando

chamar o espírito de Lily.

Isso era possível... Joonie não tinha sido a mesma desde o acidente de Lily. Ela

culpava-se por isso, uma linha louca de raciocínio que seguia algo como isto: se ela e

Lily não tivessem brigado, Lily teria estado com a gente em vez da multidão da

primeira linha e ela ainda estaria viva... Mais do que apenas no sentido técnico.

— Mas, então, eu pensei assim... O que isso tem a ver com Killian? Quer dizer,

ela poderia tentar chamar o espírito de Lily no tabuleiro Ouija sem você.

— Não vai funcionar, porém — disse eu —, com ou sem mim. Lily não está

mais aqui. Ela... Seguiu em frente. Como eu disse antes, as pessoas que se foram

realmente, se foram. Não há como alcançá-los.

— Mas eu aposto que Joonie não sabe disso — Alona apontou.

— Provavelmente não — eu admiti.

Ela respirou fundo.

— Fica ainda pior.

— Como?

— Ela não está apenas tentando chamar o espírito de Lily. Eu acho que ela está

tentando trazê-lo de volta para o corpo de Lily — Alona hesitou. — E ela quer sua

ajuda.

— Não — eu disse imediatamente.

Ela olhou para mim exasperada.

— O que mais poderia significar ―trazer você de volta onde você pertence?‖ Ela

estava olhando fixamente para o corpo de Lily quando disse isso e ela definitivamente

mencionou você.

— Não, quero dizer que não é possível. É uma porta de sentido único. Tem que

ser — eu tentei explicar. — Uma vez que você está fora, você está fora. Caso contrário,

você veria cadáveres-andantes em todos os lugares quando pessoas como o vovô

Brewster ou Liesel se cansassem de estar presos aqui.

— Mas Lily ainda está viva — ela deu um arrepio.

176

— Não realmente — por muito que doesse dizer isso, eu me forcei a continuar.

— Seu coração ainda bate e tudo, mas ela não seria capaz de funcionar, mesmo se você

pudesse colocar seu espírito volta dentro do corpo dela. A conexão entre os dois está

quebrada.

Ela revirou os olhos.

— Mais uma vez, você sabe disso. E Joonie?

Minha boca trabalhou por um segundo, enquanto eu tentava encontrar uma

resposta.

— Mas Joonie não sabe o que eu posso fazer. Por que ela iria sequer pensar...

Alona ergueu as mãos.

— Eu não sei. Não é meu problema. Você descobre isso. Eu estou apenas

dizendo o que vi e ouvi.

Balancei minha cabeça, irritado com a sugestão.

— Não, ela sabe que mexer com coisas como essas... — mesmo se fosse possível,

o que não era... Até onde eu sabia, havia tantas coisas que poderiam dar errado. E se

Joonie conseguisse com sucesso trazer o espírito de Lily de volta para seu corpo apenas

para descobrir que isso era pouco mais que uma prisão de carne e osso?

Como ela sabia sequer que tinha contatado o espírito certo para começo de

conversa?

— Pessoas desesperadas fazem coisas realmente muito idiotas — Alona disse.

— Confie em mim.

— Joonie nunca aceitaria a chance de ferir Lily — eu insisti. Ou que restou dela,

de qualquer maneira. — Quase a matou quando Lily acabou aqui — Joonie passou a

maior parte do mês de Setembro trancada em seu quarto, não saindo para a escola ou

qualquer outra coisa até que Brewster ameaçou impedi-la de se graduar se ela não

voltasse. Depois disso, ela se arrastou de volta à escola, mas foram precisos mais alguns

meses para ela mostrar mesmo uma centelha de como ela era antes.

— Eu aposto — a voz de Alona era suave, mas seu tom insinuava algo que ela

não estava dizendo.

— O que isso deveria significar? — eu exigi.

— Você sabe.

— Não, eu não sei — forcei as palavras.

177

Ela suspirou.

— Lily era sua namorada ou não?

Eu me mexi desconfortavelmente.

— O que isso tem a ver com alguma coisa?

— Basta responder à pergunta.

— Não. Ela não era. Nós éramos amigos. Eu cuidava dela. Pelo menos, eu tentei

— obviamente, eu não tinha feito um trabalho muito bom nisso.

Alona arqueou uma sobrancelha.

— Eu vi a foto de vocês dois.

— Como... — balancei minha cabeça. Eu não queria saber. — Ok, então ela pode

ter gostado de mim um pouco ou alguma coisa, mas nunca se transformou em nada. Ela

tinha uma queda por Ben Rogers também — eu apontei. Que provavelmente foi a razão

da minha amizade com Lily ter ficado apenas nisso, uma amizade. Eu gostava dela. Ela

era doce e engraçada. Inferno, ela ainda fazia Joonie feliz, o que era um verdadeiro

milagre. Mas ser obcecada pela multidão popular e seus relacionamentos tinha sido um

dos passatempos favoritos de Lily — um que eu não partilhava. Então, não tinha sido

um choque assim tão grande — pelo menos não para mim — quando ela nos largou

para subir a escada social depois que ela e Joonie brigaram.

— Lily não era a única com uma paixão — Alona afirmou.

— O que você está falando? Joonie? — eu ri. — Joonie não gosta de mim assim.

— Não — ela disse enfaticamente.

— O quê?

— Oh, meu Deus, você poderia ser mais estúpido?

— Do que você está falando?

— Você sabe o que mais? Apenas esqueça. Mesmo se eu lhe disser você não vai

acreditar em mim e só vai ficar com raiva, então não vale a pena. Eu nem sequer sei o

porquê de ainda estar aqui. Você não escuta nada que eu digo.

— Você não está dizendo nada!

— Você não faz o que eu digo, rejeita todas as minhas idéias. Quero dizer, qual

é o ponto de ter uma guia espiritual se você apenas a ignora?

178

— Confie em mim — disse eu. — Você é impossível de ignorar. Eu tentei. Por

tudo o que me importa você não pode sair daqui rápido o suficiente.

Ela congelou, um olhar ferido flamejando em seu rosto. Eu me senti um merda.

— Sinto muito. Eu não quis dizer isso.

— Sim, você quis. Eu terminei aqui — Alona balançou as pernas para fora da

cama. — Eu não tenho mais tempo a perder com você.

— Alona, espere.

Ela me ignorou e apertou suas mãos contra o colchão para descer. Eu agarrei a

um dos pulsos dela... E minha mão passou diretamente através dela.

Engoli em seco.

Alona olhou para trás por cima do ombro com um suspiro, mais contusões

aparecendo em seu rosto.

— Parece que você está recebendo o seu desejo.

179

15

Alona Dare

Will olhou para mim, seu rosto pálido, exceto pelo olho negro que tinha

recebido de Chris e sua bochecha inchada.

— O que está acontecendo com você?

Afastei-me dele, fechando os olhos contra as lágrimas que de repente picaram

lá.

— Cale-se, estou tentando me concentrar — eu tinha lutado contra esta

sensação de ser puxada para longe desde que acordei no quarto de hospital dele.

Parecia que eu havia deixado parte de mim para trás em um lugar que eu não

conseguia lembrar e algo do outro lado estava trabalhando muito duro para obter o

resto de mim.

— Pense em coisas positivas — parecia apavorado. — Hum, vendas de

maquiagem, vestidos de baile, sexo no banco de trás de uma limusine.

Eu atirei-lhe um olhar sobre o meu ombro.

— Exatamente que tipo de noite do baile você acha que eu estava planejando?

Ele passou a mão livre por seus cabelos negros bagunçados, fazendo-o destacar-

se ainda mais loucamente.

— Eu não sei. Eu só estou tentando ajudar.

Eu balancei minha cabeça.

— Obrigado, mas não está funcionando.

— Talvez se você tiver pensamentos positivos sobre outras pessoas.

— Killian. Eu estive aqui duas horas e estou aparecendo e desaparecendo, não

importa quantas vezes eu pense sobre filhotes, arco-íris e seu bíceps

surpreendentemente grande.

Uma pausa.

180

— Meu o quê?

— Esqueça isso. Você estava certo. Há um limite de tempo para todos e o meu

está se esgotando — por mais estranho que pareça, o pensamento trouxe alívio. Eu

estava cansada de lutar contra este... O que quer que fosse. Eu só queria que terminasse.

— Não. Isso não faz sentido. Você é minha guia espiritual... Ou o que seja —

insistiu.

— Sim, uma que você não escuta — limpei sob os meus olhos e virei-me em

cima da cama para enfrentá-lo novamente.

Ele esforçou-se para erguer-se em uma estranha posição semi sentada.

— Ok, eu podia estar errado sobre isto. Eu não joguei os seus papéis fora.

— Não importa, Will. Eu não posso ficar — disse cansada. Foi a essa conclusão

que eu cheguei enquanto esperava que ele acordasse. — Eu só tenho algumas horas

restantes aqui, menos ainda se eu estiver aqui e a Massa aparecer novamente e, eu

tenho algumas coisas para fazer.

— Coisas que você adiou até que não tinha escolha — seus ombros caíram e ele

cedeu de volta para a cama.

— Exatamente — concordei. — Você estava certo sobre isso. E… — eu hesitei.

— Vvocê estava certo sobre a minha mãe.

Ele olhou para cima, surpreso.

— Alona — disse ele, sua voz suave e não de pena. Havia uma diferença e eu

podia reconhecê-la agora.

Acenei para longe suas palavras e o súbito ardor nos meus olhos.

— Cale a boca, eu não quero falar sobre isso agora — tomei uma respiração

profunda.

— Mas eu queria você soubesse que estava certo. E... Sim, algumas daquelas

coisas que eu escrevi para o vovô Brewster e o resto deles, provavelmente não são o que

os está mantendo aqui. Mas… — inclinei-me mais perto para ter certeza de que tinha a

atenção dele. — Algumas são e você pode fazer algo por essas pessoas. Se esconder não

ajuda ninguém, inclusive você. Você precisa saber disso.

Ele desviou o olhar.

— E você? Você é minha guia espiritual. Você deveria ficar aqui enquanto eu

precisasse de você.

181

Eu sorri.

— Você não precisa de mim. Se precisasse, eu não estaria desaparecendo, certo?

— Nós não sabemos isso.

O som de vozes no corredor ficou mais alto.

— Alguém está vindo. É melhor eu ir — tomei uma profunda respiração,

firmando-me para me empurrar de sua cama e realmente ir. Finalmente ir.

Ele pegou meu braço antes que eu pudesse descer. Sua mão descansou

calorosamente contra minha pele, não a atravessando nem se afundando nela. Ele me

puxou na sua direção, seus olhos azuis brilhando de emoção e eu deixei-o. Sua boca, tão

quente e macia, roçou a minha, uma, duas vezes... E ficou. Eu me aconcheguei mais

perto de seu calor, pousando minha mão livre sobre o travesseiro. Ele soltou o meu

pulso para entrelaçar os dedos pelo meu cabelo e inclinar minha cabeça. De repente, eu

estava a sendo beijada — realmente beijada — e inclinei-me nele, provando-o como ele

me provava.

O barulho alto de algo caindo no chão no corredor nos afastou.

— Talvez você devesse ter feito isso antes — eu disse, tentando recuperar o

fôlego e me sentindo deliciosamente quente pela primeira vez em dias. — Quando eu

estava viva.

Ele sorriu, seu rosto corado.

— Quando você estava viva, você teria me socado.

— Yeah. Verdade — eu deslizei de sua cama e caminhei de volta para o outro

lado.

— Deixe-me ir com você — ele disse calmamente. — Eu posso ajudar.

Balancei minha cabeça.

— E então? Quando eu for embora e eles virem que você escapou? Que tipo de

medidas você acha que eles vão tomar da próxima vez?

Ele não disse nada. Prendi seu pulso livre de volta nas retenções, envolvendo o

tecido menos apertado possível e, então, ele deixou-me. Eu estava certa e ele sabia

disso.

Sorri para ele, sua imagem de repente borrada com lágrimas.

— Quer um último pedaço de orientação, não que você vá ouvir?

182

— Alona… — sua voz quebrou.

— Diga à sua mãe a verdade. Seu pai tinha as suas razões por manter isso em

segredo, ok, tudo bem. Mas isso não funcionou muito bem para ele. Você não lhe deve

nada, você não é obrigado a fazer o que ele fez só porque compartilha o mesmo dom.

— E se ela não acreditar em mim?

Envolvi a retenção em torno de seu pulso.

— Meio difícil ela piorar as coisas, né?

— Fique. Nós vamos descobrir alguma solução.

— Por favor, não torne isto mais difícil, ok? — forcei uma risada abafada. — Eu

já estou com medo o suficiente.

— Alona, por favor. Basta esperar! — ele lutou contra as restrições.

Arrumei meus ombros e dei-lhe meu maior sorriso-vísivel-do-outro-lado-do-

campo-de-futebol.

— Não é possível. O tempo está se esgotando — toquei seu rosto, mas me

afastei antes que ele pudesse tentar me agarrar. — Eu voltarei para você se eu puder. Se

não... Vejo você do outro lado um dia, talvez — então eu caminhei pela porta e pelo

corredor antes que ele pudesse mudar minha mente.

Capítulo 16

Will Killian

183

Puxei com força suficiente contra as restrições para sacudir a cama e consegui

apenas esfregar os meus pulsos até ficarem em carne viva. Ok, então Alona tinha razão

sobre as consequências de sair daqui, mas ela tinha que me amarrar de novo para

provar isso?

— Tendo um pouco de dificuldade? — uma menina, provavelmente com cerca

de dez ou onze anos quando morreu, com tranças loiras e um pijama listrado rosa

deslizou sua pesada cadeira de rodas através da porta parcialmente fechada.

Eu ignorei-a.

— Ah, vamos lá — disse ela. — Eu sei que você pode me ouvir.

Ela se aproximou, mas eu me virei para o outro lado, de frente para o teto e me

concentrei em torcer meu pulso dentro da restrição. A restrição da direita, aquela que

Alona desfizera, estava mais larga do que a outra.

— Vi aquela desavergonhada loira com a boca suja saindo do seu quarto. Por

isso, eu sei que você pode falar com a gente — a menina continuou.

Desavergonhada? Ela quase me pegou com essa, quase me fez virar a cabeça e

olhar para ela. Alona e eu tínhamos, afinal, estado gritando bem alto por um tempo.

Mas mesmo que a menina tivesse ouvido alguma coisa, não havia forma de ela poder

ter certeza de que éramos nós. "Nós". Bem, esse era um termo engraçado para se aplicar

a mim e a Sua Alteza, Alona Dare. Mas beijá-la... Não importa quanto tempo eu viva (ou

não viva), nunca vou esquecer a sua boca, quente e macia, passando sob a minha, a seda

aquecida que eram seus cabelos se envolvendo em torno de meus dedos e aquele

pequeno suspiro de prazer, quase inaudível, que ela deu.

— Eu tenho que sair daqui — murmurei. Enquanto estava ali, Alona podia estar

desaparecendo para sempre.

— Eu posso te ajudar — a menina se ofereceu instantaneamente. — Eu só

preciso que você me faça um favor. É realmente fácil.

Eu quase não resisti a revirar os olhos.

— Eu sei que você pode fazer isso, também. Ouvi alguns dos outros falando

sobre você. Se você me ajudar — ela deu um encolher de seus ombros finos —, talvez eu

possa ajudar você.

Enquanto evitava o olhar dela, acabei encarando meu jeans deitado sobre as

costas da cadeira de visitante com todas as minhas outras roupas. Eu tinha pegado

todas as notas que Alona tinha jogado no chão com frustração e as tinha colocado no

184

meu bolso. Não que eu tivesse tido a chance para lhe dizer isso. Nos últimos minutos da

última aula, mesmo antes do alarme de incêndio ter tocado, eu tinha até mesmo escrito

parte da carta de vovô Brewster. Tinha começado mais como um gesto, para mostrar a

Alona que eu estava ouvindo — e que realmente não iria mudar a situação do vovô —,

mas quando eu me deixei levar, parecia a coisa certa a fazer. Talvez ela tivesse um

ponto. Era hora para parar de fugir. Mas como? Como é que alguém acreditaria em

mim agora?

— Vá lá, por favor? — a menina adulou, deslizando sua cadeira de rodas mais

perto da minha cama.

Lá fora no corredor, ouvi a voz de minha mãe, chegando mais perto.

— Foi totalmente inadequado e você espera que eu confie em você depois disso? —

perguntou ela.

— Julia, eu te juro, eu nunca deixei a minha escrita interferir com o tratamento de seu

filho.

Miller. Alona estava certa.

— Não me chame de Julia — disse ela, com mais autoridade em seu tom de voz

do que eu ouvira desde antes de meu pai morrer.

— Ok, ok — disse Miller com sua voz suave irritantemente falsa. Esse babaca

não sabia fazer nada direito?

— Precisamos descobrir o que há de errado com ele. Prendê-lo longe não é a resposta —

disse ela.

— Não penso dessa maneira, Julia. Com os medicamentos certos e terapia intensiva... —

Miller fez uma pausa. — Você ainda será capaz de visitá-lo aos domingos.

Oh, inferno, não. Eu puxei mais contra as restrições, sucedendo apenas em

perder outra camada de pele.

— Ok, fique à vontade. Suponho que você não quer sair daqui assim tanto. — a

garota fantasma começou a deslizar a cadeira de rodas para trás.

— Sair daqui não é o problema — disse eu, cansado. — Ficar fora daqui é que é.

E ela não é uma desavergonhada...

— Ah, eu sabia! — ela gritou de prazer.

Eu levantei uma sobrancelha.

— Que você me podia ouvir, eu quero dizer — disse ela.

185

— Querido, com quem você está falando? — minha mãe abriu a porta do meu

quarto com uma carranca.

Hesitei, um milhão de mentiras familiares caiu na ponta da minha língua. Era o

rádio. Eu estava falando para mim mesmo. Eu estava cantando... Ensaiando falas para um

teatro... Citando a minha frase favorita de Caça-Fantasmas. Mentira após mentira após

mentira. Eu poderia ter-lhe dado qualquer uma delas, mas as palavras simplesmente

não vinham.

— Não sei — eu disse finalmente. Olhei para a garotinha. — Qual é seu nome?

Os olhos de Miller quase incharam para fora de sua cabeça, tal era sua alegria.

Minha mãe só parecia... Resignada e um pouco assustada.

— Querido, sou eu — disse minha mãe. — O Dr. Miller veio para uma visita,

também.

Ignorei-os e mantive o olhar firme na menina.

Ela encolheu os ombros, finalmente.

— Seu funeral. Meu nome é Sara, Sara Marie Hollingsford.

Eu assenti.

— Prazer em conhecê-la, Sara Marie Hollingsford.

Minha mãe ofegou.

— Não.

Miller se aproximou.

— Ele está tendo outro episódio. Agora, Will…

— Você fique longe — eu lhe disse. — Mãe, estou bem. Eu sempre estive bem.

Eu realmente posso ver e falar… — não havia nenhuma maneira fácil para suavizar a

próxima parte — Com os mortos.

Ela balançou a cabeça.

— Não outra vez, William — sua voz quebrou.

— Sim, outra vez, o tempo todo. Eu só parei de tentar convencer você porque

parecia mais fácil deixar você acreditar no que você queria. Isso foi o que o meu pai fez

e aquilo que ele me disse para fazer.

Ela empalideceu.

186

— Seu pai sabia?

— Ele era o que eu sou. A vovó Killian também, eu acho — eu nunca a tinha

conhecido porque ela tinha morrido antes de eu nascer e, evidentemente, não tinha

ficado por aí. Pelo que meu pai tinha dito, embora, nas raras ocasiões em que eu

consegui convencê-lo a falar sobre isso, ele tinha herdado seu ―dom‖ de sua mãe.

Um olhar estranho passou pelo rosto de minha mãe.

— Bridget?

— O quê? — Eu perguntei, tentando não parecer ansioso demais.

Ela balançou a cabeça como se quisesse tirar importância de algo, mas as

palavras escaparam de qualquer maneira.

— Ela me disse uma vez que minha avó tinha deixado o colar para mim e não

para Charlotte. Eu não tinha ideia do que ela estava falando. Ela apenas tinha conhecido

a minha avó uma vez, no nosso casamento. Depois, quando Char casou alguns anos

depois, ela usava as pérolas que eram as favoritas da minha avó.

Não é de estranhar que a tia Charlotte — que vivia na Califórnia — e minha

mãe tinham crescido como as mais amargas rivais de todas as histórias que eu já ouvira.

— Não me diga que você está começando a acreditar nisso — Miller suspirou.

— Julia, seu marido cometeu suicídio por causa de uma depressão profunda e repetidos

episódios de esquizofrenia. Esquizofrenia tem um componente genético que pode ser

passado para a descendência.

— Tal como este dom... Maldição, sei lá — eu atirei de volta para ele. Então eu

virei a minha atenção para a minha mãe. — Papai se matou porque ele estava se

escondendo.

Ela deu um passo para trás. Nós nunca conversamos sobre o que aconteceu com

o meu pai, nunca. Era quase como se ela temesse que dizer as palavras faria com que

acontecesse de novo.

— A pressão para se comportar normalmente, ignorar dezenas e dezenas de

vozes em torno dele, todo o tempo... Afetou-o, eu acho. Mas eu estou farto de me

esconder — a ferocidade da declaração surpreendeu até a mim, mas era genuína.

— Já ouvi o bastante. Nós vamos discutir isso amanhã depois de seus testes

estarem completos — Miller começou a se dirigir para a porta.

— Você quer uma prova — disse eu.

Ele parou e virou-se com um sorriso apertado.

187

— Suponho que a minha tia-avó Mildred espera lá por uma mensagem.

Mildred?

— Uh, não, sou só eu e Sara no momento. Ao contrário do cinema ou TV, eu só

posso falar com quem está aqui e ela não tem nenhuma mensagem para qualquer um

de vocês — olhei para Sara por confirmação e ela assentiu. — Mas eu quero saber se ela

estaria disposta a jogar um joguinho.

Ela encolheu os ombros.

— Por que não?

— Ok, o Dr. Miller lá — fiz um gesto para ele com o meu queixo — eu podia

ter-lhes pedido para me liberarem das restrições, mas não queria que eles pensassem

que isso era um truque para me ajudar a escapar. — Ele vai sair para o corredor, fechar

a porta e escrever uma palavra no seu receituário. As únicas regras são: tem que estar

escrito de forma clara e o receituário fica onde ele possa ver o que está escrito em todos

os momentos.

— Isso é ridículo — ele murmurou, mas saiu para o corredor e fechou a porta

atrás dele. Ele estava, provavelmente, já se imaginando a escrever isto como um novo

capítulo em seu livro.

Sara seguiu. Um segundo depois, ela disse:

— Ele está segurando alto demais.

— Você precisa baixar um pouco — eu gritei a Miller. — Sara, está em uma

cadeira de rodas.

Minha mãe deu um leve suspiro.

— Hum, eu não conheço essa palavra — Sara soou incerta.

Merda, eu não tinha pensado nisso. Talvez eu devesse ter pedido um número

em vez disso.

— Você pode soletrá-la?

— A-N-A-B-O-L-I-Z-A-N-T-E-S.

— Anabolizantes — eu gritei.

Nenhuma resposta.

— O que ele está fazendo? — eu perguntei.

— Ele parece meio louco. Espera, ele está escrevendo outra palavra.

188

— Mãe — sussurrei. — Você acredita em mim? Isso é tudo o que importa.

Ela hesitou, afastando um fio de cabelo para fora de seu rosto cansado e então

eu percebi que ela ainda estava em seu uniforme da lanchonete. Alguém devia ter

ligado para o trabalho. O número estava na minha carteira.

— William, eu não quero nada mais do que o seu bem, mas…

— Hum, vest-ig-al? — Sara tentou.

Eu fiz uma careta.

— Soletre esta, também.

Ela soletrou.

— Vestigial — eu gritei. Graças a Deus pela Seção de vocabulário do SAT52.

— Ele está escrevendo mais outra... Não vou dizer isso!

Eu ri.

Minha mãe me olhou rapidamente.

Balancei minha cabeça.

— Ele escreveu um palavrão. Você pode soletrá-lo, Sara?

— Não! — disse ela.

— Por favor?

— Começa com ‗‘best53‖ — ela disse ofensivamente.

— Eu acredito que o bom doutor está questionando minha autenticidade. Não é

besteira, Dr. Miller. Eu juro.

— Agora ele está apenas escrevendo um monte de letras. X, Y, Q...

Repeti-as a seguir e a porta abriu novamente surgindo Miller com seu bloco na

mão de olhos arregalados. Sara deslizou para dentro do quarto depois dele.

— Como você está fazendo isso? Você tem espiões no corredor — ele acusou.

52

O SAT (uma vez sigla para Scholastic Aptitude Test ou Scholastic Assessment Test) é um exame educacional padronizado nos Estados Unidos aplicado a estudantes do 2º grau, que serve de critério para admissão nas universidades norte-americanas (semelhante ao vestibular brasileiro, embora as universidades não se baseiem somente nas notas dos alunos para aprová-los).

53 Do original ‗bullshit‘, que tanto pode ser mais informal como ‗‘besteira‘‘ como mais palavrão como ‗‘merda‘‘… depende do contexto.

189

— Você está certo — disse eu. — Seu nome é Sara e ela morreu em... — olhei

para ela.

— 1942 — ela forneceu.

— 1942 — eu terminei.

A boca de Miller trabalhou, mas nenhum som saiu.

Minha mãe tirou a folha de cima de seu bloco e olhou para ele. Ela empalideceu

e sua boca apertou.

Eu segurei minha respiração.

Então ela disse a Miller:

— Faça seu nome54 com o filho de outra pessoa. Terminamos aqui — ela franziu

a testa para mim. — William, relaxe, eu vou conseguir tirar você daqui. Não pense que

você está salvo, porém, jovem. Você tem um monte de explicação para dar.

Eu nunca estive tão feliz por ter minha mãe com raiva de mim.

— Ok.

Ela se virou nos calcanhares e marchou para fora da sala.

Miller se arrastou atrás dela.

— Mas, Julia...

— Obrigada — eu disse a Sara. — Como eu posso te ajudar?

— Meu irmão me deu a medalha dele de S. Miguel quando eu vim para o

hospital. Ela ainda está no meu arquivo. Eles levaram-na quando fizeram raios-X. Eu

quero tê-la de volta.

Assenti.

— Eu acho que eu posso fazer isso — entrar na sala de arquivo podia ser

complicado, mas eu teria que ajudar. — Eu tenho que fazer outra coisa primeiro e

depois eu volto.

Ela inclinou a cabeça para um lado e me deu um olhar avaliador.

— Você vai atrás da loira.

Assenti. Ela balançou a cabeça.

54 Expressão com o significado de ―se torne famoso‖ às custas de outra pessoa‘ neste contexto.

190

— Boa sorte com isso. Ela parece ser uma dor na bunda.

Foi só depois de Sara sair através da porta que eu percebi que todos tinham me

deixado ainda em restrições. Droga, eu podia ter começado a me vestir. Eu não tinha

ideia de quanto tempo Alona ainda tinha.

— Sara? — eu chamei. — Mãe? Olá?

Felizmente, a porta do meu quarto abriu novamente imediatamente.

— Oh, bem — eu disse. — Eu achei que você poderia ter estado longe demais

para…

Levou ao meu cérebro apenas poucos segundos extra para processar o que eu

estava vendo — alguém, não a minha mãe, entrando na sala com uma cadeira de rodas.

Uma cadeira de rodas moderna já ocupada, a sua passageira caída para o lado em um

estranho ângulo não natural.

— Will! — Joonie gritou, sua voz toda aguda e com loucura adjacente. Ela girou

a cadeira de frente para mim e Lily, com seus olhos tão maçantes e vazios como tinham

estado durante os últimos oito meses, olhou fixamente na minha direção. Um tabuleiro

de Ouija descansava no seu colo.

— Estamos tão felizes que você esteja acordado.

191

17

Alona Dare

Levei 45 minutos, doze carros e um reboque para chegar em casa, usando um

sistema complicado de deslizar em cada um dos veículos e pegar carona com eles até

que se desviavam do meu curso desejado. Então eu pulava fora — ou melhor, esperava

até chegarem a um sinal vermelho — e tentava encontrar outro carro que fosse à

direção certa.

Tinha que haver uma maneira melhor para os espíritos viajarem, mas eu não ia

estar por aí para encontrá-la. A pressão estranha que eu senti no quarto de hospital de

Killian estava ficando cada vez mais forte.

Andei os últimos três quarteirões até casa, assistindo adultos estacionarem em

suas entradas após um longo dia de trabalho, crianças brincando um último jogo antes

de serem chamadas para jantar. Verão, a minha estação favorita do ano, estava

chegando. Manhãs de dormir até tarde e ainda assim sair de casa antes de minha mãe

ter acordado. O dia inteiro livre para fazer qualquer coisa e ir onde eu quisesse. A

capacidade de passar quase todas as noites na casa da Misty, sem que ninguém

suspeitasse que era, mais do que tudo, porque eu não queria ir para casa.

Quando olhei para a minha casa, vi-a de forma diferente. Eu não lembro muito

dos meus primeiros doze ou treze anos de felicidade relativa, principalmente porque

agora parecia que tudo tinha apenas estado se encaminhando para estes últimos anos

de miséria.

Foi aí que a minha mãe se ajoelhou na calçada e pediu ao meu pai para não ir

embora. Foi aí que ele dirigiu sobre os berços de flores que nessa altura estavam

cuidadosamente esculpidos, quase derrubando um bebedouro de cimento para

pássaros55, para evitar bater contra ela, não que isso o tenha impedido de ir embora.

Essa janela com tábuas no segundo andar, que é bem próxima do chuveiro, onde ela

55 Do original 'bird bath' que é uma "poça" artificial ou pequena lagoa, criada com uma bacia cheia de água, para que as aves tomem banho, se refresquem ou bebam. Pode ser um enfeite de jardim, um espelho de água de pequeno porte, uma escultura ao ar livre, e parte da criação de um jardim selvagem vital. Imagem: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Bird_bath_backyard_summer_mockingbird.jpg

192

―escorregou‖ no azulejo molhado, caiu e quebrou a janela, cortando o braço dela.

Quando a encontrei, o chuveiro estava seco. Minha mãe, no entanto, não estava. Ela

cheirava mais a álcool do que a sangue e, considerando as enormes quantidades deste

último que estavam no chão, isso era realmente dizer alguma coisa. E a porta da

garagem... É melhor eu nem começar a falar sobre isso. Quão difícil é lembrar-se de

olhar para trás para se certificar que a porta está aberta antes de começar a retirar o

carro?

Apenas por caminhar até a casa eu podia sentir uma tensão familiar fazendo a

minha mandíbula doer e meus ombros ficarem tensos. Ela nunca me batera, não

importa quão bêbada estava. Oh, não, não Cheryl Dare. Em vez disso, ela tinha apenas

me sufocado com sua carência. Cherie era vítima de um marido adúltero e desatento.

Nada disso era culpa dela.

A parte mais triste e patética é que ela fez tudo isso pelo meu pai. Como se

quisesse mostrar quão vulnerável e confusa ela ficava sem ele, ele teria que voltar. Onde

está a lógica disso? Eu teria fingido que não precisava dele, que nunca precisei dele. Na

verdade, não teria sido fingimento. Eu nunca deixaria ninguém me transformar como a

minha mãe tinha deixado o meu pai fazer.

Esse era o problema com a minha mãe. Ela era linda e ela não sabia como ser

qualquer outra coisa. Não como eu, ela não era nada como eu. Eu tenho a aparência

dela, mas o cérebro do meu pai. Quando ele queria, ele podia ser um filho da puta

muito frio e calculista. A única coisa que meu pai fazia sempre que a notícia dos

problemas e das escapadas de mamãe finalmente chegavam até ele — alguns dos

vizinhos ainda eram amigos dele e de sua nova esposa — era me ligar.

Todos queriam saber o que eu estava fazendo naquele dia, no dia em que eu

morri. O que me fez atravessar a rua sem olhar? O que me tirou do papel de líder de

torcida com um futuro na universidade para o papel de garota do memorial em preto-e-

branco para o anuário?

Deus, eu gostaria que fosse algo legal. Interessante, no mínimo. A verdade é

que era apenas mais um dia.

Meu celular tocou bem antes de eu fechar meu armário do ginásio. Se meu pai

tivesse esperado mais alguns segundos para ligar, ou se eu tivesse ignorado o toque, a

minha vida teria mudado drasticamente. Ele tinha um encontro marcado com minha

mãe no Eickleberg and Feinstein às 7h30, antes de ir para o trabalho. Eles iam discutir

mudanças de natureza alimentícia, apoio financeiro à filha e como lidar com minha

faculdade. Já tinha sido decidido, principalmente pelo meu pai, que eu iria frequentar

uma escola a uma fácil distância para conduzir, obviamente. Alguém tinha que ficar por

aqui e manter controle sobre a minha mãe. Daí, meu presente de formatura, o Eos.

193

Enfim, já eram 07:00 e meu pai queria saber se eu poderia ir, por favor, me

certificar que ela já estava acordada e indo para lá?

Eu poderia ter explicado que já estava na escola. Detalhes não são coisas para o

meu pai, então, ele provavelmente não se lembrava do meu horário ou, mais

especificamente, que eu me inscrevi para ter ginástica logo cedo. Mas eu não me

incomodei. Eu sabia que ele não ligaria para casa nem passaria por lá, assim como eu

sabia que a minha mãe estava, provavelmente, em casa esperando que ele fizesse

exatamente isso. Se ela faltasse a esta reunião, Gigi, a nova esposa, não hesitaria em

pressionar o meu pai para diminuir seus pagamentos para nós ainda mais. Ela queria

ter filhos. Ele disse que não podiam sustentá-los.

Devia ter sido uma coisa simples, algo que eu já fizera dezenas de vezes antes.

Inventar uma desculpa, escorregar para fora da escola ou do treino de líder de torcida

ou de uma festa para ir para casa, arrumar a bagunça que a minha mãe tinha feito na

esperança de atrair a atenção do pai e enviá-la de volta para a cama ou o hospital ou

qualquer outra coisa, dependendo do caso. E então voltar para a minha vida normal,

fingindo que nada estava errado.

Mas neste dia, uma fria e bela primeira manhã de maio, algo dentro de mim se

partiu. Ela arruinou tudo.

Eu a odeio. Isso era o que eu estava pensando quando saí da beira da estrada na

Henderson. Se o karma vinha em porções do tamanho de ônibus, algumas pessoas

provavelmente diriam que eu recebi o que merecia por pensar nisso. Afinal de contas,

logicamente falando, tudo isso era tão culpa do meu pai, como era dela. Ele foi quem a

traiu e depois foi embora, o que me usou como um escudo contra ela. Mas ela era a

única com o poder de parar isso, de se recompor em algo vagamente semelhante a um

pai em vez de um gigante buraco negro de carência. Ela simplesmente se recusou a

fazê-lo.

Agora, do lado de fora da minha casa — sua casa desde a manhã de segunda-

feira — eu senti uma onda familiar do ressentimento. Eu tinha morrido e ela ainda

estava controlando minha vida, me segurando como refém como a minha ―questão não

resolvida‖ como Killian gostava de dizer.

Engoli a minha frustração, levantei o meu queixo e pisei no alpendre. Eu ia

perdoá-la por ser ela mesma: com falhas, imperfeita, humana. Eu poderia fazer isso,

certo? Olhando para os meus pés, agora cintilando dentro e fora da existência de novo,

eu imaginei que teria que fazê-lo.

Apenas entre, diga que está arrependida e que a perdoa e depois saia. Se eu corresse,

talvez eu pudesse voltar para Killian a tempo. Eu estava preocupada com ele preso

naquele hospital, sem ninguém para ajudá-lo. Além disso, se eu estava indo embora,

194

partindo realmente de vez, eu não queria ficar sozinha. Ele tinha me beijado. Talvez ele

esperasse comigo enquanto eu partia. Eu atravessei o limiar da porta da frente para

dentro do saguão... E parei. Algo estava diferente.

Virei-me em um círculo, olhando para a sala, pelo corredor até a cozinha, para a

sala agora vazia e empoeirada que tinha sido o escritório do meu pai. Levei um

segundo para perceber o que estava errado. Todas as venezianas estavam subidas, as

cortinas abertas. A última chama da luz ao pôr do sol se derramava através das janelas

nuas, caindo no polido pavimento de retângulos longos. Nunca nos últimos anos ela

tinha sequer me permitido abrir as persianas, muito menos abrí-las ela mesma. As

ressacas que duravam todo o dia eram as piores e ela geralmente tomava medicação

para evitá-las. Manter a casa escura era uma medida de precaução necessária. Às vezes,

tinha sido como viver com um vampiro saturado de vodca.

Mas agora... Eu me virei de novo num círculo lento, uma desconfortável

sensação de incerteza no fundo de meu estômago. Era quase como andar na casa

errada. Então, vindo da cozinha nas traseiras, ouvi o tilintar familiar de garrafas e

relaxei.

— Eu sei que é difícil, mas você está fazendo a coisa certa — disse uma voz

suave feminina que veio da cozinha.

Essa não era a minha mãe. Eu fiz uma careta e caminhei para a cozinha.

Na mesa, minha mãe estava sentada de costas para a porta e à frente dela estava

uma mulher negra que eu nunca tinha visto antes. Seu cabelo estava cortado rente à

cabeça, enfatizando as linhas de seu rosto e seus lindos brincos de prata suspensos. Eles

eram grandes demais para o meu gosto, mas ela conseguiu que ficassem bem. Sua pele

era linda, embora as linhas em seus olhos sugerissem que ela era mais velha do que

parecia, talvez até da idade de minha mãe.

Enquanto eu olhava, ela estendeu a mão para apertar a da minha mãe. Lenços

usados estavam espalhados por toda a mesa, dispersos entre dois copos de café. O copo

sempre presente da minha mãe não estava em nenhum lugar próximo. O que era isso?

Eu entrei mais na cozinha e senti o cheiro forte de álcool. Garrafas vazias de

vodca, provavelmente as mesmas que eu tinha manipulado ontem, estavam agora

alinhadas no balcão, como pequenos bons soldados. Na pia, os suprimentos de backup

em caso de emergência da minha mãe — gin, tequila e rum — borbulhavam para fora

de suas garrafas viradas de cabeça para baixo na direção do dreno, formando uma

mistura potente. O armário debaixo da pia, onde ela havia escondido seu conjunto extra

de garrafas, estava aberto e eu não conseguia ver lá nada agora, exceto os materiais de

limpeza.

195

Uma terrível suspeita se formou na parte de trás da minha mente e eu me virei

para a minha mãe. Ela parecia vinte anos mais velha — sem a maquiagem para

esconder os escuros círculos sob seus olhos. Quando ela pegou a xícara de café, sua mão

tremia tanto que o café, ainda fumegante, transbordou. Nem ela nem a sua visitante

pareceram notar, ou estavam ignorando.

Minha mãe limpou a garganta.

— Eu quero agradecer a você por ter vindo. Eu não tinha certeza se podia... —

ela gesticulou levemente na direção geral da pia.

A outra mulher sorriu, revelando brilhantes dentes brancos com um pequeno

buraco na frente.

— Cherie, é para isso que servem os padrinhos56, para ajudá-la.

Nenhuma bebida na mão, garrafas de álcool sendo esvaziadas na pia, e... Uma

madrinha?

— Puta merda — eu disse. — Eu morro e agora você pára de beber?

Uma explosão de fúria, branca e pura, explodiu silenciosamente por trás de

meus olhos. Eu senti que não podia respirar, o ódio fervendo em meus pulmões.

— Agora você decide ser uma adulta?

Minha mãe balançou a cabeça.

— É minha culpa, Angela. O acidente... — a voz dela quebrou e ela agarrou um

lenço de papel descartado.

— Você está certíssima! — gritei.

— Como? — Angela perguntou. — Você estava dirigindo o ônibus? Você

empurrou a sua filha para a estrada?

— Não, mas... — ela hesitou.

— Poderia muito bem tê-lo feito — girei para longe delas e joguei meu braço

contra as garrafas no balcão, pretendendo derrubá-las todas para o chão. Apenas uma

caiu... E nem sequer se partiu. Minha mãe e Angela olharam para cima, mas nenhuma

delas pareceu alarmada ou mesmo muito assustada.

Droga. Estendi a mão para tentar de novo e percebi que meu braço estava

desaparecido desde o cotovelo para baixo. Não cintilando, não desvanecendo, mas

desaparecido. Não, não, não.

56 Do original ‗‘sponsor‘‘, que são os padrinhos dos programas dos Alcoólicos Anónimos.

196

Fui raivosa para o lado de minha mãe.

— Qual é o seu problema? — perguntei, um tremor fino de raiva correndo pelo

meu corpo. — Eu vim aqui para te perdoar. E agora você decidiu que desperdiçou

muito tempo, desperdiçou a MINHA VIDA e agora é hora de se recompor? Foda-se.

Depois disso, meu desaparecimento começou a sério. Eu podia sentir toda

aquela energia negativa de que Killian tinha falado se construindo dentro de mim,

morrendo de vontade de ser liberada. Em segundos, os dois braços e as pernas se foram

e eu podia sentir aquela linha de frio, que dividia o ―não aqui‖ e o ―aqui‖ subindo pelo

meu corpo.

— Eu sinto que ela deve me odiar — minha mãe sussurrou.

— Você está certa! — eu gritei, antes que minha boca pudesse desaparecer.

— Não — Angela balançou a cabeça. — Tenho certeza que, onde quer que

esteja, ela sabe que você a amava e ela perdoa os seus erros.

— Cale a boca, Angela. Você não me conhece. — Ou pelo menos, era o que eu

teria dito, se pudesse. A sala tinha se tornado nebulosa e vaga. Eu já não podia ver

muito além da minha mãe e Angela e mesmo elas estavam começando a desaparecer

nas bordas. Então, era isso. Eu não conseguiria voltar para Will. Meus olhos arderam

com lágrimas.

Minha mãe deu um sorriso tenso.

— Você não conhece Alona — seu sorriso sumiu. — A pior parte é que, mesmo

que ela me perdoe, eu não mereço isso.

Eu congelei, o pouco que restava de mim.

— Cherie… — Angela começou.

— Não, ouça. Naquela manhã, ontem de manhã, eu deveria encontrar Russ no

escritório do advogado. Mas eu esperei, eu deliberadamente não me levantei, não me

vesti, porque pensei que Russ viria. Eu só queria falar... — ela rompeu em soluços. —

Eu nunca imaginei que ele iria tirá-la da escola.

— Você disse-lhe que está arrependida? — Angela perguntou calmamente.

Ela balançou a cabeça.

— É tarde demais. Ela está…

— Nunca é tarde demais.

197

Ela hesitou, depois olhou para suas mãos dobradas sobre a mesa com o lenço

apertado entre elas.

— Alona, meu amor... — a garganta dela funcionou, mas não saiu nenhum som.

Ela engoliu em seco e respirou fundo. — Eu estou tão, tão arrependida. Eu não quis que

isto acontecesse. Eu só queria que tudo fosse do jeito que costumava ser e eu... Estraguei

tudo. Agora, nem sequer pode ser do jeito que costumava ser só você e eu — seu olhar

percorreu a sala e por um segundo, ele pousou em mim. Seus olhos eram do mesmo

tom de verde que os meus. Era como olhar para algum espelho retorcido e ver como eu

teria me parecido vinte anos mais tarde... Sob o peso da dor e da culpa. — Eu sinto

muito.

Eu queria continuar lutando, continuar gritando, mas olhando para ela, algo

que estava apertado dentro de mim aliviou. Minha raiva apenas escapou, como um

peso que eu já não queria mais segurar. Através de um brilho nebuloso, eu vi Angela

chegar mais perto e dar a minha mãe um abraço apertado com um braço.

— Vai dar tudo certo — disse ela.

Um delicioso calor se espalhou pela minha pele. Huh, talvez Angela estivesse

certa. Parecia que eu estava flutuando na piscina mais perfeita no dia de Verão mais

perfeito. Alguma coisa sobre isso... Franzi o cenho. Parecia familiar, como se eu já

tivesse experimentado isso antes ou ouvido alguém falar sobre isso...

Olhei para cima lentamente, sentindo-me quase drogada com esta súbita

sensação de paz e notei o tom dourado da luz que me cercava. Meu feliz cérebro lento

juntou as peças. Era isso, finalmente! A luz veio para mim e era exatamente como Will

havia descrito. Will!

— Espere — obriguei-me a me concentrar tempo suficiente para empurrar as

palavras. — Espere, eu não posso abandoná-lo. Ele precisa...

A luz ficou mais intensa, absorvendo tudo, incluindo qualquer pensamento que

eu estava tentando transmitir em um grande brilho, branco e feliz, de nada.

198

18

Will Killian

— Joonie, o que você está fazendo? — eu lutei para manter minha voz firme.

— Você sabe, eu levei um tempo para descobrir isso — ela empurrou a cadeira

de Lily mais para dentro do quarto e, em seguida, virou-se e fechou a porta. — Eu

sempre soube que você era diferente. Eu apenas pensava que você era apenas maluco,

como seu pai e tudo mais — ela soava demasiado alegre, até mesmo assustadora. —

Então, naquela noite, a primeira noite em que nos deixaram visitar a Lily no hospital,

você lembra? — ela continuou sem esperar que eu respondesse. — Sua mãe tinha ido

embora e você adormeceu na cadeira. Eu decidi tentar o tabuleiro de Ouija. Pensei que

talvez eu pudesse falar com ela desse jeito, você sabe, dizer-lhe para acordar — ela

estreitou os olhos em mim. — Mas alguma coisa aconteceu ao contrário, não é?

A Massa. Essa foi a primeira vez que eu a vi.

— Eu chamei-a e ela veio, não foi? — ela perguntou. — Você a viu.

Sirenes de alarme soaram na minha cabeça. Talvez Alona tivesse razão sobre

Joonie depois de tudo.

— J — eu disse o mais suavemente possível. — Estou feliz que você veio me

visitar, mas a minha mãe está tentando que me deem alta…

— Oh, não — ela balançou a cabeça. — Não pode ser. Ainda não — ela rodou a

cadeira de rodas de Lily para pegar uma das cadeiras de visitante. Ela arrastou-a até ao

outro lado do quarto e angulou-a sob a maçaneta da porta, trancando a porta. — Assim

está melhor.

Ela virou-se para mim novamente com um sorriso assustador.

— Você pode vê-los, não pode? Fantasmas, espíritos, o que seja. É por isso que

você está sempre tentando não ouvir as coisas, porque você sempre tem a sua cabeça

para baixo, para não reagir a eles.

Oh, nada bom. Tentei redirecionar a atenção dela.

199

— Joonie, o que você está fazendo com a Lily? Ela pode estar fora de seu

quarto? — ela parecia estar bem pelo que eu podia ver. Ela não precisava de um

respirador para respirar, mas eu não tinha certeza de quanto tempo ela podia ficar

afastada de seu IV. Era difícil vê-la desta forma, os olhos baços e o rosto afundado. Ela

estava vazia.

Joonie acenou com a mão com desdém.

— Seu corpo está bem. Eles deixaram-na sozinha na cave à espera de uma

ressonância magnética.

Isso explicava como Joonie tinha conseguido trazer Lily aqui, embora não

explicasse porque ela a trouxera para o meu quarto.

— Você sabe, eu tentei fazer isso da maneira mais fácil — ela disse reprovadora.

Empurrou a cadeira de Lily mais perto, os olhos brilhantes e as bochechas rosadas como

se ela tivesse febre. — Tentei trazer você ao hospital. E ontem, no refeitório, eu sei que

ela estava lá com você.

— Não — eu balancei minha cabeça. — Ela não estava.

Ela franziu a testa para mim.

— Ninguém desce ao primeiro nível para fingir fazer uma chamada, Will.

— Não era ela — eu insisti. — Ela não está aqui.

Mas Joonie continuou como se ela não me tivesse ouvido.

— Eu disse para ela falar com você, para pedir-lhe ajuda. Nós só precisamos

que você faça um pequeno favor, Will. Isso é tudo.

— O que você quer? — o botão para chamar a enfermeira estava bem fora do

meu alcance nestas restrições e eu adivinhei que gritar por ajuda provavelmente não me

levaria muito longe, não com qualquer que fosse a avaliação que Miller tinha em

arquivo para mim.

— É fácil. Eu quero que você me ajude a colocar a alma de Lily de volta em seu

corpo.

Olhei para ela. Aparentemente, a parte normal da Joonie estava sendo

substituída pela parte Twilight Zone de Joonie hoje à noite.

— Você está louca? Eu não posso…

Ela balançou a cabeça violentamente.

200

— Não me diga que você não pode fazê-lo. Não minta! — o rosto dela ficou de

um vermelho violento. — Você mentiu esse tempo todo.

Quanto tempo é que poderia eventualmente levar dar alta a um paciente?

Minha mãe voltaria para aqui a qualquer minuto, certo? Ela iria notar que a porta

estava emperrada e chamaria alguém para ajudar. A coisa mais segura a fazer era

provavelmente só continuar fingindo que isso era normal. Claro que sim.

— Do que você está falando?

Ela inclinou a cabeça para trás com uma risada áspera.

— Oh, como se você não soubesse.

— Hum, na verdade... — dei de ombros, ou fiz o melhor que pude com as

minhas atuais restrições.

— Tudo bem. Você quer me fazer dizer. Tudo bem — ela assentiu com a cabeça

e apenas continuou assentindo, como se a sua cabeça estivesse solta em seu eixo. — Eu

encontrei Lily, ela foi minha amiga primeiro.

— Ok — eu disse lentamente. — Até agora, eu estou acompanhando você.

— Mas ela preferiu você — ela retrucou.

Intrigado, tentei seguir sua linha de pensamento.

— Não aconteceu nada entre Lily e eu. Você sabe disso. Nós éramos apenas

amigos, todos nós.

— Não — ela balançou a cabeça. — Não apenas amigos, não todos nós — ela

olhou para mim, como se me forçando a entender.

De repente, eu compreendi. A forma como a presença de Lily parecia fazer

Joonie ficar radiante. Toda a raiva e mágoa com que ela tinha ficado após a grande briga

delas no último verão. O quão completamente devastada ela tinha ficado após a

acidente, mesmo que elas não se falassem há meses. As dicas de Alona sobre Joonie ter

uma paixão.

— Oh, Joon. Eu não sabia. Eu não sabia que você e Lily eram... — eu parei sem

jeito. Às vezes o meu dom, a minha maldição, o que você quiser chamá-lo, me forçava a

viver a maior parte do tempo noutro mundo, tentando não ver, ouvir ou sentir certas

coisas. Evidentemente eu tinha feito a minha parte de não ver várias coisas neste

mundo, também.

— Nós não estávamos — disse ela, cansada.

201

— Então eu não entendo — talvez fosse apenas eu e os meus repetidos

ferimentos na cabeça, mas eu ainda não conseguia entender.

Joonie deu a volta à cadeira de rodas para se encostar contra a minha cama e de

frente para Lily. Eu resisti a impulso de afastar a minha parte inferior do corpo, pelo

menos, para longe dela. Ela estava me assustando um pouco.

— Eu beijei-a uma vez — disse ela. — Você sabia disso?

Obviamente que não.

— No verão passado — ela sorriu para a memória.

— Antes da briga — sobre garotos. Isso é o que Joonie tinha dito. Elas brigaram

sobre garotos. Eu fechei os olhos pela minha própria estupidez. Claro, elas brigaram

sobre garotos, como Lily gostava deles e Joonie não.

— O que aconteceu? — eu perguntei, mas agora eu podia meio que adivinhar.

— Ela acabou com o assunto rapidamente. Eu pensei que ela ia correr, mas ela

não o fez. Ela apenas meio que me olhou e disse ‗‘Eu me perguntava‘‘. Então ela pegou

a minha mão e me disse que, apesar de gostar muito de mim, ela não se sentia assim —

Joonie revirou os olhos e as lágrimas deslizaram para baixo em suas bochechas, fazendo

estrias escuras no rosto dela. — Provavelmente, a maneira mais agradável que alguém

jamais poderia ter me dito que não, mas eu... — sua voz tremeu.

— Você entrou em pânico.

Ela assentiu.

Isso eu entendia. Ao manter um segredo por tanto tempo, ele começa a parecer

uma parte vital de você. Você fica tão acostumado a viver com ele dessa maneira que a

ideia de ser exposto parece ameaçar sua vida.

— Eu... Eu disse todos os tipos de coisas horríveis para ela.

Acusei-a de ser uma provocadora, de me iludir, o que ela não tinha feito. Eu disse para

ela ficar longe de mim e de você, ou... Ou eu ia dizer a todos que ela me beijara, que ela

me forçara.

Para Lily, que aspirava ser incluída, que sonhava andar entre a elite de primeira

linha, a ameaça de Joonie teria sido suficiente.

Ela olhou para mim, os olhos implorando por compreensão.

— Eu estava tão assustada. Já é difícil o suficiente em casa e se as pessoas na

escola descobrissem a palavra se espalharia e você sabe que alguém eventualmente

contaria ao meu pai.

202

O seu pai odiava o cabelo tingido dela, as roupas rasgadas e os piercings. Eu

tinha receio de pensar sobre o que ele faria se descobrisse que suas escolhas alternativas

se estendiam para além de sua aparência. Ele era mais como uma espécie de pregador

do Velho Testamento.

— Aquela noite foi minha culpa — disse Joonie. — Se eu não a tivesse

afastado...

Eu balancei minha cabeça.

— Não, J, ouça. Ela tentou ligar-me naquela noite.

— Ela o quê? — ela parecia surpresa.

— Ela não deixou uma mensagem, mas ela tentou me ligar. Eu tinha meus fones

de ouvido, por isso não o ouvi tocar. Ela ainda contou conosco como seus amigos, o

suficiente para ligar quando ela precisou de alguém. Eu não te disse, porque sabia que

você se culpava pela briga. Eu estava com medo que você pensaria que ela me ligar

significava que ela sentia que não podia ligar para você. Eu não quero que você pense

que é de alguma forma responsável. Não é culpa sua. Ela ligou. Ela... — eu parei

quando Joonie começou a rir, um som áspero e horrível, cheio de angústia e bordas

afiadas.

— Olhe para você, tão sério e inocente — ela sorriu amargamente. — Ela me

ligou também, Will. Duas vezes. Eu conversei com ela.

Olhei para ela, o mundo como eu o conhecia se movimentando e caindo ao meu

redor.

— O quê?

— Ben Rogers usou-a e a jogou fora, tal como ele sempre faz e suas amigas

princesas adolescentes já não queriam ter nada mais a ver com ela — Joonie balançou a

cabeça em desgosto. — Então, ela me ligou e eu... Eu disse que ela teve o que merecia —

sua voz quebrou e seus ombros se agitaram em um silencioso soluçar.

Eu balancei a cabeça em descrença atordoada.

— E a segunda vez que ela ligou? — obriguei-me a perguntar.

— Eu desliguei.

— Joonie — eu respirei.

— Eu acho que foi nessa altura que ela começou a chorar tanto que não

conseguia ver e perdeu o controle sobre o seu carro — disse ela secamente.

— Oh, meu Deus.

203

Ela se ajoelhou ao lado de Lily.

— Então você vê porque temos que fazer isso. Eu preciso trazê-la de volta.

Preciso emendar isso.

— Joonie — lutei contra as restrições, tentando sentar-me. — Você não pode.

Ela se foi. Realmente e verdadeiramente se foi.

Ela suspirou.

— Eu achei que você poderia dizer isso — ela estendeu a mão para o tabuleiro

de Ouija que descansava nas pernas de Lily. No instante em que suas mãos tocaram o

tabuleiro, sombras piscaram e rodaram para a vida em um canto do quarto atrás dela. A

Massa Sombria. Droga. Eu nunca tinha visto um fantasma responder tão prontamente.

Era... Estranho.

— Eu sei que você está mentindo — disse ela, seu tom desprovido de qualquer

emoção. — Eu vejo o que acontece com você quando eu a chamo do outro lado. Ela está

com raiva de mim pelo que eu disse e com você por me ajudar.

— Ela não está com raiva. Não é ela. É... — na verdade, eu não sabia o que era.

Tão de perto, com Joonie aqui na minha frente, eu podia ver um fio fino de fumo que

saía de Joonie e ia para a crescente monstruosidade que era a Massa. Como uma coleira

ou um... Tubo de ligação.

Eu congelei. A energia é apenas energia, até que ela me encontra. Isso é o que eu

disse a Alona. Se Joonie, em seus esforços para comunicar-se com Lily, estava enviando

maciças quantidades de energia negativa — toda aquela culpa, tristeza e vergonha que

fluíam a partir dela, escorrendo de cada célula — quem dizia que a minha presença não

faria com que ela se manifestasse da mesma forma que um fantasma? A porta — ou

melhor, a ligação, para usar a analogia que eu começara com Alona — existia em ambos

os sentidos. Era normalmente energia vinda do lado morto me usando para tomar

forma, mas porque é que energia intensa, focalizada através de um tabuleiro de Ouija,

do lado da vida não podia fazer a mesma coisa? Isso explicaria a falta de personalidade

da Massa (exceto a raiva) e porque eu nunca tinha visto um fantasma como ele antes.

Não era um fantasma.

— Vou chamá-la — disse Joonie. — Você apenas me ajude a colocá-la de volta

onde ela pertence.

Como eu poderia fazer isso? Mesmo se nós pudéssemos de alguma forma

chegar a Lily, o que não podíamos, não era como encher um travesseiro pesado de volta

em sua fronha. Tinha de haver uma conexão entre o corpo e a alma. Mas sabiamente,

pela primeira vez na minha vida, eu mantive minha boca fechada.

204

— Ok, eu posso te ajudar. Eu preciso de minhas mãos, entretanto — para

conseguir dar o maldito fora daqui.

Ela inclinou a cabeça para um lado e me deu um olhar avaliador.

— Não. Eu não penso assim.

— Você quer que eu te ajude, eu preciso de minhas mãos.

Ela franziu a testa e a Massa se expandiu, espalhando-se para fora de seu canto

como gavinhas que vinham diretas para mim.

— Não, você só vai tentar fugir.

Sério? Havia alguma pessoa em sã consciência, que não o tentaria a este ponto?

Eu balancei minha cabeça.

— Não, eu não vou. Eu quero ajudá-la.

— Eu não acredito em você — ela disse ferozmente. Seus dedos sobre o

tabuleiro ficaram brancos com a força da pressão que ela aplicou e a Massa escorreu

para frente.

Encolhi-me e me virei de costas.

Joonie respirou fundo e olhou em volta da sala.

— Ela está aqui, já?

— Não é ela, Joonie. Por favor, eu prometo — se a Massa desabasse sobre mim e

eu não pudesse correr…

Do outro lado do quarto, a maçaneta da porta de repente sacudiu para frente e

para trás.

— Will? — minha mãe chamou. — O que está acontecendo aí?

Dei uma olhada aos olhos de Joonie, alertando–me sem palavras para ficar

quieto, e gritei.

— Mãe, peça ajuda.

Depois disso, as coisas aconteceram muito rapidamente.

A Massa avançou. Ela se reuniu acima de mim como algum tipo de onda

horrível e depois se atirou em cima de mim. Eu gritei e ela escorreu pela minha

garganta, enchendo as minhas vias aéreas e selando meus pulmões.

— William! — minha mãe bateu na porta freneticamente.

205

Eu não conseguia respirar e a frieza pura da Massa penetrou na minha essência.

Lutar contra isso exigiu mais energia do que eu tinha e tudo, incluindo o meu esbracejar

fraco de autodefesa, tinha passado para câmera lenta. Exceto eu morrer; que estava

acontecendo rápido o suficiente.

Um flash de luz brilhante apareceu de repente no centro da Massa e explodiu

para fora, rasgando-a pedaços. A pressão horrível no meu peito e garganta diminuiu e

eu aspirei uma golfada de ar, tossindo e ofegando o tempo todo.

— Não posso deixá-lo sozinho por um segundo, posso? — uma voz demasiado-

familiar perguntou.

Pisquei com os olhos meio aguados, limpando a minha visão o bastante para

ver Alona de pé ao lado de minha cama. Ela parecia... Incrível. Mais bonita e de alguma

forma mais real. Como se antes eu apenas estivesse vendo uma projeção do seu

verdadeiro eu. Seu cabelo estava mais brilhante, seus olhos mais resplandecentes. Em

suma, ela parecia uma visão. Tanto que eu comecei a me perguntar se não tinha já

começado a grande transição.

— Morto? — murmurei.

Ela bufou.

— Dificilmente. Desta vez, de qualquer maneira.

Nesse ponto, Joonie pareceu notar uma diferença, que eu estava respirando

novamente e não lutando para viver.

A Massa começou a juntar os seus pedaços e fragmentos, se formando de novo.

— Oh, pelo amor de Deus — Alona se esticou sobre o braço da cadeira de rodas

de Lily e começou a empurrar a prancheta57 ao redor do tabuleiro de Ouija. Eu não

conseguia ver que letras ela pegou, mas Joonie, bastante útil em seu estado bagunçado e

louco, disse em voz alta.

— P-A-R-E. V-O-C-Ê-S-E-S-T-Ã-O-P-E-R-D-O-A-D-O-S.

Então, como toque final, Alona deslizou a mão dela dentro da de Lily e moveu-

a para tocar a mão de Joonie sobre o tabuleiro. Eu fiquei boquiaberto com a visão. Ela

dissera algo sobre isso antes, mas eu nunca tinha imaginado...

Joonie olhou para trás e para frente entre a mão de Lily e seu rosto vazio e então

ela começou a chorar.

57 Do original ‗planchette‘, que é um pedaço de madeira liso que se move em um tabuleiro para soletrar mensagens ou responder a questões.

206

Alona, com um pouco de dificuldade, conseguiu livrar-se da mão de Lily,

parecendo tão desconcertada por isso como eu me sentia. Então ela sorriu para mim.

— Eu disse que você precisava de mim.

— Sim — eu disse, a minha voz embargada. — Será que isso significa que você

está de volta definitivamente? Eu poderia precisar de um pouco de orientação

espiritual.

Ela mordeu o lábio com um franzir da testa.

— Eu não sei. Eu nem sei como... — seus olhos se arregalaram e um brilho, —

tão brilhante que eu tive que semicerrar os olhos — a envolveu. Ela esticou a mão para

mim, e eu a alcancei... Mas peguei somente ar.

— Alona! — a luz em torno dela se intensificou até que já não podia ver

nenhuma parte dela. Em seguida, desapareceu, com um pop acústico, levando-a com

ele.

Quando o zelador e o guarda de segurança finalmente arrombaram a porta

alguns minutos mais tarde, foi assim que eles nos encontraram. Joonie chorando no

chão, segurando a mão de Lily e eu ainda amarrado à cama, meus olhos lacrimejando.

Eu não estava chorando. Não, de forma nenhuma. Foi apenas a luz. Ou alguma coisa no

meu olho. Sim, foi isso.

207

Epílogo

Will Killian

Vinte e seis dias se passaram desde que eu tinha visto pela última vez Alona

Dare. Naquela altura, minha mãe tinha descartado permanentemente o Dr. Miller e nós

percebemos que nenhum de nós estava com muita pressa para arrumar um substituto.

Eu usei as notas de Alona e mantive os fantasmas... Espíritos... Sob controle ao ajudá-los

o melhor que pude. Enviei ao irmão de Sara a sua medalha com uma carta falsa do

hospital, explicando que havia sido encontrada durante a rotineira reorganização de

arquivos. Tenho orgulho de dizer que o vovô Brewster, de fato, passou para a luz

dourada logo após eu ter enviado cartas anônimas para seu filho e neto.

Fora isso, eu fiz a minha lição de casa, passei meus exames finais e, por

insistência da minha mãe, enviei pedidos de admissão tardia para várias escolas. Em

puro espírito parental, ela se recuperou da minha revelação sobre ver os mortos

rapidamente o suficiente para apontar que, se eu não estava mais me escondendo, não

precisava sair da cidade e podia, portanto, frequentar as aulas em uma universidade,

como era o plano original para mim. Sim, ela tinha um ponto.

Comemoramos meu aniversário de dezoito anos em 30 de Maio, apenas a

minha mãe e eu. Ela estava se acostumando com a ideia do que eu sou, mas isso quase

tornava mais difícil para ela aceitar o que meu pai fez, em vez de apenas lhe dizer a

verdade. Ela estava ultrapassando isso.

Joonie estava indo bem. Na tentativa de explicar a todos a confusão do que

aconteceu no hospital sem piorar a minha situação — o que provavelmente também a

teria feito parecer pouco estável, de qualquer das formas — ela acabou

inadvertidamente piorando a sua situação. Ou talvez não tão inadvertidamente. Ela

parecia aliviada. Eu entendi o sentimento. Quando ela foi liberada do hospital, porém,

depois de todos os tipos de testes psiquiátricos, avaliações e aconselhamento, os pais

dela se recusaram a deixá-la regressar para casa. Ela acabou morando neste tipo de casa

de recuperação/casa de grupo. Estava tudo bem. Ia vê-la a cada duas semanas. Uma

208

terapeuta, uma mulher legal chamada Joan Stafford, ia à casa regularmente e Joonie

disse que isso ajudava. Ela tinha faltado demasiado à escola para se graduar com a

nossa classe, mas com alguns cursos de verão, ela receberia seu diploma. Quando ela

fizesse dezoito anos em agosto, ela ia se mudar para Nova York para morar com sua

irmã do meio, Elise, que, descobriu-se, tinha suas próprias razões para ir a Wellesley58.

O dia da Graduação, dia 1 de junho, amanheceu claro e sufocantemente quente

para um dia de inicio de verão. Eles configuraram o palco no meio do campo de futebol,

fazendo-me voluntariamente pôr o pé no campo de jogo pela primeira vez em quatro

anos. Fiquei esperando ser derrubado. Quando o Diretor Brewster chamou o nome de

Alona e sua mãe se aproximou para aceitar o diploma em nome dela, eu não pude

evitar olhar ao redor. Nenhum sinal de Alona, porém, nem mesmo quando o Diretor

Brewster revelou um esboço da placa comemorativa com o nome dela que seria fixado

ao banco novo no Círculo. Era o nosso presente como sêniores para a escola, sugerido

anonimamente e financiado por doações que Misty Evans perseguiu implacavelmente.

Alona queria ser lembrada no estilo que ela estava acostumada e agora ela seria.

Eu esperei, me deslocando desconfortavelmente na minha cadeira de plástico e

suando sob o traje acadêmico de poliéster e a camisa que minha mãe tinha insistido que

eu usasse, até que meu nome foi chamado.

— William James Killian — o Diretor Brewster parecia que tinha sugado todos

os limoeiros de um pomar para obter um olhar tão azedo. Eu adorei.

Deixei minha cadeira, caminhei pelos corredores de cadeiras e subi os degraus.

Atrás do palco, Liesel, Eric, Jay e alguns outros festejaram intensamente enquanto eu

apertei a mão do superintendente e, em seguida, de Brewster. Ele me entregou meu

diploma, mas manteve minha outra mão presa em um aperto esmagador.

— Eu não sei como você conseguiu isso, mas sei que algo não está certo com

você, garoto.

— Sim, senhor — eu concordei alegremente. — Mas eu te venci e isso é tudo o

que importa para mim — puxei minha mão fora de seu alcance, troquei meu pendão59

para o outro lado do meu chapéu ali na frente dele, apenas para irritá-lo um pouco e

desci do palco e voltei ao meu lugar, me sentindo mais leve do que eu tinha me sentido

em anos.

58 A Wellesley College é uma faculdade liberal para mulheres estadunidense, situada em Wellesley, Massachusetts, que funciona desde 1875, fundada por Henry Fowle Durant e sua esposa Pauline Fowle Durant.

59 Ele se refere a isto: http://capandgownprices.com/acessoriespics/highschoolgown.jpg

209

— Fico feliz em ver que você aprendeu a sua lição sobre jogar bem com os

outros — disse secamente Alona no meu ouvido. Seu familiar aroma floral e suave

flutuou sobre meu ombro.

Eu parei abruptamente e comecei a virar.

— Não, não, não se vire — disse ela impaciente. — Você está quase fora daqui.

Não faça uma cena conversando com alguém que não está lá.

— Onde você estava? — eu sussurrei, fingindo analisar o meu programa.

— Você viu a luz. Você sabe onde eu estive.

— Mas desde então? — Eu murmurei.

— Eu tinha algumas coisas para cuidar.

— Como o quê?

— Você vai ver — soava positivamente alegre. — Basta continuar observando.

As coisas vão ficar muito interessantes.

— Você voltou de vez?

Ela fez um barulho frustrado.

— Fique atento. Faça perguntas depois.

Então, eu observei. No começo eu nem sabia o que estava procurando. Então o

Diretor Brewster chamou o Ben Rogers. Minhas mãos se cerraram em punhos. Durante

as últimas três semanas, eu tive que deixá-lo andar por aí, sorrindo como o imbecil que

era, porque não podia tocá-lo. Só depois da formatura. Bem, a graduação terminaria nos

próximos vinte minutos e, então, eu faria o meu melhor para bater em seu rosto...

A primeira onda de risos da plateia enquanto Ben caminhava pelo corredor do

lado me deu a dica de que algo estava acontecendo. O riso se transformou em um

rugido do riso e, em seguida, em gente vaiando e gritando. Só quando Ben chegou à

minha fila eu pude ver a fonte da comoção. Um sinal de papel tinha estado colado na

traseira de seu traje, entre seus ombros. Em grandes letras, lia-se, EU TENHO UM

MINÚSCULO PÊNIS. QUER VER?

Eu ri.

— Impressionante.

Ben, completamente desnorteado, mas aceitando a atenção adicional,

simplesmente enfiou o punho no ar, num gesto de triunfo, enquanto subia ao palco.

Yeah.

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Atrás de mim, Alona abafou um riso.

— Que imbecil.

— Eu não podia concordar mais — eu disse.

Ao meu lado, Jillian Karson me deu uma olhada e deslocou sua cadeira para

mais longe. Que seja.

— Encontre-me depois — disse Alona.

— Onde? — eu perguntei, recebendo outro olhar de Jillian.

— Você sabe onde.

Quando eu consegui arriscar um olhar casual para trás de mim, ela tinha ido

embora.

Após a cerimônia, me dirigi para as arquibancadas e para minha mãe.

— Eu estou orgulhosa de você — ela afirmou.

— Obrigada.

Ela hesitou.

— Seu pai... Ele está orgulhoso de você também, eu tenho certeza, mesmo que

ele não o possa dizer pessoalmente.

Eu confessei-lhe as minhas suspeitas originais sobre o pai ser A Massa Sombria

há algum tempo e ela fez um som reprovador por eu pensar que o meu pai me iria

assombrar. Ela tinha razão, claro. De uma forma ou de outra, meu pai tinha ido embora

e eu esperava que ele estivesse feliz agora de uma maneira que ele não conseguiu ser

em vida.

— Obrigada, mãe — dei-lhe um abraço. — Eu preciso ir verificar uma coisa. Te

encontro no carro?

Ela assentiu e Sam, o chefe da minha mãe no restaurante e a única pessoa que

eu convidei para a graduação, pegou o braço dela para ajudá-la a descer das

arquibancadas. Eu não acho que ela precisava da ajuda, mas suspeitava que ela tivesse

gostado. E Sam também. Isso era legal. Ele era um bom cara.

Deixei os dois para trás e me dirigi em direção à entrada principal da escola. No

caminho, passei por Ben Rogers, que segurava o papel que havia estado preso em suas

costas.

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— Mas não é — ele insistiu para quem quisesse ouvir. Infelizmente, ninguém

parecia acreditar nele.

Quando me aproximei do Círculo, eu pude ver Alona sentada em seu banco,

com suas longas pernas esticadas ao sol.

— Então o que aconteceu sobre ser agradável? — eu perguntei quando cheguei

a ela.

Ela piscou para mim.

— O quê, a coisa com Ben?

Eu bufei.

— Sim, ‗‘a coisa com Ben‘‘.

Ela encolheu os ombros.

— Não foi minha ideia. Foi de Leanne. Eu ouvi-a falando nisso quando visitei

Misty.

— Misty? — eu perguntei.

Seu olhar mal piscou para longe do meu.

— Ela era minha melhor amiga para sempre e ela guardou meus segredos. Eu

não vou deixar Chris ficar no caminho disso.

— Oh! — uma canção completamente diferente da que ela tinha estado

cantando antes sobre seu relacionamento, mas talvez a visita de ida e volta à luz

dourada tivesse mudado isso... E a ela.

Ela encolheu os ombros.

— Além disso, Chris baba um pouco quando ele beija. Eca.

Isso tirou um riso surpreso para fora de mim. Não, a mesma Alona.

— De qualquer forma... — ela olhou para mim com alguma exasperação. —

Quando eu estava visitando Misty, eu aprendi algo interessante. Aparentemente,

Leanne e Ben tiveram uma relação no primeiro ano e ela nunca o deixou ultrapassar. É

por isso que eles se recusavam a falar um com o outro.

— Ela esperou quatro anos para se vingar?

Alona sorriu.

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— Nunca irrite a garota que se senta atrás de você na graduação, especialmente

se ela é Leanne Whitaker. Essa garota pode guardar um rancor eternamente.

Ficamos ali sentados em silêncio por um momento.

— Foi legal, embora, para Lily, quero dizer — eu disse.

— Para todas elas — Alona corrigiu. — Mas, sim, para Lily.

— Então — eu me arrisquei —, você está de volta.

— Sim.

— Isso é um pouco incomum, eu acho.

— Hmm.

Eu engoli minha irritação.

— Você vai fazer-me perguntar de novo, não é?

Ela me deu um olhar inocente.

— Perguntar o quê?

— Você vai ficar... Ou é só de passagem? — eu perguntei com os dentes

cerrados.

— Por quê? Isso importa para você?

Mil respostas espertinhas saltaram à mente, mas ela estaria esperando por isso.

Então, fui para a verdade.

— Sim, importa.

Seus olhos se arregalaram e a menor insinuação de rosa se espalhou por todo o

seu rosto.

Eu sorri. Eu tinha acabado de envergonhar Alona Dare, a Alona Dare?

Ela fungou.

— Alguém tem que mantê-lo fora dos problemas. Pode muito bem ser alguém

que conhece a porcaria estúpida em que você se mete o tempo todo. E... — ela traçou a

madeira no banco com o seu dedo — Também pode haver um pequeno problema de eu

ainda estar aprendendo a considerar os outros antes de mim mesma.

— Eu nunca estive em apuros, exceto quando... — fiz uma pausa, quando o

significado de sua última frase me atingiu. — Ah! Você ficou retida porque você não

joga bem com os outros — eu cantei. — Não disse que era sobre ser agradável?

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— Tanto faz — ela revirou os olhos. — Ser um vencedor pobre não é bom,

também — ela ressaltou, mas se levantou e veio sentar ao meu lado.

Ficamos em um silêncio confortável por um longo momento.

— Obrigado por meu banco — disse ela quase timidamente.

— Como você sabia que fui eu?

— Oh, por favor. Assim que eu ouvi Misty falar sobre isso, soube que tinha sido

você. Quem mais se lembraria dessa citação?

Quando estivesse terminado, sob seu nome e datas, a placa diria: ―Beleza é

verdade, a verdadeira beleza — que é tudo o que vós sabeis na terra e tudo o que vós

precisais saber‖ — John Keats, Ode em uma Urna Grega.

Dei de ombros, inexplicavelmente satisfeito.

Ela se aproximou um pouco mais.

— Então... Obrigado — ela inclinou-se e antes que eu percebesse, ela me beijou.

Sua boca era quente e doce e quando sua mão tocou meu peito para se equilibrar, cada

célula do meu corpo ficou enérgica.

Ela quebrou o beijo em primeiro lugar, se afastando e tocando os cantos de sua

boca como se estivesse se certificando de que seu brilho labial ainda estava no lugar.

Era, de longe, a coisa mais sexy que eu já vira.

Limpei a garganta.

— Se isso foi pelo banco, o que acontece se eu sugiro um conjunto inteiro de

sala de jantar?

Ela riu e se afastou de mim.

— Em seus sonhos, Killian — ela colocou as pernas debaixo dela e deu-me o

que eu agora reconhecia como o seu olhar de ―ficar séria‖. — Ok, então faculdade.

Vamos falar da decoração do quarto do dormitório. Eu estou pensando que realmente

precisamos ir além das caixas de leite e da manta de lã escura cheirando a mofo…

Eu gemi.

— Eu acho que isso está um pouco fora de suas responsabilidades como guia

espiritual.

Ela me lançou um olhar ofendido.

— Eu tenho que ficar lá, também, você sabe.

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Eu considerei suas palavras e todas as diversas ramificações agradáveis e

desagradáveis.

— Bem... Isso deve tornar as coisas interessantes — disse fracamente.

Ela sorriu.

— Nenhum ponto em viver de outra maneira.

Fim!

CONTINUA EM : 02 - Queen of the Dead

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