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ANO XII – 2014 – Nº 54

DiretoresElton José Donato

Fabio Roberto D’AvilaGiovani Agostini Saavedra

Conselho EditorialAlexandre Wunderlich (Pontifícia Universidade Católica/RS)

Álvaro Sanchez Bravo (Universidade de Sevilha)Aury Lopes Jr. (Pontifícia Universidade Católica/RS)Arndt Sinn (Universidade de Osnabrück, Alemanha)

David Sanchez Rúbio (Pontifícia Universidade Católica/RS)Elizabeth Cancelli (Universidade de Brasília)

Fabio Roberto D’Avila (Pontifícia Universidade Católica/RS)Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo)

Gabriel José Chittó Gauer (Pontifícia Universidade Católica/RS)Geraldo Prado (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Giovani Agostini Saavedra (Pontifícia Universidade Católica/RS)Luiz Eduardo Soares (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Rodrigo Moraes de Oliveira (Pontifícia Universidade Católica/RS)Rui Cunha Martins (Universidade de Coimbra)

Ruth Maria Chittó Gauer (Pontifícia Universidade Católica/RS)Tomás Grings Machado (Universidade do Vale do Rio dos Sinos /RS)

Vittorio Manes (Universidade de Salento, Itália)

Conselho do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (www.itecrs.org)

Andrei Zenkner SchmidtAlexandre Wunderlich

Daniel GerberFelipe Cardoso Moreira de Oliveira

Fabio Roberto D’AvilaGiovani Agostini SaavedraJader da Silveira Marques

Marcelo Machado BertoluciPaulo Vinícius Sporleder de Souza

Rodrigo Moraes de OliveiraSalo de Carvalho

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Uma publicação do ITEC (Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais) e da SÍNTESE, uma linha de produtos jurídicos do grupo SAGE.

Revista de estudos CRiminais – ano Xii – nº 54Periodicidade trimestral – Tiragem 2.000 exemplares

ASSINATURAS: São Paulo: (11) 2188-7507 – Demais Estados: 0800.7247900

SAC e Suporte Técnico:São Paulo e Grande São Paulo (11) 2188-7900

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Os conceitos emitidos em trabalhos assinados são de responsabilidade de seus autores. Os originais não serão devolvidos, embora não publicados. Os artigos são divulgados no idioma original ou traduzidos.

Os acórdãos selecionados para esta Revista correspondem, na íntegra, às cópias dos originais obtidas na Secretaria do Supremo Tribunal Federal e dos demais tribunais.

Proibida a reprodução parcial ou total, sem autorização dos editores.

E-mail para remessa de artigos: [email protected]

© Revista de estudos CRiminais® ISSN 1676-8698

IOB Informações Objetivas Publicações Jurídicas Ltda.R. Antonio Nagib Ibrahim, 350 – Água Branca 05036‑060 – São Paulo – SPwww.iobfolhamatic.com.br

Telefones para ContatosCobrança: São Paulo e Grande São Paulo (11) 2188.7900Demais localidades 0800.7247900

SAC e Suporte Técnico: São Paulo e Grande São Paulo (11) 2188.7900Demais localidades 0800.7247900E-mail: [email protected]

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Sumário

Doutrina EstrangEira

9 O Merecimento ou as Qualidades que Devem ter as Penas no Pensamento Penal de Setecentos

(Sílvia Alves)

75 Medidas Penales Post-Penitenciarias de Control de la Peligrosidad del Delincuente Imputable y Derechos Fundamentales

(Eduardo Demetrio Crespo)

Doutrina nacional

93 Atribuição de Responsabilidade na Criminalidade Empresarial: das Teorias Tradicionais aos Modernos Programas de Compliance

(Artur de Brito Gueiros Souza)

123 Gestão Fraudulenta e Operação Irregular de Instituição Financeira (Artigos 4º e 16 da Lei nº 7.492/1986): Sentido e Distinção

(Luciano Feldens e Altamar Garcia Mendes)

135 A Realização do Tipo Como Pedra Angular da Teoria do Crime. Elementos para o Abandono do Conceito Pré-Típico de Ação e de Suas Funções

(Fabio Roberto D’Avila)

165 Compliance e Prevenção à de Lavagem de Dinheiro: sobre os Reflexos da Lei nº 12.683/2012 no Mercado de Seguros

(Giovani Agostini Saavedra)

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181 Problemas Especiais de Autoria e de Participação no Âmbito do Direito Penal Secundário: Exame da Compatibilidade entre “Domínio da Organização” (Organisationsherrschaft) e Criminalidade Corporativa

(Raquel Lima Scalcon)

211 Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica e a Tutela do Meio Ambiente na Sociedade do Risco: Abordagem Crítica sobre os Delineamentos da Culpabilidade Empresarial e o Sistema da Dupla Imputação

(Marcelo Marcante)

233 Errata: A Diferenciação Interna do Subsistema Jurídico- -Penal: História, Organizações e Trajetórias (REC nº 52)

(Bruno Amaral Machado)

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Doutrina EStrangEira

9 O Merecimento ou as Qualidades que Devem ter as Penas no Pensamento Penal de Setecentos

(Sílvia Alves)

75 Medidas Penales Post-Penitenciarias de Control de la Peligrosidad del Delincuente Imputable y Derechos Fundamentales

(Eduardo Demetrio Crespo)

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O MereciMentO Ou as Qualidades Que devem ter as Penas nO PensaMentO Penal de setecentOs

Sílvia alveS*

SUMÁRIO: No século da ciência da legislação e do humanitarismo, a reflexão crítica sobre as características das penas ocupa um lugar central e prepara a reforma do direito do antigo regime, abrindo uma nova era para a ciência do direito penal.

PALAVRAS-CHAVE: Direito penal; penas; humanitarismo; utilita-rismo; reformismo; legalidade; proporcionalidade.

ABSTRACT: In the century of the science of law and the humanita-rianism, the critical reflection on the characteristics of penalties takes a central position and prepares the reform of the “ancien regime” law, opening a new era for the science of penal law.

KEYWORDS: Penal law; penalties; humanitarianism; reformism; utilitarianism; legality; proportionality.

§ 1. A legalidade, a certeza e a igualdade. § 2. A intransmissibilidade – esse sentimento de humanidade. § 3. A proporcionalidade. A) Os sig-nificados da proporcionalidade. B) A gravidade do delito e as regras da proporcionalidade: a) A moralidade da acção; b) O dano; c) As soluções eclécticas; d) As circunstâncias. C) O cálculo utilitarista – o jogo das acções humanas. D) A economia, a comensurabilidade e a divisibilidade. E) A desproporcionalidade – gastar a mola do governo? § 3. A analogia ou a adequação da pena à natureza do delito – opôr a força à força e a opinião à opinião. § 4. A prontidão e a irremissibilidade – o cimento da fábrica do entendimento humano. § 5. A utilidade. § 6. A exemplaridade e a publicidade. § 7. A popularidade. § 8. As regras da medida legal das penas.

O discurso jus-científico e político de Setecentos encontra nas penas um tema nuclear. Este discurso ora assume uma feição crítica e até virulenta, ora uma feição construtiva e reformista, favorecida pelo racionalismo e pelo

* Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

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anti-romanismo1. Duas ideias orientam a avaliação do passado e as propostas reformistas do futuro: razão e humanidade2.

Montesquieu pretende ouvir a voz da natureza que grita indignada quan-do escreve sobre a tortura3. Beccaria, seu discípulo fiel, espera o reconheci-mento dos sequazes da razão, das almas sensíveis que se comovem com aqueles que, como ele, defendem os interesses da humanidade4. Segundo Blackstone, não existem verdadeiramente regras fixas e invariáveis sobre a medida das penas, remetendo esta delicada matéria para a sageza do legislador5. Mas, ainda assim, defende a existência de alguns princípios gerais tirados da natu-reza e das circunstâncias dos crimes6.

Os juristas ocupam-se então em arrumar as suas propostas quanto aos requisitos, ao merecimento ou às qualidades que devem ter as penas. Penalistas e não penalistas concorrem entre si com sínteses7ou desenvolvimentos prolixos

1 Um direito nacional mais racional permitiria substituir o direito romano: “É preciso procurar estabelecer no seu lugar um direito nacional e racional, conforme com os ditames do direito natural, da ética e do direito das gentes, e sobre ele, enfim, uma forte solidariedade entre as nações civilizadas.” (Luís Cabral de Moncada,”O ‘século XVIII’ na legislação de Pombal, p. 173). Renée Martinage, Histoire du droit pénal en Europe, p. 56: “Le rationalisme en marche depuis le siècle précédent conduit le législateur à vouloir unifier le droit pénal. La codification est elle-même une petite révolution, elle laissarait supposer que le droit pénal soit totalement légiféré et qu’il soit mis à l’arbitraire du juge. Vaste programme, qui fut plus souvent projeté que mené à terme, et dont les réalisations furent fragmantaires, même si elle montraient la voie au grand mouvement codificateur du XIXe siècle”.

2 Antoin Esmein, Histoire de la procédure criminelle, pp. 357 e 358: “La philosophie du XVIIIe siècle se levait, et pour la décision de toutes les questions sociales, elle n’admettait plus que deux principes: la raison et ce sentiment de sympathie pour l’espèce humaine, qu’on appela l’humanité ou la nature. Les philosophes, selon le mot de l’un de leurs disciples, avait pour cri de guerre: raison, tolérance, humanité”.

3 O Espírito das Leis, p. 102.

4 Dos delitos e das penas, Introdução, p. 63.

5 William Blackstone, Commentaries on the Laws of England, Livro IV, p. 12. Já as leis deviam ser fundadas em princípios permanentes, uniformes e universais (p.3).

6 Idem, pp. 14 e 15.

7 Beccaria, Dos delitos e das penas, § XLVII, p. 163: “[...] para que toda a pena não seja uma violência de um ou de muitos contra um cidadão particular, deve ser essencialmente pública, pronta, necessária, a mais pequena possível nas circunstâncias dadas, proporcional aos delitos, fixada pelas leis”. Instructions adressées par Sa Majesté L’Impératrice de toutes les Russies, Article X, 210, p. 105: “Il faut que la punition soit toujours prête, qu’elle soit

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e atormentados para dilatar a longa lista de qualidades que devem concor-rer nas penas justas, úteis e convenientes: legalidade, certeza, simplicidade, clareza, igualdade, proporcionalidade, necessidade, moderação, comensura-bilidade, divisibilidade, analogia, prontidão, irremissibilidade, exemplarida-de, publicidade, economia, susceptibilidade de se converterem em proveito, capacidade de atalhar o mal ou atalhar o poder de fazer mal, tendência para o melhoramento moral, reparabilidade, revogabilidade, popularidade8... Certamente nem todos estes requisitos têm o mesmo peso ou importância9. Alguns são susceptíveis de se agregarem entre si ou constituem até meras decorrências específicas de outros.

As qualidades das penas adquirem no discurso setecentista uma valia estruturante ou axiomática, alicerçando a teoria das penas. As tentativas de definição dos princípios ou axiomas do direito criminal constituem aliás um

proportionnée au délit, & qu’elle soit connue du peuple.”. António Ribeiro dos Santos, “Discurso sobre a Pena de Morte e Reflexões sobre alguns crimes”, p. 126: “[...] a pena, para ser justa, adequada, e própria deve ser combinada sobre as relações naturais, físicas, e morais, que ela tem, ou pode ter com a qualidade do crime; com a maneira porque ele foi cometido; com os instrumentos, que serviram a acção; com a reincidência; com o número dos culpados; com os graus de cumplicidade; com o sucesso e consequências do crime; com o lugar e com o tempo, em que foi feito; com as suas causas ou motivos; com a intenção, inteligência, e instrução do culpado; com a sua pessoa, idade, e sexo do delinquente; com a pessoa e classe do delinquente; com a pessoa e classe do ofendido; com a influência, escândalo, e publicidade do crime; com a perturbação da ordem pública; com a dificuldade de se garantir do atentado; com a multiplicidade dos delitos do mesmo género; e com outras muitas circunstâncias dignas de contemplação para a justiça, igualdade, e proporção das penas com os crimes”.

8 O problema conservará ainda acuidade no futuro, assim como uma assinalável continuidade terminológica. José da Cunha Navarro de Paiva ocupa-se das “qualidades da pena relativas à sua essência e fim” e das “qualidades da pena relativas ao delinquente”. Considera que as penas devem ser: análogas; apreciáveis; divisíveis; económicas; exemplares; populares; morais; e legais (Estudos de direito penal, pp. 185-190). E, simultaneamente: aflitivas ou expiadoras; reformadoras ou correccionais; certas; revogáveis ou remissíveis; pessoais; iguais; e proporcionadas (idem, pp. 190-198).

9 Um exemplo típico é a reparabilidade, identificada com a revogabilidade. Segundo Bentham, “[...] em relação ao passado todas as penas são irremissíveis [...]”. A “compensação” do inocente estaria apenas em ver melhorada “a sua condição presente” (Theoria das Penas Legaes, p. 44). Ainda assim, a pena de morte é a única que considera verdadeiramente irreparável. O reformismo, apesar da forma convicta com que apresenta as suas propostas, não deixa de reconhecer a imperfeição como uma característica inevitável da justiça humana.

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dos traços definidores da moderna ciência criminal. Antes de proceder ao seu próprio enunciado, Pastoret declara este convencimento científico: l’humanité a les siens comme la géométrie10. Trata-se, em rigor, de uma manifestação do esforço sistematizador proposto pela nova metodologia jurídica – breve, clara e simples11 – para o ensino e para a legislação.

A ciência do direito conforma-se, de facto, diferentemente. Abando-na o probabilismo casuísta e minucioso, a enunciação de regras provisórias e pelo menos aparentemente contraditórias para, partindo desses axiomas, construir dedutivamente um discurso harmónico. Simultaneamente, revela--se apta, pela clareza da formulação, a gerar a adesão do público face às suas propostas reformistas. Os princípios ou axiomas tanto podem concentrar as regras que a tradição havia definido como dar forma às ideias do reformis-mo. Juntam o direito substantivo e o direito adjectivo. Dizem respeito à lei, à prova, às penas.

§ 1. a legalidade, a certeza e a igualdade

a. A legalidade da pena constitui a sua qualidade basilar. O discurso em torno dos requisitos da pena refere-se invariavelmente à pena legal. A finalidade da doutrina é precisamente definir regras que orientem o legisla-dor na cominação das punições. O princípio da legalidade12 constitui um dos redutos mais sólidos do preconceito contra o direito penal anterior à codifi-cação13. No entanto, contrariando esse preconceito geral14, o juiz do antigo regime encontrava-se subordinado à lei15.

10 Pastoret, Des Loix Pénales, Tomo I, p. 14.

11 Pascoal José de Mello Freire, “Instituições de Direito Criminal Português”, pp. 51 e 52.

12 Jean-Marie Carbasse, Histoire du Droit Pénal, pp. 358-360. Luis Prieto Sanchís, “La filosofía penal de la Ilustración” in Historia de los Derechos Fundamentales, Tomo II, pp. 158-163.

13 Andreas Auer, “O princípio da legalidade como norma, como ficção e como ideologia” in Justiça e Litigiosidade. História e Prospectiva, p. 125: “Em direito positivo, o princípio da legalidade é uma criação do século XIX.”.

14 Pierre Cannat, Droit pénal et politique pénitentiaire au Portugal, p. 15: “Le droit pénal portugais est dominé par le principe ‘Nullum crimen sine lege’, qui fut affirmé pour la première fois en Lusitanie dans la Charte constitutionnelle de 1826”.

15 André Laingui, “La peine de mort au XVIIIe siècle: opinion publique et réalités” in La peine de mort. Droit, histoire, anthropologie, philosohie, p. 107º: “[...] il est aussi faux d’affirmer que le juge criminel n’est pas guidé par la loi.”. Pedro Ortego Gil, “Notas sobre el arbitrio judicial usque ad mortem en el Antiguo Régimen”, p. 232: “Una reflexión final. Se a puesto de manifesto que el tránsito del arbitrio judicial al principio de la legalidad fue un triunfo de

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Jean-Pierre Delmas Saint-Hillaire chamou a atenção para a ausência de unidade da noção de legalidade no direito penal que, obnubilada, foi permitin-do abrir espaço à afirmação fácil e faliciosa de um princípio único e universal16. O primeiro elemento de variabilidade verifica-se em relação ao conceito de lei. Pode reconduzir-se, restritamente, ao seu sentido formal; ao ius scriptum; ao ius, enquanto direito positivo; ou até à ratio ou direito natural, como o fez Pufendorf17. O segundo factor de relativização da legalidade penal encontra--se na intensidade da relação que une o termo dominante (a lei) e o termo dominado (o crime; a pena; o processo). Essa relação tanto pode exigir uma

la Codificación, cuestión innegable. Pero ello no debe hacer olvidar el paso de la búsqueda de la epiqueya a través del juez a la búsqueda prioritaria de lo útil por parte del legislador. Además, los jueces continúan manteniendo un amplio margen de discrecionalidad, absolutamente imprescindible y necesario, o al menos conveniente – con las matizaciones de las que suelen dar cuenta los medios de comunicación –, para adecuar la ley al caso concreto. Para tal menester los códigos enumeraron una serie de circunstancias eximentes, atenuantes y agravantes, abrogando la distinción entre circunstancias del delito y causas de atemperación de la pena contenida en la literatura jurídica anterior. Pero, sin entrar en mayores argumentos, resulta que esas circunstancias legales son, en su misma esencia, la práctica totalidad de las que enumeraban los juristas en sus obras hasta el siglo XVIII y de las que se habían servido los juzgadores para su argumentación jurídico-mental. Por tanto, a partir del siglo XIX se legalizó una parte del Derecho que no estaba inserta en las leyes regias: los códigos criminales plasmaron desde un punto de vista racional y sistemático la teoría doctrinal elaborada por la literatura jurídica y empleada por la práctica jurisprudencial durante siglos.”.

16 Jean-Pierre Delmas Saint-Hilaire, “Les principes de la légalité des délits et des peines. Réfléxions sur la notion de légalité en droit pénal”, pp. 164 e 165: “[...] il n’y a pas en droit pénal une notion unique de légalité [...] un concept chargé de relativité [...] une notion plurale [...] toute une gamme de légalités [...] Cette pluralité de concepts de légalité oblige alors à parler, non plus du principe de la légalité des délits et des peines dont on a trop longtemps proclamé le caractère univoque, mais des principes de la légalité des délits et des peines. [...] Le principe de la légalité des délits et des peines formulé par Beccaria n’est donc que l’un de ceux qui peuvent être mis en oeuvre par le droit pénal positif: il n’est ni le premier à s’être affirmé ni le seul qui puisse être défendu”.

17 Pufendorf, Le droit de la nature et des gens, Tomo I, p. 89: “La Loi donc en général n’est autre chose, à mon avis, qu’une Volonté d’un Supérieur, par laquelle il impose à ceux qui dépendent de lui l’obligation d’agir d’une certaine manière qu’il leur prescrit [...] Il importe même peu que l’on appelle la Loi une volonté ou un discours; pourvu qu’on n’aille pas s’imaginer que toute Loi doive nécessairement être publiée ou de vive voix, ou par écrit. Car il suffit que l’on connoisse la volonté du Législateur de quelque manière que ce soit, même par la Lumière Naturelle toute seule”.

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rigorosa conformidade à lei, como admitir escolhas com ela compatíveis; ou a simples ausência de contradição. Finalmente, a inobservância da lei pode ou não ser sancionada.

O princípio da legalidade não constitui património da codificação oito-centista nem sequer do humanitarismo do século anterior. Definitivamente, deve ser afastado o preconceito segundo o qual a legalidade se reconduz a um produto do liberalismo. Levy Maria Jordão não apresenta o princípio da legalidade como uma conquista da codificação. Enraiza-o no próprio direito romano – ubi non est lex, nec praevaricatio – e atribui-lhe reconhecimento uni-versal18. Sem receios terminológicos, Tomás y Valiente afirma que Castillo de Bovadilla defendeu – em 1590 – o princípio da legalidade 19. E Schaffstein chama a atenção para o facto de o Tractatus criminalis de Decianus encerrar diversas fórmulas em que a relação entre a lei – escrita (lex scripta) – e a pena é esta-belecida em termos que antecipam o princípio da legalidade20. Impõem-se compreensivelmente ressalvas resultantes: da indeterminação das fontes do direito comum; da relação entre o ius naturale e o ius divinum, por um lado, e o ius scriptum, por outro; e o conceito de crimen extraordinarium. A afirmação da legalidade pode não ter então as consequências práticas e político-jurídicas que viria a assumir mais tarde. No entanto, transportadas até ao século XVIII, estas fórmulas teriam aí realização e sucesso.

O princípio da legalidade conhece várias implicações, para além da fór-mula mais evidente, segundo a qual não há crime nem pena sem lei (nullum crimen sine lege; nulla poena sine lege)21. Este é, de facto, o domínio, em que a legalidade se sedimenta mais cedo. Na fórmula paradigmática de Pastoret, il

18 Commentario ao Codigo Penal portuguez, Tomo I, Comentário ao Artigo 5º, p. 13: “Este princípio do Código, proclamado no mundo científico pelos Jurisconsultos romanos nas suas regras de direito [...] é um princípio evidente e instintivo, de todos os tempos e de todos os lugares [...]”; e Comentário ao Artigo 68º, p. 169: “Deste art. não diremos mais do que disse Haubersart ao discutir-se o art. 4º do código penal francês: ‘é um princípio de todos os tempos e de todos os lugares o não ser punido o crime senão com as penas cominadas pelas leis em vigor no momento em que foi perpetrado’. A nossa antiga legislação, quando não deixava a pena ao arbítrio do juiz, sempre reconheceu a santidade deste princípio”.

19 El Derecho penal de la Monarquia Absoluta, p. 378.

20 Schaffstein, La Ciencia europea del Derecho Penal en la época del humanismo, pp. 108 e 109.

21 Código Penal português de 1852, Artigo 1º: “Crime, ou delito, é o facto voluntário declarado punível pela lei penal”; Artigo 15º: “Não são crimes os actos que não são qualificados como tais por este Código. § único. Exceptuam-se da disposição deste artigo: 1º Os actos classificados crimes por legislação especial, nas matérias que não são reguladas por este

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ne doit point exister de peine sans loi 22. A escolha da pena incumbe à lei; não ao juiz. Mas o princípio da legalidade rejeita ainda a retroactividade (nulla poena sine lege previa)23. E exige um juízo ou processo (nulla poena sine judicium)24. Nem todas estas manifestações da legalidade são percepcionadas e enuncia-das em simultâneo. Mas encontram-se recorrentemente afirmadas pelos pe-nalistas antigos.

A interpretação das fontes requer, ainda assim, uma especial prudên-cia, de forma a evitar conclusões precipitadas25. Para definir “legalidade”

Código, ou naquelas em que se fizer referência à legislação especial; 2º Os crimes militares”; Artigo 68º: “Não poderá ser aplicada pena alguma, que não seja decretada na lei.”

22 Pastoret, Des Loix Pénales, Tomo II, p. 60.

23 Como observa João Tomás de Negreiros, as leis criminais não compreendem os delitos anteriores à sua publicação (“Lex criminalis non comprehendit delicta ante publicationem comissa, sed posteriora”) Vd. Introductiones ad Commentaria legum criminalium, Tomo I, Capítulo IV, 2, p. 3. Como demonstra Negreiros, reproduzindo um Acórdão de 1 de Agosto de 1696, a não retroactividade da lei penal era acatada na prática (idem, pp. 3 e 4). António Ribeiro dos Santos, “Considerações sôbre alguns Artigos de Jurisprudência Penal Militar”, Como não há delito propriamente criminal, sem Lei penal anterior ao facto, p. 126: “[...] assim como nenhuma acção ou omissão do Cidadão pode ser havida por contravenção e delito antes que a Lei a proíba, também nenhum delito pode ser punido com penas, que não tenham sido pronunciadas pela Lei, antes que ele fosse cometido; não devendo por isso ex post facto ter efeito retroactivo a nova Lei Criminal ou penal, quando ela vem prever um acto ou omissão, que não estava acautelado na Legislação anteriormente promulgada”. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26 de Agosto de 1789, Artigo 8: “[...] nul ne peut être puni qu’en vertu d’une Loi établie et promulguée antérieurement au délit, et légalement appliquée.”. Artigo 5º do Código Penal português de 1852: “Nenhum facto, ou consista em acção, ou em omissão, pode julgar-se criminoso, sem que uma Lei anterior o qualifique como tal.”.

24 Segundo a Leopoldina, não há condenação sem processo ou sem as formas legais ordinárias. Vd. Riforma della Legislazione Criminale negli Stati di S.A.R. Il Gran-Duca di Toscana, § XLVIII.

25 Jean Imbert, pouco favorável à admissibilidade de uma legalidade setecentista, adverte quanto aos desenvolvimentos complexos e frequentemente erróneos dos autores modernos: “[...] on garde l’impression que le príncipe dit ‘de la légalité des peines’ existait dès avant la Révolution française”. Para resolver esta ambiguidade, compara o texto da Declaração dos Direitos do Homem de 1789 e as definições de Vouglans e Jousse. Do primeiro conclui que o princípio da legalidade supõe: que a lei fixe a natureza e a duração da pena; e que precise a própria infracção. Os autores antigos exigem somente que a pena estivesse prevista pela lei; e que o juiz observasse o processo legal. Atendendo à conformação da lei, conclui: “Il est aisé de voir l’abîme qui separe nos conceptions de celles de nos anciens [...] La seule règle

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é necessário clarificar o próprio conceito de “lei”. Modernamente, implica a recusa de todas as normas penais que não tenham carácter legal ou que não sejam produzidas pelo Estado, excluindo a própria aplicação da lei por analogia. A possibilidade de defender que o princípio da legalidade não era estranho ao direito penal do antigo regime significará conferir ao conceito uma amplitude que se encontra para além da produção normativa do mo-narca. Ainda assim, será sempre imprescindível proceder a uma limitação importante, definindo o minimum da legalidade. Considera-se indispensável a exigência de um preceito de direito positivo.

Pufendorf, por exemplo, entendeu que onde não há lei não há pena nem delito mas por lei entendeu também o direito natural. Logo, como cons-tatou Schnapper, seria deste modo possível que o juiz fizesse aplicar uma pena arbitrária. O direito penal do antigo regime adopta a ideia segundo a qual não há delito nem pena sem lei mas, simultaneamente, o entendimento da lei e a conformação do ordenamento jurídico conduzem à aceitação sem perplexidades do arbítrio judicial. A lei não significa somente o acto norma-tivo criado pelo legislador e a ordem jurídica não permite ainda um exclusi-vismo legal (monismo legalista). Por isso, onde não existia lei, os juízes ac-tuavam de acordo com normas de proveniência não legal. O arbitrium judicis ou, como diríamos nos nossos dias, a arbitrariedade judicial encontrava-se autorizada pela lei.

De acordo com as propostas do reformismo, as normas do direito pe-nal deviam transitar para a lei. Estando ainda a ganhar forma o processo que levaria a agregar e a sistematizar as normas que integram a teoria geral da infracção e da punição, assim como a transformação que permitiria realizar um ordenamento legal auto-suficiente, o século XVIII é palco de uma notável efervescência doutrinária e do surgimento de tentativas de codificação que

ferme qui lie le magistrat est en définitive d’imposer ‘une peine qui soit au nombre de celles qui sont en usage dans le roaume’ [...] Le principe de la ‘légalité des peines’ tel que nous le concevons depuis la Révolution française n’est donc pas respecté dans la mesure où il suppose que la loi fixe la nature et la durée de la peine. Il n’est pas plus respecté sous son second aspect, qui exige que la loi précise les modalités de l’infraction qui entraîne la pénalité ultérieure.)” (Quelques procès criminels des XVIIe et XVIIIe siècles, pp. 9 e 10). Em relação aos filósofos das Luzes, este ponto de vista não necessita para Imbert de correcção significativa: “[...] il est rare qu’ils abordent de front le problème de la légalité des peines, sans doute considéré secondaire – ou trop technique – à leurs yeux [...]” p. 11). Aparentemente, só os práticos como Beccaria se apercebem da vantagem de determinar legislativamente as penas e os crimes.

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se realizariam plenamente no século seguinte. A própria codificação opõe legalidade a arbítrio mas não parece opor a legalidade ao direito penal do antigo regime. Neste domínio, a sua pretensão restringe-se a extirpar o poder arbitrário dos juízes.

As referências à legalidade da pena multiplicam-se na doutrina sete-centista. As penas devem ser escolhidas e ditadas pela lei26, de acordo com uma regra de certeza perfeita27. A Leopoldina consagra a legalidade da pena, ao estabelecer uma hierarquia fechada de punições que começa com as pe-nas pecuniárias (nº 1) e termina com os trabalhos públicos (nº 15). O degre-do (esilio e confino) desempenha aí, pela frequência, um papel de destaque (nºs 4-9)28. A melhor demonstração de que a legalidade da pena constitui uma exigência muito anterior ao liberalismo e até ao humanitarismo beccariano encontramo-la em Muyard de Vouglans, para quem as noções de crime e de pena reúnem (todos) os ingredientes do princípio da legalidade. A lei es-tabelece o crime29, a pena e o processo30. O mais reaccionário dos penalistas franceses afirma que a pena deve ser legal ou jurídica e justa. Elenca três re-quisitos ou condições de legalidade da pena. Ela deve ser ordenada pela lei. Deve ser pronunciada pelo juiz. Deve ser infligida de acordo com o processo prescrito na lei.

b. O direito legislado define o território de actuação sem constran-gimentos do súbdito: tudo o que não é proibido não pode ser impedido e ninguém pode ser obrigado a fazer o que a lei não ordena. Por isso, a lei estabelece também os justos limites (justes bornes) da actuação do juiz. Sub-jaz ao princípio da legalidade uma defesa do súbdito ou do cidadão face ao detentor do ius puniendi. A afirmação da legalidade desenha um santuário de defesa face à actuação do poder, que fica circunscrita às fronteiras definidas

26 Lardizabal y Uribe, Discurso sobre las penas, pp. 69 e 70.

27 Michel Foucault, Surveiller et punir. Naissance de la prison, p. 113.

28 Riforma della Legislazione Criminale negli Stati di S.A.R. Il Gran-Duca di Toscana, § LV.

29 Les lois criminelles de France, Livro Primeiro, p. 2: “[...] le crime [...] un acte défendu par la loi, parce qu’en effet, sans la loi il n’auroit point de crime, & qu’il ne peut y avoir de crime à faire ce que la loi permet.”.

30 Os requisitos da pena jurídica ou legal não podem ser mais exaustivos (nulla poena sine lege; nulla poena sine judicium): “[...] pour qu’une peine soit censée juridique parmi nous, il faut principalement trois choses [...] 1. qu’elle soit ordonnée par la loi; 2. qu’elle soit prononcée par le juge; 3. & qu’enfin elle soit infligée suivant les formes prescrites par les loix du royaume”. (idem, p. 41).

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na lei. Simultânea e reciprocamente, os limites legais definem as fronteiras da obediência exigível e da liberdade. Por um lado, a lei é um princípio de se-gurança31 ou uma garantia do cidadão pacífico32 porque define demarca a acção lícita. Lealmente. Ou seja, de forma prévia e acessível ao súbdito. Por outro lado, fixa os limites da actuação dos agentes do poder, nomeadamente dos juízes.

Não traduz qualquer tipo de novidade a ligação entre a observância ou o cumprimento do direito e a liberdade. A lei configura-se como a norma das acções livres. A liberdade é o direito em movimento. O princípio da legalidade encerra contudo um sentido redutor na medida em que o direito é reduzido à lei. A lei – e, através dela, o Estado – é agora a única fonte que define ao cidadão o seu território de liberdade. A liberdade depende da lei, logo, do Es-tado. A lei é – e será33 – o território da liberdade. Reciprocamente, o conceito de liberdade fica prisioneiro da lei.

Lopes Ferreira dá conta desta incidência política tocando problemas técnico-jurídicos muito concretos como a qualificação de um acto como deli-to, a interpretação da lei e a devassa dos crimes. Assim, por exemplo, a iden-tificação dos crimes públicos depende de qualificação legal34. Ao ultrapassar a fronteira ou os limites da lei, a actuação dos oficiais régios gera falta de jurisdição e nulidade dos actos praticados35. Faz grande injúria às leis aquele que quer saber mais do que elas, devendo-lhe em tudo obedecer. Um veio temático de importância capital que irradia a partir da subordinação à lei define-se na preocupação de a administração da justiça integrar ministros de boa fama, pro-cedimento, e opinião, que observam em tudo a sua obrigação, obrando com rectidão e

31 Levy Maria Jordão, Commentario ao Codigo Penal portuguez, Tomo I, Comentário ao Artigo 1º, p. 8: “O Código pois, partindo do princípio que o Legislador se deve guiar pelo justo, não quis estabelecer uma doutrina errónea, mas sim um princípio de segurança para os cidadãos, declarando-lhes que só a lei, e não a vontade do poder executivo ou judiciário, pode significar quais as acções, que aos olhos do direito são criminosas”.

32 Idem, Comentário ao Artigo 5º, p. 13.

33 Constituição portuguesa de 1822, Artigo 2º: “A liberdade consiste em não serem obrigados a fazer o que a lei não manda, nem a deixar de fazer o que ela não proibe. A conservação desta liberdade depende da exacta observância das leis”.

34 Manuel Lopes Ferreira, Pratica Criminal, p. 128: “Os delitos não se chamam públicos, senão aqueles, que são declarados por lei, ou por algum estatuto”.

35 Idem, p. 151: “E se contudo vier algumas vezes caso, em que se possa duvidar se o acto, que se fez soa a delito, ou não? Devem os Juízes tomar a melhor interpretação, que é, que não há delito”.

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justiça; expertos e zelosos ministros; ministros de boa fama, e opinão, ânimo sincero e temor a Deus. O bom ministro não se limita a agir em nome e no interesse da Coroa – protege a honra, boa opinião e fama, o crédito e fazenda do súbdito. Aplica as penas da lei. Não pode pretender ser mais clemente do que a lei. Deve--lhe obediência. Limitado pelo direito legislado e pelo pedido do libelo, o juiz penal está impedido de diminuir as penas legais, já que a clemência é um exclusivo atributo do legislador. Esta proibição expressa-se em falta de poder ou jurisdição36. Lopes Ferreira refere aliás as consequências penais para o juiz que julga contra a lei, atenuando as penas nela estabelecidas.

Legalidade, condenação do arbítrio judiciário e moderação das penas – aqui encontramos o exacto receituário do reformismo humanitarista. O ado-çamento da legislação penal devia actuar como contrapartida da condenação dos mecanismos judiciais de atenuação da brutalidade da lei do antigo regime.

Para a doutrina setecentista, a desconfiança depositada nos juízes e no arbítrio judiciário é directamente proporcional à confiança depositada na lei37. Esta, constante e invariável, clavidente e cega 38, superioriza-se face à actuação do juiz39. A exigência de legalidade transita da prova para a incrimi-nação e para a pena40. Antes mesmo de deixar transparecer o seu efeito polí-tico exterior no relacionamento entre o súbdito – ou o cidadão – e o Estado, a legalidade emerge como um meio de constrangimento dos juízes, como mais um passo na construção do monopólio estadual do direito e portanto como um mecanismo de redefinição do próprio Estado41.

Contudo, a concretização da legalidade das penas configurava-se como uma árdua e problemática tarefa que supunha construir quadros le-

36 Idem, pp. 152 e 153; p. 162; e p. 436 e 437.

37 Jean-Marie Carbasse, Histoire du Droit Pénal, p. 360. Arlette Lebigre, La justice du roi. La vie judiciaire dans l’ancienne France, p. 239.

38 O Espírito das Leis, p. 175.

39 Pastoret, Des Loix Pénales, p. 72: “Il n’y a de constant et d’invariable que la loi. Le juge ne peut se substituer à elle pour prononcer un supplice”.

40 Jean-Marie Carbasse, Histoire du Droit Pénal, p. 374: “[...] il y avait dans l’ancien droit une liaison étroite entre le régime des preuves et celui des peines: légalité des preuves et arbitraire des peines constituaient les deux faces indissociables du système pénal classique. Au cours du XVIIIe siècle [...] cette relation avait commencer à s’inverser [...] sur le point d’abandonner le domaine des preuves, le principe de légalité triomphe dans celui des incriminations et des peines”.

41 Neste sentido, António M. Hespanha, “Le Projet de Code pénal portugais de 1786”, p. 390.

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gislativos detalhados para afastar toda e qualquer modulação judiciária ou, pelo menos, deixar aos juízes um reduzido poder ou arbítrio na escolha das punições42. Não pode portanto ser desligada das relações entre as várias fon-tes de direito e das mutações metodológicas que permitiriam construir um monopólio legal. Modernamente, a legalidade supõe exclusivismo e portan-to o afastamento das restantes fontes. Está por isso estreitamente ligada ao problema da integração de lacunas ou, ainda na terminologia setecentista, ao problema do direito subsidiário. O princípio da legalidade implicará sempre – pelo menos – a existência de uma norma de direito positivo. Seja uma lei régia, uma norma de direito romano, de direito canónico ou um preceito de direito jurisprudencial...

O legalismo aflora repetidamente nos conceitos elaborados pela dou-trina setecentista, enquanto elemento determinante da construção científica. No Dicionário de Pereira e Sousa, as definições gerais ligadas ao direito en-contram-se dependentes da conformidade ao direito legislado43, tendendo à progressiva identificação do direito com a lei. Muito pouco liga o jurisconsulto ao jurisprudente medieval. Quase tudo o identifica com o jurista actual, aque-le que sabe as leis, as interpreta e aplica o direito aos casos. O justiceiro é o amigo da justiça, ou seja, aquele que executa as leis, principalmente as criminais. A jurisprudência é reduzida à interpretação e à aplicação das leis. O advérbio justamente define uma acção praticada com justiça ou em conformidade às leis. Justiçar significa castigar, impondo a pena da lei, ou simplesmente executar a lei. Pear é castigar ou obrigar à pena legal. O direito criminal é reconduzido a uma mera colecção das leis criminais. A jurisprudência criminal designa o juízo das acções humanas segundo as leis criminais.

Montesquieu defende en passant44 a subordinação do juiz à lei, relacio-nando-a com os modelos políticos. Nos Estados despóticos, não há lei: o juiz é ele mesmo a sua própria regra. Nas monarquias, existe uma lei: e onde ela é precisa o juiz segue-a; onde ela não o é, ele procura o seu espírito. Nos governos republi-canos, é da natureza da constituição que os juízes sigam a letra da lei. Nestes,

42 Sobre estas duas hipóteses vd. Bernard Schnapper, “Les peines arbitraires du XIIIe au XVIIIe siècle (doctrines savantes et usages français), p. 66.

43 Joaquim José Caetano Pereira e Sousa, Esboço de hum Diccionario Jurídico, Tomo II, em particular as vozes jurisconsulto, jurisprudência, justamente, justiçar, justiceiro e pear.

44 Bernard Schnapper, “Les peines arbitraires du XIIIe au XVIIIe siècle (doctrines savantes et usages français)”, p. 63: “Montesquieu a formulé en passant le principe, sans paraître y attacher une importance particulière”.

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não há cidadão contra quem se possa interpretar uma lei quando se trata dos seus bens, da sua honra ou da sua vida. Usando a imagem que inspirará Beccaria, os juízes da nação são apenas a boca que pronuncia as palavras da lei – seres inanimados que não podem moderar nem a sua força, nem o seu rigor45.

À medida que progride o século, as referências à legalidade da pena multiplicam-se e intensificam-se. Mas é seguramente impossível sustentar que a afirmação do princípio da legalidade da pena em Beccaria – somente as leis podem fixar as penas correspondentes aos delitos – incorpore verdadeira no-vidade. Na obra de Cesare Bonesana, a exigência da legalidade reflecte-se na fixação das penas, do processo e dos pressupostos da prisão. Por isso, somente as leis podem fixar as penas correspondentes aos delitos; determinar os casos em que um homem é merecedor de pena; e fixar um certo espaço de tempo, tanto para a defesa do réu como para as provas dos delitos46. Ao contrário de Montesquieu, defende que o princípio da legalidade é válido para todos os regimes políticos. Mas, como observa Bernard Schnapper, nem para um nem para outro constitui o centro das reformas a realizar47. As Instruções russas não iludem a inspiração no que toca à legalidade da pena – a ninguém, excepto às leis, pertence estabelecer as penas para os culpados48. Ainda de forma semelhante, Lardizabal y Uribe es-creve: só a lei pode decretar as penas para os delitos. Ou seja, a determinação das penas cabe ao legislador e não ao juiz. Uma vez mais, a legalidade das penas opõe-se ao arbítrio judiciário49.

As propostas de codificação da autoria de Mello Freire assim como os seus textos didácticos, embora comecem ancorados na tradição, acabam por não ficar aquém dos textos liberais. No Novo Código de Direito Público, é con-sagrada a legalidade da pena e do juízo50. Ensaia-se uma solução de com-

45 O Espírito das Leis, p. 87 e p. 175.

46 Beccaria, Dos delitos e das penas, § III, p. 66; § XXIX, p. 126; § XXX, p. 129.

47 Bernard Schnapper, “Les peines arbitraires du XIIIe au XVIIIe siècle (doctrines savantes et usages français)”, p. 64

48 Instructions adressées par Sa Majesté L’Impératrice de toutes les Russies, Article X, 138, pp. 62: “[...] il n’appartient à personne, excepté aux Lois, d’établir des peines pour les coupables”.

49 Lardizabal y Uribe, Discurso sobre las penas, p. 70: “Sólo las leyes pueden decretar las penas de los delitos, y esta autoridad debe residir únicamente en el legislador. Toda la faculdad de los jueces debe reducirse, únicamente, a examinar si el acusado ha contravenido o no a la ley para absolverle o condenarle en la pena señalada por ella”.

50 Pascoal José de Mello Freire, O Novo Codigo do Direito Publico de Portugal, Título III, § 23, p. 12: “Os ministros criminais de nossos reinos na imposição das penas, e inquirição dos delitos e suas provas, devem observar em tudo estas nossas ordenações, e aquela ordem do

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promisso que respeita mas condiciona o arbítrio judicial. As penas ou são legais ou são judiciais. As primeiras não consentem arbítrio que a própria lei não contemple expressamente51. De acordo com o Ensaio do Código Criminal, o delito é definido como acção contra a lei52. E a pena como o castigo que a lei faz sofrer ao criminoso53. A distinção romana entre crimes ordinários e extraordi-nários permite a Mello Freire esclarecer o entendimento do nosso direito e do nosso foro quanto à consagração da legalidade, quer na definição do crime quer na definição da pena. À semelhança de outros criminalistas, considera que a distinção está desactualizada – não tem uso nenhum. Assim, o nosso foro ignora o crime sem lei (nullum crimen sine lege) e ignora a pena meramente arbitrá-ria (nulla poena sine lege). Em Portugal, não há crime sem lei que proiba o facto. Nem penas meramente arbitrárias, uma vez que o arbítrio tolerado é o arbítrio conferido por lei e, por isso, na perspectiva de Mello Freire, de certo modo le-gítimo54. Como observa Tomás y Valiente, o arbítrio legal consubstancia uma legalidade indirecta55. Já no século da codificação, nas suas Lições de Direito Criminal, Basílio de Sousa Pinto, que seguiu as preleções de Pascoal José, ao cotejar o conceito de crime, destaca a expressão contra a sanção das leis56, sem que haja qualquer choque com a lição do mestre setecentista. Mas sem dis-sipar alguma ambiguidade no que toca ao arbítrio judiciário57. A legalidade

juízo e do processo, por nós estabelecida segundo a diversidade dos crimes. Porém a estas formalidades e leis meramente civis e positivas não está ligada e sujeita a nossa suprema autoridade”.

51 Idem, Título III, § 26, p. 12: “Nas penas legais não tem o juiz arbítrio, senão quando a lei expressamente lho concede”.

52 Ensaio do Codigo criminal, Título I, proémio, p. 19: “O que por sua vontade obrar qualquer acção que a lei proíbe, ou deixar geralmente de fazer o que ela manda, comete delito”; Provas, Ao Título I, p. 227: “Vem logo no princípio a definição do delito, e tal se diz a acção contra a lei, e a sua transgressão, e nela se compreendem todas as leis, ou sejam proibitivas, ou imperativas. Esta definição é de Blackstone; e os criminalistas em substância vêm a dizer o mesmo.”

53 Idem, Título IV, proémio, p. 26.

54 “Instituições do Direito Criminal”, p. 57, em nota.

55 El Derecho penal de la Monarquia Absoluta, p. 375.

56 Basílio Alberto de Sousa Pinto, Lições de Direito Criminal, p. 12; e pp. 14 e 15.

57 Por um lado, opõe a legalidade ao arbítrio, que condena: “Como consequência d’isto podemos dizer, que o Juiz não pode punir, uma vez que não haja Lei violada, não podendo, como no Direito Civil, aplicar a Lei a casos semelhantes.”. E exige a previsão legal quer do crime quer da pena: “[...] não conhecemos como crimes, senão os delitos que têm sanção na Lei: não basta haver Lei, que proiba o facto; é necessário, que haja pena imposta por

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no domínio da definição das penas está tão sedimentada no pensamento de Pereira e Sousa que quando define as penas arbitrárias não refere senão a arbitrariedade legal58.

c. A legalidade oferece ao cidadão segurança e igualdade. O velho tó-pico da variação das paixões dos homens por contraposição à constância das leis une-se ao postulado de um direito igual para todos. Assim sucede na obra de Pastoret, para quem a escolha da pena incumbe à lei e não está por-tanto na disponibilidade do juiz nem do próprio condenado. Não pode em absoluto existir pena sem lei. De acordo com o tópico clássico, a fixação da pena pela lei é preferível à sua determinação pelo juiz. A imparcialidade da lei opõe-se então à permeabilidade do juiz a amores e ódios. Para o Autor das Leis Penais, a legalidade das penas anda a par da sua uniformidade ou da sua indiferenciação social59. Legalidade significa igualdade face à lei. Ao menos frente à lei, o fraco e o indigente são iguais ao poderoso e ao rico. De forma idêntica, segundo as Instruções russas, as leis são feitas para os homens em geral e todos são obrigados a conformar por elas a sua vida60. Para Bentham, a pena deve ser certa e igual para todos aqueles que passam por ela a sentirem da mesma forma61. Segundo Blackstone, ninguém se encontra isento de pena em virtude de infracção às leis do país62. A regra geral postula igualdade face à lei. A legalidade configura-se como a fórmula realizadora da igualdade63.

Pastoret confere aliás ao tema das relações das penas um desenvolvimen-to e uma sistematicidade notáveis. Apesar disso, forçoso é dizer que o seu

essa Lei [...]” (idem, p. 15). Contudo, por outro lado, condescende no arbítrio que actua na determinação da pena: “[...] o princípio - que é necessária Lei penal para haver crime - existe entre nós: não é porém, mister que haja pena certa, e determinada.” (idem, p. 19).

58 Joaquim José Caetano Pereira e Sousa, Classes dos Crimes, nota 33 ao § 21, p. 22: “Penas legítimas, ou ordinárias são as que estão impostas nas Leis; e penas arbitrárias, ou extraordinárias são as que a Lei deixa ao arbítrio do Magistrado”; nota 12 ao § 11, p. 8: “Os ordinários eram os que tinham pena especial na Lei; os extraordinários os que tinham pena arbitrária aos Julgadores”.

59 Pastoret, Des Loix Pénales, Tomo II, p. 13; p. 60; e p. 53.

60 Instructions adressées par Sa Majesté L’Impératrice de toutes les Russies, Article XIX, 439, p. 200.

61 Bentham, Theoria das Penas Legaes, p. 37.

62 Commentaries on the Laws of England, Livro IV, p. 20.63 Artigo 9º da Constituição portuguesa de 1822: “A lei é igual para todos. Não se devem,

portanto, tolerar privilégios do foro nas causas cíveis ou crimes, nem comissões especiais. Esta disposição não compreende as causas, que, pela sua natureza, pertencem a juízos particulares, na conformidade das leis.”

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estilo, classificável como panfletário, prolixo, casuístico, descritivo, narrativo, expressivo e ainda exclamativo, envolve um texto menos técnico e menos juscientífico do que aquele que encontramos noutras obras64. Não obstante, entre os critérios de determinação das penas deparamo-nos com um critério legal ou, ainda na expressão que escolhe, é possível determo-nos na relação da pena com a lei. A relação entre a pena e a lei irradia em temas como: a relação da pena com o carácter das provas65; a relação da pena com as presunções do crime; a relação da pena com a dificuldade em descobrir o crime; e a relação das leis penais com as leis civis66. Pastoret defende que a legislação penal está mais ligada à legislação civil do que normalmente se pensava. De facto, as causas do crime e os seus remédios deixam aqui de estar centrados no indívi-duo livre e responsável. Constituem um problema de governação, uma res-ponsabilidade do Estado. Neste discurso, é mais fácil apontar o dedo ao mau estado da economia ou à deficiente educação proporcionada pelo Estado. Os prolegómenos da sociologia começam a conferir ao criminoso o estatuto de vítima da sociedade67. Idêntica opinião é expressada por Ribeiro dos Santos. Por isso, para evitar ou diminuir os delitos, não bastariam penas nem brandas nem severas – seria necessário primeiro que tudo cuidar da educação; criar costumes; assentar n’uma boa polícia e disciplina entre as classes dos cidadãos68.

d. A exigência de uma pena legal dirige-se inevitavelmente à confor-mação da própria lei. O texto que comina a pena deve ser certo. Por sua vez, a certeza da pena pode encerrar vários sentidos. Significa em primeiro lugar simplicidade e clareza. Este é o sentido mais recorrente da exigência. Ribeiro

64 Expressivo: “Pour respirer [...]” (Des Loix Pénales, Tomo I, p. 54). Exclamativo: “Vous frémissez!” (idem, p. 53). O estilo descritivo e exemplificativo de Pastoret leva-o a longas e meramente decorativas referências sobre diferentes crimes, diferentes épocas, diferentes latitudes e diferentes ordenamentos jurídicos (idem, Tomo II, pp. 1-207).

65 Idem, Tomo II, pp. 112-116. Pastoret rebela-se contra a penumbra em que a presunção de inocência tinha sido colocada com a aceitação da prova incompleta para condenar o réu, embora a uma pena menor que a punição ordinária. Prova e incompleta, comenta, são dois termos cuja aliança é impossível para a razão.

66 Idem, Tomo II, pp. 116-126.67 Françoise Briegel e Eric Wenzel, “La récidive à l’épreuve de la doctrine pénale (XVIe-XIXe

siècles)”, p. 102: “Après 1750, on observe une approche plus sociologique de la criminalité. Des causes proprement sociales (la pauvreté, la propriété) ou judiciaires (la dureté et les abus de la justice) sont invoquées”.

68 “Discurso sobre a Pena de Morte e Reflexões sobre alguns crimes”, p. 113.

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dos Santos faz aliás da transparência dos textos legais um lema metodológico e uma arma na censura do Novo Código de Mello Freire69.

Para Bentham, a pena deve ser estabelecida e até designada de forma clara e simples, para que seja entendida por todos. Não só pelas pessoas de tino, mas até pelo mais ignorante70 dos homens. A pena clara, compreensível e compreendida por todos, não é alvo de interpretações divergentes. A in-certeza e a imperfeição dos textos legais havia conduzido à exacerbação do arbítrio. Crimes e castigos devem apresentar-se como um catecismo. Breve, claro e metódico. Uma pena certa é preferível a uma pena problemática porque todos sabem o que esperar. Enquanto a pena duvidosa estimula a esperança da impunidade, uma pena legal e certa permite realizar o fim preventivo. A certeza da pena pode também significar que atinge certeira e inevitavelmen-te todos os que delinquiram. É certa se produz efeitos em relação a todos; torna-se incerta se para alguns resulta indiferente. A pena é incerta quando ao réu não se lhe dá de a sofrer, é como se não existisse para o réu, a quem não incomoda. Para uns é certa ou produz o seu efeito, para outros é indiferente, como a pena pecuniária em relação aos que têm fortuna ou que são indi-gentes. Condescende que são as penas incertas são necessárias quando não é possível impor outras, sendo preferíveis à impunidade. Propõe que a lei apresente duas penas diferentes, para o caso de uma se apresentar defeituo-sa. Uma legislação simplificada deve cominar penas certas ou inevitáveis e por isso, menos rigorosas71. A medida legal das penas é em muito a expressão da perfeição das leis, assim como da eficácia do sistema judiciário.

§ 2. a intransMissibilidade – esse sentimento de humanidade

a. O direito penal antigo aceitava pacificamente o princípio da res-ponsabilidade pessoal por actos próprios72 ou da individualidade das

69 Notas ao Plano do Novo Codigo, p. 170: “[...] em matéria penal quisera as ideias tão circunscritas e demarcadas, as noções tão exactas, e os termos tão próprios e definidos, que quanto fosse possível, nem dessem ocasião à liberdade das disputas e dos arbítrios, nem necessitassem de socorro da interpretação”.

70 Bentham, Theoria das Penas Legaes, p. 42.

71 Idem, p. 30; p. 36; p. 37; e p. 71.72 Francisco Tomás y Valiente, El Derecho penal de la Monarquia, p. 295: “Salvo excepciones,

puede sentarse el principio general de que la teoría, las leyes y la práctica judicial coinciden en vincular la pena al autor de los actos humanos definidos como delitos”. André Laingui, La responsabilité pénale dans l’ Ancien Droit, p. 245: “S’appuyant sur le droit romain, les jurisconsultes de l’ancien droit affirmaient le principe de la personalité des peines et, pour

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penas73. Mello Freire chama-lhe imutável regra74. As últimas hesitações haviam sido varridas pelo direito romano, onde se encontram máximas que não dei-xam espaço para dúvidas75. Loisel recolhe a propósito dois adágios. Um de formulação mais técnico-jurídica: tous délits sont personnels et en crime n’y a point de garant76. Outro de tom mais popular: qui a fait la faute, il la boit77. Os delitos pressupõem a execução consciente e voluntária das condutas que a lei considera como tal. São pessoais78 ou personalíssimos e não podem imputar-se a uns as acções ilícitas dos outros79. Imputam-se somente ao respectivo autor80. Ora, a pena é a consequência do crime – não há pena sem crime. Por isso, no Dis-curso de Lardizabal y Uribe, decorre da natureza da pena que seja imposta ao que causou o mal que constitui o crime – por consiguiente a ninguno puede im-ponerse pena por delito que otro haya cometido, por enorme que sea81. A pena somen-te deve recair no culpado82. Da responsabilidade pessoal seguia-se logicamente que toda a acção penal é pessoal e não passa para o herdeiro83. Tinha lugar apenas

utiliser comme eux les termes romains, l’intransmissibilité des actions pénales”. Jean-Marie Carbasse, Histoire du Droit Pénal, pp. 257-259.

73 Pastoret usa a expressão “principe de l’individualité des peines” (p.55), a que dedica um capítulo (De l’individualité des peines). Vd. Des Loix Pénales, Tomo II, pp. 53-57. Esta terminologia é recebida por Pereira e Sousa, que nesta matéria, de forma expressa, se deixa influenciar por Pastoret. Classes dos Crimes, nota 33 ao § 26, p. 29: “Assim como os crimes são personalíssimos (§ 9.) da mesma sorte as penas o devem ser. Todo o meio de punir é mau, quando ele recai sobre outro, que não é culpado. [...] Os antigos não desconheciam o princípio da individualidade das penas. [...] A confiscação, e a infâmia, quando se estendem sobre a posteridade inocente, diz Mr. Pastoret [...] não são, regularmente falando, penas legais”.

74 Ensaio do Codigo criminal, Provas, Ao Título IV, p. 245.

75 D.48.19.26 (Nem o crime do pai nem a sua pena podem inflingir mácula sobre o filho); D.47.1.1.2 (O castigo segue o culpado); D.50.2.2.2 (A infâmia do pai não deve macular o filho); D.50.2.2.7 (O crime do pai não pode valer uma pena ao filho inocente); D.48.4.11 (O crime cessa com a morte).

76 Institutes Coutumières, Livro VI, Título I, max. 8, p. 69.

77 Idem, Título II, max. 4, p. 71.

78 Muyart de Vouglans, Les lois criminelles de France, Livro Primeiro, p. 7.

79 Joaquim José Caetano Pereira e Sousa, Classes dos Crimes, § 9, pp. 6 e 7.

80 Tomás A. Gonzaga, Tratado de Direito Natural, p. 55.

81 Lardizabal y Uribe, Discurso sobre las penas, pp. 21 e 22; e pp. 225 e 226.

82 Joaquim José Caetano Pereira e Sousa, Classes dos Crimes § 26, p. 29.

83 Jousse,Traité de la justice criminelle de France, Tomo Primeiro, p. 573.

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e indistintamente contra todos os que participaram no crime84. Ninguém podia ser punido pelo delito de outrem (nemo punitur pro alieno delicto).

No século XVIII, o contratualismo conduz a uma concepção indivi-dualista que reitera a responsabilidade pessoal e defende o afastamento das reminiscências da sua transmissão (excepcional). Sem importar verdadeira novidade, a doutrina “purifica” e amplia as consequências políticas do velho princípio. De facto, algumas funestas injustiças decorriam de uma concepção comunitária de família, a que nomeadamente Beccaria se opõe. A sociedade deve ser considerada como uma união de homens e não como uma união de famílias, pequenas monarquias de escravos e não de cidadãos85 – a liberdade política dos homens supõe necessariamente que as penas sejam meramente pessoais86. Re-puta-se calamidade o facto de os filhos sofrerem pelos delitos dos pais87. Nin-guém herda os crimes alheios88. Referindo-se aos efeitos das penas, Muyart de Vouglans afirma que, sendo estabelecidas em função dos crimes, devem – em regra – recair somente sobre o autor e os seus cúmplices. Mas não sobre os familiares, amigos ou herdeiros89.

Mello Freire relaciona a transmissibilidade das penas com a inexistên-cia de processo legal – a pena, e o castigo sempre deve seguir-se, e nunca prece-der a prova do crime; e só pode cair no criminoso, e nunca na sua família, estando inocente90. O princípio dirige-se particularmente às penas infamantes e de confisco. De acordo com o seu código criminal, os herdeiros não respondem pelos delitos do defunto91. Quando essas penas se estendem para a posteridade,

84 Ibidem.

85 Dos delitos e das penas, § XXVI, p. 112.

86 Idem, § XXXII, p. 136.

87 Francisco Coelho de Souza e S. Paio, Prelecções de Direito Patrio, p. 159, nota c).

88 Francisco Freire de Mello, Discurso sobre Delictos e Penas, p. 31. Este trabalho, cuja originali dade o próprio Autor assinala na Introdução (“nunca foi tratado entre nós”), constitui um estudo sereno, ao contrário do rasto que a sua personalidade deixou. Não deixa de dar mostras do seu pessimismo quanto à natureza humana – “o homem, o pior e o mais estúpido de todos os animais” (p. 6). Ou de zurzir a Academia das Ciências (nota da p. 8, onde se ressente das críticas da Academia à edição conimbricense do compêndio de História do seu tio, Mello Freire, realizada segundo a edição de 1800, “em que emendei muitos erros, tendo sempre contra mim nas ditas emendas a pressuposta Academia Real das Sciencias de Lisboa”).

89 Les lois criminelles de France, Livro Segundo, p. 43.

90 Ensaio do Codigo criminal, Título IV, § 34, p. 32.

91 Idem, § 35, p. 32.

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escreve Pastoret, seguido por Pereira e Sousa92, são injustas. E, antepondo invulgarmente a justiça à utilidade, conclui Pastoret: o que é injusto nunca pode ser bom ou útil93. No Ensaio de Mello Freire, a proibição do confisco resulta da intransmissibilidade da pena94. Contudo, no crime de alta traição rompe-se este princípio, ordenando-se a destruição e o salgamento da casa do réu, bem como a confiscação dos seus bens95. A não transmissibilidade das punições constitui ainda o nervo da argumentação de Mello Freire na Petição que apre-senta à Rainha em nome de D. Martinho de Mascarenhas, filho do Duque de Aveiro, com a súplica da sua reabilitação honorífica e reintegração patrimo-nial. Sem sucesso96. O seu sobrinho, Freire de Mello, rebela-se também contra a transmissibilidade da infâmia: a infâmia do culpado nunca deve passar para a geração inocente97. Sem originalidade, não se deixa comover pelo argumento segundo o qual a transmissibilidade é a mais forte para conter os pais. De facto, considera que o amor paterno não é mais forte do que o amor da própria vida. Logo, é ineficaz. O argumento decisivo é a injustiça ou iniquidade da pena – o certo é que a pena com efeito vai recair no inocente, o que é iníquo. Do mesmo modo, a ideia da não transmissibilidade da responsabilidade penal leva Pereira a Sousa a aceitar apenas o confisco parcial de bens adquiridos – a humanidade pede que se reserve aos filhos a sua porção legítima98. E reitera o princípio a propósito das penas infamantes.

b. O princípio da individualidade das penas ou da não transmissibili-dade da responsabilidade penal convivia com a admissão de excepções. Pelo menos três, de gravidade diferenciada: o crime de lesa-majestade; o confisco de bens, menos grave mas mais frequente; e a responsabilidade penal colec-tiva.

Vouglans, sem perplexidades, exceptua da responsabilidade penal pessoal o crime de lesa-majestade, cujas penas são desonrosas (flétrissan-tes) para os familiares e que afectam patrimonialmente todos os herdeiros

92 Classes dos Crimes, nota 33 ao § 26, p. 29.

93 Des Loix Pénales, Tomo II, p. 53.

94 Ensaio do Codigo criminal, Título IV, § § 11 e 35.

95 Idem, Título XIII, § § 18 e 19.

96 Reproduzindo uma parte das alegações de Mello Freire, Processos Celebres do Marquez de Pombal. Factos curiosos e escandalosos da sua epoca. Documentos historicos ineditos. 1782-1882. Por um anonymo, pp. 39-42.

97 Discurso sobre Delictos e Penas, p. 31.

98 Classes dos Crimes, nota 39 ao § 23, p. 27.

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do condenado99. Jousse procede de forma idêntica100. Com a mesma placidez com que aceita que se inspire horror através da transmissibilidade familiar da responsabilidade penal no crime de lesa-majestade, toma como pressu-posto o princípio contrário101. E até o progressista Pastoret concorda com a excepção. Embora conclua eufemisticamente que se trata sobretudo de uma precaução: c’est une précaution bien plutôt qu’un supplice102... Thorillon ensaia uma explicação – que não aceita – para a transmissão da responsabilidade penal. As famílias têm o dever de velar e manter os seus membros na ordem e sob a disciplina das leis103. Este fundamento cedia facilmente, atendendo por exem-plo à situação de alguns membros da família que a própria lei colocava sob a autoridade do condenado, como os filhos.

De facto, tal como constata Bentham, o direito penal do antigo regime está eivado de penas que recaem sobre pessoas que não tiveram parte alguma no crime104 ou, na terminologia que adopta, penas incompetentes. Rigorosamen-te, precisa, não estamos perante verdadeiras penas. A sua análise distingue duas situações: uma, em que a responsabilidade pelo delito deve recair sobre pessoas que o não praticaram; e outra, em que o legislador alcança inocentes contra a sua intenção e sem que o possa prevenir. Apesar de fazer uso de um discurso parcialmente crítico, continua a aceitar a responsabilização de pes-soas que não tiveram parte no crime. Além de que se conforma com a inevita-bilidade de a punição do agente indirectamente extravasar ou transbordar para muitas pessoas com quem o agente tem relação: os membros da sua família, os amigos, os próprios credores, naturalmente. Defende, ainda assim, a pon-deração pelo juiz de circunstâncias como o facto de o réu ser casado ou ter filhos, de forma a igualar a pena, descontando-a, já que para este a pena nominal

99 Les lois criminelles de France, Livro Segundo, p. 43 e 44.

100 Traité de la justice criminelle de France, Tomo Primeiro, p. 575: “On punit même quelquefois les enfans du coupable, pour le crime de leur père, quoiqu’ils n’y aient point participé; v.g. dans le crime de lese-majesté”.

101 Idem, Préface, iv: “[...] suivant la règle ordinaire, il n’y a que celui qui a commis le crime, qui en doive porter la peine”.

102 Des Loix Pénales, Tomo II, pp. 55 e 56.

103 Idées sur les Loix Criminelles, Tomo I, Título I, § IV, Art. 88 (Plus de confiscation), p. 260; vd. ainda o Art. 89 (L’honneur des familles conservé), p. 259, e o Art. 90 (Préjugé injuste), pp. 259-271. Encontramos aqui um tema por excelência em que o sentimento exaltado dos reformadores se detém com um desenvolvimento que não dedicam a temas mais técnicos, aspecto que, acreditamos, contribuiu para soterrar o apuro técnico dos criminalistas mais conservadores.

104 Vd. Theoria das Penas Legaes, pp. 287-290.

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é mais pesada. A pena é considerada incompetente ou mal posta em dois tipos de situações: quando outra pessoa sofre a pena no lugar ou em vez daquele que teve parte no crime; e quando para além deste outros inocentes são também pu-nidos. Quando a pena recai sobre um inocente e deixa o agente impune diz-se substituta, a pena mais incompetente que pode haver. Bentham exemplifica com o confisco cominado em Inglaterra para o crime de suicídio. E apresenta ainda um outro exemplo, do direito das gentes, ainda que não venha de molde para explicar a matéria: as represálias. Quando a pena é transmitida a outra pessoa que tem alguma relação com aquele praticou o crime, a pena diz-se transitiva. Podem ser conjuntamente castigados os membros de uma corporação pela presunção de que lhe pertence aquele que praticou o crime (pena colectiva). A pena recai por vezes, em parte ou acidentalmente, sobre alguém que não rela-ção nem com o delito nem com aquele que o praticou (pena fortuita). Quando os delinquentes são em grande número, a pena pode ser atribuída por sortes. Neste caso, não há punição de inocentes. Não há verdadeiramente pena in-competente. E não há pena fortuita.

c. As leis não revelam neste domínio qualquer tendência para a formu-lação de princípios ou regras gerais. Tanto encontramos declarações que se inclinam para a individualidade das penas como o reconhecimento da sua transmissão aos familiares. Será possível entender os preceitos como a con-sagração ou o afloramento de um princípio que havia sido doutrinariamente alicerçado. Mas, de facto, o legislador manifesta-se sobretudo em circunstân-cias políticas delicadas. Por isso, muitas normas surpreendem-no nos mo-mentos mais críticos e revelam uma crispação, real ou virtual, que se sente esbater apenas depois da tormenta, circunscrevendo os efeitos do seu rigor na descendência inocente.

Como observa Eduardo Correia, a ideia de transmissiblidade das penas está patente nas Ordenações105. O crime de lesa-majestade constitui o exemplo mais paradigmático. Comparável à lepra, enfermidade que enche o corpo, sem nunca mais se poder curar, empece ainda aos descendentes de quem a tem, e aos que com ele conversam. Assim, o erro da traição condena o que a comete e empece e infama os que de sua linha descendem, posto que não tenham culpa106. Dando continuida-de às Ordenações, a Lei de 3 de Agosto de 1770 determinou que os delitos de lesa-majestade tornam árida e seca a linha de sucessão dos morgados107. O

105 Eduardo Correia, “Estudos sobre a evolução das penas no direito português”, Vol. I, p. 60.

106 O.F. L.V, T.6, pr.107 Collecção da Legislação Portugueza desde a Ultima Compilação das Ordenações, redegida pelo

Desembargador Antonio Delgado da Silva. Legislação de 1763 a 1774, pp. 476-483.

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carácter atroz e prejudicial do crime de lesa-majestade justifica o regime do Decreto de 9 de Dezembro de 1758, que prometeu prémios aos denunciantes do sacrílego insulto de 3 de Setembro contra ElRei e determinou que o silêncio e taciturnidade dos que encobriam os réus tinham a mesma pena que o crime em si mesmo. Os pais não eram relevados das penas de alta traição, encobrindo os filhos criminosos de lesa-majestade. Nem os filhos, encobrindo os pais108. Ora, segundo o entendimento comum, se o encobridor tivesse alguma ligação de parentesco com o autor, podia diminuir-se ou até remitir-se a punição, de acordo com as circunstâncias. Considerava-se que a motivação residia mais no afecto do que na malícia109. Para Mello Freire, aquele que oculta o seu pai e parentes não é tão criminoso como o que recebe e favorece estranhos, desde que não participe de outro modo no delito110. A Lei de 25 de Maio de 1773111 renova a transmissibilidade da infâmia aos descendentes – filhos e netos – dos condenados pelos crimes de lesa-majestade divina e humana. Mas estabelece que não passa aos bisnetos. Declarando este texto, a Lei de 15 de Dezembro de 1774112 manda que não se julguem compreendidos na pena de infâmia os filhos e netos dos confitentes reconciliados com a Igreja.

Porque as confiscações eram sempre tidas como inerentes ao crime de lesa-majestade, a Carta Régia de 21 de Outubro de 1757 intervém de forma a favorecer os filhos inocentes dos réus do motim do Porto, evitando o seu desamparo. A Misericórdia é encarregada de os alimentar e criar os que forem inocentes, como se fossem enjeitados, com todo o cuidado e caridade, para que não pe-reçam por falta do necessário. Os mais adiantados em idade, não capazes ainda de ganharem pelo próprio trabalho o sustento, eram postos a ofícios. As despesas são atribuídas à Minha Real Fazenda113. Por vezes, a intervenção do soberano

108 Collecção da Legislação Portugueza desde a Ultima Compilação das Ordenações, redegida pelo Desembargador Antonio Delgado da Silva. Legislação de 1750 a 1762, Lisboa, 1830, pp. 639-641; e Supplemento à Collecção de Legislação Portugueza do Desembargador Antonio Delgado da Silva. Pelo mesmo. Anno de 1750 a 1762, Lisboa, pp. 589-591.

109 Lardizabal y Uribe, Discurso sobre las penas, p. 134: “[...] no por malicia, sino vencido del amor y afecto”.

110 Ensaio do Codigo criminal, Título IV, § 19, p. 29.111 Collecção da Legislação Portugueza desde a Ultima Compilação das Ordenações, redegida pelo

Desembargador Antonio Delgado da Silva. Legislação de 1763 a 1774, pp. 672-678. A lei é referenciada por Francisco Freire de Mello, Discurso sobre Delictos e Penas, p. 32.

112 Collecção da Legislação Portugueza desde a Ultima Compilação das Ordenações, redegida pelo Desembargador Antonio Delgado da Silva. Legislação de 1763 a 1774, pp. 849-852. Também esta lei é mencionada por Francisco Freire de Mello, Discurso sobre Delictos e Penas, p. 32.

113 Collecção da Legislação Portugueza desde a Ultima Compilação das Ordenações, redegida pelo Desembargador Antonio Delgado da Silva. Legislação de 1750 a 1762, p. 554.

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destina-se, inversamente, a proteger a contaminação das famílias pelo com-portamento indigno de alguns membros, como sucede com o Alvará de 25 de Agosto de 1770, que desnaturaliza da família e torna inábeis para poder suceder em bens da Coroa e Ordens Estevão Soares de Mello e sua irmã Dona Teresa de Mello114. As penas de carácter patrimonial são ocasionalmente de-terminadas com a declarada intenção de produzir a sua transmissibilidade. Por exemplo, em relação à perda da propriedade do ofício, cominada posto que o agente tenha filhos115. De acordo com o Alvará de Lei de 11 de Agosto de 1753, a pena de contrabandista de diamantes passa aos herdeiros116.

A transmissão da responsabilidade pode ser alicerçada numa finalida-de dissuasora. Como no caso de saída das conquistas contra a proibição da lei. Consumado o delito, pouco resta ao legislador, que pune a tentativa com prisão, degredo (incorra em pena de dez anos de degredo para outra Conquista) e confisco de metade dos bens (perdendo a metade de seus bens). Se o agente com efeito tiver ido, a lei dispõe então o confisco total e lança a ameaça sobre a sua descendência: será desnaturalizado do Reino e seus filhos varões, para nunca nele poderem haver honras, dignidades ou quaisquer coisas eclesiásticas ou seculares117.

d. Os direitos antigos admitem a responsabilidade das comunidades118. Os delitos da cidade119 supõem, de forma idêntica, a comunicação das penas a inocentes. Multas, privação de privilégios, abate de muralhas, torres e outras

114 Collecção da Legislação Portugueza desde a Ultima Compilação das Ordenações, redegida pelo Desembargador Antonio Delgado da Silva. Legislação de 1763 a 1774, p. 486.

115 Regimento de 16 de Janeiro de 1751 in Collecção da Legislação Antiga e Moderna do Reino de Portugal. Parte II, Tomo III.

116 Idem: “As condenações pecuniárias, que deixo estabelecidas, passarão com os bens dos transgressores, como encargo real, a seus herdeiros e sucessores, para se executarem nos referidos bens, sendo o crime descoberto, e a pena dele pedida até ao espaço de vinte anos, contados desde o tempo, em que for cometida a transgressão”.

117 Alvará de 8 de Fevereiro de 1711 in edição vicentina das Ordenações (1747), pp. 239 e 240.

118 A Ordonnance de 1670 previa um procedimento específico para os casos de rebelião, no Título XXI (De la manière de faire de procès aux communautés des villes, bourgs et villages, corps et compagnies), Artigo 4: “Les condamnations ne pourront être que de réparation civile, dommages et intérêts envers la partie, d’amende envers nous, privation de leurs privilèges et de quelque autre punition qui marque publiquement la peine qu’elles auront encourue par leur crime”.

119 Pascoal José de Mello Freire, Ensaio do Codigo criminal, Provas, Ao Título IV, p. 245: “[...] por este nome entendo toda e qualquer corporação”.

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edificações... Estes casos são aproximados da responsabilidade colectiva120, na medida em que as penas atingem qualquer membro do grupo ou até todo o grupo. Mas são sempre os indivíduos que são atingidos. Porque pertencem ao grupo. Constituem reminiscências da solidariedade e da fidelidade medie-vais, alicerçadas na necessidade de segurança. E encontram uma explicação originária – pelo menos parcial – no enquadramento de grande insegurança que se compensava através da criação e da intensificação de vínculos de so-lidariedade. Activa e passiva. A amplitude do conceito de traição – muito para além dos delitos políticos – expressa bem a importância e a permanência desses vínculos de solidariedade.

A reacção à ilicitude podia assim ser expandida, quando a legitimida-de para executar a vingança se alargava para além da vítima (solidariedade activa). Quer aos familiares, quer até a qualquer membro da comunidade, quando estivessem em causa crimes mais graves. Se o bem jurídico afectado – como a paz – não era indiferente à comunidade, torna-se mais compreensí-vel essa reacção solidária. A solidariedade passiva constitui o reverso dessa protecção colectiva. À protecção do grupo corresponde a responsabilização colectiva.

A aplicação e a criação do direito e, naturalmente, do direito penal, passa no período medieval pela existência de realidades institucionais que actuavam entre os indivíduos – em estado de insegurança – e a Coroa, ainda muito frágil. Pensamos nomeadamente na família e no município. A expres-são política do direito foraleiro é evidentíssima quando constatamos a clara prevalência de preceitos de direito público (v.g. direito administrativo e di-reito penal).

Segundo Carbasse, a responsabilidade colectiva pelos delitos clandes-tinos funda-se no dever de as comunidades garantirem a segurança nos seus

120 Sobre a evolução da “responsabilidade colectiva” vd. Hans von Henting, La Pena, Volume I. Formas primitivas y conexiones histórico-culturales, pp. 15-33; e Jean Imbert e Georges Levasseur, Le pouvoir, les juges et les bourreaux, pp. 218-223. Segundo Laingui, o interdito local do direito canónico – que conhece o seu apogeu durante o século XIII com a hierocracia e desapareceu somente com o código de 1983 - apresenta maior proximidade com a responsabilidade colectiva. Trata-se de uma pena ou censura que priva os cristãos de certos bens espirituais como os sacramentos, os ofícios divinos ou a sepultura eclesiástica. Pode atingir uma pessoa moral ou um grupo especial como as pessoas que fazem parte de uma paróquia ou um lugar como uma diocese ou um reino. Vd. “Sur quelques sujets non-humains des anciens droits pénaux”, p. 15: “On a pu écrire que les XIIe et XIIIe siècles furent ‘l’âge d’or, ou plutôt l’âge de fer, de l’interdit local général’”.

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territórios. Tais delitos seriam portanto o resultado de uma falha de vigilân-cia121. Outras explicações podem ser encontradas: a ideia de culpa solidária pelo pecado de deicídio; os antecedentes medievais relativos à responsabili-dade penal solidária dos membros das comunidades municipais ou familia-res; o receio de contágio; presunções de delinquência; ou a visão antropoló-gica das comunidades.

A doutrina pronunciou-se sobre o problema geral da responsabilidade penal de uma civitas ou universitas, oscilando entre a admissbilidade e o con-dicionamento dessa responsabilidade. Nas Instituições, Mello Freire admite a responsabilidade penal colectiva ou das pessoas morais, tal como uma pessoa física122. Os colégios, corporações e cidades podem delinquir pelas pessoas de que se compõem123. Ao mesmo tempo, em nota e portanto com menos desta-que, escreve: o princípio extraído de Ulpiano – o que é publicamente feito pela maior parte recai sobre todos – somente tem lugar nas causas cíveis124. Identifica como causa extrínseca da mitigação da pena o número de réus ou os delitos de uma comunidade125. O remédio não pode ser maior que o próprio mal, igua-lando culpados e inocentes. A medida da pena deve ser tal que o medo atinja a todos e a pena a poucos. Esta observação parece aplicar-se aos casos em que os factos ilícitos são praticados, por exemplo, pelos habitantes de uma cida-de em situações de tumulto, sem que se consiga determinar quem foram os seus exactos autores. De facto, a propósito das penas sem crime, Mello Freire admite que os inocentes sejam punidos pelos delitos de uma comunidade e presos em motins ou sedições, com o fim de se prevenir um perigo126. As quatro disposições que reúne no Ensaio do Código Criminal sobre esta matéria

121 Jean-Marie Carbasse, Histoire du Droit Pénal, p. 286; e “La responsabilité des communautés en cas de “méfaits clandestins” dans les coutumes du midi de la France”, in Diritto comune e diritti locali nella storia dell’Europa, pp. 139 e ss.

122 “Instituições de Direito Criminal Português”, p. 61: “Se uma comunidade comete um facto ilícito por meio daqueles que a representam, deve ser havida e punida como delinquente, visto ser uma pessoa moral e estar sujeita às leis públicas da cidade, tal como uma pessoa física”.

123 Ensaio do Codigo criminal, Provas, Ao Título II, p. 232: “São capazes de delito as cidades e corporações, pelas pessoas, de que se compõem [...]”; Título II, § 8, p. 22: “Os colégios, corporações, e cidades podem delinquir pelas pessoas de que se compõem, e que os representam, e governam; e à universidade se atribui o delito, quando todos os representantes o cometem, ou a maior parte deles”.

124 “Instituições de Direito Criminal Português”, p. 62, em nota.

125 Idem, p. 77, em nota.

126 Idem, p. 76.

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compõem um regime mais preciso e benigno. Admite que uma comunidade inteira possa delinquir. Apesar de entender que a cidade não se julga de-linquente pelo delito de quem governa127. Mas restringe a responsabilidade penal aos cabeças e aos verdadeiros culpados, condicionando a punição do povo inteiro à consulta do rei.

Pereira e Sousa admite também a responsabilidade penal das pessoas mo-rais. Tratando-se de colégios, exige como requisito a aprovação de todos os seus membros e considera expressamente insuficiente a aprovação da maioria128. Caso contrário, entende que apenas podem ser punidos os membros que vo-taram. Pastoret aceita uma presunção de culpabilidade para os crimes que são obra de uma sociedade inteira129. No entanto, afasta a responsabilidade daque-les que guardaram silêncio e mais ainda dos que se opuseram ao delito. Jousse restringe a responsabilidade penal colectiva quando estão em causa penas cor-porais e aflitivas, que deviam – e podiam – ser somente impostas aos principais culpados das rebeliões e revoltas, que expressamente menciona130.

Bentham designa como penas colectivas as que se impõem a uma sociedade ou corporação, quando se não conhecem os autores do crime, mas se presume que tenha sido cometido por alguns dos seus membros131. A responsabilidade colectiva aparece pois fundada na impossibilidade de conhecer os agentes do crime e na presunção de que se encontram entre os membros da corporação. Em regra, não são nem necessárias nem convenientes – os réus sempre se conhecem: o delito é tão notório como nos delitos ordinários. Identifica duas condições para o estabelecimento desta forma de punir, que se encontra em todos os Códigos de diferentes nações. Entende ser necessário provar: que não é possível cas-tigar o criminoso sem envolver o inocente; e ainda que a pena do inocente acrescentada à do culpado constitui um mal menor do que deixar o crime impunido. Apesar da relutância de princípio em relação a estas penas, dá o seu beneplácito à punição colectiva da cidade de Edimburgo, na sequência do levantamento de 1736: a dita multa era útil porque se encaminhava a imprimir a ideia saudável de que os particulares são interessados em prevenir os movimentos sediciosos da populaça. E remata: são casos, em que não se podendo provar que houve

127 Ensaio do Codigo criminal, Provas, Ao Título IV, p. 245; e Título IV, § § 30, 31 e 33, pp. 31 e 32.

128 Joaquim José Caetano Pereira e Sousa, Classes dos Crimes, nota 9 ao § 9, p. 6.

129 Des Loix Pénales, Tomo II, p. 103.

130 Jousse,Traité de la justice criminelle de France, Tomo Primeiro, p. 575.

131 Bentham, Theoria das Penas Legaes, pp. 299 e 300.

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conluio, há toda a razão de supor que se ajustaram para salvar a honra da corporação fazendo escapar os réus à perseguição da lei.

Os casos de responsabilidade colectiva têm quase invariavelmente uma coloração política. Pode tratar-se da expulsão de judeus e de ciganos. Ou da responsabilização de localidades inteiras pelos tumultos que nela ocorre-ram. Como castigo do motim ocorrido, a Carta Régia de 10 de Abril de 1757 ordenou que a despesa da tropa da guarnição do Porto se fizesse por conta da cidade132. Os jesuítas, declarados rebeldes, traidores, adversários e agressores da Pessoa do Soberano e dos seus Estados foram desnaturalizados, proscritos e ex-terminados, sendo expulsos do Reino e seus domínios. Ficaram exceptuados os particulares que não haviam ainda professado e não tinham culpa pessoal provada. Esta Lei de 3 Setembro 1759, que desnaturalizou os jesuítas, apoia-se nos Direitos comuns da Guerra e da Represália, universalmente observados na praxe de todas as Nações civilizadas, segundo os quais todos os membros da sobredita Sociedade eram sujeitos aos mesmos procedimentos enquanto partes daquele Corpo infecto e corrupto133.

A motivação política e, em particular, o desejo de desdramatizar os eventos, assim como o receio do alastramento das perturbações, podem con-duzir a um procedimento antagónico. Deste modo, a Provisão de 19 de De-zembro de 1785134 determina que em, casos de motim, se não devem prender todos os que se acharam nele mas somente os principais não excedendo o número de dois...

§ 3. a PrOPOrciOnalidade

A) Os significados da proporcionalidade

A igualdade ou proporcionalidade135 entre o delito e a pena constitui a alma e o principal nervo de toda a boa legislação criminal136. Por isso, a verda-

132 Collecção da Legislação Portugueza desde a Ultima Compilação das Ordenações, redegida pelo Desembargador Antonio Delgado da Silva. Legislação de 1750 a 1762, pp. 500 e 501.

133 Collecção da Legislação Antiga e Moderna do Reino de Portugal. Parte II, Tom. IV de LL., Alvv., etc. (Que compreende o Reinado do Senhor D. José. desde o anno de 1757 até o de 1761 inclusivamente).

134 Collecção da Legislação Portugueza desde a Ultima Compilação das Ordenações, redegida pelo Desembargador Antonio Delgado da Silva. Legislação de 1775 a 1790, pp. 390 e 391.

135 Artigo 11º da Constituição portuguesa de 1822: “Toda a pena deve ser proporcionada ao delito”.

136 Voltaire, Prix de la justice et de l’humanité, pp. 9 e 10. Lardizabal y Uribe, Discurso sobre las penas, pp. 41 e 42. Pastoret, Des Loix Pénales, Tomo II, p. 23.

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deira medida e quantidade das penas é a medida e quantidade dos delitos137. A pena deve ser proporcionada ao delito, ensina Mello Freire138. Segundo Pe-reira e Sousa, é do interesse da sociedade que a pena seja proporcionada tanto quanto possível ao crime139. Vouglans entende que a pena justa se encontra quando se guarda a justa proporção entre a pena e o crime140. Frederico II141, para quem o bom príncipe andará melhor em se fazer amar do que temer142, en-tende que a proporcionalidade entre crime e castigo constitui uma exigência da equidade natural143. Quando escreve o seu auto-designado opúsculo com as observações sobre as leis criminais de França, Boucher D’Argis autonomiza duas preocupações temáticas, quanto à forma e quanto ao fundo: os abusos do processo penal e a frequente desproporção entre as penas e os delitos144.

Apesar de constituir um dos tópicos mais repetidos do discurso se-tecentista, a exigência da proporcionalidade das penas está muito longe de constituir uma novidade do reformismo. Por um lado, a proporciona-

137 Lardizabal y Uribe, Discurso sobre las penas, p. 90. O Autor faz um recenseamento das várias teses sobre a medida dos delitos. Consideraram-se como medida dos delitos: as próprias penas (pp. 91-93); a intenção e malícia do agente (pp. 93 e 94); a dignidade do ofendido (p.94); a gravidade do pecado (pp. 94 e 95); o dano provocado à sociedade (pp. 99-103). Por fim, apresenta como critérios da medida dos delitos o dano causado à ordem pública e aos particulares e um conjunto de circunstâncias: a vontade (“deliberación”) e conhecimento (“conocimiento”) do delinquente, ou seja, o grau de liberdade de acordo com os ingredientes aristotélicos; o mau exemplo; os impulsos ou causas que estimulam a delinquir; o tempo; o lugar; a reincidência; o modo e os instrumentos com que se cometeu o delito; a pessoa do delinquente e do ofendido (p.103).

138 Pascoal José de Mello Freire, “Instituições de Direito Criminal”, p. 64, em nota.

139 Joaquim José Caetano Pereira e Sousa, Classes dos Crimes, § 19, pp. 19 e 20.

140 Muyart de Vouglans, Les lois criminelles de France, Livro Segundo, p. 35.

141 Sobre a política de Frederico II para o direito vd. Adriano Gavanna, Storia del diritto moderno in Europa. Le fonti e il pensiero giuridico, Volume II, pp. 229-235.

142 Frederico da Prússia, O Anti-Maquiavel, p. 94: “O depósito mais precioso que é confiado aos príncipes é a vida dos seus súbditos. O cargo confere-lhes o poder de condenar à morte ou de perdoar os culpados; são árbitros supremos da justiça. [...] Os bons príncipes olham este poder ilimitado sobre a vida dos súbditos como o peso mais oneroso da sua coroa”.

143 “Dissertation sur les raisons d’établir ou d’abroger les Loix” in Oeuvres Primitives de Fréderic II, Roi de Prusse ou Collection des Ouvrages qu’il publia pendant son règne, Tomo IV, p. 334: “L’équité naturelle veut qu’il y ait une proportion entre le crime et le châtiment”.

144 Observations sur les Loix Criminelles de France, p. 2. Os defeitos do direito substantivo são analisados a partir da p. 73.

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lidade corresponde a uma nova designação do velho arbítrio ou do juízo de ponderação da pena. A imposição da proporcionalidade constitui si-multaneamente uma limitação do arbítrio e um espaço de actuação desse arbítrio (ou do arbítrio consentido). Com efeito, é o juiz que procede à determinação da pena proporcional – como as penas devem ser à proporção dos delitos e aumentar-se ou diminuir-se, segundo pedir a segurança pública145... Esta preocupação conhece uma deslocação progressiva e parcial quanto ao seu agente. A busca da pena justa ou proporcionada deixa cada vez mais de ser uma incumbência do juiz para ser sobretudo uma tarefa do legislador. A diminuição da amplitude dos poderes de determinação judicial da pena é directamente proporcional à preocupação com a medida (legal) da pena. Por outro lado, é recorrente na legislação anterior ao reformismo o tópi-co segundo o qual a pena deve igualar ou proporcionar-se ao delito. Como observou Mario Cattaneo, enquanto medida das punições, a exigência de penas proporcionais ajusta-se quer à concepção retributiva quer à concep-ção preventiva146.

A ideia de proporcionalidade irradia no discurso de setecentos em vários pontos da teoria geral da infracção. Em primeiro lugar, o princípio da proporcionalidade une-se à emergente ideia de sistema e de código (em sentido material). Na medida em que a proporcionalidade estabelece uma conexão lógica entre a pena e o crime, entre as penas e os crimes, entre todos os crimes e todas as penas, vem a constituir uma das regras que une coe-rentemente as normas legais, formando um desejado sistema, um sistema de crimes e penas. Este é claramente o sentido do elaborado conjunto de regras engendrado por Filangieri para determinar a justa proporção entre os delitos e as penas147. Este é também um dos requisitos de funcionamento do sistema

145 Pascoal José de Mello Freire, O Novo Codigo do Direito Publico de Portugal..., Título III, § 25, p. 12.

146 Il problema filosofico della pena, p. 43: “[...] l’idea della proporzione è conciliabile con una concezione della funzione generale della pena diversa da quella retributiva; ciò è dimonstrato dall’esempio degli illuministi, i quali – ricordiamo Beccaria e Voltaire – sostenevano il principio della proporzione per un motivo umanitario, allo scopo cioè di combattere le pene eccessive e crudeli che, nella loro epoca, venivano comminate per delitti di minima gravità”.

147 As penas são escolhidas para os vários delitos em função da respectiva “qualidade” e “espécie”. A “violação do pacto” - ou a perturbação que produz na ordem social - constitui a “qualidade” do delito. O “grau da culpa ou do dolo” forma a “gravidade”. A pena deve ser proporcionada à “qualidade” e à “gravidade”. Para cada crime são definidos seis graus

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de arbítrio limitado ou restrito, defendido por Ribeiro dos Santos148. Blackstone entende que uma tal ideia – demasiado romântica – não se pode realizar mas, ainda assim, o legislador deve ponderar o diferente grau de gravidade das ofensas, de forma a estabelecer a respectiva punição149.

Em segundo lugar, a proporcionalidade pode também identificar-se com a ideia de necessidade ou a com razão de ser da incriminação. Com efeito, numa acepção de maior amplitude, o reformismo considera as penas do antigo regime desproporcionadas por duas razões. Por um lado, porque se puniam desnecessariamente certas condutas. Por outro, porque se puniam excessivamente as condutas incriminadas. A desproporcionalidade das penas tinha portanto duas manifestações: a incriminação desnecessária e o quantum da punição. Em relação à primeira manifestação de desproporcionalidade, entendia-se que uma pena não necessária constituia uma manifestação de tirania150. Quanto à segunda, o tópico da necessidade é associado ao da mo-deração das penas. A lei penal não deve fazer mal por mal mas só tanto mal quanto é absolutamente necessário para evitarmos o que se nos faz a nós mesmos. Punir os criminosos com o menor mal possível, quantum satis, é a regra capital das penas151.

Em terceiro lugar, a proporcionalidade entende-se como uma exigência dos fins das penas. A medida legal da pena é determinada pela sua finalidade – o quantum necessário para atingir o fim a que se propõe. A humanidade ou a indulgência do legislador e a certeza das punições favorecem a prevenção dos crimes assim como o melhoramento dos hábitos do povo152. A pena legal precisa tão-só cominar a severidade necessária para desviar o delinquente do

de punição: três correspondentes aos graus da culpa e três correspondentes aos graus do dolo. Vd. Oeuvres de G. Filangieri, Tomo II, pp. 77-80º; e pp. 80-88.

148 “Discurso sobre a Pena de Morte e Reflexões sobre alguns crimes”, p. 129. Sobre os Diversos graus de culpa ou de dolo nos delitos relativamente às circunstâncias e os Diversos graus de penas vd. pp. 130-132.

149 William Blackstone, Commentaries on the Laws of England, Livro IV, p. 18.

150 Lardizabal y Uribe, Discurso sobre las penas, pp. 59 e 60.

151 António Ribeiro dos Santos, “Discurso sobre a Pena de Morte e Reflexões sobre alguns crimes”, p. 104 e p. 120.

152 William Blackstone, Commentaries on the Laws of England, Livro IV, p. 16.

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crime153. A pena proporciona-se com os respectivos fins154. Defender a con-tenção das penas dos crimes menos graves significa então conter também o criminoso, para que não lhe seja indiferente praticar os mais graves155. A hierarquização da gravidade dos crimes e o correspondente escalonamento da gravidade das punições é colocada ao serviço da prevenção dos crimes156. O efeito preventivo das penas depende do emprego moderado da força por parte do legislador.

Forçoso se torna no entanto concluir, como contraponto a este ditame ideal de bondade do poder que busca a eficácia, que se o critério a sobrepor--se for o critério dos fins das penas, a escolha das punições pode então tornar--se uma ponderação estritamente política de plasticidade tão absoluta quanto o próprio poder157.

Em quarto lugar, a proporcionalidade opera directamente na determi-nação da exacta medida da pena. Este é o seu domínio de actuação por exce-lência e aquele em que a conexão é aliás mais óbvia e directa. A pena justa e eficaz, a pena que cumpre praticamente todos os desideratos que a doutrina e o poder podem reclamar é a pena proporcional. A medida certa da pena é a proporcionalidade.

A regra da proporcionalidade permite então concretizações variadas consoante o tipo de penas. Assim, quando é aplicada às penas pecuniárias, define-se o entendimento segundo o qual devem ser proporcionadas ao pa-trimónio do delinquente. Ora, a escolha das penas pela lei vive de duas con-

153 Instructions adressées par Sa Majesté L’Impératrice de toutes les Russies, Article X, 202, p. 102: “Pour que la punition soit juste, il ne faut pas la rendre plus sévere qu’il n’est nécessaire pour détourner les hommes du crime”.

154 Para um período mais tardio, mas numa linha não inovadora, Francisco Coelho de Souza e S. Paio, Prelecções de Direito Patrio, p.p. 159, nota c): “[...] a pena se deve regular pelo seu fim, e proporcionar-se não com a moralidade da acção em si mesma, mas com relação ao fim da Sociedade”.

155 Montesquieu, O Espírito das Leis, pp. 100 e 101: “É essencial que as penas se harmonizem, porque é essencial que se evite mais um grande crime do que um crime menor, aquilo que agride mais a sociedade do que aquilo que a fere menos.”.

156 Bentham, Theoria das Penas Legaes, pp. 30 e 31.

157 Francisco Coelho de Souza e S. Paio, Prelecções de Direito Patrio, p. 160: “A qualidade das penas não se pode determinar por uma regra invariável; elas se devem regular pelos Imperantes de modo, que se preencham os fins, que as legitimam; elas se podem estender até à pena de morte”.

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siderações essenciais. Em primeiro lugar, a gravidade objectiva que a pena implica. O sofrimento. E, em consequência, a sua justiça ou injustiça. Em segundo lugar, o legislador não podia esquecer um elemento psicológico, subjectivo, que faz variar os efeitos dos castigos segundo as pessoas, indivi-dualmente consideradas ou como membros de um grupo. Frequentemente, a doutrina constata que os efeitos da pena variam em função da sociedade como um todo. Ou ainda em função da época.

Por isso, Pereira e Sousa esclarece deste modo o sentido da regra da proporcionalidade das penas: esta proporção deve ser não aritmética mas moral-mente exacta entre o mal e a sua reparação, entre o crime e a sua pena158. Segundo Freire de Mello, a força das penas está na opinião do vulgo159. Ao dedicar o Dis-curso sobre Delitos e Penas precisamente à sua proporção nos primeiros séculos da nossa monarquia160, chama a atenção para o facto de a proporção exigida entre o crime e a pena ser relativa.

A proporção entre o delito e a pena ou a imposição de penas proporcionais pela lei implica uma dupla ponderação. Por um lado, é necessário um prévio exercício de ponderação do crime em si mesmo. Um juízo não arbitrário. Nes-te sentido, a pena deve ser proporcional ao crime ou à gravidade do crime. À gravidade objectiva ou absoluta inerente à natureza de cada delito161. Por ou-tro lado, o legislador deve combinar essa natureza objectiva dos delitos e das penas com a sua natureza relativa, de acordo com o estado civil, moral, político, económico e militar da nação, nas suas diferentes épocas162. A gravidade do crime

158 Joaquim José Caetano Pereira e Sousa, Classes dos Crimes, § 20, p. 21.

159 Discurso sobre Delictos e Penas, p. 44.

160 Este trabalho, cuja originalidade o próprio Autor assinala na Introdução (“[...] nunca foi tratado entre nós [...] ”), constitui um estudo sereno, ao contrário do rasto que a sua personalidade deixou. Não deixa de dar mostras do seu pessimismo quanto à natureza humana – “[...] o homem, o pior e o mais estúpido de todos os animais [...]” (Discurso sobre Delictos e Penas..., p.p. 6). Ou de zurzir a Academia das Ciências (vd. nota da p. 8, onde se ressente das críticas da Academia à edição conimbricense do compêndio de História, realizada segundo a edição de 1800, “[...] em que emendei muitos erros, tendo sempre contra mim nas ditas emendas a pressuposta Academia Real das Sciencias de Lisboa [...]”).

161 Idem, p.p. 9: “As penas não são arbitrárias, elas são aderentes e intrínsecas a cada delito, e devem ser tiradas da natureza particular de cada crime, e para isso, e para se poderem impor com proporção, é necessário estudar a natureza de cada delito, combinando-o com a condição, fraqueza, e paixões dos homens.”.

162 Idem, p. 3: “Para combinar a proporção entre o delito e a pena, não basta recorrer à natureza absoluta do mesmo delito, mas é também necessário recorrer à natureza relativa do delito

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não é portanto representada globalmente por um valor absoluto. O juízo de gravidade do crime varia com as circunstâncias de cada época. A avaliação do crime e a graduação proporcional da pena não podem portanto ser per-pétuas. A observância da regra de proporcionalidade significa adaptação das leis ao tempo. Significa também que a legislação é naturamente perecível163.

Em conclusão, se a exigência da proporcionalidade se apresenta no dis-curso de Setecentos como óbvia e pacífica, já a exacta determinação da pena legal proporcional se configura como uma decisão política mais fina e com-plexa. O problema da medida das penas é simultaneamente um problema de justiça e de eficácia. O pensamento setecentista ensaia uma geometria política ou uma aritmética moral164 que procura o ponto ideal de rigor e de moderação das penas. O rigor necessário e apenas o rigor necessário. O excessivo rigor transforma-se em injustiça e tirania. A excessiva brandura gera e incentiva a criminalidade165.

Lamentando o facto de Montesquieu e de Beccaria terem recomendado mais do que esclarecido a exigência de proporcionalidade entre os delitos e as penas, Bentham enuncia, com espírito matemático, cinco regras mais preci-sas166: o mal da pena deve ultrapassar a vantagem pretendida com o delito; quanto menos certa é a pena, mais temível se deve apresentar; quando con-correm dois delitos, a pena do menos grave deve ser também mais leve, de forma a dissuadir o criminoso de se lançar na perpetração do mais grave167; quanto maior for a gravidade do crime, mais se pode arriscar uma pena seve-ra, a fim de o prevenir; a mesma pena não deve ser infligida a todos os delin-quentes, sem excepção e sem antes se ponderarem as circunstâncias.

e da pena, segundo o estado civil, moral, político, económico, e militar da nação, nas suas diferentes épocas [...]”.

163 Idem, p. 4: “Os defeitos das nossas leis criminais não se devem atribuir aos legisladores, mas sómente aos tempos, em que foram feitas.”. Freire de Mello não tange a autoridade das leis, nem do legislador. Socorre-se aliás do Decreto de 31 de Março de 1778, em que D. Maria ordena a reforma de toda a legislação nacional, para defender a ideia de que as nossas leis criminais se encontravam “impraticáveis”.

164 Bentham, Traités de Législation Civile et Pénale, Tomo II, p. 385.

165 Lardizabal y Uribe, Discurso sobre las penas, pp. 89 e 90.

166 Bentham, Traités de Législation Civile et Pénale, Tomo II, pp. 385-389.

167 Este é um argumento que repetidamente era esgrimido contra a facilidade com que o legislador lançava mão da pena capital. Se o ladrão de estrada é punido com a morte, o que poderia levá-lo a deixar de matar as suas vítimas e as testemunhas que o podiam condenar?

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Nas suas variadas possibilidades de realização e de entendimentos, a proporcionalidade enquanto directriz para a medida das penas é delimita-da por duas exigências: a justiça ou humanidade e a utilidade ou eficácia. Se bem que a proporcionalidade signifique em potência que a pena pode igualar-se ao crime, de acordo com a expressão frequentemente utilizada, não se defende a igualização ou parificação entre o mal do crime e o mal da pena. A pena igual ao crime não pode ser usada pelo legislador quando se torna cruel, desumana, injusta. Nestes casos, a proporção cessa quando conduz a penas tão graves como os próprios crimes. A proporcionalidade funciona no reformismo setecentista como forma de limitar a atrocidade das penas. Ver-dadeiramente, o comando reformista é o da brandura das penas. Se a pena mais branda ou desproporcionadamente menos grave que o crime é eficaz, prefere-se a pena mais moderada, ainda que desproporcionada. De forma inteiramente esclarecedora, Pereira e Sousa não hesita em afirmar que se a Justiça pede que as leis sejam proporcionadas aos crimes, pede a humanidade que elas não sejam atrozes e, entre as que o não são, deve preferir-se sempre as mais brandas, quando por elas se consegue o mesmo fim168.

Duas conclusões se impõem. Em primeiro lugar, a doutrina engendra para o legislador, no que toca à medida das penas, um comando geral de moderação. A pena moderada é justa e eficaz. Em segundo lugar, a justiça da pena é feita de eficácia. A justiça é subordinada à eficácia. As penas devem ser o menos rigorosas que seja possível atendendo às circunstâncias. Se excedem o rigor necessário, tornam-se numa manifestação de poder tirânico169.

A moderação das penas é também associada ao problema da irremissi-bilidade versus impunidade a propósito dos fins das penas. Deixa de se ver na crueldade das punições mas antes na sua irremissibilidade o freio que verda-deiramente contém os delitos. Pelo contrário, considera-se que a impunidade – e não a moderação – é geradora de criminalidade. A moderação das penas passa a ser olhada como sinal de civilização dos povos e, reciprocamente, a severidade ou crueldade permite remeter certos direitos à categoria de in-civilizados170. Beccaria detém-se na relacionação entre a medida das penas

168 Joaquim José Caetano Pereira e Sousa, Classes dos Crimes, nota 31 ao § 19, p. 21. E continua: “As penas, nota Mr. Pastoret [...] são brandas na Índia, e aí os crimes são raros. No Japão ao contrário os suplícios são horríveis, e os japoneses são sempre ferozes”.

169 Lardizabal y Uribe, Discurso sobre las penas, pp. 33 e 34; e pp. 59 e 60.

170 Pastoret, Des Loix Pénales, Tomo II, pp. 74-80.

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e o estado da nação171. Considera aceitáveis penas mais duras para os povos próximos do estado selvagem. Essa dureza deve decrescer quando os ânimos se acalmam e cresce a sensibilidade. Pastoret opõe os povos ou nações selvagens aos povos civilizados, esclarecidos ou iluminados. Quanto menos esclarecidos são os povos maior seria a tentação para serem sanguinários. Ao invés, estabelecer a proporção entre os crimes e as penas, calcular injustiças, são operações da-queles que avançam em direcção às “luzes” e à razão. Civilização e progresso significam moderação das penas. Até hoje.

B) A gravidade do delito e as regras da proporcionalidade

A ideia segundo a qual a pena deve ser proporcional à gravidade do delito apresenta-se como pacífica172. Quando distingue delitos públicos e de-litos particulares, Lopes Ferreira separa-os também pela gravidade e, conse-quentemente, pela punição173. Segundo Mello Freire, a pena é agravada ou exarcebada consoante a gravidade do delito, que é a sua verdadeira medida174. Na expressão do Dicionário Jurídico de Pereira e Sousa, ao delito deve correspon-der o castigo. Ou ainda: os delitos mais agravantes devem ser mais asperamente pu-nidos175. Pastoret eleva a axioma a consideração da gravidade do delito como critério da medida legal da pena176. Analisando a relação – fortuita – da pena com a qualidade do crime, esclarece que a qualidade corresponde à sua gra-vidade e permite por sua vez distinguir os crimes leves dos crimes atrozes177.

171 Beccaria, Dos delitos e das penas, § XLVII, p. 162: “[...] a grandeza das penas deve estar relacionada com o estado da própria nação”.

172 E amparada pela tradição. Por exemplo, para Séneca, a pena – que, de acordo com a imagem platónica, constitui um remédio - deve ser adaptada à gravidade dos crimes. Desta forma, a pena capital deve reservar-se aos criminosos mais endurecidos (De ira, I, 16, 2-3). Vd. Michel Porret, Le crime et ses circonstances, pp. 342-352.

173 Pratica Criminal, p. 155: nos delitos particulares “[...] só se atende à ofensa da parte, conforme a medida da culpa”.

174 Pascoal José de Mello Freire, “Instituições de Direito Criminal Português”, p. 76; O Novo Codigo do Direito Publico de Portugal, Título III, § 25, p. 12.

175 Vd. a voz delito in Esboço de hum Diccionario Juridico, Tomo I; e a legislação aí referenciada.

176 Pastoret, Des Loix Pénales, Tomo I, p. 21: “La peine doit avoir pour base la gravité du délit, et non pas l’étendue plus ou moins grande des preuves”. Este axioma estava associado às debilidades e à crítica da prova. Daí outro axioma: “La preuve n’existe pas tant qu’elle n’est pas complète.” (ibidem).

177 Idem, Tomo II, pp. 92-96.

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Contudo, a ideia de proporção não se basta a si mesma. A doutrina eleva-se à definição das regras da justa ou recta proporção178. Ao definir os pre-ceitos da proporcionalidade ou da medida legal da pena, os penalistas en-contram um ponto central da discórdia entre conservadores e progressistas. E, então, ou se dividem ou engendram as inevitáveis soluções eclécticas.

A pena proporcional ao crime é a pena cuja gravidade se iguala à gravi-dade do crime. Logo, a substancialidade do conceito de proporção encontra--se no juízo que determina a gravidade do crime. A ecumenicidade que apa-rentava a ideia de pena proporcional ou a exigência segundo a qual o crime mais grave deve ser mais severamente punido dissolve-se. Para alguns, o tema da gravidade do crime não permite sequer diálogo. A regra da pro-porcionalidade ou é a intenção ou é o dano. A divergência que se levanta quanto ao entendimento da proporcionalidade e ao critério de determinação da gravidade do crime toca o próprio conceito de crime. Ou bem que o crime é dano ou bem que o crime é malícia. Os critérios de aferição da gravidade do delito enunciados no século XVIII são de facto essencialmente dois: a culpa ou malícia do pecado inerente a todo o delito – este critério moral é adoptado pelos teólogos e filósofos-juristas – ou o dano social que provoca179. Para os conservadores, a regra da proporcionalidade reside na moralidade da acção, na intenção ou malícia que lhe está ínsita. Quanto maior a malícia, mais grave o crime e, em consequência, mais grave a pena. Para o reformismo progressis-ta, a medida da pena está no dano causado pelo crime. Aqui nos encontramos com Montesquieu, Beccaria, Brissot de Warville...

A regra que manda punir mais severamente os crimes mais graves pa-rece óbvia e elementar e se é assinalada pelos reformistas com tanto ênfase a razão reside no facto de integrar o seu discurso crítico. Entendem que o di-reito penal do antigo regime exasperava desmesuradamente as penas. Como resposta à sua própria ineficácia.

A gravidade dos crimes pode ser analisada em duas perspectivas. Em primeiro lugar, comparam-se crimes de natureza diversa (v.g. o homicídio e o furto). A proporcionalidade impõe então o recurso a penas de natureza tam-bém diversa. Neste sentido, encontra-se uma larga crítica do recurso à pena

178 Francisco Freire de Mello, Discurso sobre Delictos e Penas, p. 9: “Para se estabelecer uma justa proporção, são necessárias regras certas, sem as quais se não pode achar uma recta proporção”.

179 Tomás y Valiente, El Derecho penal de la Monarquía Absoluta, p. 358. Paz Alonso e António M. Hespanha, “Les peines dans les pays ibériques (XVIIe-XIXe siècles)”, p. 216.

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de morte para punir o furto, por exemplo. Não há qualquer proporção entre o furto e a pena capital, assinala-se. Mas é igualmente necessário comparar a gravidade diferenciada que é possível encontrar dentro do mesmo tipo legal de crime (formas qualificadas). A proporcionalidade impõe nesses casos que o legislador se mova dentro das penas do mesmo género e da mesma natureza180.

As regras da proporcionalidade constituem um limite à legítima ac-tuação do ius puniendi, uma limitação portanto do poder das leis e do poder político – as leis positivas nunca podem sufocar as imprescritíveis leis da natureza, nem mudar a natureza dos delitos181. Recorrer a certas penas para certos crimes deixa de ser um procedimento normal e inquestionável do poder. Freire de Mello exemplifica com o crime de moeda falsa, fazendo o circuito habitual da crítica às leis romanas e um elogio às leis bárbaras182. Mas critica sobretudo a tendência para equiparar alguns crimes à lesa-majestade. Neste caso, mais não haveria do que intenção de furtar e não intenção de ofender a soberania. Semelhante equiparação não está na disponibilidade do legislador ou no po-der legal183.

a) A moralidade da acção

A moralidade da acção corresponde à ideia de comportamento livre. O conceito de liberdade reúne os dois ingredientes aristotélicos: vontade e co-nhecimento184. Antes de se erigir como critério de determinação ou da medi-da da pena, a culpa constitui o pressuposto da punição. Verdadeiramente, não há pena sem culpa. Tratando do castigo dos delitos, Lopes Ferreira lembra que os juízes não podem impor pena onde não há culpa, pois é cousa cruel e indigna de homens de letras castigar ao inocente185. Quanto maior for o grau de

180 Francisco Freire de Mello, Discurso sobre Delictos e Penas, p. 51.

181 Idem, p. 52.

182 Idem, p. 51: “As leis dos Visigodos não são tão bárbaras como vulgarmente se diz, e talvez sejam em parte melhores e mais sábias”.

183 Idem, p. 52: “Os réus de moeda falsa não têm outra tenção mais do que furtar, e somente são aplicáveis as penas do furto. O seu fim não é ofender a Soberania, nem usurpar direitos reais. [...] As leis têm feito crime de lesa Majestade o que não é, e que não está no poder legal”.

184 Lardizabal y Uribe, Discurso sobre las penas, pp. 99 e 100: “[...] la moralidad de las acciones humanas [...] para que éstas puedan imputarse a los que las hacen, debe atenderse principalmente al conocimiento y deliberación con que se ejecutan”.

185 Manuel Lopes Ferreira, Pratica Criminal, Tratado II, p. 163.

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liberdade ínsito na acção maior será a gravidade do delito e mais rigorosa a punição186.

Este critério permite diferenciar a medida do delito e, em consequên-cia, a medida da pena em relação aos delitos praticados com culpa ou com dolo, com o ânimo perturbado pelo ímpeto e veemência das paixões ou com sereni-dade e pleno conhecimento187. Para Vouglans, a justa proporção entre o crime e o castigo ou a determinação da gravidade do delito configura-se como um juízo que soma dois elementos, a natureza do crime, ligada aos vários graus de malícia, e as circunstâncias188. A natureza e a gravidade do crime reconduzem--se portanto essencialmente à malícia ou aos graus da malícia, não ao dano189. A intensidade ou o grau de malícia como pedra de toque da medida de gra-vidade do crime e portanto da pena permanecerá como apanágio dos mais conservadores. De acordo com a regra definida por Tomás António Gonzaga, as acções humanas se devem imputar mais e menos, conforme a maldade delas e o ânimo do seu agente190. Segundo Francisco Coelho de Souza e S. Paio, a pena deve ser ao menos tão grande como a moralidade da acção que se castiga191. Desta forma, evitar-se-iam os delitos porque o delinquente precisa de um motivo maior ou igual para não se tornar apetecível a acção contrária. A considera-ção pelos reformistas do dano como critério substitutivo – e único – condu-zirá à mitigação desta tese mais conservadora através de posições eclécticas, que lhe garantiram uma sobrevivência ajustada aos tempos. Aliás, como vi-

186 Lardizabal y Uribe, Discurso sobre las penas, pp. 103 e 104.

187 Ibidem.

188 Les lois criminelles de France, Livro Segundo, p. 35: “[...] ce crime peut devenir lui-même plus ou moins grave, suivant sa nature & les différentes circonstances dont il est accompagné [...] c’est par la nature & les circonstances du crime, que doit se déterminer la juste application de sa peine”.

189 Ibidem: “[...] les caracteres particuliers qui constituent leur nature, ou les différens degrés de malice qui les distinguent entr’eux”.

190 Tratado de Direito Natural, p. 60: “A última regra é que as acções humanas se devem imputar mais e menos, conforme a maldade delas e o ânimo do seu agente, pois é certo que podendo umas acções ser piores que outras, já porque se revestem de mais circunstâncias más, já porque são obradas com maior malícia, não se pode castigar o agente delas com pena igual; pois que esta se deve comensurar e distribuir à proporção do delito”; p. 147: “[...] diminuindo a pena à proporção da maldade que o delinquente mostrou na execução do insulto. [...] perfeita justiça. Esta não consente que se castigue ao réu mais do que pede a malícia da sua acção”. Esta obra foi dedicada a Sebastião José de Carvalho e Melo.

191 Prelecções de Direito Patrio, p. 159, nota c).

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mos, o próprio Vouglans não se limita a ponderar a malícia, atribuindo um papel importante às circuntâncias. A radicalização exclusivista apresenta-se em vários domínios – por exemplo, quanto ao fim das penas – como uma característica do reformismo.

b) O dano

Beccaria considera o dano provocado à sociedade como a única e ver-dadeira medida do delito (e da pena)192. A mesma posição é seguida por Brissot de Warville. Por muito que a acção seja imoral, não provocando dano, não existe para o direito necessidade de a incrimininar e punir193. Neste como noutros temas, o texto de Beccaria torna-se o emblema do reformismo. So-branceiro, declara: alguns pensaram que a gravidade do pecado entrava na medida dos delitos194... Embarca no discurso antitético da época, aparta com veemência os bons e os maus critérios de determinação da medida dos crimes e das pe-nas e recusa o critério da intenção ou da gravidade do pecado como medida do delito (e da pena) – erraram aqueles que acreditaram como verdadeira medida dos delitos a intenção de quem os comete. Sem grande detença argumentativa, explica simplesmente – mas ainda assim – que a gravidade do pecado depende da imperscrutável malícia do coração. Precisamente no Projecto de hum novo Re-gimento para o Santo Officio, Mello Freire recorda o ponto de vista segundo o qual o castigo deve seguir o interesse social, tendo em consideração a natureza, efeitos e consequências dos delitos195. Lardizabal y Uribe critica o exclusivismo

192 Beccaria, Dos delitos e das penas, § VII, p. 75: “[...] a única e verdadeira medida dos delitos é o dano causado à nação”; § VIII, p. 77: “[...] a verdadeira medida dos delitos, ou seja: o dano à sociedade”. Fausto Costa, Delitto e Pena nella Storia della Filosofia, pp. 153 e 154: “La responsabilità penale non deve essere commisurata nè alla intenzione di chi delinche, nè alla graveza del peccato. [...] Único criterio per misurare la responsabilità penale sarà dunque il danno che dal delitto deriva alla società”; Delitto e Pena nella Storia del Pensiero Umano, p. 104: “Unico criterio per misurare la responsabilità penale sara dunque il danno che dal delitto deriva alla società”. José de Faria Costa, Ensaio introdutório à tradução portuguesa da obra de Beccaria, Dos delitos e das penas, p. 10: “O que parece indesmentível – passando para uma actual linguagem dogmática – é, por conseguinte, a afirmação do chamado princípio da ofensividade”.

193 Artigo 10º da Constituição portuguesa de 1822: “Nenhuma lei, e muito menos a penal, será estabelecida sem absoluta necessidade”.

194 Beccaria, Dos delitos e das penas, § VII, pp. 75 e 76.

195 “Projecto de hum novo Regimento para o Santo Officio”, Introducção ao Regimento, p. 164: “O Imperante, a quem só compete o direito da força, e de impor penas [...] deve castigá-los

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beccariano que vê no dano provocado à sociedade a única e verdadeira medi-da do delito (e da pena) e combina com este os critérios da moralidade da acção e das circunstâncias do delito. Assinala dois obstáculos à visão redutora de Beccaria. Por um lado, observa que há dano sem delito. Assim sucede com os danos provocados por forças da natureza196. Por outro lado, um dano idêntico pode corresponder a delitos de gravidade distinta. Por exemplo, no homicí-dio provocado por um furioso ou por outro homem qualquer. Enquanto, nes-te caso, Beccaria, torcendo como pode o seu único critério, afirma que o dano provocado pelo furioso é menor porque o exemplo que dá à sociedade é apenas o exemplo da sua loucura furiosa, Lardizabal toca o nervo do conceito de delito: a moralidade da acção. Deste comentário de Beccaria apenas se pode retirar que a acção constitui um delito menor mas não que não é delito. Logo, Beccaria admite para uma acção que provoca dano idêntico uma diferente avaliação da gravidade. Segundo Pastoret a moderação e a justiça exigem que não se punam igualmente os crimes que produzem danos diferencia-dos197. Na perspectiva do dano, a gravidade do crime pode ser mensurada – embora o rigor absoluto seja impossível198 – pela intensidade com que viola o pacto social. Pela intensidade com que se perturba o interesse e tranquilidade pública. Para Blackstone, o primeiro critério da medida das penas reside no objecto do crime, ou seja, no dano provocado. Quanto maior for a importância desse objecto maior é a necessidade de prevenir o delito e portanto mais seve-ra deve ser a sua punição199.

c) As soluções eclécticas

A formulação dos pressupostos da determinação da pena apresenta-se frequentemente compósita e complexa. Mesmo que entre a pulverização de

mais, ou menos à medida dos interesses sociais, tendo sempre em consideração a particular natureza de semelhantes crimes, e seus efeitos, e consequências, e os desejos da Igreja”.

196 Discurso sobre las penas, pp. 100-102.

197 Des Loix Pénales, Tomo II, p. 24.

198 Francisco Freire de Mello, Discurso sobre Delictos e Penas, p. 11: “Não se pode porém estabelecer entre o delito e a pena uma proporção aritmética em todo o seu rigor e exacção, numerosa e harmónica”.

199 Commentaries on the Laws of England, Livro IV p. 15: “As, first, with regard to the object of it: for the greater and more exalted the object of an injury is, the more care should be taken to prevent that injury, and of course under this aggravation the punishment should be more severe”.

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critérios avulte um deles. Para Filangieri, existem duas medidas dos delitos. Uma distingue a gravidade relativa dos vários delitos. Outra diferencia a gra-vidade do mesmo delito, consoante as circunstâncias que os acompanham. A primeira atende ao dano ou às consequências que o pacto violado provoca na ordem social. A segunda pondera o grau do dolo 200. Este modelo é seguido no essencial por António Ribeiro dos Santos. A qualidade do delito é determi-nada pela obrigação social ou pacto que foi violado; e a gravidade, pelo grau de culpa ou dolo201. Segundo Mello Freire, a pena a infligir deve ser inteiramente proporcionada à quantidade e gravidade do delito e à maldade do delinquente202. Sem dúvida que destaca a maldade do agente. Mas, manifesto adepto de soluções ambíguas quando foge às soluções mais conservadoras, dissocia-a da quan-tidade e da gravidade do delito. Apesar da ambiguidade, para Pascoal José o problema da gravidade do crime prende-se sobretudo ao problema do dolo e também ao problema das circunstâncias. A graduação da medida da pena faz-se atendendo à causa, pessoa, lugar, tempo, qualidade, quantidade e efeito203. Pereira e Sousa conjuga três elementos: o dano, a malícia e as circunstân-cias. E apresenta a posição mais notoriamente ecléctica – a grandeza do crime mede-se pelo dano que dele resulta à sociedade ou aos cidadãos mas com respeito à malícia do criminoso204. O gosto pela sistematização leva-o contudo a uma fina construção em que a cada um desses elementos atribui um papel específico. O dano determina a espécie do crime. A malícia influi na diferenciação, re-lativamente a cada espécie, da respectiva gravidade. A malícia – ou os seus diferentes graus – opera dentro de cada espécie de crime. De facto, a gravi-dade do crime está ínsita no próprio facto ilícito, que em si mesmo encerra objectivamente um determinado dano e, em consequência, uma determinada gravidade. Esse dano permite fixar a qualificação da conduta como crime e a respectiva classificação. A cada categoria de dano corresponde uma espécie de crime. Em momento posterior, e para cada espécie de delito, a moralidade da acção permite operar uma nova e mais precisa determinação da gravidade do delito. Desde os crimes praticados por imprudência aos que são resultado da mais horrível perversidade. Pereira e Sousa menciona ainda expressamente as relações entre o agente e a vítima como critério diferenciador da gravidade

200 Oeuvres de G. Filangieri, Tomo II, p. 77.

201 “Discurso sobre a Pena de Morte e Reflexões sobre alguns crimes”, p. 129. No mesmo sentido, Notas ao Plano do Novo Codigo, p. 177.

202 “Instituições de Direito Criminal”, p. 80.

203 Idem, p. 76.

204 Classes dos Crimes..., nota 32 ao § 20, p. 21; nota 31 ao § 19, p. 20; e nota 32 ao § 20, p. 21.

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do crime. Não se pode dizer contudo que o faça de forma verdadeiramente clara. Quanto mais próxima for a relação entre ambos, maior será a gravidade do delito – segundo houver mais relações entre o criminoso e o ofendido assim será o crime mais ou menos grave. Subjacente parece estar a violação objectiva da lei e das relações sociais que estas protegem. Por outras palavras, o dano social. Mas parece ao mesmo tempo ser incontornável a intensidade da malícia ne-cessária para desrespeitar certas relações, como a que liga pais e filhos. No fundo, dano e malícia unem-se nas circunstâncias do delito.

De forma ainda mais alargada, podem precipitar-se neste domínio to-das as componentes da teoria geral da infracção susceptíveis de interferir na punição. Freire de Mello constitui um bom exemplo. Constatamos aliás uma extrema proximidade com o pensamento de Bentham no que toca ao proble-ma da medida legal da pena, definida pela ideia de proporcionalidade e das suas regras. Ao enunciar as regras da proporção, ou os critérios a considerar para proporcionar a pena ao delito, Freire de Mello elenca: o dano; a força ir-resistível; o mau exemplo; a liberdade do delinquente; a causa pública; o ím-peto; os conhecimentos; e a qualidade da pessoa do delinquente205. Sobressai neste enunciado o dano, sem que isso signifique o esquecimento da intenção, que como vimos preside à aproximação entre o crime de moeda falsa e o fur-to. Com efeito, noutro passo, afirma que o mesmo delito deve ser castigado com diferentes penas, em função das circunstâncias e do maior ou menor grau de liberdade e vontade206.

Para Jousse são duas as causas susceptíveis de modificar a gravida-de dos crimes da mesma espécie: o motivo, o movimento ou o princípio (le mouvement ou principe207) e as respectivas circunstâncias. A primeira causa está ligada à moralidade da acção. Três situações podem catapultar o crime. Por ordem de gravidade: a vontade premeditada (dessein prémedité), a cólera (colere ou emportement) e a imprudência. Ora, a gravidade da premeditação reside no dolo que lhe está inerente. Há crimes que por natureza implicam um intento premeditado – como o envenenamento – enquanto outros podem ser praticados por cólera ou imprudência. O motivo é susceptível de alterar a gravidade do crime. Será menos grave o crime praticado para salvar a honra do que aquele que é praticado por dinheiro. Finalmente, os delitos praticados por acção são tidos como mais graves do que os que resultam de omissão ou

205 Discurso sobre Delictos e Penas, p. 52.

206 Idem, p. 11.

207 Traité de la justice criminelle de France, Primeira Parte, pp. 9 e 10.

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negligência. Contudo, Jousse admite que a importância do dano ou prejuízo provocado pelo delito possa ultrapassar o peso da vontade. Mesmo havendo má vontade (mauvaise volonté), se o prejuízo é leve o crime deixa de ser conside-rado grave. Se, para Blackstone, entre os crimes de natureza idêntica se deve punir mais gravosamente aqueles que mais prejudicam a sociedade, entre os que revelam igual grau de perversidade deve atender-se à frequência e à facilidade com que são praticados208.

d) As circunstâncias

A gravidade ou atrocidade do crime pode decorrer de duas facetas. Ou o crime é atroz em si mesmo. Ou se torna atroz pelas circunstâncias. Duas consequências se seguem: o endurecimento das penas; e uma apreciação da responsabilidade moldada pela excepção. Ao crime atroz aplica-se o princí-pio geral segundo o qual a atrocidade impede que sejam accionadas as causas de irresponsabilidade ou de atenuação da responsabilidade. As consequên-cias da atrocidade dos crimes conjugadas com a amplitude dos poderes arbi-trários dos juízes são de tal forma extensas que não surpreende a necessida-de de a determinado momento se definir exactamente quais eram os crimes atrozes.

Para além do dano e da moralidade da acção (deliberação e conheci-mento), Lardizabal y Uribe assinala como circunstâncias relevantes para a determinação da verdadeira medida e natureza do delito e da punição: o mau exemplo que causa o delito; os impulsos ou causas que estimulam a de-linquir; o tempo; o lugar; a reincidência; o modo e os instrumentos com que se cometeu o delito; a pessoa do delinquente e do ofendido209. O mau exem-plo é tanto maior e mais prejudicial quanto maior é a frequência com que se praticam os delitos. Esta depende por sua vez ou da facilidade e proporção que há para cometê-los ou das causas que pela abundância ou pela veemên-cia incitam à sua prática. Quanto maior for a facilidade para delinquir e em maior número ou mais veementes as causas ou os estímulos que incitam à prática dos delitos, mais se deve agravar as penas, para que o medo sirva de obstáculo à facilidade em delinquir e de contrapeso às causas e ocasiões que podem incitar à sua prática.

208 Commentaries on the Laws of England, Livro IV p. 16.

209 Lardizabal y Uribe, Discurso sobre las penas. pp. 103, 106 e 107.

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Os critérios de determinação da medida dos delitos e das penas não têm igual peso e são portanto susceptíveis de serem eles próprios graduados. O dano causado à sociedade e aos particulares deve ser mais determinante do que as circunstâncias do delito. Este é o critério que põe em destaque a analogia entre o delito e a pena. De outra forma, o legislador pode engendrar uma solução punitiva em que a pena seja maior do que o dano produzido pelo delito. Assim sucederá com facilidade se o legislador se mover pela de-terminação de eliminar os estímulos ou facilidades em delinquir através do medo. A legislação penal dá razão a Lardizabal através de inúmeros exem-plos em que a desproporção das penas é evidente.

No projecto de Mello Freire, as circunstâncias do crime servem tam-bém para distinguir os crimes e graduar a sua punição210. Por exemplo, o lugar; o tempo; a ocasião; o instrumento do crime; e a sua raridade e frequên-cia. Blackstone integra as circunstâncias entre os critérios de determinação da medida das penas211. De forma idêntica, segundo Bentham, quer a determi-nação legal quer a determinação concreta da pena devem contemplar as cir-cunstâncias que se verificam no réu: fortuna, idade, sexo, qualidade da pes-soa212... Pastoret213 estabelece a relação da pena com o local do crime; o tempo; o valor ou a quantidade da coisa que constitui o seu objecto; a riqueza dos povos; a fortuna do acusado; a natureza; a forma como o crime é cometido; os instrumentos empregues para praticar o crime; o número de culpados e o grau de cumplicidade; as circunstâncias do crime; o resultado; as causas ou motivos; a intenção; a inteligência e a instrução do acusado; o sexo; a idade; a situação física; a influência do crime; o escândalo e a publicidade; a pertur-bação da ordem pública; a dificuldade em evitar ou precaver o crime; e a sua multiplicidade. Neste longo elenco, o dano – perturbação da ordem pública – é configurado como a medida natural da punição. Este critério, lembra Pastoret, havia já levado os legisladores a exercerem alguma indulgência em relação a condutas sem dúvida imorais mas que tinham um mero carácter privado e pouco ou nada perturbador da ordem pública. Insiste no entanto no facto de este não poder ser um critério exclusivo na determinação da pena. Dois crimes podem causar idêntica desordem e, resultando um do acaso e outro de premeditação, devem ter punições diferenciadas. O tema da gravidade do de-

210 Pascoal José de Mello Freire, Ensaio do Codigo criminal, Título I, § 8, p. 20.

211 Commentaries on the Laws of England, Livro IV, pp. 15 e 16.

212 Bentham, Theoria das Penas Legaes, p. 33.

213 Pastoret, Des Loix Pénales, Tomo II, pp. 14-207.

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lito acaba, em suma, por atrair todos os aspectos avaliados na determinação da medida da pena.

Lardizabal y Uribe chama a atenção para o específico momento do iter criminis em que o delinquente se deteve. As leis penais devem ser elaboradas de forma a que aquele que se determina a cometer um crime tenha algum interesse em não o consumar. Se a punição da tentativa e da consumação for idêntica, o que levará o agente a deter-se? A não passar de uma atrocidade a outra? A punição deve portanto ser proporcionada aos progressos que se façam na prossecução do delito214.

Em síntese: a lei deve consagrar uma graduação das penas que permita uma adequação proporcional à atrocidade inerente à natureza do delito, às suas circunstâncias e ainda à progressão do iter criminis.

C) O cálculo utilitarista – o jogo das acções humanas

A simples afirmação da proporcionalidade entre o crime e a punição como critério de determinação legal da pena – à semelhança do que fazem Montesquieu e Beccaria – parece a Bentham uma máxima mais de aparato do que de instrução215. Procede deste modo à enunciação das regras de tal propor-ção através de um caminho próprio – a partir da convicção segundo a qual todo o homem se governa nas suas acções por um cálculo. Seja bem ou mal feito. A proporcionalidade é definida por Bentham a partir de um cálculo entre pra-zer e sofrimento. A fixação da pena pelo legislador tem subjacente um cálculo com base na representação psicológica do prazer do crime e do sofrimento da pena por parte do delinquente216. A pena tem que representar um mal ou sofrimento suficientemente forte ou penoso que o leve a dissuadir da prática do crime. Simultaneamente, não pode ser esse mal excessivo. As penas têm um minimum e um maximum217. É a regra da quantidade mínima218. Com efeito, a pena excessiva torna-se contraproducente. Porque insensibiliza o criminoso.

214 Lardizabal y Uribe, Discurso sobre las penas, pp. 44 e 45.

215 Bentham, Theoria das Penas Legaes, Livro Primeiro, p. 26.

216 Idem, p. 20.

217 Idem, p. 26: “As penas têm o seu minimum e o seu maximum. Há razões para que não sejam menores, e há também razões para que não sejam maiores”.

218 Michel Foucault, Surveiller et punir. Naissance de la prison, p. 112: “Règle de la quantité minimale. Un crime est commis parce qu’il procure des avantages. Si on liait, à l’idée d’un désavantage un peu plus grand, il cessarait d’être désirable”.

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Porque acaba por exigir que seja accionada a válvula natural dos excessos da justiça penal antiga, ou seja, o perdão e a comutação. Porque produz o escândalo ou a reprovação da população. Provoca na sociedade e no poder uma comiseração que levará o delinquente a ter a fundada expectativa de não sofrer o castigo. Em relação à pena de morte, assinala o paradoxo. Gerando a esperança da impunidade, a pena mais grave torna-se menos eficaz que uma pena menor219. Bentham exprime este cálculo utilitarista através da regra se-gundo a qual é necessário que o mal da pena seja maior que o interesse que se pode tirar do crime220. De acordo com o mesmo raciocínio, entende que, havendo crimes que o legislador pode presumir não terem sido praticados isoladamente, a punição deve ser bem vigorosa, de forma a contrabalançar o ganho total. Seria o caso da falsificação de medidas e de moeda221.

As Instruções russas enunciam o cálculo da pena em função da van-tagem que se retira do crime como a regra de eficácia que limita ao mesmo tempo o poder222. Este cálculo de utilidade torna-se uma regra de actuação política – toda a severidade que ultrapassa estes limites é inútil e por consequência deve ser olhada como uma tirania. Exige-se portanto mais exactidão do que rigor ou pura brutalidade.

Freire de Mello apela para o cálculo das expectativas do delinquente – medo da pena e desejo de delinquir – a fim de a lei dobrar a inclinação da sua vontade. O medo da pena tem que superar o desejo de delinquir223. A despesa

219 Bentham, Theoria das Penas Legaes, Livro II p. 216: “A pena de morte aplicada a delitos, que não a merecem na opinião pública, longe de prevenir o crime, desafia os criminosos, pela esperança de impunidade, quero dizer, que a pena a mais forte produz um efeito menor do que uma pena inferior.” Neste fragmento, juntam-se outros requistitos da pena: a conformidade à opinião pública e a irremissibilidade. De facto, a esperança da impunidade é assinalada pelos reformistas como um dos efeitos do excesso das penas do antigo regime que produz o resultado paradoxal da sua ineficácia.

220 Idem, Livro Primeiro, p. 26.

221 Com base neste “cálculo conjectural”, formula a segunda regra sobre a medida das penas: “Quando a acção é de natureza, que oferece uma prova concludente de ser um costume inveterado, é necessário, que a pena seja bem vigorosa para exceder não sómente o proveito do delito individual, mas de todos os crimes do mesmo género, que podemos supor terem sido cometidos pelo mesmo réu impunemente” (idem, pp. 28 e 29).

222 Instructions adressées par Sa Majesté L’Impératrice de toutes les Russies, Article X, 197, p. 98: “[...] il suffira que le mal qu’elle cause au criminel, surpasse le bien ou le profit qu’il s’étoit promis de tirer de sa mauvaise action”.

223 Discurso sobre Delictos e Penas, p. 10.

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tem que ser superior ao lucro do crime. O número dos delitos será tanto me-nor quanto menor for o interesse em delinquir – eis para o legislador a arte de prevenir os crimes224.

Para os utilitaristas, a proporcionalidade das penas representa o jogo psicológico225 e contabilístico das acções humanas. Economizar as penas não depende contudo exclusivamente da ordem jurídica. Para o direito do antigo regime ou para o direito dos humanitaristas, a lição da história demonstra que a economia da violência depende da disciplina social. A família, a Igreja, a religião, a moral... preparam a observância voluntária e espontânea das leis. O discurso de Setecentos deposita na educação uma justificada expectativa.

D) A economia, a comensurabilidade e a divisibilidade

A proporcionalidade atrai como características satélites a economia e ainda a comensurabilidade e a divisibilidade. Estas características valorizam a aptitude de certas penas para permitir um rigoroso ajustamento das pu-nições. A pena diz-se divisível se é susceptível de mais ou de menos, seja na intensidade, seja na duração226. Ao maior crime corresponde um castigo mais pesa-do. A punição aumenta por dois modos: aumentando a quantidade da pena da mesma espécie; ou cumulando com uma pena outra de género diferente. Através da comensurabilidade, a lei oferece ao delinquente um motivo para se abster do crime maior. A medida da pena supõe um duplo cálculo: entre prazer e sofrimento e entre brandura e rigor. A pena proporcional torna-se então também uma pena económica. A pena económica não tem senão o grau de severidade necessário para alcançar o seu fim227.

224 Idem, p. 23.

225 Michel Foucault, Surveiller et punir. Naissance de la prison, p. 112: “Règle de l’idéalité suffisante. Si le motif du crime, c’est l’avantage qu’on se répresente, l’éfficacité de la peine est dans l’avantage qu’on se représente, l’efficacité de la peine est dans le désavantage qu’on attend. Ce qui fait la ‘peine’ au coeur de la punition, ce n’est pas la sensation de souffrance, mais l’idée d’une douleur, d’un déplaisir, d’un inconvénient – la ‘peine’ de l’idée de la ‘peine’”.

226 Bentham, Theoria das Penas Legaes, Livro Primeiro, pp. 35, 37-39.

227 Michel Foucault usa de modo recorrente expressões como economia das penas e economia do poder: “Le supplice pénal ne recouvre pas n’importe punition corporelle: c’est une production différenciée de souffrances, un rituel organisé pour le marquage des victimes et la manifestation du pouvoir qui punit; et non point l’exaspération d’une justice qui, en oubliant ses principes, perdrait toute retenue. Dans les ‘excès’ des supplices, toute une économie du pouvoir est investie” (Surveiller et punir. Naissance de la prison, p. 44). Referindo-

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Ao contrário do que parece resultar dos textos setecentistas, a brandu-ra não constitui um valor em si mesmo. Inquestionavelmente, a força desta ideia é tal que a brandura chega a ter uma face caricatural. Para isso contribui o estilo enfático de muitos escritos, a força da repetição e o efeito do tempo... A preocupação com o delinquente deixa a vítima praticamente esquecida. Se antes o delinquente era um homem livre responsável pelos actos resultantes da sua malícia, começa agora a ser visto como um desprotegido da sociedade. A vítima, por vezes proprietária, perde atenção e simpatia. Praticar um crime coloca o desfavorecido sob a atenção dos penalistas e da opinião pública.

Apesar deste efeito que o tempo foi acentuando, a verdade é que a brandura não tem frequentemente na ciência penal de setecentos senão um carácter instrumental. O legislador não deve procurar em abstracto ou como princípio uma pena branda ou uma pena rigorosa. Deve proceder a um ri-goroso cálculo contabilístico-utilitário. A pena em si mesma representa uma despesa que o Estado assume e impõe. Essa despesa ou sofrimento é o valor verdadeiro da pena228. O benefício do Estado está na prevenção dos crimes, na paz social. Este benefício é o valor aparente da pena, o mal que se ofere-ce à imaginação dos homens, quando a pena se descreve simplesmente ou quando eles a vêem executar. Nesta operação há pura frieza contabilística – somar o ganho e diminuir a perda. Evitar o desperdício. A pena não deverá então ser nem excessivamente branda nem excessivamente rigorosa. Deve ser eco-nómica. Simultaneamente, a determinação da pena legal proporcional tem uma feição aparente ou, diríamos hoje, virtual. A pena real constitui a perda e o castigo aparente, o ganho. Ora, o utilitarismo propõe que o legislador opere sobretudo através do castigo aparente, do seu efeito psicológico dissuasor. A proporcionalidade e a economia presidem à relação entre cada crime e cada pena e à relação entre as várias penas e os vários crimes, formando um siste-ma de penas proporcional e económico229.

Em suma, o legislador deve estabelecer punições tão rigorosas que dis-suadam os delinquentes. Mas não tão rigorosas que produzam sofrimento sem utilidade. De forma segura, está aberto o caminho para o abaixamento progressivo das penas, sempre que se entenda que são suficientemente eco-nómicas, sempre que o Estado considere que, por mais insignificante que

-se a uma economia dos castigos (“économie des châtiments”), p. 89; e a uma “economia calculada das punições”, p. 122.

228 Bentham, Theoria das Penas Legaes, Livro Primeiro, pp. 22-24.

229 Francisco Freire de Mello, Discurso sobre Delictos e Penas, p. 10.

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possam parecer aos olhos da comunidade e das vítimas, são suficientes para cumprir os seus objectivos. A linguagem das penas modifica-se radicalmente. Perde-se a palavra justiça. Usam-se as palavras despesa, economia, desperdício.

O cálculo político da utilidade das penas é um jogo de sombras pro-jectadas pelo poder com o fim principal de prevenir os crimes. O jogo do po-der é punir o menos possível, assustando o mais possível. A sombra terrível dessas penas generosas consegue-se através de instrumentos muito precisos: legalidade das penas; clareza das leis penais; e execução pública das penas. O legislador usa o medo da pena que a lei descreve de forma clara e que se pode conhecer com antecedência porque o que se não conhece, não pode obrar como motivo230. E usa o medo de quem assiste à execução pública das punições. A pena proporcionada ao delito é a pena suficiente – quando uma pena menor basta para conter o delinquente, e com ela se consegue o mesmo fim, não se deve impor pena maior. Assim sucedia com as mutilações que incapacitavam o condenado para o trabalho. Os males supérfluos trazem um aluvião de inconvenientes que só enfraquecem o sistema penal.

E) A desproporcionalidade – gastar a mola do governo?

A ideia de proporcionalidade conhece dois veios de desenvolvimento na literatura setencentista. Por um lado, um discurso afirmativo, positivo, reformista. Por outro, um discurso crítico, mais fácil, mais frequente e mais divulgado. O tema da desproporcionalidade das penas é de facto um dos tópicos mais populares do século XVIII. Na realidade, o verdadeiro tema, a verdadeira atracção, é a justiça penal. Mas a desproporcionalidade a todos comovia e a todos era acessível, juristas e não juristas. Torna-se irresistível.

A falta de proporcionalidade é apontada como um dos defeitos da le-gislação criminal que mais consequências perversas gerava. Em primeiro lu-gar, a indiferenciada crueldade das punições gera uma errada percepção do justo e do injusto. Do crime leve e do crime grave. Em segundo lugar, as leis acabam por ter de castigar crimes que elas próprias ocasionam. Se a lei não diferencia o castigo do ladrão que se limita à privação da propriedade da-quele que também assassina na estrada, Lardizabal y Uribe adverte: o ladrão sabe que, matando ou não, tem de sofrer a pena capital pelo simples facto de ter praticado o crime num caminho público. Tirará também a vida àquele que rouba porque esse é um meio para ocultar o seu crime e evitar o casti-

230 Bentham, Theoria das Penas Legaes, Livro Primeiro, p. 25.

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go231. Os furtos domésticos, na medida em que supõem uma especial quebra da confiança, devem ser mais severamente punidos que os furtos simples mas guardando sempre a analogía e a devida proporção entre a pena e o delito232. O reformismo tem ínsita a ideia de que as más leis ocasionam os delitos. Em ter-ceiro lugar, a desproporção das penas gera como paradoxo a impunidade e a frequência dos crimes que com mais esforço a lei pretende extirpar. As pró-prias vítimas evitam a acusação para fugir ao remorso e à censura social. As testemunhas fogem a depor. A bancarrota fraudulenta é apresentada como um exemplo paradigmático de um crime que resultava impune. Lardizabal propõe em substituição da pena capital outra pena mais moderada e análoga ao delito mas que se executasse irremissivelmente233.

A ideia de proporcionalidade das penas cruza-se com o utilitaris-mo e, como sempre, é representada como um problema do poder político. Não é a crueldade das penas que melhora a obediência às leis, segundo Montesquieu234. As penas desproporcionadas e cruéis legitimam a violência e quando se executam rompem perigosamente a fronteira da ordem e da paz social. O local da execução passa a ser simbolicamente um território conheci-do a que o súbdito poderá sempre voltar235. Da forma mais inoportuna. Nesse mesmo local, num desses momentos, em que a quebra da normalidade é pro-movida, o poder pode perder-se236...

231 Discurso sobre las penas, pp. 43 e 44; e pp. 47-49.

232 Idem, 16,

233 Idem, 17, pp. 48 e 49.

234 Lettres persanes, Carta LXXX (Usbek à Rhédi, à Venise), p. 172: “Compte, mon cher Rhédi, que dans un État, les peines plus ou moins cruelles ne font pas que l’on obéisse plus aux lois. Dans les pays où les châtiments sont modérés, on les craint comme dans ceux où ils sont tyranniques et affreux”.

235 Idem, p. 173: “Je trouve même le prince, qui est la loi même, moins maître que partout ailleurs. Je ne vois que, dans ces moments rigoureux, il y a toujours des mouvements tumultueux, où personne n’est le chef, et que quand une fois l’autorité violente est méprisée, il n’en reste plus assez à personne pour la faire revenir”.

236 Ibidem: “Lorsqu’Osman, empereur des Turcs, fut déposé, aucun de ceux qui commirent cet attentat ne songeait à le commettre: ils demandaient seulement en suppliant qu’on leur fît justice sur quelque grief; une voix, qu’on jamais connue, sortit de la foule par hasard, le nom de Mustapha fut prononcé, et soudain Mustapha fut empereur”.

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Pastoret é um dos penalistas que se detém na análise da relação entre a pena e o modelo político237. Relaciona as penas e as incriminações com os vários tipos de governo (les principes d’un gouvernement). Identifica a propó-sito governos despóticos e governos republicanos. Nações meias-selvagens (demi-sauvages) e nações policiadas (policiées). Nações guerreiras, comercian-tes e agrícolas. E não se esquece ainda do subcritério tradicional de classifi-cação das formas de governo – que atende ao modo como o poder é exercido – referindo-se ao abuso tirânico de uma autoridade legítima.

Punir desproporcionadamente diminui a eficácia das penas – ou uti-lidade, na terminologia da época – faz perder na mente do criminoso a co-nexão entre crime e castigo. A pena deixa de ser eficaz e útil. Pelo contrário, gera-se o paradoxo de a lei provocar o aumento da criminalidade238. Face à possibilidade de ser apanhado nas malhas da justiça, o criminoso fará tudo para o evitar. Face a uma punição ou risco idênticos, preferirá a aventura mais frutífera... Gera-se uma perigosa insensibilidade face às penas, por parte dos delinquentes e do resto da população. O reformismo alerta deste modo para o efeito perverso ou contraproducente de a desproporcionalidade das penas enfraquecer o governo.

A desproporção das penas tem como consequência a perda de força da intimidação. Punir com excessivo rigor uma leve infracção da lei é gastar a mola do governo, adverte Pereira e Sousa. É multiplicar os crimes. Gera-se uma contradição singular – as leis punem crimes que elas mesmas ocasionam239.

§ 3. a analOgia Ou a adequaçãO da Pena à natureza dO delitO – oPôr a força à força e a oPinião à oPinião

A proporcionalidade e a analogia entre o delito e a punição constituem sem dúvida as duas qualidades das penas que avultam na reforma das leis criminais240. Estas duas características funcionam aliás em interacção. A pro-porção ou igualdade entre o delito e a pena define-se em primeiro lugar pela

237 Des Loix Pénales, Tomo II, pp. 80-91.

238 Tomás y Valiente, El Derecho penal de la Monarquía Absoluta, pp. 359 e 360; e p. 372.

239 Joaquim José Caetano Pereira e Sousa, Classes dos Crimes, nota 31 ao § 19, p. 20.

240 Lardizabal y Uribe, Discurso sobre las penas, pp. 48 e 49: “[...] uno de los principales cuidados que debe tenerse en el establecimiento o reforma de las leyes criminales, es que todas las penas se deriven de la naturaleza de los delitos, y sean siempre proporcionadas a la mayor o menor gravedad de ellos”.

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natureza do delito e pelas suas circunstâncias241. A natureza do delito permite portanto estabelecer uma relação proporcional entre o crime e a pena. De facto, quando se afirma que a natureza ou espécie de pena deve ser adequa-da ou análoga ao tipo de crime, tal significa que deve derivar da natureza dos próprios delitos242.

Deste modo, Beccaria desaprova as penas infamantes em relação aos delitos que não causam infâmia na opinião pública, como sucede com o con-trabando243. Apesar de se tratar de um furto feito ao príncipe e por consequência à própria nação, a desadequação ou falta de analogia explica-se pela impressão distante que o delito provoca. Sobretudo se os súbditos gozam das vantagens presentes do contrabando e não se vêem como vítimas. Adequado seria o con-fisco da mercadoria, tanto mais eficaz quanto mais pequenos forem os impostos, porque os homens não arriscam senão na proporção da vantagem que resultar do êxito do empreendimento244. Entre nós, esta posição é seguida por Pereira e Sousa245.

A analogia e a proporcionalidade estão já presentes nos velhos livros penitenciais. Assumindo o sacerdote, através do sacramento da penitência, as

241 Idem, pp. 41 e 42: “[...] entre la pena y el delito debe haber cierta igualdade, a cuya regulación contribuyen todas las circunstancias que constituyen la naturaleza del delito [...]”.

242 Pascoal José de Mello Freire, “Instituições de Direito Criminal”, p. 64, em nota. Joaquim José Caetano Pereira e Sousa, Classes dos Crimes, § 19, p. 19.

243 Dos delitos e das penas, § XXXIII, p. 139: “O contrabando é um verdadeiro delito que ofende o soberano e a nação, mas a pena a aplicar-se-lhe não deve ser infamante, porque uma vez cometido não causa infâmia na opinião pública”.

244 Idem, p. 140: “A pena da perda, quer da mercadoria proibida quer dos bens que a acompanham, é da maior justiça [...]”. Não deixa de admitir contudo uma punição mais pesada: “[...] há contrabandos que interessam de tal forma a natureza do imposto [...] um tal delito merece uma pena considerável que vai até à prisão, ou até à própria escravidão, mas prisão e escravidão conformes com a natureza do delito” (p.141). De forma idêntica, Thorillon defende a aplicação da pena de confisco das mercadorias, de penas pecuniárias e e ainda de reclusão temporária: “[...] ces voleurs sont seulement de la classe des escrocs, & de ceux qui usent d’agilité, d’astuce; & ainsi, on doit prononcer la confiscation de leurs marchandises, l’amende, la reclusion à temps; & ces peines, ce me semble, sont suffisantes.” (Idées sur les Loix Criminelles, Tomo I, p. 180).

245 Classes dos Crimes, p. 178: “A confiscação de fazendas de contrabando, a multa proporcionada ao valor delas, são pois as penas que lhe correspondem. Quando porém o culpado nada tem que perder, nem por isso deve ficar o crime impunido. Podem nesse caso as penas estender-se à prisão, e ao trabalho do culpado, em proveito do Fisco que ele quis fraudar”. Pereira e Sousa referencia as opiniões de Beccaria, Warville, Pastoret e Blackstone.

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funções de médico e de juiz, devia cuidar de aplicar uma medicina adequada à natureza da doença, proporcionando a expiação ao delito. Embora inicial-mente a fixação das penitências estivesse entregue ao arbítrio dos sacerdotes, a necessidade de conseguir soluções uniformes assim como de evitar exces-sos, quer de autoridade quer de indulgência, acabou por conduzir a esses livros penitenciais, que no ocidente floresceram a partir dos séculos VII a XII. Estes catálogos de faltas e de pecados com as correspondentes penitências, destinados a facilitar o labor dos sacerdotes no ministério da confissão, reve-lam grande interesse para a história da teologia e do próprio direito. Ora, de acordo com estas tarifas penais, cada pecado devia ser curado de forma ade-quada, seguindo o princípio da medicina antiga – contraria contrariis curantur. Ainda segundo os livros penitenciais, o mesmo pecado podia ser sancionado de diferentes formas, ponderando a condição do pecador e outras circuns-tâncias.

A literatura setecentista insiste na necessidade de estabelecer uma rela-ção entre a pena e o crime. E dedica-se a elencar os vários critérios que permi-tem especificar essa relação. Quanto maior precisão houver nessa tarefa, mais adequada é a pena. Esta característica das punições não constitui no entanto um exclusivo do reformismo. O próprio Vouglans se detém na máxima se-gundo a qual a diversidade de crimes dá lugar à diversidade de penas246.

As penas devem ser adequadas aos crimes no sentido de que devem ser endereçadas a reparar os prejuízos que provocam ou a restaurar os bens que afectam. Mais simplesmente, num remoto talião, devem ser direcciona-das de forma a ferir, no que toca ao criminoso, o mesmo tipo de bem que ele afectou. Em relação à sociedade em geral, os crimes podem atacar a religião ou o governo. Em relação aos membros da sociedade, os crimes podem atacar a sua vida, a sua honra ou os seus bens. A determinação do bem social ou particular atingido pelo delito permite desenhar o alvo da pena.

Lardizabal y Uribe entende que os delitos contra a religião devem casti-gar-se, para que a pena derive da natureza do delito, com a privação de vantagens e benefícios que oferece a própria religião aos que a respeitam e reverenciam, como a expulsão dos templos ou a privação do convívio com a sociedade dos fiéis247. Os delitos contra os costumes devem punir-se com a privação das vantagens e benefícios que a sociedade proporciona: a vergonha, o óprobrio, o desprezo, a expulsão. Considera recomendáveis as mesmas penas para os

246 Les lois criminelles de France, Livro Segundo, p. 45.

247 Discurso sobre las penas, p. 36.

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crimes contra a tranquilidade. Neste caso, os delinquentes devem ser priva-dos da tranquilidade que perturbaram, quer pela privação da sua própria liberdade, quer pela expulsão da sociedade. De forma semelhante, deve re-cusar-se segurança a quem perturba a dos outros, pela cominação de penas corporais, pecuniárias, infamantes, segundo esteja em causa a segurança das pessoas, dos bens ou a honra dos seus concidadãos248. Esta regra da analogia falece em dois casos: quando as penas análogas aos delitos não são suficien-tes ou bastantes por si sós para escarmentar o delinquente; e quando não se podem impor. Se as penas religiosas não são suficientes para conter os sacrílegos, deve recorrer-se a penas civis. Se aquele que perturba os bens de outrem e deve, em consequência, ser punido com penas pecuniárias carece de patrimó-nio, não pode ficar impune. Será então necessário cominar outra punição249.

A medida natural das penas encontra-se no sentimento que está na ori-gem do crime250. Se se trata da ociosidade, a pena deve ser o trabalho. Se se trata da ganância, a pena deve ser pecuniária. Cominar as mesmas penas – graves, incluindo a pena de morte – para crimes muito diferentes entre si ou de natureza distinta conduz a produzir uma indiferenciação entre esses deli-tos, destruindo-se desta forma os sentimentos morais, obra de muitos séculos251. Na perspectiva do estudo das penas, encontramos frequentes alusões à respec-tiva adequação. Assim, por exemplo, as penas infamantes são consideradas adequadas aos crimes morais ou que ofendem a honra; as penas corporais, aos crimes violentos; e as penas pecuniárias, aos crimes contra o património dos particulares e aos crimes fiscais.

A analogia configura-se, em primeiro lugar, como uma exigência da justiça. Uma pena justa é uma pena análoga. Se se perde a analogia ou a adequação da pena à natureza do delito, se se confundem as pessoas com as coisas – por exemplo, a vida do homem com os seus bens – se se redimem com penas pecuniárias as violências contra a segurança pessoal, perturba-se ou transtorna-se a noção de justiça252. Em segundo lugar, a analogia permite aumentar a eficácia do fim preventivo das penas. O facto de existir uma es-treitíssima conexão entre o crime e a pena, entre os vários crimes e as várias

248 Idem, pp. 37 e 38.

249 Idem, pp. 39 e 40.

250 Pastoret, Des Loix Pénales, Tomo II, p. 14: “La mesure naturelle des peines se trouve dans le sentiment qui a produit le crime”.

251 Beccaria, Dos delitos e das penas, § XXXIII, p. 140.

252 Lardizabal y Uribe, Discurso sobre las penas..., Capítulo II, 3, pp. 34 e 35.

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penas e o facto de estas serem análogas constitui um inevitável lembrete para o delinquente. A ameaça da pena labora mentalmente onde actua a sedutora ideia do crime253. Em terceiro lugar, a pena análoga imprime-se mais profun-damente na memória, entranha-se na imaginação com mais viveza254. Em quarto lugar, a analogia junta-se à proporcionalidade para construir um sistema coerente de crimes e penas. Deste modo, a analogia e a proporcionalidade postulam a codificação do direito penal. Pereira e Sousa, fazendo uso de um pensamento sistemático, tece um esquema de correspondência entre os tipos de crimes e os tipos de penas. Aos crimes civis correspondem penas capitais e aflitivas. Aos crimes políticos, penas de correcção. Aos crimes morais, pe-nas infamantes. Aos crimes religiosos, penas eclesiásticas. Aos crimes contra a honra, penas morais. Aos crimes contra a segurança, penas corporais. E aos crimes contra a propriedade, penas pecuniárias255. Finalmente, a analogia opõe-se à arbitrariedade. A pena natural ou análoga, exigida pela natureza do delito, não é arbitrária, uma vez que não deriva da vontade ou do capricho do legislador256. Pereira e Sousa, citando Montesquieu257, lembra que a adequação da pena à natureza do crime limita o arbítrio na cominação das penas. Por consequência, entende que a analogia potencia a segurança e a liberdade dos cidadãos.

A doutrina encontra na analogia um critério objectivo – não arbitrá-rio – de definição da pena e portanto uma regra que defende a liberdade

253 Beccaria, Dos delitos e das penas, § XIX, p. 104.

254 Bentham, Theoria das Penas Legaes, Livro Primeiro, p. 38: “[...] a pena de Talião é admirável por este motivo: olho por olho, dente por dente. O Homem, ainda o mais bronco, e sem capacidade, pode ligar estas ideias; mas semelhante pena raras vezes tem lugar na prática, além de ser mui dispendiosa; é preciso recorrer a outros meios de analogia”.

255 Classes dos Crimes, nota 30 ao § 19, p. 20: “Em geral aos crimes civis devem corresponder penas capitais, e aflitivas; aos políticos penas de correcção; aos morais penas infamantes; aos religiosos penas eclesiásticas. Aos crimes contra a honra devem corresponder penas morais; aos crimes contra a segurança penas corporais; aos crimes contra a propriedade penas pecuniárias”.

256 Lardizabal y Uribe, Discurso sobre las penas, p. 35.

257 O Espírito das Leis, p. 199: “É o triunfo da liberdade, quando as leis criminais tiram cada pena da natureza particular de cada crime. Toda a arbitrariedade acaba; a pena não vem mais do capricho do legislador, mas da natureza da coisa; e não é o homem que faz violência ao homem”.

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do cidadão258. Contudo, a utilização política do direito penal no século XVIII convive com a apologia da certeza e a condenação do arbítrio. Necessário é ter presente que o juízo de adequação ou acomodação da pena permanece um juízo do poder político.

§ 4. a PrOntidãO e a irreMissibilidade – o cimento da fábrica do entendimento humano

As penas devem executar-se prontamente. A prontidão das penas é elevada a máxima: quanto mais pronta ou mais próxima do delito cometido estiver a pena, tanto mais justa e útil ela será259. Com efeito, militam a favor da prontidão da justiça penal simultaneamente razões de utilidade e de justiça. Para Beccaria, uma justiça pronta é mais justa porque poupa o réu ao sofri-mento da incerteza acerca da sua sorte260. E porque evita o prolongamento da prisão preventiva, ou seja, a aplicação de uma pena antes da sentença261. Também para Lardizabal y Uribe a prontidão na execução das penas supõe um princípio geral de celeridade como exigência de humanidade, que se opõe à larga e penosa incerteza da sorte262 do réu. Regras quanto à duração do proces-so penal. Regras quanto à duração da prisão.

Esta característica das penas actua também como garantia de eficácia e contraponto para muitas propostas do sistema penal do reformismo. As-sim sucede recorrentemente com Beccaria, que lhe dedica um capítulo na sua obra emblemática. O delito é sempre causa da pena. E a pena é sempre efeito do delito263. A rapidez na execução das penas favorece no espírito do vulgo

258 Instructions adressées par Sa Majesté L’Impératrice de toutes les Russies, Article VII, p. 26: “C’est le triomphe de la liberté civile, lorsque les Lois infligent à ceux qui les violent des punitions qui découlent de la nature même du délit. Car la punition n’a rien alors d’arbitraire, puisqu’elle ne dépend point du caprice du Législateur, mais qu’elle est une suite de la nature même de l’action; ce n’est donc pas l’homme qui fait violence à l’homme quand on le punit, ce sont ses propres actions”.

259 Beccaria, Dos delitos e das penas, § XIX, p. 102. Lardizabal y Uribe, Discurso sobre las penas, p. 56: “Si la prontitud en el castigo hace la pena más útil, también la hace más justa”.

260 Ibidem: “[...] mais justa, porque poupará ao réu os inúteis e cruéis tomentos da incerteza”.

261 Idem, pp. 102 e 103: “[...] mais justa, porque sendo a privação da liberdade uma pena, ela não pode preceder a sentença senão quando a necessidade o exige”.

262 Lardizabal y Uribe, Discurso sobre las penas, pp. 56 e 57.

263 Beccaria, Dos delitos e das penas..., § XIX (Prontidão das penas), p. 103: “[...] a prontidão das penas é mais útil porque quanto menor é a do tempo que passa distância entre a pena e o crime, tanto mais forte e duraroura é no espírito humano a associação destas duas ideias,

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a conexão e a união entre delito e pena – é pois necessário que a pena se siga imediatamente ao delito. É muito importante que o delito seja sempre olhado como causa da pena, e a pena como efeito do delito264. Em primeiro lugar, o afastamento cronológico entre o crime e a pena não pode criar no súbdito a esperança da impunidade. Em segundo lugar, o súbdito não deve supor que a pena encontra outra causa que se possa reconduzir a arbitrariedade do poder.

A associação das ideias de crime e de castigo é tida como o cimento da fábrica do entendimento humano265. Quanto mais pronta e próxima é ao delinquente a execução do suplício, tanto mais fortemente se liga e associa no espírito dos homens a ideia do crime, e a ideia de seu castigo para os refrear e conter, considerando-se o cri-me como causa, e a pena como seu efeito necessário266. Em causa está a consciência da importância de uma política penal ou da actuação do poder através das penas sobre a comunidade. E está igualmente em causa a consciência do pa-pel preventivo da educação dos cidadãos. A representação psicológica pelo delinquente do benefício do crime e do sofrimento da pena depende gran-demente da certeza e da proximidade com que configura o castigo. Compre-ensivelmente, se vê o castigo como algo de distante e contingente ou menos provável sobrepõe-se o interesse que o leva a arrojar-se a cometer o crime – a tentação está presente, o castigo está longe267.

A prontidão é associada à irremissibilidade das penas na realização do seu fim preventivo. A ciência certa de que o delinquente é infalivelmente cas-tigado constitui um freio muito poderoso para conter os delitos, mesmo quando os castigos são moderados268. Aliás, a irremissibilidade faz dispensar o rigor das penas. O carácter irremissível das punições supõe inflexibilidade e cons-tância nas condenações e portanto o afastamento do arbítrio judiciário. Mas sobretudo propõe um modelo penal que opõe à brutalidade simbólica de um castigo contingente uma disciplica efectiva da sociedade269.

delito e pena, de tal forma que, insensivelmente, considera-se um como a causa e a outra como o efeito necessário e inelutável.”.

264 Idem, 22.

265 Lardizabal y Uribe, Discurso sobre las penas, pp. 54 e 55.

266 António Ribeiro dos Santos, Notas ao Plano do Novo Codigo, p. 173.

267 Bentham, Theoria das Penas Legaes, Livro Primeiro, p. 29.

268 Lardizabal y Uribe, Discurso sobre las penas, pp. 57 e 58.

269 Maria Paz Alonso e António M. Hespanha, “Les peines dans les pays ibériques (XVIIe-XIXe siècles)”, p. 202: “Le grand changement du droit pénal du despotisme éclairé est justement

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§ 5. a utilidade

O princípio da utilidade das penas pode identificar-se com a necessi-dade enquanto fundamento da repressão. Neste sentido, a lei não deve incri-minar e punir senão os comportamentos socialmente nocivos270. A utilidade constitui apenas uma designação diversa para o fim predominante preventi-vo que é apontado às penas pelo humanitarismo. Considera-se desta forma que as penas devem servir para atalhar o mal ou atalhar o poder de fazer mal; devem tender para o melhoramento moral; e devem ser susceptíveis de se converter em proveito. Bentham entende ser excelente que a pena tenha o po-der de impedir o condenado de fazer mal, desde que não seja muito dispen-diosa271. E é também sensível à aptidão das penas para reformar o condenado, para melhorar o seu carácter. Assinala a propósito que algumas tendem, pelo contrário, a fazer o homem vicioso ainda mais estragado. A utilidade pode signi-ficar uma valorização das penas susceptíveis de se converterem em proveito, quer para a parte lesada quer para toda a comunidade, como sucede com o trabalho forçado. Pelo contrário, são depreciadas as que não têm utilidade e se traduzem em sofrimento gratuito. As mutilações são criticadas também por lançarem para a sociedade alguém que não poderá trabalhar ou ser útil. As características das penas servem notoriamente o discurso crítico em torno das penas que deviam ser postergadas. A utilidade em particular ganha tal peso que subordina muito frequentemente a justiça, pelo menos no sentido em que a utilidade é elevada a critério da própria justiça.

§ 6. a exeMPlaridade e a Publicidade

O castigo é exemplar quando a pena aparente está em grande proporção com a pena real, ou seja, quando o sofrimento (pena real) do condenado não é desperdiçado sem produzir um efeito dissuasor na população (pena aparen-te). Esta característica direcciona-se ao fim prevalecente das penas: a preven-ção. A pena é exemplar quando intimida o público.

Em conformidade com o Decreto de 21 de Setembro de 1782, a Leopoldina ordena a exposição dos condenados antes da execução das penas,

l’avènement d’un nouvel objectif stratégique pour le droit pénal royal – la discipline effective de la société”.

270 Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26 de Agosto de 1789, Artigo 5º: “La Loi n›a le droit de défendre que les actions nuisibles à la Société. [...]”; Artigo 8º: “La Loi ne doit établir que des peines strictement et évidemment nécessaires [...]”.

271 Theoria das Penas Legaes, Livro Primeiro, pp. 40 e 41.

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quando estavam em causa determinados crimes272. Bentham manifesta ver-dadeiro entusiasmo pelo cerimonial da pena: o aparato da cena, a decoração e as cerimónias devem ser carregadas273. Mais do que uma vez, este entusiasmo faz o patriarca dos utilitaristas esquecer a intimidação do criminoso e a sua emen-da: a pena real, que não fosse aparente, poderia servir para intimidar o réu, e para o reformar; mas ficava perdida para o público... Castigar em segredo configura-se como puro desperdício, que lastima – se os réus fossem castigados em segredo, a aplicação das penas seria inútil, à excepção da vantagem acidental de se emen-dar este, ou aquele, ou de ficar com as mãos presas para não fazer mal274. Lardizabal y Uribe enlaça o tema dos fins das penas com a publicidade: um dos fins mais essenciais das penas é o exemplo que com elas deve dar-se e por esta razão dizemos que deven ser públicas275. O Beccaria espanhol aprova e recomenda o costume francês de se divulgarem as sentenças condenatórias da pena capital através da respectiva impressão e venda ao público. O secretismo das penas geraria em contrapartida uma perigosa debilidade política – os castigos secretos de-monstram impotência e debilidade do governo ou injustiça e atrocidade na pena. A monarquia absoluta revela uma incondicional apetência pelo carácter públi-co dos suplícios, atribuindo à respectiva forma de execução uma carga sim-bólica que a liga ao próprio delito. O ritual do suplício é um operador político276.

A publicidade dos castigos revela uma particular relação entre o poder político e a comunidade. A autoridade do rei torna-se visível. Em cada exe-cução há um ritual político de reconstituição da soberania277 e de reafirmação da actualidade ou vigência da lei. A ostentação dos suplícios faz do condenado o arauto da sua própria condenação; reproduz de certo modo a encenação da confissão; fortalece a conexão entre as penas e os crimes, nomeadamente atra-vés da sobreposição geográfica; no termo do ritual judiciário, desempenha o papel de uma última prova e aproxima o julgamento dos homens do julga-

272 Integram a lista da lei dezoito delitos (v.g. sedição, homicídio premeditado, falsificação de moeda). Vd. Riforma della Legislazione Criminale negli Stati di S.A.R. Il Gran-Duca di Toscana, § LXIX.

273 Bentham, Theoria das Penas Legaes, Livro Primeiro, p. 39.

274 Idem, pp. 24 e 25.

275 Lardizabal y Uribe, Discurso sobre las penas, Capítulo II, 19, pp. 51-54.

276 Michel Foucault, Surveiller et punir. Naissance de la prison, p. 65.

277 Idem, p. 59: “Le supplice a donc une fonction juridico-politique. Il s’agit d’un cérémonial pour reconstituer la souveraineté un instant blessée”; p. 65: “Dans toute infraction, il y a un crimen majestatis, et dans le moindre des criminels un petit régicide en puissance”.

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mento de Deus. Como explicou Michel Foucault, o tempo dos suplícios será substituído pela execução que tem lugar longe do olhar do público. Por uma nova estratégia no exercício do poder de punir278. Por uma enigmática doçura com uma linguagem codificada. Deixa de se considerar necessária a exibição das penas. A publicidade pode mesmo ser encarada como potencialmente perigosa. O castigo exemplifica a própria violência e é susceptível de desper-tar o apoio dos que assistem ao castigo. No futuro, o poder não se manifesta. Prefere apagar-se discretamente. Oculta-se na arquitectura das prisões, das normas, dos funcionários. Em rigor, apresentará outra face, mudando a técni-ca da obediência. Por fim, exprime-se pela consciência de ser observado. Nas escolas, nas fábricas, no exército...

§ 7. a POPularidade

As penas não devem ser odiosas no conceito público279. Em rigor, o conde-nado não constitui o seu alvo primordial mas a comunidade dos súbditos em geral. Pastoret enuncia duas máximas em torno da popularidade das penas. Uma apresenta a opinião pública como barómetro da gravidade (danosa) do crime: quanto mais o crime afecta, de forma directa, os indíviduos, maior é a impressão que causa na opinião pública. E mais será tido como ofensivo280. A segunda máxima anuncia ao legislador uma precaução política: o propósito da pena falha se contradiz a opinião pública. O Autor das Leis Penais trata aliás especificamente da relação entre a pena e a opinião pública281. Não sur-preendem por isso alguns temas satélites deste como a relação entre a pena e a educação nacional; a religião; e os costumes dos povos.

Bentham atende também à opinião pública como medida de eficácia po-lítica. Sem este abrigo voluntário, o legislador deixa de contar com quase todos para a execução da lei. Juízes, testemunhas, público que assiste às execuções, as pessoas as mais inocentes e as mais quietas da sociedade, todos concorrem para não cumprir a lei que fere a sua sensibilidade e a que sentem aversão. A res-posta que propõe é puramente política. Cedendo ao realismo, acaba por ad-mitir sobrepor a popularidade à conveniência ou utilidade. Se o povo, com ra-

278 Idem, pp. 15 e 16; p. 89; p. 97; p. 111: e pp. 129 e 130.

279 Bentham, Theoria das Penas Legaes, Livro Primeiro, p. 44.

280 Pastoret, Des Loix Pénales, Tomo II, p. 157.

281 Idem, pp. 153-183.

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zão ou sem ela, concebe alguma aversão a uma pena, Bentham defende que não deve entrar no código penal282. Por mais conveniente que seja em si mesma.

A popularidade constitui uma das manifestões do realismo político no pensamento da época, que se desenvolve em direcção à opinião pública. De facto, a produção científica e literária em grande parte dirige-se-lhe. É a aten-ção e o apoio do vulgo que o reformismo tenta captar com o seu entusiasmo e os seus excessos. Mas, mais do que isso, dispõe-se a receber a opinião pública para definir a sua própria opinião. Trata-se de um jogo subtil e complexo, tão ao gosto da época. Pretende-se reformar o direito, educar o cidadão e ci-vilizar os povos. Ao mesmo tempo, pretende-se escutar a opinião pública. O exercício parece contraditório mas poderá significar tão-só que as mudanças a partir de então apenas se poderão realizar com o apoio do público. Poderá na verdade ser um exercício democrático ou simplesmente cínico.

§ 8. as regras da Medida legal das Penas

A enunciação das regras sobre a medida legal das penas constitui uma decorrência do discurso sobre as respectivas características. Compreensivel-mente, elas não assumem o mesmo tipo de peso. Para Bentham, devem antes ser avaliadas de acordo com o tipo de crime. Nos crimes mais graves, o le-gislador deve ponderar mais o exemplo e a analogia. Nos pequenos delitos, e economia da pena e a reforma do criminoso. Nos crimes contra a proprie-dade, dá preferência às penas de que se pode tirar algum proveito, nomeada-mente para a parte lesada283. Segundo Lardizabal y Uribe, quanto maior for o dano causado à sociedade ou aos particulares; quanto maior for a liberdade e o conhecimento com que se pratica a acção; quanto mais perigoso for o exem-plo que dela resulta; quanto mais veemente for o impulso para delinquir – tanto maior será o delito e por conseguinte a pena que deve ser usada para o castigar284. Daqui se segue uma hierarquização dos delitos, segundo a res-pectiva gravidade. Em primeiro lugar estão os delitos que se dirigem a per-turbar ou a destruir a sociedade e a religião, como o crime de lesa-majestade, de heresia, de sedição e de rebelião. A respectiva punição deveria conhecer variações segundo o dano que efectivamente causassem. Em segundo lugar estão os delitos que perturbam a segurança e a tranquilidade dos particula-res, que põem em causa a conservação da vida, do corpo humano, da honra

282 Theoria das Penas Legaes, Livro Primeiro, p. 44.

283 Idem, p. 46.

284 Discurso sobre las penas, pp. 104-106.

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e dos bens. Dentro destes, a graduação deve estabelecer-se de acordo com a nobreza e a dignidade do objecto dessa perturbação. Assim, os delitos contra a segurança pessoal são mais graves do que os delitos contra os bens. Devem ser punidos mais severamente e com diverso género de penas. A determina-ção da pena deve ainda considerar o dano que os delitos em causa provocam. Pastoret, quando trata dos critérios de determinação das penas que qualifica como naturais ou em relação com a natureza, ou seja, aqueles que dizem res-peito aos direitos naturais do homem285, afirma que as penas devem garantir a protecção e a intangibilidade da liberdade e da igualdade.

As regras sobre a medida legal das penas penas supõem portanto um limite máximo e um limite mínimo. Entre o direito penal do antigo regime e o reformismo existe uma diferença de perspectiva quanto a este aspecto. O primeiro concentra-se na definição do “máximo” das penas, a partir do qual se poderá permitir em tempos de paz social perdoar e exercer clemência. O limite máximo encontra-se expresso enquanto o “mínimo” se mantém implí-cito. Por isso, são vários e muito diferentes entre si os crimes punidos com pena de morte. O reformismo, pelo contrário, dirige a sua reflexão e as suas propostas de acção no sentido de conter o limite máximo das penas. Pretende moderar ou baixar o máximo ao mínimo... Ou fixar o mínimo irremissível ainda eficaz. Enquanto o direito penal do antigo regime, como compensação das debilidades da máquina da justiça, se centrava no máximo punitivo que lhe parecia garantir eficácia dissuasora, o reformismo vai concentrar-se na sua moderação. Dirige o seu esforço no sentido de fixar o limite que conside-ra ainda humanitário286, útil e suficiente287.BIBLIOGRAFIA: ALVES, Sílvia, Humanizar e Punir. O direito penal setecentista, Lisboa,

2014. Beccaria, Cesare, Dos delitos e das penas, Lisboa, 1998. BENTHAM, Jeremy, Traducção das Obras Politicas do Sabio Jurisconsulto Jeremias Bentham, vertidas do inglez na lingua portugueza por mandado do Soberano Congresso das Cortes Geraes, Extraordinarias, e Constituintes da mesma Nação, Tomo I. Theoria das Penas Legaes Lisboa, 1822. BLACKSTONE, William, Commentaries on the Laws of England, (facsimile da primeira edição de 1765-1769), Livro IV, Londres e Chicago, 1992. BONGERT, Yvonne, Histoire du Droit Pénal, Paris, 2012. BRANDÃO, Cláudio, Francisco Cavalcanti e João Maurício Adeodato (Coord.), Princípio da Legalidade. Da dogmática Jurídica à Teoria do Direito, Rio de Janeiro, 2009. BRIEGEL, Françoise, e Eric Wenzel, “La récidive à l’épreuve de la doctrine pénale

285 Des Loix Pénales, Tomo II, pp. 2-14.

286 Beccaria, Dos delitos e das penas, § XXVIII, p. 120: “O limite que o legislador deveria fixar para o rigor das penas parece consistir no sentimento de compaixão”.

287 Ibidem: “Para que uma pena seja justa não deve haver senão aquele grau de intensidade que basta para afastar os homens dos delitos”.

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Medidas Penales POst-Penitenciarias de cOntrOl de la PeligrOsidad del delincuente

iMPutable y derechOs FundaMentaleseduardo demetrio CreSpo*

RESUMEN: El artículo versa sobre la compatibilidad de las medi-das penales destinadas a controlar (“libertad vigilada”) o neutralizar (“custodia de seguridad”) la peligrosidad del delincuente imputable una vez que éste ha cumplido la pena de prisión que le correspondía cumplir de acuerdo a la gravedad del hecho cometido y su culpabi-lidad con los Derechos Fundamentales consagrados en la Constitu-ción.PALABRAS CLAVE: Peligrosidad. culpabilidad. pena. medida de seguridad. Derechos Fundamentales y Derecho penal.ABSTRACT: This paper discusses the accordance with constitutional fundamental rights of criminal law measures aimed at controlling (“supervised release”) or neutralizing (“post-sentence preventive detention”) dangerous blameworthy persons who have already ser-ved prison sentences imposed taking into consideration the gravity of the crime and the degree of culpability in its commission.KEYWORDS: Dangerousness; culpability; punishment; security me-asure; fundamental rights; criminal law.SUMARIO: I – Derechos Fundamentales y Derecho Penal; II – El control de la peligrosidad en el Derecho penal de Estado de Dere-cho; III – Conclusión.

i – derechOs FundaMentales y derechO Penal

1. Es obvio que un tema como el enunciado en el título no puede tra-tarse sin entroncarlo previamente, siquiera de manera superficial, con una pregunta clave cual es la propia existencia de un modelo de Derecho penal

* Catedratico de Derecho Penal. Universidad de Castilla-La Mancha.

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característico del Estado constitucional de Derecho y el modo que tenemos de definirlo1.

El Estado constitucional aparece hoy como la formulación más acabada del Estado de Derecho, una en la que el sometimiento del poder al Derecho comprende también al poder legislativo, que se ve limitado ab initio por la Constitución. Como recientemente ha destacado Atienza “el constituciona-lismo como realidad jurídico-política se caracteriza por una serie de rasgos que son graduables (la existencia de constituciones que incorporan Derechos Fundamentales expresados en enunciados de principio, la fuerza vinculante de la constitución, la garantía jurisdiccional de la constitución, su grado de rigidez, la interpretación conforme a la Constitución de las leyes y del resto de las normas del ordenamiento jurídico, etc.), de manera que puede haber (hay) sistemas jurídicos en los que el fenómeno de la constitucionalización de los Derechos es más acusado que en otros”2.

Se ha dicho que la tensión “irreductible” entre las competencias del legislador y las del órgano al que se confía su control es justamente una ca-racterística del Estado constitucional3. De todos modos, por mucho que la perspectiva constitucionalista en el Derecho penal presuponga un juez muy valorativo, esa facultad de controlar las leyes e interpretarlas a la luz de prin-cipios superiores de carácter constitucional, se mueve en los límites marcados por el principio de división de poderes, lo que la convierte, advierte Donini, en una capacidad potencialmente abstracta4. Esto no significa, sin embargo, que el control constitucional de las leyes deba ser uno “deferente” – enten-diendo la “deferencia” como algo positivo en el sentido de evitar los incon-venientes a los que puede conllevar la anulación de una norma penal5, sino

1 Vid. un cierto desarrollo ya en Demetrio Crespo, E., “Constitución y sanción penal”, Libertas 1 (2013), p. 57-110, con múltiples referencias bibliográficas a las que me remito.

2 Atienza, M., “Constitucionalismo y Derecho penal”, en S. Mir Puig & M. Corcoy Bidasolo (Dirs.) & JC. Hortal Ibarra (Coord.), Constitución y sistema penal, Madrid et al.: Marcial Pons, 2012, p. 21.

3 Lopera Mesa, G.P., Principio de proporcionalidad y ley penal, Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2006, p. 76.

4 Donini, M., “La relación entre derecho penal y política: método democrático y método científico”, en L. Arroyo Zapatero & U. Neumann & A. Nieto Martín (Coord.), Crítica y justificación del Derecho penal en el cambio de siglo, Cuenca: UCLM, 2003, p. 81.

5 Lascuraín Sánchez, JA., “¿Restrictivo o deferente? El control de la ley penal por parte del Tribunal Constitucional”, InDret 3/2012, p. 1-34, 25.

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que debe tratarse, en mi opinión, de un control constitucional “a secas”, o si prefiere, de uno que efectivamente sea tal, para el que las cortes o tribunales constitucionales están perfectamente legitimados. No faltan ejemplos, como el del Bundesverfassungsgericht a propósito de la custodia de seguridad, al que nos referiremos más adelante, en los que el que el exceso de deferencia se ha revelado a la larga como una indeseable falta de verdadero control.

2. No cabe duda que el reto permanente del Derecho penal en el Estado constitucional es encauzar adecuadamente el conflicto entre la libertad del individuo y la limitación de dicha libertad para la protección de la generali-dad. Se trata, por tanto, en último término, de la restricción de la libertad con la finalidad de su preservación6. En este sentido, por lo que aquí interesa, es evidente que el legislador no es totalmente libre en la elección o modulación del sistema de sanciones destinado a cumplir su función protectora, sino que se encuentra limitado por el conjunto de reglas y principios configuradores del Estado constitucional de Derecho. La perspectiva de los Derechos Fun-damentales consagrados en la norma que se sitúa en la cúspide del ordena-miento jurídico le obliga formal y materialmente a no perder de vista la liber-tad del individuo al que se impone la sanción. Sólo aquellas sanciones que respeten ciertos criterios de adecuación constitucional relativos con carácter general a la pertinencia, idoneidad y necesidad en orden a la meta propuesta, podrán ser admitidas7.

A partir de estas premisas resultaría posible, por ejemplo, razonar la inconstitucionalidad de la fórmula “culpabilidad + peligrosidad: inocuiza-ción” subyacente a los sistemas de sanciones que introducen fórmulas al estilo de la Sicherungsverwahrung alemana (o “custodia de seguridad”) so-bre la que ya se ha pronunciado en sentido correctivo el TEDH8. En España,

6 Appel, I., Verfassung und Strafe, Berlin: Duncker & Humblot, 1998, p. 18.

7 Ibid., p. 163 ss.

8 Con detalle, Merkel, G., “Incompatible Contrasts? – Preventive Detention in Germany and the European Convention on Human Rights”, German Law Journal 09 (2010) Vol. 11, p. 1046-1066; Borja Jiménez, E., “Custodia de seguridad, peligrosidad postcondena y libertad en el estado democrático de la era de la globalización: una cuestión de límites”, RGDP 18 (2012), p. 25 y ss.; Gazeas, N., “La nueva regulación de la custodia de seguridad en Alemania. Una perspectiva sobre la nueva concepción derivada de las sentencias del Tribunal Europeo de Derechos Humanos y del Tribunal Constitucional alemán”, en E. Demetrio Crespo (Dir.) & M. Maroto Calatayud (Coord.), Neurociencias y Derecho penal. Nuevas perspectivas en el ámbito de la culpabilidad y tratamiento jurídico-penal de la peligrosidad, Buenos Aires et al.: BdeF & Edisofer, 2013, p. 629-650 (a su vez con múltiples referencias recientes de la doctrina

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por añadidura, y dado que el texto constitucional prevé en su articulado (Art. 25.2 CE) expresamente la finalidad de la reeducación y reinserción so-cial, las limitaciones constitucionales son aún más amplias. Si la libertad vi-gilada posterior al cumplimiento de la pena para delincuentes imputables presenta ya dudas de constitucionalidad9, la regulación de la custodia de se-guridad que preveía el Anteproyecto de Reforma del Código penal del año 2012 era claramente inadmisible desde la perspectiva de los Derechos Funda-mentales10. Por su parte, la de la cadena perpetua o “prisión permanente revi-sable”, que contemplaba el anteproyecto mencionado y mantiene el del año 2013, no lo es menos11. La imparable evolución del “populismo punitivo”12, sin embargo, está detrás de los fenómenos legislativos a los que hago refe-

alemana); Ziffer, P., “Begriff der Strafe und Sicherungsverwahrung”, en G. Freund et al. (Hg.), Grundlagen und Dogmatik des gesamten Strafrechtssystems. Festscrift für Wolfgang Frisch zum 70. Geburtstag, Berlin: Duncker & Humblot, 2013, p.1087-1090.

9 García Rivas, N., “La libertad vigilada y el derecho penal de la peligrosidad”, RGDP 16 (2011), p. 1-27, 23; Marco Francia, P. (2012), La libertad vigilada, Trabajo Final de Máster (inédito), p. 59.

10 Vid. al respecto la motivación de la propuesta de supresión de dicha regulación efectuada por un grupo de autores, entre los que me encuentro, en Acale Sánchez, M. et al., “Custodia de seguridad: Arts. 96.2, 101, 102.3 y 103.2 CP”, en F.J. Álvarez García (Dir.) & J. Dopico Gómez-Aller (Coord.), Estudio crítico sobre el anteproyecto de reforma penal de 2012, Valencia: Tirant lo Blanch, 2013, p. 395-402 e infra II.5.

11 Curiosamente la propia Exposición de Motivos del Anteproyecto viene a reconocer la inhumanidad del sistema legal vigente hasta la fecha, que no prevé una revisión judicial periódica de la situación personal del penado “ni para las penas máximas de veinticinco, treinta o cuarenta años de prisión, ni para las acumulaciones de condena que pueden llegar a fijar límites incluso superiores” (p. 3), cifrando dicha inhumanidad de la pena en “la falta de un horizonte de libertad”. Sin embargo, la previsión de un sistema de revisión judicial de una pena de esta naturaleza, si bien resulta imprescindible, no basta en mi opinión para salvaguardar la constitucionalidad de una pena que queda definida ab initio como una sanción de duración indeterminada (Vid., en este sentido, Acale Sánchez, M., “Prisión permanente revisable: Arts. 31 (3 y 4), 70.4, 76.1, 78 bis, 92, 136 y concordantes en la Parte Especial”, en F.J. Álvarez García (Dir.) & J. Dopico Gómez-Aller (Coord.), Estudio crítico…, Op. cit., p. 189).

12 Vid., entre otras referencias, Herzog, F., Gesellschaftliche Unsicherheit und strafrechtliche Daseinvorsorge: Studien zur Vorverlegung des Strafrechtsschutzes in den Gefährdungsbereich, Heidelberg: v. Decker, 1991; Garland, D., La cultura del control. Crimen y orden social en la sociedad contemporáea, Barcelona: Gedisa, 2005; Observatori del Sistema Penal i els Drets Humans, El populismo punitivo, Barcelona: Quaderns de Bsarcelona, 2005; Llobet, J., “La actualidad del pensamiento de Beccaria”, en F. Velásquez Velásquez et al.

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rencia, cuya justificación pasa paradójicamente por “acabar con el Derecho penal, sustituyéndolo por un instrumento de control que está libre de las premisas de partida de aquél”13.

3. Antes de responder a la pregunta clave acerca de cómo determinan los Derechos Fundamentales el Derecho penal del Estado constitucional (al que nos hemos referido en líneas generales hasta ahora) debe quedar cons-tancia de que el proceso de expansión del Derecho penal, ya abundantemen-te denunciado por la doctrina, y la relajación de las garantías asociado al mismo14, cuya expresión más grosera ha quedado simbolizada en el fatídico “derecho penal del enemigo”15, no ha dejado inalterado ni el Derecho penal legislado, ni su aplicación jurisprudencial. Más bien al contrario, en el caso español, la doctrina ha detectado excesos claros en materia de prisión pro-visional, cumplimiento de la pena y criminalización de actos de expresión, entre otros16. Especialmente significativa resulta en este sentido la llamada Doctrina Parot, como, pese a la polémica suscitada, reflejan con bastante clari-dad los argumentos empleados por la Gran Sala del TEDH en su Sentencia de 21.X.2013 (que viene a ratificar el pronunciamiento anterior de 10.07.2012) en materia de legalidad y libertad, derechos que se declaran vulnerados según la interpretación efectuada de los Arts. 5 y 7 del CEDH17. Pues bien, frente a

(Coord.), Derecho penal y crítica al poder punitivo del Estado. Libro Homenaje a Nodier Agudelo Betancur, Bogotá: Ibánez et al, 2013, p. 255-270, 258 ss.

13 Acale Sánchez, M., Medición de la respuesta punitiva y Estado de Derecho, Cizur Menor (Navarra): Aranzadi, 2010, p. 330.

14 Por todos, Silva Sánchez, J.Mª, La expansión del Derecho penal. Aspectos de la Política criminal en las sociedades postindustriales, 3. ed., Buenos Aires et al.: BdeF & Edisofer, 2011.

15 Por todos, M. Cancio Melia & C. Gómez Jara Díez (Eds.), Derecho Penal del enemigo. El discurso penal de la exclusión (Vol. I y II), Buenos Aires et al.: BdeF & Edisofer, 2006.

16 Rodríguez Montañés, T. “Expansión del Derecho penal y límites constitucionales”, en JC. Carbonell Mateu et al. (Dir.)/Mª L. Cuerda Arnau (Coord.), Constitución, Derechos Fundamentales y Sistema penal. Semblanzas y Estudios con motivo del setenta aniversario del Profesor Tomás Salvador Vives Antón, Valencia: Tirant lo Blanch, pags.1660 ss.

17 Cfr.: Alcácer Guirao, R., “La ‘Doctrina Parot’ ante Estrasburgo: del Río Prada c. España (STEDH 10.07.2012, nº 42750/09). Consideraciones sobre la aplicación retroactiva de la Jurisprudencia y la ejecución de las sentencias del TEDH”, REDC, nº 43, 2012, p. 929-952; Muñoz Clares, J., “Sobre la llamada ‘Doctrina Parot’”, RGDP 18 (2012), p. 1-18; García Amado, J.A, “Sobre algunas consecuencias de la Sentencia del TEDH en el caso Del Río Prada contra España: irretroactividad de la Jurisprudencia penal desfavorable y cambios en las fuentes de producción del Derecho penal”, El Cronista del Estado Social y Democrático

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esta tendencia hay que recordar permanentemente que los límites a cualquier interpretación o/y justificación de la actuación del legislador se encuentran en el catálogo de Derechos Fundamentales y Libertades Públicas consagra-dos en la Carta Magna, en virtud de los cuales habría que enfatizar que no cualquier Derecho penal es posible desde la perspectiva de la legitimidad constitucional.

Dicho esto, según la propia doctrina del Tribunal Constitucional el contenido de los Derechos Fundamentales delimita la habilitación legal para sancionar imponiendo una condena penal (STC 110/2000, de 05 de mayo, FJ 5, entre otras). Los Derechos Fundamentales limitan tanto al legislador penal, como al juez penal. En cuanto al primero, una amplia doctrina constitucional ha ido definiendo en España una serie de criterios que han de ser tenidos en cuenta, de tal suerte que parece haberse asentado al menos una idea clara: la libertad de configuración del legislador penal encuentra su límite en el contenido esencial de los Derechos Fundamentales. En segundo lugar, en el marco del re-curso de amparo, el Tribunal Constitucional ha ejercido y ejerce un control de la conformidad constitucional acerca de la interpretación y aplicación de las leyes penales por los tribunales. Más concretamente en la STC 110/2000, de 05 de mayo, pueden extraerse varios criterios de incompatibilidad tales como el desconocimiento del contenido -o haz de garantías– constitucionalmente protegido, falta de habilitación legal para la restricción del derecho por interpretación extensiva de la norma, y reacción desproporcionada frente al acto ilícito18.

En particular, en la materia que nos ocupa, se podrían ver afectados, p.e, el derecho a la integridad física y moral, el derecho a la intimidad, el de-recho a la libertad ambulatoria y la propia dignidad humana (vulnerada, en

de Derecho 41 (2014), p. 54-63. Matiza adecuadamente Alcácer (2012) que el TEDH (refiriéndose en este caso a la STEDH de 10.07.2012) no introduce en realidad novedades en su jurisprudencia, sino que es coherente con su línea de argumentación previa, atenta desde una perspectiva material y flexible a la verdadera protección que ofrece el Art. 7 CEDH en función de si la decisión del órgano judicial supone una alteración en el quantum de la pena impuesta (p. 938-939). Esta sería, a su vez, la razón (de fondo) por la que el TEDH termina incluyendo la garantía de irretroactividad de la jurisprudencia desfavorable en el ámbito del derecho a la legalidad del Art. 7 CEDH, que se hace depender de “la garantía nuclear de la previsibilidad”, de modo que, “sólo cuando el cambio jurisprudencial introducido con posterioridad a los hechos resultara imprevisible para el ciudadano, resultará vulnerado el derecho” (p. 942).

18 Rodríguez Montañés, T., “Expansión…”, Op. cit., p. 1667.

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su caso, por infringir la prohibición de la imposición de tratos inhumanos y degradantes)19.

ii – el cOntrOl de la PeligrOsidad en el derechO Penal de estadO de derechO

1. El derecho penal ha tenido que vérselas desde siempre con el proble-ma de la peligrosidad y el fantasma de la inocuización con el que se lo relacio-na instintivamente se remonta al menos al famoso Programa de la Universi-dad de Marburgo de 1882 de Franz von Liszt20. Algunas de las declaraciones contenidas en este último acerca del delincuente incorregible21 han permitido trazar una infame línea histórica (en una especie de “continuidad estructu-ral”) que llegaría hasta el “derecho penal del enemigo”22. Pero en los últimos tiempos parece haber adquirido una especial relevancia político-criminal la cuestión específica de cómo tratar al delincuente imputable peligroso de cri-minalidad grave23, fenómeno al que desde luego no es ajena la alarma social

19 Cfr., por todos, Armaza Armaza, E.J., El tratamiento penal del delincuente imputable peligroso, Granada: Comares, 2013, p. 157 ss.

20 Von Liszt, F., La idea de fin en el Derecho penal, Granada: Comares, 1995 (Introducción y nota biográfica de JM. Zugaldía Espinar; traducción de C. Pérez del Valle), p. 83 ss.

21 Ibidem.: “La lucha enérgica contra la delincuencia habitual es una de las tareas más urgentes de la actualidad. Del mismo modo que un miembro enfermo contagia a todo el organismo, la célula cancerosa del delincuente habitual, en rápido crecimiento, se extiende cada vez más intensamente en nuestra ida social” (p. 83-84). “La sociedad ha de protegerse frente a los sujetos incorregibles. Sin embargo, si nosotros no queremos decapitar ni ahorcar, y no podemos deportar, únicamente nos queda la cadena perpetua(o, en su caso, por un tiempo indeterminado)” (p. 86).

22 Vid.: Muñoz Conde, F., “La herencia de Franz von Liszt”, RP 27 (2011), p. 159-174, 161, 172, quien subraya las contradicciones a la que conduce en el pensamiento de este influyente autor la distinción metodológica efectuada por él entre el hecho como presupuesto de la pena y el autor como objeto de la medida de la pena (p. 165), que termina redundando (como en el constructo del “derecho penal del enemigo”) en dos derechos penales, uno para el ciudadano “normal” y otro para el “proletariado de la criminalidad” (p. 165); Ib., Edmund Mezger y el Derecho penal de su tiempo. Estudios sobre el Derecho penal en el Nacionalsocialismo, Valencia: Tirant lo Blanch, 2002, p. 35 ss.

23 Vid., entre otras referencias, Silva Sánchez, J.Mª, “El retorno a la inocuización. El caso de las reacciones jurídico-penales frente a los delincuentes sexuales violentos”, en L.A. Arroyo Zapatero & I. Berdugo Gómez de la Torre (Dir.), Homenaje al Dr. Marino Barbero Santos. In Memoriam. Vol. I, Cuenca: Ediciones UCLM & Ediciones USAL, p. 699-710; Kunz, K.L., “”Gefährliche” Rechtsverbrecher und ihre Sanktionierung”, en J. Arnold et al. (Hg.),

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generada por los medios de comunicación24 a partir de casos aislados que no justifican la necesidad de cambios legislativos. Estos últimos obedecerían más bien a lo que se ha llamado “la obsesión por la seguridad”, que junto al desencanto sobre las posibilidades de la intervención resocializadora sobre el delincuente conformarían la base ideológica del nuevo discurso25. Si esto pu-diera verificarse, de aquí podrían derivarse costes iusfundamentales claros vinculados a los programas político-criminales de recrudecimiento punitivo generados como consecuencia de intereses puramente políticos o económicos a partir de una irracional sensibilización de la opinión pública26. Más global-mente la revivificación de la discusión sobre la peligrosidad se ha puesto en relación con la aparición de los medios de comunicación de alcance mundial, el desarrollo y perfeccionamiento de nuevas formas de responder ante la ac-tividad delictiva, y el interés por la efectiva protección de los bienes jurídicos más importantes27.

2. No obstante, los estudios actuales en el ámbito de la psicología crimi-nal ya han abandonado el término “peligrosidad”, que guarda una estrecha relación con las ciencias del comportamiento y la criminología, por conside-rar que adolece de una serie de defectos que lo hacen científicamente invia-

Menschengerechtes Strafrecht. Festschrift für Albin Eser zum 70.Geburtstag, München: Beck, 2005, p. 1375-1392; Sanz Morán, A.J., “De nuevo sobre el tratamiento del delincuente habitual peligroso”, en F. Bueno Arús et al. (Dir.), Derecho penal y Criminología como fundamento de la Política Criminal. Estudios en Homenaje al Profesor Alfonso Serrano Gómez, Madrid: Dykinson, 2006, p.1085-1101; Robles Planas, R., ‘Sexual Predators’. Estrategias y límites del Derecho penal de la peligrosidad”, InDret 4/2007, p. 1-25; Armaza Armaza, E.J., El tratamiento penal…, Op. cit., passim.

24 Vid.: Díez Ripollés, J.L., La racionalidad de las leyes penales, Madrid: Trotta, 2003, p. 25, quien advierte una “directa relación entre actitudes punitivas elevadas y el contacto con medios de comunicación que prestan especial atención a la delincuencia, en especial si realizan un trato sensacionalista de ella y preconizan dureza frente al crimen”.

25 Silva Sánchez, J. Mª, “El retorno a la inocuización…”, Op. cit., p. 701.

26 Vid., p.e., en este sentido, Sánchez Lázaro, F.G., “Alarma social y Derecho penal”, en C.Mª Romeo Casabona & F.G. Sánchez Lázaro (Ed.) & E.J. Armaza Armaza (Coord.), La adaptación del Derecho penal al desarrollo social y tecnológico, Granada: Comares, 2010, p. 53-76, quien pone de relieve acertadamente que el fenómeno de la irracionalidad legislativa que se genera a partir de la manipulación de la opinión pública genera costes iusfundamentales en términos de las correspondientes intervenciones instrumentales de aseguramiento normativo a través, p.e, del endurecimiento de penas, medidas de seguridad o debilitamiento de las posiciones procesales.

27 Armaza Armaza, E.J., El tratamiento penal…, Op. cit., p. 1 ss., (p. 3).

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ble, tales como p.e su escasa capacidad predictiva, de modo que se trabaja con un nuevo concepto llamado “riesgo de violencia”28.

Se entiende por “delincuente peligroso”, por una parte, un delincuente con riesgo de reincidir y, por otra, uno que ya ha cometido un delito grave29. Sin embargo, no es posible asociar sin más el delincuente habitual peligroso al delincuente violento, aunque es este último el que más repercusión tiene en la opinión pública. Así p.e. se cree erróneamente que la tasa de reinciden-cia es mayor en el delincuente sexual, cuando realmente no es así30. Otro pro-blema adicional es que estudios recientes realizados por neurocientíficos han revelado que, a diferencia del resto de la población, los criminales violentos y, en general, las personas con elevada agresividad, padecen con frecuencia diversos déficit cerebrales en el área prefrontal y del córtex órbito frontal y cingular anterior, así como en el córtex temporal y en las regiones límbicas, que afectan todas ellas al control de los estados afectivos y emocionales31.

Cabe formular la pregunta acerca de cómo llega el concepto “lombro-siano” de peligrosidad, sustentado inicialmente en la patología mental cró-nica e incorregible, al concepto operativo de peligrosidad existente en el CP, tanto en el ámbito de las medidas de seguridad (uno de cuyos presupuestos ex art. 95.1 CP es “que del hecho y de las circunstancias personales del suje-to pueda deducirse un pronóstico de comportamiento futuro que revele la probabilidad de comisión de nuevos delitos”), como de la suspensión de la ejecución de la pena privativa de libertad no superior a dos años (en cuya resolución ex art. 80.1 CP los jueces y tribunales deben atender fundamen-talmente a la peligrosidad criminal del sujeto, así como a la existencia de otros procedimientos penales contra éste), por citar dos ejemplos. A juicio de Andrés-Pueyo a este manejo legal de la peligrosidad subyace una idea sim-plificada sobre la inmutabilidad o incorregibilidad del sujeto peligroso, que

28 Andrés-Pueyo, A., “Peligrosidad criminal: análisis crítico de un concepto polisémico”, en E. Demetrio Crespo (Dir.) & M. Maroto Calatayud (Coord.), Neurociencias y Derecho penal. Nuevas perspectivas en el ámbito de la culpabilidad y tratamiento jurídico-penal de la peligrosidad, Buenos Aires et al.: BdeF & Edisofer, 2013, p. 484.

29 Ibid., p. 486.

30 Ibid., p. 488.

31 Merkel, G. & Roth, G., “Freiheitsgefühl, Schuld und Strafe”, en K.J. Grün & M. Friedman & G. Roth (edts.), Entmoralisierung des Rechts. Maβstäbe der Hirnforschung für das Strafrecht, Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, p. 68.

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hace pensar que puede volver a delinquir32. Idea ésta, la de la inmutabilidad, también científicamente fuera de lugar. En general, las bases para un “juicio de peligrosidad” – según el citado autor – son tres: naturaleza del delito, biografía (trayectoria criminal y desajuste social) y patologías mentales con-comitantes33.

3. Aunque las soluciones en el derecho comparado son muy diversas, en España el CP 1995 estableció un sistema de medidas de seguridad cuya duración no podía exceder de lo que hubiera durado la pena de ser conside-rado el sujeto culpable en los casos de inimputabilidad, con la variante del sistema vicarial (de acuerdo a lo establecido en los arts. 99 y 104 CP) para los casos de semiimputabilidad. Es evidente que el problema no siempre explici-tado es de carácter conceptual, cual es la diferenciación entre pena y medida de seguridad, así como el verdadero papel que corresponde a las medidas en el sistema de consecuencias jurídicas del delito34.

Según este esquema cuando no sea posible castigar con pena al autor de un hecho antijurídico por no alcanzar determinadas condiciones psíquicas que según el modelo usual regla-excepción lo hacen posible, sin necesidad de entrar ahora en las diferentes teorías que buscan una explicación al funda-mento material de la culpabilidad, debe recurrirse, en su caso, a la imposición de una medida de seguridad. Esta última deberá estar rodeada de una serie de garantías ineludibles en un Estado de Derecho, para lo cual son básicos, a mi modo de ver, tres principios: el carácter post-delictual de la medida, el criterio de la peligrosidad criminal y la limitación temporal. Estos principios fueron acogidos con acierto en el Código penal de 1995, si bien un sector doctrinal se ha manifestado tradicionalmente en contra del mencionado en último lugar.

32 Andrés-Pueyo, A., “Peligrosidad criminal:…”, Op. cit., p. 491

33 Ibid., p. 493.

34 Cfr., entre otras referencias, Jorge Barreiro, A., Las medidas de seguridad en el Derecho español. un estudio de la Ley de peligrosidad y rehabilitación social de 1970 y de la doctrina de la Sala de Apelación de peligrosidad, Madrid: Civitas, 1976; Terradillos Basoco, Juan Mª, Peligrosidad social y Estado de Derecho, Madrid: Akal, 1981; Romeo Casabona, Carlos Mª, Peligrosidad y Derecho penal preventivo, Barcelona Bosch, 1986; Sanz Morán, A. J., Las medidas de corrección y de seguridad en el Derecho penal, Valladolid: Lex Nova, 2003; Frisch, W., “Las medidas de corrección y seguridad en el sistema de consecuencias jurídicas del Derecho penal”, InDret 3/2007, p. 1-52; Urruela Mora, A., Las medidas de seguridad y reinserción social en la actualidad, Granada: Comares, 2009.

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Pues bien, el Proyecto de reforma del Código Penal del año 2013 se suma a dicho sector, lo que puede verse ya en la Exposición de Motivos en la que se dice que “se abandona definitivamente la idea de que las medidas de seguridad no puedan resultar más graves que las penas aplicables al delito cometido” con la fundamentación de que “las medidas de seguridad deben ser proporcionadas, no sólo a la gravedad del hecho cometido, sino también a la de aquéllos que se prevea que pudiera llegar a cometer y, por tanto, a su peligrosidad”, sin que se llegue a advertir de qué modo se puede compensar algo que aún no se ha producido ni precisar la manera en la que se llevará a cabo dicho juicio de peligrosidad que, visto desde la perspectiva de hechos que aún no han tenido lugar, lo convierte en uno de carácter pre-delictual35. Eliminar la limitación temporal no supone en todo caso “la definitiva consa-gración de un sistema dualista” sino que se trata más bien de una solución de carácter defensista36, sin perder de vista que las medidas de seguridad en la práctica no se diferencian sustancialmente de las penas en cuanto a su carga aflictiva (como, por cierto, ya ha argumentado el TEDH)37.

35 Sobre las técnicas existentes para formular un pronóstico de peligrosidad cfr.: Vives Antón, T.S., “Métodos de determinación de la peligrosidad”, en Ibid., La libertad como pretexto, Valencia: Tirant lo Blanch, 2005, p. 17-43; Looney, J.W., “Neuroscience´s new techniques for evaluating future dangerousness: are we returning to Lombroso´s biological criminality?”, UALR L. Rev. 301 (2009-2010), p. 301-314.

36 Sobre la crisis y el sentido actual de la distinción entre monismo y dualismo cfr. Quintero Olivares, G., “Monismo y dualismo. Culpables y peligrosos”, en E. Demetrio Crespo (Dir.)/M. Maroto Calatayud (Coord.), Neurociencias y Derecho penal. Nuevas perspectivas en el ámbito de la culpabilidad y tratamiento jurídico-penal de la peligrosidad, Buenos Aires et al.: BdeF & Edisofer, p. 651-667, quien concluye que “la cuestión hoy no es determinar si el sistema penal se adscribe a un modelo dualista o transita hacia el monismo, sino algo más grave y profundo: si el sistema penal está usando alternativamente o a la vez soluciones propias del derecho penal del hecho y de la culpabilidad junto con reacciones propias de las ideas de peligrosidad y defensa social, con una clara inclinación en pro de estas últimas” (p. 667). En el mismo sentido advierte JA. Sanz Morán (2006, cit. nota 23) que “más que posiciones “monistas” o “dualistas” stricto sensu, se defienden distintos planteamientos en orden a la adecuada articulación de las relaciones entre penas y medidas” (p. 1088).

37 Vid., en este sentido, Ziffer, P., „Begriff der Strafe und Sicherungsverwahrung“, en G. Freund et al. (Hg.), Grundlagen und Dogmatik des gesamten Strafrechtssystems. Festscrift für Wolfgang Frisch zum 70. Geburtstag, Berlin: Duncker & Humblot, 2013, p. 1080, quien advierte, por otro lado, que la piedra de toque de una diferenciación seria entre pena y medida se halla en la realidad de la ejecución, de modo que, desde esta perspectiva, la legitimación de un sistema de sanciones de doble vía estaría estrechamente relacionado con la multiplicación de las posibilidades de salir en libertad (p. 1083).

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Pero, por otra vía, la peligrosidad se ha ido introduciendo poco a poco en el sistema por la vía de incrementar el rigor punitivo, apartándose en al-guna medida, como ya se dijo antes, del modelo del derecho penal del hecho en función de la gravedad de la conducta38. Pues bien, estos desarrollos, a los que ya me he referido al comienzo de la exposición, están detrás de las nue-vas medidas de control post-penitenciario de la peligrosidad de delincuentes imputables como la libertad vigilada o la custodia de seguridad, que pueden entrar en colisión o directamente ser incompatibles con principios básicos de la legitimación del castigo en el Estado constitucional, tales como el principio de proporcionalidad o el de culpabilidad39.

4. Entre las medidas de control de la peligrosidad no privativas de li-bertad del delincuente imputable ocupa un lugar destacado la libertad vigi-lada, que fue introducida en nuestro ordenamiento mediante LO 5/2010, de 22 de junio y consiste en el sometimiento del condenado a control judicial a través del cumplimiento por su parte de una o varias de las medidas, tales como la obligación de estar siempre localizable, enumeradas en las letras a) a k) del art. 106.1 CP40. En efecto, según lo establecido en el apartado 2 de este artículo, “sin perjuicio de lo establecido en el artículo 105, el Juez o Tribunal deberá imponer en la sentencia la medida de libertad vigilada para su cum-plimiento posterior a la pena privativa de libertad impuesta siempre que así lo disponga de manera expresa este Código”. La selección del legislador a este respecto no es casual, sino que, en correspondencia indisimulada con el derecho penal de autor, se dirige frente a quienes en el imaginario colectivo aparecen como “los más peligrosos” entre los peligrosos. Así el código penal

38 Sobre este círculo de problemas, Vid.: Demetrio Crespo, E., “El principio de culpabilidad: ¿un Derecho Fundamental en la Unión Europea?”, en L. Mª. Díez Picazo/A. Nieto Martín (Coord.), Los Derechos Fundamentales en el Derecho penal europeo, Cizur Menor (Navarra): Aranzadi, 2010, p. 371-388.

39 Cfr.: Armaza Armaza, E. J., El tratamiento…, Op. cit., p. 139 ss.

40 Cfr., entre otras referencias, Acale Sánchez, M., “Libertad vigilada: Arts. 106, 192 y 468 CP”, en F.J. Álvarez García & JL. González Cussac (Dir.), Consideraciones a propósito del Proyecto de Ley de 2009 de modificación del Código Penal, Valencia: Tirant lo Blanch, 2010, p. 151-157; García Albero, R.M, “La nueva medida de seguridad de libertad vigilada”, Revista Aranzadi Doctrinal 6 (2010), p. 183-196; García Rivas, N., “La libertad vigilada…”, Op. cit., p. 1-27; Salat Pascual, M., “Libertad vigilada: regulación en derecho comparado y realidad normativa en España”, RGDP 17 (2012), p. 1-41; Rodríguez Magariños, F.G., La nueva medida de seguridad postdelictual de libertad vigilada. Especial referencia a los sistemas de control telemático, Valencia: Tirant lo Blanch, 2012.

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prevé su imposición en el artículo 192.1 a los condenados a pena de prisión por uno o más delitos comprendidos en el Título VIII (Delitos contra la vida e indemnidad sexuales) con una duración de cinco a diez años, si alguno de los delitos fuera grave, y de uno a cinco años, si se trata de uno o más delitos me-nos graves; y en el artículo 579.3 a los condenados a pena grave privativa de libertad por uno o más delitos comprendidos en el Capítulo VII (De las organi-zaciones y grupos terroristas y de los delitos de terrorismo) del Título XXII (Delitos contra el orden público) con una duración de cinco a diez años, y de uno a cinco años si la pena privativa de libertad fuera menos grave. Esta normativa ha sido vista como la consagración de un derecho penal de víctimas indetermi-nadas y futuribles sobre la base de una mera “peligrosidad social ex ante”41.

5. La custodia de seguridad (Sicherungsverwahrung) fue introducida en el Derecho penal alemán en el año 193342. En España el Anteproyecto de re-forma del CP de 11.10.2012 contemplaba una regulación de esta institución, en contra de la cual cabía esgrimir al menos los siguientes parámetros valo-rativos43:

a) Legitimidad/ilegitimidad del castigo y delimitación del Derecho penal con el Derecho de policía. La “custodia de seguridad” es el ejemplo paradigmático del

41 Acale Sánchez, M., “Libertad vigilada:…”, Op. cit., p.156.

42 Vid., entre otras referencias, Alex, M., Nachträgliche Sicherungsverwahrung. Ein rechtsstaatliches und kriminalpolitisches Debakel, 2. Aufl., Holzkirchen: Feliz, 2013; Conradi, F., Die Sicherungsverwahrung – Ausdruck einer zunehmenden Sicherheitsorientierung im Strafrecht? Die Entwicklung der Sicherungsverwahrung im Kontext des Spannungsverhältnisses von Freiheit und Sicherheit, Frankfurt am Main: PL Acad. Research, 2013; Kinzig, J., Die Legalbewährung gefährlicher Rückfalltäter. Zugleich ein Beitrag zur Entwicklung des Rechts der Sicherungsverwahrung, Berlin: Duncker & Humblot, 2008; Mushoff, T., Strafe – Maßregel – Sicherungsverwahrung. Eine kritische Untersuchung über das Verhältnis von Schuld und Prävention, Frankfurt am Main: Peter Lang, 2008; Gracia Martín, L., “Sobre la legitimidad de las medidas de seguridad contra delincuentes imputables peligrosos en el Estado de Derecho”, en C. García Valdés et al. (Coord.), Estudios penales en homenaje a Enrique Gimbernat, Tomo I, Madrid: Edisofer, 2008, p. 975-1003; Cano Paños, M.A, “El marco jurídico y criminológico de la custodia de seguridad (Sicherungsverwahrung) en el derecho penal alemán”, CPC 91 (2007), p. 205-250; Sánchez Lázaro, F. G., “Un problema de peligrosidad postdelictual: Reflexiones sobre las posibilidades y límites de la custodia de seguridad”, RP 17 (2006), p. 142-165, así como la bibliografía citada supra (nota 8).

43 Así lo expuse el 31.01.2013 en la ponencia presentada en las Jornadas para el análisis del Anteproyecto de reforma penal de 11 de octubre de 2012 organizadas por la Universidad Carlos III de Madrid.

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llamado “derecho penal del enemigo”, entendiendo por tal uno que trata a determinadas personas, no como tales, sino como meras fuentes de peligro44. Constituye, por tanto, una anomalía en el Derecho penal del Estado (constitu-cional) de Derecho que obedece a una intromisión de éste último en el ámbito propio del “Derecho de policía”.

b) La arquitectura del sistema de sanciones. La prolongación del castigo mediante medidas post-penitenciarias de prevención de la peligrosidad des-naturaliza la arquitectura del sistema de sanciones en el modelo del Derecho penal del Estado de Derecho por la vía de hacer “desplomar” la diferencia-ción entre culpabilidad/pena – peligrosidad postdelictual/medida, y con ella, la función garantista básica atribuida a la culpabilidad por el hecho en el Derecho penal del hecho. Esta última consiste justamente en servir de límite a la intervención penal en función de la gravedad de lo injusto cometido que se puede atribuir de modo personal a su autor.

c) La doctrina constitucional sobre el principio ne bis in ídem. En España, la imposición cumulativa/consecutiva de penas y medidas de seguridad a la misma persona por los mimos hechos puede considerarse, según una línea de Jurisprudencia del Tribunal Constitucional en esta materia (SSTC 23/1986, de 14 de febrero FJ 1º; 21/1987, de 19 de febrero, FJ 1º), violatoria del prin-cipio non bis in idem”45. Obsérvese que no se trata aquí, como en el sistema vicarial previsto para casos de semi-imputabilidad, del cumplimiento de una medida, que se abona para el de la pena, con posibilidad de suspender la ejecución de la pena si con ello se ponen en peligro los efectos conseguidos

44 Vid., por todos, Jakobs, G., “Terroristen als Personen im Recht?”, ZStW, 117, 2005/4, p. 839-851, 847: “Hält man sich von solchen Extremen fern, so geht es um das Erreichbare, um das praktisch Optimale, was heißt, das Feindstrafrecht sei auf das Erforderliche zu beschranken... Aber was ist erforderlich? Zunächst muß dem Terroristen dasjenige Recht entzogen werden, das er mißbrauchlich für seine Planungen einsetzt, also insbesondere das Recht auf Verhaltensfreiheit. Insoweit verhält es sich nicht anders als bei der Sicherungsverwahrung,...”.

45 Vid., con más detalle, Requejo Rodríguez, P., “Peligrosidad y Constitución”, InDret 3/2008, p. 1-23, 13 ss., quien hace alusión además a la STC 24/1993 de 24.02, así como al ATC 83/1994, de 14.03, como punto de arranque de una línea argumentativa que al desvincular el sentido y fundamento de la medida de seguridad (orientada a la prevención de la peligrosidad) y el de la pena (orientada a la compensación de la culpabilidad), podría dar cobertura a soluciones legislativas más próximas a las acogidas por otros ordenamientos jurídicos europeos en el sentido de acumular penas y medidas sin quiebra del principio non bis in ídem (p. 15 ss., 18).

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a través de aquella (art. 99 CP). La presunta variación del fundamento, que primero parece ser la culpabilidad para sorprendentemente convertirse en uno distinto, la peligrosidad, en un segundo momento destinado a posibilitar la prolongación del internamiento, es simplemente un “fraude de etiquetas”.

d) La doctrina del TEDH. El caso de Alemania p.e es muy aleccionador. El Bundesverfassungsgericht se ha visto obligado a rectificar (en sentencia de 04.05.2011) su propia Jurisprudencia anterior (sentencia de 05.02.2004), como consecuencia de la STEDH de 17.12.2009 (caso M. v. Alemania), que declaró que la regulación alemana de la custodia de seguridad vulneraba los artícu-los 5.1 y 7.1 del CEDH. Ahora el BVfG sí ha ejercido el control constitucional que cabía esperar, elevando incluso los requisitos y límites necesarios para una nueva regulación más allá de lo exigido por el TEDH46. Dicha normativa debería contemplar y respetar toda una serie de principios, tales como el de individualización, motivación, separación o distanciamiento, ultima ratio y minimización, protección y asistencia jurídica, así como control o revisión una vez al año, al objeto de que quede fuera de toda consideración una fi-nalidad de carácter meramente inocuizador. Por otro lado, la STEDH James, Wells and Lee v. the United Kingdom, de 18 de septiembre de 2012, condenó por unanimidad al gobierno británico por permitir la imposición de “condenas indeterminadas para la protección de la ciudadanía”, y por la falta de un análisis realista de los medios necesarios para su adecuada implementación, hacien-do inviable la resocialización de quienes son sometidos a ella.

Esto evidenciaba que la regulación propuesta era inconstitucional y no superaría los estándares marcados por el TEDH toda vez que en virtud del art. 10.2 CE “las normas relativas a los derechos fundamentales y a las liber-tades que la Constitución reconoce se interpretarán de conformidad con la Declaración Universal de los Derechos Humanos y los tratados y acuerdos internacionales sobre las mismas materias suscritos por España”47. Aun cuan-do se considerara que la custodia de seguridad no es por sí misma (concep-tualmente) contraria a la dignidad humana y se contemplara el problema de fondo desde la perspectiva de un estado de necesidad se alcanzaría la misma conclusión. En efecto, la ponderación de intereses correspondiente entre los derechos fundamentales de la persona que se podrían ver afectados (arts. 15,

46 Vid. Gazeas, N., “La nueva regulación…”, Op. cit., p. 636 y ss.

47 Vid. más ampliamente en Acale Sánchez, M. et al., “Custodia de seguridad: Arts. 96.2, 101, 102.3 y 103.2 CP”, en F.J. Álvarez García (Dir.) & J. Dopico Gómez-Aller (Coord.), Op. cit., p. 35 y ss.

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17.1, 25.1 CE) y la protección de potenciales víctimas frente al delincuente peligroso se resolvería en el sentido de considerar un mal considerablemente mayor el que resulta de la vulneración de los primeros, lo que sería, a su vez, una consecuencia lógica del principio de prohibición de exceso en el Derecho penal del Estado de Derecho48.

iii – cOnclusiÓn

El modelo de Derecho penal del Estado constitucional de Derecho no puede doblegarse, ni quedar desdibujado en sus límites y principios configu-radores tampoco cuando se trata de abordar el problema de la peligrosidad postdelictual (se refiera ésta a inimputables, semiimputables, o imputables). Al hacerlo quedaría “fuera de juego”, conduciendo a vulnerar derechos fun-damentales y principios garantistas definitorios del mismo como consecuen-cia de la desnaturalización del modelo antes mencionado, que quedaría fácil-mente “contagiado” por rasgos más propios de un “derecho penal de autor”, cuando no del modernamente calificado como “derecho penal del enemigo”.

Esto no significa ignorar ni minusvalorar el problema, sino solo afirmar que la prolongación más o menos indefinida del castigo (sea con pena o con medida de seguridad) no es la solución al mismo, como tampoco lo sería una mera remisión al internamiento de carácter civil en las constelaciones pertinentes49, máxime cuando en los sistemas actuales se parte de adicionar medidas a penas privativas de libertad ya por si solas extremadamente largas y contrarias a cualquier lógica resocializadora. Orientación esta última, por cierto, que el Art. 25.2 CE no sólo atribuye a las medidas de seguridad, sino también, a las penas privativas de libertad. Importante sería en este sentido buscar una solución de distribución equilibrada de las cargas que no prime unilateralmente la seguridad y la retribución sobre la libertad y el principio de humanidad.

48 En este sentido, Gracia Martín, L., “Sobre la legitimidad…”, Op. cit., p. 997.

49 Sobre los inconvenientes Vid., p.e, Sanz Morán, A.J, “De nuevo…”, Op. cit., p. 1091; Requejo Rodríguez, P., “Peligrosidad…”, Op. cit., p. 20.

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Doutrina nacional

93 Atribuição de Responsabilidade na Criminalidade Empresarial: das Teorias Tradicionais aos Modernos Programas de Compliance

(Artur de Brito Gueiros Souza)

123 Gestão Fraudulenta e Operação Irregular de Instituição Financeira (Artigos 4º e 16 da Lei nº 7.492/1986): Sentido e Distinção

(Luciano Feldens e Altamar Garcia Mendes)

135 A Realização do Tipo Como Pedra Angular da Teoria do Crime. Elementos para o Abandono do Conceito Pré-Típico de Ação e de Suas Funções

(Fabio Roberto D’Avila)

165 Compliance e Prevenção à de Lavagem de Dinheiro: sobre os Reflexos da Lei nº 12.683/2012 no Mercado de Seguros

(Giovani Agostini Saavedra)

181 Problemas Especiais de Autoria e de Participação no Âmbito do Direito Penal Secundário: Exame da Compatibilidade entre “Domínio da Organização” (Organisationsherrschaft) e Criminalidade Corporativa

(Raquel Lima Scalcon)

211 Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica e a Tutela do Meio Ambiente na Sociedade do Risco: Abordagem Crítica sobre os Delineamentos da Culpabilidade Empresarial e o Sistema da Dupla Imputação

(Marcelo Marcante)

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atribuiçãO de resPOnsabilidade na criMinalidade eMPresarial: das

teOrias tradiciOnais aOs MOdernOs PrOgraMas de comPliance

artur de Brito GueiroS Souza*

* Procurador Regional da República, Professor de Direito Penal da UERJ, Doutor em Direito Penal pela USP.

RESUMO: O trabalho tem por objetivo a análise das teorias que pro-curam fundamentar a responsabilidade dos dirigentes e funcioná-rios de empresas pelos crimes cometidos em seu nome e interesse. São abordadas as teorias tradicionais, bem como as modernas cons-truções científicas, como as teorias do domínio do fato, dos delitos de infração de dever, da autorregulação regulada e os programas de compliance.ABSTRACT: The paper has the aims to analyze the theories that seek to justify the liability of officers and employees of companies for crimes committed in their name and interest. Traditional theories are discussed, as well as modern scientific constructions, such as the theories of the “control over the act”, “crimes of violation of duty” and “enforced self-regulation and compliance programs”.PALAVRAS-CHAVE: Direito penal econômico; responsabilidade penal dos dirigentes; teorias. KEYWORDS: Corporate crimes; liabitity of officers; theories.SUMÁRIO: Introdução; 1 Modelos teóricos tradicionais; 1.1 Teoria formal-objetiva; 1.2 Teoria material-objetiva; 1.3 Teoria subjetivo--material; 1.4 Apreciação crítica; 2 Teoria da instigação-autoria; 3 Te-oria da coautoria delitiva; 4 Teorias do domínio do fato; 4.1 Domínio funcional do fato; 4.2 Domínio da organização; 4.3 Domínio sobre a fonte de perigo; 4.4 Apreciação crítica; 5 Delitos de infração de dever; 6 A autorregulação regulada e os programas de compliance.

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intrOduçãO

Para o direito penal econômico1, não existem dificuldades na imputa-ção da qualidade de autor àquele que, agindo diretamente no interesse ou benefício de uma pessoa jurídica, executa uma infração penal. Isso porque, na criminalidade empresarial2, há a “visibilidade” da ação do executor imediato, justamente por ele se encontrar à frente da atividade de exploração de bens ou serviços, em regra atuando com plena responsabilidade penal.

Entretanto, não raro, há a concorrência ou mesmo a emanação de “or-dem” – ou a abstenção de uma “contraordem” – para delinquir, por parte de pessoas que se encontram nos escalões superiores da estrutura organizacio-nal da pessoa jurídica, ou seja, por parte de agentes que detêm o controle ou posição de mando. Portanto, os agentes que se encontram em níveis interme-diários ou na cúpula da empresa devem responder pelo fato delituoso como coautores (mediatos) ou partícipes? Quedariam, eles, impunes?

É certo que tais indagações não são meramente teóricas. Elas têm ine-quívoco alcance prático, notadamente para aqueles que atuam na persecução

1 Em sentido restrito, direito penal econômico compreende o conjunto de normas que reforçam, com a ameaça penal, a intervenção do Estado na ordem econômica. Por sua vez, direito penal econômico em sentido amplo consiste no conjunto de normas penais que regulam toda a cadeia de produção, fabricação, circulação e consumo de bens e serviço, ou, nas palavras de Klaus Tiedemann, todo o acontecer econômico (Cf. SOUZA, Artur de Brito Gueiros. Da criminologia à política criminal. Direito penal econômico e o novo direito penal. In: Inovações no direito penal econômico. Contribuições criminológicas, político-criminais e dogmáticas. ______. ESMPU: Brasília, 2011, p. 120). Segundo lecionado por Tiedemann, o conceito amplo de direito penal econômico se desprendeu do conceito restrito justamente por conta do incremento da atividade empresarial. Verbis: “La ampliación sigue el critério tan criminológico como penal de que la ejecución de los hechos ocurre mediante una empresa econômica o a favor de una empresa econômica (‘corporate crime’, ‘derecho penal de la empresa’)” (TIEDEMANN, Claus. Derecho penal y nuevas formas de criminalidad. Trad. Manuel Abanto Vásquez. Grijley: Lima, p. 3 – grifos do original).

2 Criminalidade empresarial é uma expressão genérica que abrange, segundo Bernd Schünemann, os crimes econômicos cometidos por intermédio de uma pessoa jurídica. Para aquele doutrinador, a criminalidade de empresa (Unternehmenskriminalität) não se confundiria com a criminalidade na empresa (Betriebskriminalität), isto é, os crimes cometidos dentro ou contra a própria empresa, na medida em que, neste último caso, as regras tradicionais do direito penal se prestariam a solucionar a atribuição de responsabilidade penal (cf. SCHÜNEMANN, Bernd. Cuestiones básicas de dogmática jurídico-penal y de política criminal acerca de la criminalidad de empresa. Trad. Daniela Brückner e Lascurain Sánchez. In: Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, t. 41, Fasc. 2, p. 529-530, 1988).

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penal dos crimes empresariais. Nesse sentido, observa-se que a atribuição de responsabilidades aos estratos superiores torna-se mais difícil quando a in-fração é perpetrada no âmbito das grandes e complexas corporações, muitas delas de nível transnacional, em que o iter criminis esconde-se em um labirin-to burocrático. Isso é bem evidente em crimes como a gestão fraudulenta ou temerária de instituição financeira, corrupção de funcionários públicos na-cionais ou estrangeiros, lavagem de dinheiro, sonegação fiscal, entre outros.

A doutrina tem envidados esforços para superar as dificuldades ora apresentadas. Tradicionalmente, o ponto de partida para a elucidação da au-toria e participação nos crimes empresariais provém do direito penal clássico ou nuclear3, isto é, pela dogmática do concurso de agentes. Contudo, outras construções doutrinárias, como a teoria da instigação-autoria, a teoria da coautoria delitiva, as teorias do domínio e dos delitos de infração de dever, objetivam contribuir para esse fim. Por outro lado, não podem ser despreza-dos, na atualidade, os aportes relativos às estratégias da autorregulação re-gulada das empresas, cujo coração compreende os programas de compliance4.

O objetivo maior de toda essa discussão é o de evitar os efeitos nega-tivos daquilo que chamam de “irresponsabilidade organizada”5 – isto é, evi-tar lacunas de impunidade dos criminosos do colarinho branco. No entanto, cumpre atentar para que não ocorra o efeito inverso, ou seja, a indevida atri-buição de responsabilidade penal coletiva – ou objetiva – dos que intervêm no âmbito da pessoa jurídica.

Deve-se, pois, enfrentar a presente questão com parâmetros adequa-dos aos princípios básicos do direito penal, a começar pelos princípios da legalidade, da culpabilidade e da individualização da responsabilidade dos integrantes do ente moral6.

3 Sobre as distinções entre direito penal clássico ou nuclear e direito penal econômico ou novo direito penal, vide: SOUZA, Artur de Brito Gueiros. Op. cit., p. 118.

4 Compliance é vocábulo da língua inglesa que pode ser traduzível por “cumprimento, atendimento, obediência” (Cf. GOYOS JR., Durval de Noronha. Noronha’s Legal Dictionary. 5. ed. São Paulo: Observador Legal, 2003. p. 86).

5 Cf. MUÑOZ CONDE, Francisco. Problemas de autoría y participación en el derecho penal económico, o ¿cómo imputar a título de autores a las personas que sin realizar acciones ejecutivas, deciden la realización de un delito en el ámbito de la delincuencia económica empresarial? Revista Penal, Barcelona, n. 9, p. 74, 2002.

6 Além das dificuldades de imputação de responsabilidade penal, o direito penal econômico desafia os estudiosos com questões relativas a bens jurídicos supraindividuais ou coletivos

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Todavia, é preciso esclarecer ao leitor que, dada a magnitude do tema – bem como as limitações de espaço –, só se pode proceder a um “recorte” das discussões pertinentes ao assunto. Esclarece-se, ainda, que, quando se fala de “empresa”, considera-se como tal o coletivo de pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados7. Empresa é, em síntese, a estrutura organizada voltada à obtenção de lucros que opera no marco da legalidade8.

1 MOdelOs teÓricOs tradiciOnais

A priori, os que concorrem para a mesma infração penal não possuem, necessariamente, o mesmo grau de reprovação. Divide-se, assim, a doutrina, entre aqueles que defendem uma concepção unitária (monista) ou dualista, reconhecendo-se, neste último caso, a distinção entre os que respondem pelo crime a título de autor ou a título de partícipe. Alude-se, ainda, à hipótese de um monismo temperado, transigindo-se com as duas correntes.

Nesses termos, como bem sublinhado por Jescheck e Weigend, os pro-blemas do concurso de pessoas pressupõem, basicamente, duas vias de solu-ção: ou bem se adota um conceito monista (ou unitário) de autor ou procede--se à diferenciação entre as formas de colaboração, segundo a importância da

e correspondente utilização de delitos de perigo abstrato; técnicas especiais de tipificação (leis penais em branco e elementos normativos do tipo) e correspondente erro de tipo ou de proibição; responsabilidade penal da pessoa jurídica; sanção adequada ao delinquente econômico etc. (Cf. SOUZA, Artur de Brito Gueiros. Op. cit., p. 119. No mesmo sentido: TIEDEMANN, Klaus. Manual de derecho penal econômico. Parte general y especial. Trad. Manuel Abanto Vásquez. Valencia: Tirant lo Blanch, 2010, passim).

7 Cf. art. 981 do Código Civil brasileiro. O art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 12.846/2013 – que cuida da responsabilidade civil e administrativa de pessoas jurídicas pela prática de atos lesivos contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira –, fornece-nos uma definição mais abrangente de “empresa”: “Aplica-se o disposto nesta lei às sociedades empresárias e às sociedades simples, personificadas ou não, independentemente da forma de organização ou modelo societário adotado, bem como a quaisquer fundações, associações de entidades ou pessoas, ou sociedades estrangeiras, que tenham sede, filial ou representação no território brasileiro, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente”.

8 Como se percebe, o trabalho não se ocupa da imputação de responsabilidade nas hipóteses de infrações praticadas por associações ou organizações criminosas, estabelecidas que são a margem do Estado de Direito e dos princípios gerais que regem a totalidade dos ordenamentos jurídicos.

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contribuição ao fato. Sendo assim, pelo conceito unitário, são autores todos que intervêm causalmente para a realização do tipo, sem atentar para o grau da conduta de cada qual para o “acontecer global”. Em razão de inúmeros inconvenientes, Jescheck e Weigend informam que a doutrina passou a re-chaçar o conceito unitário de autor, reconhecendo a distinção entre formas de colaboração (autoria e participação)9.

Como se sabe, a doutrina brasileira também distingue autor de partíci-pe, acolhendo, pois, a chamada teoria unitária temperada ou eclética. Nesse sentido,

a 1ª parte da cabeça do art. 29 do Código Penal espelha a teoria monística, mas sua parte final, bem como seus §§ 1º e 2º, além das hipóteses agravan-tes do art. 62 do CP, reconhecem a teoria dualista no tocante à dosagem da pena de cada concorrente.10

1.1 Teoria formal-objetiva

Para esta teoria, autor seria aquele que realizasse a ação executiva, a “ação principal” do delito, a ação (depois de Beling) típica. Segundo esse critério, é autor aquele que reali-za, com a própria conduta, o modelo legal do crime [...]. Nessa ordem de ideias, partícipe seria aquele que “não executa o tipo legal, mas (cuja con-duta) constitui tão só uma ação prévia ou preparatória”.11

Como se observa, cuida-se de um conceito restritivo de autor. Ou seja, somente é autor aquele que realiza a conduta definida na norma incrimina-dora. Autor é “quem realiza o verbo do tipo. O partícipe, por sua vez, concor-re de alguma forma para o delito, mas sem realizar a conduta típica; é quem realiza uma ação exterior ao tipo”12.

9 Cf. JESCHECK, H. H.; WEIGEND, Thomas. Tratado de derecho penal. Parte general. 5. ed. Trad. Olmedo Cardenete. Granada: Comares, 2002. p. 694-695. A teoria final-objetiva, também contemplada pela doutrina do direito penal, será apreciada mais adiante, por estar associada à teoria do domínio do fato.

10 Cf. SOUZA, Artur de Brito Gueiros; JAPIASSÚ, Carlos Eduardo A. Curso de direito penal. Parte geral. Rio de Janeiro: Elsevier, p. 289. Detalhadamente sobre o assunto: BATISTA, Nilo. Concurso de agentes. Uma investigação sobre os problemas da autoria e da participação no direito penal brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, passim.

11 BATISTA, Nilo. Op. cit., p. 60.

12 SOUZA, Artur de Brito Gueiros; JAPIASSÚ, Carlos Eduardo A. Op. cit., p. 292.

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Consoante lecionado por Jescheck e Weigend, apesar de suas limita-ções, deve-se aceitar o conceito restritivo de autor como ponto de partida,

puesto que descansa sobre la descripción de la acción por el tipo legal y, con ello, conecta con el punto de vista que el propio legislador ha dado a conocer, esto es, comprender bajo el concepto de autoría la conducta contenida en los tipos delictivos concretos. [...] Pero a partir de ahí esta teoría no puede sostenerse. Ciertamente, es indiscutible que posee la ventaja de la claridad, pero esta ventaja se paga demasiado cara con un formalismo basado en una rígida vinculación con el tenor literal de la Ley. Una objeción decisiva en contra de esta teoría es que no permite en absoluto abarcar a la autoria mediata y, en relación con la coautoría, sólo a aquellos coauto-res que por lo menos han realizado parcialmente el tipo.13

1.2 Teoria material-objetiva

Segundo a teoria material-objetiva,

a distinção entre autoria e participação deveria ser pesquisada sob o prisma da diferença de eficiência ou relevância causal das respectivas condutas. [...] Seu ponto de partida reside na possibilidade de perceber-se diferença de valor causal entre a atuação do autor e do partícipe.14

Ao contrário da anterior, cuida-se, no caso, do conceito extensivo de autor, visto que, concretamente, a maior ou menor relevância causal da con-tribuição do concorrente perde toda a consistência, aproximando-se de um modelo unitário de autoria, diante da equivalência valorativa de todas as condições do resultado, servindo, quando muito, para a questão da dosime-tria da pena15.

Para Jescheck e Weigend, segundo esse conceito, autor é

aquel que há cocausado el resultado típico, sin necesidad de que su aportación al hecho deba consistir en una acción típica. Según ello también el inductor y el cóm-plice serían por sí mismos autores pero la incorporación, en el marco del concepto de autor, deven ser tratadas de un modo diverso al de la autoría misma. Con ello, la inducción y la complicidad aparecen como causas de restricción de la pena.16

13 JESCHECK, H. H.; WEIGEND, Thomas. Op. cit., p. 698 – grifos do original.

14 BATISTA, Nilo. Op. cit., p. 65-66.

15 Cf. SOUZA, Artur de Brito Gueiros; JAPIASSÚ, Carlos Eduardo A. Op. cit., p. 291.

16 JESCHECK, H. H.; WEIGEND, Thomas. Op. cit., p. 699 – grifo do original.

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1.3 Teoria subjetivo-material

Objetivando mitigar a excessiva extensão proporcionada pela corrente anterior, surgiu a teoria subjetivo-material, propugnando a distinção entre autor e partícipe consoante o plano subjetivo dos agentes. Tem-se, assim, sob o aspecto fático, que autor é aquele que atua querendo o resultado como obra sua (animus auctoris), ao passo que partícipe concorre para o fato com vonta-de espírito de coadjuvante (animus socii), isto é, desejando o resultado como obra alheia17.

No caso, cuidar-se-ia de um critério intenção ou grau de afetação, ba-seada, portanto, na motivação dos intervenientes no empreendimento de-lituoso. Dessa forma, em termos práticos, “la distinción entre la autoria y la participación pasa a ser una cuestión de la determinación de la pena ampliamente alejada del tipo”18.

Segundo a melhor doutrina, a teoria subjetivo-material seria altamente problemática, por afrontar o princípio estrutural do direito penal vigente, que se compõe, precipuamente, por tipos descritos e delimitados objetiva-mente. Com a extensão da punibilidade a qualquer contribuição ao fato, di-luem-se, concretamente, as disposições legais, particularmente nos casos de crimes de mão-própria e de autoria mediata. Ademais, a fórmula da “inten-ção” ou “afetação” não forneceria uma distinção entre autoria e participação racionalmente verificável, delegando sua imputação, tão somente, à discri-cionariedade do julgador19.

1.4 Apreciação crítica

Transpostas para a criminalidade de empresa, nenhuma das teorias acima mencionadas oferece solução político-criminal satisfatória. Elas care-ceriam de critérios legítimos para a atribuição de responsabilidade, a título de autor ou partícipe, nos crimes de empresa, particularmente em razão da

17 Cf. BATISTA, Nilo. Op. cit., p. 67.

18 JESCHECK, H. H.; WEIGEND, Thomas. Op. cit., p. 699.

19 Idem, p. 700. Por sua vez, Bernd Schünemann considera “monstruosa” a teoria subjetivo-material, sendo a “artificial” distinção entre animus auctoris e animus socii como um dos “tristes exemplos” da época da prevalência do naturalismo penal, sendo o qual, diante da equiparação objetivo-causal, construíram-se critérios subjetivos que não existiam na realidade empírica (SCHÜNEMANN, Bernd. La relación entre ontologismo y normativismo. Trad. Mariana Sacher. In: ______. Obras. Santa Fe: Rubinzal, t. I, 2009. p. 201).

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dificuldade de se aceitar o caráter acessório dos que realizam ou concorrem para a infração penal de forma consciente e plenamente capaz.

Efetivamente, é certo que teoria formal-objetiva permitiria punir a títu-lo de autor o executor imediato, isto é, o integrante da pessoa jurídica situado no estrato inferior da organização, vez que é ele quem realiza pessoalmente o comportamento delituoso. Todavia, os membros dos escalões intermediários e superiores da empresa, quando muito, responderiam como meros partíci-pes, por induzimento ou instigação.

Além desse inconveniente político-criminal, cumpre agregar a circuns-tância de que muitos dos crimes econômicos exigem uma condição especial ao autor (controlador, administrador, diretor, gerente etc.), condição essa, em geral, não ostentada pelo funcionário subalterno.

Ao seu turno, a teoria material-objetiva, que propõe a punição de todos que intervêm na causalidade do fato como autores ou coautores do delito, igualmente se mostra inadequada. Isso porque não se pode ignorar que nas sociedades empresariais, especialmente nas grandes corporações, vigora o princípio da hierarquia de funções, o que gera, empiricamente, o desnivela-mento de poder entre os concorrentes.

Por fim, a teoria subjetiva, conquanto permita imputar como autor aqueles que se encontram à testa da empresa, olvida que, em geral, o execu-tor imediato é, em regra, pessoa dotada de plena capacidade de discernimen-to e vontade. Por não existir coação, é fato que o executor imediato também realiza o fato como obra sua. Isto fica bem evidente com os aportes crimino-lógicos da chamada “atitude criminal de grupo”, como bem observado por Bernd Schünemann20.

20 Cf. SCHÜNEMANN, Bernd. Cuestiones básicas..., cit., p. 530. Na seara criminológica, além dos aportes feitos por Claus Roxin e expostos adiante (cf. nota de rodapé n. 58, infra), podem, ainda, ser lembradas as leis da imitação de Gabriel Tarde, em particular as “leis” decorrentes dos fatores proximidade (os indivíduos imitam os outros na relação diretamente proporcional à intensidade dos contatos e na razão inversa da distância) e hierarquia (a imitação é feita de baixo para cima) (Cf. TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation. Paris: Félix Alcan, 1890. p. 158). Do mesmo modo, cite-se a teoria da associação diferencial, de Edwin H. Sutherland, segundo a qual o comportamento criminoso, como qualquer outro, é consequência de um processo que se desenvolve no meio de um grupo social – v.g., uma empresa –, ou seja, é algo que se produz por intermédio da interação com indivíduos que, no caso, violam determinadas normas. Sendo assim, para Sutherland, a “causa geral para o delito, em todo o agrupamento social, seria a aprendizagem” (Cf. SUTHERLAND, Edwin H.; CRESSEY,

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2 teOria da instigaçãO-autOria

Diante das insuficiências acima relatadas, outras construções doutriná-rias foram propostas, como a teoria da instigação-autoria, desenvolvida por Jorge de Figueiredo Dias, com lastro no art. 26 do Código Penal português21. Segundo aquele doutrinador, deve ser considerado autor quem, dolosamen-te, inculca no executor direto, de “modo determinante”, a decisão de cometer o ilícito22.

Dessa maneira, aquele que, em uma perspectiva tradicional, seria con-siderado “instigador”, constitui-se, segundo a teoria da instigação-autoria, o “senhor”, o “dono” ou o “dominador”, senão do ilícito típico como tal, ao menos e seguramente da “decisão do instigado de o cometer”.

Para Figueiredo Dias, essa determinação integra antecipadamente “a totalidade dos elementos constitutivos do ilícito típico e, por isso também, do conteúdo material de ilícito”. Sendo assim, conquanto se constitua “obra pes-soal do homem da frente”, o fato delituoso configura-se, igualmente, como “obra do instigador e dá ao seu contributo para o facto o caráter de correali-zação de um ilícito e não de mera ‘participação’ (externa ou ‘estrangeira’) no ilícito de outrem”23.

Leciona Susana Aires de Sousa que a teoria da instigação-autoria po-deria ser transposta para a criminalidade de empresa, suprindo-se, assim, o déficit de punição normalmente verificado nos quadros dos dirigentes que tomam decisões concretas de cometimento de crimes e as comunicam ao res-pectivo departamento incumbido de efetivá-las.

Segundo as suas palavras, [j]ulgamos que a figura da instigação-autoria pode desempenhar um papel importante e adequado no âmbito da criminalidade empresarial, designa-damente naqueles casos em que o dirigente determina o seu subordinado a

Donald R. Principles of criminology. 11th ed. New York: General Hall, 1992. p. 87). Sobre o assunto, vide as notas de rodapé ns. 60 e 81, infra.

21 Cf. verbis: “É punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda que, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução” (art. 26 do CP de Portugal).

22 Cf. DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal. Parte geral. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, v. 1, p. 797, 2007.

23 Idem, p. 800.

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uma prática criminosa. Ou seja, essa figura deve ser chamada a participar na resolução de problemas de comparticipação dos dirigentes, essencial-mente a um nível vertical, no contexto das relações hierárquicas próprias da estrutura empresarial.24

Contudo, como bem observado por Bruna Amorim Dutra, embora Figueiredo Dias assevere que a condição de autor surja em virtude do “do-mínio da decisão por parte do dirigente da estrutura organizativa”, verifica--se que, na verdade, aquele doutrinador extrai a equiparação da instigação à autoria da redação do art. 26 do Código Penal português. Portanto,

o desenvolvimento desse modelo não se origina, a rigor, da constatação de um real domínio do fato pelo superior hierárquico, mas principalmente de uma determinação legal no sentido de que também será autor aquele que cria, de forma cabal, a decisão no executor material.25

3 teOria da cOautOria delitiVa

Cuida-se de outra construção teórica voltada a superar as deficiências normativas de atribuição de responsabilidade a título de autor aos diretores ou membros de conselhos de administração de empresas. Trata-se, no caso, de contribuição formulada por Francisco Muñoz Conde26.

Desse modo, sem retroceder a um conceito “unitário de autor” – que importaria fazer “tábula rasa” dos diferentes graus de responsabilidade ou relegar a questão ao plano da dosimetria da pena dos participantes da in-fração penal –, aquele autor assevera que a dogmática deve se esforçar para fundamentar a inclusão, na condição de autor, das pessoas que, sem realizar ações executivas, decidem ou controlam a realização do delito, tanto na esfera da delinquência organizada como na empresarial, sejam por fatos relaciona-dos com a “responsabilidade pelo produto”, por “danos ambientais” ou por

24 SOUSA, Susana Aires de. A responsabilidade criminal do dirigente: algumas considerações acerca da autoria e comparticipação no contexto empresarial. In: ANDRADE, Manuel da Costa; ANTUNES, Maria João; ______ (Org.). Estudos em homenagem ao Prof. Dr. Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra, v. II, 2009, p. 1020 – grifos do original.

25 Cf. DUTRA, Bruna Martins Amorim. A imputação penal dos dirigentes de estruturas organizadas de poder. Teoria do domínio da organização. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Direito. UERJ. Rio de Janeiro, 2012. p. 90-91.

26 MUÑOZ CONDE, Francisco. Op. cit., p. 75.

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infrações “estritamente econômicas”, evitando-se, portanto, as lamentáveis “lacunas de impunidade”, tão frequentes no “mundo empresarial”27.

Partindo de aportes jurisprudenciais em casos dessa natureza, Muñoz Conde rejeita todas as construções teóricas desenvolvidas para o tema – in-clusive as que foram feitas por Roxin, infra –, considerando ser absolutamen-te possível existir, nos crimes empresariais, a hipótese da coautoria entre os integrantes da cúpula e os executores materiais da ação, mesmo quando estes são pessoas plenamente responsáveis.

Conforme suas palavras, [e]n el marco de um aparato de poder no estatal y no al margen del Derecho, como son sobre todo las empresas, y en relación con los delitos económicos que en ellas se realizan como consecuencia de decisiones tomadas en los Consejos de Admi-nistración o por los directivos de las mismas, no puede admitirse un dominio de la voluntad en virtud del aparato de poder organizado, y, por tanto, tampoco, la autoría mediata basada en este dato. En su lugar viene, pues, en consideración una (co)autoría mediata, cuando las decisiones son llevadas a cabo por un ejecutor o instrumento irresponsable; o un supuesto normal de coautoría, cuando el ejecutor es responsable, y no es un mero instrumento. De este modo podemos imputar a título de (co)autores a las personas que, sin realizar acciones ejecutivas, pero con-trolando y dominando grupos de personas, deciden la realización de un delito en el ámbito de la delincuencia organizada y empresarial.28

A tese de uma “coautoria normal” entre dirigentes e executores de de-litos no âmbito de uma estrutura empresarial – que também seria defendida por Günther Jakobs29 – esbarra na constatação de que, no âmbito de uma

27 Idem, p. 76-77. O autor cita como exemplos de criminalidade em que ocorreriam as citadas lacunas: sonegação fiscal, diversas fraudes (financeiras, de subvenções, de insolvências etc.), abuso de informações privilegiadas, lavagem de dinheiro e corrupções políticas e administrativas (Idem, p. 79-80).

28 Idem, p. 83. Jescheck e Weigend parecem partilhar de solução semelhante, verbis: “[A] través de una ‘división de roles’ que resulte más adecuada a la finalidad perseguida puede derivarse para la coautoría que una aportación al delito que formalmente no entra dentro del marca de la accíon típica es suficiente para su castigo como forma de autoría. Tan sólo deve tratarse de una parte necesaria de la ejecución del plan delictivo conjunto en el marco de una ‘division del trabajo’ llevada a cabo racionalmente” (JESCHECK, H. H.; WEIGEND, Thomas. Op. cit., p. 703 – grifo do original).

29 Nessa esteira, segundo lecionado por Bruna Dutra: “Jakobs assevera não existir um domínio superior do fato por parte do homem de trás na hipótese paradigma, vez que este, juridicamente, se encontraria no mesmo nível do executor em razão de ambos atuarem com total liberdade. Assim, não vislumbrando uma estrutura vertical sob a ótica jurídica,

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organização empresarial, há o distanciamento espaço-temporal entre os que se encontram nas extremidades opostas, mesmo em se tratando de realização de um plano delituoso.

4 teOrias dO dOMÍniO dO FatO

A teoria do domínio do fato – também conhecido como teoria objetivo--final – cuida-se de corrente doutrinária desenvolvida, essencialmente, por Claus Roxin, constituindo-se, atualmente, no principal critério adotado para a delimitação da autoria e da participação na criminalidade em geral30. De acordo com o princípio do domínio do fato, autor é quem está no “centro do acontecimento”; é aquele que, “senhor do fato”, toma as “rédeas” do crime em suas mãos, dirigindo-o de tal modo que dele depende decisivamente o “se” e o “como” da sua realização. Ou, em outros termos, autor é “aquele que controla o atuar criminoso”31.

Cumpre não olvidar que, apesar de corrigir alguns dos defeitos acima apontados, a teoria do domínio do fato não infirmou por completo a tradicio-nal teoria formal-objetiva, à exceção da problemática da autoria mediata. Isso porque o agente imputável, livre e consciente, que realiza pessoalmente as

mas tão somente uma relação fática de subordinação entre o dirigente da organização e o executor imediato, Jakobs entende que eles deveriam ser responsabilizados como coautores” (DUTRA, Bruna Martins Amorim. Op. cit., p. 72).

30 Não há consenso sobre a origem da teoria do domínio do fato. Para Jescheck e Weigend, ela teria sido fundada por Lobe em 1933 (JESCHECK, H. H.; WEIGEND, Thomas. Op. cit., p. 701). Outros consideram que a teoria do domínio final do fato de Hans Welzel (1939) seria a antecedente direta da construção de Roxin (Idem, p. 701). Nilo Batista afirma que, de fato, Welzel foi o elaborador da teoria, tendo sido, mais tarde, acolhida por Gallas e Maurach, até ser endossada e aprimorada por Roxin, Wessels, Stratenwerth e Jescheck (Cf. BATISTA, Nilo. Op. cit., p. 70). De todo modo, todos consideram que foi Claus Roxin quem aprofundou os contornos do domínio do fato, dando-lhe a feição moderna, na obra Täterschaft und Tatherrschaft, inicialmente publicada em 1963 e sucessivamente reeditada e ampliada. Vertida para a língua espanhola por Coello Contreras e Gonzáles de Murillo, a partir da 7ª edição alemã, com o título Autoria y dominio do fato en derecho penal, a teoria ganhou ampla aceitação na Espanha, Portugal, América Latina em geral, incluindo o Brasil. Anote-se, por curiosidade, que, para Xavier Pin, a ideia de domínio (domaine) como princípio reitor de responsabilidade dos dirigentes de uma empresa, já era aplicada pela Corte de Cassação da França, mesmo na ausência de expressa previsão legal, desde o final do século XIX (Cf. PIN, Xavier. Droit pénal général. 2. éd. Paris: Dalloz, p. 246-247).

31 Cf. ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. 7. ed. Trad. Coello Contreras; Gonzáles de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 2000. p. 368.

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elementares do tipo, detém, naturalmente, o controle do fato32 – cuidar-se-ia do chamado domínio da ação33.

Em sentido inverso, o concorrente que não realiza o verbo do tipo, tam-pouco controla o desenrolar do processo delitivo – tendo, assim, um compor-tamento secundário –, deve ser considerado como mero partícipe. Na esteira das lições de Juarez Cirino dos Santos, esse conjunto de ideias poderia ser assim sintetizado: “O autor domina a realização do fato típico, controlando a continuidade ou a paralisação da ação típica; o partícipe não domina a re-alização do fato típico, não tem controle sobre a continuidade ou paralisação da ação típica”34.

Consoante adiantado, a teoria do domínio do fato teria surgido dos estudos de Welzel no âmbito da teoria finalista da ação, mais especificamente para possibilitar a punição adequada ao autor mediato, ou seja, daquele que se vale de interposta pessoa para a comissão do delito. Funcionaria, portan-to, o “homem da frente” como espécie de instrumento do real autor, isto é, do “homem de trás”35. Subsequentemente, ela foi ampliada por Claus Roxin,

32 Cf. Lecionado por Jescheck e Weigend: “[L]a realización de propia mano y plenamente responsable de todos los elementos del tipo fundamenta siempre a autoria. [...] Sin embargo, el concepto de autor no se limita, tal y como sostiene la teoría objetivo-formal, a la realización de la acción típica en su riguroso sentido literal. [...] El tipo, bajo ciertos presupuestos, también puede ser cumplido por quienes en realidad no llevan a cabo una acción típica en sentido formal pero que, a pesar de ello, poseen el dominio del hecho o intervienen en el mismo” (JESCHECK, H. H.; WEIGEND, Thomas. Op. cit., p. 702).

33 Cf. verbis: “O domínio sobre a realização do tipo pode manifestar-se, primeiramente, como um domínio sobre a própria ação (Handlungsherrschaft), que é o domínio de quem realiza, em sua própria pessoa, todos os elementos de um tipo, isto é, do autor imediato” (GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do domínio do fato. Sobre a distinção entre autor e partícipe no direito penal. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 933, p. 63, 2013 – grifos do original).

34 Cf. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal. Parte geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 352.

35 Autor mediato é aquele que pratica o crime por intermédio de alguém que não detém capacidade para responder pelo delito (terceiro impunível). É aquele se vale de um instrumento. A rigor, não existe, na autoria mediata, o concurso de pessoas, mas, apenas, a figura do autor, que se vale de outrem sem responsabilidade penal. Os casos mais conhecidos de autoria mediata são: 1º) utilização de inimputáveis (vale dizer, menores de 18 anos ou pessoas com patologia mental); 2º) induzimento ao erro essencial invencível, podendo-se tratar de erro de tipo ou erro de proibição; e 3º) coação física ou moral irresistível. Ressalte- -se que a autoria mediata também é possível nos chamados crimes próprios, desde que o

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passando a fundamentar não só a punição do autor mediato, mas, também, outras situações nas quais o executor imediato opera de forma plenamen-te responsável, como ocorre na vertente do domínio da organização, abaixo analisado36.

No Brasil, essa teoria foi aceita pela doutrina37 e pela jurisprudência38, harmonizando-se com nossas leis penais39. Nesse sentido, a Reforma Penal de 1984, ao adotar a teoria finalista da ação para a solução de uma série de ques-tões da teoria do crime (v.g., o tratamento do erro jurídico-penal), abrandou, no art. 29, caput, a teoria extensiva e unitária do concurso de pessoas, teoria

agente reúna as características especiais do tipo. Entretanto, não caberia autoria mediata em situações classificáveis como delito de mão própria, ou seja, aqueles em que o tipo pressupõe que o sujeito ativo o pratique pessoalmente. Desse modo, não será possível a perpetração de falso testemunho (art. 342 do CP), por intermédio do depoimento de uma criança de 10 anos de idade (Cf. SOUZA, Artur de Brito Gueiros; JAPIASSÚ, Carlos Eduardo A. Op. cit., p. 293 e p. 296).

36 ROXIN, Claus. Autoría y domínio del hecho..., cit., p. 81 e ss.

37 Verbi gratia: JESUS, Damásio E. de. Teoria do domínio do fato no concurso de pessoas. 2. ed. São Paulo: Saraiva; PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal brasileiro. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 1; FRANCO, Alberto Silva et al. Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 1, 2001; REALE JR., Miguel. Instituições de direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009; BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, v. 1, 2009; SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal..., cit.; BATISTA, Nilo. Op. cit.

38 Cf. “Agente que não atuou na execução material dos delitos. Possibilidade de ser considerado coautor se, na empreitada criminosa concertada por prévio acordo de vontades, lhe foi incumbida atividade complementar para a obtenção da meta optata, cabendo-lhe parte do ‘domínio funcional do fato’. Divisão do trabalho que importa na responsabilidade pelo todo, independentemente de não ter o agente atuado na execução material dos crimes em sua totalidade, mas todos conducentes à realização do propósito” (TJSP, AP 179.126, 3ª C., Rel. Segurado Braz. In: Boletim IBCCrim, n. 29/1995, p. 99).

39 Cf. art. 25 da Lei nº 7.492/1986; art. 11, caput, da Lei nº 8.137/1990; art. 75 da Lei nº 8.078/1990; e art. 2º da Lei nº 9.605/1998. A propósito, a Lei nº 12.850/2013 (Lei da Organização Criminosa) dispõe: “Art. 2º Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa. Pena: reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas. [...] § 3º A pena é agravada para quem exerce o comando, individual ou coletivo, da organização criminosa, ainda que não pratique pessoalmente atos de execução” (grifos nossos).

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que vigia na redação originária do Código de 1940 (antigo art. 25), coadunan-do-se, portanto, com os aportes teóricos de Roxin e seus seguidores40.

A adoção dos aportes dogmáticos de Roxin propiciou o surgimento de importantes variantes teóricas. Para os objetivos do presente estudo, importa destacar as teorias do domínio funcional do fato, do domínio da organização e do domínio sobre a causa do resultado41.

4.1 Domínio funcional do fato

Como explanado, a teoria do domínio do fato teria surgido no fina-lismo para fundamentar a punição, a título de autor, daquele que se vale de interposta pessoa, como se fosse um instrumento, para praticar o ilícito. Entretanto, não se ignora que, muitas vezes, os concorrentes desempenham ações indispensáveis ao resultado final, de forma plenamente racional e res-ponsável42.

Para tais hipóteses, desenvolveu-se a teoria do domínio funcional do fato. Ela preconiza a punição de todos os que atuam sob o selo da divisão racional de tarefas, a título de autor, ou melhor, coautores. Isto se diferiria, de certa forma, da construção originária da teoria do domínio do fato, em que, necessariamente, ter-se-ia a figura do autor (quem controla ou realiza o tipo penal) e do partícipe (quem não controla nem realiza a conduta típica)43.

40 Nessa esteira, Juarez Cirino dos Santos assinala que o Direito brasileiro assume, em princípio, um conceito unitário de autor, mas a adoção legal de critérios de distinção entre autor e partícipe transforma, na prática judicial, o paradigma monístico em paradigma diferenciador, admitindo o emprego de teorias modernas sobre autoria e participação, como a do domínio do fato, cujos postulados são inteiramente compatíveis com a disciplina legal do Código Penal (Cf. SANTOS, Juarez Cirino dos. Op. cit., p. 353).

41 Contra a utilização prática dessa teoria, verbis: “A ideia de domínio do fato não é uma definição de autor, mas um critério reitor que deve ser concretizado não pelo juiz no caso concreto, e sim pela doutrina diante de grupos de casos. [...] No dia a dia forense, isto é, no momento de resolver se, em um caso concreto, A é autor ou mero partícipe, de nada serve afirmar ‘autor, porque tem o domínio do fato’ ou ‘partícipe, porque lhe falta o domínio do fato’” (GRECO, Luís; LEITE, Alaor. Op. cit., p. 68 – grifos do original).

42 Cf. SOUZA, Artur de Brito Gueiros; JAPIASSÚ, Carlos Eduardo A. Op. cit., p. 293.

43 Idem, p. 294. No mesmo sentido: “Se duas ou mais pessoas, partindo de uma decisão conjunta de praticar o fato, contribuem para a sua realização como um ato relevante de um delito, elas terão o domínio funcional do fato (funktionale Tatherrschaft), que fará de cada qual

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Com efeito, por intermédio do domínio funcional do fato, haverá, em casos tais, a hipótese da coautoria delitiva. Além da divisão funcional das tarefas, a figura da coautoria pressuporia a existência de um liame subjetivo entre os agentes e o domínio conjunto do acontecer criminoso. A vinculação subjetiva pode ocorrer pelo ajuste prévio entre os concorrentes acerca da di-nâmica do delito ou, ainda, pela simples consciência de atuar em conjunto44.

No tocante ao elemento objetivo do domínio funcional do fato, observa Bruna Dutra que Claus Roxin considera que a contribuição de cada coautor não precisa, necessariamente, corresponder a um fragmento da conduta típi-ca, conquanto deva ser essencial ao fato delituoso. Todavia, aquele doutrina-dor reputa indispensável que tal aporte se dê durante a fase executiva, senão restaria afastada a configuração do domínio conjunto45.

Dessa maneira, segundo as palavras de Roxin, [a]sí, yo requiero para el coautor, si bien no la presencia en el lugar del hecho, sí al menos alguna cooperación en el momento del hecho (aun cuando sea por télefono, por radio o a través de intermediarios) que puede consistir, p. ej., en impartir o transmitir órdenes o en cubrir.46

4.2 Domínio da organização

Trata-se de outra orientação decorrente da teoria do domínio do fato47. Enquanto a construção do domínio funcional do fato pressuporia a divisão racional do trabalho numa vertente horizontal, a teoria do domínio da orga-

coautor do fato como um todo, ocorrendo aqui o que se chama de imputação recíproca” (GRECO, Luís; LEITE, Alaor. Op. cit., p. 65).

44 Cf. SOUZA, Artur de Brito Gueiros; JAPIASSÚ, Carlos Eduardo A. Op. cit., p. 294. Registre- -se que a inexistência de vínculo anímico entre os sujeitos, embora elida a coautoria, poderá caracterizar a figura da autoria colateral. Nesse caso, cada agente somente será responsável pelos atos criminosos por ele praticados individualmente, sob pena de afronta ao princípio da culpabilidade (Idem, p. 294).

45 Cf. DUTRA, Bruna Martins Amorim. Op. cit., p. 68.

46 ROXIN, Claus. Autoría y domínio del hecho..., cit., p. 735-736.

47 Em sentido contrário, Luís Greco e Alaor Leite entendem que domínio do fato não se confundiria com domínio da organização, pois este seria, na verdade, “uma entre várias outras concretizações da ideia reitora de que autor do delito é a figura central do acontecer típico” (Cf. GRECO, Luís; LEITE, Alaor. Op. cit., p. 65).

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nização – também chamada de domínio por aparato organizado de poder – pressuporia uma noção similar, mas sob a perspectiva vertical48.

Cuida-se, portanto, de aporte doutrinário elaborado para fundamentar a punição, a título de autor mediato, daquele ou daqueles que se encontram no ápice ou nas instâncias intermediárias retransmissoras de uma ordem para delinquir, em uma estrutura organizada de poder à margem do Estado de Direito. Em tais hipóteses, observa-se que quem se encontra na “ponta final” da cadeia de comando, e realiza a conduta de maneira plenamente res-ponsável, deve ser considerado autor imediato49.

Segundo Claus Roxin, esta teoria – desenvolvida, em 1963, a partir do célebre julgamento de Aldof Eichmann, em Jerusalém/Israel – se apoia na tese de que, em uma organização delitiva, os homens de trás (Hintermänner), que ordenam delitos com poder autônomo, podem, sob certos requisitos, ser responsabilizados como autores mediatos, ainda quando os executores da decisão sejam, ao mesmo tempo, castigados como autores plenamente res-ponsáveis. Para Roxin, em linguagem coloquial, aqueles homens de trás po-deriam ser designados “delinquentes de escritório” (Schreibtischtäter)50.

Conquanto alvo de críticas51, essa construção jurídica ganhou adeptos nas décadas seguintes, tanto na doutrina alemã quanto na estrangeira, tendo sido admitida pela jurisprudência a partir da decisão do Superior Tribunal Fe-deral (BGH) que, em acórdão da sua 5ª Turma, condenou como autores me-diatos os ex-dirigentes da antiga República Democrática da Alemanha (RDA),

48 Cf. SOUZA, Artur de Brito Gueiros; JAPIASSÚ, Carlos Eduardo A. Op. cit., p. 294.

49 P. ex, em organizações fascistas ou ditatoriais, bem assim em organizações criminosas de rígida cadeia de comando, como a Cosa Nostra ítalo-americana, pouco importa se a ordem emanada do ditador ou do capo seja cumprida pelo subalterno “A” ou “B”. Caso o executor imediato, plenamente responsável, recuse-se a cumprir a “ordem”, outro fará em seu lugar. Diante disso, não seria correto atribuir aos integrantes da cúpula ou dos escalões intermediários de tal aparelho criminoso, a condição de mero instigador ou cúmplice.

50 Cf. ROXIN, Claus. El dominio de organización como forma independiente de autoria mediata. Trad. Justa Gómez Navajas. Revista de Estudos de la Justicia, Faculdad de Derecho, Universidad do Chile, n. 7, p. 11, 2006.

51 Cf. AMBOS, Kai. Domínio do fato pelo domínio da vontade em virtude de aparatos organizados de poder. Uma valoração crítica e ulteriores contribuições. Trad. Fernandes de Pontes. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 37, 2002, passim.

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bem como em tribunais de outros países, como Argentina52 e Peru53, além de Cortes supranacionais, como o próprio Tribunal Penal Internacional (TPI)54.

Consoante lecionado por Claus Roxin, as condições para a incidên-cia da punição, como autor mediato, no âmbito do domínio da organização (Organisationsherrschaft), seriam: 1º) o poder de mando; 2º) a desvinculação do ordenamento jurídico; 3º) a fungibilidade do executor imediato; e 4º) a considerável disposição do executor para atuar55.

Com relação ao poder de mando (Anordnungsgewalt), aquele doutri-nador observa que somente pode ser autor mediato quem, dentro de uma organização rigidamente dirigida, tem “autoridad para dar ordenes y la ejerce para causar realizaciones del tipo. [...] De ahí que puedan encontrarse en los distintos niveles de la jerarquía de mando varios autores mediatos en cadena”56.

A desvinculação do ordenamento jurídico (Rechtsgelöstheit) do aparato de poder como condição necessária para a incidência do domínio da orga-nização é, talvez, o mais polêmico dos requisitos firmados por Roxin. Em uma primeira formulação, cuidava-se, de fato, de estruturas à margem de um axiológico Estado de Direito, visto que, mesmo em ditaduras ou Estados fascistas, há um “vigente” ordenamento jurídico, muito embora desrespeito-so de garantias fundamentais do cidadão. Todavia, mais recentemente, esse requisito ganhou nova feição, passando Roxin a tomá-lo no sentido da des-vinculação do Direito não em toda a sua extensão, mas “sólo en el marco de los tipos penales realizados por él [aparato]”57.

52 Cf. a condenação, na Câmara Nacional de Apelações de Buenos Aires, em 1985, como autores mediatos, dos comandantes das forças militares que, na sangrenta ditadura portenha, ordenaram a prática dos crimes de sequestro, desaparecimento de pessoas, torturas e homicídios, por meio do aparelho de poder, contra milhares de pessoas.

53 Cf. a condenação, pela Sala Penal Especial da Corte Suprema de Justiça do Peru, de 2009, entre outros, do ex-Presidente Aberto Fujimori, como autor mediato, em razão do domínio da organização, pelos massacres de La Cantuta e Barrios Altos, que acarretou a morte de dezenas de supostos “subversivos” daquele governo.

54 Cf. arts. 25 e 28 do Estatuto do Tribunal Penal Internacional. Criticando a utilização da teoria do domínio da organização no âmbito do TPI: WEIGEND, Thomas. Perpetration through an Organization. The Unexpected Career of a German Legal Concept. Journal of International Criminal Justice, n. 9, p. 91-111, 2011.

55 Cf. ROXIN, Claus. El dominio de organización..., cit., p. 16-20.

56 Idem, p. 16.

57 Idem, p. 16.

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A fungibilidade ou substitutibilidade dos que podem executar o ato final no aparato de poder constitui-se uma das características essenciais do domínio da organização. Segundo Roxin,

[l]a ejecución de órdenes del hombre de atrás [...] se asegura, en gran parte, pre-cisamente porque muchos ejecutores potenciales están disponibles, de modo que la negativa u otro fallo de un individuo no puede impedir la realización del tipo.58

O último requisito – a elevada predisposição para executar o fato – não constava da formulação originária da teoria do domínio da organização, tendo sido incorporado por Roxin sob influência dos estudos de Schroeder e Heinrich e, em especial, após o mencionado julgamento do BGH. Para ele, a “disposição” ou “inclinação ao fato delituoso” em nada interferiria na liberda-de ou na responsabilidade penal do autor imediato, constituindo, juntamente com os três requisitos supracitados, “un aspecto del dominio de organizacion”59. No caso específico, esse aspecto consiste na percepção de que aquele que está na ponta final de um aparelho organizado de poder – diferentemente do verificado em um autor individual isolado – submete-se a “múltiplas in-fluências criminológicas”60. De toda sorte, isso não exculpa nem reduz sua responsabilidade.

58 Idem, p. 17. Segundo o próprio Roxin, esse requisito também não estaria isento de críticas doutrinárias. Com efeito, um primeiro grupo de críticos observa que “hipotéticas ações de terceiros”, isto é, a possibilidade de recorrer a outros executores, não poderia fundamentar um “controle” daquele que atua de fato. Porém, Roxin replica afirmando que uma visão tão “individualista” estreitaria o fato delituoso a “duas pessoas”, não correspondendo, pois, à essência do domínio da organização. Segundo ele, “[e]l instrumento es la organización y, para su eficaz funcionamiento, la presencia de muchos posibles ejecutores no es una hipótesis, sino una realidad que asegura el resultado”. Por outro flanco, argui-se que “especialistas imprescindíveis” não seriam fungíveis enquanto “executores imediatos”. Não obstante, para Roxin, com tal grau de especificidade, abandona-se a figura do domínio da organização, ao qual se ajusta o “automatismo” do aparato e, por regra geral, a pluralidade de delitos que ocorrem segundo esse esquema criminoso. Esta circunstância denota, para Roxin, que nem todos os delitos provocados por uma organização fundamentam, por si só, uma autoria mediata do que ordenam. Por fim, critica-se o requisito da fungibilidade na medida em que, em tese, o executor imediato pode “abster-se de agir” deixando, por exemplo, escapar a vítima de um homicídio “encomendado” pela cúpula da organização. A seu turno, Claus Roxin rebate este último argumento afirmando que, se, de fato, ocorre um “insucesso” com este, simplesmente restará evidenciado “un fracaso de la organización, uma ‘avería’” (Idem, p. 17-18).

59 Idem, p. 19.

60 Essas influências empíricas seriam: 1º) a “tendência a adaptação” de quem integra uma organização; 2º) a “integração ao aparato” pode conduzir a uma “participação irreflexiva”

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Ademais, a disposição incondicionada ao fato do “homem da frente”, associada à sua fungibilidade, constitui-se, para Roxin, em um elemento es-sencial para a confiança que têm os “homens de trás” do aparato, no sentido de que suas ordens serão executadas61.

4.3 Domínio sobre a fonte de perigo

Trata-se de construção desenvolvida, precipuamente, por Bernd Schü-nemann, com o objetivo de superar as limitações das teorias formais do dever jurídico de agir nos crimes de omissão imprópria62.

Segundo o autor, a concepção da responsabilidade por omissão teria se originado dos estudos de Feuerbach e, em seguida, de autores do século XIX, tendo por denominador comum a fixação da responsabilidade por omissão como uma “questão de causalidade” daquele que, com seu agir preceden-te, criou uma situação de perigo para o bem jurídico (ingerência). No início do século XX, foram agregadas as fórmulas – importadas do “pensamento civilista” – que impunham o dever de agir por força de lei ou do contrato, formando-se a tríade da posição de garantidor adotada em diversos diplo-mas legais63.

Todavia, segundo Schünemann, esse modelo não pode ser aceito sem reservas, pois

la lesión de un deber jurídico extrapenal no puede ya desde el principio fundamen-tar una equiparación penal; la categoría del contrato civil es, en el mejor de los casos, un fenómeno que acompaña a la asunción de una función de protección, que es en realidad la única penalmente relevante; y lo mismo rige para la injerencia, donde lo relevante es la tarea de supervisión de un foco de perigro para la cual la

em ações que um indivíduo não integrado jamais cometeria; 3º) o empenho “excessivo” em prestar serviço, seja por “ambição”, “desejo de notoriedade”, “convicção ideológica” ou, ainda, por conta de “impulsos criminais sádicos ou de natureza similar”; 4º) uma resignação subjetiva no sentido de que, “se eu não faço, outro fará no meu lugar”; e 5º) a incidência de um “temor”, próximo do domínio pela coação, consistente em que, em caso de “negativa no cumprimento da ordem”, ocorrerá a “perda do posto”, o “menosprezo pelos colegas”, ou a crença ingênua na impunidade porque a ordem foi dada “pelos de cima” (Idem, p. 20). Sobre o assunto, vide as notas de rodapé ns. 20 e 81.

61 Idem, p. 20.

62 Cf. SCHÜNEMANN, Bernd. Fundamento y límites de los delitos de omisión impropia. Trad. Cuello Contreras y González de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 2009, passim.

63 Idem, p. 262-265.

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simples causalidad de una actuación previa no constituye un requisito suficiente, aparte de la contradicción de que a diferencia de lo que ocurre en las categorías de las leyes y de los contratos, en la injerencia no se puede identificar una lesión de un deber especial meta-penal anterior al juicio de equiparación penal.64

Desse modo, no entender do autor, a solução jurídico-penal para a res-ponsabilidade por omissão decorreria da teoria do domínio do fato:

Si en el delito de omisión impropia, el resultado es imputado del mismo modo que si el autor lo hubiera producido mediante una conducta activa, entonces la posición del autor de la omisión en el suceso que condujo al resultado debe ser comparable a la posición del autor que realiza la conduta comisiva y estar al mismo nivel.65

Percebe-se, pois, que, para Schünemann, a relevância penal da omis-são, ou melhor, a “posição de garantidor” se dá quando – e somente quando – o autor da omissão exerça um domínio sobre a causa potencial do resulta-do. Em sentido inverso, quando o agente não detém o domínio sobre o foco de perigo de lesão ao bem jurídico, não poderá ser considerado autor66.

Segundo Schünemann, portanto, essa fórmula deve ser aplicada, entre outros casos, para a atribuição de responsabilidade aos dirigentes de uma empresa. Conforme suas palavras, “sólo la teoría del dominio puede llevar a una fundamentación convincente y al mismo tiempo a una limitación adecuada de su posición de garante”67.

4.4 Apreciação crítica

Registre-se que, apesar das ressalvas da doutrina majoritária68, a juris-prudência dos tribunais tem sido no sentido da utilização da teoria do domí-nio do fato, nas suas diversas vertentes, para a atribuição de responsabilida-de na criminalidade de empresa.

64 Cf. SCHÜNEMANN, Bernd. El llamado delito de omisión impropria o la comisión por omisión. In: Estudios penales en homenaje a Enrique Gimbernart. In: GARCÍA VALDÉS, Carlos et al. (Coord.). Madrid: Edisofer, t. II, 2008. p. 1611.

65 Idem, p. 1612.

66 Idem, p. 1621-1622.

67 Idem, p. 1623.

68 Cf. SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Teoria del deito y derecho penal económico-empresarial. In: ______; LLINARES, Fernando Miró (Dir.). La teoría del delito en la práctica penal económica. Madrid: La Ley, 2013. p. 54.

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Nesse sentido, o Superior Tribunal Federal Alemão (BGH) admitiu a aplicação da teoria do domínio do fato não somente aos aparelhos de poder à margem do Estado de Direito, como, igualmente, para os delitos perpetrados por organizações formalmente estabelecidas. Conforme exposto pelo próprio Roxin, o BGH afirmou que “[t]ambién el problema de la responsabilidad en el fun-cionamiento de empresas se puede solucionar así, y ha procedido, asimismo, de este modo em una serie de sentencias posteriores”69.

No Brasil, além de prevalecer na jurisprudência dos Tribunais Regio-nais Federais70 e de existir precedente no Superior Tribunal de Justiça71, a teo-ria do domínio do fato foi acolhida pelo Supremo Tribunal Federal, por oca-sião do julgamento da Ação Penal nº 470 – Caso Mensalão. De fato, a maioria dos ministros da Corte Suprema posicionou-se de forma favorável à utiliza-

69 Cf. ROXIN, Claus. El dominio de organización..., cit., p. 21. Nas palavras do BGH, “hay casos en los que, pese a un intermediario que actúa con completa responsabilidad, la intervención del hombre de atrás conduce casi de forma automática a la realización del tipo perseguido por el mismo. [...] Si en tales supuestos el hombre de atrás actúa conociendo estas circunstancias, y en especial aprovecha la disposición incondicionada del ejecutor inmediato para realizar el tipo, y el hombre de atrás quiere el resultado como consecuencia de su propia actuación, entonces es autor en la forma de autoría mediata. Él posee el dominio del hecho. [...] También el problema de la responsabilidad en las empresas económicas puede solucionarse de esta forma” (BGHSt 40, p. 270, apud DUTRA, Bruna Martins Amorim. Op. cit., p. 113).

70 No sentido do texto: TRF 4ª R.: ACR 0035146-81.2009.404.7100, 8ª T., Rel. Paulo Afonso Brum Vaz, DJ 11.01.2012; ACR 2004.71.09.000848-9, 8ª T., Rel. Paulo Afonso Brum Vaz, DJ 25.06.2010; ACR 2005.71.07.002580-2, 8ª T., Rel. Paulo Afonso Brum Vaz, DJ 13.01.2010; ACR 2002.71.08.009788-2, 8ª T., Relª Cláudia Cristina Cristofani, DJ 05.08.2009; ACR 2002.71.09.002280-5, 8ª T., Rel. Paulo Afonso Brum Vaz, DJ 15.07.2009; ACR 2006.71.13.001153-3, 8ª T., Rel. Paulo Afonso Brum Vaz, DJ 10.10.2008; ACR 2005.71.00.003278-7, 8ª T., Rel. Paulo Afonso Brum Vaz, DJ 24.09.2008; ACR 2003.72.01.000914-7, 8ª T., Rel. Paulo Afonso Brum Vaz, DJ 09.07.2008; ACR 2000.72.04.001208-1, 8ª T., Rel. Paulo Afonso Brum Vaz, DJ 16.04.2008; ACR 2005.71.11.003847-4, 8ª T., Rel. Paulo Afonso Brum Vaz, DJ 26.03.2008; ACr 2000.72.04.001208-1, 8ª T., Rel. Paulo Afonso Brum Vaz, DJ 16.04.2008; ACr 2001.70.09.001504-1, 8ª T., Rel. p/o Ac. Paulo Afonso Brum Vaz, DJ 09.05.2007. TRF 3ª R.: ACr 2000.03.99.018297-4, 5ª T., Rel. André Nekatschalow, DJ 25.11.2003. TRF 2ª R.: ACr 1999.51.01.046687-8, 1ª T., Rel. Abel Gomes, DJ 21.07.2006; ACr 1996. 50.01.002232-8, 1ª T., Rel. Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, DJ 13.11.2009; ACr 2003. 50.01.007366-5, 1ª T., Rel. Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, DJ 30.06.2010.

71 No sentido do texto: STJ, REsp 946.653/RJ, 5ª T., Relª Min. Laurita Vaz, DJ 03.05.2013.

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ção daquela construção teórica no terreno da criminalidade empresarial, seja para condenar, seja para absolver os réus daquela ação penal originária72.

5 delitOs de inFraçãO de deVer

Cumpre reiterar que, para Roxin, a teoria do domínio do fato – com suas subdivisões – não poderia ser estendida para as organizações empresa-riais estruturadas dentro da legalidade. Isso porque faltariam três dos quatro requisitos acima apontados.

Conforme por ele sustentado, las empresas no trabajan por regla general desvinculadas del Derecho en tanto no se proponen desde un principio actividades criminales. Falta también la intercam-biabilidad (Austauschbarkeit) de los que están dispuestos a acciones criminales. Y tampoco se puede hablar de una disponibilidad al hecho considerablemente elevada de los miembros de la empresa porque, como muestra la realidad, la comisión de delitos económicos y contra el medio ambiente lleva consigo un considerable riesgo de punibilidad y también el riesgo de la pérdida del puesto en la empresa.73

Segundo o autor, a circunstância da teoria do domínio da organização não poder ser utilizada para os casos de criminalidade de empresa, ainda quando os superiores induzam seus subordinados a cometer ilícitos, não in-firma a existência de uma necessidade político-criminal de punir, como auto-res, os detentores de altos cargos de direção ou membros de conselhos de ad-

72 No sentido do texto, o seguinte trecho da ementa: “[...] Item II da denúncia. Quadrilha (art. 288 do CP). Associação estável e organizada, cujos membros agiam com divisão de tarefas, visando à prática de vários crimes. Procedência parcial do pedido. O extenso material probatório, sobretudo quando apreciado de forma contextualizada, demonstrou a existência de uma associação estável e organizada, cujos membros agiam com divisão de tarefas, visando à prática de delitos, como crimes contra a Administração Pública e o sistema financeiro nacional, além de lavagem de dinheiro. Essa associação estável – que atuou do final de 2002 e início de 2003 a junho de 2005, quando os fatos vieram à tona – era dividida em núcleos específicos, cada um colaborando com o todo criminoso, os quais foram denominados pela acusação de (1) núcleo político, (2) núcleo operacional, publicitário ou Marcos Valério e (3) núcleo financeiro ou Banco Rural. Tendo em vista a divisão de tarefas existente no grupo, cada agente era especialmente incumbido não de todas, mas de determinadas ações e omissões, às quais, no conjunto, eram essenciais para a satisfação dos objetivos ilícitos da associação criminosa. [...]” (STF, AP 470, Tribunal Pleno, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe 22.04.2013).

73 ROXIN, Claus. El dominio de organización..., cit., p. 21.

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ministração de sociedades empresariais, quando promovam – ou permitam promover – ações criminais no seio de suas organizações.

Dessa forma, aquele doutrinador propõe, como solução, recorrer à fi-gura jurídica por ele desenvolvida dos delitos de infração de dever (Pflichtde-likte). Deve-se esclarecer, porém, que não se trata da infração do dever decor-rente da norma penal cuja violação acarreta a imposição da sanção prevista no respectivo tipo penal.

Cuida-se, na verdade, de un deber extrapenal que no se extiende necesariamente a todos os implicados en el delito, pero que es necesaria para la realización del tipo. Se trata siempre de deberes que están antepuestos en el plano lógico a la norma y que, por lo general, se origi-nam en otras ramas jurídicas.74

O autor exemplifica essa categoria delitiva com as hipóteses dos deve-res dos funcionários públicos nos crimes contra a Administração Pública, dos deveres de sigilo exigidos a certas atividades profissionais, bem assim dos deveres inerentes ao cargo de gestão empresarial75.

Claus Roxin esclarece, ainda, que não se deve confundir a perspectiva normativa dos delitos de infração de dever com as situações empíricas de domínio, na medida em “[l]os tipos en que autoría y participación se destacan recíprocamente, no por posiciones de deber especiales, sino por el dominio del hecho, cabría calificarlos de ‘delitos de dominio’”76.

6 a autOrregulaçãO regulada e Os PrOgraMas de comPliance

Para Ulrich Sieber, os modernos programas de compliance77, bem assim as novas estratégias de autorregulação regulada – ou corregulação Estado-

74 ROXIN, Claus. Autoría y domínio del hecho..., cit., p. 387.

75 No sentido do texto: “Así p.ej. son delictos de infracción de dever los delitos de funcionarios en el ejercicio de su cargo [...], en los que sólo puede ser autor el que infrinja su deber especial derivado de una posición oficial, o [...] en el cual la infracción del deber de secreto profesional opera fundamentando la autoría. También es un delito de infracción de deber [...] el tipo de la gestión desleal [...], ya que en el mismo es presupuesto de la autoría la vulneración de un deber especial de cuidar el patrimonio” (ROXIN, Claus. Tratado de derecho penal. Parte general. Trad. Luzón Peña, García Conlledo e Vicente Remesal. Madrid: Civitas, t. I, 2006. p. 338).

76 ROXIN, Claus. Autoría y domínio del hecho..., cit., p. 388.

77 Sobre a tradução ao português da palavra compliance, vide a nota de rodapé n. 4.

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-iniciativa privada –, teriam surgido como “reação” aos “espetaculares” e “recentes” escândalos no campo da criminalidade econômica, como, por ex., os “desastres empresariais” da World-Com, Enron, Parmalat e Flowtex, que trouxeram grandes prejuízos para economia global78.

Entretanto, é certo que as providências de exigir das empresas medidas de autocontrole e de prevenção da criminalidade originaram-se, na verdade, dos aportes criminológicos de John Braithwaite. Em um instigante estudo publicado em 1982, aquele criminólogo australiano denunciava a incapaci-dade das agências estatais – no bojo das políticas de privatização e desre-gulamentação da economia – de fiscalizarem, adequadamente, as atividades das empresas que operavam tanto interna como externamente. Braithwaite advogou, portanto, a adoção daquilo que ele denominou de Enforced self- regulation79.

Segundo suas palavras, o

Estado-vigia, que precedeu ao Estado Keinesiano, era concebido como aquele em que a maior parte, tanto do remar como do pilotar, era realizado pela sociedade civil. No Estado keinesiano que o sucedeu, o Estado se en-carregava, principalmente, de remar e era deficiente em pilotar a sociedade civil. No novo Estado regulador, o mais recente nessa cronologia, sustenta--se como ideal o Estado pilotando e a sociedade civil remando.80

78 SIEBER, Ulrich. Programas de “compliance” en el derecho penal de la empresa. Una nueva concepción para controlar la criminalidad económica. Trad. Abanto Vásquez. In: ARROYO ZAPATERO, Luis; NIETO MARTÍN, Adán (Dir.). El derecho penal económico en la era compliance. Valencia: Tirant, 2013. p. 63. Os efeitos deletérios das falências das empresas chamadas de TBTF (too big to fail) tornaram-se eloquentes com a “crise” de 2008 e a quebra de “gigantes” como o Lehman Brothers e o Merril Linch (adquirido pelo Bank of America), entre outras instituições financeiras nos EUA e na Europa. Sobre o “esquema” de corrupção envolvendo a multinacional alemã Siemens, vide: KUHLEN, Lothar. Cuestiones fundamentais de “compliance” y derecho penal. In: ______; PABLO MONTIEL, Juan; URBINA GIMENO, Íñigo (Org.). Compliance y teoría del derecho penal. Madrid: Marcial Pons, 2013. p. 52 e ss.

79 BRAITHWAITE, John. Enforced self-regulation: a new strategy for corporate crime control. In: Michigan Law, v. 80, p. 1466 e ss., 1982.

80 BRAITHWAITE, John. The new regulatory state and the transformation of criminology. In: British Journal of Criminology, v. 40, p. 223, 2000. Tradução livre – grifos nossos).

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Desse modo, percebeu-se que, em muitas empresas, preponderava o “ambiente criminógeno” acima referido81. Sendo assim, distinguem-se três modelos distintos de regulação da economia:

la autorregulación procedente en exclusiva del mundo de la economia, la co-re-gulación estatal y privada y la regulación puramente estatal. Mientras que la au-torregulación en sentido estricto deja a las empresas una amplia discrecionalidad y la regulación estatal fija todas las decisiones determinantes, la co-regulación se carecteriza por el hecho de que las disposiciones estatales crean preceptos más o menos detallados o crean estructuras que estimulan la autorregulación y/o hacen vinculantes medidas de la autorregulación. Por esta razón, la co-regulación se de-nomina autorregulación regulada, una fórmula mixta o intermedia entre la autor-regulación y la regulación estatal, que se caracteriza por conceder un margen de discrecionalidad a aquellos que deben concretar el programa y por las fórmulas que emplea para estimular o presionar para su adopción.82

81 Vide as notas de rodapé ns. 20 e 60, supra. A propósito, sobre cultura de compliance como antítese da cultura da irresponsabilidade organizada ou do ambiente empresarial criminógeno, verbis: “En primer lugar, es conditio sine qua non el que en la empresa reine una cultura de cumplimiento (compliance culture), eso es, tanto trabajadores como directivos deben interiorizar la necesidad de que todo lo que sucede en la empresa, de puertas para afuera y de puertas para adentro, sea respetuoso para con el Ordenamiento jurídico. Un sistema de compliance eficaz exigiría una voluntad general de cumplimiento en todos y cada uno de los niveles empresariales. Por lo tanto, sería obligatorio el desarrollo de una ‘cultura de cumplimiento’, esto es, la interiorización por parte de todos los miembros de la empresa de la necesidad de actuar siempre conforme el Derecho así como de la utilización constante y sin reparos de los medios de asesoría, información y denuncia intraempresariales. Se habla incluso de una necesaria ‘moralización de la economía’. Sin embargo, no faltan tampoco los que, con buenos argumentos, señalan que es absolutamente imposible concebir a las empresas como un actor autónomo en el debate sobre los valores intrínsecos a las normas jurídicas, pues el único incentivo que explica la fundación y el funcionamiento de una empresa es el beneficio económico. El Derecho sería en realidad una perturbación para su programa, que no estaría orientado al código justo/injusto, sino al de beneficio/pérdida. El hecho de que éstas únicamente se concentren en la maximización de los beneficios – nada distinto esperan los socios de la gestión societaria –, junto con la cultura empresarial cortoplacista contribuirían a desleír el inicial entusiasmo en relación con la eficacia del compliance. En todo caso, lo censurable no es que las empresas sean ‘egoístas’, lo cual es en realidad legítimo y no puede ser objeto de reproche, el problema es negarlo y confiar en ellas la gestión en exclusiva de sus intereses individuales” (COCA VILA, Ivó. ¿Programas de cumplimiento como forma de autorregulación regulada? In: Criminalidad de empresa y compliance. Prevención y reacciones corporativas. SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María (Dir.). Barcelona: Atelier, 2013. p. 56 – grifos do original).

82 SIEBER, Ulrich. Op. cit., p. 77.

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No contexto da autorregulação regulada, sobreleva a imposição de programas de compliance ou de códigos de conduta – ou boa governança – para o atendimento dos objetivos e valores reconhecidos pelo poder públi-co. Em suma, denominam-se compliance como sendo as medidas mediante as quais as empresas visam a assegurar que sejam cumpridas as regras vigentes para elas e para seus funcionários, bem como que eventuais infrações sejam descobertas ou noticiadas, com a punição de seus autores83.

Diversas são as contribuições que essas novas estratégias político-cri-minais trazem ao direito penal econômico84. Contudo, considerando as finali-dades do presente trabalho – atribuição de responsabilidade na criminalida-de empresarial –, têm-se como relevantes duas consequências.

A primeira vem a ser a responsabilização da própria pessoa jurídica infratora, ante a defecção das providências de controle e a desorganização interna, consubstanciada no desatendimento do programas de compliance. No caso, há dois modelos dogmáticos para fundamentar a punição do ente moral:

Um modelo de responsabilidade por atribución y outro de responsabilidad por un hecho próprio. Una regulación legal se adscribe a uno u outro modelo en función de que la atribución de responsabilidad a la persona jurídica se produzca por una mera transferencia (adicional) a ésta de la resposabilidad originada por el hecho cometido por alguna persona física situada en la cúspide – o, en su caso, en niveles inferiores – de su entramado organizativo (Zurechnungsmodell) o bien por atri-bución de una responsabilidad propia a la persona jurídica como tal (modelo de la originäre Verbandshaftung).85

Nestes termos, inúmeras legislações têm adotado tanto o modelo de auto como de heterorresponsabilidade empresarial, ou, ainda, modelos híbridos. Citem-se, como exemplos: o Foreign Corrupt Pratices Act, de 1977, com suas

83 Cf. KUHLEN, Lothar. Op. cit., p. 51.

84 Cf. NIETO MARTÍN, Adán. Problemas fundamentales del cumplimiento normativo en el derecho penal. In: KUHLERN, Lothar; PABLO MONTIEL, Juan; URBINA GIMENO, Íñigo (Org.). Compliance y teoría del derecho penal. Madrid: Marcial Pons, 2013. p. 21 e ss.

85 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La responsabilidad penal de las personas jurídicas en derecho español. In: _____. (Dir.). Criminalidad de empresa y compliance. Prevención y reacciones corporativas. Barcelona: Atelier, 2013. p. 21 – grifos do original. No sentido do texto: TIEDEMANN, Klaus. El derecho comparado en el desarrollo del derecho penal económico. In: ARROYO ZAPATERO, Luis; NIETO MARTÍN, Adán (Dir.). El derecho penal económico en la era compliance. Valencia: Tirant, 2013. p. 38 e ss.

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sucessivas alterações; a Sarbanes-Oxley Act, de 2002; e a Dodd-Frank Act, de 2010, todos dos Estados Unidos; o Code Pénal, de 1994, e a Loi nº 1.117, de 2013, ambos da França; a Commonwealth Criminal Code Act, de 1995, da Aus-trália; o Decreto Legislativo nº 231, de 2001, da Itália; a Ley nº 20.393, de 2009, do Chile; a Bribery Act, de 2010, da Grã-Bretanha; a Ley Orgânica nº 5/2010, que introduziu o artículo 31-bis no Código Penal da Espanha; bem assim a nossa Lei nº 12.846/2013. Com exceção da lei brasileira e da lei italiana, todas as demais preveem a responsabilidade penal da pessoa jurídica ao lado da punição das pessoas físicas envolvidas nos respectivos ilícitos.

A segunda consequência das estratégias de autorregulação regulada e da adoção dos programas de compliance é a de clarificar a imputação de res-ponsabilidade, a título de autor ou coautor, aos dirigentes da pessoa jurídica que descumprem os deveres de supervisão ou de contenção dos riscos da atividade. Isto fica bem evidenciado na criminalidade empresarial relacio-nada com corrupção de funcionários públicos, lavagem de dinheiro, gestão fraudulenta ou temerária de instituição, delitos ambientais etc.

Mesmo nas hipóteses de delegação de funções de supervisão e vigilân-cia para funcionário situado no escalão intermediário da empresa (o chama-do compliance officer), o dirigente mantém a originária posição de garante86. Desse modo,

suele afirmar que la posición de garantia de los administradores tiene una doble dimensión: una dimensión ad intra, orientada a la evitación de resultados lesivos para la propia empresa, que hace del administrador un garante de protección (Bes-chützergarant); y una dimensión ad extra, orientada a la evitación de resultados lesivos que se produzcan sobre personas externas a partir de la actividad de los miembros de la propia empresa, en cuya virtud el administrador aparece como un garante de control (Sicherungs – o bien Überwachungsgarant).87

Nesse sentido, colhem-se dois exemplos recentes no nosso ordenamen-to jurídico. O primeiro provém das disposições da Lei nº 9.613/1998 – lei da lavagem de dinheiro –, com as alterações dadas pela Lei nº 12.683/2012, em

86 Cf. PRITTWITZ, Cornelius. La posición jurídica (en especial, posición de garante) de los compliance officer. Trad. Pastor Muñoz. In: KUHLER, Lothar; PABLO MONTIEL, Juan; URBINA GIMENO, Íñigo (Org.). Compliance y teoría del derecho penal. Madrid: Marcial Pons, 2013. p. 207 e ss.

87 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Deberes de vigilância y compliance empresarial. In: KUHLEN, Lothar; PABLO MONTIEL, Juan; URBINA GIMENO, Íñigo (Org.). Compliance y teoría del derecho penal. Madrid: Marcial Pons, 2013. p. 80.

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particular quando reporta a pessoas físicas e jurídicas que desempenhem ati-vidades econômicas, obrigando-as, nos termos do seu art. 10, a “adotar políti-cas, procedimentos e controles internos, compatíveis com seu porte e volume de operações, que lhes permitam atender ao disposto deste artigo e no art. 11, na forma disciplinada pelos órgãos competentes”88.

O segundo exemplo encontra-se na já mencionada Lei nº 12.846/2013 – Lei Anticorrupção –, ao prever como circunstâncias a serem levadas em consi-deração por ocasião da aplicação das sanções administrativas “a cooperação da pessoa jurídica para a apuração das infrações” e “a existência de mecanis-mos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denún-cia de irregularidades e à aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica” (art. 7º, VII e VIII, da Lei nº 12.846/2013).

88 Sobre o assunto: DE CARLI, Carla Veríssimo. Lavagem de dinheiro: ideologia da criminalização e análise do discurso. 2. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2012.

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gestãO Fraudulenta e OPeraçãO irregular de instituiçãO Financeira (artigOs 4º e 16

da lei nº 7.492/1986): sentidO e distinçãOluCiano FeldenS*

altamar GarCia mendeS**

RESUMO: Neste artigo, enfocaremos o recorrente problema acerca da indefinição doutrinária e jurisprudencial do âmbito de incidência dos delitos de gestão fraudulenta e operação irregular de instituição financeira (arts. 4º e 16 da Lei nº 7.492/1986), frequentemente justa-postos diante de uma mesma situação de fato. Para a resolução da controvérsia, propomos soluções que partem do recurso ao marco normativo (administrativo) que estrutura e justifica a existência e a diferença entre os tipos penais, o que relevará, entre outros aspectos, a insubsistência da interpretação que reconhece aplicável o delito de gestão fraudulenta às sociedades financeiras “de fato”, que atuam à margem do sistema financeiro oficial.ABSTRACT: This article focuses on the recurring problem faced when analyzing the applicability of articles 4 (fraudulent manage-ment of a financial institution) and 16 (irregular operation of a finan-cial institution) of Law 7.492/86, which are both often applied for the same situation. To solve the controversy, we propose resorting to the legal foundations (administrative law) that justify the difference between the two types of crimes mentioned above.PALAVRAS-CHAVE: Gestão fraudulenta de instituição financeira; operação irregular de instituição financeira; mercado financeiro ofi-

* Advogado-Sócio na FeldensMadruga (www.feldensmadruga.com.br), Professor de Direito Penal Econômico e Empresarial do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS, Doutor em Direito Constitucional, Mestre em Direito, Especialista em Direito Penal, Ex-Procurador da República, com atuação especializada na apuração de crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e de Lavagem de Dinheiro.

** Advogado-Sócio na FeldensMadruga (www.feldensmadruga.com.br), Ex-Chefe-Adjunto do Departamento de Fiscalização do Banco Central do Brasil – Brasília (2010 a 2011), Ex- -Gerente Regional de Fiscalização do Banco Central do Brasil para a Região Sul (1997 a 2010), Ex-Coordenador e Supervisor de Fiscalização do Bacen (1990 a 1997).

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cial; mercado marginal; sistema financeiro nacional; marco regula-tório.KEYWORDS: Fraudulent management of a financial institution; ir-regular operation of a financial institution; official financial market; irregular financial market; national financial system.SUMÁRIO: I – Objeto de estudo; II – A essência da controvérsia: mercado oficial e mercado marginal: diferentes âmbitos de controle do sistema financeiro nacional; III – A estruturação do sistema do financeiro nacional e as competências fiscalizatórias do Banco Cen-tral (Lei nº 4.595/1964); III.a) Competência privativa: a fiscalização do mercado oficial; III.b) Competência não privativa: a reação ao mercado marginal; IV – Lei nº 7.492/1986: a intensificação da tutela sobre o sistema financeiro nacional; V.a) Proteção penal ao sistema financeiro nacional: proteção sistêmica (interna) e periférica (exter-na); V.b) A incriminação de ações clandestinas ao sistema financeiro nacional (proteção periférica); Considerações conclusivas.

i – ObJetO de estudO

Aqui pretendemos atribuir sentido e estabelecer critérios que permi-tam distinguir as diferentes esferas de manifestação dos tipos penais dos arts. 4º e 16 da Lei nº 7.492/1986, o que faremos a partir do marco regulatório que lhes é subjacente. Antecipamos nossa conclusão no sentido da inaplicabili-dade do art. 4º da Lei nº 7.492/1986 às sociedades financeiras “de fato”, que atuam como, sem que verdadeiramente o sejam, instituições financeiras.

ii – a essÊncia da cOntrOVÉrsia: MercadO OFicial e MercadO Marginal: diFerentes ÂMbitOs de cOntrOle dO sisteMa FinanceirO naciOnal

A despeito da reconhecida imperfeição técnica do Projeto de Lei nº 273/19831, nem todos os problemas envolvendo a aplicabilidade da Lei

1 Origem da Lei nº 7.492/1986, o Projeto de Lei nº 273, de 01.03.1983, de autoria do Deputado Federal Nilson Gibson, sofreria um substitutivo na própria Casa Legislativa, pelo Deputado João Herculino (Diário do Congresso Nacional, 08.05.1985, p. 3971). Aprovado na Câmara (Diário do Congresso Nacional, 17.05.1985, p. 4597), recebeu nova redação, também sob a forma de Substitutivo, no âmbito Senado Federal (Diário do Congresso Nacional, 01.05.1986, p. 3056). Retornado à Câmara, o Deputado Federal João Gilberto propôs a aprovação do substitutivo apresentado pelo Senado, e foi explícito: “O projeto sai imperfeito e reclamará a curto prazo nova legislação para revisar alguns de seus pontos. Infelizmente, não nos é dada mais a possibilidade de correção pelo estágio em que se encontra o processo legislativo. O projeto tem levantado uma correta discussão na comunidade jurídica do País que poderá

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nº 7.492/1986 hão de ser debitados ao legislador. A controvérsia jurídica sob exame, a envolver a relação entre dois dispositivos da Lei nº 7.492/1986 (arts. 4º e 16), é exemplo disso: o déficit é de interpretação, de adequada com-preensão do âmbito de incidência da lei penal quando assentada, como no caso, sobre uma esfera de controle previamente regulada por outro domínio do Direito.

Genuína representação da intervenção jurídico-penal no ambiente eco-nômico-financeiro, a Lei nº 7.492/1986 não tem – e nem poderia ter – existên-cia autônoma, dissociada do criterioso marco regulatório (administrativo) que lhe confere sustentação material e que estrutura o bem jurídico em evidência, o sistema financeiro nacional.

Sublinhe-se: sistema financeiro nacional que só existe um: o oficial, em relação ao qual o Banco Central exerce, com competência privativa, permanente fiscalização, autorizando, sob rígidas condições normativas, o funcionamen-to de instituições financeiras e vigiando a ação de seus dirigentes, no exercí-cio da atividade econômica de intermediação bancária (mercado oficial); tudo o mais que procure se apresentar como tal, escapando ao ambiente de contro-le, são interferências clandestinas, periféricas ao sistema financeiro nacional (mercado marginal).

Essa diferenciação – mercado oficial e mercado marginal –, caracteri-zada na Lei de Regência do Sistema Financeiro Nacional (Lei nº 4.595/1965), figura como elemento central à delimitação do âmbito de incidência dos tipos penais dos arts. 4º e 16 da Lei nº 7.492/1986.

A origem, os fundamentos e a composição lógica dessa realidade nor-mativa, pautada no alinhamento entre os controles administrativo e penal do sistema financeiro nacional, são a seguir detalhadas.

iii – a estruturaçãO dO sisteMa dO FinanceirO naciOnal e as cOMPetÊncias FiscalizatÓrias dO bancO central (lei nº 4.595/1964)

A atividade econômica de intermediação financeira está sujeita a vín-culos e controles especiais, tanto na sua organização quanto no seu funcio-namento. Isso se deve tanto à complexidade de seus processos operacionais,

confluir a curto prazo em providência legal corrigindo alguns de seus pontos” (Diário do Congresso Nacional, 23.05.1986, p. 4568). Ademais, no momento da sanção presidencial, foi aposta, à redação final, uma dezena de vetos (Diário Oficial, 18.06.1986, p. 8818).

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quanto à característica, inerente às instituições financeiras, de atuar com re-cursos de terceiros em uma proporção muito acima dos recursos próprios (alavancagem).

Nessa perspectiva regulatória, após passar por grandes transforma-ções na década de 60, o mercado financeiro se consolidaria verdadeiramente como um sistema com a edição da Lei nº 4.595/1964. A legislação em referência estruturaria o sistema financeiro nacional enquanto tal, constituído pelo Banco Central do Brasil e pelas instituições financeiras públicas e privadas:

Capítulo I – Do Sistema Financeiro Nacional

Art. 1º O sistema Financeiro Nacional, estruturado e regulado pela presen-te Lei, será constituído:

I – do Conselho Monetário Nacional;

II – do Banco Central do Brasil;

III – do Banco do Brasil S.A.;

IV – do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico;

V – das demais instituições financeiras públicas e privada.

III.a) Competência privativa: a fiscalização do mercado oficial

No âmbito dessa estruturação originária viria a marca do controle ofi-cial: as instituições financeiras apenas poderiam funcionar mediante prévia autorização do Banco Central (art. 18 da Lei nº 4.595/1964)2:

Art. 18. As instituições financeiras somente poderão funcionar no País me-diante prévia autorização do Banco Central da República do Brasil ou de-creto do Poder Executivo, quando forem estrangeiras.

Ao Banco Central a lei ainda outorgaria a competência privativa para a fiscalização das instituições financeiras, cabendo-lhe, inclusive, a aplicação de penalidades, em ordem a promover a tutela administrativa do recém-formado sistema financeiro nacional (art. 10, IX, da Lei nº 4.594/1964).

Art. 10. Compete privativamente ao Banco Central da República do Brasil:

[...]

2 Para o mercado de capitais, disciplinado por lei posterior (Lei nº 4.728/1965), as competências autorizativas viriam a ser cometidas, também, à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) (Lei nº 6.385/1976).

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IX – exercer a fiscalização das instituições financeiras e aplicar as penalidades previstas.

Para essas instituições financeiras, bem como a seus gestores, o art. 44 da Lei nº 4.595/1964 prevê as seguintes penalidades3:

Art. 44. As infrações aos dispositivos desta lei sujeitam as instituições fi-nanceiras, seus diretores, membros de conselhos administrativos, fiscais e semelhantes, e gerentes, às seguintes penalidades, sem prejuízo de outras estabelecidas na legislação vigente:

I – advertência;

II – multa pecuniária variável;

III – suspensão do exercício de cargos;

IV – inabilitação temporária ou permanente para o exercício de cargos de direção na administração ou gerência em instituições financeiras;

V – cassação da autorização de funcionamento das instituições financeiras públicas, exceto as federais, ou privadas. [...]

Note-se que essa competência fiscalizatória, de natureza permanente, é dirigida exclusivamente às empresas autorizadas a operar pelo Banco Central, e que são efetivamente consideradas instituições financeiras, nos termos do art. 17, caput, da Lei nº 4.595/1964, base normativa do art. 1º da Lei nº 7.492/1986:

Lei nº 4.595/1964:

Art. 17. Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da legisla-ção em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou es-trangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros.

Lei nº 7.492/1986:

Art. 1º Considera-se instituição financeira, para efeito desta lei, a pessoa jurídica de direito público ou privado, que tenha como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não, a captação, intermediação ou apli-cação de recursos financeiros de terceiros, em moeda nacional ou estran-

3 Além das penalidades específicas previstas no art. 44 da Lei nº 4.595/1964, a Lei nº 6.024/1974, que dispôs sobre a intervenção e a liquidação extrajudicial de instituições financeiras, em ambos os casos efetuada e decretada pelo Banco Central do Brasil, prevê, como medida saneadora, a indisponibilidade de bens de administradores de instituições financeiras (art. 36).

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geira, ou a custódia, emissão, distribuição, negociação, intermediação ou administração de valores mobiliários.

III.b) Competência não privativa: a reação ao mercado marginal

Paralelamente, a Lei nº 4.595/1964, ao outorgar outras competências ao Banco Central, agora não privativas, previu, no art. 11:

Art. 11. Compete ainda ao Banco Central da República do Brasil:

[...]

VII – exercer permanente vigilância nos mercados financeiros e de capitais sobre empresas que, direta ou indiretamente, interfiram nesses mercados e em relação às modalidades ou processos operacionais que utilizem.

No contexto da discussão jurídica em exame, ações interferentes no mercado financeiro são práticas operacionais levadas a efeito por empresas não autorizadas a funcionar pelo Banco Central, que exercem movimentos atuando como se instituição financeira fossem (sociedades financeiras “de fato”4).

Em relação a tais sociedades – que não são fiscalizadas pelo Banco Cen-tral, pois sequer foram autorizadas a operar –, são requeridas providências saneadoras, no âmbito do poder de polícia administrativa da Autarquia Mo-netária, e na forma do § 7º do art. 44 da Lei nº 4.595/1964:

Art. 44. [...]

[...]

§ 7º Quaisquer pessoas físicas ou jurídicas que atuem como instituição finan-ceira, sem estar devidamente autorizadas pelo Banco Central da República

4 Registre-se a edição da Ordem de Serviço nº 4.282, do Chefe de Departamento de Supervisão de Cooperativas e Instituições Não-Bancárias e de Atendimento de Demandas e Reclamações (Desuc) do Banco Central do Brasil, em 15.06.2007. Referida norma estabelece procedimentos para o exame de denúncias e pleitos referentes a pessoas físicas e jurídicas suspeitas de realizar operações privativas de instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil e de administradoras de consórcios. E assim dispõe: “Estará caracterizada a atuação como instituição financeira no mercado marginal quando presentes, nos termos do art. 17 da Lei nº 4.595, isolada ou cumulativamente, coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros, próprios ou de terceiros, conjugadas com pelo menos os seguintes requisitos: fim lucrativo, habitualidade mínima, caráter público da oferta e exploração do dinheiro como mercadoria”.

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do Brasil, ficam sujeitas à multa referida neste artigo e detenção de 1 e 2 anos, ficando a esta sujeitos, quando pessoa jurídica, seus diretores e ad-ministradores.

O exercício do poder de polícia pela autoridade monetária dependia da caracterização das ações clandestinas como tais (fixação do universo), o que se atingiria mediante a equiparação legal promovida pela Lei nº 4.595/1964 (parágrafo único do art. 17), conceito que seria ulteriormente transporta-do, com o mesmo objetivo (controle do mercado marginal), para a Lei nº 7.492/1986 (art. 1º, parágrafo único, II, da Lei nº 7.492/1986):

Lei nº 4.595/1964:

Art. 17. [...]

Parágrafo único. Para os efeitos desta lei e da legislação em vigor, equipa-ram-se às instituições financeiras as pessoas físicas que exerçam qualquer das atividades referidas neste artigo, de forma permanente ou eventual.

Lei nº 7.492/1986:

Art. 1º [...]

Parágrafo único. Equipara-se à instituição financeira: [...]

II – a pessoa natural que exerça quaisquer das atividades referidas neste artigo, ainda que de forma eventual.

iV – lei nº 7.492/1986: a intensiFicaçãO da tutela sObre O sisteMa FinanceirO naciOnal

Durante os anos 70 e 80, o controle administrativo ainda se mostrava incipiente. A série de escândalos financeiros havidos no país revelaria um sentimento de ineficiência em torno das medidas de controle até então pre-vistas.

Defrontando-se com crises de liquidez, decorrentes de fraudes patro-cinadas na gestão de instituições financeiras oficiais, o Estado obrigou-se a intervir, injetando recursos públicos – oriundos da arrecadação do IOF5 – nas instituições financeiras, de modo a garantir a normalidade dos mercados e os interesses dos depositantes e investidores.

5 Essa política seria regulamentada pelo Decreto-Lei nº 1.342/1974, que alterou a Lei nº 5.143/1966 (Lei do IOF).

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A repetição desses episódios impulsionaria o Projeto de Lei nº 273, de 01.03.1983 (origem da Lei nº 7.492/1986), do então Deputado Federal Nilson Gibson, cuja exposição de motivos bem revela o cenário do momento:

Justificação. O presente projeto representa velha aspiração das autorida-des e do povo no sentido de reprimir com energia as constantes fraudes observadas no sistema financeiro nacional, especialmente no mercado de títu-los e valores mobiliários. Os cofres públicos, em função da preocupação governamental de preservar a confiança no sistema, vêm sendo largamente onerados com verdadeiros escândalos financeiros sem que os respectivos culpados recebam punição adequada, se é que chegam a recebê-la. A gran-de dificuldade do enquadramento desses elementos inescrupulosos, que lidam, fraudulentamente ou temerariamente, com valores do público, re-side na inexistência de legislação penal específica para as irregularidades que surgiram com o advento de novas e múltiplas atividades no sistema financeiro, especialmente após 1964. [...]

Sala de Sessões, 1º de março de 1983 – Nilson Gibson.6

Daí se percebe que a Lei nº 7.492/1986, proposta e aprovada no ob-jetivo de preservar a confiança no sistema financeiro nacional, se alinharia materialmente às disposições da Lei nº 4.595/1964, apresentando-se como um reforço ao controle administrativo desempenhado pelo Banco Central, o qual também seria incrementado.

Sucessivas resoluções aprovadas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) elevaram o rigor na regulamentação das condições para o exercício de cargos societários ou de gerência de instituições financeiras, com progres-sivo destaque à idoneidade dos gestores e à capacidade técnica de adminis-tração de instituições financeiras7.

Exemplificativamente, a atual Resolução do Conselho Monetário Nacional nº 4.122, de 02.08.2012, fixa requisitos e procedimentos para autorização de constituição e funcionamento, cancelamento da autorização, alterações de controle e reorganizações societárias e as condições para o exercício de cargos em órgãos estatutários ou contratuais das instituições financeiras, exigindo, in-clusive, prévia entrevista, para conhecimento do perfil dos administradores,

6 Diário do Congresso Nacional (Seção I), 25.03.1983, p. 1018.

7 Isto pode ser observado, por exemplo, com a edição das Resoluções CMN nºs 2.099, de 17.08.1994, 2.645, de 22.09.1999, 3.040 e 3.041, ambas de 28.11.2002, e a atual resolução que consolida a matéria autorizativa: Resolução CMN nº 4.122, de 02.08.2012.

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suas qualificações técnicas8, suas reputações e capacidade para gerir o plano de negócio proposto à Autarquia Monetária.

Nessa perspectiva, a Lei nº 4.595/1964, as Resoluções do Conselho Mo-netário Nacional e sua correspondente regulamentação, ao tempo em que elevaram as exigências vinculadas à administração das instituições financei-ras oficiais, sujeitas à fiscalização do Banco Central, também promoveram uma clara diferenciação entre o que seja:

(i) exercer permanente fiscalização sobre o regular funcionamento (higi-dez) do mercado financeiro oficial e

(ii) reagir circunstancialmente ao mercado marginal (clandestino).

Essa diferenciação, projetada ao âmbito da lei penal, exterioriza-se sob diferentes formas de afetação do bem jurídico (o sistema financeiro nacional), assim justificando a instituição de duas figuras delituosas correlatamente dis-tintas: os arts. 4º e 16 da Lei nº 7.492/1986.

V – a PrOteçãO Penal aO sisteMa FinanceirO naciOnal: PrOteçãO sistÊMica (interna) e PeriFÉrica (externa)

Alinhadamente ao marco regulatório administrativo, a lei penal tra-taria, de modo distinto, (i) a ação fraudulenta na gestão de uma instituição financeira oficial (art. 4º da Lei nº 7.492/1986) e (ii) a ação daquele que, sem ter se submetido à certificação pública, atua paralelamente ao sistema oficial (art. 16 da Lei nº 7.492/1986).

V.a) A gestão fraudulenta das instituições oficiais, componentes do sistema financeiro nacional (proteção interna): artigo 4º da Lei nº 7.492/1986

Compreensivelmente, a primeira situação, com potencial de impacto bastante mais elevado sobre o bem jurídico tutelado, é sancionada mais gra-vemente, tanto na esfera administrativa (art. 44, caput, da Lei nº 4.595/1964) quanto na esfera penal. Expressão máxima da intervenção penal no setor, o art. 4º da Lei nº 7.492/1986 incrimina a gestão fraudulenta das instituições financeiras:

Art. 4º Gerir fraudulentamente instituição financeira:

8 Resolução do CMN nº 4.122/2012, Anexo II.

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Pena – Reclusão, de 3 (três) a 12 (doze) anos, e multa.

Parágrafo único. Se a gestão é temerária:

Pena – Reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa.

Tratando-se de delito próprio, apenas pode ser praticado pelas pessoas indicadas no art. 25 da Lei nº 7.492/1986, o qual está logicamente a se referir a dirigentes de instituições financeiras oficiais.

Decerto, na literal expressão do marco regulatório do sistema financei-ro nacional, apenas as pessoas físicas que se candidatam ao exercício de car-gos de gestão em instituições financeiras consideram-se, em decorrência dessa autorização, efetivamente compromissadas a executar as melhores práticas de gestão no desenvolvimento de suas atividades operacionais, de modo a que seja preserva-da a liquidez e a solvência dos negócios da instituição financeira.

Assim, são essas pessoas, e tão somente essas pessoas, quando autoriza-das administrativamente a praticarem atos de gestão em instituições finan-ceiras, que estão sujeitas ao tipo penal previsto no art. 4º da Lei nº 7.492/1986 (gestão fraudulenta de instituição financeira).

Faz mesmo sentido lógico-interpretativo que a mais elevada sanção da lei penal, prevista no seu art. 4º, seja dirigida àqueles, e somente àqueles, que, tendo passado por todos os procedimentos, exigências e compromissos administra-tivos, obtendo selo qualitativo da autoridade pública, que os habilita a atuar na atividade econômica de intermediação financeira, venham, no exercício da atividade, praticar atos ilícitos, traindo a confiança do órgão de controle, bem como de terceiros, que lhe confiaram suas economias.

V.b) A incriminação de ações clandestinas ao sistema financeiro nacional (proteção periférica)

Residualmente ao mercado marginal, clandestino, periférico ao sistema financeiro nacional, a Lei nº 7.492/1986 dedicaria um distinto dispositivo, in-criminando a ação de quem se dedicasse a atuar como instituição financeira, sem autorização da autoridade administrativa.

Art. 16. Fazer operar, sem a devida autorização, ou com autorização obtida mediante declaração (Vetado) falsa, instituição financeira, inclusive de dis-tribuição de valores mobiliários ou de câmbio:

Pena – Reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

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Contrariamente ao que sucede em relação ao delito de gestão fraudu-lenta, o art. 16 da Lei nº 7.492/1986 tem como sujeito ativo a pessoa não au-torizada a exercer atividade própria de instituição financeira ou que atue fora dos limites da autorização que lhe tenha sido concedida.

Precisamente por retratar hipótese de ação clandestina, que se desen-volve à margem do sistema oficial (sistema financeiro nacional), o tipo penal do art. 16 não promove qualquer valoração sobre a gestão do negócio mar-ginal – se boa ou má; o crime existirá independentemente disso, uma vez que a norma penal, alinhada ao marco regulatório administrativo, aqui repele as interferências externas ao sistema financeiro nacional.

Vi - cOnsideraçÕes cOnclusiVas

Diante da fundamentação apontada, podemos assim sintetizar:

(1) a Lei nº 4.595/1964, acompanhada das normas administrativas que lhe conferem executoriedade, ao definir o espectro da ação fiscalizatória do Banco Central, promove uma clara diferenciação entre o que seja:

(i) atuar na fiscalização das instituições componentes do mercado finan-ceiro oficial, de competência privativa da Autarquia Monetária, e

(ii) atuar na reação ao mercado marginal (clandestino).

(2) Essa diferenciação, projetada ao âmbito da lei penal, exterioriza-se sob diferentes formas de afetação do mesmo bem jurídico genérico (o sistema financeiro nacional), justificando a instituição de duas figuras delituosas com distintas bases materiais: os arts. 4º e 16 da Lei nº 7.492/1986:

(i) o art. 4º da Lei nº 7.492/1986 busca tutelar o hígido funcionamento do sistema financeiro nacional, conferindo uma proteção ao mercado oficial, em ordem a preservar a confiabilidade que nele depositam seus usuários;

(ii) o art. 16 normatiza situação diversa, consistindo em uma reação pe-nal ao mercado marginal, clandestino, coibindo a ação de agentes que buscam, sem que verdadeiramente o sejam, atuar como instituição financeira (socieda-de de fato, financeira por equiparação).

Após conhecida vacilação, a jurisprudência parece encaminhar-se nes-se sentido, reconhecendo, por conseguinte, a inviabilidade de imputar-se o

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delito do art. 4º da Lei nº 7.492/1986 ao operador de uma sociedade de fato, atuante no mercado marginal9.

(3) Essa orientação realinha a intervenção jurídico-penal aos propósi-tos do marco regulatório (administrativo), que jamais equiparou a gestão de uma instituição financeira à atuação irregular no mercado marginal.

Deixar de reconhecer essa diferença significará: (i) sobrepor tipos pe-nais que recaem sobre bases materiais nitidamente distintas (instituição fi-nanceira regular e instituição clandestina); (ii) atribuir igual valor jurídico a duas condutas formal e materialmente diferentes quanto a seu poder de impacto sobre o bem jurídico tutelado; (iii) igualar, no plano jurídico-penal, aqueles que são juridicamente diferenciados no âmbito da própria legislação administrativa (base de justificação da lei penal).

9 “Crimes contra o sistema financeiro nacional. [...] Gestão fraudulenta. Operação irregular de instituição financeira. Incompatibilidade. [...] 7. Deve ser mantida a sentença quanto ao afastamento da incriminação dos acusados pela conduta tipificada no art. 4º, caput, da Lei nº 7.492/1986 porque, quando se verifica a operação irregular de instituição financeira, como no caso em tela, a conduta se amolda tão somente ao tipo penal inscrito no art. 16 da Lei nº 7.492/1986. Precedentes. [...]” (TRF 4ª R., Proc. 0036521-39.2003.404.7000, 7ª T., Relª Salise Monteiro Sanchotene, J. 29.10.2013, DE 07.11.2013). Conforme assentado na decisão, a “atuação dos réus situava-se no mercado informal, no qual operavam as agências de câmbio como se verdadeiras instituições financeiras fossem sem, contudo, portarem autorização para tal. Ou seja, realizavam serviços próprios das instituições financeiras regulares, mas sem a prévia e devida autorização do Banco Central do Brasil, merecendo punição pela conduta descrita no art. 16, da Lei nº 7.492/1986”.

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a realizaçãO dO tiPO cOMO Pedra angular da teOria dO criMe. eleMentOs

Para O abandOnO dO cOnceitO PrÉ- -tÍPicO de açãO e de suas FunçÕes

FaBio roBerto d’avila*

RESUMO: O presente escrito busca revisitar o problema do conceito de ação em direito penal, após mais de uma década do nosso primei-ro estudo sobre o tema**. A posição tomada naquela altura é aqui rei-terada e desenvolvida. Propõe-se o abandono do conceito pré-típico de ação e da totalidade das funções que lhe são ainda hoje assinala-das pela doutrina majoritária, inclusive da própria função de delimi-tação, usualmente poupada pela corrente crítica. Em seu lugar, como ponto de partida da teoria do crime, sugere-se a realização do tipo legal de crime. O conceito de ação, cuja reformulação é igualmente pro-posta, perde em relevância sistemática, mas não é abandonado. Ele deixa de ser um elemento pré-típico para assumir-se como elemento constitutivo do tipo, exercendo, nesta conformação, a indispensável função de referencial comportamental para o juízo de imputação. A forma de exposição adotada, antecipando as conclusões já nos dois primeiros capítulos e optando por uma redação objetiva e comparti-mentada, tem como finalidade maior a clareza.PALAVRAS-CHAVE: Conceito de ação (conduta); teorias da ação; funções da ação; função de delimitação; teoria do crime.ABSTRACT: The current article revisits the problem concerning the concept of action in criminal law, more than a decade after of our first study on the topic. The position taken at that time is here reite-

* Professor Titular da Faculdade de Direito da PUCRS e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais (Mestrado e Doutorado) da PUCRS, Doutor em Ciências Jurídico- -Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Pós-Doutor em Ciências Criminas pela Universidade de Frankfurt am Main, Advogado Criminal.

** A ação como conceito compreensivo do agir e omitir. Linhas críticas ao conceito de ação como Oberbegriff, Revista de Direito Penal da Universidade Autónoma de Lisboa, 2 (2002), p. 5 e ss. (=A ação como conceito compreensivo do agir e omitir. Linhas críticas ao conceito de ação como Oberbegriff. In: SOUSA, Ney Fayet de (Org.). Ensaios penais em homenagem ao Professor Alberto Rufino Rodrigues de Sousa. Porto Alegre: Ricardo Lenz, 2003).

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rated and further developed. The proposal we make is to abandon the pre-typical concept of action and, along with it, all of the func-tions that are still assigned to it by the majority doctrine, including the delimitation function usually preserved by the critics of the con-cept. Instead, as a starting point of the crime theory, we suggest the notion of performing the actus reus (Tatbestand). The concept of action, whose reformulation we also suggest, loses its systematic relevan-ce, but is not completely abandoned. No longer being a pre-typical element, it assumes itself as a constitutive element of the actus reus, exercising, in this frame, the key role of behavioral reference for the evaluation of the criminal attribution. The form of explanation here adopted, where we anticipate the conclusions in the first two chap-ters and opt for an objective and compartmentalized writing, has as main purpose the article’s intelligibility.KEYWORDS: Concept of action (conduct); theories of action; action functions; delimitation function; crime theory.SUMÁRIO: 1 A ação como realização do tipo; 1.1 O conceito de ação; 1.2 Funções atribuídas à ação e a sua crítica; 2 A doutrina nacional e a função de delimitação; 2.1 A ação na doutrina nacional; 2.2 A função de delimitação; 3 Notas críticas acerca da função de delimi-tação; 4 A evolução histórica do conceito de ação e as razões para o seu abandono; 4.1 O conceito causal (natural) de ação; 4.2 O conceito final de ação; 4.3 O conceito social de ação; 4.4 O conceito negativo de ação; 4.5 O conceito pessoal de ação; Referências.

1 a açãO cOMO realizaçãO dO tiPO

1.1 O conceito de ação

Por ação (ou conduta) em direito penal deve-se entender o comporta-mento que realiza, dolosa ou culposamente, o tipo legal de crime. A realização do tipo (e não o conceito de ação) constitui, nessa perspectiva, o ponto de partida da teoria geral do crime.

Esse conceito insere-se em uma corrente crítica às teorias da ação como supra-conceito da estrutura teórica do crime (vide infra). Em seu lugar, i.e., como marco zero da estrutura do crime, propõe-se o conceito de realização típica, o qual deverá ser estudado a partir das suas quatro grandes formas de manifestação: tipo de ilícito comissivo doloso, tipo de ilícito omissivo doloso, tipo de ilícito comissivo culposo e tipo de ilícito omissivo culposo. O conceito de ação, por sua vez, embora redimensionado em importância, conti-nua a cumprir um papel fundamental na teoria geral do crime. Torna-se elemento consti-tutivo do fato típico e passa a exercer, em essência, a função de referente comportamental para fins de imputação, abandonando as funções de união, classificação e, inclusive, a função de delimitação (vide infra). Por fim, importa observar que o conceito proposto não está restrito ao comportamento humano, abrindo-se também à pessoa jurídica como su-

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jeito ativo de crime. Em que pese a larga controvérsia em torno da viabilidade material de uma responsabilidade penal da pessoa jurídica, a opção pelo abandono de um conceito pré-típico de ação impede a sua discussão nessa seara. Qualquer tentativa de seleção do sujeito ativo do crime prévia à análise da tipicidade recolocaria, necessariamente, a atri-buição de uma função de delimitação pré-típica ao conceito de ação, o que, neste contexto, e por tudo que se verá a seguir, não nos parece adequada e nem mesmo necessária.

1.2 Funções atribuídas à ação e a sua crítica

Por anos a doutrina penal buscou um conceito de ação que pudesse ser definido em um momento prévio às valorações jurídico-penais e, desse modo, independente dos juízos de tipicidade, ilicitude e culpabilidade. Buscava-se uma espécie de elemento primeiro, de denominador comum da noção de crime, presente em todas as diferentes formas de manifestação do ilícito-típico. Um elemento que, uma vez identificado em um momento pré-jurídico (ou, ao menos, pré-típico), teria potencialidade de servir como pedra angular de toda a construção teórica do crime, sem, todavia, predeterminar essa estrutura.

Entendido nesses termos, competiria ao conceito de ação três funções fundamentais1: (i) função de classificação (elemento básico), segundo a qual todas as formas de expressão do ilícito-típico – comissivas ou omissivas, culposas ou dolosas – devem corresponder a diferentes espécies de um mesmo gênero representado pela ação; (ii) função de união (função de definição e elemento de união), a qual exige da ação um conteúdo material apto a reunir os juízos de tipicidade, ilicitude, culpabilidade e, para alguns, também punibilidade, de forma a tornar-se o substantivo ao qual são vinculados os atributos típico, ilíci-to e culpável, ou ainda, na expressão de Roxin, a “coluna vertebral”2 de todo o sistema penal. O conceito de ação não deve, porém, antecipar qualquer juízo de imputação, mantendo-se neutro em relação aos demais elementos do crime3; (iii) e, por fim, a função de delimitação, através da qual o conceito de

1 Ver JESCHECK, Hans Heinrich; WEIGEND, Thomas. Lehrbuch des Strafrechts. Allgemeiner Teil. 5. ed. Berlin: Duncker & Humblot, 1996. p. 219; DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal. Parte geral. 2. ed. portuguesa, 1. ed. brasileira. São Paulo: Coimbra Editora/RT, t. 1, 2007. p. 251 e ss.; ROXIN, Claus. Strafrecht. Allgemeiner Teil. 4. ed. München: Verlag C. H. Beck, v. I, 2006. p. 238 e ss.; MARINUCCI, Giorgio. Il reato come “azione”. Critica di un dogma. Milano: Giuffrè, 1971. p. 3.

2 ROXIN, Claus. Strafrecht. AT, p. 238.

3 Algumas sistematizações optam por diferenciar a função definitória da função de união, como ocorria, por exemplo, na 4ª edição do Lehrbuch de Jescheck (na 5ª edição, Jescheck e Weigend deixam de mencionar a função de união) (JESCHECK, Hans Heinrich; WEIGEND,

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ação deve ser capaz de excluir todos os fenômenos que, de antemão, possam ser considerados indignos de qualquer consideração jurídico-penal, funcio-nando como o primeiro grande filtro do sistema penal.

O que se pretendia, portanto, era a elaboração de um verdadeiro “su-praconceito de ação” (Oberbegriff), dotado de relevância sistemática, classifi-catória e prática. Mas não só. O conceito de ação, em grande medida, expres-sava também um preciso modo de ver o homem e as coisas do direito penal, com importantes consequências dogmáticas. Daí não surpreender o fato de alguns dos grandes sistemas penais, como o causalismo e o finalismo, parti-rem justamente de uma determinada teoria da ação (vide infra).

O atendimento a todas essas exigências, de modo a justificar a função básica estrutural aspirada pelo conceito unitário de ação, tem-se revelado, entretanto, demasiadamente problemático. As tentativas levadas a cabo por

Thomas. Lehrbuch des Strafrechts, p. 219). Contudo, a grande proximidade existente entre elas parece tornar preferível uma abordagem conjunta, como fazem Roxin e Figueiredo Dias (ver nota 1).

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inúmeras elaborações (v.g., causal, final, social, negativa ou pessoal da ação), revelam falhas, embora não coincidentes, em pontos substancialmente diver-sos e de difícil correção. Essas falhas, já há algum tempo, vêm sendo objeto de crítica não só pela literatura especializada, como por inúmeros manuais de direito penal, e, nesta medida, também elemento propulsor do surgimento de teorias alternativas. Mais. As contundentes críticas às tentativas de constru-ção de um supraconceito multifuncional de ação, capaz de corresponder aos exigentes anseios da dogmática penal, têm dado vazão a uma segunda alter-nativa: a renúncia a um tal conceito pré-típico de ação, em prol da realização típica como categoria elementar-estrutural da teoria do crime4.

O conceito ora proposto vai justamente nesse último caminho. Pelas ra-zões que serão a seguir assinaladas, não julgamos viável ou mesmo necessária a defesa de um supraconceito de ação. Em seu lugar, i.e., como ponto de parti-da da estrutura teórica do crime, propõe-se a realização do tipo legal de crime. O conceito de ação perde em relevância sistemática, mas não é – e nem deve ser – abandonado. Ele deixa de ser um elemento pré-típico para assumir-se como elemento constitutivo do tipo de ilícito. Não renuncia, porém, a indispensável posição de referencial comportamental para o juízo de imputação penal.

2 a dOutrina naciOnal e a FunçãO de deliMitaçãO

2.1 A ação na doutrina nacionalConquanto não detenha a mesma força de outrora, o finalismo ainda

exerce considerável influência na doutrina nacional, com consequências re-

4 A renúncia ao conceito de ação como supraconceito da estrutura do crime remonta aos célebres escritos de Beling e Radbruch (BELING, Ernst. Die Lehre vom Verbrechen. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1906, p.v, Vorwort; RADBRUCH, Gustav. Der Handlungsbegriff in seiner Bedeutungfür das Strafrechtssystem. Berlin: Guttentag, 1904, p. 141 e ss.) e encontra expressão na obra de autores como: DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal. PG, p. 259 e ss.; GALLAS, Wilhelm. Zumgegenwärtigen Stand der Lehre vom Verbrechen. In: Beiträgezur Verbrechenslehre. Berlin: Walter de Gruyter, 1968. p. 29; LENCKNER, Theodor; EISELE, Jörg. In: SCHÖNKE, Adolf; SCHRÖDER, Horst. Strafgesetzbuch Kommentar. 27. ed. München: C. H. Beck, 2006, Vorbem §§ 13 ss., RN 37, p. 165; OTTO, Harro. Grundkurs Strafrecht. Allgemeine Strafrechtslehre. 6. ed. Berlin e New York: Walter de Gruyter, 2000. p. 51 e ss.; FIANDACA, Giovanni; MUSCO, Enzo. Diritto penale. Parte generale. 3. ed. Bologna: Zanichelli, 2000. p. 149; MARINUCCI, Giorgio. Il reato come “azione”, passim, em exaustiva pesquisa sobre o tema; ROXIN, Claus. Contribuição para a crítica da teoria finalista da acção. In: Problemas fundamentais de direito penal. Trad. Ana Paula dos Santos e Luís Natscheradetz. 2. ed. Lisboa: Vega, 1993. p. 108 e ss., que corresponde à primeira posição de Roxin, publicada originalmente na ZStW 74 (1962), p. 548 e ss., posteriormente revista pelo autor (vide infra).

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levantes no âmbito da ação. Na obra de Cirino dos Santos, a ação é definida como “atividade dirigida pelo fim”5. Reale Júnior defende a ideia de ação como expressão “de uma escolha conscientemente realizada e da eleição dos meios consoantes com os fins propostos pelo que o agir é um conduzir-se”. E acrescenta que, sendo ela fruto de uma escolha fundada em valores, “há, na ação, como um dado do real além da finalidade a ‘intencionalidade significa-tiva’”: só há ação “quando existe consciência do fim”6-7. De outra parte, Guei-ros e Japiassú consideram mais adequada a proposta de Roxin, endossando, em seu recente Curso de direito penal, o conceito pessoal de ação8. Outras orien-tações ainda, como se pode surpreender no trabalho de Bitencourt, buscam uma via di mezzo, por meio da combinação de teorias. Esse autor, embora reconheça razão ao posicionamento crítico9, define a ação como “comporta-mento humano voluntário conscientemente dirigido a um fim”10 – conceito de cariz finalista, como se percebe – e sustenta a sua compatibilidade com a teoria social: “Os postulados fundamentais das duas teorias – exercício de atividade final e um agir socialmente relevante – não se excluem, mas se complementam”11. E, por fim, por mérito da obra de Busato12, tem obtido repercussão entre nós a denominada teoria da ação significativa de Vives Antón. Essa orientação, que comunga de alguns pressupostos da teoria críti-ca, como a inviabilidade de um conceito de ação pré-típico, propõe-se a uma aproximação entre ação e tipo, abandonando as funções de classificação e

5 SANTOS, Jurarez Cirino. Direito penal. Parte geral. 2. ed. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2007. p. 100.

6 REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito penal. Parte geral. Rio de Janeiro: Forense, v. I, 2002. p. 131.

7 Adotando uma orientação finalista, também Nucci, para quem “conduta é a ação ou omissão, voluntária e consciente, implicando um comando de movimentação ou inércia do corpo humano, voltado a uma finalidade” (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. Parte geral. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 189).

8 SOUZA, Artur de Brito Gueiros; JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Curso de direito penal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. p. 165 e ss. Sobre o conceito pessoal de ação, vide infra.

9 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Parte geral. 16. ed. São Paulo: Saraiva, v. I, 2011. p. 269.

10 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, p. 259.

11 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, p. 267.

12 Ver BUSATO, Paulo César. Reflexões sobre o sistema penal do nosso tempo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 196 e ss.; e, do mesmo autor, Direito penal. Parte geral. São Paulo: Atlas, 2013. p. 250 e ss. e 267 e ss.

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união, em prol da manutenção da função de delimitação: “O conceito de ação não pode mais do que executar uma função negativa de estabelecer limites de ausência de ação”13.

2.2 A função de delimitaçãoEm verdade, a questão acerca do atendimento às funções de união e

classificação, tão debatida em outros espaços, nunca despertou grande aten-ção da doutrina nacional, sendo, inclusive, por vezes, relegada à posição de pormenor meramente teórico. Maior importância sempre foi dedicada à “função prática” do conceito de ação, i.e., à função de delimitação. Tendo como missão definir, já à partida, aquilo que não desperta qualquer interes-se do direito penal, a função de delimitação apresenta-se como o primeiro filtro do sistema, prometendo uma solução jurídico-penal prática e rápida para um grande número de casos: a simples ausência de ação. Se por ação for entendido, p. ex., o comportamento humano, voluntário, consciente e dirigido a um fim, não existirá ação nos casos em que não houver um ser humano na posição de sujeito ativo ou quando o comportamento humano não tiver sido praticado de forma consciente, voluntária ou final. E, não havendo ação, apresentam-se prejudicados os juízos de tipicidade, ilicitude e culpabilidade, interrompendo-se, de imediato, a análise jurídico-penal do fato. Tais casos, i.e., as hipóteses tradicionalmente reconhecidas como desprovidas de ação, costumam ser reunidos nos seguintes grupos:(a) Ausência de comportamento humano: partindo-se da exigência de um com-portamento humano na base da conduta, não podem ser sujeitos de ação ani-mais, entes inanimados, fenômenos da natureza e, nem mesmo, pessoas ju-rídicas. (b) Coação física irresistível (também denominada de vis absoluta): diz respeito às hipóteses de atividade ou inatividade corporal determinada por uma força física alheia ao sujeito e em relação à qual ele não podia resistir. A determina-ção física retira a voluntariedade do movimento, impossibilitando o reconheci-mento de uma ação. Exemplos: (i) na beira de uma piscina, A é violentamente empurrado por B, vindo a cair sobre uma criança que lá brincava, causando--lhe lesões corporais – nesse caso, não há ação por parte de A, mas apenas de B, autor da coação14; (ii) o pai que, amarrado nas mãos e pés, é obrigado a

13 BUSATO, Paulo César. Direito penal, p. 269.

14 Exemplo semelhante em JESCHECK, Hans Heinrich; WEIGEND, Thomas. Lehrbuch des Strafrechts, p. 225; SOUZA, Artur de Brito Gueiros; JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Curso de direito penal, p. 168.

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assistir à morte do filho, sem poder impedi-la – tem-se aqui uma coação física a determinar uma inatividade15. Não há ação omissiva por parte do pai, mas apenas daquele que o amarrou.

A coação física não deve ser confundida com a figura da coação moral irresistível, também conhecida como vis compulsiva. A coação moral incide sobre a psique do coagido. Trata-se de uma ameaça, i.e., da promessa de um mal com vistas a romper a resistência do coagido e, desse modo, levá-lo à prática de uma conduta. Nesse caso, não apenas existe ação, como ela poderá ser típica e ilícita. O reconhecimento da coação moral irresistível implica apenas a inexistência de culpabilidade (art. 22 do CP16). Ex.: Em referência aos exemplos já utilizados, haveria coação moral se, ao invés de empurrar B, A o coagisse a pular sobre a criança, sob a ameaça de uma faca; ou se, no segundo caso, ao invés de amar-rar o pai, ele fosse ameaçado de morte pelo coator, mediante o uso de arma de fogo, caso tentasse salvar o filho. Observa-se, por fim, que o uso de violência física prévia e a promessa da sua continuidade em caso de resistência não transforma uma coação moral em física. Exemplo: A espanca B até que este ceda à sua vontade e realize a ação por A determinada, consistente na falsificação de um documento. Trata-se, pois, de uma hipótese de coação moral, e não física.

Caso 1 (TJSC, apelação criminal)17: mulher condenada por não ter impedido o ma-rido de abusar sexualmente das filhas menores (estupro de vulnerável na forma omissiva). Na medida em que era mãe das vítimas, teria o dever legal de impedir os abusos (dever de garantia). Apelo sob a alegação de coação física irresistível. Tal quais as filhas, a mãe seria vítima das agressões do marido. O tribunal afastou a alegação de coação física irresistível, mas absolveu por ausência de tipicidade. De fato, não há coação física irresistível, agindo corretamente o tribunal. Entretanto, a solução final atribuída ao caso é equivocada. Não se trata de exclusão da tipicidade, mas de límpida hipótese de coação moral, a qual, se irresistível, afasta apenas a culpabilidade.

Caso 2 (TJSC, apelação criminal)18: semelhante ao caso 1, trata-se de mulher acu-sada de estupro na forma omissiva, por não ter impedido o companheiro de abusar se-xualmente da filha menor. A acusada, absolvida em primeira instância, alega ter sido ameaçada por meio de uma pequena foice, a qual teria, inclusive, deixado marcas em seu pescoço. O Tribunal confirma a absolvição de primeiro grau, mas inova no fundamento. Reconhece a ausência de ação e, por consequência, de tipicidade, em razão da ocorrência de coação física irresistível (ameaça realizada por meio da foice). Esse fundamento, entretanto, é equivocado. A ameaça por meio de uma foice não consiste em coação física, mas moral. A coação física em hipóteses omissivas só é reconhecida em situações nas quais há impos-sibilidade física de agir (alguém estar amarrado, por ex.), e não nos casos em que a omissão decorre da decisão de não agir para não sofrer o mal prometido por meio da coação (não

15 ROXIN, Claus. Strafrecht. AT, p. 267.

16 Sobre a coação irresistível no art. 22 do Código Penal, ver TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 338 e ss.

17 TJSC, Apelação Criminal nº 2013.059921-5, fev. 2014.

18 TJSC, Apelação Criminal nº 2011.024760-2, set. 2011.

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age, para não ser morta, p. ex.). Nos casos de omissão decorrente da promessa de um mal, está-se diante de um lídimo problema de culpabilidade, no qual deverá ser analisado se era exigível do réu conduta diversa (i.e., se, apesar da coação, ele deveria ter agido) ou se tal comportamento era dele inexigível, configurando uma hipótese de coação moral irre-sistível. Um segundo equívoco reside no reconhecimento de atipicidade, por decorrência da ausência de ação. Para a teoria final da ação, o exame da conduta antecede ao da tipicidade, de modo que, na ausência de ação, a tipicidade sequer chega a ser analisada.

(c) Comportamentos desprovidos de consciência: corresponde a movimentos pra-ticados em estados de inconsciência, sono profundo, desmaio, hipnose, em-briaguez letárgica, entre outros19.

Os estados hipnóticos têm levantado alguma controvérsia. Lenckner e Eisele assi-nalam que a hipnose, na realidade, consiste em uma “perturbação do conhecimento”, e não propriamente uma ausência de consciência, o que resultaria apenas na exclusão ou redução da culpabilidade20. Roxin, por sua parte, observa que ela não pode ser equipara-da aos movimentos causados por sonhos, uma vez que, diferente daqueles, na hipnose a ação é transmitida psiquicamente e adaptada ao mundo circundante. Observa que haveria uma espécie de “barreira de caráter” (Charakterschranke) que impediria a execução pelo hipnotizado de ações estranhas à sua personalidade, como, p. ex., a prática de um delito. Desse modo, e partindo de uma ideia de conduta como manifestação da personalidade, reconhece o autor, nesses casos, a existência de ação, independentemente da problemática atinente à consciência do atuar21.

(d) Movimentos reflexos (puramente somáticos): não se reconhece a existência de ação em movimentos puramente somáticos. Trata-se de comportamentos (positivos ou negativos) determinados por “estímulos dirigidos diretamente ao sistema nervoso autônomo”22 e que, por essa razão, se apresentam despro-vidos de voluntariedade. São manifestações meramente corporais. A título de ilustração, a doutrina23 costuma referir o ataque de epilepsia, o espirro, o

19 Ver BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. PG, p. 272; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal. Parte geral. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 183.

20 LENCKNER, Theodor; EISELE, Jörg. In: SCHÖNKE, Adolf; SCHRÖDER, Horst. Strafgesetzbuch Kommentar, Vorbem §§ 13 ss., RN 39, p. 165.

21 ROXIN, Claus. Strafrecht. AT, p. 269.

22 SOUZA, Artur de Brito Gueiros; JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Curso de direito penal, p. 169.

23 Ver FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal, p. 183; BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. PG, p. 272; SOUZA, Artur de Brito Gueiros; JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Curso de direito penal, p. 169; ROXIN, Claus. Strafrecht. AT, p. 266 e ss.; LENCKNER, Theodor; EISELE, Jörg. In: SCHÖNKE, Adolf; SCHRÖDER, Horst. Strafgesetzbuch Kommentar, Vorbem §§ 13 ss., RN 40, p. 166.

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rubor emocional, o vômito insuscetível de contenção, a convulsão decorrente de um choque elétrico, entre outros.

Problemático tem se mostrado o tratamento jurídico dispensado aos movimentos reflexos sob influência psíquica e aos denominados atos automáticos. Em ambos os casos, não seria possível identificar consciência, voluntariedade, finalidade ou planificação24, o que levaria à conclusão pela ausência de ação. Contudo, o inequívoco interesse jurídico-penal sobre tais atos tem conduzido a tentativas de reconhecimento de uma ação, o que bem ilustra o enfrentamento da matéria na obra de Roxin. Vejamos:

(i) Movimentos reflexos sob influência psíquica: diferente dos movimentos refle - xos puramente somáticos, haveria situações em que o movimento reflexo encontra-se “sob influência psíquica”, i.e., em que o movimento é “transmitido psiquicamente e dirigido a um objeto”, como ocorre nos movimentos reflexos de defesa. Conquanto não haja aqui uma “reflexão consciente”, Roxin sustenta haver uma manifestação da personalidade e, assim, uma ação25 (sobre o conceito de ação em Roxin, vide infra). Ex.: ao fazer uma curva, entra um inseto pela janela do veículo e vai contra os olhos do motorista, o qual realiza “‘um movimento defensivo brusco’ com a mão”, perdendo o controle do carro e ocasio-nando uma colisão26-27.

(ii) Atos automáticos: é uma característica do comportamento humano a automati-zação de movimentos realizados repetidamente e por um longo período de tempo, como se pode observar, p. ex., nos movimentos realizados ao dirigir: debrear, frear, fazer marchas, acelerar etc. Essa automatização retiraria do movimento a reflexão consciente, per mitindo uma prática mais rápida. Contudo, embora desprovida de consciência, ainda assim seria possível, na perspectiva do autor, reconhecer a existência de uma ação, na medida em que “as disposições para a ação apreendida pertence à estrutura da personalidade”28. Ex.: diri-gindo o seu veículo à noite, em uma velocidade de 90 km/hora, o motorista é surpreendi-do por um animal do tamanho de uma lebre a 10 ou 15 metros à frente. Com o objetivo de

24 Nesse sentido, ROXIN, Claus. Strafrecht. AT, p. 269, segundo o qual seria possível falar apenas em uma “direção final interna” ou em uma “finalidade inconsciente”. Observa ainda, em comentário aos movimentos reflexos sob influência psíquica, que desde uma perspectiva causal ou de uma perspectiva final da ação, seria preciso negar a existência de uma ação (ROXIN, Claus. Strafrecht. AT, p. 267).

25 ROXIN, Claus. Strafrecht. AT, p. 267.

26 ROXIN, Claus. Strafrecht. AT, p. 267.

27 Tratamento semelhante tem sido dispensado aos atos impulsivos, denominados de ações em curto-circuito, em razão de ter na sua origem um processo psíquico (LENCKNER, Theodor; EISELE, Jörg. In: SCHÖNKE, Adolf; SCHRÖDER, Horst. Strafgesetzbuch Kommentar, Vorbem §§ 13 ss., RN 40, p. 166; ver, também, MEZGER, Edmund. Strafrecht. Ein Lehrbuch. 2. ed. München; Leipzig: Duncker und Humblot, 1933. p. 106 e ss.; e, entre nós, FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal, p. 183 e ss.). Os limites dessa categoria, todavia, não nos parecem suficientemente claros, razão pela qual o seu uso é aqui evitado.

28 ROXIN, Claus. Strafrecht. AT, p. 267 e ss.

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desviar do animal, o motorista gira a direção para a esquerda, chocando-se com o guardrail e causando a morte do passageiro29.

3 nOtas crÍticas acerca da FunçãO de deliMitaçãO

Em que pesem os esforços empreendidos e a aparente simplicidade e correção dos critérios apresentados, a pretensa função de delimitação não é realizável por um conceito de ação pré-típico, seja ele qual for (sobre as diferente teorias, vide infra). As soluções propostas, que no mais das vezes não passam de critérios de imputação indevidamente antecipados, resultam, não raramente, confusas, contraditórias e, em termos metodológicos, impos-síveis. Vejamos aqui, a título de ilustração, apenas dois pontos:

Primeiro. A ação é um comportamento exclusivamente humano. O úni- co aspecto de relevo dessa assertiva, ponto de partida dos mais variados conceitos, diz respeito ao problema da pessoa jurídica como sujeito ativo de crime. Independente do mérito da questão, que aqui não está em jogo, não é difícil de perceber que os estritos limites de um conceito pré-típico de ação – isto é, de um conceito elaborado em um espaço prévio aos juízos próprios da juridicidade penal e, portanto, sem acesso a eles – não é, definitivamente, o foro adequado para discutir tal matéria. Mais. Quando se afirma um conceito de ação exclusivamente humano e dele se vale para afastar a responsabilida-de penal da pessoa jurídica, o que se tem na realidade é uma límpida petição de princípio. Um conceito assim formulado é mais o resultado de um posicio-namento de base ideológica, dogmática, político-criminal e/ou criminológica do que uma premissa natural ou social em si mesmo válida que possa prede-terminar à partida toda a estrutura teórica do crime. Em outras palavras, há muitas razões para se opor à responsabilidade penal da pessoa jurídica, mas o conceito de ação não é uma delas.

Segundo. Os critérios utilizados, aparentemente independentes da ju-ridicidade penal, são em realidade critérios de imputação. (i) A coação física só exclui a ação se for irresistível. Ser ou não irresistível não é algo, porém, que possa ser determinado sem critérios de valor, como se correspondesse a um simples cálculo de forças físicas. Não há dúvida de que há relevo pe-nal se, p. ex., a pessoa empurrada na beira da piscina contribuiu de forma negligente para o fato; ou se o pai, por negligência, não percebeu que havia como escapar das amarras e impedir a morte do filho. (ii) Da mesma forma, os atos em estado de inconsciência ou os movimentos reflexos irão excluir a

29 ROXIN, Claus. Strafrecht. AT, p. 267.

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ação apenas nos casos em que não houver responsabilidade na forma de actio libera in causa. Isso significa que, para aplicar o critério de exclusão da ação, é preciso analisar a responsabilidade jurídico-penal do fato na sua inteireza, vale dizer, é preciso ingressar no âmbito da tipicidade e considerar o fato a partir dos respectivos critérios de imputação. E se isso é assim, não faz sentido algum, após a conclusão da análise jurídico-penal, retornar à fase da ação para excluí-la. Muito pelo contrário. Tal regressão é impossível. Dado o método de análise escalonado, só há a verificação da tipicidade se houver ação. Logo, impossível chegar à tipicidade, sem o reconhecimento prévio da existência de uma ação. E, in casu, como se vê, é impossível reconhecer uma ação, sem a análise prévia da tipicidade. (iii) No que se refere à omissão, não é diferente. Só se pode falar em omissão se houver possibilidade de ação. O comportamento do pai que, em razão de estar amarrado, não pôde salvar o filho (vide supra) apenas não configuraria uma ação se reconhecida a impossi-bilidade de agir. Ocorre que a possibilidade de agir depende diretamente de muitas variáveis (i.e., natureza, fundamento e extensão do dever de agir) e de elementos estritamente pessoais e circunstanciais, implicando uma análise que é própria do juízo de imputação nos crimes omissivos30. (iv) A exigência de consciência é quase uma constante em todas as diferentes teorias da ação: sem consciência não há ação. Contudo, como bem reconhece Roxin (vide su-pra), ela não está presente em casos de indiscutível relevo penal, como nos movimentos reflexos sob influência psíquica e nos atos automáticos. Pois é exatamente o prévio reconhecimento de relevo penal que leva a esforços no sentido de contornar o problema no âmbito da ação, o que demonstra ser esse nada mais do que uma antecipação de critérios de imputação e não, como se quer fazer crer, um juízo neutro em termos jurídico-penais, pautado por categorias do ser ou da pessoa.

Por fim, poderia se pensar que o impasse da função de delimitação residiria exclusivamente no caráter pré-típico da ação, contornável por meio de um conceito crítico de ação como realização do tipo. Uma tal conclusão,

30 Jescheck e Weigend tentam contornar esse problema valendo-se de uma “capacidade geral de ação”, a qual não levaria em consideração as características pessoais do omitente (JESCHECK, Hans Heinrich; WEIGEND, Thomas. Lehrbuch des Strafrechts, p. 225). Tal recurso, todavia, não resolve o problema da natureza jurídico-penal dos referenciais de análise. Mas, ainda que isso fosse superado, uma capacidade meramente geral de ação, alheia à concretude do fato, implicaria o reconhecimento de uma simples presunção de omissão.

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porém, seria equivocada31. Não é possível atribuir uma função de delimitação à ação sem lhe designar um conteúdo próprio e exclusivo que lhe permita exercer essa função, resultando, ao fim e ao cabo, em um esforço de autono-mização, por todo o exposto, inútil, desnecessário e, no âmbito da própria tipicidade, metodologicamente inadequado.

4 a eVOluçãO histÓrica dO cOnceitO de açãO e as razÕes Para O seu abandOnO

4.1 O conceito causal (natural) de ação

O conceito causal de ação remonta à denominada concepção clássica de crime, desenvolvida no final do século XIX na Alemanha, a partir, principal-mente, dos célebres escritos de Franz von Liszt e Ernst Beling32. Estabelecida a partir dos pressupostos ideológicos e metodológicos do então hegemônico positivismo naturalista, a concepção clássica do crime empenhava-se em re-alizar no direito penal os ideais de exatidão científica próprio das ciências naturais. Buscava-se o máximo possível em termos de objetividade, ordem e segurança, e, para tanto, valia-se de conceitos limitados a realidades perceptí-veis pelos sentidos, a realidades do mundo natural. O conceito de ação, nesse contexto, como pedra angular de todo o sistema penal, deveria atender, de forma ideal, a essa precisa pretensão, deveria ser constituído exclusivamente por realidades sensíveis33.

O positivismo jurídico, em termos gerais, corresponde a uma corrente de pensa-mento amplamente difundida na segunda metade do século XIX e marcada, entre outras coisas, pelo repúdio a toda e qualquer forma de metafísica, em prol de uma perspectiva

31 Em sentido contrário, defendendo a compatibilidade da teoria crítica com uma função negativa remanescente, LENCKNER, Theodor; EISELE, Jörg. In: SCHÖNKE, Adolf; SCHRÖDER, Horst. Strafgesetzbuch Kommentar, Vorbem §§ 13 ss., RN 37, p. 165.

32 Ver JESCHECK, Hans Heinrich; WEIGEND, Thomas. Lehrbuch des Strafrechts. AT, p. 219 e ss.; ROXIN, Claus. Strafrecht. AT, p. 241 e ss.; DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal. PG, p. 239 e ss.

33 KAUFMANN, Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da história. In: KAUFMANN, Arthur; HASSEMER, Winfried. Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas. Trad. de Marcos Keel e Manuel de Oliveira; rev. e coord. de António Manuel Hespanha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. p. 117 e ss.; MONCADA, L. Cabral de. Filosofia do direito e do Estado. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, v. I, 1955 (2006 reimp.). p. 306 e ss.

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empirista34. O conhecimento deveria ser produzido nos estritos limites da experiência, da observação dos fatos sensíveis e da causalidade35. Propunha, na precisa síntese de Cabral Moncada, “a sujeição de toda a vida da cultura aos esquemas das ciências naturais, com a entronização da ideia de causalidade mecânica”. E, assim agindo, acabava por represen-tar “não só uma mecanização de todo o pensamento, mas uma subestimação, ou mesmo um total desprezo, por todos os conteúdos ideais e espirituais da vida tanto do indivíduo como da sociedade”36.

Embora o conceito causal de ação tenha sofrido variações significativas ao longo do seu desenvolvimento – como, aliás, não poderia ser diferente –, uma das elaborações mais expressivas desse período pode ser encontra-da na 3ª edição do Lehrbuch des deutschen Strafrechts, de v. Liszt. Nessa obra, publicada em 1888, propunha o autor uma definição de ação estabelecida na “causação de uma modificação no mundo exterior realizada por meio de um movimento corporal humano voluntário”37. Haveria, por um lado, a exigên-cia constante, e para todas as formas de aparição do crime, dos elementos exteriores movimento corporal humano e modificação do mundo exterior, unidos entre si pelo nexo de causalidade (causalidade percebida nos termos da teoria da equivalência das condições), e, por outro, a exigência de um elemento subjetivo, a voluntariedade.

Beling, em contrapartida, defendia um conceito mais enxuto de ação. Segundo o autor, a teoria da ação não deveria contemplar elementos próprios do fato criminoso, como o resultado, o objeto da ação e a causalidade, na medida em que a ausência desses elementos não afetaria a existência de uma ação em si, mas sim as características de uma determinada ação existente. Afastando tal conteúdo do conceito de ação, restaria, para fins de verificação da sua existência, a simples constatação da realização voluntária de um mo-vimento corporal ou de um não movimento corporal38. A ação seria definida

34 O surgimento do positivismo é muitas vezes atribuída à obra do francês Auguste Comte. Essa paternidade, todavia, não goza de consenso. Segundo Arthur Kaufmann, tal designação só é correta no sentido de que foi Comte quem batizou esta corrente, a partir da ideia de “positivismo” como “limitação da ciência ao que é experimentável = dado ‘positivamente’” (KAUFMANN, Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da história, p. 118).

35 MONCADA, L. Cabral de. Filosofia do direito e do Estado, p. 308 e ss.; KAUFMANN, Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da história, p. 118.

36 MONCADA, L. Cabral de. Filosofia do direito e do Estado, p. 311 e ss.

37 LISZT, Franz v. Lehrbuch des deutschen Strafrechts. 3. ed. Berlin; Leipzig: Guttentag, 1888. p. 116.

38 BELING, Ernst. Die Lehre vom Verbrechen, p. 14.

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como mero “comportamento humano voluntário”, a compreender tanto a ação em sentido estrito (movimento corporal voluntário), como o compor-tamento omissivo (imobilidade voluntária)39. Esse conceito, por sua tão re-duzida conformação, recebeu do próprio Beling a designação de “fantasma exangue”40.

O conceito causal, e como de pronto se pode intuir, não logrou atender às funções pretendidas pelo conceito de ação. Da mesma forma que a sua teo-ria de base, o positivismo-naturalista, mostrou-se manifestamente incapaz de compreender e lidar com as coisas do direito penal; também o conceito causal apresentou-se inapto em formular um conceito unitário de ação.

Primeiramente, é preciso ter em conta que a tentativa de reduzir o fato criminoso a realidades psicofísicas implica não apenas distorções significa-tivas, mas o efetivo e deliberado abandono daquilo que há de mais próprio na infração criminal: o seu sentido social. Descrever a ação stricto sensu como inervação muscular voluntária41 ou o esforço de Beling em reduzir a omissão a um fenômeno psicofísico, manifesto na contenção dos nervos motores – in verbis: “a omissão é contenção dos nervos motores; a vontade domina os ner-vos aqui tal qual na estimulação do corpo: ela direciona-se contra a inervação e a concentração muscular”42 – produzem pronto estranhamento, dado o seu distanciamento em relação à realidade da vida. Esse distanciamento pode-ria ser compensado, é verdade, se correspondesse a um desvelar do efetivo conteúdo dessas categorias, eventualmente turbado em sua percepção comu-nitária. Mas não é esse o caso. Pelo contrário. A submissão do direito penal aos estritos domínios do mundo do ser mostrou-se, além de arbitrária e pou-co útil, verdadeiramente irrealizável. A omissão não existe em um mundo estritamente psicofísico. Ela até pode ter uma feição psicofísica, mas jamais existência psicofísica, na medida em que a sua existência está necessariamen-te condicionada a um elemento estranho ao mundo do ser: o dever de agir. E ademais, nem mesmo uma sua eventual feição psicofísica poderia ser limi-tada à contenção dos nervos motores. A ideia de contenção pressupõe a de impulso, i.e., de algo a ser contido. Em outras palavras, teria que se pressupor uma espécie de impulso natural de ação em atender o dever jurídico, o qual,

39 BELING, Ernst. Die Lehre vom Verbrechen, p. 9.

40 BELING, Ernst. Die Lehre vom Verbrechen, p. 17.

41 LISZT, Franz v. Das deutsche Reichsstrafrecht auf Grund des Reichsstrafgesetzbuchs und der übrigen strafrechtlichen Reichsgesetze. 1. ed. Berlin; Leipzig: Guttentag, 1881. p. 70.

42 BELING, Ernst. Die Lehre vom Verbrechen, p. 15.

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na omissão, viria a ser voluntariamente contido pelo sujeito. Isso, porém, é claramente insustentável. Ao sonegar impostos, v.g., o omitente certamente não está a conter um impulso natural de recolher tributos.

Independente disso, o fato é que um conceito de ação estabelecido nos elementos movimento corporal, voluntariedade, modificação do mundo exterior e causalidade, como proposto por v. Liszt, não é capaz de contemplar o compor-tamento omissivo e nem mesmo a totalidade dos delitos comissivos, fracas-sando, assim, também no atendimento da função classificatória. Causalidade e modificação do mundo exterior não são, evidentemente, características dos crimes omissivos – o pai que assiste o filho morrer afogado sem agir em seu socorro não é causa físico-mecânica da morte do filho, mas sim o afogamento e os elementos da sua cadeia causal, isto é, o pai não causa a morte do filho, e sim deixa de impedi-la; e nem todos os delitos comissivos modificam o mun-do exterior, como bem ilustra a conduta de violação de domicílio cuja feição natural restringe-se ao próprio comportamento de entrar ou permanecer em casa alheia ou em suas dependências (art. 150 do CP).

Por mais que v. Liszt, nas primeiras edições do seu Lehrbuch, tenha se esforçado em demonstrar a causalidade da omissão43, tal pretensão acabou por ser por ele mesmo aban-donada. Na edição brasileira de 1899, traduzida por José Hygino Duarte Pereira, v. Liszt já reconhecia que, diferente dos crimes comissivos, nos crimes omissivos haveria apenas uma equiparação entre o não impedimento do resultado e a sua causação. “Esta equipara-ção”, são palavras do autor, “não significa que se deva também ver no não impedimento uma causação do resultado: a punibilidade da omissão é completamente independente de sua causalidade”. Admitindo ainda que o não impedir poderia ser punido de forma mais branda que o causar e, inclusive, que a omissão poderia ser punida independente do resultado44.

De outra parte, também o conceito de ação de Beling, ainda que redu-zido a elementos mínimos (conduta humana e voluntariedade), não se mos-trou apto a superar os problemas enfrentados pela elaboração de v. Liszt. A configuração demasiadamente enxuta do conceito de ação colocou, de pronto, problemas relativos à função de união. Uma noção de ação reduzida à simples ideia de movimento corporal voluntário falha em apresentar um conteúdo material apto a figurar como elemento de base para os juízos de tipicidade, ilicitude e culpabilidade. Esse problema, aliás, é reconhecido por

43 LISZT, Franz v. Das deutsche Reichsstrafrecht. 1. ed. (1881), p. 81 e ss.; LISZT, Franz v. Lehrbuch des deutschen Strafrechts. 3. ed., 1888, p. 124 e ss.

44 LISZT, Franz v. Tratado de direito penal alemão. Trad. por José Hygino Duarte Pereira. Rio de Janeiro: F. Briguiet, t. I, 1899. p. 206 e ss.

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Beling ao designar o seu próprio conceito como fantasma exangue45 e de certo modo solucionado com a proposição do tipo (e não da ação) como conceito de base e pedra angular da teoria do crime46. De outra parte, no que tange especificamente à função classificatória, observa-se que nem mesmo a singela noção de voluntariedade pode ser exigida de todas as formas delitivas. Tal é o que ocorre nas hipóteses de crimes omissivos por culpa inconsciente, como na omissão do dever de agir, por esquecimento imputável a título de negli-gência. Não há, aqui, qualquer voluntariedade por parte do agente, uma vez que ele sequer se ocupa de forma intelectiva acerca da “ação” cometida por si. Além do mais, não nos parece igualmente solucionar a questão, valer-se de uma concepção de voluntariedade potencial, isto é, no fato de ter havido a possibilidade de atender voluntariamente ao mandamento de agir, eis que se manifestar de forma voluntária e ser possível manifestar-se de forma volun-tária não apenas são categorias logicamente distintas, como a afirmação desta nega a própria existência in concreto daquela47.

4.2 O conceito final de ação

Valendo-se do agir doloso como paradigma do fenômeno delitivo e buscando uma elaboração de base ontológica, Hans Welzel, na primeira me-tade do século XX, propugnava um conceito de ação centrado na ideia de finalidade. “A finalidade ou o caráter final da ação”, afirmava Welzel,

fundamenta-se no fato de o homem, graças ao seu saber causal, poder pre-ver, dentro de certos limites, as consequências possíveis de sua atividade, estabelecer, portanto, fins diversos e dirigir sua atividade, conforme o seu plano, à consecução desses fins.48

A finalidade era elevada à posição de “coluna vertebral da ação final” e, por consequência, o reconhecimento da existência de uma ação humana passava a demandar a verificação de determinadas fases dessa finalidade, a desenvolver-se, inicialmente, (i) em um plano interno, meramente mental, com (a) a antecipação do fim perseguido; (b) a seleção dos meios adequa-

45 BELING, Ernst. Die Lehre vom Verbrechen, p. 17.

46 BELING, Ernst. Die Lehre vom Verbrechen, p. v, Vorwort.

47 Ver ROXIN, Claus. Strafrecht. AT, v. I, p. 242.

48 WELZEL, Hans. Derecho penal aleman. Trad. da 11. ed. alemã por Juan Bustos Ramírez y Sergio Yáñez Pérez. 4. ed. Santiago de Chile: Jurídica de Chile, 1997. p. 39. Em célebre assertiva, observava Welzel que a finalidade é “vidende”, enquanto que a “causalidade é cega” (WELZEL, Hans. Derecho penal aleman, p. 40).

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dos; e (c) a consideração dos efeitos concomitantes; e, em segundo momento, (ii) em um plano externo, com a colocação em prática do curso causal adequa-do à obtenção do já anteriormente planeado49.

A tentativa de superação do modelo causal não se dava a partir de uma efetiva substituição dos seus pressupostos, entre os quais a causalida-de, mas sim de uma complementação pelo elemento finalidade50. O pretendido paradigma ontológico é, isto sim, erigido a partir da combinação desses dois elementos de natureza igualmente ontológica: causalidade e finalidade. Daí afirmar corretamente Marinucci que o “torto” ontológico da teoria causal não está, aos olhos do finalismo, na valorização da causalidade, mas em havê-la dissociado da finalidade51.

Em oposição a esse modelo, todavia, levantam-se inúmeras críticas, que, conquanto tenham sido repetidamente consideradas pelas tentativas de correção não só de Welzel como de muitos outros finalistas, não obtiveram respostas satisfatórias. No que tange muito particularmente à função classifi-catória, em relação à qual a manutenção de um critério ontológico de causa-lidade já deixa intuir as dificuldades, os problemas se tornam absolutamente insuperáveis. Não há causalidade ontológica na omissão e, por isso, menos ainda, a possibilidade de controlar o curso causal no sentido de atingir os fins pla-neados52. E se isso é assim, simplesmente não há como reconhecer na omissão uma ação em sentido final53.

Diante desse impasse, Welzel busca contornar a questão, por meio da defesa do fenômeno omissivo como omissão de uma ação final. Ao omitir, o su-jeito deixaria de praticar uma ação final possível. E, nesta medida, de forma semelhante ao que se passa na teoria causal, afirma a existência de finalidade

49 WELZEL, Hans. Derecho penal aleman, p. 40 e ss.

50 Para uma equiparação crítica entre a finalidade em si e a voluntariedade dos naturalistas, ver MARINUCCI, Giorgio. Il reato come “azione”, p. 72 e ss.

51 MARINUCCI, Giorgio. Il reato come “azione”, p. 70.

52 OTTO, Harro. Grundkurs Strafrecht, p. 50.

53 Roxin chega a afirmar que hoje já não se discute sobre a incapacidade de o conceito final de ação figurar como elemento primário do sistema jurídico-penal, eis que, pela ausência de causalidade na omissão, torna-se impossível absorver essa particular forma de expressão do ilícito-típico (ROXIN, Claus. Strafrecht. AT, p. 244). Sobre a dificuldade do conceito final de ação em absorver os fenômenos omissivos, ver também WESSELS, Johannes; BEULKE, Werner. Strafrecht. Allgemeiner Teil. 30. ed. Heidelberg: Müller, 2000. p. 27.

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também na omissão, porém agora de uma “finalidade potencial”54. Da estru-tura da direção final da ação, afirma Welzel, deve desprender-se a “capacida-de de ação”, necessária ao “poder final do fato”55.

Essa solução também não satisfaz. Aqui valem as mesmas objeções direcionadas à teoria causal. Ação e capacidade de ação, finalidade e fina-lidade potencial, não são, em hipótese alguma, categorias equivalentes ou, ao menos, que permitam um denominador comum. Trata-se, na verdade, le-vando em consideração as premissas do próprio autor, de categorias que se excluem mutuamente. Só faz sentido falar em finalidade potencial e capaci-dade de ação na ausência, respectivamente, de finalidade real e de ação real, i.e., de uma determinada ação que, embora possível ao sujeito, não chegou a ser praticada, não chegou a existir. Daí absolutamente impossível retirar da capacidade de ação o elemento básico comum das manifestações comissivas e omissivas do ilícito-típico: capacidade de ação não é ação56.

Por fim, ainda no que diz respeito ao conceito de ação potencial, vale também ter em conta que tal raciocínio só é possível à luz de uma expecta-tiva de ação informada pelo tipo penal, o que, por si só, contradiz a preten-dida natureza ontológica e pré-típica da ação finalista57. Em uma dimensão verdadeiramente ontológica, a própria “categoria da capacidade” de ação é inimaginável. Sua natalidade está condicionada a exigências axiológicas es-tabelecidas, in casu, pela norma penal. Somente haverá omissão, caso haja uma determinação de agir, caso o sujeito tenha deixado de praticar uma ação que era dele exigida. Não há como se cogitar a omissão de uma ação, sem o dever de praticá-la. Assim, para a formulação de um qualquer juízo acerca da “omissão de uma ação”, é preciso uma referência típica prévia à conside-ração acerca da ação final, de forma a identificar a existência de um dever descumprido, o que, por conseguinte, como se percebe, subtrai totalmente a pretendida dimensão ontológica pré-típica do finalismo58.

54 Afirma Welzel, nesse sentido, que a “omissão é a não produção da finalidade potencial (possível) de um homem em relação a uma determinada ação” (WELZEL, Hans. Derecho penal aleman, p. 238).

55 WELZEL, Hans. Derecho penal aleman, p. 238.

56 Nesse sentido, afirma corretamente Roxin que “capacidade para realizar uma ação” não se confunde com a ação em si (ROXIN, Claus. Strafrecht. AT, p. 244).

57 Para as suas razões em sentido contrário, ver WELZEL, Hans. Derecho penal aleman, p. 239.

58 Bem afirma Gallas, no âmbito dos crimes omissivos é possível falar-se, até mesmo, de uma preexistência da norma jurídica em relação ao próprio conceito de conduta (GALLAS,

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De mais a mais, também os crimes culposos não são adequadamente explicados por meio de uma ação final. Como já bem assinalava Eduardo Correia, ainda que se possa falar em uma ação descuidada dirigida finalmen-te, a verdade é que ela, na medida em que não contempla o resultado indese-jado, “não pode servir de base à teoria do crime”59. O descuido não é parte da finalidade da ação60. E, não o sendo, a exigência de uma ação final pouco terá a dizer no âmbito do ilícito-típico culposo.

4.3 O conceito social de ação

A partir de fortes críticas aos conceitos causal e final de ação, os de-fensores do modelo social propõem uma mudança de perspectiva acerca da questão. Ao invés de empreender esforços no sentido de uma definição on-tológica, julgam ser possível a obtenção de um conceito unitário e pré-típico de ação a partir de uma outra dimensão, a partir da sua dimensão social. Apenas as ações socialmente relevantes poderiam ser consideradas deten-toras de relevo jurídico61. E, desse modo, não mais categorias do mundo do ser, como a causalidade ou a finalidade, mas sim um elemento de cariz axiológico, a relevância social, passa a ser o núcleo do conceito de ação, a constituir o denominador comum das mais variadas elaborações que, desde Eberhard Schmidt62, nesse âmbito, têm sido propostas. A ação torna-se, na elaboração de Jescheck e Weigend – alguns de seus mais célebres adeptos –, o “comportamento socialmente relevante”63; ou ainda, na doutrina de Wessels e Beulke, “o comportamento socialmente relevante dominado ou dominável pela vontade”64.

Wilhelm. Zumgegenwärtigen Stand der Lehre vom Verbrechen, p. 28). Ver, ainda, MARINUCCI, Giorgio. Il reato come “azione”, p. 95 e ss.

59 CORREIA, Eduardo. Direito criminal. Coimbra: Almedina, 1999 (reimpressão). p. 248. Também DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal, p. 255.

60 JESCHECK, Hans Heinrich; WEIGEND, Thomas. Lehrbuch des Strafrechts, p. 221 e ss.

61 Na síntese de OTTO, Harro. Grundkurs Strafrecht, p. 50 (§ 5/36).

62 Para quem a ação consistia em uma “modificação do mundo exterior social por meio de um comportamento voluntário” (LISZT, Franz v.; SCHMIDT, Eberhard. Lehrbuch des deustchen Strafrechts. Einleitung und allgemeiner Teil. 26. ed. Berlin; Leipzig: Walter de Gruyter, 1932. p. 154).

63 JESCHECK, Hans Heinrich; WEIGEND, Thomas. Lehrbuch des Strafrechts, p. 223.

64 WESSELS, Johannes; BEULKE, Werner. Strafrecht, p. 27.

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As vantagens de um conceito de natureza normativa, principalmente no que tange à função classificatória, são evidentes. Ação e omissão, nos li-mites do mundo do ser, são insuscetíveis de serem reduzidos a um conceito único65, mas não o são em uma dimensão valorativa. Tanto a ação como a omissão podem, sim, ser percebidas em uma dimensão valorativa pré-típica, a partir da relação do “comportamento humano com o meio ambiente”66 ou, mais especificamente, no que se refere à omissão, a partir de expectativas de ação socialmente fundadas67. Partindo desse pressuposto, seria possível, em tese, conduzi-los a um conceito único, atrelado a esse juízo de valor prévio à juridicidade penal.

O reconhecimento dessas qualidades, porém, não impediu que o con-ceito social enfrentasse igualmente inúmeras dificuldades e, como as demais, acabasse por fracassar no atendimento às múltiplas funções atribuídas à ação como Oberbegriff. A começar pelo que há de mais elementar, nota-se, na com-panhia de Roxin68, que a teoria social não oferece, em verdade, um conceito de ação propriamente dito, isto é, um substantivo ao qual estariam vinculados os atributos típico, ilícito e culpável, nos termos da função de união. Ela ape-nas atribui mais um predicado à ação, consistente na relevância social. Tendo ou não relevância social, permanece a ação, restando saber, afinal, em que consistiria essa “ação” remanescente. Isso por um lado. Por outro, este sim o grande desafio do conceito social, está a definição de socialmente relevante. Sendo essa a pedra de toque do conceito, dela depende o atendimento das respectivas funções. Justamente nesse preciso ponto, contudo, percebem-se limitações insuperáveis.

À primeira vista, levando em consideração uma noção ampla de re-levância social, pode-se dizer que todas as condutas que o conceito de ação busca excluir, como hipóteses de coação física irresistível, atos em estado de inconsciência e movimentos reflexos, seriam na realidade socialmente rele-vantes, defraudando, assim, a função de delimitação69. Não é essa, todavia, a pretensão do conceito social. Pelo contrário. Ele busca uma ideia de rele-vância social bem mais restrita, capaz de conservar o potencial limitativo do

65 JESCHECK, Hans Heinrich; WEIGEND, Thomas. Lehrbuch des Strafrechts, p. 223.

66 JESCHECK, Hans Heinrich; WEIGEND, Thomas. Lehrbuch des Strafrechts, p. 223.Ver também LISZT, Franz v.; SCHMIDT, Eberhard. Lehrbuch des deustchen Strafrechts, p. 154 e ss.

67 JESCHECK, Hans Heinrich; WEIGEND, Thomas. Lehrbuch des Strafrechts, p. 223 e ss.

68 ROXIN, Claus. Strafrecht. AT, p. 250.

69 Assim, ROXIN, Claus. Strafrecht. AT, p. 249.

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conceito e, desse modo, a sua função de delimitação. Ocorre que, ao tomar esse caminho, o juízo de relevância social acaba por aproximar-se demasia-damente do tipo legal de crime, tendo como consequência a perda da sua autonomia valorativa (ela se confunde com a valoração contida no tipo) e o esvaziamento da função de união70. Indo ainda mais além, e de modo muito incisivo, Marinucci chega a afirmar que, enquanto a teoria finalista busca dar conteúdo ao conceito de ação antecipando o dolo, a teoria social busca o mes-mo resultado antecipando a culpa71.

Para superar o déficit de delimitação, é comum o esforço da teoria social no sen-tido de atribuir mais consistência ao conceito, mediante o recurso a categorias estranhas à dimensão social, como a voluntariedade, a dominabilidade72, a controlabilidade73 etc., as quais, por sua vez, colocam outros problemas74. A voluntariedade acarreta as mesmas dificuldades já opostas aos modelos anteriores: nem todos os delitos têm na sua base uma ação voluntária, como é caso da omissão por culpa inconsciente (ex.: o simples esqueci-mento de um dever do qual decorre um resultado típico). A dominabilidade e a contro-labilidade, por seu turno, são categorias próprias da imputação jurídico-penal e, desse modo, insuscetíveis de serem antecipadas a um momento valorativo anterior ao tipo, sem com isso defraudar a função de união.

Por fim, no que tange à relevância social propriamente dita, conquanto se possa reconhecer autonomia a uma dimensão valorativa pré-típica, não se pode negar que, em muitos casos, é o próprio tipo que determina o que é ou não socialmente relevante. Excluí-da, de pronto, pelas razões já acima expostas, uma ideia de relevância social lato sensu, a busca pelo relevante ou irrelevante socialmente acaba, não raramente, por se aproximar de categorias de imputação – como, aliás, bem ilustra a categoria risco permitido75 – e, desse modo, da valoração jurídico-penal ínsita ao tipo (ex.: se a direção de um veículo automo-tor é ou não socialmente relevante depende de se a condução está ou não conforme as regras de trânsito76). Nos crimes omissivos, aliás, isso é ainda mais exuberante. É verdade que há expectativas sociais autônomas em relação aos deveres de agir penalmente recep-cionados, como seria o caso da omissão de um dever socorro. Mas é igualmente verdade

70 Essa é a crítica mais comum ao modelo social. Ver ROXIN, Claus. Strafrecht. AT, p. 249; DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal, p. 256; OTTO, Harro. Grundkurs Strafrecht, p. 50 e ss.; MARINUCCI, Giorgio. Il reato come “azione”, p. 78 e ss.

71 MARINUCCI, Giorgio. Il reato come “azione”, p. 84.

72 WESSELS, Johannes; BEULKE, Werner. Strafrecht, p. 27.

73 JESCHECK, Hans Heinrich; WEIGEND, Thomas. Lehrbuch des Strafrechts, p. 223 e ss.

74 ROXIN, Claus. Strafrecht. AT, p. 249.

75 Ver MARINUCCI, Giorgio. Il reato come “azione”, p. 82 e ss.

76 Daí observar Marinucci, que, ao fim e ao cabo, o que se percebe é uma aproximação do “sentido social” da ação com a noção de “culpa objetiva” (MARINUCCI, Giorgio. Il reato come “azione”, p. 85).

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que em outras situações é o próprio direito penal que define o dever de agir (ex.: omissão de notificação de doença, art. 269 do CP), tornando impossível a sua apreciação social sem o necessário referencial jurídico-penal.

4.4 O conceito negativo de ação

Sob a denominação de conceito negativo de ação têm sido reunidas elabo-rações que buscam na ideia de evitabilidade um elemento comum entre ação e omissão, capaz de conduzir a uma definição unitária de ação. O seu primeiro desenvolvimento costuma ser atribuído77 a Herzberg, em escrito datado de 1972 (Die Unterlassung im Strafrecht und das Garantenprinzip), segundo o qual, “em termos jurídico-penais”, “age quem, como garante, não evita algo que podia evitar”. E, nessa linha, defende o autor que a ação deve ser entendida como “o não-evitar evitável em posição de garante”78. Orientação semelhante pode ser igualmente surpreendida nos trabalhos de Behrend (1979) – ação é a “não evitação evitável da situação típica”79 – e, mais recentemente, no curso de direito penal de Jakobs – “conduta é a evitabilidade de uma diferença de resultado”80.

Elaborado nesses termos, o conceito negativo tem enfrentado pontos de oposição irrefutáveis. Já à partida, equivoca-se em uma questão fundamen-tal. Da mesma forma que as tentativas de elaboração de um conceito unitário de ação a partir da ação positiva (ação em sentido estrito) fracassam ao gene-ralizar indevidamente elementos estranhos ao fenômeno omissivo, também a tentativa de elaboração de um conceito unitário a partir da omissão, dando origem a uma espécie de “supraconceito de omissão”, enfrenta problemas de igual natureza. A generalização de elementos próprios da conduta omissiva não apenas transporta para o agir uma realidade que não lhe é condizente, como, em razão da própria natureza normativa da omissão, acaba por ante-cipar na pré-tipicidade elementos de imputação. Como é facilmente perceptí-vel, a evitabilidade de um determinado resultado não é uma questão que possa

77 Segundo Roxin, Herzberg foi o primeiro a utilizar o princípio da evitabilidade como base para um conceito unitário de ação (ROXIN, Claus. Strafrecht. AT, p. 251).

78 HERZBERG, Rolf Dietrich. Die Unterlassung im Strafrecht und das Garantenprinzip. Berlin: Walter de Gruyter, 1972. p. 177.

79 BEHRENDT, Hans-Joachim. Die Unterlassung im Strafrecht. Entwurf eines negativen Handlungsbegriffs auf psychoanalytischer Grundlage. Baden-Baden: Nomos, 1979. p. 132.

80 JAKOBS, Günther. Strafrecht. Allgemeiner Teil. 2. ed. Berlin; New York: Walter de Gruyter, 1993. p. 143.

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ser resolvida em âmbito pré-típico, mas problema específico de imputação penal ou, mais propriamente, de imputação objetiva81.

4.5 O conceito pessoal de ação

Entre as elaborações mais recentes, merece especial atenção o conceito desenvolvido por Claus Roxin. Além da notável influência do pensamento de Roxin nos últimos desdobramentos da dogmática penal, o seu conceito de ação surge em um contexto muito particular. Em escrito publicado em 1962, sustentava o autor – na linha do que se tem aqui defendido – que nenhuma teoria da ação poderia constituir a base do sistema penal, acrescentando que “não se pode solucionar nenhum problema jurídico com conceitos que são prévios aos conteúdos de sentido jurídico”82. Após esse primeiro momento de ceticismo, todavia, o autor revê o seu posicionamento e passa a empreen-der esforços em sentido diametralmente oposto, propondo uma nova teoria da ação, por ele denominada de conceito pessoal83.

Em uma formulação aparentemente singela, a teoria pessoal define ação a partir de apenas dois elementos, “manifestação” e “personalidade”. Ação é simplesmente a “manifestação da personalidade”, entendendo como tal “tudo o que for atribuível a um ser humano como centro de ação anímico--espiritual”. Estariam excluídas, nessa medida, todas as “reações” meramen-te somáticas que não estão “submetidas ao controle do Eu” (i.e., manifesta-ções que não são dominadas ou domináveis pela vontade e consciência), uma vez que não consistiriam em manifestações da personalidade. De outra parte, sustenta que, conquanto os pensamentos e impulsos da vontade façam parte da “esfera anímico-espiritual da pessoa”, ao se manterem em uma dimensão interna, não caracterizariam uma manifestação da personalidade84.

O conceito de Roxin, em que pesem os seus méritos, não tem melhor sorte que os demais. Já à partida, percebe-se uma problemática dependência,

81 Assim: JESCHECK, Hans Heinrich; WEIGEND, Thomas. Lehrbuch des Strafrechts, p. 222; DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal, p. 212; ROXIN, Claus. Strafrecht. AT, p. 252 e ss.

82 ROXIN, Claus. Contribuição para a crítica da teoria finalista da acção. In: Problemas fundamentais de direito penal. Trad. Ana Paula dos Santos e Luís Natscheradetz. 2. ed. Lisboa: Vega, 1993. p. 108, originalmente publicado em ZStW 74 (1962), p. 548 e ss.

83 ROXIN, Claus. Strafrecht. AT, p. 256 e ss.; ver também, do mesmo autor, Il concetto di azione nei piú recenti dibattiti della dommatica penalistica tedesca. In: Studi in memoria di Giacomo Delitala, Milano: Giuffrè, v. III, p. 2103 e ss., 1984.

84 ROXIN, Claus. Strafrecht. AT, p. 256.

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senão mesmo identidade, entre as noções de personalidade e dominabilidade/controlabilidade: para que uma determinada manifestação humana possa ser considerada manifestação da personalidade, é preciso ser, ao menos, dominá-vel pela vontade e pela consciência. Esse recurso, presente também na teoria social, sujeita-se às mesmas críticas lá formuladas. Dominabilidade e contro-labilidade não são propriamente elementos ontológicos, mas sim critérios de imputação. Além disso, não é aplicável a todos os casos, como bem ilustra as hipóteses de movimentos reflexos e ações automáticas no trânsito. Este con-trovertido grupo de casos – já levantado como motivo de objeção às teorias causal e final em razão da ausência de voluntariedade e finalidade, respectiva-mente – são caracterizados justamente pela falta de “reflexão consciente”, o que, aliás, reconhece o próprio autor85 (vide supra). E se isso é assim, se não são providos de consciência, não se pode falar em dominabilidade pela vontade e consciência.

Para superar o problema, Roxin reconhece a existência de uma “dire-ção final interna” ou “finalidade inconsciente” e defende a presença do que denomina “adaptação do aparato anímico a circunstâncias ou eventos do mundo exterior”, a qual, segundo afirma, estaria inserido na ideia de per-sonalidade86. O caminho proposto, porém, não conduz a bom termo. Pelo contrário. Ao invés de contribuir para a solução da questão, o surgimento desse novo critério leva a três objeções que alcançam a teoria como um todo. Primeiro, que a sua elaboração atende à “necessidade” jurídico-penal de re-conhecer aqui uma ação. Em outras palavras, que o conceito pessoal de ação está, na verdade, informado pelo próprio tipo penal e, assim, busca confor-mar aquilo que é jurídico-penalmente interessante, defraudando desse modo a função de união. Segundo, que a possibilidade de reconhecer uma “direção final interna” – conceito que reclama um maior desenvolvimento – estaria prejudicada a priori pelo critério inicial de dominabilidade. Não se pode es-quecer que, para Roxin, somente é manifestação da personalidade, aquilo que for dominável pela vontade e consciência, aqui inexistente. A sua inser-ção, portanto, como categoria secundária (i.e., posterior ao critério “vontade e consciência”) é impossível e, se anterior, termina por esvaziar o critério inicial. Terceiro, que esta multiplicidade de critérios extraídos do conceito de personalidade implica uma noção de personalidade excessivamente aberta e pluriforme, incapaz de atender adequadamente à função de delimitação.

85 ROXIN, Claus. Strafrecht. AT, p. 267 e ss.

86 ROXIN, Claus. Strafrecht. AT, p. 269.

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De outra parte, no que tange à função classificatória ou, mas precisa-mente, à pretensão de reunir ação e omissão sob um único conceito, melhor êxito não tem a proposta de Roxin. É bem verdade que o autor sustenta a existência de uma dimensão valorativa na categoria “manifestação da perso-nalidade”, a qual, fundada nas expectativas sociais, possuiria a capacidade de apreender a omissão em um momento pré-típico (ex.: alguém, de forma intencional, não saúda um velho conhecido)87. Contudo, isso está longe de solucionar a questão. Em primeiro lugar, importa saber a partir de qual cri-tério o conceito pessoal de ação pretende avaliar a ocorrência do não atendi-mento de uma “expectativa de ação”. A aplicação do critério inicial, isto é, das emanações anímico-espirituais do ser humano, em nada contribui nesse sentido. Onde residiria, então, o referencial axiológico necessário para tanto? A resposta está novamente no já ilimitado conceito de personalidade. Segun-do observa o próprio autor, a personalidade não consistiria em apenas um elemento, mas em “múltiplas categorias valorativas”88.

Essa ampla conformação, todavia, impõe a aceitação de uma entre duas alternativas. Ou se deve reconhecer uma tal amplitude à personalidade (para além daquela já acima constatada) que a tornaria absolutamente impraticável como critério; ou se deve aqui reconhecer uma aproximação com o conceito social de ação, substituindo todas essas “múltiplas categorias”, por uma ca-tegoria ampla de “relevância social”, sujeita, nesta medida, a todas as críticas que lhe são opostas, inclusive pelo próprio Roxin89.

Não bastasse isso, mesmo que a personalidade se apresentasse como critério suficientemente delimitado para as funções axiológicas a que se pro-põe, a verdade é que, ainda assim, não estaria apta a propiciar um correto atendimento à função de união. A única avaliação axiológica que interessa para a apreciação da omissão jurídico-penal consiste, como já tivemos opor-tunidade de observar, na avaliação permitida pela tipicidade, resultando ab-solutamente desnecessárias outras considerações de cunho valorativo. Nem

87 ROXIN, Claus. Strafrecht. AT, p. 260 e ss.

88 ROXIN, Claus. Strafrecht. AT, p. 262.

89 Conclusão essa que, logicamente, não corresponde à vontade de Roxin. Nesse ponto, importa mencionar a crítica de Jescheck e Weigend, segundo a qual o conceito pessoal seria muito amplo, abrangendo, inclusive, acontecimentos sem qualquer relevo social (JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas. Lehrbuch des Strafrechts, p. 222). Crítica que é rebatida por Roxin sob o argumento de que a relevância social corresponde a um critério demasiadamente vago e que o conceito de ação deve também compreender fatos desprovidos de relevo social (ROXIN, Claus. Strafrecht. AT, p. 256).

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sempre haverá o não atendimento de expectativas prévias àquela noticiada pelo tipo penal, o que, obviamente, retira a possibilidade de identificar a omissão em uma dimensão pré-típica90.

Em postura científica exemplar, Roxin reconhece, neste particular, as limitações do seu conceito de ação. Segundo o autor, existem hipóteses em que o tipo penal é efetivamente o primeiro fator de consideração axiológi-ca, fator primeiro de conversão de um não-fazer em uma omissão jurídico--penalmente relevante (como, v.g., costuma ocorrer nas legislações penais no âmbito da economia, comércio e indústria). Nesses casos, afirma ele, “não há ação antes do tipo”; é, em realidade, o tipo que pressupõe a ação91.

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90 Nesse mesmo sentido: DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal, p. 258.

91 ROXIN, Claus. Strafrecht. AT, p. 261.

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comPliance e PreVençãO à de laVageM de dinheirO: sObre Os reFlexOs da lei

nº 12.683/2012 nO MercadO de segurOsGiovani aGoStini Saavedra*

* Doutor em Direito e em Filosofia pela Johann Wolfgang Goethe – Universität Frankfurt am Main (Alemanha), Mestre em Direito e Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUCRS, Professor de Direito Penal, Criminologia e de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito PUCRS, Professor e Coordenador das Especializações em Ciências Penais e Direito, Mercado e Economia da PUCRS, Professor do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS (Mestrado e Doutorado), Professor Convidado em diversos cursos de Pós-Graduação Lato Sensu, pesquisador do Institut für Sozialforschung (Alemanha, Frankfurt am Main) no período de 2005 a 2008, Secretário- -Geral do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (ITEC), Coordenador do Núcleo de Pesquisa em Ciências Criminais (PUCRS), Coordenador da Comissão Científica da Faculdade de Direito da PUCRS.

RESUMO: O presente artigo analisa criticamente as mudanças pro-vocadas na Lei nº 9.613, de 1998, pela Lei nº 12.683/2012 e seus refle-xos no mercado de seguros. Em especial, procura-se compreender e delinear as contribuições dessa mudança legislativa para consolida-ção da institucionalização do compliance no Brasil, bem como contri-buir para o debate nacional, ainda incipiente, acerca do conceito de criminal compliance.PALAVRAS-CHAVE: Compliance; criminal compliance; lavagem de dinheiro.ABSTRACT: This paper analyses critically the changes promoted in the brazilian money lauder in glaw by the new law 12.683/2012 and its consequences to the insurance market. Specially, it aims to com-prehend how the new law contributed to the institutionalization of compliance in Brasil and to the still incipient national debate about criminal compliance.KEYWORDS: Compliance; criminal compliance; money laundering.SUMÁRIO: Direito penal econômico e compliance; Novos deveres e obrigações; Rol das pessoas sujeitas aos “mecanismos de controle”; Consequências do descumprimento dos deveres de compliance.

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“STF – Maior preocupação é com novo entendimento sobre lavagem de dinheiro. Jurisprudência do Mensalão deixa bancos e empresas apreensi-vos”. Essa era uma das principais manchetes do jornal Valor Econômico do dia 12 de novembro de 2012. De fato, não há a menor dúvida de que, desde 2012, está-se a observar um processo de mudança profunda na forma de “comba-te” aos ilícitos empresariais e/ou econômicos: no âmbito dos crimes econô-micos, como é o caso do crime de lavagem de dinheiro, aos poucos, não se está mais procurando a responsabilização penal do indivíduo que praticou o crime, mas, surpreendentemente, o foco está sendo direcionado para aqueles dirigentes que, no âmbito da empresa, têm poder de administração; por ou-tro lado, no âmbito cível e administrativo, especialmente com promulgação da nova Lei Anticorrupção, está em curso um processo de generalização da responsabilidade objetiva da pessoa jurídica.

Esse processo de mudança de estratégia desenvolveu-se, basicamente, em duas fases: na década de 90, o Brasil assistia ao início de um processo sem precedentes de promulgação de leis, que criariam os chamados crimes “empresariais” ou crimes “econômicos”. Essa fase é marcada pela criação de novos ilícitos, que ampliam o controle penal da atividade empresarial e da ordem econômica, sem, porém, mudar a forma desse controle. Uma transfor-mação desse tipo somente começa a ser observada e concretizada, a partir da promulgação da nova Lei de Lavagem de Dinheiro e da nova Lei Anticorrup-ção, por meio das quais se completa um ciclo de mudança profunda na forma do controle estatal da atividade empresarial, inaugurado, no final da década de 90, com a promulgação da Lei nº 9.612, de 3 de março de 1998.

Essa nova fase caracteriza-se pelas seguintes diretrizes básicas de con-trole estatal da atividade econômica: em primeiro lugar, o Brasil acabou ce-dendo à pressão internacional e começou a disseminar, num primeiro mo-mento, em setores sensíveis do meio empresarial, e, recentemente, em prati-camente todos os ramos do mercado, os chamados “deveres de compliance”. Paralelamente, para viabilizar a punição do não cumprimento dos deveres de compliance, surgiu uma tendência de generalização do uso de conceitos como omissão imprópria, dolo eventual e de novas teorias da responsabili-dade penal de organizações, com o objetivo de desvincular a responsabiliza-ção penal da ação do indivíduo que, de fato, praticou o crime, para passar a responsabilizar os dirigentes da empresa. Apenas para dar um exemplo do alcance dessa mudança: no caso do Mensalão, quando da discussão sobre a controvertida aplicação da teoria do domínio do fato, os ministros deram a entender que quem comanda um crime praticado por subordinados pode-ria ser condenado ainda que sem provas diretas e concretas de seu efetivo

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envolvimento, pois sua posição hierárquica levaria à conclusão de que teria o chamado “domínio do fato”. Sem entrar no mérito do acerto da aplicação desta teoria pelo Supremo Tribunal Federal1, aplicando-se esse entendimen-to para o mercado dos seguros, isso poderia significar que o dono de uma seguradora cujos gerentes, na busca por atingir o cumprimento metas e re-ceber bônus, aceitassem novos clientes, que pudessem expor a empresa ao risco de ser utilizada para a prática do crime de lavagem de dinheiro, poderia ser condenado pelo crime de lavagem de dinheiro simplesmente por ocupar cargo hierarquicamente superior. Se aplicássemos ao caso também os novos entendimentos do Supremo no que diz respeito ao dolo eventual e à omissão imprópria, chegaríamos a resultados igualmente alarmantes: nesse caso, o dirigente da empresa poderia responder pelo crime de lavagem, porque teria violado um dever de garantia, previsto na nova lei de lavagem, ou por ter assumido o risco do cometimento do crime ao não ter trabalhado consisten-temente no sentido de promover, dentro da empresa, a criação de um sistema de compliance eficiente.

A “nova Lei Anticorrupção” completou esse ciclo de mudança na for-ma do controle estatal da atividade empresarial, à medida que ela generali-zou a responsabilidade de pessoas jurídicas pela prática de ilícitos de corrup-ção (art. 2º.), não excluindo a responsabilidade individual “de seus dirigentes ou administradores ou de qualquer pessoa natural, autora, coautora ou par-tícipe do ato ilícito” (art. 3º). As multas aqui podem chegar ao impressionante montante de até 20% (vinte por cento) do faturamento bruto do último exer-cício anterior ao da instauração do processo administrativo movido contra a empresa. Além disso, a nova Lei Anticorrupção consolida definitivamente a exigência de que empresas criem programas de compliance, porque estabelece que, apenas se a empresa acusada dispuser de tal programa à época da práti-ca do ilícito, esse fato poderá ser considerado na aplicação das sanções como fundamento para redução ou até mesmo não aplicação da pena.

Na verdade, no Brasil, a Lei de Lavagem de Dinheiro é uma das leis precursoras, que há mais tempo trata de compliance. Os deveres de compliance estão elencados, basicamente, nos arts. 10 e 11 da Lei nº 9.613/1998. Eles poderiam ser resumidos e sistematizados nos seguintes quatro deveres: 1) identificar e cadastrar clientes; 2) registrar operações; 3) prestar informa-ções requisitadas pelas autoridades financeiras; e, principalmente, 4) comu-

1 Para uma análise aprofundada do tema, ver: GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do domínio do fato – Sobre a distinção entre autor e partícipe no direito penal. Revista dos Tribunais, v. 933, 2013.

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nicar, independentemente de provocação pelas autoridades, a prática de ope-rações suspeitas de lavagem de dinheiro ou simplesmente valor elevado. A nova lei de lavagem ampliou esse rol de deveres e obrigações de compliance. Agora a lei também obriga expressamente a ter um programa de compliance. A nova lei de lavagem também aumentou o número de atividades que têm obrigação de ter um programa de compliance. No âmbito do mercado de se-guros, a principal modificação é aquela que prevê a inserção das entidades de capitalização no rol das pessoas obrigadas.

A regulamentação da nova lei de lavagem foi feita pela Susep por meio da Circular Susep nº 445, que foi promulgada em 2 de julho de 2012. Ela, textualmente, define que todas as empresas de seguro do mercado devem desenvolver e implementar um sistema de compliance com vistas à prevenção da lavagem de dinheiro, promovendo, por meio dele, a criação de procedi-mentos de controles internos, efetivos e compatíveis com a natureza, comple-xidade e riscos das operações realizadas e que contemplem a identificação, avaliação, controle e monitoramento dos riscos de a empresa ser envolvida em situações ilícitas relacionadas, direta ou indiretamente, à lavagem de di-nheiro. Além disso, essa Circular da Susep determina que todos os proce-dimentos do programa deverão ser manualizados, bem como deverão ser elaborados programas de treinamento para qualificação dos funcionários da empresa na implementação das medidas de prevenção à lavagem de dinhei-ro constantes do programa de compliance da empresa.

Nesse contexto, parece que, para se adaptar à nova realidade, faz-se necessária uma nova fase da implementação do compliance no mercado de seguros: a partir de agora, não será suficiente ter um corpo técnico, que tente criar controles internos a partir das normativas da Susep. De agora em dian-te, o sistema de compliance terá também de ser concebido de tal forma que proteja também seus dirigentes de eventuais atos ilícitos de seus funcioná-rios, clientes ou colaboradores. Em outras palavras: não se pode mais pensar o compliance sem uma avaliação dos riscos penais envolvidos e das medidas necessárias para elidi-los.

direitO Penal ecOnÔMicO e comPliance

O conceito de compliance surgiu na década de 90, mas apenas nos últi-mos anos ele também passou a ser objeto de estudos jurídicos. Formalmen-te, o conceito passou a ter relevância jurídico-penal, principalmente, com a entrada em vigor da Lei nº 9.613, de 03.03.1998, e da Resolução nº 2.554, de 24.09.1998, do Conselho Monetário Nacional. Desde então, as instituições fi-nanceiras e as empresas do mercado de seguros em geral passaram a ter o

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dever de, respectivamente, colaborar com as investigações da lavagem de direito (os chamados deveres de compliance) e de criar sistemas de controles internos que previnam a práticas de corrupção, de lavagem de dinheiro e outras condutas que possam colocar em risco a integridade do sistema finan-ceiro.

Porém, em que pese o conceito tenha surgido na década de 90, não surgiu ainda, no Brasil, tanto na academia quanto na doutrina jurídico-pe-nal e, muito menos, no âmbito da criminologia, nenhum debate acadêmico relevante acerca do tema. A relevância e o potencial penal e jurídico-penal deste novo conceito ainda não foram explorados adequadamente, na profun-didade que o tema merece e, principalmente, quase não têm sido levados em consideração na academia. Além disso, no âmbito empresarial, os potenciais atingidos também parecem não ter se dado conta das fortes consequências jurídico-penais deste novo instituto para o desenvolvimento de suas ativi-dades.

De fato, no Brasil, compliance, por muito tempo, foi compreendido, de um lado, apenas como parte da implementação das “boas práticas” da “corporate governance”. Neste caso, compliance era entendido como um “mandamento ético” que deveria melhorar o relacionamento da empresa com os stakeholders e com o mercado2. Por outro lado, no âmbito das ciências criminais, o significado deste conceito para o direito penal e para criminolo-gia, bem como os reflexos do seu desenvolvimento para a política criminal, quase não foram explorados. A única exceção digna de nota são os debates acerca dos chamados “deveres de compliance” que são discutidos como um aspecto dos crimes de lavagem de dinheiro3. Além disso, em especial o de-

2 Ver, a esse respeito: ABBI – Associação Brasileira dos Bancos Internacionais; Febraban – Federação Brasileira de Bancos, Cartilha Função de Compliance, agosto 2003, com atualização em julho de 2009 (Verfügbar in: www.febraban.com.br); COIMBRA, Marcelo de Aguiar; MANZI, Vanessa Alessi. Manual de compliance: preservando a boa governança e a integridade das organizações. São Paulo: Atlas, 2010. p. 12 e ss.; MANZI, Vanessa Alessi. Compliance no Brasil. Consolidação e perspectivas. São Paulo: Saint Paul, 2008. p. 64 e ss.; ANDRADE, Adriana; ROSSETTI, José Paschoal. Governança corporativa. Fundamentos, desenvolvimento e tendências. São Paulo: Atlas, 2009. p. 183 e ss.

3 Ver, a esse respeito: BARROS, Marco Antonio. Lavagem de capitais e obrigações civis correlatas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 305 e ss.; LIMA, Carlos Fernando dos Santos. O sistema antilavagem de dinheiro: as obrigações de compliance. In: DE CARLI, Carla Veríssimo. Lavagem de dinheiro: prevenção e controle penal. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2011. p. 47-88; BARBOSA, Daniel Marchionatti. Ferramentas velhas, novos problemas: deficiências

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bate internacional sobre criminal compliance é totalmente desconhecido no Brasil4.

O objeto de estudo do criminal compliance confunde-se, em grande medida, com aquele do direito penal econômico, e, portanto, vários autores procuram diferenciar o espectro de problemas de cada um destes ramos de pesquisa5. De fato, criminal compliance não significaria nada de novo se em seu conceito fossem subsumidos apenas os elementos que já são encontrados no debate nacional e internacional sobre direito penal econômico. Por outro lado, o surgimento deste novo fenômeno parece diretamente vinculado com o surgimento de crimes econômicos e da persecução penal de empresários e instituições financeiras, pois, apenas quando os gerentes de empresas e de instituições financeiras passaram a ser investigados e processados criminal-mente, surgiu também a necessidade de prevenção criminal no âmbito de suas atividades6.

Portanto, a primeira característica atribuída ao termo criminal compliance é prevenção. Diferentemente do direito penal tradicional, que tra-balha na análise ex post de crimes, ou seja, apenas na análise de condutas comissivas ou omissivas que já violaram de forma direta ou indireta algum bem jurídico digno de tutela penal, o criminal compliance trata o mesmo fenô-meno a partir de uma análise ex ante, ou seja, de uma análise dos controles in-ternos e das medidas que podem prevenir a persecução penal da empresa ou instituição financeira. Exatamente por isso o objetivo do criminal compliance

da utilização da lei dos crimes contra o sistema financeiro para coibir descumprimento de deveres de compliance. In: HIROSE, Tadaaqui; BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo (Org.). Curso modular de direito penal. Florianópolis: Conceito Editorial-Emagis, v. 02, p. 489-510, 2010.

4 Para um panorama sobre a discussão sobre compliance na Alemanha, ver: ROTSCH, Thomas. Criminal compliance. In: Zeitschrift für Internationale Strafrechtsdogmatik, Ausgabe 10/2010, 5. Jahrgang, S. 614; HAUSCHKA, Christoph E. Corporate compliance. Handbuch der Haftungsvermeidung im Unternehmen. München: C. H. Beck, 2010; GÖRLING, Herlmut; INDERST, Cornelia; BANNENBERG, Britta. Compliance. Aufbau – Managment – Risikobereiche, München: C. H. Beck, 2010; ROTSCH, Thomas. Recht – Wirtschaft – Strafe. Festschrift für Erik Samson zum 70. Geburstag, München: C. H. Beck, 2010.

5 ROTSCH, Thomas. Criminal compliance. In: Zeitschrift für Internationale Strafrechtsdogmatik, Ausgabe 10/2010, 5. Jahrgang, p. 614 ss.

6 Ibidem, p. 616.

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tem sido descrito como a “diminuição ou prevenção de riscos compliance”7. Segundo posição dominante, portanto, as empresas do mercado de seguros e as instituições financeiras deveriam criar os chamados compliance officers, que teriam a responsabilidade de avaliar os riscos compliance e criar controles internos com o objetivo de evitar ou diminuir os riscos de sua responsabili-zação penal.

Por outro lado, os compliance officers têm sido criados também com o objetivo de investigar “potenciais criminosos” no âmbito de atuação da em-presa. No âmbito do debate internacional, muito se tem discutido acerca dos deveres de comunicação de fatos potencialmente criminosos às autoridades competentes pelos compliance officers e de sua responsabilização penal. Recen-temente, na Alemanha, por exemplo, o BGH (Bundesgerichthof) condenou um compliance officer por entender que este, ao assumir a responsabilidade pela prevenção de crimes no interior da empresa, assume também uma posição de garante e, portanto, deve ser punido criminalmente por ter assumido a responsabilidade de impedir o resultado e por ter obrigação de cuidado, pro-teção e vigilância8.

Como se pode ver, o desenvolvimento do compliance parece implicar um paradoxo9. O objetivo de compliance é claro: a partir de uma série de con-troles internos, pretende-se prevenir a responsabilização penal. A sua con-cretização, porém, ao invés de diminuir as chances de responsabilização pe-nal, cria as condições para que, dentro da empresa ou instituição financeira, identifique-se uma cadeia de responsabilização penal, pois a forma como os compliance officers têm sido constituídos acabam por colocá-los na posição de garante. Com isso, as chances de responsabilização penal aumentam ao invés de diminuir, ou seja, a criação de compliance officers, que deveria zelar pela diminuição de riscos compliance, acaba, paradoxalmente, por aumentá-los, principalmente, porque os compliance officers, por sua vez, segundo doutrina majoritária, devem ser supervisionados diretamente pelo Conselho de Ad-

7 Ver, a esse respeito: COIMBRA, Marcelo de Aguiar; MANZI, Vanessa Alessi, Manual de compliance. Preservando a boa governança e a integridade das organizações. São Paulo: Atlas, 2010. p. 35 e ss.

8 A decisão referida é a BGH Entscheidung von 17.07.2009-5 StR 394/08. Para um panorama sobre a discussão sobre desta decisão na Alemanha, ver a bibliografia citada na nota 3 do presente artigo.

9 O conceito de paradoxo é empregado aqui no sentido dado por: HARTMANN, Martin; HONNETH, Axel. Paradoxien des Kapitalismus. Ein Untersuchungsprogram. In: Berliner Debatte Initial 15 (2004) 1, S. 9.

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ministração (ou órgão similar de gerência da empresa), fato que, obviamente, coloca em risco de persecução penal toda a administração da empresa.

Isso acontece, principalmente, porque o desenvolvimento do compliance tem se dado à margem do direito penal e da criminologia. Exatamente por isso, há um consenso no âmbito da discussão internacional acerca de compliance: a pesquisa e a implementação de compliance supõem conhecimen-tos jurídico-penais para o seu desenvolvimento adequado. Esse novo âmbito de pesquisa tem sido designado pela doutrina jurídico-penal internacional como criminal compliance, ou seja, o estudo dos controles internos e outras medidas que podem ser adotadas em empresas e instituições financeiras com o fim de prevenção de crimes. Trata-se de novo campo de pesquisa no âmbito das ciências criminais que tem chamado a atenção de penalistas e criminólo-gos de todo o mundo e que, espera-se, também o faça no âmbito da pesquisa nacional.

O termo compliance tem origem na língua inglesa e é uma derivação do verbo inglês to comply, que significa estar em conformidade, cumprir, exe-cutar, satisfazer, realizar algo imposto. No âmbito empresarial e, principal-mente, das instituições financeiras, o termo tem sido conceituado da seguinte forma:

Compliance é o ato de cumprir, de estar em conformidade e executar regula-mentos internos e externos, impostos às atividades da instituição, buscan-do mitigar o risco atrelado à reputação e ao regulatório/legal.10

A partir desse conceito, pode-se apreender um primeiro problema que precisa ser enfrentado por todo aquele que quiser tratar seriamente do tema: a abrangência do fenômeno. Entendido dessa forma, o termo compliance abar-caria quase todo o tipo de regulações, ou seja, os compliance officers teriam como obrigação avaliar constantemente os procedimentos da empresa com vistas a garantir que ela estivesse em conformidade com todas as exigências legais, nacionais ou internacionais que, de forma direta ou indireta, tivessem influência ou fossem aplicáveis à sua atividade, sejam elas trabalhistas, pre-videnciárias, ambientais, penais etc. De fato, nos EUA e nos países da Europa Ocidental, especialmente na Alemanha, os compliance officers têm essa função abrangente. Nesses países, não são apenas instituições financeiras que têm os

10 COIMBRA, Marcelo de Aguiar; MANZI, Vanessa A. Manual de compliance. Preservando a boa governança e a integridade das organizações. São Paulo: Atlas, 2010. p. 2.

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chamados “deveres de compliance”11, mas todas as empresas, sejam elas socie-dades anônimas, empresas de grande porte ou microempresas12.

Nesse sentido, os compliance officers funcionam, portanto, como um guardião da empresa que teria por principal função garantir que a empresa permanecesse dentro dos limites da legalidade. Porém, se esse é o signifi-cado do termo compliance, surge um segundo problema: o caráter “quase--tautológico” do termo, dado que simplesmente afirmar que a empresa tem de se adequar às leis é uma trivialidade. Afinal, não só as empresas, mas todos os cidadãos de um país devem respeitar as leis e agir dentro de seus limites. Portanto, se há alguma novidade no fenômeno do compliance, ela não pode ser buscada nesse seu aspecto. Na verdade, parece que a originalidade do fenômeno somente pode ser captada se o procuramos analisar do ponto de vista do direito penal e da criminologia. Dado que se trata de assunto com-plexo e que não poderá ser esgotado, tendo em vista os limites do presente artigo, no que segue, concentraremos a análise apenas em apenas um de seus aspectos: a problemática dos deveres de compliance na nova lei de lavagem.

nOVOs deVeres e ObrigaçÕes

No Brasil, os deveres de compliance estão diretamente vinculados ao nosso sistema de prevenção do crime de lavagem de dinheiro e inserem-se no contexto de regulação do mercado financeiro. Esses deveres estão elencados, basicamente, nos arts. 10 e 11 da Lei nº 9.613/1998. Eles poderiam ser resumi-dos e sistematizados nos seguintes quatro deveres: 1) identificar e cadastrar clientes (art. 10, I); 2) registrar operações (art. 10, II); 3) prestar informações requisitadas pelas autoridades financeiras (art. 10, III); e, principalmente, 4) comunicar, independentemente de provocação pelas autoridades, a prática de

11 Ver, a esse respeito: BARBOSA, Daniel Marchionatti. Ferramentas velhas, novos problemas: deficiências da utilização da lei dos crimes contra o sistema financeiro para coibir descumprimento de deveres de compliance. In: HIROSE, Tadaaqui; BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo (Org.). Curso modular de direito penal. Florianópolis: Conceito Editorial-Emagis, v. 2, p. 489-510, 2010.

12 Para um panorama sobre a discussão sobre compliance na Alemanha, ver: ROTSCH, Thomas. Criminal compliance. In: Zeitschrift für Internationale Strafrechtsdogmatik. Ausgabe 10/2010, 5. Jahrgang, S. 614; HAUSCHKA, Christoph E. Corporate compliance. Handbuch der Haftungsvermeidung im Unternehmen. München: C. H. Beck, 2010; GÖRLING, Herlmut; INDERST, Cornelia; BANNENBERG, Britta. Compliance. Aufbau – Managment – Risikobereiche. München: C. H. Beck, 2010; ROTSCH, Thomas. Recht – Wirtschaft – Strafe. Festschrift für Erik Samson zum 70. Geburstag. München: C. H. Beck, 2010.

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operações suspeitas de lavagem de dinheiro ou simplesmente valor elevado (art. 11)13.

A nova lei de lavagem, a Lei nº 12.683/2012, aprovada no dia 9 de julho de 2012, ampliou o rol de deveres e obrigações de compliance. Agora a lei tam-bém obriga expressamente a ter um programa de compliance nos incisos III e IV que foram inseridos pela nova lei no art. 10 da Lei de Lavagem:

Art. 10. [...]

[...]

III – deverão adotar políticas, procedimentos e controles internos, compa-tíveis com seu porte e volume de operações, que lhes permitam atender ao disposto neste artigo e no art. 11, na forma disciplinada pelos órgãos competentes;

IV – deverão cadastrar-se e manter seu cadastro atualizado no órgão regu-lador ou fiscalizador e, na falta deste, no Conselho de Controle de Ativida-des Financeiras (COAF), na forma e condições por eles estabelecidas;

V – deverão atender às requisições formuladas pelo COAF na periodici-dade, forma e condições por ele estabelecidas, cabendo-lhe preservar, nos termos da lei, o sigilo das informações prestadas.

Além disso, passa também a obrigar expressamente as pessoas físicas e jurídicas elencadas no art. 9º a criar um sistema de comunicação de operações suspeitas:

Art. 11. [...]

[...]

II – deverão comunicar ao COAF, abstendo-se de dar ciência de tal ato a qualquer pessoa, inclusive àquela à qual se refira a informação, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, a proposta ou realização:

a) de todas as transações referidas no inciso II do art. 10, acompanhadas da identificação de que trata o inciso I do mencionado artigo; e

b) das operações referidas no inciso I;

13 Existem outras normas e resoluções do COAF e Circulares da Susep e do Bacen que regulamentam e detalham essas obrigações. Porém, em função dos limites do presente artigo e por entender que essas normas não agregam à discussão que aqui se pretende propor, a análise se limitará aos artigos citados.

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[...]

III – deverão comunicar ao órgão regulador ou fiscalizador da sua ativi-dade ou, na sua falta, ao COAF, na periodicidade, forma e condições por eles estabelecidas, a não ocorrência de propostas, transações ou operações passíveis de serem comunicadas nos termos do inciso II.

[...]

§ 3º O COAF disponibilizará as comunicações recebidas com base no inciso II do caput aos respectivos órgãos responsáveis pela regulação ou fiscaliza-ção das pessoas a que se refere o art. 9º. (NR)

rOl das PessOas suJeitas aOs “MecanisMOs de cOntrOle”

A nova lei de lavagem também aumentou o número de atividades que tem obrigação de ter um programa de compliance. Em resumo, hoje, as se-guintes atividades precisam implantar um programa de compliance:

a) bolsas de valores, de mercadorias ou futuros e sistemas de negociação do mercado de balcão organizado;

b) seguradoras, corretoras de seguros e entidades de previdência comple-mentar;

c) administradoras de cartões de crédito, administradoras de consórcios e de cartões de credenciamento;

d) administradoras ou empresas que se utilizem de cartão ou qualquer ou-tro meio que permita a transferência de fundos;

e) empresas de arrendamento mercantil e as de fomento comercia (factoring);

f) sociedades e empresas que efetuem a distribuição de dinheiro ou quais-quer bens móveis, imóveis, mercadorias, serviços, ou, ainda, concedam desconto na sua aquisição, mediante sorteio ou outro método asseme-lhado;

g) qualquer empresa ou atividade que dependa de autorização de órgão regulador do mercado financeiro, de câmbio, de capitais ou seguros;

h) as pessoas físicas ou jurídicas que exerçam atividades de promoção imo-biliária ou compra e venda de imóveis;

i) as pessoas físicas ou jurídicas que comercializem joias, pedras e metais preciosos, objetos de arte e antiguidades;

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j) as pessoas físicas ou jurídicas que comercializem bens de luxo ou de alto valor ou exerçam atividades que envolvam grande volume de recursos em espécie;

k) juntas comerciais e registros públicos;

l) as pessoas físicas ou jurídicas que prestem, mesmo que eventualmente, serviços de assessoria, consultoria, contadoria, auditoria, aconselhamen-to ou assistência, de qualquer natureza, em operações:

a) de compra e venda de imóveis, estabelecimentos comerciais ou indus-triais ou participações societárias de qualquer natureza;

b) de gestão de fundos, valores mobiliários ou de outros ativos;

c) de abertura ou gestão de contas bancárias, de poupança, investimento ou de valores mobiliários;

d) de criação, exploração ou gestão de sociedades de qualquer natureza, fundações, fundos fiduciários e estruturas análogas;

e) financeiras, societárias ou imobiliárias;

f) de alienação ou aquisição de direitos sobre contratos relacionados a atividades desportivas ou artísticas profissionais;

g) pessoas físicas ou jurídicas que atuem na promoção, intermediação, comercialização, agenciamento ou negociação de direitos de transfe-rência de atletas, artistas ou feiras, exposições ou eventos similares;

h) a empresas de transporte e guarda de valores;

i) as pessoas físicas ou jurídicas que comercializem bens de alto valor de origem rural ou animal ou intermedeiem sua comercialização;

j) as dependências no exterior de entidades mencionadas neste artigo, por meio de sua matriz no Brasil, relativamente a residentes no país.

cOnsequÊncias dO descuMPriMentO dOs deVeres de comPliance

A primeira pergunta relevante para o criminalista que analisa os deve-res de compliance é: qual seria a consequência do descumprimento dos deve-res de compliance? Na prática das varas federais e na doutrina, encontram-se três correntes. A primeira entende que se deve recorrer aos artigos da Lei nº 7.492/1986 para coibir o descumprimento dos deveres de colaboração, es-pecialmente aos arts. 16 e 22 e, eventualmente, ao art. 4º. Contra essa posição, argumenta-se que as Leis nºs 7.492/1986 e 9.613/1998 regulam fenômenos diferentes, sendo que só a segunda trata dos deveres de compliance. Portanto,

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os deveres de compliance não se destinariam à tutela do sistema financeiro, mas, somente, à identificação de movimentações financeiras que indicariam a possibilidade de se estar diante do crime de lavagem de capitais. Nesse caso, portanto, seria necessária a criação de um tipo específico, que ainda não foi criado, nem mesmo pela nova lei de lavagem14.

Uma segunda corrente defende que a responsabilidade pela inobser-vância das obrigações de compliance seria meramente administrativa, nos ter-mos dos arts. 12 e 13 da Lei nº 9.613/1998, sendo punível com sanções de ad-vertência ou multa pelo órgão regulador da respectiva instituição ou, em sua ausência, pelo COAF15. A nova lei de lavagem reforçou esse entendimento, pois deixou claro que se aplica multa às pessoas referidas no art. 9º. Sempre que descumprirem as obrigações e deveres de Compliance:

Art. 12. [...]

[...]

§ 2º A multa será aplicada sempre que as pessoas referidas no art. 9º, por culpa ou dolo:

[...]

II – não cumprirem o disposto nos incisos I a IV do art. 10;

III – deixarem de atender, no prazo estabelecido, a requisição formulada nos termos do inciso V do art. 10;

[...]

Por fim, em outro artigo, também publicado no Boletim do IBCCrim16, já se havia sinalizado para o risco de, em breve, o descumprimento dos deveres de compliance serem associados à posição de garante. Um primeiro sinal nesse

14 Essa é a crítica e a sugestão de Daniel Marchionatti Barbosa em: Ferramentas velhas, novos problemas: deficiências da utilização da lei dos crimes contra o sistema financeiro para coibir descumprimento de deveres de compliance. In: HIROSE, Tadaaqui; BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo (Org.). Curso modular de direito penal. Florianópolis: Conceito Editorial- -Emagis, v. 2, 2010. p. 489-510.

15 Essa é a posição, por exemplo, de Carlos Fernando Lima em: O sistema nacional antilavagem de dinheiro: as obrigações de compliance. In: CARLI, Carla Veríssimo de. Lavagem de dinheiro. prevenção e controle penal. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2011. p. 84.

16 SAAVEDRA, Giovani A. Reflexões iniciais sobre criminal compliance. In: Boletim IBCCrim, São Paulo: IBCCrim, a. 18, n. 218, p. 11-12, jan. 2011.

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sentido foi dado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região em novembro de 2010:

[...] Desse modo, é forçoso reconhecer que as operações marginais de mero ingresso de valores no país por parte dos clientes das instituições financeiras são atípicas, remanescendo apenas a possibilidade de eventual prática de sonegação fiscal, que, como é cediço, pressupõe a constituição definitiva do crédito tributário, o que não é o caso, ou ainda a punição dos gestores da instituição financeira clandestina pelo delito do art. 16 e pelo crime de lavagem de dinheiro por violação dos deve-res de compliance, quando perpetrado no âmbito da instituição financeira autorizada.17

17 Apelação Criminal nº 5008326-03.2010.404.7100/RS, Rel. Paulo Afonso Brum Vaz, data de publicação: 19.11.2010 (grifo nosso). Há também julgados que já começam a discutir a possibilidade de se exigir deveres de compliance de contadores e advogados. Ver, por exemplo: “Penal. Embargos infringentes. Lavagem de dinheiro. Responsabilidade penal do advogado e do contador. Inexistência de dever de colaboração. Ausência de circunstâncias factuais objetivas. Absolvição. Recurso provido. 1. Os arts. 9º e 10 da Lei nº 9.613/1998 não incluem o contador e o advogado entre os profissionais que possuem dever de colaboração (compliance) com a repressão à lavagem de dinheiro (identificação de clientes, manutenção de registros e comunicação de operações financeiras com sérios indícios de lavagem de dinheiro). 2. O próprio Conselho Federal de Contabilidade não exige do contador a obrigação de fiscalizar a veracidade das informações que lhe são repassadas pelos seus clientes, conforme muito bem observou o ilustre Juiz Federal Eduardo Gomes Philippsen na sentença proferida na AP 2007.71.04.004606-0/RS. Evidentemente, isso não significa que um profissional da contabilidade jamais poderá ser responsabilizado criminalmente. Por ocasião do julgamento da ACR 2004.04.01.025529-6, Relª Juíza Fed. Eloy Bernst Justo, DE 28.06.2007, a 8ª Turma da Corte teve a oportunidade de manter a condenação por sonegação fiscal de um contador que trabalhava em um departamento de contabilidade exclusivo da aludida escola de informática, o qual controlava diretamente todas as falsidades fiscais que propiciaram vultoso crime contra a ordem tributária. 3. Ademais, a simples prestação de serviços advocatícios pelo acusado (contador e advogado) por ocasião da constituição da empresa utilizada para a ocultação de capital proveniente de tráfico internacional de drogas não é, por si só, suficiente para justificar a sua condenação, porque a acusação não logrou êxito em indicar na denúncia e comprovar ao longo da instrução que o réu teria incorrido no tipo penal do art. 1º, I, § 2º, I e II, da Lei nº 9.613/1998, isto é, que sabia dos propósitos obscuros da aludida pessoa jurídica. 4. Portanto, se é verdade que advogados e contadores também podem praticar o branqueamento de capitais quando as circunstâncias factuais objetivas preconizadas pelo art. 6º, item 2, f, da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (v.g., pagamento de honorários em espécie, valores fracionados, em joias) demonstrarem que houve subversão da sua atuação profissional, orientando e auxiliando, direta ou indiretamente, seus clientes no desiderato de ocultar ou dissimular valores provenientes dos delitos precedentes, também é certo que esses profissionais liberais

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Em nosso entendimento, essa posição parece ter quatro problemas principais: 1) pena e proporcionalidade: ela parece violar o princípio da pro-porcionalidade, à medida que, em princípio, atribui punição mais gravosa à instituição financeira autorizada (art. 1º da Lei nº 9.613/1998, pena de 3 a 10 anos e multa) e menos gravosa aos gestores da instituição financeira clandes-tina (art. 16 da Lei nº 7.492/1986, pena 1 a 4 anos); 2) problema processual: essa orientação parece infringir direito fundamental do nemo tenetur se detegere, inserto no art. 5º, LXIII, da Constituição Federal de 1988, dado que não se pode, por um lado, obrigar as instituições financeiras a prestar informações financeiras e depois puni-las com base nessas provas por ela produzidas; 3) responsabilidade penal objetiva: é necessário que se desenvolvam critérios materiais e não meramente formais para a aplicação da figura do garante, sob pena de se passar a adotar uma espécie de responsabilidade penal objetiva, totalmente rechaçada pela melhor doutrina. Tais critérios já são exigidos no caso do direito penal nuclear, que trabalha com crimes de maior gravidade, e, portanto, com muito mais razão, deveriam ser aplicados no direito penal secundário; por fim, 4) risco ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado: em fun-ção do princípio da ofensividade, deve-se, também aqui, identificar o risco e/ou perigo da omissão ou da violação de deveres de compliance para o bem jurídico, dado que sem essa ofensa não haverá crime.

Como se pode ver, o debate está ainda no início e ainda há muito para ser compreendido. Nesse sentido, pretendeu-se, nos limites do presente arti-go, apresentar alguns aspectos da problemática para contribuir para o avanço da pesquisa dos aspectos criminais do compliance. O que, porém, deveria ter restado claro é que a novidade do compliance somente pode ser compreendi-da a partir do diálogo com o direito penal. Sem esse diálogo, corre-se o risco de se cair em paradoxo exposto alhures18: procurando-se proteger a empresa por meio da criação de compliance officers, acaba-se por aumentar o risco de

não podem ser incriminados pelo simples contato que tiverem com os autores dos crimes antecedentes quando o órgão acusatório deixar de demonstrar, com segurança, como no caso em tela, os aspectos que denotam a ciência dos fins ilícitos da assessoria prestada. 5. Embargos infringentes providos” (TRF 4ª R., ENUL 2007.70.00.026565-0, 4ª S., Rel. Paulo Afonso Brum Vaz, DE 24.06.2011). Porém, os julgados que existem acerca do tema são todos anteriores à nova resolução do Conselho Federal de Contabilidade, que regula os deveres de compliance da classe. Portanto, fica a dúvida se as decisões teriam sido diferentes, se os julgadores tivessem à sua disposição essa resolução.

18 SAAVEDRA, Giovani A. Reflexões iniciais sobre criminal compliance. In: Boletim IBCCrim, São Paulo: IBCCrim, a. 18, n. 218, p. 11-12, jan. 2011.

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sua responsabilização penal, dado que, se eles não forem bem sucedidos nes-sa tarefa, poderão responder como se tivessem praticado o crime.

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PrObleMas esPeciais de autOria e de ParticiPaçãO nO ÂMbitO dO

direitO Penal secundáriO: exaMe da cOMPatibilidade entre “dOMÍniO da

OrganizaçãO” (organisationsherrschaft) e criMinalidade cOrPOratiVa

sPecial PrObleMs OF authOrshiP in secOndary criMinal law: exaMinatiOn OF the cOMPatibility between the

“dOMain OF OrganizatiOn” (OrganisatiOnsherrschaFt) and the cOrPOrate criMinality

raquel lima SCalCon*

* Doutoranda em Direito Penal pela UFRGS, Pesquisadora visitante na Georg-August Universität, Göttingen, Alemanha (2014/1), Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS (2011), Graduada pela Faculdade de Direito da UFRGS (2009), onde foi Professora Substituta de Direito Penal e Criminologia de março de 2012 a julho de 2013, Professora Convidada no Curso de Especialização em “Direito Penal e Política Criminal: Sistema Constitucional e Direitos Humanos” na UFRGS (ed. 2014).

RESUMO: No artigo, analisam-se as possibilidades de aplicação da teoria do domínio do fato, na subespécie domínio da organização, no âmbito do direito penal secundário, especificamente em relação a delitos do colarinho branco. De início, são apresentados conceitos estipulativos para as expressões “direito penal secundário” e “cri-mes corporativos”. Após, desenvolve-se um panorama da teoria do domínio do fato (Claus Roxin), buscando-se esclarecer a localização, o sentido e o conteúdo do domínio da organização em tal estrutura dogmática. A seguir, questiona-se se os requisitos da autoria me-diata por domínio da organização são comumente verificados em delitos empresariais, concluindo-se em sentido negativo. Ao final, buscam-se outras possibilidades para fundamentação da autoria no âmbito corporativo, dando-se ênfase à omissão imprópria.

ABSTRACT: This paper aims at investigating the possible applica-tion of the theory of the domain of the fact, in its subspecies domain of the organization, in the field of Secondary Criminal Law, specifi-

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cally in relation to white-collar crimes. For such purpose, the concept of “secondary criminal law” and a definition for “corporate crimes” are presented. After, an overview of the theory of the domain of the fact (Claus Roxin) is developed, followed by an attempt to clarify the location and the content of the “domain of the organization” in such dogmatic structure. Finally, it is argued, on the one hand, that the application of the Roxin’s theory in corporate crimes is not correct, and it is suggested, on the other, that to look for others possibilities to justify the authorship in the corporate crimes is essencial, such as the improper crime of omission.

PALAVRAS-CHAVE: Direito penal secundário; crimes corporativos e de empresa; concurso de agentes; autoria e participação; domínio da organização.

KEYWORDS: Secondary criminal law; corporate crimes; authorship and participation; domain of the organization.

SUMÁRIO: Introdução; 1 Direito penal secundário: proposta de definição conceitual; 2 Crimes corporativos ou criminalidade de empresa: proposta de definição conceitual; 3 Teoria do “domínio do fato” (Tatherrschaft); 3.1 Delimitação histórica e conceitual (?); 3.2 Tripartição do conceito de autor em delitos de domínio; 3.2.1 Au-toria imediata como domínio da ação; 3.2.2 Autoria conjunta (coau-toria) como domínio funcional do fato; 3.2.3 Autoria mediata como domínio da vontade; 3.2.3.1 Domínio da vontade por coação de ter-ceiro; 3.2.3.2 Domínio da vontade por erro de terceiro; 3.2.3.3 Do-mínio da vontade em aparatos organizados de poder (domínio da organização); 4 Limites da aplicação do “domínio da organização” (Organisationsherrschaft) a delitos corporativos; 4.1 Requisitos para o reconhecimento da autoria mediata por domínio da organização; 4.1.1 Existência de um aparato organizado de poder; 4.1.2 Desvincu-lação do direito por parte do aparato de poder; 4.1.3 Fungibilidade dos executores (segurança no resultado); 4.1.4 Disposição relevante do executor para o fato (?); 4.2 Verificação dos requisitos em rela-ção a delitos corporativos; 4.2.1 Empresa como aparato organiza-do de poder?; 4.2.2 Empresa como ente desvinculado do direito?; 4.2.3 Fungibilidade dos executores no âmbito corporativo?; 4.3 Ina-plicabilidade do domínio da organização no âmbito da criminali-dade empresarial como regra; 5 A omissão imprópria como possi-bilidade de fundamentação da autoria no âmbito da criminalidade corporativa; 5.1 Definição conceitual; 5.2 Compatibilidade com o Código Penal brasileiro e aplicação ao “caso-paradigma”; Conside-rações finais; Referências.

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intrOduçãO

O presente artigo intenta analisar a possibilidade de aplicação da teoria do “domínio do fato” (Tatherrschaft), na sua subespécie “domínio da organi-zação” (Organisationsherrschaft), para fins de verificação da autoria no âmbito do direito penal secundário, especificamente em relação a delitos do colari-nho branco e corporativos (criminalidade de empresa) cometidos em con-curso de agentes. Considerando que o Direito serve à solução de problemas teórico-práticos, a investigação empreendida terá por ponto de partida uma situação concreta hipotética (“caso-paradigma”), cuja resolução norteará o desenrolar do presente artigo, nos termos que seguem.

“A”, único dirigente de famosa empresa metalúrgica de Caxias do Sul/RS, dolosamente determinou a seus subordinados que os resíduos quími-cos poluidores oriundos da fabricação de aço passassem a ser despejados sem qualquer filtro ou controle diretamente no rio Caí, de modo a reduzir custos de produção. Alguns subordinados negaram-se a cumprir a determinação, en-quanto outros a cumpriram, de maneira pessoal e direta, tranquilamente.

Dias depois, verificou-se uma inédita e elevadíssima mortandade de peixes no referido rio. Após investigações, os subordinados foram denun-ciados na condição de autores diretos (imediatos), ao passo que o dirigente foi denunciado como autor indireto (mediato) de um dos delitos ambientais previstos na Lei nº 9.605/1998. A acusação, conforme expressamente escrito na denúncia, conferiu a qualidade de autor ao dirigente com base na “teoria do domínio do fato”, tal como desenvolvida por Claus Roxin.

Tendo em conta a situação acima descrita, os problemas jurídicos con-cretos, cuja investigação ora é pretendida, restam assim formulados: (i) o en-quadramento dogmático realizado, qual seja, dirigente como autor mediato e subordinados como autores imediatos está correto à luz da “teoria do domí-nio do fato”, tal como desenvolvida por Claus Roxin? E, subsidiariamente, (ii) pode-se fundamentar uma posição de autor para o dirigente a partir de al-guma outra construção dogmática? Em caso afirmativo, sob qual argumento e com qual artigo do Código Penal brasileiro?

A importância deste estudo decorre do crescente interesse que a teoria de Roxin vem despertando na comunidade jurídica brasileira desde o julgamento da Ação Penal nº 470 pelo Supremo Tribunal Federal, ocasião na qual supostamente a construção do jurista alemão teria sido utilizada para fundamentar determinadas condenações. Desde lá, conforme bem cons-tatado por Luís Greco e Alaor Leite, “avolumam-se manifestações sobre a

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teoria, e, na mesma proporção, cresce o estado de incerteza e desorientação generalizada”1.

Em um tal contexto de pouca precisão, intenta-se responder, da for-ma mais clara e objetiva possível, a tais indagações, adotando-se, para tanto, um plano de trabalho elaborado à luz do método dedutivo, partindo-se ana-liticamente do geral para o particular. Iniciar-se-á o trabalho apresentando propostas de definição conceitual das expressões “direito penal secundário” e “crimes corporativos”. A seguir, desenvolve-se um panorama da teoria do domínio do fato tal como desenvolvida por Roxin, buscando-se esclarecer a localização, o sentido e o conteúdo do domínio da organização (Organisation-sherrschaft) na vasta estrutura dogmática elaborada pelo jurista alemão.

Logo após, verificar-se-á se os requisitos para o reconhecimento da autoria em razão do domínio da organização são comumente preenchidos no campo dos delitos corporativos e, especificamente, no âmbito da situação hipotética descrita. Finalmente, indagar-se-á sobre a possibilidade de utili-zação de outras categorias dogmáticas para fins de exame de autoria e de participação nos casos de concurso de agentes na criminalidade empresarial, com ênfase na omissão imprópria.

1 direitO Penal secundáriO: PrOPOsta de deFiniçãO cOnceitual

A expressão direito penal secundário pode ser compreendida como o gru-po de normas penais acessórias e extravagantes ao direito penal clássico, isto é, aquele concentrado nos grandes Códigos Penais. Muito mais do que uma diferença de lugar, há, entre tais conjuntos, uma grande diferença de sentido: enquanto o direito penal clássico surgiu orientado à tutela de direitos subjeti-vos individuais (tradição jusnaturalista), o direito penal secundário teve origem na hipertrofia da Administração Pública após as Grandes Guerras Mundiais. Esta passou a desempenhar mais e mais funções, valendo-se do direito penal numa tentativa de conferir maior eficácia às suas normas administrativas2.

1 GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do domínio do fato sobre a distinção entre autor e partícipe no direito penal. [Recurso Eletrônico – RT Online]. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 933, p. 9, jul. 2013.

2 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Temas básicos da doutrina penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 139. Já para uma posição crítica frente à própria legitimidade do direito penal secundário, ver PRITTWITZ, Cornelius. El derecho penal alemán: ¿Fragmentario? ¿Subsidiario? ¿Ultima ratio? Reflexiones sobre la razón y límites de los principios limitadores

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Noutras palavras, se durante um longo período o direito administrati-vo foi uma linha avançada do direito penal clássico, antecipando-se e sancio-nando condutas que não apresentavam, ao menos ainda, ofensividade penal (ex.: normas de trânsito), agora o direito penal é que é chamado a tutelar nor-mas administrativas, sancionando penalmente o seu descumprimento (ex.: sonegação fiscal). Daí se exigir, para a configuração de muitos dos ilícitos pe-nais integrantes do direito penal secundário, um prévio ilícito administrativo3. Sem este, nem sempre é possível falar em ilicitude penal.

A diversidade da relação entre direito penal clássico, direito penal se-cundário e direito administrativo pode ser assim representada:

del derecho penal. In: Instituto de Ciencias Criminales de Frankfurt (ed.). Área de Derecho Penal de la Universidad de Pompeu Fabra (ed. española). La insostenible situación del derecho penal. Granada: Editorial Comares, 2000. p. 428 e ss.

3 Conforme Helena Regina Lobo da Costa, o entendimento de que as instâncias penal e administrativa poderiam ser independentes ou desconectadas foi claramente superado, ao menos no âmbito tributário, desde o julgamento do HC 81.611 pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (COSTA, Helena Regina Lobo da. Os crimes ambientais e sua relação com o direito administrativo. In: VILARDI, Celso Sanchez; PEREIRA, Flávia Rahal Bresser; DIAS NETO, Theodomiro (Org.). Direito penal econômico. Análise contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 204-5).

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Nesse contexto, conforme bem refere criticamente Figueiredo Dias, “o legislador foi-se deixando seduzir, um pouco por toda a parte, pela ideia, perniciosa, mas difícil de evitar, de pôr o aparato das sanções criminais ao serviço dos mais diversos fins de política social”4. Foi dessa forma que emer-giu, ao lado de um direito penal clássico, um outro direito, que é propria-mente mais administrativo do que penal, não pela consequência jurídica, por certo, mas sim pela matéria objeto da proibição5.

2 criMes cOrPOratiVOs Ou criMinalidade de eMPresa: PrOPOsta de deFiniçãO cOnceitual

Diante da controvérsia ainda existente acerca de um conceito unívoco de crimes de empresa, serão eles aqui estipulativamente definidos como con-dutas delituosas cometidas essencialmente por meio de um ente corporativo. Interessante, no ponto ainda, atentar para a didática distinção realizada por Bernd Schünemann6 entre criminalidade da empresa (Unternehmenkriminalität) e na empresa (Betriebskriminalität): enquanto aquela diz respeito aos delitos, em regra econômicos, cometidos mediante o uso de uma corporação, já esta se refere aos crimes consumados no interior da empresa (um homicídio, por exemplo) ou mesmo contra ela (ilustrativamente, um roubo), os quais, em regra, integram o ramo do direito penal clássico, não do secundário.

Portanto, delitos corporativos são aqueles nos quais os aspectos es-truturais típicos de uma empresa são verdadeiramente primordiais para a sua ocorrência7. Entre tais características, Rodrigo Sánchez Rios destaca duas como facilitadoras e potencializadoras da prática desses crimes, na medida

4 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Temas básicos da doutrina penal. Op. cit., p. 140.

5 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Temas básicos da doutrina penal. Op. cit., p. 140. Já para uma tentativa de diferenciação qualitativa entre ilicitude penal e ilicitude administrativa, ver FARIA COSTA, José Francisco de. O perigo em direito penal. Contributo para sua fundamentação e compreensão dogmáticas. 1. reimp. Coimbra: Coimbra Editora, 2000. p. 465 ss.; e D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade em direito penal. Escritos sobre a teoria do crime como ofensa a bens jurídicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 87 e ss.

6 SCHÜNEMANN, Bernd. Cuestiones básicas de dogmática jurídico-penal y de política criminal acerca de la criminalidad de empresa. Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales. Trad. Daniela Brückner e Lascurain Sánchez, v. 41, fasc. 2, p. 529-30, 1988.

7 RIOS, Rodrigo Sánchez. Imputação penal à pessoa jurídica no âmbito dos delitos econômicos. In: PRADO, Luis Regis; DOTTI, René Ariel. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. Em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. 4. ed. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2013. p. 204.

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em que acabam por ocultar, ou, ao menos, por dificultar a identificação dos seus autores8: organização hierárquica e divisão do trabalho9.

A essas Luciano Feldens ainda agrega outras duas: planejamento em-presarial e objetivação de lucros10. Interessante observar, como bem adverte Feldens, que tais elementos constitutivos e presentes em qualquer empresa acabam, por vezes, encontrando perfeita simetria com aqueles comumente utilizados como indicadores da existência de uma organização criminosa11.

Deve-se atentar, desde logo, para essa potencial confusão, especial-mente quando se vislumbra que um dos elementos para o reconhecimento da autoria mediata por domínio da organização, cujo exame será feito a seguir, é que esta seja desvinculada do direito. Logo, ainda que por ora se trate de uma mera confusão conceitual, sem maiores consequências, é possível que ela aca-be por indevidamente transformar uma empresa com objeto lícito, constituí-da regularmente nos termos das leis do país, mas que tenha cometido, de forma bastante eventual, delitos, em uma verdadeira organização à margem ou desvinculada do Direito.

3 teOria dO “dOMÍniO dO FatO” (tatherrschaft)

3.1 Delimitação histórica e conceitual (?)

Importante destacar que a expressão “domínio do fato” não foi utili-zada de forma inaugural e inédita por Claus Roxin. Juristas anteriores, como

8 A problemática resta muito bem explicitada por Artur Gueiros Souza: “Parece não existir dificuldades na identificação [...] daqueles que, numa sociedade, realizam atos imediatos (executórios) de uma determinada infração penal, ante a visibilidade de se estar à frente da atividade de prestação de bens ou serviços. Entretanto, a questão fica mais complexa quando [...] há a concorrência ou mesmo a emanação de ordem para delinquir por parte de agentes que se encontram nas instâncias intermediárias e superiores de uma pessoa jurídica, notadamente quando se está diante das grandes e complexas corporações” (SOUZA, Artur de Brito Gueiros. Teoria do domínio do fato e sua aplicação na criminalidade econômica: aspectos teóricos e práticos [Recurso Eletrônico – RT Online]. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 105, p. 2, nov. 2013).

9 RIOS, Rodrigo Sánchez. Imputação penal à pessoa jurídica no âmbito dos delitos econô-micos. Op. cit., p. 203.

10 FELDENS, Luciano. A criminalização da atividade empresarial no Brasil: entre conceitos e preconceitos. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v. 41, p. 33-44, abr./jun. 2011, p. 39.

11 FELDENS, Luciano. A criminalização da atividade empresarial no Brasil. Op. cit., p. 40.

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Hegler (Die Merkmale des Verbrechens, 1915)12, Adolf Lobe (Einführung in den Allgemeinen Teil des Strafgesetzbuches, 1933) e inclusive Welzel (Studien zum System des Strafrechts, 1939), já a haviam mencionado em seus escritos13. To-davia, foi Roxin quem, a partir de sua habilitação, Täterschaftund Tatherrschaft (1963), deu a ela contornos mais claros, bem como desenvolveu novas ferra-mentas dogmáticas para o exame da autoria em direito penal.

Para uma melhor compreensão da obra, é necessário ter em conta o contexto do seu desenvolvimento: os julgamentos dos crimes cometidos du-rante a Alemanha Nacional-Socialista. À época, estava-se diante de dois pro-blemas referentes à dogmática da autoria e da participação: (i) o executor imediato “A”, que conduziu judeus até a câmara de gás, bem como liberou a substância tóxica, deveria ser condenado como autor ou como partícipe do delito de homicídio? (ii) “B”, superior de “A” e emissor da ordem, deveria ser condenado como autor ou como partícipe do delito de homicídio?14

Tais questionamentos não surgiram por mero capricho ou por ilação teórica desnecessária. Ocorre que o Código Penal alemão, à época, punia o autor de um homicídio qualificado com pena de morte (§ 211 StGB15), ao passo que o partícipe deveria ter sua pena reduzida em relação à do agente princi-pal (§ 49 StGB). Mesmo hoje, após reformas, a pena do homicídio qualificado ainda é duríssima (prisão perpétua, conforme § 212, 2, StGB)16.

12 Em Hegler, todavia, o termo ainda não possuía o sentido hoje atribuído, estando mais relacionado com questões de culpabilidade, conforme o próprio Roxin relata: “fue Hegler el primero que empleó en Derecho Penal la expresión ‘dominio del hecho’. [...] Pero Hegler aún no anuda a esta palabra el contenido que hoy tiene” (ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. 7. ed. Trad. Joaquín Contreras e José Luis de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 2000. p. 81. Trad. Täterschaft und Tatherrschaft).

13 Ver, por todos, GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do domínio do fato... Op. cit., p. 2.

14 GRECO, Luís. Teoria do domínio do fato. Registro de palestra no Seminário Internacional de Direito Penal e de Criminologia na Emerj. Rio de Janeiro, 30 out. 2012, 42min30seg, 9min10seg. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=Th4jfnkDsEE>. Acesso em: 12 nov. 2013.

15 StGB é a abreviação utilizada para Strafgesetzbuch, isto é, Código Penal.16 GRECO, Luís. Teoria do domínio do fato. Registro de palestra no Seminário Internacional

de Direito Penal e de Criminologia na Emerj. Rio de Janeiro, 30 out. 2012, 42min30seg, 9min32seg. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=Th4jfnkDsEE>. Acesso em: 12 nov. 2013.

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Some-se a isso o fato de que, à luz da teoria dominante na época acerca da autoria, no caso, a formal-objetiva, para a qual é autor “aquele que executa por si mesmo total ou parcialmente as ações descritas nos tipos penais da Parte Especial” [trad. livre]17, sendo todos os demais agentes partícipes, ape-nas o executor imediato “A”, referido no item (i), poderia ser autor do delito de homicídio qualificado em relação aos judeus assassinados nas câmaras de gás. O seu superior “B”, referido no item (ii), por não ter realizado a ação descrita no tipo penal, seria apenas instigador, em razão da ordem emanada.

Disso decorre que, enquanto “A”, se condenado, receberia uma pena capital, já “B” teria uma pena necessariamente mais branda do que a de “A”. Muitos dos julgadores consideraram tal conclusão injusta, na medida em que indivíduos mais importantes na organização do Estado Nacional-Socialista alemão seriam poupados frente a meros subordinados, sem qualquer poder de mando18. Em razão disso, não foram poucos os que qualificaram tanto os executores quanto os emissores da ordem como partícipes, gerando, assim, uma grande inconsistência dogmática.

A teoria desenvolvida por Roxin dá nova resposta ao problema, suge-rindo um rearranjo interno entre o que é autoria e o que é participação. Nesse sentido, importante destacar que tal elaboração não gera um aumento de pu-nibilidade. Ela não tem o condão de tornar autor ou partícipe alguém que já não o seria segundo as teorias anteriores. É dizer: sem ela, os sujeitos de todo modo sofreriam a imputação, residindo a diferença em um ponto apenas: na sua qualificação como autor ou como partícipe.

Além disso, é preciso atentar para o fato de que Roxin estruturou um conceito restritivo de autor19, distinguindo-o da mera participação. Em relação às teorias precedentes, pode-se afirmar que, como regra, a teoria do domínio do fato é mais exigente e criteriosa, elevando o ônus argumentativo para que alguém seja reconhecido como autor, e não como mero partícipe. Em uma única situação ela faz o movimento contrário: Roxin elabora uma nova hipó-tese de autoria mediata, a qual denominou “domínio da vontade em aparatos organizados de poder” (Willensherrschaft in organisatorischen Machtapparaten), também chamada de domínio da organização (Organisationsherrschaft), pos-

17 ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. Op. cit., p. 54.18 GRECO, Luís. Teoria do domínio do fato. Registro de palestra no Seminário Internacional

de Direito Penal e de Criminologia na Emerj. Rio de Janeiro, 30 out. 2012, 42min30seg, 10min10seg. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=Th4jfnkDsEE> Acesso em: 12 nov. 2013.

19 GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do domínio do fato... Op. cit., p. 9.

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sibilitando que alguns casos de instigação passem a ser compreendidos como hipóteses de autoria20.

Finalmente, antes de ingressar-se no capítulo seguinte, ressalta-se que o termo “domínio do fato”, por si só, não resolve qualquer problema real de autoria. Não se trata de um conceito que indica, de forma exaustiva, seus elementos. Logo, um caso concreto não pode ser a ele subsumido e solvido. Está-se diante, nas palavras de Roxin, de um “conceito aberto”21. Como tal, serve tão somente de orientação ou de diretriz para o exame de autoria em grupos de casos pela doutrina, sendo imprescindível esse subsequente de-senvolvimento22.

Não por acaso Roxin, a partir da ratio “domínio do fato”, desenvolveu uma estrutura dogmática densa, com três formas e variadas subformas de autoria em “delitos de domínio”, tema que será tratado a seguir. A diretriz, todavia, não se presta a resolver casos quando em questão (i) “delitos de dever” (Plichtdelikte – delitos próprios, delitos omissivos e delitos culposos) e (ii) “delitos de mão própria” (delitos de direito penal de autor e delitos de violação de dever personalíssimo, como falso testemunho23), sendo esses os outros dois grandes grupos da autoria na conformação de Roxin, cujos crité-rios de verificação, justamente por isso, são diversos24.

3.2 Tripartição do conceito de autor em delitos de domínioInicialmente, fundamental esclarecer que a diretriz “domínio do fato”

não tem pretensão de totalidade25. Ela serve de orientação para determinados delitos, os de “domínio”, definidos por Roxin como aqueles nos quais

o comportamento punível pelo legislador é dominável. Dominável são to-dos os eventos cujos efeitos proibidos residem no plano material ou psí-quico. Homicídios, lesões, danos, incêndios, furtos etc. têm consequências externas suscetíveis de configuração [...] no sentido acima descrito. (tradu-ção livre)26

20 GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do domínio do fato... Op. cit., p. 9.

21 ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. Op. cit., p. 145.

22 GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do domínio do fato... Op. cit., p. 10.

23 GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do domínio do fato... Op. cit., p. 8.

24 Ver esclarecedor diagrama em ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. Op. cit., p. 570.

25 GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do domínio do fato... Op. cit., p. 6.

26 ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. Op. cit., p. 369.

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Como regra, os “delitos de domínio” são os comuns comissivos dolosos. Portanto, apenas se o tipo penal apresentar essas três características, o exame da autoria poderá ser feito a partir da noção abstrata de “domínio do fato”, cuja concretização ocorre em três formas fundamentais: (i) autoria imediata como domínio da ação, (ii) autoria conjunta (coautoria) como domínio fun-cional do fato e (iii) autoria mediata como domínio da vontade. Ao presente trabalho interessa, sobretudo, a autoria mediata como domínio da vontade, especificamente a sua subespécie domínio da organização, razão pela qual as demais categorias serão examinadas de forma bastante sucinta.

3.2.1 Autoria imediata como domínio da ação

Segundo Roxin, esta é a mais genuína categoria de autoria, na qual praticamente coincidem a concepção dos juristas e a concepção do “senso comum” sobre quem é o autor de um determinado evento27. Nessa hipótese, aquele que individualmente realizar todos os elementos integrantes de um dado tipo penal, sem exceção, será autor do crime correspondente28.

Sendo assim, aquele que conduziu judeus a uma câmara de gás, libe-rando a substância tóxica e assassinando-os, jamais poderá ser qualificado como mero partícipe, uma vez que tem domínio da ação. Da mesma for-ma, aquele que “aperta o gatilho” sempre será autor. Note-se: tal condição permanecerá ainda que o sujeito atue a mando de terceiro (instigador, como regra)29. Logo, adverte-se que a teoria de Roxin em nada altera essa configu-ração no que pertine ao autor imediato, podendo apenas, em raras hipóteses, transformar um antes “terceiro instigador” em autor mediato, por domínio da organização, como se explicará adiante.

3.2.2 Autoria conjunta (coautoria) como domínio funcional do fato

Outra possibilidade de domínio de um fato ocorre quando há uma atuação conjunta, de ao menos duas pessoas, para a realização de um ob-jetivo comum, com divisão de tarefas. Consoante Roxin, a coautoria está configurada quando os agentes “somente podem realizar seu plano atuando conjuntamente, mas cada um, por separado, pode anular o plano conjunto

27 ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. Op. cit., p. 151.

28 ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. Op. cit., p. 151.

29 GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do domínio do fato... Op. cit., p. 4.

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retirando sua contribuição. Nessa medida cada um tem o fato em suas mãos” (tradução livre)30.

Para o jurista alemão, é esta “posição chave” ocupada por cada inter-veniente que descreve, com exatidão, a estrutura da coautoria31. O sucesso da empreitada está intrinsecamente vinculado à cooperação do outro e vice--versa: a ausência de cooperação significa o fracasso do plano. Exemplificati-vamente, se A ameaça seguranças de um banco com uma arma, para que B se aproprie dos valores depositados no cofre da instituição, ambos responderão por roubo (art. 157 do Código Penal brasileiro), não por delitos distintos32.

3.2.3 Autoria mediata como domínio da vontade

Esta forma de autoria sempre foi, segundo Roxin, uma das mais ques-tionadas: pode ser autor quem não executou o fato com suas próprias mãos?33. Para a teoria objetivo-formal, por exemplo, tal ideia seria insustentável, uma vez que somente poderia ser autor aquele que realizasse a ação típica pesso-almente. Nesse sentido, a noção de “domínio do fato” foi um ganho teórico importante, permitindo pensar para além da autoria imediata e da mera insti-gação, conforme relata Roxin34.

Ocorre que, em dadas situações, o sujeito que pessoalmente realiza a ação, isto é, o autor imediato, tem sua vontade de tal modo dominada por terceiro, ou seja, por um autor mediato, que aquele acaba por reduzir-se a um mero instrumento à mercê dos desmandos deste. Assim, é possível dizer analogicamente que o autor imediato “A” estaria para o autor mediato “B” da mesma forma que um revólver está para um autor hipotético imediato “C”. Logo, “A” sofre uma tal situação de instrumentalização que não difere muito de uma arma, ou de outro instrumento qualquer, nas mãos de “B”. Quem decide se haverá o disparo é antes “B” do que “A”; logo, é “B” quem tem em suas mãos o “curso dos fatos”.

As situações em que está configurada uma autoria mediata por domí-nio da vontade de terceiro(s) são, segundo Roxin, fundamentalmente três:

30 ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. Op. cit., p. 309.

31 ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. Op. cit., p. 309.

32 Ver GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do domínio do fato... Op. cit., p. 6.

33 ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. Op. cit., p. 165.

34 ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. Op. cit., p. 165.

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(i) domínio por coação, (ii) domínio por erro e (iii) domínio em aparatos or-ganizados de poder (ou domínio da organização). É o que se passa a analisar.

3.2.3.1 Domínio da vontade por coação de terceiro

Imagine-se a seguinte situação concreta: “X”, gerente de um banco, está sob a mira do revólver de “Y”, que o obriga a abrir o cofre da institui-ção financeira, bem como a lhe entregar todos os valores depositados. Nesse caso, “Y” domina, por coação, “X”. Este, por sua vez, domina o fato, visto que é o executor direto. Disso decorre que “Y”, ao dominar “X”, acaba por ter em suas mãos o próprio curso dos fatos. Nas palavras de Roxin, “o domínio da vontade sobre o titular do domínio da ação fundamenta o domínio do fato” (tradução livre)35.

Nessa hipótese, “X” não deixará de ser autor imediato do fato, apenas poderá ser exculpado caso se reconheça que agiu por coação moral irresistí-vel (art. 22 do Código Penal brasileiro). Por sua vez, “Y” deverá responder pelo fato na condição de autor mediato e não de mero instigador sempre que “X” tenha sido exculpado. Conforme Greco e Leite, o fato de o legislador isentar, em dadas situações, o autor “da frente”, é interpretado por Roxin como um indicativo de que é preciso responsabilizar o autor “por detrás” (Hintermann)36.

Essa ideia fica bastante clara na seguinte manifestação do jurista alemão:

Aquele que simplesmente exerce sobre o agente direto influência mais ou menos intensa não tem o domínio no sentido jurídico porque se mantém a responsabilidade do executor. Porém, aquele que influi de outra maneira que este de iure se vê exonerado de responsabilidade, há de considerar-se titular do domínio da vontade. (tradução livre)37

3.2.3.2 Domínio da vontade por erro de terceiro

Uma outra forma de domínio da vontade é o erro de terceiro. Como bem se sabe, há diferentes espécies de erro em direito penal, de modo que

35 ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. Op. cit., p. 167.

36 GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do domínio do fato... Op. cit., p. 4.

37 ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. Op. cit., p. 172.

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Roxin analisa cada uma delas e sugere as correspondentes consequências38. Em razão dos limites deste estudos, tratar-se-á, a título exemplificativo, ape-nas do erro excludente de dolo e, logo, inculpável (erro de tipo inevitável).

Roxin inicia o exame apresentando a seguinte situação concreta: A pede a B que acenda a luz. B inocentemente o faz, sem saber do plano de A39. Em lugar de acender a luz, B, na realidade, ativou explosivos, matando C. Segundo o penalista alemão, esse caso não se confunde com o da coação de terceiro, uma vez que: (i) A não domina B, pois depende da sua boa von-tade em atender o pedido e (ii) B não domina o fato, pois, induzido em erro, desconhece a realidade40. Como, então, justificar uma autoria mediata de A através da ação de B?

Para Roxin, é o conhecimento superior (überlegenes Sachwissen) da realidade, próprio do sujeito por detrás, que fundamenta a resolução do pro-blema41. Essa condição possibilita que apenas ele dirija ou direcione os fatos para a finalidade intentada, por meio do seu “instrumento”, o autor imedia-to. Nesse contexto, o autor mediato é o único capaz de conduzir finalmente (Welzel) o acontecer até o resultado desejado, pois os demais agentes igno-ram a realidade. O domínio da vontade, aqui, residiria justamente nessa ex-clusiva capacidade de controle final do curso causal42.

3.2.3.3 Domínio da vontade em aparatos organizados de poder (domínio da organização)

Uma última possibilidade de autoria mediata por domínio da vontade é aquela que ocorre em “aparatos organizados de poder”. Apesar de antiga, ela ganhou vasta notoriedade no Brasil apenas mais recentemente, em razão do julgamento da Ação Penal nº 470 pelo Supremo Tribunal Federal. Consoante advertem Greco e Leite, trata-se, excepcionalmente, de uma forma de autoria mediata por domínio da vontade de um terceiro plenamente responsável que, apesar disso, encontra-se em situação de clara instrumentalização43.

38 Ver ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. Op. cit., p. 195 e ss.

39 ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. Op. cit., p. 195.

40 ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. Op. cit., p. 195-6.

41 ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. Op. cit., p. 196.

42 ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. Op. cit., p. 196.

43 GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do domínio do fato... Op. cit., p. 5.

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Na sua tese de habilitação, Täterschaft und Tatherrschaft, Roxin dedicou pouco mais de 10 páginas para essa temática44. Por tal razão, comumente se considera não esta obra, mas sim o artigo Straftaten im Rahmen organisatoris-cher Machtapparate (em tradução livre, “Delitos no âmbito de aparatos orga-nizados de poder”), publicado na Goltdammer’s Archivfür Strafrecht em 196345, como o início, propriamente dito, da discussão46.

Esta forma inovadora de autoria mediata, nunca antes mencionada nem pela doutrina, nem pela jurisprudência47, foi apresentada por Roxin como a única possibilidade de fundamentar, com consistência, a responsabilida-de das autoridades superiores “competentes” para o extermínio de judeus (Eichmann, por exemplo), como autores mediatos dos assassinatos perpetra-dos em razão de suas ordens48. Com ela, prescinde-se da exigência de que, para a punição do autor mediato, falte ao imediato liberdade de escolha (domí-nio da vontade por coação) ou compreensão da realidade (domínio da von-tade por erro).

Em se tratando, portanto, de um executor direto plenamente livre, consciente e responsável pelo seu ato, qual seria a característica especial exis-tente em aparatos organizados de poder que diferencia tal situação de uma mera instigação, na medida em que transforma o mandante – comumente instigador – em autor mediato? Segundo o jurista alemão, o traço distintivo fundamental reside no fato de que, em tais aparatos, o autor mediato ou su-

44 ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. Op. cit., p. 269-80.

45 O artigo em questão originou-se de conferência proferida por Roxin na cidade alemã de Hamburgo, em 5 de fevereiro de 1963. Na ocasião, o penalista alemão apresentou, em linhas gerais, a possibilidade, ainda “inexata e provisoriamente formulada” (vorläufig und ungenau formuliert), de um aparato organizado de poder como penalmente responsável por um determinado delito (ROXIN, Claus. Straftaten im Rahmen organisatorischer Machtapparate. Goltdammer’s Archiv für Strafrecht, Hamburgo, R. v. Decker’s Verlag, p. 193-207, 1963, p. 193). O texto encontra-se, ainda, publicado em língua inglesa no Journal of International Criminal Justice (JICJ), t. 9, n. 1, p. 193-205, 2011.

46 O próprio Roxin atualmente refere ser essa a “primeira publicação de minha teoria” (ROXIN, Claus. Sobre a mais recente discussão acerca do “domínio da organização” (Organisationsherrschaft). Trad. Raquel Lima Scalcon. In: AMBOS; Kai; BÖHM, Maria Laura (Org.). Desenvolvimentos atuais das ciências criminais na Alemanha. Brasília: Gazeta Jurídica, 2013. p. 309).

47 ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. Op. cit., p. 270.

48 ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. Op. cit., p. 270.

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jeito de trás (Hintermann) não se subordina ao executor imediato, isto é, não depende da boa vontade alheia para o sucesso do seu plano49.

Em razão da peculiar estrutura de poder existente, é como se a organi-zação possuísse vida independente das vontades singulares de seus integran-tes50. Ela simplesmente funciona de maneira automática, pouco importante a figura pessoal do executor direto. Basta o autor mediato (homem de trás), servindo-se desse aparato de poder (um Estado totalitário, por exemplo), “apertar o botão”, ordenando assassinatos, que sua ordem será, sem dúvida, levada a cabo por algum executor inferior na hierarquia51. Em realidade, ao homem de trás pouco importa quem cumprirá a ordem, bastando-lhe a cer-teza de que ela será realizada.

Daí a distância fundamental entre a figura de um mandante meramen-te instigador, que estará sempre à mercê da boa vontade do executor direto, e a do autor mediato em razão do domínio da organização, figura central do acontecer típico. Nesta hipótese, o executor, ainda que seja autor imediato plenamente responsável, não mais se apresenta como uma pessoa individua-lizada, senão como “figura anônima e substituível”52, uma mera engrenagem dentro de uma especial estrutura de poder. Diversamente do que ocorre na instigação, aqui a proximidade da ação típica concreta é inversamente pro-porcional à responsabilidade frente a ela: “A perda de proximidade do fato compensa-se pelo domínio organizativo, que vai aumentando segundo se ascende na escala hierárquica do aparato” (tradução livre)53, ou seja, “sem as pessoas do alto escalão [...], os crimes não seriam possíveis”54.

49 ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. Op. cit., p. 271. Ainda conforme o autor alemão: “O executor imediato é, se bem que não de todo abalado em seu domínio da ação, apenas uma pequena peça da engrenagem do aparato de poder, substituível a qualquer piscar de olhos, e essa dupla perspectiva conduz o homem de trás a figurar, ao lado do executor, no centro do acontecimento” (Observações sobre a decisão da Corte Suprema peruana no caso Fujimori. Trad. Alaor Leite. [Recurso Eletrônico – RT Online]. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 91, p. 2, jul. 2011).

50 ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. Op. cit., p. 272.

51 ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. Op. cit., p. 272.

52 ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. Op. cit., p. 273.

53 ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. Op. cit., p. 274. Ver também GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do domínio do fato... Op. cit., p. 5.

54 ROXIN, Claus. Observações sobre a decisão da Corte Suprema peruana no caso Fujimori. Op. cit., p. 3.

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4 liMites da aPlicaçãO dO “dOMÍniO da OrganizaçãO” (organisationsherrschaft) a delitOs cOrPOratiVOs

Tendo-se apresentado, a passos largos, os conceitos fundamentais da teoria do “domínio do fato” (Tatherrschaft), este estudo agora se concentrará na figura do “domínio da organização” (Organisationsherrschaft), descreven-do, de forma intencionalmente analítica, seus pressupostos de configuração. Logo após, será investigada a possibilidade do seu emprego para fins de exa-me de autoria em delitos corporativos, cometidos mediante uma estrutura empresarial. É o que se passa a realizar.

4.1 Requisitos para o reconhecimento da autoria mediata por domínio da organização

4.1.1 Existência de um aparato organizado de poder

Conforme Roxin, há duas manifestações típicas de aparatos de po-der: (i) organizações que ostentam poder estatal (ex.: Estados totalitários), as quais, valendo-se dele, cometem delitos, e (ii) organizações alheias e contrá-rias ao poder estatal, que representam, em si, um “Estado paralelo” dentro do Estado (ex.: organizações criminosas ou secretas, movimentos clandes-tinos etc.)55. Neste caso, não apenas a organização deverá ter uma estrutura interna rígida, como também estar orientada a fins integralmente contrários ao ordenamento jurídico e às normas penais56. A diferença fundamental en-tre ambas reside no fato de que apenas o próprio Estado, por monopolizar o poder punitivo, pode operar à margem da lei sem maiores consequências, ao passo que as organizações não estatais sempre correrão o risco de terem suas atividades delitivas impedidas pela Administração da Justiça57.

Embora alguns autores alemães58 coloquem em dúvida a real possibi-lidade de definir, com precisão, o que é um “aparato organizado de poder” (organisatorischer Machtapparat), Roxin sustenta que tal objeção é equivocada.

55 ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. Op. cit., p. 278.

56 ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. Op. cit., p. 278.

57 Consoante Roxin, “tales grupos están expuestos a que la Administración de Justicia impida su labor (a diferencia de la maquinaria estatal que obra delictivamente)” (ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. Op. cit., p. 278).

58 Exemplificativamente, ver HERZBERG, Rolf. Das Fujimori-Urteil: Zur Beteiligung des Befehlsgebers an den Verbrechen seines Machtapparates. Zeitschrift für Internationale

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Isso porque, em crimes estatais sistemáticos (primeira manifestação típica), fica tão evidente que o autor mediato dispõe de um aparato organizado de poder, que maiores esforços de delimitação conceitual perdem sentido59. Já no caso das estruturas não estatais (segunda manifestação típica), como or-ganizações terroristas, mafiosas, milícias, tribos africanas etc., Roxin refere haver, de fato, um plus argumentativo. Entretanto, sempre que esta apresen-tar uma lógica organizacional semelhante às burocrático-estatais, não have-ria razão para deixar de reconhecer, também aqui, uma autoria mediata por domínio da organização60.

4.1.2 Desvinculação do direito por parte do aparato de poder

Para que o aparato de poder sirva como instrumento de autoria media-ta, ele deve estar “à margem do Direito”. Em se tratando desse requisito, há uma inversão do diagnóstico anterior: a partir do momento em que se reco-nhece uma dada organização não-estatal como sendo um aparato de poder, torna-se muito mais fácil admitir que ela atua “desvinculada” da ordem jurí-dica do que fazê-lo em relação a uma organização burocrático-estatal61. Isso porque, como regra, esta última nunca estará, em sua totalidade, dissociada do Direito. Todavia, Roxin esclarece que a ruptura frente ao ordenamento jurídico somente se faz necessária em relação às atividades estatais penal-mente relevantes, ou seja, aquelas relacionadas ao exercício do poder punitivo (potestas puniendi), não a todas62.

Por fim, o penalista alemão motiva a inclusão desse requisito como indispensável para o reconhecimento da autoria mediata por domínio da

Strafrechtsdogmatik, p. 576-80, nov. 2009, p. 579. Disponível em: <http://www.zis-online.com/dat/artikel/2009_11_372.pdf>. Acesso em: 15 jan. 2014.

59 ROXIN, Claus. Sobre a mais recente discussão acerca do “domínio da organização”. Op. cit., p. 330.

60 ROXIN, Claus. Sobre a mais recente discussão acerca do “domínio da organização”. Op. cit., p. 330.

61 Segundo Roxin, “em relação às organizações não estatais (movimentos terroristas, genocidas no âmbito das guerras tribais, máfia e outras), é evidente que suas ações se movem fora do Direito” (ROXIN, Claus. Sobre a mais recente discussão acerca do “domínio da organização”. Op. cit., p. 332).

62 Até porque, conforme bem refere Roxin, “la vinculación jurídica, en tanto que nadie se oponga a quienes tienen el aparato del Estado en sus manos, en la realidad no surte el efecto de contener al poder” (ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. Op. cit., p. 277).

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vontade em aparatos de poder: “A organização que opera fora do Direito pode contar também com a falta de resistência à execução de suas ordens em virtude da crença dos executores de que sempre estarão à margem de con-sequências jurídico-penais” (tradução livre)63. Fato é que quem faz parte da organização já decidiu previamente viver “fora” do Direito, de modo que não hesitará frente ao cumprimento de uma ordem criminosa.

4.1.3 Fungibilidade dos executores (segurança no resultado)

O presente requisito parece ser decorrência lógica do anterior: uma vez existente um aparato de poder desvinculado do Direito, um delito posto em marcha pelo homem detrás (Hintermann) “se realiza com independência da pessoa do executor” (tradução livre)64. A estrutura, portanto, deve funcionar à revelia de seus membros, que são passíveis de plena substituição. O exem-plo a seguir é citado por Roxin justamente para ilustrar a ideia antes referida: o aparato de poder que Hitler tinha nas mãos independizou-se de tal forma das pessoas que o compunham, que nenhuma delas, ainda que desejasse, seria capaz de, sozinha, frear os assassinatos perpetrados contra judeus65.

Já uma situação hipotética em que ocorre justamente o contrário é aquela na qual alguns sujeitos, ainda que liderados por um deles, associam--se para o cometimento de delitos. Nesse caso, a manutenção da organização está ancorada justamente nas relações pessoais existentes entre eles e, portan-to, está à mercê das vontades individuais66. Outra situação em que também inexiste a dita fungibilidade pode ser observada quando o cumprimento da

63 ROXIN, Claus. Sobre a mais recente discussão acerca do “domínio da organização”. Op. cit., p. 332.

64 ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. Op. cit., p. 278. Interessante observar que a Suprema da Corte peruana, no famoso caso Fujimori (sentença da Sala Penal Especial de 7 de abril de 2009), após aplicar a teoria do domínio da organização, conferiu ainda maior precisão à ideia de “fungibilidade” dos executores, distinguindo entre um aspecto negativo e um aspecto positivo: “A fungibilidade negativa [...] significa que a falta ou recusa do sujeito originariamente designado para executar a ordem não evita sua posterior realização, enquanto que a fungibilidade positiva representa a existência de vários autores potenciais e a possibilidade de escolha do mais indicado para a missão” (ROXIN, Claus. Observações sobre a decisão da Corte Suprema peruana no caso Fujimori. Op. cit., p. 4).

65 ROXIN, Claus. Sobre a mais recente discussão acerca do “domínio da organização”. Op. cit., p. 334.

66 ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en derecho penal. Op. cit., p. 278.

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ordem depende de um especialista insubstituível, como, por exemplo, um “expert inovador, que seria o único capaz de construir a bomba necessária para a execução do crime”67.

Nesses casos, o homem detrás (Hintermann) depende da boa vontade do executor para que sua determinação seja concretamente realizada, razão pela qual não há qualquer “certeza” quanto ao resultado. Logo, trata-se de hipótese de mera instigação. A fungibilidade dos executores conduz à auto-ria mediata do homem detrás, na medida em que gera a segurança do cum-primento da ordem68. É dizer: quando o mandante depender de uma decisão adicional do executor, inexistirá domínio do fato, tratando-se, pois, de mera instigação. Já em aparatos de poder dissociados da ordem jurídica, a certeza da obediência à determinação conduz ao domínio do fato por meio do domí-nio da organização e, por isso, à autoria mediata do mandante.

4.1.4 Disposição relevante do executor para o fato (?)

Em artigo do ano de 200769, Roxin mencionou um quarto e inédito ele-mento como pressuposto para o reconhecimento do domínio da organização: tratava-se da constatação de uma relevante ou elevada disposição, por par-te do executor, para a prática do fato criminoso. Todavia, em mais recente manifestação70, o penalista alemão voltou atrás, afirmando que tal elemento, embora possa existir concretamente, é apenas acidental, não essencial para a configuração da autoria mediata em aparatos de poder. A razão que moti-vou a retirada do requisito é simples: haveria, com ele, uma revalorização da vontade individual do executor imediato, o que iria de encontro às ideias de

67 ROXIN, Claus. Sobre a mais recente discussão acerca do “domínio da organização”. Op. cit., p. 333.

68 ROXIN, Claus. Sobre a mais recente discussão acerca do “domínio da organização”. Op. cit., p. 336.

69 ROXIN, Claus. Organisationsherrschaft als eigenständige Form mittelbarer Täterschaft. SchwZStr, v. 125, 2007, p. 15 e ss. Há versão em português: O domínio da organização como forma independente de autoria mediata. Trad. Paulo César Busato. Revista Justiça e Sistema Criminal, Curitiba, v. 3, n. 5, p. 7-22, 2011, p. 17 e ss.

70 ROXIN, Claus. Sobre a mais recente discussão acerca do “domínio da organização”. Op. cit., p. 336.

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fungibilidade e de segurança no resultado antes referidas, afetando-se a solidez da teoria71.

4.2 Verificação dos requisitos em relação a delitos corporativos

4.2.1 Empresa como aparato organizado de poder?

É fato que a teoria do domínio do fato tem sido aplicada à criminalida-de econômica na Alemanha desde importante precedente do Supremo Tribu-nal Federal (BGHSt 40)72. Todavia, o próprio Roxin é expressamente contrário a tal utilização73. Para o jurista alemão, uma empresa, na acepção do termo, jamais será um mero instrumento, uma mera engrenagem para o cometimen-to de delitos. Justamente esse entendimento pode ser constatado com clareza na seguinte manifestação de Roxin74:

O Bundesgerichtshof aplica a figura jurídica do domínio da organização também aos superiores em empresas privadas que tenham levado seus su-bordinados a cometerem fatos puníveis ou que não tenham evitado seu cometimento. Ocorre que se trata aqui de casos equiparáveis não ao domí-nio da organização, mas à figura da responsabilidade do superior existente no direito penal internacional. É possível compreender esses casos como “responsabilidade do dono/administrador do negócio” (Geschäftsherre-nhaftung) no sentido de uma responsabilidade pelo comportamento alheio e como forma independente de imputação a título de autoria baseada nos dispositivos que tratam a autoria imediata, coautoria e autoria mediata. A esse respeito já existe uma série de propostas legislativas, entre outras a contida no art. 13 do projeto de um corpus juris para a proteção dos interes-ses financeiros da União Europeia. Com o domínio da organização, no entanto, essa constelação não tem nada a ver.

71 ROXIN, Claus. Sobre a mais recente discussão acerca do “domínio da organização”. Op. cit., p. 337.

72 A sigla “BGH” é a forma usual de citação de julgamentos proferidos pelo Bundesgerichtshof alemão. Enquanto Gerichtshof possui o sentido de tribunal, já Bundes indica, nesse caso, que se trata de uma Corte Federal. Finalmente, a abreviação “St” (Strafsenat) indica que a decisão teve origem em uma colegiado com competência criminal.

73 ROXIN, Claus. O domínio da organização como forma independente de autoria mediata. Op. cit., p. 19 e ss., e, do mesmo autor: Sobre a mais recente discussão acerca do “domínio da organização”. Op. cit., p. 332-3.

74 ROXIN, Claus. Observações sobre a decisão da Corte Suprema peruana no caso Fujimori. Op. cit., p. 5, grifado.

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O que fundamenta a autoria mediata por domínio da organização é a certeza de que a ordem emitida será cumprida. Pouco importa quem o fará, mas seguramente alguém o fará. Isso certamente não está presente, da mes-ma forma, em uma empresa. Portanto, é inadequado e equivocado equipará--la a uma organização burocrático-estatal ou a uma organização criminosa ou terrorista, ainda que, eventualmente, ela venha a cometer alguns delitos.

4.2.2 Empresa como ente desvinculado do direito?

Conforme já mencionado, a ratio que justifica a necessidade de desvincu-lação do direito por parte do aparato é a ausência de resistência à ordem (certeza do cumprimento), decorrente da crença, por parte dos executores, de que sem-pre estarão à margem de consequências jurídico-penais75. Justamente por isso não faz sentido aplicar-se a autoria mediata por domínio da organização no âmbito de um empresa, pois esta, como regra, move-se dentro do Direito.

Por tal razão, o executor (um funcionário, por exemplo) sempre temerá que sua conduta seja descoberta e, logo, punida, sendo então necessária uma inclinação e/ou uma decisão adicional para que ele realmente leve a cabo a ordem ilícita76. Sendo assim, não é possível afirmar que o mandante ou o “ho-mem detrás” (Hintermann), no âmbito corporativo, detém o domínio do fato, na medida em que a sua concretização depende, fundamentalmente, da boa vontade do executor. Portanto, mais adequado é, nessa hipótese, falar-se em instigação, e não em autoria mediata, já que esta é, sem dúvida, uma figura bastante excepcional.

4.2.3 Fungibilidade dos executores no âmbito corporativo?

Em uma empresa, inexiste fungibilidade dos executores em razão da pessoalidade que caracteriza as relações de trabalho entre superiores e subor-dinados77. Com isso, perde-se, ainda mais, a certeza da realização da ordem, na medida em que seu cumprimento sempre dependerá de uma tomada de posição do executor. Esse plus decisório inexiste um relação a uma organi-

75 ROXIN, Claus. Sobre a mais recente discussão acerca do “domínio da organização”. Op. cit., p. 332.

76 ROXIN, Claus. Sobre a mais recente discussão acerca do “domínio da organização”. Op. cit., p. 332-3.

77 ROXIN, Claus. O domínio da organização como forma independente de autoria mediata. Op. cit., p. 19.

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zação dissociada do ordenamento jurídico, uma vez que o autor imediato (executor) já havia implicitamente consentido em realizar atividades ilícitas quando decidiu ingressar em tal aparato. O mesmo não se pode dizer de um funcionário que entra em uma empresa: certamente ele não está implicita-mente se comprometendo a cometer delitos.

4.3 Inaplicabilidade do domínio da organização no âmbito da criminalidade empresarial como regra

Diante do exposto, entende-se adequado concluir que a teoria do do-mínio do fato, na sua subespécie domínio da organização (autoria mediata em aparatos de poder), não se compatibiliza com a realidade empresarial78. Desse modo, a regra deve ser a sua não aplicação a delitos corporativos. É possível que, em determinadas circunstâncias, a empresa se transforme de tal maneira em um mero aparato para o cometimento de crimes, que então volte a fazer sentido aplicar a teoria para fins de exame de autoria delitiva. Isso, todavia, não invalida a conclusão anterior, na medida em que, nesta hipótese, dificilmente se poderia ainda falar na existência real de uma empresa.

Em sentido diverso, no entanto, manifesta-se Artur Gueiros Souza, para quem,

guardadas as distintas circunstâncias histórico-institucionais de cada país, pode-se observar um vigor pragmático a respeito do uso da teoria dos apa-ratos organizados de poder em determinados casos de grande relevância social, como visto recentemente por ocasião do julgamento da AP 470 no STF. E, de fato, em que pesem eventuais divergências, tal teoria afigurou-se apropriada àquele julgamento, considerando-se o resultado final de con-denações e absolvições havidas no Caso Mensalão, repercutindo positiva-mente no nosso Direito e na nossa sociedade.79

78 Consoante Roxin: “Das quatro condições do domínio da organização faltam, geralmente, ao menos três: as empresas não trabalham, por regra geral, desvinculadas do Direito, enquanto não se propõem desde o princípio, à prática de atividades criminosas. Falta também a intercambiabilidade [Austauschbarkeit] dos que estão dispostos a ações criminosas. E, tampouco, se pode falar de uma disponibilidade consideravelmente elevada dos membros da empresa, porque, como mostra a realidade, a comissão de delitos econômicos e contra o meio ambiente leva consigo um considerável risco de punibilidade e também o risco da perda do posto na empresa” (O domínio da organização como forma independente de autoria mediata. Op. cit., p. 19).

79 SOUZA, Artur de Brito Gueiros. Teoria do domínio do fato e sua aplicação na criminalidade econômica. Op. cit., p. 15.

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Como se observa, trata-se de um argumento fundamentalmente conse-quencialista, ao justificar a aplicação da teoria a partir dos resultados (conde-nação versus absolvição) que a sua incidência poderá gerar. Defende-se aqui, todavia, que, se esse tipo de argumento não pode mais ser ignorado dentro da argumentação jurídica, por certo também não pode ser o mais relevante, nem o definidor da controvérsia. Do contrário, um tal pragmatismo simples-mente destruirá qualquer intento dogmático de limitação do poder punitivo ou, na famosa expressão de Hassemer, de “formalização do controle social” (Formalisierung der sozialen Kontrolle)80, com vistas a impedir que políticas cri-minais antiliberais floresçam no seio de um Estado (que se pretende) Demo-crático de Direito.

Finalmente, considerando o problema concreto apresentado quando da introdução ao presente ensaio, pode-se afirmar, após a longa digressão feita, que o enquadramento dogmático realizado pela acusação, qual seja, dirigente como autor mediato e os subordinados como autores imediatos, não está correto à luz da “teoria do domínio do fato”, tal como desenvolvida por Claus Roxin. Ocorre que se tratava de uma empresa, a qual i) não apresenta as características fundamentais de um aparato de poder; ii) não estava, ao menos pelas informações apresentadas, dissociada do direito, objetivando fins lícitos (exploração de aço); e na qual iii) não havia fungibilidade dos execu-tores. Tanto é assim que muitos funcionários decidiram descumprir a ordem emanada, frente a sua ilicitude. Portanto, inexistia “segurança na execução”, característica essencial para fundamentar uma autoria mediata por domínio da organização, como já se referiu.

5 a OMissãO iMPrÓPria cOMO POssibilidade de FundaMentaçãO da autOria nO ÂMbitO da criMinalidade cOrPOratiVa

Do simples fato de afirmar-se a inadequação da teoria do domínio do fato para fins de reconhecimento de autoria no âmbito empresarial não de-corre a ausência de responsabilização do dirigente de uma empresa que de-terminou a um funcionário, por exemplo, o cometimento de crime ambiental. Muito ao contrário: a teoria do domínio do fato não é capaz de tornar punível quem, sem ela, não o seria. A questão é apenas de (re)organização interna: trata-se de um estudo sobre a distinção entre autor e partícipe.

80 A expressão aparece em diversos escritos. Ver, exemplificativamente, HASSEMER, Winfried. Warum Strafe sein muss? Ein Plädoyer. Berlin: Ullstein Verlag, 2009. p. 203 e ss.

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De qualquer sorte, esta seção afasta-se da teoria do domínio do fato na busca de outras construções dogmáticas acerca da autoria e da participação que se apresentem mais coerentes e harmônicas com a realidade empresarial. De certo modo, têm-se empreendido inúmeros esforços desnecessários no senti-do de tentar compatibilizar a teoria do domínio do fato com a criminalidade da empresa. Todavia, não faz sentido lutar por uma “quadratura” do círculo quando se dispõe de outros instrumentos, bem mais adequados, para alcançar--se a mesma finalidade. Acredita-se que uma das ferramentas dogmáticas ap-tas a tanto é a figura da omissão imprópria. É o que se passa a examinar.

5.1 Definição conceitual

Como bem se sabe, a omissão penal, seja própria ou imprópria, é uma construção normativa, inexistindo no mundo natural/real. Ela somente apre-senta relevância quando há, previamente, um dever de atuar. É dizer: a omis-são somente “existe” penalmente se antes dela houver um dever jurídico de agir.

No caso de omissões impróprias, a questão é mais complexa: elas não possuem um tipo penal próprio, apenas têm correspondência a um delito co-missivo. Portanto, é em razão de um “cláusula de equiparação”81 à ação que tais formas especiais de autoria têm sua tipicidade perfectibilizada. Por sua vez, essa cláusula de analogia ampara-se em um dever de garantia, isto é, em um dever de evitar o resultado típico, cujas fontes também precisam estar indicadas em lei, dada a excepcionalidade dessa figura dogmática82. Sendo assim, não é qualquer agente que pode ser autor de um delito comissivo por omissão, na medida que a cláusula de equiparação somente é aplicável quan-do em questão um garantidor.

5.2 Compatibilidade com o Código Penal brasileiro e aplicação ao “caso-paradigma”

O Código Penal brasileiro recepcionou a categoria dogmática da omis-são imprópria, a partir da cláusula de equiparação e das fontes do dever de garantia presentes no art. 13, § 2º. Entre as fontes, destacam-se: (a) legal, (b) contratual ou (c) “ingerência”. Considerando o já narrado “caso-paradig-

81 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito penal. Parte geral. 1. ed. brasileira; 2. ed. portuguesa. São Paulo: Coimbra Editora e RT, t. I, 2007. p. 914.

82 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito penal. Op. cit., p. 914.

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ma”, poder-se-ia utilizar tal dispositivo para qualificar o dirigente em ques-tão como autor por omissão imprópria dolosa, combinando-o com o correspon-dente artigo da lei dos crimes ambientais.

Eis o fundamento a embasar tal raciocínio: a empresa é fonte de perigo confiada ao dirigente, tendo ele deveres de vigilância e cuidado83. Logo, ao criar riscos em relação ao meio ambiente, por exemplo, deve contê-los. Se, sendo plenamente possível, ainda assim deliberadamente não o fizer, con-cretizando-se o risco em um resultado típico (ilustrativamente, art. 33 da Lei nº 9.605/1998)84, tal dirigente já poderia ser qualificado como autor de omis-são imprópria frente a um crime ambiental comissivo, a partir da cláusula de equiparação do art. 13, § 2º, do CP. Com mais razão ainda é possível assim o enquadrar quando dolosamente determina que terceiro (funcionário) crie o risco e cause o resultado típico (emissão de resíduos do aço, com a conse-quente mortandade de peixes).

Em síntese, muito embora tenha se defendido a inaplicabilidade da teoria do domínio do fato a delitos empresariais, isso de modo algum signi-fica “impunidade”, na medida em que é possível valer-se de outras constru-ções dogmáticas para fins de verificação de autoria. O próprio Roxin sempre esclareceu que a teoria do domínio do fato não tem pretensão de universali-dade, adequando-se apenas a delitos comuns comissivos dolosos. Por sua vez, o caso em exame, ao menos no que aqui se entende, não apresentava tais carac-terísticas, mas sim outras, que conduziram ao seu enquadramento dogmático como omissão imprópria.

cOnsideraçÕes Finais

Considerando o caminho percorrido ao longo do presente ensaio, en-tende-se que podem ser sustentadas as seguintes conclusões:

83 No mesmo sentido, ver GRECO, Luís. Teoria do domínio do fato. Registro de palestra no Seminário Internacional de Direito Penal e de Criminologia na Emerj. Rio de Janeiro, 30 out. 2012, 42min30seg, 35min. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=Th4jfnkDsEE>. Acesso em: 12 nov. 2013.

84 Lei nº 9.605/1998, art. 33: “Provocar, pela emissão de efluentes ou carreamento de materiais, o perecimento de espécimes da fauna aquática existentes em rios, lagos, açudes, lagoas, baías ou águas jurisdicionais brasileiras. Pena – detenção, de um a três anos, ou multa, ou ambas cumulativamente”.

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I – a expressão direito penal secundário pode ser compreendida como o grupo de normas penais acessórias e extravagantes ao direito penal clássico (concentrado no Código Penal). Enquanto este surgiu orientado à tutela de direitos subjetivos individuais (tradição jusnaturalista), já aquele teve origem na hipertrofia do Estado após as Grandes Guerras Mundiais, sendo chama-do a tutelar normas administrativas, de modo a sancionar penalmente o seu descumprimento (ex.: sonegação fiscal);

II – crimes de empresa são aqueles cometidos essencialmente por meio de um ente corporativo, cujas características fundamentais (organização hie-rárquica, divisão do trabalho, objetivação de lucro e planejamento estraté-gico) facilitam a sua consumação, por dificultarem que seus autores sejam identificados e individualizados;

III – o termo “domínio do fato” não indica, de forma exaustiva, seus elementos. Trata-se de um conceito “aberto” que, como tal, serve tão somen-te de orientação para o estudo da autoria em casos relevantes pela doutrina, sendo imprescindível esse subsequente desenvolvimento;

IV – a teoria do domínio do fato aplica-se apenas a crimes comuns co-missivos dolosos, não apresentando, pois, pretensão de universalidade. Quan-do em questão: (i) “delitos de dever” (Plichtdelikte – delitos próprios, delitos omissivos e delitos culposos) e (ii) delitos de mão própria (delitos de direi-to penal de autor e delitos de violação de dever personalíssimo, como falso testemunho) – outros critérios dogmáticos deverão ser empregados para o exame da autoria;

V – em se tratando de delito comum comissivo doloso, o exame da au-toria poderá ser feito a partir da noção abstrata de “domínio do fato”, cuja concretização ocorre em três formas fundamentais: (i) autoria imediata como domínio da ação, (ii) autoria conjunta (coautoria) como domínio funcional do fato e (iii) autoria mediata como domínio da vontade;

VI – as situações em que está configurada uma autoria mediata por domínio da vontade de terceiro(s) são fundamentalmente três: (i) domínio por coação, (ii) domínio por erro e (iii) domínio em aparatos organizados de poder (ou domínio da organização);

VII – a característica especial existente em aparatos organizados de po-der que diferencia tal situação de uma mera instigação reside no fato de que o autor mediato ou “sujeito de trás” (Hintermann) não se subordina ao executor imediato, isto é, não depende da boa vontade alheia para o sucesso do seu plano;

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VIII – diversamente do que ocorre na instigação, na autoria mediata por domínio da organização, a proximidade da ação típica concreta é inversa-mente proporcional à responsabilidade frente a ela;

IX – os requisitos para o reconhecimento da autoria mediata por domí-nio da vontade em aparatos de poder são três: i) existência de um aparato de poder, ii) desvinculação do direito por parte do aparato e iii) fungibilidade dos executores (segurança no resultado);

X – por aparato de poder entende-se tanto i) organizações que osten-tam poder estatal (ex.: Estados totalitários), as quais, valendo-se dele, come-tem delitos, e ii) organizações alheias e contrárias ao poder estatal, que repre-sentam, em si, um “Estado paralelo” dentro do Estado;

XI – para que o aparato de poder sirva como instrumento de autoria mediata, ele deve estar “à margem do Direito”. Em se tratando de estruturas burocrático-estatais, a ruptura frente ao ordenamento jurídico, todavia, so-mente se faz necessária em relação às atividades estatais penalmente relevantes, relacionadas ao exercício do poder punitivo (potestas puniendi), não a todas;

XII – a fungibilidade dos executores exige que a estrutura de poder funcione independentemente de seus membros, que são passíveis de plena substituição. Há certeza de que a ordem criminosa será cumprida por al-guém, pouco importando por quem;

XIII – a teoria do domínio do fato, na sua subespécie domínio da orga-nização (autoria mediata em aparatos de poder), não se compatibiliza com a realidade empresarial. A regra, portanto, deve ser a sua não aplicação em tal hipótese;

XIV – do simples fato de afirmar-se a inadequação da teoria do domí-nio do fato para fins de reconhecimento de autoria no âmbito empresarial não decorre a ausência de responsabilização do dirigente de uma empresa que determinou a um funcionário, por exemplo, o cometimento de crime am-biental. Nessas circunstâncias, deve-se buscar outras construções dogmáticas mais coerentes e harmônicas com o caso sob estudo;

XV – o Código Penal brasileiro recepcionou a categoria dogmática da omissão imprópria, a partir da cláusula de equiparação e das fontes do de-ver de garantir presentes no art. 13, § 2º. Para fins de resolução do “caso--paradigma” objeto de exame, pode-se utilizar tal dispositivo para qualificar o dirigente em questão como autor por omissão imprópria dolosa, combinando-o com o correspondente artigo da lei dos crimes ambientais.

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resPOnsabilidade Penal da PessOa JurÍdica e a tutela dO MeiO aMbiente na sOciedade

dO riscO: abOrdageM crÍtica sObre Os delineaMentOs da culPabilidade eMPresarial

e O sisteMa da duPla iMPutaçãOmarCelo marCante*

* Advogado, Doutorando e Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS, Professor dos Cursos de Especialização em Direito Penal e Processo Penal da Unisinos, Professor Convidado do Instituto de Desenvolvimento Cultura – IDC, da Verbo Jurídico e da Escola Superior de Advocacia – OAB/RS. Membro da Comissão de Defesa, Assistência e Prerrogativa da OAB/RS.

RESUMO: A responsabilidade penal da pessoa jurídica no Brasil – atendendo à tendência político-criminal verificada no âmbito inter-nacional – foi incorporada tanto na Constituição Federal como na legislação ordinária, de modo a atender as necessidades da socieda-de do risco. Diante dessa nova categoria, que questiona as bases do direito penal antropocêntrico e da culpabilidade como reprovação social da conduta praticada por determinada pessoa, inicialmente os tribunais passaram a adotar o sistema da dupla imputação. En-tretanto, construções dogmáticas contemporâneas têm (re)discutido o conceito de culpabilidade para abranger a responsabilidade penal da pessoa jurídica, o que tem sido adotado em recente decisão do Supremo Tribunal Federal, de maneira a afastar o sistema da dupla imputação.PALAVRAS-CHAVE: Responsabilidade penal da pessoa jurídica; culpabilidade empresarial; sistema da dupla imputação.ABSTRACT: Penal responsibility of legal entity in Brasil – following the political-criminal international tendency – was incorporated in the Federal Constitution as well as in the common law, in order to assist risk society. Facing this new cathegory which questions the basis of anthropocentric penal law and culpability as social repro-ving of an action practiced by a certain person, at first courts adop-

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ted the system of double imputation. However, contemporaneous dogmatic constructions have (re)discussed the concept of culpability to include penal responsibility of the legal entity, which has been adopted in recent decisions of the Supreme Federal Court, seeking to keep the system from double imputation. KEYWORDS: Penal responsibility of legal entity; corporate culpabi-lity; double imputation system.SUMÁRIO: Considerações iniciais; I – A sociedade do risco e a tutela do meio ambiente: aspectos político-criminais; II – Teorias sobre (im)possibilidade de responsabilidade penal da pessoa jurídica: discus-são internacional e o tratamento no ordenamento jurídico brasilei-ro no âmbito dos crimes ambientais; III – Algumas linhas para (re)pensar a teoria do delito: problematizando a culpabilidade penal no âmbito empresarial e o sistema da dupla imputação; Considerações finais.

cOnsideraçÕes iniciais

A incorporação dos influxos político-criminais internacionais no Brasil tem gerado repercussões nas mais diversas áreas do Direito, seja no plano da lege ferenda, seja na interpretação da lege lata dada pelos tribunais brasileiros nos casos concretos. No âmbito do direito penal ambiental, essa dinâmica – associada às repercussões da concepção de sociedade do risco – também tem gerado efeitos na forma de se pensar e aplicar o direito penal, inclusive em se tratando da responsabilidade penal da pessoa jurídica.

O art. 225, § 3º, da Constituição Federal preceituou a possibilidade da empresa (pessoa jurídica) ser responsabilizada por um crime ambiental, o que veio a ser regulamentado pela Lei nº 9.605/1998, de modo a questionar a concepção clássica do direito penal antropocêntrico na qual está calcada a ca-tegoria da culpabilidade. Essa nova forma responsabilização criminal – que pressupõe a presença de uma corporação como sujeito ativo – foi recepcio-nada pelos tribunais, que passaram a adotar o sistema da dupla imputação, vinculando a responsabilidade penal da pessoa jurídica à vontade do seu administrador que age em seu nome e proveito. Logo, o prosseguimento do processo criminal contra a pessoa jurídica passou a depender da concomitan-te persecução penal contra a pessoa física responsável pelo ato.

Entretanto, diante de novas construções dogmáticas funcionalistas, tem-se formulado conceitos de culpabilidade coorporativa, de modo a rom-per com o direito penal antropocêntrico. Essas novas doutrinas chegaram aos tribunais brasileiros, inclusive no Supremo Tribunal Federal, acarretan-do uma alteração no que tange à (des)necessidade da dupla imputação para

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que o processo criminal contra a pessoa jurídica tenha andamento. Contudo, sempre é preciso realizar uma reflexão mais aprofundada sobre tais questões, pois a consequência deste novo entendimento é o abalo da matriz humanista do direito penal, em detrimento de finalidades político-criminais de controle da criminalidade e gerenciamento de riscos sociais.

i – a sOciedade dO riscO e a tutela dO MeiO aMbiente: asPectOs POlÍticO-criMinais

O termo “sociedade do risco”, cunhado pelo sociólogo Ulrich Beck, resume bem o efetivo incremento de novos riscos sociais decorrentes do de-senvolvimento tecnológico e da velocidade da informação. Segundo Beck, o desenvolvimento tecnológico da sociedade contemporânea demonstra uma nova dinâmica política que auto-ameaça a civilização1.

A partir de cinco premissas, o autor sustenta a existência de uma di-nâmica política que autoameaça a civilização: 1ª) os riscos gerados num ní-vel avançado de desenvolvimento das forças produtivas (radioatividade, substâncias nocivas e tóxicas presentes no ar, alimentos e água) tendem a permanecer invisíveis, causando danos sistemáticos e frequentemente ir-reversíveis às plantas, animais e seres humanos (no curto e longo prazo); 2º) efeito “bumerangue”: os riscos da modernização afetam, mais cedo ou mais tarde, quem os produziu ou deles se beneficiou; 3º) a expansão dos ris-cos não rompe em absoluto com a lógica do desenvolvimento capitalista, mas a eleva a um novo nível. Os riscos da modernização são um “big business”, pois correspondem às necessidades insaciáveis que buscam os economistas; 4º) nas situações de risco, a consciência determina o ser, pois o saber adquire um novo significado político, ou seja, o conhecimento dos riscos gera um sa-ber específico e a consciência diferenciada sobre seus efeitos; 5º) os riscos so-cialmente (re)conhecidos assumem um conteúdo político muito peculiar, que se coloca em disputa na opinião pública. A consequência disto é uma disputa pública sobre a definição dos riscos (consequências para saúde, natureza) e seus efeitos secundários sociais, econômicos e políticos. Conclui Beck que a sociedade atual é uma sociedade da catástrofe, em outras palavras, o estado de exceção ameaça se tornar a normalidade2.

1 BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós, 1998. p. 28.

2 BECK, Ulrich. Op. cit., p. 29-31.

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Silva-Sanchez também aponta que o extraordinário desenvolvimento da técnica e a dinamicidade dos fenômenos econômicos têm repercussões diretas no bem-estar individual e na política criminal, existindo uma clara tendência de introdução de novos tipos penais, de modo a ampliar os espaços de risco penalmente relevantes. A flexibilização das regras de imputação e a relativização dos princípios político-criminais de garantia também são carac-terísticas dessa tendência expansionista do direito penal3, muito presente no âmbito da tutela ambiental.

Conforme Hirsch, nas últimas décadas, as novas formas e técnicas de criminalidade têm dado lugar a uma grande atividade legislativa, que tem sido contrária a uma tendência anterior de reforma do direito penal baseada na descriminalização e reinserção do delinquente. Nelas se contemplam três manifestações parcialmente confluentes: a primeira relaciona-se com o surgi-mento de novos âmbitos jurídico-penalmente relevantes e a formação de um direito penal secundário, em decorrência do progresso técnico e científico,

3 SILVA SÁNCHEZ, Jesus-Maria. La expansion del derecho penal: aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. Madrid: Civitas, 2002. p. 20. Silva-Sanchez enumera dez fatores (exemplificativos) que justificariam a cristalização deste consenso: (1) a aparição de novos bens jurídicos relevantes; (2) o efetivo surgimento de novas esferas de ação potencialmente delitivas, nos âmbitos do meio ambiente, ordem econômica, ciberespaço, bem como pela revalorização de condutas delitivas antes consideradas de menor importância, como a violência doméstica e os delitos trânsito; (3) a institucionalização da insegurança a partir do enaltecimento de sua noção objetiva advinda da ideia de sociedade do risco; (4) a sensação social de insegurança numa dimensão subjetiva, hiperdimensionada pelo excesso de informação do mass mídia; (5) a criação de uma sociedade de “sujeitos passivos”, como pensionistas, desempregados, destinatários de serviços públicos educacionais, sendo cada vez menos numerosas as classes empreendedoras, ativas e dinâmicas em razão das políticas do Welfare State; (6) a identificação da maioria com a vítima do delito, decorrente da configuração de uma sociedade majoritariamente de classes passivas; (7) o descrédito de outras instituições de proteção dos bens jurídicos diversas do direito penal, como o direito civil, administrativo e a própria ética social; (8) mudança de posição de boa parte dos criminólogos de esquerda, que passam a visualizar os sujeitos pertencentes aos estratos inferiores da sociedade como titulares de bens jurídicos transindividuais ou difusos, o que motiva um discurso punitivo direcionado a estes interesses específicos; (9) a incorporação do punitivismo por todos os setores do espectro político (esquerda e direita), com a adoção do discurso do “eficientismo simbólico”; e (10) o “gerencialismo penal”, que corresponde à visão do direito penal como um mecanismo de gestão eficiente de determinados problemas, sem conexão com os valores que estiveram na base de formação do direito penal clássico. (Cf. SILVA SÁNCHEZ, Jesus-Maria. La expansión del derecho penal: aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. Madrid: Civitas, 2002. p. 20-74)

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como a informática, a técnica nuclear, a genética e a cada vez maior preocu-pação com o meio ambiente4. Um segundo grupo tem como objeto formas de conduta que anteriormente eram consideradas apenas contravenções penais, porém, devido a uma mudança de valoração em termos de relevância dos bens jurídicos, passaram a ser situadas no campo de mira com maior ímpeto pela política criminal5. O terceiro grupo, finalmente, refere-se aos âmbitos que têm se verificado um considerável aumento de pena para condutas já definidas como extremamente graves, como no caso do “combate” às drogas e, em geral, da criminalidade organizada6.

Todo esse contexto político-criminal é, igualmente, reflexo de uma política internacional desenvolvida pelos países, por meio de diversos tra-tados e convenções assinadas, no sentido de controlar, prevenir e reprimir a criminalidade de um modo geral. Esses acordos internacionais abrangem o tráfico ilícito de entorpecentes, a lavagem de dinheiro (Convenção de Viena de 1988), a criminalidade organizada (Convenção de Palermo de 2000), os crimes informáticos (Convenção de Budapeste de 2001, da qual o Brasil não é signatário) e os crimes contra o meio ambiente.

No âmbito da criminalidade ambiental, os Congressos Internacionais também vêm colaborando para a ampla discussão político-criminal em re-lação à matéria. Os movimentos iniciais na década de 60 culminaram com a Conferência das Nações Unidas Sobre o Meio Ambiente, de 5 a 16 de junho de 1972, em Estocolmo7. Com advento da Declaração de Estocolmo, as legis-lações mundiais sobre os temas relativos ao meio ambiente – inclusive no âm-

4 HIRSCH, Joachim Hans. Derecho penal: obras completas. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, t. I, 1999. p. 61.

5 HIRSCH, Joachim Hans. Op. cit., p. 61.

6 HIRSCH, Joachim Hans. Op. cit., p. 61. Por outro lado, a avalanche de novos tipos penais e o aumento de penas têm gerado um efeito nefasto no sistema prisional, o hiperencarceiramento. Nesse contexto, a política criminal vê-se obrigada a buscar novas alternativas para, pelo menos, minimizar este problema, por meio da utilização de novos institutos de direito penal e processual penal como penas alternativas, transações penais, sursis da pena e suspensão condicional do processo.

7 Nesta ocasião, foi promulgada a Declaração de Estocolmo, que, em seu art. 13, preceitua que, “a fim de obter uma mais racional ordenação dos recursos e melhorar assim as condições ambientais, os Estados deveriam adotar um enfoque integrado e coordenado de planificação de seu desenvolvimento, de modo que fique assegurada a compatibilidade do desenvolvimento com a necessidade de proteger e melhorar o meio humano em benefício de sua população”.

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bito do direito penal – tomaram uma nova trajetória. Conforme Costa Júnior, a partir dessa Conferência, foram constituídas “verdadeiras obrigações para os Estados pactuantes, que deverão adequar e harmonizar suas respectivas legislações a tais diretrizes”8.

Exemplificativamente, o Princípio 22 da Declaração de Estocolmo (1972) estabelece que

os Estados colaborarão para ulteriormente aperfeiçoar as leis internacionais referentes à responsabilidade e ao ressarcimento às vítimas da poluição e de outros danos ambientais, por atividades realizadas dentro do âmbito territorial ou sob o controle de tais Estados, em zonas que ultrapassarem suas jurisdições.

O reconhecimento de novos bens jurídicos em decorrência da sociedade do risco, declarados também a partir de convenções e tratados internacionais, tudo isso num contexto em que o expansionismo penal parece ser a solução dos problemas sociais, denotam as grandes mudanças sofridas pelo direito penal na contemporaneidade. Como ressalta Prittwitz, o desenvolvimento da sociedade como um todo, da política criminal, bem como da dogmática jurídico-penal há muito está sendo moldada pela sociedade compreendida como “do risco”9. O direito penal secundário caracteriza-se pelo conjunto de normas de repressivo valor criminal, contidas em leis penais extravagantes, com o objetivo precípuo de sancionar o descumprimento de mandamentos emanados de ordenações de caráter administrativo. Incumbe a este novo ramo a tutela dos bens jurídicos de caráter supraindividual, enquanto que ao direito penal tradicional a ocupação eminente são os bens jurídicos indivi-duais clássicos.

Entretanto, a efetiva punição de condutas danosas aos bens jurídicos supraindividuais, inclusive na esfera do meio ambiente, encontra grandes di-ficuldades e esbarra na rigidez e nos princípios que norteiam o direito penal e processual penal calcado nas bases iluministas. Desta forma, a necessidade de se respeitar as regras e princípios jurídico-penais de garantia passa a ser vista como um obstáculo à gestão eficiente dos riscos ao meio ambiente na contemporaneidade, contexto no qual se insere a discussão acerca da respon-sabilidade penal da pessoa jurídica e o sistema da dupla imputação.

8 COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Direito penal ecológico. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 15.

9 PRITTWITZ, Cornelius. O direito penal entre direito penal do risco e direito penal do inimigo. Revista Brasileira de Ciências Criminais, RT, n. 47, p. 31-45, mar./abr. 2004, p. 38.

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ii – teOrias sObre (iM)POssibilidade de resPOnsabilidade Penal da PessOa JurÍdica: discussãO internaciOnal e O trataMentO nO OrdenaMentO JurÍdicO brasileirO nO ÂMbitO dOs criMes aMbientais

A reestruturação da dogmática jurídico-penal, com a introdução da responsabilidade penal da pessoa jurídica, também sofreu influência políti-co-criminal dos organismos e convenções internacionais. As discussões sobre a responsabilização criminal da pessoa jurídica vêm ocorrendo desde 1929, inicialmente no II Congresso de Direito Penal em Budapeste, por meio da Association Internationale de Droit Penal e, mais especificamente, no caso de violações ao meio ambiente, desde 1977. Nesta data, o Conselho da Europa, por meio de seu Comitê de Ministros, recomendou que os Estados-membros buscassem soluções para responsabilização dos entes coletivos em casos de violação ao meio ambiente10.

Em 1983, foi criada, pelo Comitê Europeu para os Problemas Crimi-nais, uma “Comissão Reduzida de Especialistas” que estudaria a respon-sabilidade penal da pessoa jurídica. A comissão tinha o objetivo de anali-sar a possível introdução da responsabilidade penal da pessoa jurídica nos Estados-membros e possuía três propostas para serem analisadas: (1) reco-nhecimento da responsabilidade penal da empresa (enterprise); (2) sistemas mistos de sanções penais e extrapenais; e (3) responsabilidade social (isto é, previsão de um sistema de sanções independente do tradicional conceito de culpabilidade)”11.

Quanto ao aspecto da responsabilização penal da pessoa jurídica, tra-dicionalmente, a doutrina trabalha a existência de teorias completamente opostas. A teoria da ficção, que nega a existência de consciência e vontade próprias às pessoas jurídicas, acarretando numa posição contrária à sua res-ponsabilização penal; e a teoria da realidade, muito propagada nos países que seguem o modelo common law, que consagra a total capacidade de ação por parte do ente jurídico, reconhecendo a sua potencialidade como sujeitos ativos de vontade própria e, portanto, de condutas puníveis.

A teoria da ficção, que teve como expoente máximo Savigny, defende que as pessoas jurídicas são entidades fictícias, criadas pelo Direito, não pos-

10 ARAÚJO JÚNIOR, João Marcello de. Responsabilidade penal da pessoal jurídica – Constatações e prospectiva, p. 154.

11 BARBERO SANTOS, Marino; ARAÚJO JUNIOR, João Marcello de. A reforma penal: ilícitos penais econômicos, p. 60.

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suindo consciência e vontade próprias. Dessa forma, carecem de condições psíquicas capazes para determinar o “querer”, não possuindo capacidade de ação e, consequentemente, não são passíveis de punição na esfera penal, pois ausentes os pressupostos sobre os quais se assenta o moderno direito penal da culpa. Outro argumento trazido é no sentido de que às pessoas jurídicas seriam inaplicáveis as penas privativas de liberdade pela sua inexequibilida-de, afrontando, de uma só vez, os princípios da personalidade do ilícito e das sanções penais, bem como da individualização da pena12.

Pierângelli, de forma muito esclarecedora, traz argumentos consisten-tes para sustentar a incompatibilidade da responsabilidade penal da pessoa jurídica, a partir da teoria da ficção e da necessidade de que o juízo de cul-pabilidade esteja centrado na reprovação do injusto penal praticado por um determinado autor:

Tendo por firma o princípio jusnaturalístico de que em todo direito subje-tivo existe a causa da liberdade moral íncita em cada homem, e que, por-tanto, o conceito primitivo de pessoa como portadora ou sujeito de direitos deve coincidir com o conceito de homem, porque “todo homem indivi-dualizado e só o homem assim considerado” é aquele capaz de direitos [...] às pessoas jurídicas faltam condições psíquicas de imputabilidade. Quem por elas atua são seus diretores ou representantes, que penalmente por elas respondem.13

Portanto, segundo a teoria da ficção, a pessoa jurídica não é capaz de realizar o exercício de consciência para analisar a responsabilidade criminal – que exige um juízo de culpabilidade como reprovação pessoal feita a um autor de um injusto penal – sem que se pondere o comportamento realizado pelas pessoas físicas que conduzem a sua gestão.

Por outro lado, a teoria da realidade sustenta que as pessoas jurídicas são seres reais, reconhecidos e regulados pela lei, possuindo potencialidade para serem sujeitos ativos de condutas puníveis, uma vez consideradas como

12 SALES, Sheila Jorgem Selim de. Anotações obre o princípio societas delinquere non potest no direito penal moderno: um retrocesso praticado em nome da política criminal? In: PRADO, Luis Regis. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 201-202.

13 PIERANGELLI, José Henrique. A responsabilidade penal das pessoas jurídicas e a Constituição. Revista do Ministério Público, n. 28, p. 55.

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portadoras de vontade real14. Parte do pressuposto de que existem outros organismos sociais dotados de vontade própria e vida autônoma, a partir de uma teoria organicista ou sistêmica. Nessa perspectiva, a pessoa jurídica possui capacidade de ação, podendo atuar no sentido de praticar atos que são contrários à legislação penal, sendo passíveis de um juízo de culpabilidade.

No âmbito do ordenamento jurídico brasileiro, a influência internacio-nal no sentido de expandir o espectro de atuação do direito penal também em relação às condutas praticadas por pessoas jurídicas teve repercussão na tutela do meio do ambiente. O XV Congresso Internacional de Direito Penal realizado no Rio de Janeiro em 1994, face às inúmeras considerações sobre o meio ambiente, também fez suas recomendações, no sentido de se estabelecer a responsabilidade criminal das empresas nesta espécie delitiva15.

14 SALES, Sheila Jorgem Selim de. Anotações obre o princípio societas delinquere non potest no direito penal moderno: um retrocesso praticado em nome da política criminal? In: PRADO, Luis Regis. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 202.

15 “Item III – Responsabilidade criminal das empresas pelos delitos contra o meio ambiente. 1. A conduta que suscita a imposição de sanções penais pode proceder de entidades jurídicas e públicas, bem como de pessoas físicas. 2. Os sistemas penais nacionais devem, sempre que possível, no âmbito de sua respectiva constituição ou lei básica, prever uma série de sanções penais e de outras medidas adaptadas às entidades jurídicas e públicas. 3. Onde uma entidade jurídica ou uma entidade pública participar de uma atividade que implique sério risco de dano ao meio ambiente, cumpre solicitar às autoridades responsáveis pela gerência e direção de tais entidades que exerçam a responsabilidade de supervisão de modo a evitar a ocorrência do dano, devendo ser as mesmas criminalmente responsabilizadas na hipótese de que sério dano venha a resultar em consequência de sua falta de cumprimento adequado de tal responsabilidade. Entidades jurídicas privadas: 4. Não obstante a exigência usual de responsabilidade pessoal por infrações delituosas, a persecução de entidades jurídicas privadas por delitos contra o meio ambiente deve ser possível, ainda que a responsabilidade pelo crime de que se trate não possa ser diretamente imputada a um elemento humano nessa entidade. 5. Onde uma entidade jurídica privada for responsável por sério dano ao meio ambiente, deveria ser possível a persecução dessa entidade por crimes contra o meio ambiente, mesmo que o dano causado resulte de um ato individual ou de omissão, ou ainda de atos cumulativos e/ou de omissão, cometidos ao longo do tempo. 6. A imposição de sanções penais contra entidades jurídicas privadas não deve exonerar de culpa os elementos humanos dessas entidades envolvidos na perpetração de delitos contra o meio ambiente. 7. Para minimizar o risco de injustiça decorrente da aplicação desigual de leis sobre delitos contra o meio ambiente, as leis dos países devem especificar com a maior clareza possível os critérios para a identificação dos elementos humanos dentro das entidades jurídicas ou públicas que possam ser responsáveis por

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No plano normativo-constitucional, houve a incorporação ao nosso or-denamento jurídico da possibilidade de as pessoas jurídicas serem processa-das criminalmente nas hipóteses de ofensa ao meio ambiente, rechaçando-se, desse modo, a teoria da ficção. Conforme art. 225, § 3º, “as condutas e ativi-dades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”. Ainda, existe o argumento de que o art. 172, § 5º, da Carta Magna admite, mesmo que indiretamente, a responsabilidade penal da pessoa jurídica nas condutas lesivas contra ordem econômica e financeira, dispondo que

a lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a as punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econô-mica e financeira e contra a economia popular.

A Lei nº 9.605/1998, em seu art. 3º, concretizou a previsão constitucio-nal ao dispor que

as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penal-mente conforme o disposto nesta lei, nos casos em que a infração seja come-tida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício de sua entidade.

Não obstante todas as críticas formuladas pela doutrina brasileira – sempre tomando como referência a teoria da ficção, no sentido de ser impos-sível a responsabilização da pessoa jurídica pela sua incompatibilidade com o conceito de culpabilidade construído pela teoria do delito, bem como pela inexequibilidade das penas tradicionalmente previstas para os tipos penais –, a jurisprudência brasileira tem chancelado as previsões constantes no âmbito normativo.

crimes contra o meio ambiente cometidos por essas entidades. Entidades jurídicas públicas: 8. Onde uma entidade pública, no curso do desempenho de suas funções públicas ou em outras circunstâncias, causar sério dano ao meio ambiente ou, em transgressão das normas ambientais estabelecidas, criar para o meio ambiente um risco real e iminente (concreto), deveria ser possível a persecução dos elementos humanos. 9. Onde for possível, nos termos da lei básica de um país, responsabilizar as entidades públicas por delitos penais cometidos no curso do desempenho de funções públicas ou em outras circunstâncias, deveria ser possível a persecução dessas autoridades públicas por crimes contra o meio ambiente, ainda que a responsabilidade pelo delito não possa ser diretamente imputada a um elemento humano dessa entidade.”

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O leading case, em se tratando da matéria nos tribunais brasileiros, é o Recurso Especial nº 564.960/SC, julgado pela Quinta Turma do Superior Tri-bunal de Justiça, que reconheceu a possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica, tratando-a como uma opção político-criminal do legisla-dor, bem como tentando readequar o conceito de culpabilidade para delitos praticados por esta nova modalidade de sujeito ativo16. Esse entendimento

16 “Criminal. Crime ambiental praticado por pessoa jurídica. Responsabilização penal do ente coletivo. Possibilidade. Previsão constitucional regulamentada por lei federal. Opção política do legislador. Forma de prevenção de danos ao meio ambiente. Capacidade de ação. Existência jurídica. Atuação dos administradores em nome e proveito da pessoa jurídica. Culpabilidade como responsabilidade social. Corresponsabilidade. Penas adaptadas à natureza jurídica do ente coletivo. Recurso provido. I – Hipótese em que pessoa jurídica de direito privado, juntamente com dois administradores, foi denunciada por crime ambiental, consubstanciado em causar poluição em leito de um rio, por meio de lançamento de resíduos, como graxas, óleo, lodo, areia e produtos químicos, resultantes da atividade do estabelecimento comercial. II – A lei ambiental, regulamentando preceito constitucional, passou a prever, de forma inequívoca, a possibilidade de penalização criminal das pessoas jurídicas por danos ao meio ambiente. III – A responsabilização penal da pessoa jurídica pela prática de delitos ambientais advém de uma escolha política, como forma não apenas de punição das condutas lesivas ao meio-ambiente, mas como forma mesmo de prevenção geral e especial. IV – A imputação penal às pessoas jurídicas encontra barreiras na suposta incapacidade de praticarem uma ação de relevância penal, de serem culpáveis e de sofrerem penalidades. V – Se a pessoa jurídica tem existência própria no ordenamento jurídico e pratica atos no meio social por meio da atuação de seus administradores, poderá vir a praticar condutas típicas e, portanto, ser passível de responsabilização penal. VI – A culpabilidade, no conceito moderno, é a responsabilidade social, e a culpabilidade da pessoa jurídica, neste contexto, limita-se à vontade do seu administrador ao agir em seu nome e proveito. VII – A pessoa jurídica só pode ser responsabilizada quando houver intervenção de uma pessoa física, que atua em nome e em benefício do ente moral. VIII – ‘De qualquer modo, a pessoa jurídica deve ser beneficiária direta ou indiretamente pela conduta praticada por decisão do seu representante legal ou contratual ou de seu órgão colegiado’. IX – A atuação do colegiado em nome e proveito da pessoa jurídica é a própria vontade da empresa. A coparticipação prevê que todos os envolvidos no evento delituoso serão responsabilizados na medida se sua culpabilidade. X – A lei ambiental previu para as pessoas jurídicas penas autônomas de multas, de prestação de serviços à comunidade, restritivas de direitos, liquidação forçada e desconsideração da pessoa jurídica, todas adaptadas à sua natureza jurídica. XI – Não há ofensa ao princípio constitucional de que ‘nenhuma pena passará da pessoa do condenado...’, pois é incontroversa a existência de duas pessoas distintas: uma física – que de qualquer forma contribui para a prática do delito – e uma jurídica, cada qual recebendo a punição de forma individualizada, decorrente de sua atividade lesiva. XII – A denúncia oferecida contra a pessoa jurídica de direito privado deve ser acolhida, diante de

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tem sido aplicado no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que, até a presente data, possui o entendimento pacificado no sentido de aplicar o sistema da dupla imputação17.

Ainda, ressalta-se que o Projeto do novo Código Penal nº 236/2012 busca ampliar as hipóteses de responsabilização penal da pessoa jurídica ao inserir em sua respectiva parte geral essa previsão, de modo a englobar os atos praticados contra a Administração Pública, a ordem econômica, o siste-ma financeiro e o meio ambiente18.

Em se tratando da aplicação da pena, o art. 21 da Lei nº 9.605/1998 estabelece que as penas aplicáveis de forma isolada, cumulativa ou alternati-vamente às pessoas jurídicas, são de multa, restritiva de direitos e prestação de serviços à comunidade. Entre as penas restritivas de direitos incluem-se, conforme art. 22 da legislação em análise, a suspensão parcial ou total de atividades, a interdição temporária do estabelecimento, obra ou atividade, bem como a proibição de contratar com o Poder Público pelo prazo máximo de 10 (dez) anos. Em relação às possibilidades de prestação de serviços à comunidade, podem ser fixadas: custeio de programas e projetos ambientais, execução de obras de recuperação de áreas degradadas, manutenção de es-paços públicos e contribuições a entidades ambientais ou culturais públicas (art. 23 da Lei nº 9.605/1998).

sua legitimidade para figurar no polo passivo da relação processual-penal. XIII – Recurso provido, nos termos do voto do relator.” (STJ, REsp 564.960/SC, 5ª T., Min. Rel. Gilson Dipp, DJ 02.06.2005)

17 Cita-se, exemplificativamente, o Mandado de Segurança nº 70047045877, julgado pela Quarta Turma do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, afirmando a aplicação do sistema da dupla imputação como condição para que o processo contra a pessoa jurídica tenha andamento.

18 PLS 236/2012: “Art. 41. As pessoas jurídicas de direito privado serão responsabilizadas penalmente pelos atos praticados contra a Administração Pública, a ordem econômica, o sistema financeiro e o meio ambiente, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade. § 1º A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, coautoras ou partícipes do mesmo fato, nem é dependente da responsabilização destas. § 2º A dissolução da pessoa jurídica ou a sua absolvição não exclui a responsabilidade da pessoa física. § 3º Quem, de qualquer forma, concorre para a prática dos crimes referidos neste artigo incide nas penas a estes cominadas, na medida de sua culpabilidade, bem como o diretor, o administrador, o membro do conselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário de pessoa jurídica, que, sabendo da conduta criminosa de outrem, deixar de impedir a sua prática, quando podia agir para evitá-la”.

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Portanto, os influxos político-criminais geraram repercussão no orde-namento jurídico brasileiro, seja no plano da lege ferenda ou da lege lata, com forte aceitação pela jurisprudência. Todavia, o que se verifica é uma grande dificuldade de construção dogmática da responsabilidade penal da pessoa jurídica à luz da teoria (finalista) do delito, na medida em que a culpabilidade é concebida como uma reprovação pessoal, contra o agente que, guardando uma relação psicológica com o resultado, pratica um ato típico e antijurídico. Agora, a dogmática jurídico-penal contemporânea tem se questionado se a culpabilidade penal deve ser compreendida de forma restrita à reprovação pessoal da conduta praticada, colocando no centro a figura do homem; ou se é possível a construção de uma nova definição de culpabilidade que possa abranger os comportamentos ilícitos praticados por empresas.

iii – alguMas linhas Para (re)Pensar a teOria dO delitO: PrObleMatizandO a culPabilidade Penal nO ÂMbitO eMPresarial e O sisteMa da duPla iMPutaçãO

A principal crítica feita à responsabilização penal da pessoa jurídica tem como referência as categorias clássicas do direito penal e da teoria do de-lito, principalmente a culpabilidade. No âmbito da teoria finalista do delito, o juízo de culpabilidade é o momento em que se analisa a presença do homem com maior intensidade. Zaffaroni sustenta que a culpabilidade somente pode ser edificada sobre a base antropológica da autodeterminação como capaci-dade do homem19.

O atual conceito de culpabilidade na composição do delito (estri-tamente normativo) é decorrência de uma longa evolução em sua con-cepção, que culminou no finalismo de Welzel rechaçando as antigas concepções da culpabilidade como uma relação psicológica20, e da cul-

19 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. São Paulo: RT, 2004. p. 577.

20 Conforme Basileu Garcia (Instituições de direito penal. São Paulo: Max Limonad, 1970. p. 247-248), a culpabilidade é o nexo subjetivo que liga o delito ao autor. Reveste, no Direito brasileiro, as formas de dolo e culpa. Este último vocábulo emprega-se em sentido restrito, que é o mais usual, e em sentido amplo, para designar, in genere, a culpabilidade. Decomposto idealmente o delito nos seus dois elementos – o subjetivo, também chamado psíquico ou interno, e o objetivo, também denominado material, físico ou externo – a culpabilidade integra o primeiro desses elementos, coincide com ele.

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pabilidade como uma relação e o psicológico-normativa21 do agente com o delito.

Denotando ainda mais a necessidade da correta avaliação da culpabili-dade, ainda tomando como norte a teoria finalista da ação, extraem-se de seu conceito uma dupla acepção. O primeiro é a adjetivação da conduta como delituosa, vinculando-a um sujeito, quando existentes seus três pressupostos: (a) imputabilidade – capacidade geral ou abstrata de compreender o valor do fato e de agir conforme essa compreensão, excluída ou reduzida em situações de imperfeição (imaturidade) ou de defecção (doença mental) do aparelho psíquico22; (b) consciência da antijuridicidade (conhecimento concreto do va-lor que permite ao autor imputável saber, realmente, o que faz, excluída ou reduzida em casos de erro de proibição)23; e (c) exigibilidade de conduta di-versa (expressão de normalidade das circunstâncias do fato e a indicação de que o autor tinha o poder de não fazer o que fez24). A ausência de qualquer um deles impede a aplicação da sanção penal.

Numa segunda acepção, a culpabilidade é um elemento limitador do poder punitivo na aplicação da pena. Juarez Cirino dos Santos afirma que a tese da culpabilidade como fundamento da pena foi substituída pela tese da culpabilidade como limitação do poder de punir, com a troca de uma função metafísica de legitimação da punição por uma função política de garantia da liberdade individual25. Tendo a culpabilidade essa função, denota-se a ideia de otimizar a estrutura garantista do direito penal, impondo ao jurista o com-prometimento com o modelo político-criminal minimalista e com a obrigação

21 Aníbal Bruno (Direito penal. Parte geral, tomo II: fato punível. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 37-38) chama atenção para dois aspectos presentes na culpabilidade: o aspecto puramente psicológico – representação da vontade do fato – e o aspecto normativo, ou seja, a representação do caráter ilícito do fato e vontade ilícita, estabelecendo-se uma relação psicológico normativa. [...] Dolo e culpa, na realidade, são formas do elemento subjetivo, mas este é o elemento, por assim dizer, dinâmico da culpabilidade, o que encerra a vontade ilícita, que o núcleo da sua estrutura, e assim, embora dolo e culpa não sejam formas da culpabilidade, mas apenas do seu elemento subjetivo, podemos distinguir a culpabilidade segundo essas formas, em culpabilidade por dolo e culpabilidade por culpa, critério distintivo tão importante que irá por fim diferençar o crime em doloso ou culposo.

22 SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. Curitiba: Lumen Juris, 2005. p. 202.

23 SANTOS, Juarez Cirino dos. Op. cit., p. 199.

24 SANTOS, Juarez Cirino dos. Op. cit., p. 199.

25 SANTOS, Juarez Cirino dos. Op. cit., p. 205.

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de reduzir ao máximo os espaços de discricionariedade e a violência institu-cional26.

Diante dessa concepção de culpabilidade que coloca a conduta humana no centro de seu juízo, resta inviável compreender e conceber a culpabilidade de empresa no âmbito da teoria do delito. Logo, verifica-se a existência de um grande embate acerca da reconfiguração deste conceito, diante das crescentes alterações legislativas que têm ampliado os espaços de atuação do direito pe-nal no controle das condutas desta “nova espécie de sujeito ativo do crime”.

Refere Silva-Sanchez que o problema do tratamento jurídico-penal da criminalidade de empresa é a imputação do fato delitivo a sujeitos indivi-duais. Desse modo, ressalta ser necessária a construção de estruturas de im-putação que resolvam satisfatoriamente o problema político-criminal verifi-cado:

el problema del tratamento jurídico-penal de la criminalidade de empresa sigue siendo el de la imputación del hecho delictivo a sujectos individuales. De modo que seria necessário “disponer de estructuras de imputación que, sin desbordar el marco ontológico, resuelvan satisfactoriamente el problema político-criminal plan-teado”, o que requer “por un lado, que tales estructuras sean aptar para la atribui-ción del hecho a los verdadeiros responsables (em sentido criminológico) de éste, por encima de las apariencias expressadas em la ejecución material del mismo”, e, por outro lado, evitar a todo custo “formas de responsabilidade objetiva, a fin de mostrarse conformes con las exigências garantísticas del Derecho penal.27

Em observância a essa problematização proposta por Silva-Sanchez, na obra Fundamentos modernos de la responsabilidade penal de las personas jurí-dicas, Carlos Gómez-Jara Diez procura estabelecer uma nova base teórica, a partir do construtivismo operativo e da teoria dos sistemas autopoiéticos, de modo a construir um conceito de culpabilidade empresarial funcionalmente equiparável à culpabilidade individual. Inicialmente, ressalta ser inquestio-nável que a introdução das organizações empresariais no direito penal leva a um tensionamento conceitual de grande calibre, pois, sensivelmente, as categorias do direito penal e, em geral, do pensamento jurídico penal estão conformadas a partir da concepção de indivíduo. Logo, este tem sido um dos

26 CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 47.

27 SILVA SANCHEZ, Jesús-Maria. Responsabilidad penal de las empresas y de sus organos em derecho español. In: PRADO, Luis Régis. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em defesa do princípio de imputação penal subjetiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 10.

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maiores esforços científico-dogmáticos, na tentativa de encaixar a organiza-ção empresarial na teoria do delito28.

Com base neste referencial teórico, Carlos Gómez-Jara Diez sustenta um conceito construtivista de culpabilidade empresarial, no qual tanto o ser humano como também o direito se consideram sistemas autopoiéticos, o qual possui a capacidade de auto-organização, autodeterminação e autocondução, motivo pelo qual resulta lógico atribuir à empresa certa competência sobre seu âmbito de organização. Assim, pode-se afirmar que a capacidade de ação se vê substituída por uma capacidade de organização, de tal maneira que, se resulta complicado afirmar que uma empresa atua por si mesma, ditas difi-culdades se reduzem consideravelmente quando se sustenta que, chegado a um determinado nível de complexidade interna, a empresa começa a se auto-organizar. A partir de dita constatação, pode-se construir um conceito de culpabilidade empresarial o qual, ainda que não seja idêntico ao conceito de culpabilidade individual, resulta funcionalmente equivalente29.

A incorporação dessa teoria pela jurisprudência pátria está determi-nando a alteração de posicionamento no sentido de afastar o princípio da du-pla imputação, ou seja, a exigência de que se proceda, de forma simultânea, a persecução penal contra a empresa e a pessoa física responsável pelos atos.

A referida condição de procedibilidade da ação penal contra a pessoa jurídica é decorrência da forma como a culpabilidade nos crimes praticados por empresa está(va?) sendo tratada pela jurisprudência. Veja-se que o Re-curso Especial nº 564.960/SC – leading case brasileiro que reconheceu a possi-bilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica –, tratando a temática como uma opção político-criminal do legislador, faz uma readequação do conceito de culpabilidade para delitos praticados por essa nova modalidade de sujeito ativo da seguinte forma: “A culpabilidade, no conceito moderno, é a responsabilidade social, e a culpabilidade da pessoa jurídica, neste contex-to, limita-se à vontade do seu administrador ao agir em seu nome e proveito”.

Conforme esse entendimento que (até então?) preponderava nos tribu-nais brasileiros, a culpabilidade da pessoa jurídica estaria diretamente asso-

28 DIEZ, Carlos Gómez-Jara. Fundamentos modernos de la responsabilidad penal de las personas jurídicas: bases teóricas, regulación internacional y nueva legislación española. Buenos Aires: Julio Cesar Faira, 2010. p. 12-26.

29 DIEZ, Carlos Gómez-Jara. Fundamentos modernos de la responsabilidad penal de las personas jurídicas: bases teóricas, regulación internacional y nueva legislación española. Buenos Aires: Julio Cesar Faira, 2010. p. 95-99.

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ciada à vontade de seu administrador (pessoa física). Nessa linha, a teoria da “dupla imputação” preconiza a necessidade de imputação concomitante da empresa acusada e da pessoa física a ela vinculada e diretamente responsável pelo ato danoso ao meio ambiente30.

A incorporação do conceito construtivista da culpabilidade pela juris-prudência brasileira está afastando a teoria da dupla imputação nos crimes ambientais, viabilizando o prosseguimento das ações penais somente con-tra a pessoa jurídica. Nesse sentido, é o extenso voto proferido pelo Desem-bargador Federal Paulo Afonso Brum Vaz, nos autos da Apelação Criminal nº 0010064-78.2005.404.7200/SC, que tramita no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, DJ 12.09.2012.

No discorrer de sua fundamentação, adota o conceito construtivista de culpabilidade, buscando superar o (por ele denominado) “preconceito an-tropocêntrico” vinculado ao primado da consciência como cerne da impu-tação de uma responsabilidade efetivamente subjetiva. Tendo como ponto de partida postulados do conceito construtivista operativo da culpabilidade, fazendo referência à doutrina de Carlos Gómez-Jara Diez, sustenta ser possí-vel dar suporte à responsabilização autônoma da pessoa jurídica, em relação aos representantes e ao executor material da prática criminosa, porquanto as organizações não estariam compostas por indivíduos, mas sim por comuni-cações, que lhes servem de equivalente funcional à consciência das pessoas naturais. Vale transcrever a íntegra da ementa:

Direito penal. Crime ambiental. Art. 3º da Lei nº 9.605/1998. Responsabi-lidade penal da pessoa jurídica. Natureza subjetiva. Possibilidade e auto-nomia da persecução criminal. Conceito construtivista da culpabilidade. Sistemas autopoiéticos. Autorreferenciabilidade e auto-organização dos entes morais. Extinção da punibilidade do administrador pessoa física. Prosseguimento da ação penal unicamente em desfavor da empresa cor-ré. Rejeição da tese da dupla imputação necessária. Desconstrução argu-mentativa da jurisprudência dominante. 1. A regra do art. art. 3º da Lei nº 9.605/1998 está consentânea com mandato constitucional de crimina-

30 A tese da dupla imputação, até a presente data, está pacificada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça. São inúmeros os precedentes no sentido de que, em havendo a exclusão da pessoa física da denúncia, torna-se inviável o prosseguimento da ação penal, tão somente, contra a pessoa jurídica. Isso pois, não se sustenta ser possível que haja a responsabilização penal da pessoa jurídica dissociada da pessoa física, que age com elemento subjetivo próprio. Nesse sentido, exemplificativamente, EDcl-REsp 865.864/PR, DJ 01.02.2012; HC 147.541/RS, DJ 14.02.2011; e RHC 24.239/ES, DJ 01.07.2010.

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lização das pessoas jurídicas por crime contra o meio ambiente (art. 225, § 3º, da CR). O interprete/aplicador deve buscar a compreensão que leve a sério a Constituição. No Estado Democrático de Direito, respondem pe-nalmente por suas condutas ilícitas apenas aqueles que possuam capaci-dade e autonomia para agir de forma diversa, sendo-lhes, sob o ponto de vista normativo, exigível que assim se comportem. 2. Releitura da norma a partir do paradigma constitucional, e não ao contrário. Princípios cons-titucionais que autorizam a construção de um conceito de culpabilidade empresarial que autonomize a responsabilização penal da pessoa jurídi-ca por práticas lesivas ao bem jurídico coletivo ambiente ecologicamen-te equilibrado, sem restaurar o indesejável instituto da responsabilidade objetiva. 3. Conceito construtivista da culpabilidade (Carlos Gómez-Jara Diéz. Fundamentos modernos de la culpabilidad empresarial, Ediciones Jurídi-cas de Santiago, 2008). Ordenamento jurídico e sujeitos de direito como sistemas autopoiéticos (sistemas autônomos e autorreferenciados, capazes de engendrar a si mesmos no contexto social e interagir com base no todo comunicativo que integram). Teoria dos sistemas e construtivismo opera-tivo de Niklas Luhmann. 4. Superação do “preconceito antropocêntrico” vinculado ao primado da consciência como cerne da imputação de uma responsabilidade efetivamente subjetiva, na medida em que a concepção dos sujeitos de direito, sob o ponto de vista dos sistemas autopoiéticos, permite concluir que a culpabilidade não exige uma psique apta a escolher entre a conduta devida e aquela vedada pela norma, mas, sim, a presença de uma “autorreferenciabilidade” no agente delitivo – conceito esse clara-mente desvinculado, ou desvinculável, de noções naturalísticas a respeito de qualquer faculdade propriamente humana, na medida em que também as operações comunicativas internas, verificadas em subsistemas jurídicos complexos, podem produzir um ente “autorreferenciado”, cujos atos re-alizados no contexto social se submetem, se típicos e antijurídicos, a um juízo de reprovabilidade. 5. O estatuto constitucional conferido às pessoas jurídicas com base no seu poder auto-organizativo faz com que sejam titu-lares de direitos fundamentais, como o direito de resposta, de propriedade, o sigilo de correspondência, a inviolabilidade de domicílio, as garantias do direito adquirido, de observância do ato jurídico perfeito e da coisa jul-gada (MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 195), encontrando-se consagrado, no colendo STJ, que os entes coletivos tam-bém são dotados de “direitos de personalidade”, sendo relevante, a esse respeito, o teor da Súmula nº 227 daquela Corte (“a pessoa jurídica pode sofrer dano moral”). Aperfeiçoado, pois, o sinalagma básico do direito pe-nal: liberdade de auto-organização e de determinação de seu destino no contexto social, de um lado, e responsabilidade criminal pelas consequên-cias de seus atos, do outro. 6. No âmbito infraconstitucional, o art. 3º da Lei nº 9.605/1998 não autoriza, de forma unívoca, a adoção, a tout court, da teo-

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ria da dupla imputação e da responsabilidade por ricochete, pois, conforme bem apontou Eugênio Raúl Zaffaroni (Parecer a Nilo Batista sobre a res-ponsabilidade penal das pessoas jurídicas. In: PRADO, Luiz Regis; DOTTI, René Ariel (Coord.). Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 52), a análise cuidadosa do dispositivo legal revela que a norma não exige, para a instauração de persecutio criminis in iudicio contra a pessoa jurídica, a simultânea propositura de ação penal em desfavor dos administradores pessoas físicas, mas, sim, que a prática de-litiva seja decorrência de decisão desses gestores. Vagueza normativa que deve ser compreendida apenas no sentido de obstar a responsabilização do ente coletivo por atos de terceiros alheios a seu quadro diretivo, tais como empregados ou prepostos sem poder de comando. 7. Postulados do con-ceito jurídico-sociológico construtivista operativo de culpabilidade dando suporte à responsabilização autônoma da pessoa jurídica em relação aos seus representantes e ao executor material da prática criminosa, porquanto as organizações não estão compostas por indivíduos (a teoria dos siste-mas visa a justamente romper com o paradigma individualista, superando a distinção ontológica ser/não ser), mas sim por comunicações, que lhes servem de equivalente funcional à consciência das pessoas naturais, con-ferindo-lhes a autorreferenciabilidade própria dos sistemas dotados de au-topoiese. 8. A persecução penal do ente coletivo e de seus administradores possui natureza disjuntiva, pois “se trata de duas autopoieses diferencia-das”, na medida em que “os fundamentos últimos da responsabilidade de ambos os sistemas têm gênese em esferas totalmente diferenciadas” (Díez, 2008:132). 9. No caso dos autos, resta demonstrada a procedência da irre-signação recursal do Ministério Público, na medida em que a responsabili-dade penal da empresa não está atrelada ao prosseguimento da persecução criminal em desfavor de seu administrador, tampouco havendo qualquer nota de objetividade na imputação de delito ao ente coletivo. 10. A extin-ção da punibilidade do corréu pessoa física que atingiu o marco de setenta anos de idade, em virtude da contagem do prazo prescricional pela meta-de (art. 115 do CP), não obsta o prosseguimento da persecução penal em relação à empresa codenunciada. Afastada a tese de “a punição da pessoa jurídica é mera decorrência da prática de um crime pela pessoa física que a representa”, pois o que a norma impõe é que o cometimento do ilícito pelo ente coletivo resulte de decisão de seus órgãos decisórios, situação essa absolutamente distinta daquela de exigir a instauração conjunta de ação penal contra seus gestores (dupla imputação).

Além disso, no dia 6 de agosto de 2013, o Supremo Tribunal Federal – nos autos do Recurso Extraordinário nº 548.181/PR – proferiu decisão que constitui importante precedente no que se refere à imputação de prática de crime ambiental à pessoa jurídica, contrariando, inclusive, maciço posicio-

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namento que até então emanava do Superior Tribunal de Justiça. Trata-se de caso envolvendo o derramamento de cerca de quatro milhões de litros de óleo cru em dois rios situados no Paraná. Todavia – e segundo divulgado –, não foi possível apurar quem teria sido a pessoa (ou as pessoas) diretamente responsável pelas atividades que desencadearam o acidente ambiental. As-sim, o entendimento foi no sentido de que o processo penal em face da pessoa jurídica não mais está condicionado à apuração e indicação de indivíduo (ou indivíduos) responsável pelo fato criminoso, de modo a afastar o sistema da dupla imputação em detrimento de novas teorias da culpabilidade corporati-va, já consagradas em outros países31.

Ao que parece, a tendência político-criminal que está sendo incorpo-rada aos tribunais brasileiros é o paulatino afastamento do sistema da dupla imputação, com a adoção de conceitos funcionalistas de culpabilidade cor-porativa, com a finalidade de amoldar a teoria geral do delito a esta nova modalidade de sujeito ativo do crime.

cOnsideraçÕes Finais

O novo entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região que afasta o sistema da dupla impu-tação – incorporando as construções dogmáticas com a pretensão de formu-lar um conceito corporativo de culpabilidade – acaba por abalar a tradição humanista do direito penal, considerando a noção de culpabilidade calcada na reprovação social da conduta praticada por determinada pessoa.

Se, efetivamente, por um lado a responsabilidade penal da pessoa ju-rídica é uma realidade do ordenamento jurídico brasileiro, sendo preciso (re)pensar a dogmática jurídico-penal em decorrência deste instituto, para o fim de limitar os âmbitos e formas de responsabilização, por outro, sempre é complicado afetar a base na qual estão calcadas as garantias fundamentais conquistadas historicamente em se tratando de direito penal, sobretudo se a pretensão é atender uma finalidade político-criminal. De qualquer forma, ao que parece, é grande a possibilidade de que seja superado o entendimento jurisprudencial no tocante ao sistema de dupla imputação, de modo a afastar, nas hipóteses de processos criminais contra pessoa jurídica, a necessidade do processamento concomitante da pessoa física.

31 Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-set-01/decisao-stf-altera-criterios-pro-ces so-penal-pessoa-juridica>. Acesso em: 1º set. 2013.

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reFerÊnciasARAÚJO JÚNIOR, João Marcello de. Responsabilidade penal da pessoal jurídica – Constatações

e prospectiva.BARBERO SANTOS, Marino; ARAÚJO JUNIOR, João Marcello de. A reforma penal: ilícitos

penais econômicos.BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós, 1998.BRUNO, Aníbal. Direito penal. Parte geral, tomo II: fato punível. Rio de Janeiro: Forense,

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errata

A Editora SÍNTESE lamenta o equívoco ocorrido na Revista de Estudos Crimi-nais, Ano XII, nº 52, nomeadamente no que tange ao artigo “A Diferenciação Inter-na do Subsistema Jurídico-Penal: História, Organizações e Trajetórias”, de autoria do Dr. Bruno Amaral Machado, razão pela qual apresenta a seguinte errata:

Na página 81:

Onde se lê: “Master do Programa Europeu em Criminologia Crítica – Universida-de de Barcelona, Doutor em Sociologia Jurídico-Penal pela Universidade de Barcelona, Pesquisador Associado do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília, Visi-ting Scholar das Universidades de Fordham e John Jay, Nova Iorque, 2011, Pós-Doutoran-do em Sociologia pela Universidade de Brasília, Professor Associado dos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito do Uniceub (Brasília), Professor de Política Criminal, Direito Penal e Criminologia da Fundação Escola Superior do MPDFT, Professor do IDP – Instituto Brasiliense de Direito Público, Professor do Programa de Doutorado em Ciências Penais da Universidade San Carlos (Guatemala), Promotor de Justiça em Brasília.”

Leia-se: “Doutor em Sociologia Jurídico-Penal pela Universidade de Barcelona, Pós-doutorado em Sociologia pela Universidade de Brasília, Pesquisador Associado do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília, Professor dos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito do Uniceub (Brasília), Professor da Fundação Escola Superior do MPDFT (Política Criminal, Direito Penal e Criminologia), Professor do Pro-grama de Doutorado em Ciências Penais da Universidade San Carlos (Guatemala), Pro-motor de Justiça em Brasília.”

Na página 105:

Onde se lê: “ARGUMENTAÇÃO PROCESSUAL-PENAL, ARTEFATOS SEMÂN-TICOS E A DIVISÃO DAS ATRIBUIÇÕES (COMPETÊNCIAS) ENTRE AS ORGANIZA-ÇÕES DO SUBSISTEMA JURÍDICO-PENAL”

Leia-se: “ARGUMENTAÇÃO PROCESSUAL-PENAL, ARTEFATOS SEMÂNTI-COS E A DIVISÃO DAS ATRIBUIÇÕES (COMPETÊNCIAS) ENTRE AS ORGANIZA- ÇÕES DO SUBSISTEMA JURÍDICO-PENAL: NOTAS PARCIAIS”

Na página 106:

Onde se lê: “Os eventos históricos são traduzidos pela discursividade processual--penal nos esforços de sistematização conceitual. O paradigma inquisitivo destaca-se pela possibilidade de o juiz proceder de ofício na busca e na valoração das provas, culminando com o julgamento após instrução escrita e secreta em que está limitado o contraditório; há uma disparidade entre o poder do juiz-acusador e o acusado.”

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Leia-se: “O paradigma inquisitivo destaca-se pela possibilidade de o juiz proceder de ofício na busca e na valoração das provas, culminando com o julgamento após ins-trução escrita e secreta em que está limitado o contraditório; há uma disparidade entre o poder do juiz-acusador e o acusado.”

Na página 107:

Onde se lê: “Afastar o juiz da função de coordenador da fase inicial (juiz instrutor/investigador), substituído pelo juiz de garantias, predomina no discurso processual penal moderno, orientado por razões/critérios de eficiência, mas especialmente por uma certa leitura garantista. Discute-se a importação do modelo de juiz de garantias, afastado da in-vestigação e com funções específicas de garantir direitos fundamentais na fase inicial. Há, contudo, argumentos contrários à importação dos modelos, retratados como inadequados para a nossa tradição processual (Andrade, 2011). Por outro lado, essa lógica não é obvia-mente a que orienta suficientemente para compreender as operações do sistema político. A análise das dificuldades de mudanças dos modelos existentes sugere que as reformas devem-se muito mais à tradução dos discursos à lógica da política do que à estrita racio-nalidade dos argumentos processuais (artefatos semânticos da comunicação processual penal) (Luhmann, 2005; Machado, 201345). As reformas nem sempre superam as tradições anteriores. Razoável o argumento que identifica hibridismos e soluções ecléticas entre os modelos, que acabam funcionando como tipos ideais (no sentido weberiano [Weber, 1993]). A análise revela, também, diferentes graus de diferenciação funcional entre organizações que participam da comunicação jurídica. Nesse contexto, mostra-se um processo no qual podem-se entrever trajetórias, ainda em curso, de reconfiguração das que reconfiguram diferenças entre investigar/acusar/julgar. E remete à discussão sobre a validade das opções jurídicas, organizacionais e políticas.”.

Leia-se: “Afastar o juiz da função de coordenador da fase inicial (juiz instrutor/ investigador), substituído pelo juiz de garantias, predomina no discurso processual penal moderno, orientado por critérios de eficiência e preservação de garantias fundamentais. Discute-se a importação do modelo de Juiz de Garantias, afastado da investigação e com funções específicas de garantir direitos fundamentais na fase de investigação. Há contudo, argumentos contrários à importação dos modelos, retratados como inadequados para a nossa tradição processual (Andrade, 2011). Por outro lado, esta lógica não é suficiente para compreender as operações do sistema político, que comunica segundo códigos e progra-mas próprios. A análise das dificuldades de mudanças dos modelos existentes sugere que as reformas devem-se muito mais à tradução dos discursos à lógica da política do que à estrita racionalidade dos argumentos processuais (artefatos semânticos da comunicação processual penal) (Luhmann, 2005; Machado, 201345). As reformas nem sempre superam as tradições anteriores. Razoável o argumento que identifica hibridismos e soluções eclé-ticas entre os modelos, que acabam funcionando como tipos ideais (no sentido weberiano [Weber, 1993]). A análise revela, também, diferentes graus de diferenciação funcional en-tre organizações que participam da comunicação jurídica. Neste contexto, mostra-se um processo ainda em curso, de reconfiguração das diferenças entre investigar/acusar/julgar. E remete à discussão sobre a validade das opções jurídicas, organizacionais e políticas.”

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diretrizes de PublicaçãO e aValiaçãO de artigOs

a) das nOrMas Para PublicaçãO

1. O envio de material editorial para a Revista de Estudos Criminais pressupõe a aceitação das diretrizes de publicação e avaliação de artigos. Da mesma forma, implica a cessão dos direitos autorais do material enviado para a Revista de Estudos Criminais. Uma vez en-viado o material, cabe à Revista decidir as características editoriais e gráficas, o preço, os modos de distribuição e disponibilização, bem como a data em que o artigo será veiculado. A única contrapresta-ção financeira pela cessão dos direitos autorais será o envio ao autor de um exemplar da Revista em que o seu trabalho for publicado. Em caso de artigo em coautoria, cada coautor receberá um exemplar. A Revista de Estudos Criminais fica autorizada a proceder modificações e correções para a adequação do texto às normas de publicação.

2. Os textos enviados para a Revista de Estudos Criminais deverão ser inéditos no Brasil, levando em consideração qualquer forma de pu-blicação impressa e/ou digital.

3. O envio dos artigos deverá ser realizado unicamente por correio ele-trônico. Os trabalhos deverão ser endereçados diretamente à Dire-toria da Revista, para o endereço eletrônico: [email protected]. Recomenda-se que os textos sejam enviados em formato word.doc. Textos em formatos que não permitem modificações, a exemplo de .pdf, não serão aceitos.

4. Os artigos deverão ser enviados com uma folha de rosto na qual conste os dados pessoais do autor. Os dados exigidos são: nome completo; qualificação; endereço completo; endereço eletrônico.

5. Os trabalhos deverão ter, preferencialmente, de 15 a 35 páginas. Ca-sos excepcionais serão analisados pela Diretoria da Revista. Deverá ser utilizada a fonte Times New Roman, tamanho 12, no corpo do

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texto. Ainda, deverá ser utilizado espaçamento entrelinhas de 1,5, com margens superior e inferior 2,0cm e laterais 3,0cm. A forma-tação do tamanho do papel deverá ser A4 e o texto deverá estar justificado.

6. Os textos poderão estar em língua portuguesa, espanhola, italiana ou inglesa.

7. No que pertine à qualificação do autor, deverá ser iniciada por suas titulações acadêmicas e atividade de magistério. Em seguida, deve-rá ser complementada pelas atividades jurídicas práticas do autor.

8. Os textos deverão ser precedidos de um resumo de 05 a 10 linhas. Deverá constar uma versão do resumo em língua portuguesa e uma em língua estrangeira. A versão em língua estrangeira poderá estar em português, espanhol, italiano ou inglês. Casos excepcionais se-rão analisados pela Diretoria da Revista.

9. Os trabalhos deverão ser precedidos, ainda, de 04 a 06 palavras--chaves e de um sumário numerado.

10. As referências bibliográficas deverão ser feitas de acordo com a NBR 6023/2002 (Norma Brasileira da Associação Brasileira de Nor-mas Técnicas – ABNT – Anexo I). As referências devem ser citadas em notas de rodapé ao final de cada página, ou na forma (Autor, ano). O texto deverá apresentar uma forma de citação uniforme.

11. Caso o autor queira dar destaque ao texto, deverá utilizar itálico e não negrito ou sublinhado. O uso de aspas deverá ser feito para a citação de outros autores.

12. No que concerne à referência legislativa, não há necessidade da ci-tação do diploma legal, seja no rodapé, seja na bibliografia ao final do texto.

13. A Diretoria da Revista de Estudos Criminais não se compromete a efe-tuar complementação dos requisitos de publicação não atendidos. Os trabalhos enviados sem o atendimento às normas de publicação da Revista não serão aceitos.

b) da análise e seleçãO dOs trabalhOs

1. Os trabalhos serão analisados e avaliados, tanto em forma como em conteúdo, pelo Comitê Científico da Revista de Estudos Criminais.

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diRetRizes de PubliCação e avaliação de aRtigos

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2. Recebido o trabalho pela Diretoria da Revista, o autor será imedia-tamente informado, presumindo-se a cessão de seus direitos auto-rais e a aceitação das diretrizes de publicação e avaliação de artigos.

3. A avaliação será realizada pelo sistema de pareceres duplo blind. Para tanto, será suprimido do texto qualquer elemento que possa identificar o autor e, após, o trabalho será enviado para dois parece-ristas anônimos, membros do Comitê Científico da Revista de Estu-dos Criminais. Os pareceristas poderão aprovar o texto, não aprovar ou aprovar com ressalvas.

4. Os pareceres anônimos ficarão à disposição do autor, que será infor-mado do resultado da avaliação e das recomendações para adequa-ção do texto em caso de aprovação com ressalvas.

5. Em caso de haver dois pareceres discordantes sobre a publicação do trabalho, o texto será encaminhado para um terceiro parecerista.

6. Sendo o artigo aprovado sem ressalvas, ou realizada a adequação do texto pelo autor em caso de aprovação com ressalvas, a Diretoria da Revista avaliará a pertinência e a oportunidade para a publica-ção. A decisão final sobre a publicação do texto será da Diretoria da Revista de Estudos Criminais.

7. A par do sistema de pareceres duplo blind, em casos excepcionais, a Diretoria da Revista poderá aceitar trabalhos de autores convidados quando considerar sua contribuição científica de grande relevância para o tema em questão.

8. A Diretoria da Revista de Estudos Criminais ficará à disposição dos autores para qualquer queixa e/ou esclarecimento sobre a publi-cação ou não de seus trabalhos. O contato deverá ser feito, sempre, pelo endereço eletrônico: [email protected].

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