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Para os sertanejos e seus filhos citadinos: Fonseca, republicanos e professoras da Escola Normal;

Caldeira, tropeiros e amantes do futebol.

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Cinco séculos depois, o Brasil continua um mistério — pelo menos semântico. Se por um lado ainda arde, rubro feito bra-sa, por outro, refulge na lenda e na cartografia antigas como Hy Brazil, a terra prometida, ilha movediça ressonante de si- nos sobre o velho mar... O fato é que, como marujos em meio ao nevoeiro, ninguém sabe ao certo o que Brasil quer dizer — nem mesmo se é com o S habitual ou com um Z ancestral.

Talvez seja nessa dubiedade que se encontre a gênese do Brasil e seu duplo — essa espécie de síndrome que justapõe o país real ao país imaginário. O lugar onde os clichês se despedaçam e no qual o “país de contrastes” vira o país das contradições, onde a pátria do homem cordial transborda em discórdia e o suposto caldeirão que mistura todas as cores e raças mais parece um liquidificador — como se a aquarela do Brasil fosse um borrão abstrato.

A coleção Brasil 101 quer funcionar como espelho, refle- tindo não apenas o país que se vê, mas também a nação que não se enxerga. A série abre com estes 101 brasileiros que Jorge Caldeira mais do que escolheu, pinçou para com eles formar um painel tão dinâmico, surpreendente e multi- facetado como o próprio Brasil. Se a lista de personagens o deixar atônito e um tanto desorientado, não se preocupe: isso é só porque não sabemos quase nada de nossa história  — e o pouco que sabemos não aconteceu bem do jeito como nos contaram...

Caldeira é o guia ideal para que possamos nos aventurar pelas grandes veredas desses sertões, pelas vias dos confins, pelas veias abertas. Afinal, ele é o homem que nos reapresentou Mauá, o empresário do Império, sujeito maior do que a vida e que a história oficial achou por bem esquecer. Caldeira também concebeu, editou e publicou a magistral coleção Formadores

BRASIL, MOSTRA TUAS CARAS

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do Brasil, resgatando do mesmo injusto esquecimento os ho- mens que construíram esta nação — desde o rascunho.

Jorge Caldeira e os demais autores convidados para execu- tar esta série são os cicerones de uma jornada por um labi- rinto de imagens — os cacos de um espelho partido onde o Brasil se reflete aos pedaços, em peças, canções, filmes, livros e múltiplos personagens desses tantos Brasis...

Brasil mameluco, mulato, mestiço e cafuso. Brasil confuso, dos cafundós e das caatingas. Brasil Tupi, nascido de ventre indígena e pai desconhecido. Brasil luso, Brasil Zumbi, san- gue escravo vertendo do lombo — lombo de mula, bestas de carga, carro de boi. Brasil do gado, povo marcado. Brasil do chicote e da chibata, casa-grande e senzala: raízes do Brasil.

Brasil da selva e dos Silvas: Xica da Silva, Lula da Silva, da Silva Xavier. Brasil esquartejado em mil pedaços, como Tiradentes. Brasil, formoso Aleijadinho, barroco e rococó, antropofágico e macunaímico. Brasil de meia-tigela mas também Brasil de Frei Caneca. Brasil de Feijó e do feijão; feijão-tropeiro e arroz de carreteiro. Brasil carroça, Brasil trem-bala perdida na esquina, crianças no semáforo fazendo sinais que ninguém vê. Brasil trí- plex, Brasil Rolex — fora do tempo e do espaço. Mas também, e sempre, Hy Brazil, a eterna terra da promissão.

Alguém já disse que o Brasil é o país do futuro — e sempre será... A piada é boa, embora de certa forma mascare uma rea- lidade ainda mais perturbadora: a do país que vive num eter- no presente sem passado, sempre a flertar com o futuro... do pretérito. Nas páginas — e nos livros — que se seguem, você vai encontrar 101 razões para crer que não é difícil reescrever a história do Brasil.

— Eduardo BuenoCurador da coleção Brasil 101

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Afonso Ribeiro, 11

Aleixo Garcia, 13

Guaibimpará, depois Catarina, 15

João Ramalho, 19

Brites de Albuquerque, 20

Jerônimo de Albuquerque, 22

Garcia d’Ávila, 23

José de Anchieta, 25

Mem de Sá, 27

Antonio Knivet, 29

Domingos Fernandes Nobre

ou Tomacaúna, 31

Diogo Afonso, 32

Felipa de Sousa, 32

Jerônimo de Albuquerque

Maranhão, 34

Pedro Teixeira, 35

Albert Eckhout, 37

João Fernandes Vieira,

o reinol, 48

André Vidal de Negreiros,

o mazombo, 48

Felipe Camarão, ou Poti,

o índio, 49

Henrique Dias, o negro, 49

Antônio Raposo Tavares, 51

Antônio Vieira, 55

Salvador Correia de Sá e

Benevides, 57

Zumbi dos Palmares, 61

Domingos Afonso Sertão, 63

Sumário Gregório de Matos, 65

Padre Guilherme Pompeu

de Almeida, 67

Artur de Sá Menezes, 69

Manuel Borba Gato, 71

Manuel Nunes Viana, 73

Xica da Silva, 75

Bartolomeu Bueno da Silva,

o Anhanguera, 77

Ajuricaba, 79

Alexandre de Gusmão, 80

Alexandre Rodrigues Ferreira, 81

Francisco Félix de Souza,

o Chachá, 87

Joaquim José da Silva Xavier,

o Tiradentes, 89

Antônio Francisco Lisboa,

o Aleijadinho, 91

D. João VI, 99

Carlota Joaquina, 99

José Bonifácio de Andrada

e Silva, 101

Sebastiana, 105

D. Pedro I, 107

Carolina Josefa Leopoldina, 108

Domitila de Castro Canto e Melo,

marquesa de Santos, 109

Amélia de Leuchtenberg, 109

Frei Joaquim do Amor Divino

Caneca, 111

Diogo Antônio Feijó, 113

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Eduardo Nogueira Angelim, 117

Anita Garibaldi, 119

Joaquim José de Souza Breves, 121

Paulino José Soares de Souza,

visconde do Uruguai, 122

Joaquim José Rodrigues Torres,

visconde de Itaboraí, 123

Luís Alves de Lima e Silva,

duque de Caxias, 125

D. Pedro II, 127

Irineu Evangelista de Sousa,

barão e visconde de Mauá, 131

Luís Gama, 135

Antônio Bento, 135

André Rebouças, 137

Ana Clara Breves de Moraes

Haritoff, 138

Eufrásia Teixeira Leite, 139

Machado de Assis, 141

Princesa Isabel, 144

Rui Barbosa, 147

Júlio de Castilhos, 150

Floriano Peixoto, 151

Prudente de Morais, 153

Antônio Conselheiro, 157

Euclides da Cunha, 159

Campos Sales, 160

Augusto Ramos, 163

Jorge Tibiriçá Piratininga, 164

João Pinheiro, 166

Afonso Pena, 167

Alberto Santos Dumont, 169

João Cândido, 171

Oswaldo Cruz, 172

Carlos Chagas, 173

Pixinguinha, 175

Padre Cícero, 177

Cândido Rondon, 179

Francisco Matarazzo, 181

Júlio Mesquita, 183

Tarsila do Amaral, 185

Getúlio Vargas, 193

João Guimarães Rosa, 197

Juscelino Kubitschek, 199

Oscar Niemeyer, 201

Pelé, 203

Tom Jobim, 205

Antônio Ermírio de Moraes, 206

Walther Moreira Salles, 207

Bonifácio de Oliveira Sobrinho,

o Boni, 209

Caetano Veloso, 211

Ernesto Geisel, 213

Mário Juruna, 215

Ulysses Guimarães, 217

Fernando Henrique Cardoso, 219

Ruth Cardoso, 219

Lula, 221

Fernanda Montenegro, 223

Posfácio, 225

Crédito das imagens, 229

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Afonso Ribeiro★ ? † ?

O ESCOLHIDO PARA VIVER UM ENCONTRO HISTÓRICO

Ele recebe uma ordem, uma missão: ficar em terra por obrigação. Mas a visão da paisagem e das pessoas leva outros marujos a perderem mais que o pudor e se atirarem para terra por vontade própria, como narra o escrivão:

“Creio, senhor, que com estes dois degredados ficam mais dois grumetes, que esta noite se saíram desta nau, no esquife, fugidos para terra.”

Quando a esquadra desa-parece no horizonte, os quatro marujos desembarcados co-meçam a empreender, junto com os nativos da terra, uma mescla de pessoas e destinos no Brasil.

Afonso Ribeiro fica até ser recolhido pela esquadra na qual Américo Vespúcio vinha como piloto, no início de 1502. Tem agora muitas histórias para contar a bordo. Histórias

tão impressionantes e tão interessantes que, de novo, se tornam atração entre os marujos.

Américo Vespúcio é mais que navegador: sabe escutar e escrever histórias, de modo que logo transforma as palavras faladas por Afonso Ribeiro em relatos escritos, que seriam parte de Mundus Novus, o segundo best-seller da história da humanidade, depois da Bíblia.

Ninguém sabe se Afonso Ribeiro conhecia a escrita. Mas, pela palavra escrita que os nativos desconheciam, a história foi passada adiante. Sua experiência de vida entre os Tupi foi a primeira numa terra que passa a ter novo destino pelos contatos entre povos diferentes.

Mil e quinhentos homens, apertados em doze navios, avistam enfim uma paisagem: matas exuberantes, praias de areia branca, gentes desconhecidas. Organizando o primeiro de-sembarque, o capitão da armada Pedro Álvares Cabral toma uma decisão, registrada pelo escrivão Pero Vaz de Caminha:

“Mandou um mancebo degredado, criado de D. João Telo, a que chamam Afonso Ribeiro, para lá andar com eles e saber de seu viver e maneiras [comportamentos].”

O escrivão foi para terra acompanhando o degredado. Ambos viram de perto homens e mulheres; mesmo escreven-do sobre todos, as letras de Caminha fixam o objeto que mirara sem pudor:

“Andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradi-nhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha.”

Ao longo dos dias seguintes, Afonso Ribeiro faz mais que arregalar os olhos. Desembarca de dia, é bem recebido pelos homens da terra, visita a aldeia deles — mas de noite é sempre mandado de volta. Conta suas aventuras do dia a bordo. Ouvindo-as, Pedro Álvares Cabral decide:

“Melhor informação da terra dariam dois ho-mens destes degredados que aqui deixássem[os].”

Nesse momento é traçado o destino de Afonso Ribeiro e de um companheiro não nomeado.

No intervalo de duas frotas começa

a novidade do convívio entre povos antes separados — e de histórias que

impressionam.

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Aleixo Garcia★ ? † Bacia do Prata, c. 1525

PARENTES, PRATA E TRAVESSIA DO CONTINENTE

de Curitiba), descem o rio até a foz, sobem o rio Paraguai até a região da atual Corumbá, em Mato Grosso. Dali, sempre em território dominado por aliados Tupi-Guarani, atravessam o Chaco e vão dar no atual Peru, na região de Chuquisaca.

Chegam à fronteira do Império Inca com seus tesouros de prata. Mas, como ali terminam os domínios dos Tupi e Guarani, a travessia deixa

de ser pacífica. Há combates, é preciso voltar — mas o gru-po vindo do litoral consegue arrancar amostras de prata.

Aleixo Garcia morre na viagem de retorno, possivel-mente em algum ponto do atual território do Paraguai. Francisco Pacheco sobrevive e volta para Cananeia. Traz amostras de prata e as miracu-losas histórias de seu amigo e comandante da expedição. Os

sobreviventes de Santa Catarina levam parte delas para a Europa.

A aventura é tão impressionante que esses sobreviventes vão sendo requisitados por ouvintes cada vez mais importantes — o rei de Portugal e o rei da Espanha escutam enquanto olham para as peças que vão sendo apresenta-das. Mandam registrar a história da aventura de Aleixo Garcia e enviam expedições navais com mais gente para correr atrás da prata. Ambições pessoais e ambições de Estado, prosa de degradados e crônica de reis se misturaram depressa no afã da riqueza vista no interior da nova terra.

Nascido em Portugal, já na segunda década do século XVI é um dos vários europeus que vivem na terra do modo possível: casados com índias Tupi da região entre Cananeia e Iguape (onde hoje estão as cidades de mesmo nome em São Paulo).

Desse grupo faziam parte figuras como o lendário Bacharel de Cananeia. A partir de 1516 eles contatam, na ilha de Santa Catarina, Henrique Montes, Gonçalo da Costa e Melquior Ramires, sobreviventes da ex-pedição espanhola de Juan Díaz de Solis, destroçada depois de navegar por terras interiores subindo o rio da Prata.

Os recém-chegados contam o que viveram. Os ouvintes somam os dados com casos ouvidos dos parentes de suas mulheres. As histórias das duas fontes coincidem num ponto: relatos de um império interior que domina a metalurgia de um metal branco.

O vislumbre de riqueza dos europeus casa com uma ambição mítica dos parentes Tupi: conhecer a morada dos deuses na qual viviam seus ancestrais corajosos, que ficaria na mesma direção do império do Rei Branco.

As duas histórias se juntam; uma expedição é organizada. Em algum momento próximo a 1524, Aleixo Garcia e Francisco Pacheco partem com os parentes de suas mulheres para as terras do Rei Branco. Sobem a serra, chegam às nascentes do rio Iguaçu (no atual município

Líder de um grupo que vai de Cananeia até o Peru atrás de

guerreiros ancestrais e prata vive uma história que impressiona reis e marca a vida na terra.

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Nascido em Portugal, vem para Salvador com 8 anos de idade. Em 1623, ingressa no noviciado do colégio jesuíta na cidade, concluindo-o em 1625. No ano seguinte, com 18 anos, seu talento de escritor já é reconhecido entre seus pares, que o escolhem para redigir em latim a Carta Ânua, relatando a invasão holandesa da Bahia (1624-25).

Dez anos depois, quando se ordena padre, seu talento para pregar atrai muita gente para os púlpitos. Revela tal domínio sobre a língua por-tuguesa que quase a recria: sua prosa fluente e clara tinha uma estrutura muito diversa daquela empregada por seus contemporâneos — e com o tempo o faria ser reconhecido como um dos maiores escrito- res da literatura portuguesa.

Mas tal qualidade se revela nos intervalos de uma carreira sacerdotal que, ao modo jesuítico do envolvimento no mundo, ganha também aspectos políticos relevantes num tempo movimentado. Em 1638, participa da defesa de Salvador contra nova tentativa de invasão holandesa. Começa a pregar a favor da independência de Portugal da Espanha. A posição o leva para Lisboa em 1640, logo após a Restauração da monarquia. Torna-se um dos principais conselheiros do rei D. João IV, que o encarrega de inúmeras missões diplomáticas. Como embaixador em Haia, destaca-se na defesa dos judeus e cristãos-novos.

Em 1653, volta ao Brasil para dirigir a missão jesuítica do Maranhão. Participa também de várias expedições missionárias na bacia ama-zônica e no Pará. Tenta implantar situações mais próximas aos moldes espanhóis, com os padres ganhando poderes para dominar as relações de troca com os nativos e penetrar no interior do território.

Justificava os atos como de-fesa da liberdade dos índios. Dessa forma atrai a hostilidade de várias câmaras municipais, representantes dos interesses dos colonos. Por essa época, na metrópole, o padre Antônio Vieira vê surgirem outros inimi-gos, entre os quais a Inquisição.

O agravamento dos conflitos com os colonos leva, em 1661, à eclosão de motins no Mara-nhão e no Pará que ocasionam

sua expulsão. No ano seguinte, em Lisboa, o missionário é julgado, condenado e preso por ordem da Inquisição, mas obtém pouco tempo depois a anulação da sentença.

Em 1668, com a deposição de D. Afonso VI, recupera a influência política e realiza missão diplomática em Roma, entre 1669 e 1675. Em 1681 está de volta ao Colégio da Bahia e, em 1688, é nomeado visitador do Brasil e Maranhão, cargo que exerce até 1691. Passa os últimos anos de vida como missionário e coligindo seus Sermões, que se constituem num tesouro de uma língua portuguesa renovada, inclusive pelos falares do Brasil.

Antônio Vieira★ Lisboa, Portugal, 1608 † Salvador, 1697

O IMPERADOR DA LÍNGUA

Sua vida movimentada o levou a pregar nas

selvas mais profundas e nas cortes mais

sofisticadas e a renovar o modo de escrever

em português.

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D. João VI★ Lisboa, Portugal, 1767 † Lisboa, Portugal, 1826

UM REI E SUA CORTE DO BRASIL

Filho da rainha D. Maria I e de D. Pedro III, torna-se regente de Portugal em 1792, quando sua mãe é declarada louca. Passa a comandar um reino no momento em que revoluções der-rubavam monarcas e revolucionários mandavam decapitar reis. Não bastasse, a vaga se espraiou em guerras continentais, em que a força portu-guesa era mínima. Prudente e realista, quando ameaçado por Napoleão emprega a saída que os portugueses comuns empregavam havia três séculos: buscar remédio no Brasil.

Transfere a Corte para o Rio de Janeiro. Depois de absorver empreendedores, o Brasil absorve toda a elite governamental do Reino — sem problemas, pois os impostos que a sustentavam eram há tempos recolhidos na colônia.

As vantagens iniciais são muitas — a começar pela primeira máquina de imprimir a funcionar no Brasil, com três séculos de atraso, e a primeira faculdade (de Medicina, em Salvador). Em 1808, assim que chega, D. João determina a abertura dos portos. Em 1815, a colônia é transformada em reino unido ao de Portugal e Algarves.

A guerra parou na Europa no momento da morte de D. Maria I, em 1816. Aclamado rei, D. João VI fica no Rio de Janeiro quanto pode — até haver uma revolução em Portugal. Deixa a cidade em 1821, levando apenas 3 mil dos 15 mil cortesãos que vieram. O grupo carrega todo o ouro depositado no Banco do Brasil, dando início a uma crise econômica.

De volta a Portugal, o rei aceita governar sob restrições constitucionais. Mas em maio de 1823, depois da Independência brasileira, um levante militar promovido por seu filho

Reage às revoluções da época flutuando para cá e para lá: deixa Portugal,

reina no Rio, volta tangido a Lisboa. Mantém a coroa sobre a cabeça e a cabeça

sobre o corpo místico de rei.

D. Miguel permite-lhe governar como rei ab-soluto. Foi um dos raros monarcas do tempo a sobreviver no poder.

Carlota Joaquina★ Aranjuez, Espanha, 1775 † Queluz, Portugal, 1830

A REACIONÁRIA

Já na noite de núpcias com D. João VI, com 10 anos, começam suas desavenças com o mari-do — deu com um candelabro nos cornos do ousado. A partir daí os dois levam vidas bastante diversas, cada um com suas convicções.

Carlota Joaquina é orgulhosa, detesta con-ceder aos tempos revolucionários — não muda de ideia nem mesmo quando seu pai é destronado. Abomina o Rio de Janeiro e suas gentes misturadas. Torna-se amante de um traficante de escravos e faz incursões fracassadas para ser rainha das antigas colônias espanholas da América, já independentes.

De volta a Portugal, recusa-se a assinar a Constituição liberal. Apoia seu filho Miguel em tentativas de golpe contra o marido — e, depois da morte dele, contra a rainha D. Maria II, filha de D. Pedro I do Brasil. Derrotada, morre como prisioneira no palácio de Queluz.

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Seu pai, Francisco José de Assis, é mulato livre e pintor de paredes; a mãe, Maria Leopoldina da Câmara Machado, é portuguesa dos Açores e lavadeira. Cresce em meio a outro processo de amalgamento: os pais vivem no terreno de uma antiga chácara que era parte da zona ru-ral, mas progressivamente vai sendo loteada, tornando-se parte do tecido urbano do Rio de Janeiro.

A urbanização traz novos serviços, entre eles uma escola gratuita na qual o menino estuda sem mostrar muito interesse. Mas certas tradições continuam: há uma capela, ponto de maior atração; além de coroinha nas missas e carola, Machado de Assis acaba se interessando pelos estudos a partir do latim aprendido com o padre Sarmento.

Quando tem 10 anos a mãe morre e seu pai casa-se com uma quituteira que mora em São Cristóvão e muda para a casa da nova mulher (a regra Tupi de moradia). Mais perto do centro, quando se torna adolescente o rapaz encontra uma oportunidade de formação intelectual possível apenas em cidades: frequentar a biboca de Francisco de Paula Brito, mistura de tipografia, livraria e loja de conveniências, além de ponto de encontro de interessados em cultura do bairro.

Com 17 anos transforma a formação eclética no meio de vida possível: é contratado como revisor e tipógrafo na Imprensa Nacional,

iniciando a dupla carreira de homem de im- prensa e funcionário público. Dessa posição profissional começa também a carreira de escri- tor, nas formas acessíveis: publicando poemas na revista do amigo livreiro, traduzindo libretos de óperas, escrevendo noticiário anônimo de jornais.

Assim, vai misturando profissão e forma-ção intelectual. Trabalha como jornalista para

Quintino Bocaiúva e Saldanha Marinho, futuros líderes re-publicanos. Frequenta teatro e escreve peças de pequena repercussão. Publica um livro de poemas. Ganha promoção na repartição.

Casa-se em 1869 com Caroli-na Xavier de Novais, imigrante portuguesa que tem 35 anos — muito além da idade média de casamento das mulheres na época. Culta e alfabetizada, ela

é parceira intelectual, introdutora de novidades, comentadora e eventualmente revisora de textos. O casal, que não teria filhos, vai morar no Cosme Velho.

A partir de 1872 inaugura outra atividade e outra forma de renda: escrever romances. À medida que vai acumulando sucessos no mercado de literatura que se formava na cidade (e recebendo direitos autorais), torna-se também um escritor profissional reconhecido — o primeiro do Brasil a viver primordialmente daquilo que escrevia.

Apenas no Rio de Janeiro combinam-se as possibilidades necessárias para isso. Em pri-meiro lugar, há um contingente já apreciável

Machado de Assis★ Rio de Janeiro, 1839 † Rio de Janeiro, 1908

ESCRITOR PROFISSIONAL

Pais de origens diversas, misturas

sociais novas na capital do país, oportunidades modestas de trabalho assalariado: assim se

faz o escritor completo.

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de alfabetizados — uma raridade num império que dedica muito pouco esforço para superar o atraso recebido da miserável política cultural da metrópole portuguesa: mesmo no final do regime monárquico, o índice de analfabetos é de 87% da população e o ensino superior se resume a umas poucas faculdades isoladas, sem nenhuma universidade.

Em segundo lugar, há mercado de traba-lho — mas seu caso mostra quanto esforço é necessário para ganhar a vida escrevendo. Machado de Assis precisa ser bem-sucedido como tipógrafo, redator, funcionário público e romancista para ter o su-ficiente para uma existência relativamente modesta.

Apesar das limitações, forma seu público. A partir da década de 1870 aparecem no Rio de Janeiro as primeiras revistas, nas quais crônicas ou con-tos do escritor viram grande atração — e esses escritos se tornam mais uma fonte de renda para o operário das letras. Na via inversa, a existência de consumidores dispostos a pagar para ler dava também autonomia cada vez maior para o profissional — e ele sabe aproveitar-se disso.

A partir da publicação de Memórias pós-tumas de Brás Cubas, em 1881, Machado de Assis abandona os cânones do romantismo e inaugura um estilo pessoal marcado tanto pela adesão a alguns traços do realismo — como a concepção de personagens e argumentos que podiam gerar uma impressão de confusão com o cotidiano dos leitores — como às muito peculiares intervenções do narrador no fluxo dos acontecimentos narrados, que seriam parte essencial de seu estilo.

Produz sucesso atrás de sucesso, impondo tanto a empatia com os leitores como o resul-tado econômico da produção — e tudo isso o leva a uma posição de grande prestígio social, tornando-se o primeiro profissional a imperar como juiz do gosto intelectual no Brasil.

Emprega essa liderança depois da pro-clamação da República, em 1889. Primeiro, escrevendo: grandes romances como Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899) e Esaú e Jacó (1904) são desse período. Depois, utilizando seu prestígio para liderar uma reorganização das formas partidárias de debate intelectual

da época, tendo um papel fundamental na implantação e no funcionamento da Aca-demia Brasileira de Letras, em 1897, da qual seria o primeiro presidente.

A partir da morte de sua mulher, Carolina, em 1904, passa a levar uma vida mais reclusa. Mas continua fazendo o que fazem os escritores profissionais: escreve todos os dias para ganhar dinheiro. E

continua a fazer isso ao modo ainda precário de seu tempo: combina o trabalho diário de escritor com aquele também diário na repartição pública na qual era funcionário, o Ministério da Viação.

Nessa situação delicada, consegue terminar Relíquias da Casa Velha, coletânea de contos de 1906, e Memorial de Aires, romance de 1908. Em julho pede licença no emprego para tratar da saúde. Morre em 29 de setembro, deixando cinco coletâneas de poemas, nove romances, 200 contos e mais de 600 crônicas — uma obra que compõe um grande tesouro da língua portuguesa.

Depois de décadas de esforço diário produz

um estilo pessoal, empatia com o público, uma grande liderança

— e a maior obra literária brasileira.

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Estação Brasil é o ponto de encontro dos leitores que desejam redescobrir o Brasil. Queremos revisitar e revisar a história, discutir ideias, revelar as nossas belezas e denunciar as nossas misérias. Os livros da Estação Brasil misturam-se com o corpo e a alma de nosso país, e apontam para o futuro. E o nosso futuro será tanto melhor quanto mais e melhor conhecermos o nosso passado e a nós mesmos.

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