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JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA A África no século XXI: um ensaio acadêmico

1121 a Africa No Seculo Xxi Um Ensaio Academico

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flavio saraiva

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  • JOS FLVIO SOMBRA SARAIVAA frica no sculo XXI: um ensaio acadmico

  • Ministrio das relaes exteriores

    Ministro de Estado Embaixador Mauro Luiz Iecker VieiraSecretrio-Geral Srgio Frana Danese

    Fundao alexandre de GusMo

    Presidente Embaixador Srgio Eduardo Moreira Lima

    Instituto de Pesquisa deRelaes Internacionais

    Diretor Embaixador Jos Humberto de Brito Cruz

    Centro de Histria e Documentao Diplomtica

    Diretor Embaixador Maurcio E. Cortes Costa

    Conselho Editorial da Fundao Alexandre de Gusmo

    Presidente Embaixador Srgio Eduardo Moreira Lima

    Membros Embaixador Ronaldo Mota Sardenberg Embaixador Jorio Dauster Magalhes e Silva Embaixador Gonalo de Barros Carvalho e Mello Mouro Embaixador Jos Humberto de Brito Cruz Embaixador Julio Glinternick Bitelli Ministro Lus Felipe Silvrio Fortuna Professor Francisco Fernando Monteoliva Doratioto Professor Jos Flvio Sombra Saraiva Professor Antnio Carlos Moraes Lessa

    A Fundao Alexandre de Gusmo, instituda em 1971, uma fundao pblica vinculada ao Ministrio das Relaes Exteriores e tem a finalidade de levar sociedade civil informaes sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomtica brasileira. Sua misso promover a sensibilizao da opinio pblica nacional para os temas de relaes internacionais e para a poltica externa brasileira.

  • JOS FLVIO SOMBRA SARAIVAA frica no sculo XXI: um ensaio acadmico

    Braslia 2015

  • Direitos de publicao reservados Fundao Alexandre de Gusmo Ministrio das Relaes Exteriores Esplanada dos Ministrios, Bloco H Anexo II, Trreo 70170-900 Braslia DF Telefones: (61) 2030-6033/6034 Fax: (61) 2030-9125 Site: www.funag.gov.br E-mail: [email protected]

    Equipe Tcnica:

    Eliane Miranda PaivaFernanda Antunes SiqueiraGabriela Del Rio de RezendeAlyne do Nascimento SilvaLuiz Antnio Gusmo

    Projeto Grfico:Daniela Barbosa

    Programao Visual e Diagramao: Grfica e Editora Ideal Ltda.

    Impresso no Brasil 2015

    S243 Saraiva, Jos Flvio Sombra.

    A frica no sculo XXI : um ensaio acadmico / Jos Flvio Sombra Saraiva. Braslia : FUNAG, 2015.

    146 p. (Em poucas palavras) ISBN 978-85-7631-553-7

    1. Unio Africana (UA). 2. Cultura - frica. 3. Pan-africanismo. 4. Crescimento econmico - frica 5. Nova Parceria para o Desenvolvimento Africano (NEPAD). 6. Poltica externa - frica - Brasil. 7. Comunidade de Pases de Lngua Portuguesa (CPLP) I. Ttulo. II. Srie.

    CDD 338.96

    Depsito Legal na Fundao Biblioteca Nacional conforme Lei n 10.994, de 14/12/2004.

  • Jos Flvio Sombra Saraiva

    Professor Titular de Relaes Internacionais da Universidade de Braslia, da qual docente desde 1986; Vice-Presidente da Comisso Internacional de Histria das Relaes Internacionais, entidade vinculada ao Comit Mundial de Cincias Histricas; Membro do Conselho Editorial da Revista Brasileira de Poltica Internacional (RBPI); Membro do Conselho Editorial da Fundao Alexandre de Gusmo (Funag); Presidente da Associao Brasileira de Relaes Internacionais (ABRI) (2009-2011) e Diretor Geral do Instituto Brasileiro de Relaes Internacionais

  • (Ibri) (1998-2012). Autor de livros sobre a frica, entre os quais se destacam Formao da frica Contempornea (1987), O lugar da frica (1996) e frica parceira do Brasil atlntico (2012).

  • Dedicatria

    Dedico esse livro a dois representantes do renascimento

    africano: ao sul-africano Nelson Mandela e ao queniano Ali

    Mazrui. O primeiro faleceu no contexto da elaborao deste

    ensaio, no ocaso de 2013. O segundo foi meu professor, um

    dos intelectuais mais importantes do mundo contemporneo,

    pilar do pensamento da frica moderna. Subiu aos cus em

    fins de 2014.

    Mesmo no tempo do apartheid, quando pisei pela primeira vez na frica do Sul, percebi como pessoas especiais moldam

    a histria. Nos dias atuais, quando a hiptese da elevao

    do continente africano no sistema internacional se faz, h

    que lembrarmos as simples e eternas mensagens de Mandela

    e Ali Mazrui: prover conscincia aos atos, avanar a frica

    na combinao da cidadania com o desenvolvimento, forjar

    uma frica para os africanos, saber que a cor da pele no

    condio natural e automtica para a libertao humana.

    Jos Flvio Sombra Saraiva

    Braslia, maro de 2015

  • Sumrio

    I. A renascena africana ...............................................................11

    1.1. As festas de Adis Abeba ...................................................11

    1.2. Definindo o renascimento africano ...................................13

    1.3. As razes do baob e a cultura africana ............................18

    II. frica em mutao ....................................................................25

    2.1. Uma nova frica no sculo XXI .........................................25

    2.2. Os debates em torno da mutao ....................................28

    2.3. Renascena africana no sculo XXI ...................................31

    2.4. O mundo caminha para a frica .......................................40

    2.5. A frica para os africanos .................................................46

  • III. As relaes internacionais e a frica ........................................51

    3.1. As novas condies internacionais do incio do sculo XXI ............................................................51

    3.2. A crise global e a frica resiliente .....................................57

    3.3. Os velhos desafios no novo tempo da frica ....................62

    3.4. Os Estados Unidos da Amrica e a China: disputas ou cooperao na frica? .....................................67

    IV. A frica autnoma e sustentvel: um desejo para o sculo XXI ......................................................................75

    4.1. Um passo para a autonomia decisria .............................76

    4.2. Desafios polticos para a Nepad........................................78

    4.3. Caminhos para o desenvolvimento sustentvel e sustentado .........................................................................84

    V. A frica olha o Brasil.................................................................95

    5.1. A redescoberta mtua africano-brasileira: espelhos em movimento ....................................................95

    5.2. A CPLP, os Palop e o Brasil na frica ............................... 105

    5.3. Um novo discurso no Atlntico Sul: cooperao, dvida histrica e as asas da paz ..................................... 115

    VI. Os velhos baobs e a nova frica ........................................... 127

    6.1. Euforia e cautela: um balano de Adis Abeba em 2013 ......................................................... 128

    6.2. Espelho da nova frica ................................................... 131

    Bibliografia seletiva ............................................................... 135

  • 11

    IA renascena africana

    1.1. As festas de Adis AbebaO dia 25 de maio de 2013 foi de festa na capital da Etipia.

    Convergiram para Adis Abeba governantes e pensadores

    africanos de quase todos os pases daquele continente. Dos

    novos governantes do norte africano da Primavera rabe aos

    empresrios e intelectuais da frica Austral e das Amricas,

    alm de europeus e asiticos, grande e diversa comunidade

    de interessados acompanharam debates e discursos

    acerca da nova frica. Seminrios internacionais voltados

    para temas como o pan-africanismo e as novas formas de

    insero internacional do continente africano marcaram o

    ms de maio naquela parte norte e oriental da frica.

    Cinco dezenas de chefes de Estado africanos estiveram

    na nova e bela sede da Unio Africana (UA) para celebrar

    a renascena africana. Renascena ou renascimento

    significam, para as novas geraes de africanos, o alcance

    de uma vida material, intelectual e socialmente saudvel,

  • Jos Flvio Sombra Saraiva

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    ao desenvolver suas possibilidades educacionais e de renda

    em Estados capazes de garantir processo de democratizao

    e respeito diversidade cultural que marca o presente

    africano.

    Foi em Adis Abeba que nasceu formalmente, h 52 anos, a

    ento Organizao da Unidade Africana (OUA), transformada

    posteriormente na atual Unio Africana (UA). Ante o brilho

    das independncias, o projeto tinha por propsito romper

    o colonialismo e buscar a paz e o desenvolvimento. A

    estratgia originria era a unidade e a coordenao poltica

    dos novos Estados no sistema internacional. Daqueles atos

    heroicos dos grandes lderes das lutas contra a colonizao,

    herdam os africanos de hoje uma nova insero, mais

    altrusta, da frica no mundo.

    A foto oficial dos lderes do continente africano em Adis

    Abeba no ano de 2013, alm de outros lderes mundiais

    convidados, causou fascnio diante da elevao gradual

    que se observa no continente historicamente mais

    atrasado, poltica, social e economicamente, do mundo

    contemporneo. Emerge no incio do sculo XXI um ar

    de esperana, de possibilidades que se desenharam nos

    ltimos anos, depois de inmeras guerras, desinteligncias

    domsticas, fome, crises alimentares e doenas epidmicas

    que devastaram populaes ao largo desse meio sculo de

    independncia formal dos pases africanos. A lembrar que a

    primeira independncia formal na frica abaixo do Saara foi

    a de Gana, antes Costa do Ouro, em 1957, dez anos depois

    da independncia da ndia, vizinha da frica.

  • 13

    A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico

    A nova frica quer ser do mundo. Esse foi o sentido

    dominante que conduziu as delegaes africanas s festas

    e celebraes de Adis Abeba. As mudanas ainda no so

    to visveis na frica para todo o mundo, mas os discursos

    de Adis Abeba sugerem um ciclo novo, que se iniciou j

    na passagem do sculo XX para o sculo XXI. A essa

    transformao se sugere o conceito de renascena africana.

    Renascimento, em acepo africana, significa erguer-se

    no mundo, normalizando os direitos elementares da pessoa

    humana, melhorando o padro da economia e da governana

    poltica. Renascena toca na ideia de digna insero das

    sociedades africanas nos fluxos globais de forma positiva,

    assertiva e humana para os habitantes do grande continente

    de 54 pases e mais de um bilho de habitantes. Essa foi a

    lio que deixou Nelson Mandela no dia 5 de dezembro de

    2013, ao deixar sua labuta heroica no mundo que ele tanto

    soube mudar por palavras e gestos.

    1.2. Definindo o renascimento africanoEmbora parea um fenmeno do momento, uma

    criao poltica passional, uma vontade do hoje, a ideia

    do renascimento africano tem longa maturao. Iniciou-

    -se quase mesmo no tempo das independncias, no

    final da dcada de 1950 e incio dos anos 1960. Emergiu

    gradualmente com um movimento profundo de valorizao

    da realidade africana e de busca da identidade ps-colonial.

    E seu projeto a afirmao do ecumenismo de uma frica

    para todos os africanos. De Nelson Mandela a Ali Mazrui,

    os conceitos conformam hoje um sentido ao renascimento

    UsuarioNotahistoria do renascimento africano

  • Jos Flvio Sombra Saraiva

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    africano, mesmo que em diferentes espectros polticos e

    filosficos possam divergir na arena das discusses em

    torno dessa renascena.

    Alguns autores, africanos e de fora da frica, j no

    contexto do soleil des indpendences, chamavam a ateno para a cultura, a diversidade e as possibilidades civilizatrias

    africanas. A renascena da frica emergiu como movimento

    de reformulao dos esteretipos acerca da vida no

    continente. Seu centro foi sempre, ainda hoje o , a recusa

    ao tratamento da realidade africana como eternamente

    primitiva e tradicional. E seu alcance universal a afirmao

    de uma viso global a partir da frica.

    A ideia da elevao e renascena africanas foi reconhecida

    pela proposio inquietante publicada no Correio da Unesco no incio dos anos 1960, quando o antroplogo, filsofo e

    professor francs Claude Lvi-Strauss (1908-2009) comentou

    as razes da crise da antropologia moderna. Aparecia nas

    cincias sociais europeias o conceito de que a frica era

    bem mais complexa e diversa que a reduo antropolgica

    realizada por levas de antroplogos e historiadores europeus

    desde o sculo XIX.

    Os movimentos de independncia e as novas lideranas

    africanas no sculo XX ajudaram a forjar novas percepes

    e ideias do que hoje chamamos de renascimento africano.

    Como comentava o professor Ali Mazrui (1933-2014), o

    renascimento africano um projeto de vida, de esforos

    combinados: de ideias e projetos de fora para dentro

    da frica, mas principalmente de dentro para fora do

    continente.

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  • 15

    A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico

    Provocado pela reao ativa e autnoma das sociedades

    africanas em seu movimento na direo das independncias

    polticas, j na segunda metade do sculo XX, Claude Lvi-

    -Strauss reconhecia os limites da velha antropologia de

    Lewis Henry Morgan (1818-1881) como meio intelectual

    do estudo da diversidade das sociedades africanas. Para

    entender as vozes dos que reagiam a serem apenas objetos

    de pesquisas antropolgicas, seria necessrio mais esforo

    dos estudos acerca da frica, particularmente pelos prprios

    africanos. E assim se fez.

    Os africanos demonstraram que seria possvel fazer

    histria prpria e poltica de libertao anticolonial. Era o

    incio da ideia da frica para os africanos. Intelectuais e

    ativistas nacionalistas africanos lideraram aquelas primeiras

    vogas de vontade africana no contexto das independncias

    das dcadas de 1950 e 1960. Apresentaram, naqueles anos

    da descolonizao, rejeio a serem objetos de pesquisas

    feitas pelos cnones eurocntricos. Grupos pan-africanistas

    e intelectuais pan-negristas, na frica e fora dela, dirigiam

    suas armas intelectuais e polticas contra as chamadas

    tradies advindas de alguns escritos do filsofo Friedrich

    Hegel (1770-1831), que negavam a historicidade das

    sociedades sem escrita e das narrativas traduzidas em

    documentos no formais de memria, como a tradio oral.

    A crtica foi dura nos anos 1960. E seguiu at a dcada

    das independncias dos pases de lngua portuguesa na

    frica, nos anos 1970. As lutas pelo acesso independncia

    de esprito, atentas ao valor do livre arbtrio, calcadas

    no conceito de autonomia decisria, trouxeram novas

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  • Jos Flvio Sombra Saraiva

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    propostas. Destacaram-se inditas vises do mundo e um

    esforo intelectivo e prtico de criao de um lugar prprio

    dos africanos na chamada civilizao contempornea.

    Insistiram os pan-africanistas do Caribe, como Aim

    Cesaire (1913-2008), nas formas mltiplas de culturalismos e

    nas infinitas possibilidades de ver a si mesmos como aqueles

    que descendiam das razes africanas, mesmo estando fora

    da frica. Era o caso do caribenho Cesaire, ao anotar a

    importante dimenso da dispora africana. Via na dispora

    uma grande oportunidade de criao de uma nova cultura

    pan-africana, com os africanos do continente, em torno de

    uma cultura nova, um verdadeiro renascimento africano,

    plasmado no Atlntico africano, caribenho e americano.

    A ideia de renascena emerge da necessidade de

    reconstruo da memria coletiva, pela qual os africanos

    se tornassem atores dos processos, e no apenas agentes

    passivos de levas externas de ocupao. No era, portanto,

    expulsar o colonizador, mas era o esforo de reformular o

    conhecimento sobre a frica. O caminho dos intelectuais

    africanos e construtores dos conceitos pan-africanistas foi

    o de romper mitos erguidos contra seu processo histrico.

    Esse gesto mudou as possibilidades de insero da frica,

    j em parte daquelas dcadas iniciais de independncia, na

    sociedade internacional.

    O recurso histria como instrumento dessa afirmao

    de identidade coletiva foi particularmente desenvolvido

    pelos primeiros e grandes historiadores africanos da primeira

    leva das independncias. Tantos foram os discpulos dos

    professores africanos Joseph Ki-Zerbo (1922-2006) e Claude

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  • 17

    A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico

    Ak (1939-1996) nessas linhas das primeiras geraes de

    intelectuais da frica independente.

    Os estudos arqueolgicos e paleontolgicos de If, Nok e

    do vale do Rift confirmaram a primazia africana na gnese

    da humanidade. O estudo das clssicas prticas agrcolas

    e da domesticao de animais, entre outros processos

    espetaculares de redefinio do Egito antigo como parte

    de uma civilizao de origem africana, foram fundamentais

    para o desenvolvimento da confiana historiogrfica que

    sedimenta hoje certo sentido de futuro.

    Um elemento crucial da renascena africana est no

    resgate das tradies africanas com o compromisso da

    transformao do presente. A reside a contemporaneidade

    das correntes de pensamento da frica. A ideia buscar

    resolues de problemas, na prtica, na escola, na formao

    da juventude africana, uma vez que ainda se perpetuam no

    continente africano crises culturais e sociais advindas dos

    velhos mtodos e mtricas impostas pela educao desigual

    do colonizado.

    No a reproduo das antigas realidades do mundo

    contemporneo o que busca o renascimento africano.

    Tenta, ao contrrio, desenhar o elo criativo do passado

    pouco conhecido em favor da transformao do presente.

    A interlocuo entre esses dois tempos particularmente

    notada na obra do prmio Nobel de literatura nigeriano Wole

    Soyinka (cuja premiao do Nobel de Literatura ocorreu

    no ano de 1986). Sua obra toca nos desafios das novas

    culturas e religies. Lembra que, na cultura nigeriana, houve

    quadras histricas longas em durao nas quais o dilogo

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  • Jos Flvio Sombra Saraiva

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    entre culturas e religies foram elegantes e respeitosos.

    As religies no se conflitavam, mas conversavam em paz.

    Para Soyinka, os nigerianos j dialogaram mais na histria.

    Hoje, parte do grande pas da frica ocidental est metida

    no terrorismo religioso.

    Temas e interesses desses novos autores africanos do

    sculo XXI conversam com anteriores. Tais autores ligam

    a gerao dos anos 1960 e a renovao dos autores do

    novo sculo aos cinquenta anos da criao formal de uma

    instituio de libertao, como foi a OUA. Perguntam-se os

    africanos sobre a significao da busca da especificidade

    cultural diante do multiculturalismo consumista do novo

    sculo. Indagam-se acerca do patrimnio cultural e das

    novas formas de expresso. Preocupam-se os educadores da

    frica com o desenvolvimento educacional da modernidade.

    Desejam manter importantes contedos africanos nos

    programas escolares dos jovens. Alimentam a ideia de que

    a educao tradicional da frica, de base familiar, pode

    conviver com os estudos das novas tecnologias e dos

    programas avanados que envolvam os grandes temas do

    mundo e da produtividade necessria que a frica tambm

    precisa desenvolver no mundo.

    1.3. As razes do baob e a cultura africanaNas savanas africanas, vive a rvore de maior longevidade

    do planeta. O baob africano, que pode chegar a mais de mil

    anos de idade, simboliza a resistncia dos povos da frica. O

    abrao ao velho baob pode exigir vrios homens enlaados

    no caule da velha imagem africana de fortaleza. Mesmo

  • 19

    A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico

    como metfora, as razes da renascena africana apesar

    de sua contemporaneidade e movimento dinmico desde

    os movimentos das independncias so to profundas

    quanto as dos velhos baobs.

    J no sculo XIX, ou no incio do sculo XX, emergiram

    os primeiros autores do renascimento africano. Postularam

    correntes de pensamento acerca da cultura e da vida social

    e imaterial do continente dos baobs. Uma das primeiras

    proposies tericas acerca do renascimento africano foi

    proposta por Edward Blyden (1832-1912), h pouco mais de

    um sculo, por meio de seu projeto de explicao da riqueza

    cosmopolita das culturas africanas.

    Blyden, um dos pais do pan-africanismo, nasceu em So

    Toms, mas morreu em Serra Leoa. Por meio de seu livro

    intitulado Christianity, Islam and the Negro Race, elaborou uma teoria do humanismo africano. Sua teoria estava

    sustentada na ideia de que os africanos deveriam assimilar

    saberes modernos, configurados nas transformaes do

    tempo, em particular aquelas que advinham das novas

    culturas que perfilavam a frica da passagem do sculo

    XIX para o sculo XX. Essa assimilao, no entanto, no

    significava a negao dos diversos matizes culturais e

    histricos da experincia dos povos africanos. Props Blyden

    uma articulao original do cristianismo com o islamismo e

    com as cosmogonias africanas.

    Edward Blyden foi intelectual revolucionrio. Sugeria um

    renascimento africano no qual a cor da pele no fosse objeto

    de anlise. Sua proposio era o cosmopolitismo cultural e

    a convivncia consonante de contrrios. Seu tema central

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  • Jos Flvio Sombra Saraiva

    20

    foi o confronto positivo dos discursos humanistas, cada

    um deles vlido para a frica, mas que no poderiam ser

    subsumidos na imposio de uma nica forma de pensar

    e de construir instituies e normas sociais e polticas no

    continente africano.

    Sob a perspectiva poltica, Blyden j anunciava a boa

    governana democrtica na frica, ao observar as condies

    dramticas da sociedade liberiana, na qual ele se estabeleceu

    aps a dispora americana, no incio do sculo XX. Em

    especial criticou e lutou contra o conceito desdenhoso e

    opressivo de massas camponesas na frica.

    Edward Blyden anunciou, lamentou e criticou aspectos

    negativos da futura formao de Estados africanos, em

    especial a manipulao e a explorao das massas de

    trabalhadores por estruturas econmicas e polticas

    voltadas para a explorao. A crtica de Blyden introduo

    de importaes de modelos para a frica segue em parte

    vlida at os dias de hoje. Argumentou que as construes

    culturais de fora do continente africano podem e devem ser

    acolhidas, mas internalizadas com razo crtica. Ao tempo

    em que se inclua a frica no mundo, Blyden desejava que

    tambm se forjassem os africanos suas prprias teorias e

    conceitos.

    Avanadas, as ideias de Blyden foram perdendo fora

    no tempo. A colonizao, as escolhas das elites locais, as

    condies econmicas e polticas do continente confluram

    para outras paragens. Os discursos cosmopolitas e

    humanistas foram soterrados em favor da politizao da

    descolonizao, das formas prprias de grande parte das

  • 21

    A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico

    lutas de independncia no continente, alm dos temas do

    discurso de uma existncia autnoma e separada daqueles

    que nascem com a pele negra. Era o incio da fase pan-

    -negrista.

    Dois aspectos despontaram no pan-africanismo e no

    movimento da negritude no sculo XX. Em primeiro lugar,

    representaram pensamento de classes j educadas no

    sistema ps-colonial. Alguns se dedicaram a obras de defesa

    da renascena africana por meio da noo de retorno s

    razes, discurso com pouca circulao sobre as massas de

    africanos colonizados. Em segundo lugar, esses movimentos,

    embora africanos, tiveram forte influncia das Amricas.

    Foram intelectuais afro-caribenhos e afro-americanos, por

    meio de iniciativas como a de William Edward Du Bois (1868-

    -1963), que formaram a ideia de uma frente racial, dentro da

    concepo dos movimentos pan-negristas. William Du Bois,

    historiador, nasceu em Massachusetts, nos Estados Unidos.

    Morreu em Acra, atual capital de Gana, defendendo suas

    ideias.

    O pan-africanismo, em grande medida, foi migrando para

    a Europa e dela para a frica, a compor parte do iderio

    poltico das lutas de descolonizao dos anos 1950 e incio

    dos anos 1960. Nos congressos pan-africanistas em 1919,

    em 1921, em 1923 e em 1927 , observaram-se debates

    acalorados em torno da questo racial, das identidades,

    alm da proposta do dio como instrumento de luta.

    Propunha-se, ento, uma alternativa cultural e poltica de

    luta em favor da emancipao dos negros, tanto na Amrica

    quanto na frica.

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  • Jos Flvio Sombra Saraiva

    22

    Nomes e propostas dessas formas anteriores de

    renascimentos africanos so conhecidos na literatura.

    William Du Bois sugeriu a formao de uma frente nica

    de homens de cor. Mas Marcos Garvey (1887-1940),

    nascido na Jamaica e falecido em Londres, preferia uma

    frente fragmentada, para diferentes reas e geografias,

    sem direo geral. George Padmore (1903-1959), nascido

    em Trinidad e Tobago e morto em Londres, glorificava o

    gnio negro, que mais tarde foi tomar corpo em lderes

    africanos no campo poltico e intelectual. Algumas dessas

    ideias chegariam, mais tarde, na forma moderada e liberal

    de lderes das independncias africanas, como em Lopold

    Senghor (1906-2001), intelectual, lder da independncia e

    poeta nascido no Senegal (pas que governou), falecido na

    Frana. Foi o construtor dos conceitos do movimento da

    ngritude. Senghor foi o primeiro presidente da frica negra, ou frica subsaariana, a visitar oficialmente o Brasil. Isso

    ocorreu em agosto de 1964.

    Esse conjunto de ideias originais, gestadas deste lado,

    nas Amricas, mas tambm na frica, pode ser considerado

    base do renascimento africano. O pan-africanismo trouxe,

    naqueles anos, um conjunto de pontos fundamentais

    que podem ser considerados, em leitura contempornea,

    elementos que ainda animam parte do lxico dos debates

    em curso no incio do sculo XXI.

    Uma releitura dessa intelectualidade anterior, bem como

    dos temas e discursos polticos dos atores das lutas de

    independncia na frica, permite afirmar que h conceitos

    e proposies que alimentam uma linha de pensamento de

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  • 23

    A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico

    elevao cultural e poltica do continente africano. Algumas

    podem ser sintetizadas em pequenos pontos, como ligas

    que vinculam a herana dos primeiros renascentistas

    africanos ao novo renascimento do sculo XXI. So, a saber:

    igualdade da raa negra com todas as raas;

    liberdade dos povos da frica e seus descendentes;

    controle das terras africanas pelos africanos;

    abolio dos trabalhos forados e dos impostos

    excessivos;

    abolio, no sentido poltico e econmico, de todas

    as distines raciais e de classe;

    liberdade de comunicao no interior da frica e ao

    longo das suas costas;

    liberdade de associao, de imprensa e de expresso;

    reconhecimento do direito educao;

    reconhecimento dos direitos sindicais.

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  • 25

    II frica em mutao

    2.1. Uma nova frica no sculo XXI

    A frica desenha uma mudana histrica. O sculo

    XXI se iniciou com mutaes na base das sociedades, das

    economias e dos Estados africanos. Destacam-se as atuais

    formas de insero internacional de seus Estados nacionais,

    bem como o envolvimento crescente de antigos e novos

    atores globais que participam, de forma interessada e

    crescente, da gestao do futuro da frica.

    Pode-se reconhecer que o continente africano assiste a

    uma transio positiva para um novo patamar de insero

    internacional no incio do novo sculo. Em trs linhas, pode-

    -se observar a elevao do status da frica no nascer do sculo XXI, a saber:

    avano gradual dos processos de democratizao

    dos regimes polticos e conteno dos conflitos

    armados;

  • Jos Flvio Sombra Saraiva

    26

    crescimento econmico associado a performances macroeconmicas satisfatrias e aliceradas na

    responsabilidade fiscal e na preocupao social;

    elevao da autoconfiana das elites por meio de

    novas formas de renascimentos culturais e polticos.

    A frica e mesmo a chamada frica negra ou frica

    subsaariana, considerada a regio mais pobre do mundo,

    cresce entre 5% e 6% ao ano desde 20031. H uma dcada

    de crescimento econmico (2003-2013) que vem sendo

    apresentado como a dcada da nova frica.

    Adaptaes macroeconmicas globalizao moveram

    as economias de todo o continente para equilbrios na rea

    da gesto dos negcios dos Estados. Saudveis vm sendo

    as inflaes mdias do continente africano, contidas na faixa

    de 6% desde 2003. As exportaes avanam na proporo de

    43% a 45% do Produto Interno Bruto (PIB) nos ltimos anos.

    O crescimento do PIB africano nos dois ltimos anos foi

    aproximado a 5%, conforme os dados do Fundo Monetrio

    Internacional (FMI) e do Banco Mundial disponveis.

    As expectativas para 2015 e anos seguintes so alentadoras,

    a seguir a mtrica, segundo as casas mundiais de ratings e de investimentos globais.

    Cresce a frica, no que tange ao crescimento anual

    do PIB, mais que a Europa e as Amricas, particularmente

    depois da crise de 2008. Reformas econmicas liberalizantes,

    1 Segundo dados de hoje do Fundo Monetrio Internacional, o Produto Interno Bruto (PIB) da regio cresceu 4% em 2003, 5,7% em 2004, 5,6% em 2005 e 4,8% em 2006, alcanando nos anos seguintes o patamar de 5,5%. Em 2012, a frica cresceu seu PIB em torno de 5,5%, com previso de crescimento entre 5% a 6% nos prximos anos.

  • 27

    A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico

    reduo de vulnerabilidades externas geradas por saldos

    exportadores e crescente atrao de investimentos externos

    diretos so fatos, entre outros, celebrados como de

    sinalizao de sustentabilidade econmica pelos africanos

    e ainda surpreendem os elaboradores dos relatrios das

    agncias internacionais, como o FMI e o Banco Mundial.2

    H razes para otimismo em todas as regies da frica,

    embora existam excessos em alguns pases em todas as

    regies, do norte ao sul do continente, do leste ao oeste.

    O ambiente positivo anima a confiana dos mercados. Na

    mdia da frica negra, os investimentos internos equivalem

    a 19,4% do PIB, percentual maior que o do Brasil nos

    dias de hoje, embora seja ainda considerado baixo para

    a sustentabilidade do crescimento econmico. O vetor da

    elevao do crescimento interno visvel desde 2002 e tende

    a crescer nos prximos anos, mesmo ante a crise global

    que se perpetua menos no contexto do capitalismo norte-

    -americano e mais no caso europeu, tradicionais parceiros

    do continente africano. A frica vem sendo escolhida como

    parte das prioridades para novas reas e carteiras de

    emprstimos do Banco Mundial.

    H preocupaes, no entanto, no campo social,

    que variam de pas para pas, por meio de polticas de

    construo de metas de reduo da pobreza. H tambm

    a ateno dos setores financeiros em alguns pases

    africanos com a eventualidade de um novo ciclo de

    2 IMF, Africa Foreign Investment Survey 2006. Washington: IMF, 2007. THE WORLD BANK, Bridging the Atlantic: Brazil and Sub-Saharan Africa: South-South Partnership for Growth. Washington: The World Bank; Braslia: IPEA, 2011.

  • Jos Flvio Sombra Saraiva

    28

    endividamento interno advindo principalmente das polticas

    financeiras engendradas pela poltica chinesa na frica,

    que tem interesse estratgico no continente para a compra

    de petrleo e de commodities agrcolas e para a explorao de recursos minerais.

    A penltima reunio de chefes de Estado e de governo

    do grupo de pases conhecido pelo acrnimo Brics Brasil,

    Rssia, ndia, China e frica do Sul , realizada em Durban,

    na frica do Sul, no primeiro semestre de 2013, incluiu

    em sua agenda o tema da indstria na frica. Para alguns

    autores, na frica e mesmo no Brasil, o esgotamento do

    modelo das commodities para a frica, depois desses anos de elevao econmica, poderia estar atingindo ponto

    de declnio. Produo com valor agregado e insero nas

    cadeias produtivas de valor e internacionalizadas seria,

    portanto, um possvel novo ponto de inflexo das economias

    mais modernas na frica, como o caso da frica do Sul, na

    regio austral, e, parcialmente, da Nigria, no oeste, e at

    mesmo da Etipia e da Tanznia, na frica do leste.

    2.2. Os debates em torno da mutao

    H na frica e fora dela o sentimento de que a primeira

    dcada do novo sculo e os primeiros anos da segunda

    dcada do sculo XXI foram positivos. A frica vem superando

    o drama histrico das guerras intestinas e internacionais3. O

    3 Um bom estudo acerca das origens e dos desdobramentos desses conflitos est em ALI, Taisier M.; MATHEWS, Robert O. Civil Wars in Africa. Roots and Resolutions. London: Ithaca, 1999.

  • 29

    A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico

    nmero de pases africanos com conflitos armados internos

    caiu de treze para cinco, nos ltimos dez anos4.

    Os conflitos foram uma das causas imediatas da pobreza

    no continente. A reduo dramtica dos mesmos faz pensar

    que os recursos, quase da ordem de US$ 300 bilhes

    queimados nos conflitos entre 1990 e 2005, podem agora ser

    dirigidos s polticas de reduo da pobreza e da misria5.

    H, ao mesmo tempo, uma onda democratizante dos

    regimes polticos em vrias partes da frica. A casa norte-

    -americana Freedom House demonstra esse avano gradual. Um processo tardio mas relevante para a consolidao

    de instituies e governos na frica com bases menos

    autocrticas e com algum apelo s noes da democracia

    fato relevante para a elevao da confiana internacional.

    H debates duros em torno dessas mutaes no

    continente africano. A interpretao dominante acerca

    do futuro do continente permanece, em certos crculos

    intelectuais e polticos, plasmada por olhares enviesados

    que se repetem com regularidade gritante. Meios de

    comunicao insistem em apresentar uma frica indolente

    e ditatorial. Empresrios e empresas, mesmo acumulando

    ganhos comerciais no momento, ainda duvidam das

    4 Os conflitos na frica foram chaga da histria recente com impacto econmico incontestvel, como demonstram relatrios como o da organizao no governamental Oxfam, Ians e Saferwood, publicado recentemente. Informa que cerca de US$ 284 bilhes foi o custo para o desenvolvimento do continente causado pelos conflitos armados entre 1990 e 2005. O curioso que essa soma corresponde aproximadamente ao valor de toda a ajuda financeira internacional recebida pela frica no mesmo perodo.

    5 PROGRAMA das Naes Unidas para o Desenvolvimento PNUD. Relatrio do Desenvolvimento Humano, 2005 e 2014. O novo Relatrio do Desenvolvimento Humano, do ano de 2013, j anuncia modestas, mas vigorosa evoluo nessa rea to sensvel e necessria da elevao do padro social, educacional e societrio das populaes africanas. Ver PROGRAMA... Relatrio do Desenvolvimento Humano, 2014.

  • Jos Flvio Sombra Saraiva

    30

    possibilidades do agir em terreno africano de forma mais

    duradoura, a impulsionar a logstica que a frica requer.

    Mesmo no Brasil, universidades e escolas continuam

    afnicas de histrias da frica6. As tragdias e os genocdios

    ganham a cor espetacular das telas televisivas, enquanto

    as experincias de estabilizao e crescimento econmico,

    assim como as iniciativas polticas de reduo da pobreza e

    das doenas endmicas na frica, so silenciadas.

    O prisma, no caso do Brasil, ainda o da reduo da

    reflexo da frica contempornea e a nfase dimenso

    da afro-brasilidade. Claro que uma se comunica com a

    outra. A ligao das duas dimenses permite comunicar as

    fricas que existem dentro do Brasil com a dispora e os

    africanos do outro lado do Atlntico Sul, porm expe de

    modo incompleto o esforo de entendimento dos grandes

    desafios da insero africana na ordem internacional do

    sculo XXI. A frica caminha por si s, com ou sem o Brasil

    e os afro-descendentes.

    O insuficiente acompanhamento dos debates africanos

    contemporneos conjuga-se ausncia de significativos

    centros estratgicos voltados para o acompanhamento da

    nova corrida para a frica. Essa uma discusso ainda

    no Brasil, onde estamos avanando espao, mas modesto

    ainda, mesmo com a chegada de novas pesquisas e de

    grupos intelectuais e empresariais voltados para o estudo

    do continente ribeirinho.

    6 A produo nacional de livros a respeito da frica escassa, em geral sem pesquisa in loco, alm de reproduzirem, em grande medida, vises romnticas ou voltadas para o estudo do outro lado do Atlntico Sul apenas pela via politizada do discurso da afrobrasilidade.

  • 31

    A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico

    Da a preocupao legtima, de setores responsveis

    em vrios governos das economias centrais e em grande

    parte das emergentes, no sentido do entendimento dessas

    mutaes. Sem conhecimento estratgico, no h ttica

    que permita avanar de forma duradoura e consistente um

    programa de ao do Brasil na frica nas prximas dcadas.

    Deste lado do Atlntico Sul, a percepo da inteligncia

    africana acerca de seu prprio futuro matria oculta,

    gua turva, no seio do conhecimento brasileiro hegemnico

    disseminado nas universidades, empresas, agncias de

    governo e meios de comunicao, seno mesmo nas

    veias da ao pragmtica do Brasil para a frica. A baixa

    apreciao da frica por parte da mdia e de agentes

    sociais e econmicos em vrias partes do mundo, ainda

    particularmente no Brasil, no corresponde ao e

    apreciao dos estudiosos e mesmo dos grandes grupos

    econmicos globais, das empresas multinacionais e de

    pases como a China e a ndia, mais elevadas e positivas7.

    2.3 Renascena africana no sculo XXIA frica caminha mais clere e autoconfiante. Caminhar

    o continente, ao longo dos prximos anos, nas trilhas do

    7 Ver alguns livros meus e de colegas brasileiros a respeito da formao da frica contempornea, bem como das relaes do Brasil com a frica mais recente: SARAIVA, Jos Flvio Sombra. Formao da frica contempornea. So Paulo: Editora da Universidade de Campinas/Atual, 1987; Idem, O lugar da frica: a dimenso atlntica da poltica exterior do Brasil. Braslia: Editora da Universidade de Braslia, 1996; Idem (Org.), CPLP Comunidade dos Pases de Lngua Portuguesa: ao poltica e solidariedade. Braslia: IBRI, 2001; Idem, frica e o Brasil: o Frum de Fortaleza e o relanamento da poltica africana do Brasil no governo Lula. In: COELHO, Pedro Mota; SARAIVA, Jos Flvio Sombra (Orgs.). Frum Brasil-frica: Poltica, Cooperao e Comrcio. Braslia: IBRI, 2004, p. 295-307; Idem, frica parceira do Brasil atlntico. Belo Horizonte: Fino Trao Editora, 2012. SARAIVA, Jos Flvio Sombra; CERVO, Amado Luiz (Orgs.). O crescimento das relaes internacionais do Brasil. Braslia: IBR, 2005.

  • Jos Flvio Sombra Saraiva

    32

    cinquentenrio de sua liberdade poltica. Essa foi a mensagem

    de Adis Abeba e das discusses mais interessantes do

    Congresso Pan-Africanista que l se realizou, em maio de

    2013, entre tantos intelectuais da frica e de fora dela8.

    Dois fatos carregam simbolismos positivos no incio do

    sculo XXI. Ambos se comunicam, na ideia de uma renascena

    no incio do sculo XXI. Em primeiro lugar, completou-se, em

    2007, o meio sculo da independncia da Costa do Ouro

    (Gana de hoje), a primeira da frica negra, liderada por

    NKrumah, em 1957. O segundo so as comemoraes dos

    cinquenta anos da OUA, hoje UA, ocorridas em 2013.

    Entre esses dois fatos simblicos, outros chamam a

    ateno. O ano de 2008 inaugurou uma sequncia de atos

    e reflexes acerca do lugar da frica no mundo, fora e

    dentro do continente. As mensagens so de algum otimismo

    cauteloso. O ano de 2011 foi o da projeo do Banco

    Mundial e seu relatrio relativo s oportunidades do Brasil

    na frica subsaariana9. Dados novos e ricos embalam uma

    oportunidade de alargamento da operao Sul-Sul da frica,

    por meio da ampliao do comrcio e do investimento, em

    fase de crescimento econmico mtuo.

    Iniciativas polticas e culturais convocam a comunidade

    internacional para compartilhar o renascimento africano,

    embora no mais aquele das nascentes independncias em

    fins dos anos 1950 e incio da dcada de 1960, povoadas

    8 SARAIVA, Jos Flvio Sombra. Five periods in the history of Brazil-Africa relations: A particular way of building Brazilian Pan-Africanism and the weight of History. In: PANAFRICANISM AND AFRICAN RENAISSANCE. BEING PAN-AFRICAN. Addis Ababa, Ethiophia, May 17, 18 and 19, 2013.

    9 BANCO... . Ponte sobre o Atlntico. Brasil e frica Subsaariana: parceria Sul-Sul para o crescimento. Washinghton: BIRD; Braslia: IPEA, 2011.

  • 33

    A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico

    por rancores anti-coloniais, romantismos revolucionrios e

    jarges de libertadores ingnuos. Nem o renascimento

    ps-apartheid alardeado pelo governo de Pretria, embora a

    frica do Sul esteja na moldura mais ampla do que qualifico

    de renascimento africano. Tambm no se est falando do

    renascimento poltico dos anos 1960 e 1970, que j ficou

    para trs, nos debates recorrentes das elites africanas entre

    as ideias de Senghor e Cabral10. Esse assunto foi discutido,

    em parte, no incio desse captulo.

    A mensagem da frica clara ao mundo. O continente

    no quer remoer o passado cata de culpados. Quer

    caminhar para frente. O renascimento do incio do sculo

    XXI mais altrusta, evidencia outra forma de renascer, mais

    eficaz que a anterior, mais pragmtica, a fazer referncia a

    outras formas obliteradas de africanidade pelos discursos

    polticos engendrados pelas ideologias da Guerra Fria e

    do nacionalismo terico e poltico da primeira gerao

    das independncias. H um outro renascimento, novos

    consensos, com outras referncias culturais, polticas e

    sociais, com resultantes a serem alcanadas no mundo que

    vem a.

    cones da profundidade de campo histrico da frica

    (para utilizar as imagens de Abdel Malek11 e C. A. Diop) vm

    sendo trazidos para a discusso do futuro do continente.

    10 Ver SARAIVA, Jos Flvio Sombra. Formao da frica Contempornea. So Paulo: Atual/Unicamp, 1987, p. 6-16. Ver tambm os debates clssicos propostos por HOUNTONDJI, Paulin J. Sur la philosophie africaine. Paris: Maspero, 1980; BALOGUN, Ola. Honorat Aguessy, Path Diagne, Alpha Sow. In: BALOGUN, Ola et al. Introduo cultura africana. Lisboa: Edies 70, 1977.

    11 ABEL-MALEK, Anouar. Sociologia del imperialismo. Ciudad de Mxico: Universidad Nacional Autnoma de Mxico, 1977.

  • Jos Flvio Sombra Saraiva

    34

    esse, a ttulo de exemplo, o caso da releitura de Tombuctu,

    cidade antiqussima nas margens do rio Nger, que se

    revitalizou h anos como memria do classicismo africano,

    mas tambm como lugar do presente da cultura africana e

    da imaginao de um devir poltico soberano e altrusta do

    continente12.

    Apesar das dificuldades do Mali de hoje, ante o ataque

    aos escritos de Tombuctu por terroristas religiosos, a

    pesquisa segue na busca de documentos clssicos da

    cultura africana dos Grandes Lagos.

    Outra fonte do renascimento emerge de uma historiografia

    adaptativa e rica de Heinrich Barth, revista na obra recente

    de Mamadou Diawarq, Paulo Fernando de Moraes Farias

    e Gerd Spittler13. Surge tambm da recuperao da obra

    medieval de Ibn Khaldun, como seu Muqaddimah, escrito em 1377, bem como, alguns sculos depois, da obra de

    Edward Blyden (1822-19112), diplomata e professor, um

    fundador da Libria, homem de Estado.

    12 Ver FARIAS, Paulo Fernando de Morais.Tombuctu, a frica do Sul e o idioma de renascena africana. II CNPI, 2 e 3 de maro de 2007. Paulo Farias que lembra que por definio, o atual idioma da Renascena Africana se refere tanto ao presente quanto ao passado, dentro e fora das fronteiras da frica do Sul, o pas onde tem sido proclamado. tambm de Paulo Farias outras duas ideias lapidares para o debate em curso: primeiro, o papel dos cronistas de Tombuctu na inveno do esquema no tem sido reconhecido, porque a funo que lhes imposta pelos discursos posteriores outra. As crnicas passaram a ser vistas sobretudo como testemunhas de uma grandeza saheliana perdida, que simboliza o futuro a ganhar. As tenses sociais e audcias intelectuais da Tombuctu do sculo XVII so substitudas pela imagem de um classicismo africano estereotipado; segundo, todo discurso de renascena corre o risco de mitificar o passado. Mas esse risco no inevitvel, e subtrair-se a ele tambm uma maneira de preservar a capacidade crtica em relao ao presente e aos caminhos para o futuro.

    13 DIAWARA, Mamadou; FARIAS, Paulo Fernando de Moraes; SPITTLER, Gerd. Heinrich Barth et lAfrique. Kln: Rdiger Kppe Verlag, 2006.

  • 35

    A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico

    Animados por um conjunto de atividades acadmicas,

    polticas e culturais, os africanos relembram, em vrias

    partes do continente, o soleil des indpendances dos anos 1960, mas em especial passam em revista os descaminhos

    de vrias experincias de importao de modelos, como as

    reformas estruturais conduzidas pela genialidade liberal,

    os planos de reestruturao conduzidos pelos economistas

    do Ocidente ou mesmo a cpia em papel carbono do

    socialismo real e do modelo do partido nico de matriz

    stalinista.

    Os 54 Estados nacionais da frica passaro em revista, de

    forma crtica, nos prximos anos, a evoluo mais recente

    das cinco dcadas de autonomia jurdica, ainda que na

    poltica apenas de forma relativa, pois necessitam preparar

    parte das paredes de suas casas para uma insero mais

    altaneira na ordem internacional do sculo XXI14. Afinal,

    esse o balano dos que vocalizaram a Conferncia Pan-

    -Africanista de Adis Abeba em maio de 2013.

    O renascimento tambm pe a frica na cena internacional

    pragmtica. Est-se a falar de quase um quarto da superfcie

    do planeta (22,5% das terras do globo), com 30 milhes de

    quilmetros quadrados, com 10% da populao do mundo,

    mas que dever dobrar at 205015.

    14 Modelar o balano dos trinta anos da independncia da frica realizado por Douglas Rimmer, em 1991, com prefcio da Princesa Diana, em nome do Royal African Society britnico. Ver RIMMER, Douglas (Ed.). Africa 30 Years 0n. London: James Currey, 1991. Indicava j aquele documento do incio dos anos 1990 que a frica necessitaria voltar-se para si mesma, para dentro, para sair de suas crises.

    15 Vale aqui lembrar que os africanos sero, na segunda metade do sculo XXI, um conjunto de pessoas em torno de 1,3 bilho de pessoas, aproximadamente. Tomando-se em conta a grande populao de idosos e o baixo crescimento vegetativo na ltima dcada na China, bem como o modesto crescimento populacional da ndia, a frica, passando os outros dois pases, ser a regio mais populosa do mundo, no final do sculo XXI.

  • Jos Flvio Sombra Saraiva

    36

    Senhora de recursos minerais globais, a frica fonte

    de cobia por 66% do diamante do mundo, 58% do ouro,

    45% do cobalto, 17% do mangans, 15% da bauxita, 15% do

    zinco e de 10% a 15% do petrleo. So aproximadamente

    trinta os recursos minerais do mundo que a frica guarda

    em seu subsolo. Mas s participa de 2% do comrcio

    mundial e possui apenas 1% da produo industrial global.

    H, portanto, um enorme desafio de elevao desses itens.

    Em outras palavras: cultura, poder e economia comeam

    a caminhar de forma organizada para os africanos que

    vivem na frica do sculo XXI. A frica quer resolver seus

    problemas econmicos e sociais, ao lado da governana

    democrtica, ainda crtica em alguns pases do continente.

    Os africanos no querem que seu continente do sculo

    XXI seja lido como fonte da imaginao poltica dos outros,

    mesmo de seus descendentes nas Amricas, apenas como um

    lugar sagrado do passado, de dvidas histricas espalhadas

    por todo o mundo e do dilogo global dos afrodescendentes

    informando a noo da dispora. Embora tais temas sejam

    relevantes, no so as prioridades do momento vivido pelas

    sociedades africanas no novo sculo.

    Em meados da primeira dcada do novo sculo, as

    amarras da velha colonizao cedem lugar s iniciativas das

    lideranas africanas. H uma percepo que se generaliza

    de crescente responsabilidade das elites domsticas com

    o encaminhar do futuro. A ideia do aproveitamento de

    oportunidades inditas abertas pela quadra histrica da

    primeira dcada do sculo XXI permeia o novo discurso

    interno da inteligncia africana.

  • 37

    A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico

    Com efeito, h um novo mapa africano, no aquele

    desenhado pelos colonizadores de antes, mas no menos

    inquietante ante a fora incontestvel de seus desenhistas.

    Desfilam em Abuja, Adis Abeba, Lagos, Luanda, Cartum,

    Pretria, Cairo ou Maputo autoridades chinesas, norte-

    -americanas, brasileiras, agentes de empresas multinacionais

    e organizaes no governamentais.

    Atores internacionais de toda ordem, cada vez menos as

    organizaes no governamentais humanitrias dos pases

    ricos e cada vez mais atores econmicos e estratgicos

    globais, querem dividir, com os africanos, balanos e

    projees que j se preparam, no seio dos institutos

    africanos e mundiais, acerca da ltima fronteira territorial

    da internacionalizao econmica do capitalismo.

    H, portanto, uma relao biunvoca, mas tambm

    dialtica, entre o interno e o externo. H um lado desejvel:

    que a frica supere as velhas tenses advindas do relativo

    atraso em aspectos sociais e nas mtricas educacionais.

    Esse o lugar do discurso do renascimento africano das

    primeiras dcadas das independncias. Mas h outro: a

    preocupao de que novos arranjos entre as elites locais

    e internacionais no tragam a autonomia decisria nem o

    desenvolvimento sustentvel ao continente.

    O lcus do discurso do novo renascimento africano est

    nas palavras do intelectual e professor nigeriano Claude Ak

    (1939-1996), em seu ensaio Democracy and Development in Africa, quando lembrou que a grande preocupao com a frica no o que a levou ao subdesenvolvimento. A hora

  • Jos Flvio Sombra Saraiva

    38

    de colocar na agenda a conciliao da democracia com uma

    verdadeira agenda social e poltica do desenvolvimento.

    Preocupam-se alguns desses africanos que a internacio-

    nalizao crescente do continente africano, ante seu carter

    exgeno, perpetue-se com novas mscaras. A preocupao

    legtima do ilustre intelectual africano vai ao ponto focal.

    Como diminuir a distncia mental e real, produzida pelos

    prprios governantes de grande parte dos Estados africanos

    modernos, os abismos sociais e polticos que separam ricos

    de pobres, elite de povo, na frica das prximas dcadas do

    sculo XXI?

    Notam-se desde j at mesmo reaes de agentes

    econmicos, polticos e intelectuais africanos contra a lgica

    de sua internacionalizao. Alguns criticam que, sob o

    manto de uma nova partilha africana, governantes liberais

    e democrticos estariam mantendo formas de dominao e

    perpetuando de estratificao social.

    Esse sobressalto veio tona recentemente por meio

    de vrias vozes da inteligncia africana, como o filsofo

    senegals Yoro Fall. Tambm chamou a ateno Ali

    Mazrui, um dos mais prestigiados politlogos africanos

    contemporneos, para o fato de que a frica est busca de

    sua prpria Doutrina Monroe, da frica para os africanos16.

    Para Mazrui, at a reduo de conflitos armados

    internos ou que envolvem relaes internacionais na

    frica no pode dar-se por solues puramente exgenas.

    16 Ali Mazrui alertou para esse problema na abertura da conferncia internacional Democracy and Peace: Dialogue between Africa and Latin Amrica, Jos Univerity, Ibadan University, em Abuja, 2000, conferncia a qual tive a honra de participar como membro da delegao latino-americana.

  • 39

    A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico

    Os africanos necessitam solues domsticas e dirigidas

    por novo consenso entre povo e elites locais. Provoca-nos

    abertamente o velho mestre da arte poltica africana ao

    lembrar que a paz na frica deve ser um tema dos africanos,

    e no sua extenso para atores internacionais. Ele chega a

    falar em certa Pax Africana17.

    Mesmo com esses esforos de elevao do status e da vontade prpria africana, o continente ainda escrutinado

    sob todas as ticas, positivas e negativas, s vezes

    simultaneamente. Alguns ainda condenam a frica a um

    eterno desterro e consideram seu passado como mera

    preparao de uma obra civilizatria inconclusa do Ocidente.

    A decorrncia dessa lgica ainda segue em parte da

    historiografia e da sociologia nacionalista africana. A ideia

    que todos os males de hoje adviriam, ento, de um pecado

    original, o do colonialismo e suas consequncias. esse

    o raciocnio que amarra a reconstruo do passado a um

    presente infrtil, plasmado pelo afropessimismo que

    vigorou at pouco e que ainda persegue mentes cultas e

    especializadas nos assuntos africanos em vrios centros de

    estudos estratgicos no mundo, mesmo no Brasil.

    Vale lembrar que h ainda uma velha marcha erigida

    na m leitura da obra hegeliana, a qual o professor Paulo

    Fernando de Moraes Farias recentemente reviu e criticou na

    Universidade de Birmingham, Inglaterra. Exageros j foram

    impetrados nesse movimento. A ausncia de razo crtica,

    herdeiras elas do discurso hegeliano, empurrou bastante a

    17 MAZRUI, Ali. Foreword. In: LAUREMONT, Ricardo R. (Ed). The causes of war and the consequences of peacekeeping in Africa. Portsmounth: Heinemann, 2002. p. xi.

  • Jos Flvio Sombra Saraiva

    40

    cincia e a opinio pblica, nas ltimas dcadas, ao discurso

    da inviabilidade da frica. o plano escatolgico plasmado

    por imagens, autores e meios da corrente afropessimista

    dos anos 1990.

    Teses vm sendo utilizadas, nessas bases esquemticas,

    e em vrias partes do mundo, na lgica da marginalidade

    africana e de sua modesta importncia para o quadro geral

    da ao externa dos Estados e das relaes internacionais

    do sculo XXI.

    Esse autor pensa exatamente o contrrio do

    afropessimismo atvico. A frica jamais foi marginal, no

    passado nem no presente. O conceito da marginalidade

    africana insustentvel, terica e empiricamente. No so

    apenas os africanos que se insurgem contra essa escatologia,

    mas a massa de literatura atualizada acerca dos desafios

    africanos no xadrez da poltica internacional. So autores

    africanistas como Jean-Franois Bayart, assim como Ian Taylor

    e Paul Williams, no livro intitulado Africa in International Politics: External Involvement on the Continent18, os que abrem a crtica contra a escatologia antiafricana nos temas

    da poltica internacional para o incio do sculo XXI. Eles,

    como o autor deste livro, em poucas palavras, gostam de

    desconstruir o discurso da marginalidade da frica.

    2.4. O mundo caminha para a fricaO mundo est atento frica como sempre estiveram as

    grandes potncias e as ex-metrpoles. O peso da frica na

    18 TAYLOR, Ian; WIILLIAMS, Paul (Eds.). Africa in International Politics: External Involvment on the Continent. London: Routledge, 2004.

  • 41

    A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico

    Guerra Fria no se circunscreveu a ser margem do sistema

    internacional.

    E hoje o sistema de Estados, as instituies multilaterais,

    as grandes empresas e os produtores de cultura esto

    acompanhando, de perto, a reinsero africana na poltica

    internacional. Relatrios e cenrios vm sendo lanados

    com profecias otimistas acerca das escolhas polticas e do

    novo perfil de desenvolvimento social que a frica requer.

    Essas tendncias eram naturais, assim como as avaliaes

    produzidas pelo Royal African Society, no Reino Unido, j nos anos 1960. Mas aumentou em quantidade e qualidade

    nos anos mais recentes.

    Um dos mais novos documentos do incio do sculo

    XXI o interessantssimo trabalho, com fins estratgicos,

    organizado pelos professores Samantha Power (da Univer-

    sidade de Harvard) e Anthony Lake (da Georgetown University), em fins de 2006, ladeando o ex-secretrio de Estado assistente para frica dos Estados Unidos, Chester

    Crocker. Lanado em 2007 pelo afamado Council of Foreign Relations, dos Estados Unidos, nele se nota perfeitamente a retomada da prioridade africana na poltica externa norte-

    -americana19.

    More than Humanitarianism o ttulo da estratgia norte-americana fala por si ao lanar as bases conceituais

    dos norte-americanos para a frica de Clinton a Obama. A

    segunda visita de Obama frica (a trs pases: Senegal,

    frica do Sul e Tanznia), em junho de 2013, demonstra,

    19 COUNCIL OF FOREIGN RELATIONS, More than Humanitarianism: A Strategic US Approach towards Africa. Washington: Council on Foreign Relations, 2007.

  • Jos Flvio Sombra Saraiva

    42

    mais uma vez, a continuidade dos planos norte-americanos

    na nova frica.

    Quais so seus elementos centrais de continuidade?

    Pragmatismo mais do que humanitarismo, ampliao da

    diversificao no campo da energia, cooperao com os

    governos democrticos e ocupao de espaos na luta

    contra o terrorismo so as linhas gerais de trabalho para

    hoje e aparentemente para os prximos anos da presena

    dos Estados Unidos na frica.

    Outros trabalhos sobre a frica do sculo XXI esto sendo

    desenvolvidos pelos chineses. A universidade chinesa tem

    se mostrado hbil na elaborao estratgica para a frica. E

    j vinha essa estratgia da China desde o tempo do governo

    do primeiro ministro Li Peng, nos fins da dcada de 1980 e

    incio dos anos 1990. O marco poltico foi o dia 4 de junho de

    1989, ante o drama da Praa da Paz Celestial e o isolamento

    imposto pelo Ocidente ao regime poltico de Pequim.

    Comeou a a conexo frica-China, por razes mais

    polticas que econmicas, que agora, na economia, tem

    todas as condies de ser a mais duradoura sobre todos

    os demais intentos de qualquer pas, mesmo os Estados

    Unidos, de estabelecer bases de cooperao ativa como o

    renascimento africano.

    A estratgia chinesa explcita e se dedica aos seguintes

    itens:

    exportao para a frica do modelo chins de

    tratamento dos temas da agenda internacional,

  • 43

    A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico

    apresentando-se como uma representante natural

    dos pases em desenvolvimento;

    exportao de bens industriais e armas e importao

    de produtos primrios, particularmente minerais;

    participao nas fontes possveis e necessrias

    de recursos minerais, estratgicos e de energia

    que garantam a sustentabilidade do crescimento

    econmico chins;

    investimentos em engenharias de infraestrutura

    de aeroportos, estradas, entre outros parques de

    modernizao urbana e logstica da frica.

    Os mtodos para realizar esses objetivos so mltiplos.

    Variam dos investimentos, emprstimos e doaes

    cooperao tcnica e tecnolgica, alm de exerccio de

    cooptao poltica das elites africanas. O ambiente poltico da

    cooperao abraa o econmico como parte da engenharia

    estratgica elaborada empiricamente. A raiz foi, de fato, no

    incio, o isolamento poltico do regime chins depois do

    evento de 4 de junho de 1989 e a solidariedade conferida

    por grande maioria dos governos na frica, depois de serem

    cortejados com recursos chineses. Obviamente essa matriz

    foi evoluindo gradualmente ao capitalismo chins com

    presena global, a conformar-se a segunda grande economia

    do mundo e a maior potncia exportadora da Terra.

    Foi o primeiro-ministro Li Peng quem coordenou toda

    a operao de aproximao com os governos africanos.

    Vrios desses governantes da frica de ento aceitaram os

    argumentos da China e se moveram no xadrez internacional

  • Jos Flvio Sombra Saraiva

    44

    ao lado dos lderes chineses. Para exemplificar, a China

    oferecia, em 1988, cerca de US$ 60 milhes de ajuda direta

    a trinta pases da frica. Em 1990, depois do apoio dos

    governos africanos ao regime de Pequim, os pases africanos

    receberam j a soma de US$ 374 milhes. Hoje os volumes,

    j bilionrios, que os chineses investem na frica so parte

    da explicao da emergncia de uma nova frica.

    Embora predominantemente econmica, a presena

    chinesa na frica origina-se da poltica e seguir tendo uma

    forte conotao poltica e estratgica. As palavras de Li Peng,

    em 12 de maro de 1990, na chegada a Pequim de imensa

    delegao de chefes de Estados africanos foram claras.

    Falou Li Peng de uma nova ordem poltica internacional

    que deveria significar que todos os pases so iguais e

    deveriam respeitar os outros com relao a suas diferenas

    no sistema poltico e na ideologia. Para o lder chins, os

    pases capitalistas do centro e as democracias ocidentais

    no podem interferir nos assuntos domsticos dos pases

    em desenvolvimento, especialmente avanar poder poltico

    em nome de direitos humanos, liberdade e democracia20.

    Outros pases se moveram para a frica. Um deles

    a Frana, uma das maiores investidoras individuais no

    conjunto da economia africana21. H preocupaes da Frana

    tanto na rea comercial quanto na rea da cooperao direta

    20 Apud TAYLOR, Ian. The all-weather friend? Sino-African interaction in the twenty-first century. In: TAYLOR, Ian; WILLIAMS, Paul,, op. cit., p. 87.

    21 GAYE, Adama. Chine-Afrique: le dragon et l1autruche. Paris: LHarmattan, 2006; SUSBIELLE, Jean-Franois. La conqte pacifique de lAfrique. In: ______. Chine-USA: la guerre programe. Paris: Ed. Gnrale First, 2006. p. 231-232; TENESSO, Armand. La nouvelle destine de lAfrique. Paris: LHarmattan, 2006.

  • 45

    A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico

    da China com regimes polticos na frica que desrespeitam

    o captulo dos direitos humanos. Daniela Kroslak estudou

    essa matria de forma mais detalhada, com nfase ao tema

    do envolvimento militar da Frana naquele continente22.

    O fato objetivo que, desde 1990 e renovando-se

    em 2000, com a criao do Frum de Cooperao frica-

    -China, no qual oitenta ministros de Estado africanos foram

    levados de Pequim rea industrial de Guandong para

    verem o colosso do crescimento industrial chins, passando

    pela segunda edio, em novembro de 2006, do Frum de

    Cooperao, alm da terceira visita do presidente Hu Jintao

    frica em fevereiro de 2007 , a China desembarcou na

    frica de forma estrutural. difcil andar em qualquer rua

    comercial de qualquer pas africano que no esteja inundada

    por produtos chineses. No h capital na frica sem uma

    obra pblica imponente feita com recursos chineses. No h

    infraestrutura importante de aeroportos e estradas que no

    tenha uma mo chinesa.

    Em semelhana ao modelo do nacional-desenvolvimentismo

    brasileiro dos anos 1970 e 1980, mesmo no perodo militar,

    pode-se dizer que o Brasil teve uma diplomacia cooperativa

    e no confrontacionista com o continente africano. Quase

    a seguir o mesmo modelo brasileiro de antes, a China dos

    ltimos anos buscou a frica sem truculncia, violncia ou

    presuno de superioridade. Em alguma medida, a prpria

    22 KROSLAK, Daniela. Frances policy towards Africa. In: TAYLOR, Ian; WILLIAMS, Paul, op. cit., p. 61-82.

  • Jos Flvio Sombra Saraiva

    46

    China executa meios que fazem lembrar aspectos do Brasil

    na frica.23

    H, portanto, uma frica em crescente internacionalizao

    e nada marginal. Ela est no centro de uma concorrncia

    fortssima de interesses e interessados de vrias partes

    do globo. Se os investimentos externos diretos crescem de

    forma consistente, oriundos tanto das grandes empresas

    financeiras quanto das produtivas, tambm verdade que

    esses investimentos esto dirigidos por certa lgica de fora

    para dentro.

    2.5. A frica para os africanos Mas no se traa o futuro da frica apenas de fora para

    dentro. Os africanos esto reivindicando e construindo

    autonomia decisria. Buscam solues nacionais para

    seus desafios na rea social e da cidadania. O controle

    do Estado e sua orientao para o crescimento econmico

    e o desenvolvimento sustentvel so a boa novidade no

    continente.

    Tornaram-se os lderes africanos refratrios noo de

    fim do Estado e de governana global vendidas para a

    frica como soluo mgica. Desejam falar de transio de

    modelo para uma forma mais logstica de construo do

    desenvolvimento, com democracia e mais incluso social.

    Passaram a operar em novas bases conceituais no perodo

    23 Ver o incio de avaliao desse movimento do Brasil em artigo relativo conferncia que preparei para evento anterior organizado pelo Ministrio das Relaes Exteriores: SARAIVA, Jos Flvio Sombra. Moambique em retrato 3x4: Uma pequena brecha para a poltica africana do Brasil. In: II CONFERNCIA NACIONAL DE POLTICA EXTERNA E POLTICA INTERNACIONAL, 2 de maro de 2007. Seminrio Preparatrio frica. 2007.

  • 47

    A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico

    ps-Guerra Fria, ante as crises gerais do capitalismo em seu

    centro histrico, a prpria Europa, as quais j a partir de

    2013 envolvendo grandes pases emergentes, como o Brasil

    de 2015.

    O encerramento do grande ciclo dos conflitos abertos e

    militarizados internos exemplo da vontade poltica africana

    nova de renascer e orientar as energias para projetos mais

    produtivos. Engajaram-se os africanos nos programas voltados

    para as metas do milnio e querem modificar os indicadores

    sociais previstos para serem alcanados em 2015.

    Administrar, de dentro para fora, as ambies

    internacionais geradas pelos planos estratgicos emergentes

    exigir dos africanos uma noo de domesticao da

    internacionalizao da economia, pela via do fortalecimento

    do Estado democrtico e da responsabilidade fiscal e

    macroeconmica mais ampla. Esse quadro tambm exigir

    das lideranas africanas a capacidade de reduzir tendncias

    pragmticas e danosas que caminham juntas com a ambio

    poltica.

    H, nesse sentido, um ambiente mais positivo.

    A mais importante iniciativa nesse sentido, emblemtica da

    autoconfiana que se espraia no seio da inteligncia poltica

    do continente, foi o lanamento da Nova Parceria para o

    Desenvolvimento Africano (Nepad), em 2001. Ao reivindicarem

    a capacidade de construo de seu futuro, as lideranas

    africanas esto atraindo para si a responsabilidade de

    superao do grau marginal de insero ao qual o continente

    foi submetido na dcada de 1990. Buscar um lugar mais

    altivo, menos subsidirio na globalizao assimtrica atual,

  • Jos Flvio Sombra Saraiva

    48

    o argumento central do contorno do desenho estratgico

    que a Nepad significa. Esse aspecto ser mais desenvolvido

    no captulo IV deste livro.

    O mais importante aqui informar que a Nepad no foi

    feita de fora para dentro da frica. Nem um plano onrico

    como o Plano de Lagos de 1980 ou limitado como o Programa

    Africano de Recuperao Econmica de 1986. A Nepad tem

    carter indito, abrangente, social e cidado, como o Plano

    Marshall foi para a reedificao da Europa depois da Segunda

    Guerra. Abstraindo certa licenciosidade potica, um bom lema

    til, pois, comunicao da Nepad ao mundo. O lema, em

    ingls africano, apresentado de forma contundente: African leadership and African ownership.

    O texto de lanamento fala por si, ao situar a plataforma

    conceitual na qual a Nepad ainda deseja florescer, uma

    vez que seu primeiro tempo de experincia se estende at

    o ano de 2016, em um apanhado de projetos vinculados

    ao conjunto dos Objetivos do Milnio, da Organizao das

    Naes Unidas (ONU). Assim informa a redao da Nepad o

    pacto de uma frica para os africanos:

    A frica ps-colonial herdou Estados fracos e economia disfuncionais que foram agravados ainda por uma liderana fraca, pela corrupo e m governana em muitos pases. Esses dois fatores, conjugados s divises causadas pela Guerra Fria, minaram o desenvolvimento de governos responsveis em todo o continente24.

    24 NEPAD Nova Parceria para o Desenvolvimento Africano, (Documento oficial de lanamento) Lisboa: Nepad, 2001, pargrafo 22.

  • 49

    A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico

    O reconhecimento de que o Estado tem um papel central

    no desempenho do crescimento, no desenvolvimento

    sustentvel e na implantao de programas de reduo

    de pobreza, anotados pelos chefes de Estado na frica

    de 2001, ainda um sonho. Mas, a dimenso utpica das

    novas vontades expressadas pelos africanos move a vida

    deles para uma nova agenda poltica da qual a frica no

    poder mais se afastar. Essas foram, em alguma medida,

    as mensagens que deixou o lder africano Nelson Modela, o

    homem que demonstrou que era possvel uma nova frica.

  • 51

    IIIAs relaes internacionais e a frica

    3.1. As novas condies internacionais do incio do sculo XXI

    As condies internacionais da passagem do sculo XX

    para o sculo atual foram favorveis insero internacional

    da frica. O continente j configura continuidade de uma

    dcada de superao, em comparao com as quatro dcadas

    anteriores, de baixa continuidade econmica, fraturas na

    formao dos Estados nacionais, pssimos ndices sociais.

    O crescimento econmico em ciclo recente trouxe alguma

    consistncia estrutural modernizao daquele continente

    de 30 milhes de quilmetros quadrados, gerador de fato

    indito histria recente dos jovens Estados africanos,

    nascidos do primeiro ciclo de independncias no fim dos

    anos 1950 e incio da dcada de 1960.

    Os registros quantitativos e qualitativos produzidos

    pelas agncias internacionais e pelos prprios gestores

    dos 54 Estados africanos produziram evidncias empricas

  • Jos Flvio Sombra Saraiva

    52

    do argumento inicial. Economistas, governos e empresas

    chinesas e norte-americanas, e mesmo balanos brasileiros

    de empresas e rgos de governo, confirmaram a quadra

    histrica alvissareira a que assistimos recentemente.

    Hoje h, aproximadamente, 1 bilho e alguns milhes de

    habitantes no continente africano. a terceira concentrao

    demogrfica da Terra, depois da China e da ndia. Os cerca de

    800 milhes de africanos que habitam as paragens da frica

    subsaariana, abaixo do Saara, ou frica dita negra, avanam.

    Depois de dcadas de agruras, como comentado no captulo

    anterior, esses africanos de hoje assistiram, mesmo com

    crises estruturais e dificuldades histricas no campo da

    assimetria social e dependncia econmica das metrpoles

    de antes, um sopro de esperana de normalizao de suas

    vidas.

    A frica vem se apresentando como a ltima fronteira

    do capitalismo global. Em Adis Abeba, a celebrao dos

    cinquenta anos da OUA, hoje UA como se notou na

    imprensa internacional de maio de 2013 colocou a frica

    no centro da ateno da sociedade internacional.

    Abriu-se a oportunidade para, por meio do crescimento

    econmico, buscar-se a normalizao poltica, ampla

    cidadania, pacificao dos conflitos domsticos e entre

    Estados. a frica que quer ser parte do mundo no campo

    da cidadania, da mitigao de pobreza e at mesmo de

    superao do modelo de exportao de commodities, em favor de agregao s cadeias produtivas globais no campo

    tecnolgico e da inovao.

  • 53

    A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico

    As perguntas persistem, como Nelson Mandela gostava

    de suscitar. Qual o contexto da real e imaginria elevao

    da frica na sociedade internacional do sculo XXI? O que

    desejam os africanos de hoje no mundo cosmopolita e

    sincrtico que se cria? Ser possvel evoluir para projetos

    alentados de crescimento social e civilizatrio de seus

    habitantes? Como se far a nova governana democrtica na

    frica? O problema exclusivamente educacional? Qual ser

    o lugar da frica no sculo XXI?

    Parte das respostas, como lembrava Madiba (forma

    afetuosa com a qual os sul-africanos se referem a Nelson

    Mandela, um de seus nomes de nascimento na cultura

    tembu), atm-se evoluo interna das relaes entre as elites desses mesmos Estados africanos25. Autores

    africanos e africanistas de todo o mundo vm chamando

    a ateno para essa responsabilidade endgena de classes

    ascendentes da frica.

    Mas a outra parte das respostas s indagaes

    acima lanadas tambm esto vinculadas s prprias

    transformaes globais da primeira dcada do sculo XXI.

    Essas transformaes agem sobre o contexto africano.

    Algumas mudanas projetaram possibilidades para a frica.

    Outras transformaes inibem a elevao do continente

    africano.

    Quais seriam essas transformaes em curso da sociedade

    internacional com impactos na formao da frica do sculo

    25 SARAIVA, Jos Flvio Sombra. A frica na ordem internacional do sculo XXI: mudanas epidrmicas ou ensaios de autonomia decisria? Revista Brasileira de Relaes Internacionais, 51(1), 2008, p. 87-104. Ver tambm PENNA FILHO, Pio. A frica contempornea: do colonialismo aos dias atuais. Braslia: Hinterlndia, 2009.

  • Jos Flvio Sombra Saraiva

    54

    XXI? As primeiras concluses comeam a chegar e so favorveis

    relativamente ao continente africano. A governana nascente

    no eminentemente europeia, no possui faceta apenas

    norte-americana nem tem seu epicentro apenas nas guas

    do Atlntico Norte. No governada apenas pelas sociedades

    civis supranacionais. Sequer expressa f inquebrantvel nas

    formas de produo e distribuio econmicas baseadas em

    princpios liberais. Tem algo de tudo isso, mas no pode ser

    definida apenas por esses parmetros. Isso j bom para os

    projetos de desenvolvimento dos africanos das novas elites

    do sculo XXI.

    O presidente Obama produziu pea diplomtica curiosa

    e animadora no primeiro semestre de 2011, ao falar ao

    Parlamento britnico. Enterrou politicamente as escolas

    acadmicas do realismo poltico e das teorias que foram

    ensinadas por dcadas nas academias dos Estados Unidos.

    Encerrou, no discurso, o ciclo do ensino da hegemonia

    americana nos fatos e na formao dos conceitos de relaes

    internacionais. Esse discurso, naturalmente, no converge

    com as aes e projetos da poltica norte-americana. Tanto

    na frica como no mundo, h certa linha de continuidade

    dos interesses e valores dos Estados Unidos no mundo.

    Em todo caso, h que se anotar que o mandatrio norte-

    -americano atual, mesmo em fim de mandato, no estampa

    a autoconfiana na pax americana de Bush pai e reconhece os limites dos sonhos de Bush filho. Ainda que em campanha

    em favor de seu Partido Democrata, e animado com a

    prxima eleio presidencial que no mais poder postular,

    reconhece Obama as dificuldades. Sabe que a projeo

  • 55

    A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico

    global da Organizao do Tratado do Atlntico Norte (Otan)

    e das economias ocidentais, sob a liderana dos Estados

    Unidos, est reduzida, em parte pela elevao de grandes

    Estados continentais, portadores de massa territorial, peso

    demogrfico e escala econmica propulsora voltada para o

    novo ciclo do crescimento econmico no mundo.

    Emerge a governana sincrtica do sistema internacional.

    Ela multipolar, dirigida por grandes Estados, do Ocidente e

    do Oriente, ancorada em valores mltiplos e conduzida por

    coalizes graduais e afinidades eletivas. Movem-se por meio

    de dinmicas nas quais os interesses nacionais das novas

    potncias no se subordinam automaticamente s regras

    e normas do antigo Grupo dos 8 (G8) ou do Conselho de

    Segurana da ONU, que funciona como certo diretrio ps-

    -modernista.

    A governana sincrtica um sistema hbrido. O peso

    das velhas potncias e dos rgos econmicos, como o FMI

    e o Banco Mundial, compartilhado com grupos de pases

    tais como aqueles que compem o Brics. H tambm a

    insero de novos atores, como as empresas multinacionais

    do Sul em processo ampliado de internacionalizao. Vide

    os casos chins, brasileiro e indiano.

    No campo da segurana internacional, a governana

    sincrtica torna difcil o caminhar rumo aos antigos

    consensos. J no se aprovam sanes e intervenes no

    sistema internacional sem o apoio dos emergentes. Os

    casos da interveno no Iraque e a caa ao governante da

    Lbia contrastam com os conceitos de soluo pacfica de

  • Jos Flvio Sombra Saraiva

    56

    controvrsias, esses mais prprios ao Brics e s percepes

    do Sul das relaes internacionais.

    A China, que atrai e repele tais emergentes, a depender do

    aspecto em discusso na agenda da governana sincrtica,

    modelo de crescimento econmico. O Pacfico seu eixo

    dinmico preferencial. O entorno chins, antes influenciado

    pelo modo de produo norte-americano, j se subordina

    ao modelo de baixos salrios e aumento da jornada de

    trabalho nas fbricas. So outros valores, no exatamente

    os do welfare state patrocinados pela histria da elevao econmica, social e poltica da Europa. Isso ainda no se

    conformou na frica, ao contrrio das dificuldades de pases

    emergentes, como o Brasil de 2015.

    Em sntese, as novas condies da temperatura e

    presso das relaes internacionais do incio do sculo,

    especialmente as de ordem econmica, fizeram tremer

    ou animar lideranas africanas, a depender da posio.

    A preocupao inicial era a de que a crise econmica global

    se espraiaria nas periferias do capitalismo, portanto na

    frica, de forma sequencial, em efeito domin, a seguir o

    compasso de intranquilidade criada no centro do capitalismo

    norte-americano e em seus pares europeus.

    Nesse sentido, mesmo com um crescimento quantitativo

    e qualitativo, a frica, por no estar s no mundo, dever

    se mover em certos parmetros que so tambm fluidos,

    incompletos, oriundos das transformaes das relaes

    internacionais em curso. O peso da China na frica explica

    isso. Os Estados Unidos da Amrica voltam a avanar aos

    poucos em 2015. O Brasil ainda tem grande possibilidade no

  • 57

    A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico

    continente africano, utilizando o riacho comum denominado

    de Atlntico Sul.

    3.2. A crise global e a frica resilienteA crise originada na toxidade dos capitais, fato global

    mais relevante da segunda metade de 2008, ao migrar para as

    atividades produtivas j no final do mesmo ano, aprofundou-

    -se e alastrou-se geograficamente. O crescimento global

    segue pfio. Tempos de incerteza movem os movimentos

    dos jovens europeus desempregados, acostumados que

    estavam com o welfare state. O aprofundamento dessas crises desde os primeiros meses de 2009 e a persistncia

    da crise global at os dias atuais preocupam e atraem a

    ateno das novas elites africanas.

    A crise atingiu a todos? A lgica da divulgao diria de

    cada novo ndice econmico apresentado pelas autoridades

    governamentais em diferentes partes do planeta deprimiu a

    esperana. O fatalismo inicial foi to intenso que alcanou

    em proporo a outra lgica perversa que presidiu quadra

    histrica relativamente recente: a da euforia triunfalista dos

    que decretaram o fim da Histria no incio dos anos 1990 e

    o incio do paraso liberal.

    Exemplos no andam escassos. A Europa declina, em

    especial em suas margens perifricas da Grcia, de Portugal,

    da Espanha e da Irlanda. At a Itlia, terceira economia do

    euro, sofre. A recesso no Japo de hoje se mantm desde

    os nveis dos anos 1970, embora o governo japons tenha

    comeado em 2013 uma forte desvalorizao de sua moeda

    como forma de competir melhor na crise. No que tange aos

  • Jos Flvio Sombra Saraiva

    58

    Estados Unidos da Amrica observa-se alguma inoperncia

    e lentido no encaminhar os planos prticos para apoio e

    arranjos estratgicos com os grandes pases do continente

    africano, embora j exista uma pequena melhora nos ndices

    de crescimento e de emprego.

    Ao mesmo tempo, na Europa, h emprego declinante,

    a empurrar o projeto comunitrio para a xenofobia de

    direita, elege, a cada dia, governantes que tm apenas

    muito de agenda fiscal e pouco de poltica internacional. A

    China, vulnervel diante da dependncia das exportaes

    como vetor central de seu PIB, parece que ir crescer mais

    lentamente. A Rssia padece em parte com a depreciao de

    sua commodity energtica e com a crise cambial. Mas segue potncia global estratgica.

    A Amrica Latina no foi exceo. Mantm crescimento

    econmico modesto, embora melhor que os PIB dos Estados

    Unidos e da Europa. Depois de um elevado crescimento no

    incio da crise, a Amrica Latina comea a crescer menos.

    E o pleno emprego comea a dar sinais de mudana de

    paradigma diante dos custos inflacionrios que voltam e

    o desperdcio consumista que levou ao endividamento de

    muitas famlias na regio.

    Diante das enxurradas de balanos negativos na rea

    do emprego e da barragem dos financiamentos do ciclo

    virtuoso e das fontes de investimento internacionais, os

    cidados comuns j entenderam que a fase urea pode

    ter passado. O Brasil, e alguns outros pases da regio, no

    entanto, mostraram alguma capacidade de retomada do

    crescimento, ainda que de forma discreta. Na Argentina, a

  • 59

    A frica no sculo XXI: um ensaio acadmico

    poltica partidria reduziu os modestos alicerces econmicos,

    na difcil conduo do que chama o novo governo peronista

    de um projeto argentino. No caso brasileiro, a quadra de

    crescimento modesto entre 2011 e 2014 segue preocupante,

    e h o esgotamento das formas pouco agregadas de valor

    de sua exportao, ao lado de repiques inflacionrios que

    preocupam.

    Na frica, houve pnico inicial diante da crise do

    capitalismo do centro. Mas logo se percebeu que o

    contexto poderia no ser to ruim. A frica no foi atingida,

    plenamente, pelo pessimismo atvico daquele primeiro

    momento da crise mundial. E aos poucos o otimismo

    voltou, particularmente com a permanncia dos nmeros

    do crescimento do PIB mdio dos pases africanos em torno

    de 5,5% ao ano.

    A manuteno desse crescimento, mesmo que um

    pouco abaixo da mdia de 5,5% do PIB ao ano, como mdia

    continental, ainda poder ser considerado, para os prximos

    anos, um grande sucesso. Afinal, foi a nica dcada

    realmente de crescimento de riqueza na frica desde a

    primeira dcada das independncias.

    Na frica, a tendncia parece ter sido um pouco

    diferente daquelas vislumbradas nas reas tradicionais

    do capitalismo e na parte mais proeminente dos pases

    emergentes do Sul. A frica, portanto, ainda no barrou

    seu ciclo de crescimento na dcada em curso. Os ndices

    de normalizao macroeconmicos so positivos, a gesto

    pblica melhorou e as economias africanas no se abateram

    como nos grandes do centro do capitalismo.

  • Jos Flvio Sombra Saraiva

    60

    O continente africano assiste e continua a assistir

    ao ciclo de crescimento. o mais sustentvel desde as

    independncias do incio dos anos 1960. Parece poder

    sustentar posio ante o ciclo de crescimento menor. O

    que declinou foi o percentual em fase crtica, nos ltimos

    meses de 2008 e incio de 2009, especialmente para aquelas

    economias africanas mais ligadas s empresas e negcios

    com pases europeus.

    A frica naturalmente no est imune aos processos

    das relaes internacionais do momento. H problemas de

    continuao de grandes programas de desenvolvimento

    no campo africano. A retrao chinesa poder ter ainda

    algum impacto no continente, particularmente diante das

    expectativas das classes mdias africanas que esperavam

    mais dos capitais da China. Por outro lado, h outros atores

    no campo africano, como os capitais do Golfo Prsico, os

    projetos que avanam nos trabalhos da Nepad, ou mesmo

    a crescente presena de outros atores internacionais no

    financiamento de projetos na frica. A ndia, o Japo e

    mesmo o Vietn esto se aproximando bastante dos projetos

    de desenvolvimento no continente africano. No entanto, o

    avano dos capitais do Golfo Prsico compensou o crdito

    e o financiamento infraestrutural dos novos projetos da

    Nepad, a iniciativa africana de desenvolvimento sustentvel

    e de incorporao social dos mais vulnerveis.

    Apesar do efeito do contgio da febre pessimista, a

    frica a parte do planeta que menos fala em crise no

    momento. Em parte porque a crise j paisagem duradoura

    da geografia africana. O continente foi um laboratrio de