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Autoras: Profa. Maria de Fátima Matos Cardoso Profa. Lara Terezinha Rodrigues Rosa Colaboradoras: Profa. Amarilis Tudela Nanias Profa. Maria Francisca S. Vignoli Serviço Social e Questão Social

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Autoras: Profa. Maria de Fátima Matos Cardoso Profa. Lara Terezinha Rodrigues RosaColaboradoras: Profa. Amarilis Tudela Nanias Profa. Maria Francisca S. Vignoli

Serviço Social e Questão Social

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Professoras conteudistas: Maria de Fátima Matos Cardoso e Lara Terezinha Rodrigues Rosa

Maria de Fátima Matos Cardoso

Natural de Vitória da Conquista (BA) e residente em São Paulo (SP), Maria de Fátima Matos Cardoso é graduada em Serviço Social e mestre em Educação Interdisciplinar pela Faculdade Zona Leste de São Paulo, atual Universidade Cidade de São Paulo (Unicid). Docente da graduação em Serviço Social da Universidade Paulista (UNIP) e coordenadora local de Serviço Social do campus Pinheiros, já ministrou aulas na Universidade de Guarulhos (UNG), no Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (UNIFMU) e na Faculdade Paulista de Serviço Social (FAPSS).

Atua como consultora social e educacional para instituições municipais e do terceiro setor.

Lara Terezinha Rodrigues Rosa

Lara Terezinha Rodrigues Rosa nasceu em Bragança Paulista (SP) e reside em São Paulo (SP). É graduada em Serviço Social pelo Centro Universitário do Sul de Minas (Unis‑MG) e especialista em Serviço Social em Hospital Universitário pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Atua como assistente social no Hospital São Paulo (HSP/Unifesp) e como docente da graduação em Serviço Social na Universidade Paulista (UNIP), campus Pinheiros.

Apesar do pouco tempo de formação, a experiência durante os estágios e enquanto aluna pesquisadora de Iniciação Científica na área do Serviço Social proporcionou‑lhe um importante caminho para a formação profissional, pelo fato de correlacionar a teoria com a prática, bem como para conhecer os diversos campos de atuação da área. Nessa perspectiva, estudos e pesquisas resultaram em publicações de artigos em diversas áreas (Educação, Saúde, Assistência Social, entre outras).

Esta produção desencadeou‑se da oportunidade oferecida pela UNIP, ao abrir espaço a produções, pesquisas e reflexões para a expansão de conhecimentos que impactem na formação de futuros profissionais, nesse caso, assistentes sociais.

© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

C268s Cardoso, Maria de Fátima Matos

Serviço social e questão social / Maria de Fátima Matos Cardoso; Lara Terezinha Rodrigues Rosa. – São Paulo: Editora Sol, 2012.

108 p., il.

1. Serviço social. 2. Sociedade. 3. Questão social. I. Título.

CDU 364

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Prof. Dr. João Carlos Di GenioReitor

Prof. Fábio Romeu de CarvalhoVice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças

Profa. Melânia Dalla TorreVice-Reitora de Unidades Universitárias

Prof. Dr. Yugo OkidaVice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa

Profa. Dra. Marília Ancona‑LopezVice-Reitora de Graduação

Unip Interativa – EaD

Profa. Elisabete Brihy

Prof. Marcelo Souza

Profa. Melissa Larrabure

Material Didático – EaD

Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dr. Cid Santos Gesteira (UFBA) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP)

Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos

Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto

Revisão: Juliana Maria Mendes Luanne Batista

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SumárioServiço Social e Questão Social

APRESENTAçãO ......................................................................................................................................................7INTRODUçãO ...........................................................................................................................................................8

Unidade I

1 MUNDIALIZAçãO FINANCEIRA, ACUMULAçãO CAPITALISTA E SUAS INFLUÊNCIAS NA QUESTãO SOCIAL ................................................................................................................................................ 132 TRANSFORMAçõES POLíTICO‑ECONôMICAS E SOCIAIS E A QUESTãO SOCIAL .................... 223 QUESTãO SOCIAL E POLíTICAS SOCIAIS NA PERSPECTIVA NEOLIBERAL .................................. 274 CONTExTUALIZANDO O SERVIçO SOCIAL E A QUESTãO SOCIAL ................................................. 40

Unidade II

5 A QUESTãO SOCIAL CONTEMPORâNEA E OS DESAFIOS PARA O SERVIçO SOCIAL ............. 506 SERVIçO SOCIAL E DESAFIOS CONTEMPORâNEOS DE PESQUISA ............................................... 727 PARâMETROS ÉTICO‑POLíTICOS PARA O SERVIçO SOCIAL ........................................................... 768 SERVIçO SOCIAL NA CENA CONTEMPORâNEA ................................................................................... 83

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APReSenTAção

Este livro‑texto desenvolve uma análise do Serviço Social na cena contemporânea, tendo por base a realidade neoliberal e globalizada, marco de transformações no mundo do trabalho, na economia, na política e na cultura brasileira. Nesse cenário é que se configuram novas condições e espaços de trabalho da área.

A proposta consiste na exploração de alguns conhecimentos acerca da mundialização financeira, da expansão do capital, da acumulação de riquezas e dos desafios de combate à Questão Social, expressa em desigualdades sociais. Também são abordados neste trabalho os esforços realizados para a redução dos quadros de pobreza e para o desenvolvimento das nações, com ênfase na realidade brasileira. Além disso, são realizadas análises dos fatores socioculturais, políticos e econômicos que permeiam essa cena contemporânea e elencadas as possibilidades de intervenções técnicas reflexivas, críticas e propositivas, fomentadas no processo de aprendizagem desta disciplina.

A disciplina Serviço Social e Questão Social compõe parte do Núcleo de Fundamentos Teórico‑Metodológicos da Vida Social, do Projeto Pedagógico do curso de Serviço Social da UNIP, o qual segue as recomendações das Diretrizes Curriculares Nacionais. O conteúdo contribui de forma fundamental para que os futuros assistentes sociais possam conhecer as dimensões do ser social nesse cenário territorial globalizado, além de identificar com maior clareza a Questão Social e as possibilidades de intervenções concretas, articulando o projeto ético‑político profissional a um projeto societário pautado pelas relações democráticas.

O mundo do trabalho sofreu profundas modificações, e a satisfação das necessidades humanas é, mais uma vez, preterida, diante da financeirização do capital, que prioriza as mercadorias e o dinheiro.

Os direitos sociais, fruto de lutas e movimentos sociais históricos, são dissimulados numa reconfiguração da lógica de acumulação capitalista, do Estado e da sociedade, numa perspectiva de cidadania eletiva, que não cumpre suas funções, gerando o aumento do fosso das desigualdades sociais, com novas roupagens para a Questão Social (AMORIM, 2009).

O Serviço Social avançou significativamente nas décadas de 1980 e 1990, em suas produções teóricas, contribuindo de forma diferenciada para as análises dessa cena contemporânea na realidade brasileira.

Igualmente, são marcos expressivos da profissão suas intervenções, aumentando o número de lideranças e movimentos sociais, nesse período, em defesa de garantias constitucionais quanto à definição de políticas públicas de seguridade social capazes de possibilitar o enfrentamento da Questão Social e a redução das desigualdades.

Nesse processo de crescimento, é criado o projeto ético‑político profissional, consagrado no Código de Ética de 1993, bem como são formuladas as Diretrizes Curriculares Nacionais, que influíram nas bases para a formação de um profissional crítico, propositor e engajado num projeto societário, ressalvadas contradições e peculiaridades dignas de análises futuras (BULLA, 2003).

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Contudo, a despeito dos avanços, a profissão requer um contexto de formação crítica e engajada num projeto societário que ocorra de modo contínuo. Tal contexto fragiliza‑se nesse processo de acumulação capitalista, com uma lógica de desequilíbrio no acesso aos produtos e às riquezas geradas nesse movimento.

InTRodução

Neste material, são analisados aspectos em destaque sobre a mundialização como uma nova e mais recente fase no curso histórico de desenvolvimento do capitalismo, com idênticas formas e configurações que esse processo assume nas esferas produtiva, comercial e financeira, à luz de Chesnais (1998) e outros teóricos. Também são abordadas, ainda que brevemente, expressões da Questão Social na cena contemporânea, com ênfase nas dimensões que o Estado brasileiro confere à política social, enquanto estratégia para o enfrentamento das desigualdades sociais.

Dessa forma, buscamos analisar as configurações da transição do capitalismo entre os séculos xx e xxI, com ênfase na centralidade do capital financeiro que visa estritamente à acumulação e à valorização do capital, bem como suas influências na reconfiguração estrutural da Questão Social, expressa em: adensamentos territoriais sem planejamento urbano; foco no poder local e em suas possibilidades de resposta às desigualdades sociais; desemprego e violência estrutural, com impactos na sustentabilidade, nas novas regras de mercado, na participação popular e no controle social. Analisamos ainda como a gestão de governo neoliberal vincula o Terceiro Setor aos seus atos, em resposta às expressões da Questão Social, fragmentando a implementação efetiva de políticas públicas.

Pesquisadores da área de Ciências Sociais – dentre eles Chesnais (1998), Bulla (2003), Faleiros (1999), Serra (2000) e Montenegro (2005) – fazem referência à atual fase da economia como capitalismo financeiro, mundialização financeira, financeirização do capital e termos similares. Estruturalmente, o que buscam é analisar a prevalência do capital fictício sobre o produtivo, ambos fortemente relacionados e interdependentes.

O autor Chesnais (1998) faz referência a três períodos históricos de desenvolvimento do capitalismo:

[...] período entre os anos de 1880 e 1913, o qual convencionou‑se designar de capitalismo monopolista; o período que se inicia após a Segunda Grande Guerra e que teve seu crepúsculo entre os anos 1974‑1979 – período conhecido como os “trinta anos gloriosos”, onde imperaram o fordismo e a regulação keynesiana (welfare state); e o período atual, iniciado no fim dos “anos de ouro”, no final da década dos anos de 1970 e que aqui se denomina de fase de mundialização do capital (CHESNAIS, 1998, p. 14).

Nessa fase de mundialização do capital, as finanças alcançam índices de valorização astronômicos, segundo o autor, a ponto de o capital financeiro vir demonstrando uma capacidade de reproduzir‑se, no próprio movimento de valorização – no que se refere à produção –, de forma autônoma e com características muito específicas, como em nenhum outro estágio de desenvolvimento do capitalismo.

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Na trama desse movimento de acumulação capitalista, ocorrem transformações no processo produtivo, o que conduz os trabalhadores e a sociedade a um aprofundamento do individualismo e do estranhamento das relações originadas no mundo do trabalho.

Com a flexibilização e a desregulamentação das relações de trabalho, as pessoas permanecem pouco tempo na empresa e têm trabalhos especializados, embora considerados generalistas (tendendo a exigir do trabalhador conhecimentos do sistema de produção capazes de permitir que assuma qualquer atividade necessária à manutenção do processo produtivo, independentemente de haver ou não trabalhadores designados especificamente para desempenhar as atividades. São valorizados os trabalhadores que aceitam assumir qualquer função e até acumulá‑las, assumindo uma corresponsabilidade pelo êxito da produção no prazo e com a qualidade esperada) (CHESNAIS, 1998).

Nesses casos, não raro, o próprio trabalhador investe em sua formação, que, na cena contemporânea, exige elementos de tecnologia e saberes específicos, cada vez mais rapidamente assimilados, provocando, no sistema produtivo, uma competição que induz os trabalhadores a se eliminarem, nesse processo de acumulação de funções e atividades que, em tese, deveria agregar trabalhadores em maior número e com qualificação melhor.

Essas atividades, simplificadas também por maquinário cada vez mais autônomo e interativo, inovado pelo avanço tecnológico dos computadores, são realizadas por funcionários que trabalham para sobreviver e que, apesar da ideologia capitalista de que devem envolver‑se com as empresas e ser leais a estas, na verdade, não encontram sentido no trabalho nem se percebem, coletivamente, como trabalhadores em equipe. Assim, quanto menos se reconhecem como classe trabalhadora, enquanto gênero humano, mais se degradam, perdem sua autonomia e se destituem de sua sociabilidade ou de suas razões cidadãs.

Em breve análise, a cidadania [é] aqui entendida como capacidade de todos os indivíduos, no caso de uma democracia efetiva, de se apropriarem dos bens socialmente produzidos, de atualizarem as potencialidades de realização humana, abertas pela vida social em cada contexto historicamente determinado (CHESNAIS, 1998, p. 50).

Evidentemente, essas transformações influem no cotidiano social, porque o ser social não se realiza na satisfação de necessidades individuais, que é um dos fenômenos ideológicos mais relevantes nos países capitalistas avançados.

Essa financeirização do capital, também conhecida como capitalismo globalizado ou neoliberalismo, luta em defesa da propriedade privada, da supremacia do mercado e da dominação estatal, com a intenção de dominar a sociedade e beneficiar as grandes potências econômicas (CHESNAIS, 1998).

Nos países em desenvolvimento, como o Brasil, essa forma de expansão capitalista criou estruturas econômicas que deram origem à Questão Social, que foi materializada em múltiplas faces e afetou toda a sociedade, com desigualdades sociais, desemprego, baixos salários, dependência de capital internacional, crises econômicas, entre outras manifestações.

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A política de assistência social tem por função a defesa dos direitos socioassistenciais, por meio de programas, benefícios e projetos, com o objetivo de estabelecer equidade social (BULLA, 2003).

A Questão Social emerge como um complexo de desigualdades que requer políticas públicas eficientes e inclinadas para a justiça social e o exercício de direitos sociais, concretizados também por meio das práticas do assistente social, de quem, historicamente, é requisitado compreender as situações e as necessidades humanas – na maioria das vezes configuradas por ausência de cidadania e de recursos para o desenvolvimento de capacidades – e dar resposta a estas.

No Brasil, a área de Serviço Social origina‑se da articulação entre a Igreja, a sociedade e o Estado, em busca do enfrentamento da Questão Social, que era vista como uma “questão moral”, religiosa, No entender das classes dominantes, era necessário ajustar o trabalhador e sua família aos processos de industrialização e urbanização (FALEIROS, 1999).

Os problemas sociais não eram considerados como uma questão de política pública. A intenção presente nas ações do Estado, por meio do Serviço Social, era a de manter a ordem, a paz e a justiça, segundo o entendimento das elites, em favor da acumulação capitalista.

O Serviço Social, influenciado pelo cenário da Reconceituação na América Latina e também em busca de maior embasamento técnico e científico para a profissão, moderniza‑se a partir da década de 1960. Assim, o movimento de Reconceituação e as mudanças que ocorrem no mundo conduzem a profissão a abrir‑se para novos horizontes e modos de conceber a Questão Social e atuar sobre ela.

Os processos ético‑políticos são enriquecidos quando os assistentes sociais buscam alianças e compromissos com as classes oprimidas, subalternizadas e destituídas de riqueza, poder e condições de vida digna. A Questão Social torna‑se objeto de investigação, e os profissionais atuantes começam a compreender os bastidores dos processos de dominação e alienação da sociedade capitalista brasileira (SERRA, 2000).

O crescimento da área intensifica‑se na década de 1980, no contexto do capitalismo globalizado, da revolução tecnológica, das propostas neoliberais em curso e das mudanças no mundo do trabalho. A Questão Social reconfigura‑se com novas facetas das desigualdades sociais e mundializa‑se, adquirindo novos contornos e significados locais, nacionais e mundiais.

Debates sobre cidadania e exigência ética, técnica e política dos profissionais de Serviço Social passam a permear a realidade social e mobilizam a categoria na luta e no posicionamento para compreender a complexidade da Questão Social, tanto nos aspectos mais globais do cotidiano social quanto nos mais específicos (SERRA, 2000).

Evidencia‑se que enfrentar a Questão Social significa, sobretudo, lutar por cidadania, direitos, justiça e democracia amplos, em direção a novos modos de viver e de conceber o Estado, a sociedade e as relações entre grupos e classes sociais. Tecnologia e ciência não bastam: é necessário ter posturas, conteúdos formativos e articulação ampliados.

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As práticas profissionais de Serviço Social geralmente são marcadas por caminhos burocráticos, rotineiros e que não ultrapassam os interesses da elite capitalista, do Estado e dos espaços profissionais institucionalizados. Enfim, os modos históricos e predominantes de conceber a Questão Social, como é o caso da polícia, da política de repressão e do assistencialismo, precisam ser urgentemente reformulados, mediante ações como a elaboração de novas diretrizes para a formação profissional, a criação de um novo projeto ético‑político para a categoria e, principalmente, a definição de estratégias para o engajamento em um projeto de sociedade que se articule com a defesa da democracia e da cidadania, na construção de políticas públicas apropriadas por essa sociedade organizada (BULLA, 2003).

Vários limites e barreiras são colocados a essa meta do Serviço Social, porque a própria sociedade vive momentos de inconstância e vulnerabilidade para o acesso satisfatório ao exercício da democracia e à justiça social. Pelo fato de o Serviço Social constituir‑se como uma divisão social e técnica do mundo do trabalho, sofre os impactos que atingem, historicamente, a sociedade e suas formas de produção e reprodução.

Ainda assim, também são característicos desses profissionais a inquietação e o inconformismo, concretizados na adoção, pela categoria, de posturas e reformulações profissionais, visando cada vez mais aos direitos sociais e humanos, traduzidos, na década de 1990, no novo Código de Ética Profissional (CFESS, 1993), comprometendo‑se com a necessidade de contribuir para a instituição de uma nova sociedade, constituída de fraternidade, igualdade e justiça social para todos.

O Serviço Social contemporâneo exige, em seu processo formativo, que o assistente social seja cada vez mais criativo, investidor, resistente e combatente, para vencer os desafios desse capitalismo financeirizado e devastador, desenvolvendo ações competentes, solidamente qualificadas e conjugadas com fluidos de esperanças e sonhos, integrados a novas formas de sociabilidade e de práticas sociais.

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Unidade I1 MundIALIzAção FInAnCeIRA, ACuMuLAção CAPITALISTA e SuAS InFLuÊnCIAS nA QueSTão SoCIAL

Estudos realizados por Chesnais (1996) demonstram que, historicamente, no cotidiano, uma diversidade de fatores desencadeia novas relações nacionais e internacionais, as quais, por sua vez, geram um novo sistema de produção econômica que se desdobra numa forma de organização que modifica a vida social, econômica e cultural de grupos e pessoas em todas as dimensões. Essa é a explicação para o surgimento do capitalismo industrial, financeiro e, possivelmente, de outras configurações que ainda virão. Para o autor, “tais fatores consubstanciam, num determinado período histórico, as formas da acumulação capitalista, seus impasses e contradições e as estratégias políticas e econômicas de reestruturação do capital, para a superação de suas crises” (CHESNAIS, 1996, p. 15).

Ao nos referirmos à mundialização do capital, estamos nos concentrando em uma “nova configuração do capitalismo mundial e nos mecanismos que comandam seu desempenho e sua regulação” (CHESNAIS, 1996, p. 15). O desenvolvimento capitalista mundializado mantém aspectos das fases anteriores, mas inova no sentido e no conteúdo das formas de acumulação de capital, posicionando a centralidade no gigantismo do capital financeiro.

Para o autor, a mundialização capitalista designa um novo contexto histórico, marcado por profundas e significativas transformações, bem como por um complexo das contradições do capital que abre uma nova fase no curso histórico de desenvolvimento do sistema produtor de mercadorias, o qual contém, em suas dimensões fundamentais, a indústria, o intercâmbio comercial e o sistema financeiro. Mundializado porque, na contemporaneidade, a economia capitalista se expande em nível mundial, por meio de movimentos de internacionalização dos capitais produtivo, comercial e financeiro.

Algumas das faces assumidas pela mundialização na esfera produtiva podem ser identificadas, segundo Chesnais (1996), pelas empresas multinacionais ou transnacionais. São empreendimentos ou grupos capitalistas de grande envergadura que, consolidada a base nacional, expandiram filiais internacionalmente, conforme estratégias e organização implementadas em escala mundial, objetivando a reprodução e a valorização de seus capitais. Para concretizar a expansão, essas empresas recebem suporte organizacional dos grandes grupos industriais mundializados.

Com apoio em Chesnais (1996), Montenegro (2005) afirma que:

Os processos de concentração e aquisição/fusão de capitais aparecem na análise de Chesnais como um aspecto importante inerente aos grandes grupos capitalistas mundializados, notadamente no que concerne à expansão e às dimensões que esses grupos atingiram na fase de mundialização. Foram

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estes processos que se configuraram como a principal forma e força motriz da expansão dos grandes grupos multinacionais, tal como se verificou a partir da década de 1980 (MONTENEGRO, 2005, p. 3‑4).

Quanto às formas de mundialização na esfera comercial, segundo o autor, é possível identificar que três fatores caracterizam a forma como o sistema internacional de intercâmbio se apresenta atualmente:

Os primeiros fatores são os processos de concentração e centralização do capital nas economias do centro do capitalismo internacional, associados aos movimentos do IED [Investimento Estrangeiro Direto], bem como às estratégias dos grandes grupos. Os segundos fatores são as mudanças tecnológicas e científicas, principalmente no que se refere à inserção de tais mudanças nos processos produtivos com influência nos níveis, organização e localização da produção, bem como da demanda na produção por mão de obra e insumos. Os terceiros fatores são os de conotação política, aludindo aos papéis assumidos pelos Estados tanto no que concerne à constituição dos blocos econômicos regionais como no que tange à postura assumida por esses países em relação à dívida das nações do terceiro mundo (MONTENEGRO, 2005, p. 4)

Em outros termos, as formas assumidas pela mundialização na esfera financeira têm seu ápice quando as operações atingem o mais alto grau de mobilidade. Trata‑se de um processo em que se articulam, no atual estágio de internacionalização do capital financeiro e de expansão do sistema financeiro internacional, tanto as medidas de liberalização e desregulamentação quanto as inovações financeiras.

Segundo Montenegro (2005, p. 5), “a dimensão alcançada pelo capital financeiro se sobrepõe ao crescimento das atividades do intercâmbio comercial, dos fluxos do investimento externo direto e até mesmo do PIB [Produto Interno Bruto] dos países capitalistas mais desenvolvidos”. No entanto, ao contrário do que se imagina, a valorização do capital financeiro e sua centralidade não apresentam uma alteração tão substancial em relação à esfera da produção. Isso ocorre porque “os capitais que se valorizam na esfera financeira nasceram – e continuam nascendo – no setor produtivo” (CHESNAIS, 1996, p. 241). Historicamente, esse “novo regime de acumulação”, predominantemente financeiro, surgiu nos Estados Unidos da América e no Reino Unido a partir da década de 1980, porque esse países implementaram políticas de liberalização e desregulamentação (MONTENEGRO, 2005, p. 6).

Refletindo sobre ideias marxistas, Chesnais (1996) destaca que é na materialidade da sociedade capitalista que se criam riquezas, por meio do trabalho humano, e é na geração financeira do setor produtivo, desenvolvido pelas indústrias, que os detentores de capital o valorizam e fazem que se torne mercadoria de troca.

O que ocorre atualmente é que uma parcela cada vez mais elevada desses rendimentos é direcionada para a esfera financeira. Somente a partir desse momento “podem se dar, dentro do campo fechado da esfera financeira, vários processos, em boa parte fictícios, de valorização, que fazem inchar ainda mais o montante nominal dos ativos financeiros” (CHESNAIS, 1998, p. 16).

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Essa dimensão fictícia de valorização financeira, segundo o autor, funda‑se na análise marxista de que as relações estão cada vez mais reificadas (coisificadas) e fetichizadas (um fetiche é um ídolo, um amuleto, algo enfeitiçado, que tem poderes inexplicáveis, de origens misteriosas) (CHESNAIS, 1998).

Nessa concepção marxista, a mercadoria reflete, para os homens, as características sociais do seu próprio trabalho como propriedades objetivas dos produtos de trabalho, como particularidades naturais dessas coisas; por isso, também reflete a relação social dos produtos com o trabalho total como uma relação externa a eles, envolvendo objetos.

Para que ocorram as trocas de mercadorias, os homens precisam dirigir‑se ao mercado – mesmo que seja o virtual e não seja necessário nem sair de casa –, para trocá‑las. As relações entre os homens tornam‑se coisificadas, e as de produção são escamoteadas pela relação imediata da troca mercantil (CHESNAIS, 1998).

Depreendemos dessa análise que as relações passam a ser mediadas, na sociedade capitalista, pela ação mercantil: as pessoas deixam de relacionar‑se diretamente e o fazem somente por meio das mercadorias. A propriedade privada passa a ser um elemento de extrema relevância na configuração da individualidade das pessoas sujeitas a essas condições históricas. Esses indivíduos passam a ser representados pelas mercadorias e pelos resultados da força produtiva.

A sociedade capitalista que valoriza a propriedade privada faz a necessidade de reprodução do capital (para gerar acumulação de recursos) submeter as relações sociais que impulsionam a formação do trabalhador, as quais o induzem a não se reconhecer no seu trabalho (BULLA, 2003).

Quanto maiores forem a produção e a riqueza produzida, tanto em poder quanto em extensão, menor será a valorização do trabalhador, que se tornará uma mercadoria de valor inferior ao daquelas que cria. A alienação, nesse caso, revela que a pessoa não se reconhece como pertencente à sociedade para cujo desenvolvimento contribui.

Desvelamos assim o engodo de economistas liberais, segundo o qual, há uma identidade entre produtores e compradores. Isso porque apesar de os trabalhadores serem aqueles que usam as máquinas e matérias‑primas no processo produtivo, eles não são compradores das mercadorias que produzem.

Na mesma proporção em que o capital compra e incorpora a força de trabalho, também se apropria da capacidade de medir o valor a partir do trabalho abstrato. O conflito presente na relação contraditória entre capital e trabalho reside no fato de que, ao mesmo tempo que se apropria da força de trabalho, substitui esta por máquinas, para aumentar a produtividade, processo reiterado pela concorrência, que impele o capitalista a reduzir custos (CHESNAIS, 1996).

Para Chesnais (1996), a mundialização do capital reduz drasticamente o valor dos elementos do capital constante e também do capital variável (dado o baixo valor dos meios de subsistência em países periféricos), elevando assim a taxa de lucro.

A taxa de lucro não diminui porque o trabalho se torna mais improdutivo, mas porque se faz mais produtivo. Ambas, a alta da taxa de mais‑valia e a

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queda da taxa de lucro, são, para Marx, simplesmente formas especiais em que a crescente produtividade do trabalho se manifesta sob o capitalismo (CHESNAIS, 1996, p. 37).

Desde a década de 1970, o capitalismo vem sofrendo com uma crise estrutural. Após os chamados “anos dourados” Pós‑Segunda Guerra Mundial, em que houve um grande aumento da produção, com ganhos crescentes na economia, vieram também o esgotamento do consumo e o crescimento da taxa de lucro.

As já citadas transformações no mundo do trabalho foram tentativas de resposta a essa crise. Esta pode aparecer em certas ocasiões, quando compra e venda se separam, na medida em que o dinheiro funciona como meio de circulação e de pagamento, com dois diferentes aspectos: como medida de valor e como realização do valor (CHESNAIS, 1996). Sobre essa reflexão, Romero (2008 , p. 49) afirma:

Esses dois aspectos podem se separar. Se no intervalo entre eles o valor muda, se a mercadoria no momento de sua venda não vale o que valia no momento em que o dinheiro agia como uma medida de valor e, portanto, como uma medida das obrigações recíprocas, então a obrigação não pode ser honrada com os rendimentos da venda da mercadoria, e assim toda uma série de transações que retrospectivamente dependiam dessa transação não podem ser liquidadas.

Existem outros elementos que também devem ser considerados motivadores de crise, bem como de alterações na valorização ou na desvalorização do capital e das mercadorias, atuando como barreiras à acumulação de capital e aos processos de produção, inclusive à força de trabalho. Por exemplo, certas perturbações no que se refere à reconversão de dinheiro em capital constante, do qual fazem parte o capital fixo (maquinaria, estrutura física etc.) e o circulante (matéria‑prima). Pode ocorrer um problema que independa da ação humana, uma questão climática (enchente ou seca) que influencie a quantidade e o valor da matéria‑prima, ou seja, o valor desta pode subir, e a quantidade, diminuir (CHESNAIS, 1996).

O aumento nos gastos com matéria‑prima leva os capitalistas a iniciativas para economizar, na força de trabalho, capital variável; logo, estes tendem a dispensar trabalhadores, o que desencadeia a incapacidade dos dispensados para pagar seus compromissos, entre outras consequências. Todos esses elementos podem gerar uma crise.

O Estado, nessa crise capitalista, a partir da década de 1970, adquire uma nova função, no contexto do neoliberalismo. Assume a responsabilidade de regular as atividades do capital corporativo e, ao mesmo tempo, de responder aos interesses nacionais, de forma que atraia o capital financeiro transnacional e contenha a fuga de recursos para regiões mais lucrativas.

As reformas do Estado, nessa fase, condicionam‑se à atração do capital financeiro, em detrimento das demandas da classe trabalhadora pelas reformas previdenciária e trabalhista. Também se reconfiguram

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os mercados financeiros e os grupos industriais, impactados pelas altas taxas de juros sobre títulos da dívida e sobre o nível de lucros industriais.

É importante ressaltar os capitais fictícios, porque dizem respeito ao modo como as estratégias são adotadas pelos capitalistas para a preservação dos patamares de lucro e para a criação de novas formas de acumulação financeirizada do capital.

Os capitais fictícios são aqueles que resultam mais diretamente do capital a juros, do sistema de crédito, quando a riqueza real aparentemente se duplica, como é o caso das ações de uma empresa. Acontece que muitas vezes o valor destas ações se move com independência do valor do patrimônio das empresas, ocorrendo uma valorização especulativa, o que caracteriza um incremento do volume total de capital fictício existente (CHESNAIS, 1996, p. 19).

Esse jogo de mercado de ações é que gera os lucros fictícios, regulados por valorizações fictícias que podem desaparecer da mesma forma que surgiram, subitamente. Quando as ações se desvalorizam, fruto de especulações, o que era lucro passa a ser prejuízo. Ao mesmo tempo, sob certo aspecto da análise dialética, podemos concluir que, do ponto de vista individual, esses lucros fictícios são reais, porque, se as ações são vendidas quando sobrevalorizadas, o dinheiro correspondente a elas pode comprar qualquer coisa.

Entretanto, do ponto de vista da totalidade social, tais lucros fictícios são mera aparência, porque não têm correspondência substancial, não derivam do processo de trabalho, não são subtraídos da exploração de trabalho sob a forma de mais‑valia (CHESNAIS, 1996).

No que diz respeito à transformação do capital em força de trabalho, o capitalista também lucra: quando aumenta o valor do seu capital global, lucra com o que recebe do trabalhador e com o que este produz.

Algumas empresas, no processo de financeirização, podem auferir lucros com a promoção da identidade artificial de trabalhador criada pelo próprio capitalista que, ao ser valorizada, é por este incorporada como mérito dos investimentos do capital.

Pesquisadores e cientistas políticos tendem a afirmar que a crise mundial do capital está sendo superada, no entanto o que se observa é que o capitalismo apoiado na acumulação financeira acarreta agravamento dessa crise.

Nesse processo de acumulação financeira do capital, o capitalismo globaliza a produção, a distribuição, a troca e o consumo, coisas, pessoas, ideias, cultura, o Estado, as instituições, descaracterizando suas redes territoriais em nome das metas da mundialização do capital.

observação

A financeirização do capital é associada a uma globalização sem precedentes de novas regras de mercado.

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A Questão Social adquire novos significados e características, com dimensões globais, expressando‑se, por exemplo, em desemprego, desregulamentação generalizada do trabalho e desmonte das garantias de proteção social.

O Estado assume funções mínimas, com diminuição dos gastos sociais e desconsideração dos direitos sociais historicamente conquistados. Alia‑se aos interesses da mundialização do capital e apoia a flexibilização do trabalho e sua precarização, o que, por consequência, acentua as desigualdades sociais.

A produção e a reprodução material que asseguram a existência humana são fatores que influem diretamente também na produção e na reprodução das relações sociais, bem como nas formas de concepção de Estado, no caso dessa análise, o Estado capitalista.

Os detentores do capital tentam superar crises promovendo uma reestruturação, que implica ofensiva para aumentar a produtividade do trabalho e, assim, alcançar novos patamares de lucro.

A concorrência entre capitais é um processo violento, e os capitalistas, para não enfrentarem individualmente esse processo, evitando a falência, não apenas procuram adaptar‑se, com a criação de mecanismos econômicos de reestruturação produtiva, mas também buscam nutrir todo um complexo político‑ideológico, valorativo e fictício, dentro e fora da sociedade, fomentando relações que corroborem seu projeto de sociabilidade, com objetivos de acumulação capitalistas bem delineados.

Esse projeto de sociabilidade do capital para enfrentamento da crise, referente, nesse caso, àquela ocorrida na década de 1970, leva a uma reestruturação de acordo com a lógica neoliberal que reduz o tamanho do Estado e o alicia para alocação de recursos e investimentos nessa política ideológica de acumulação financeirizada do capital.

Para Chesnais (1996, p. 28), é considerada neoliberal toda ação estatal que “contribua para o desmonte das políticas de incentivo à independência econômica nacional, de promoção do bem‑estar (welfare state), de instauração do pleno emprego (keynesianismo) e de mediação dos conflitos socioeconômicos”.

Na análise desse autor, tal desmonte ocorre por meio da política de privatização e desregulamentação, que consiste em reduzir as atividades do Estado – na economia, nas relações de trabalho e na abertura econômica ao capital internacional.

Ao adotar essa postura, o Estado cria uma infraestrutura específica de apoio à desativação das políticas de independência da economia nacional que afeta diretamente o bem‑estar social, o pleno emprego e a mediação de conflitos socioeconômicos. Com isso, evidencia‑se um Estado que, política e ideologicamente, alia‑se ao capital e contribui para agravar a Questão Social.

No Estado neoliberal, caso brasileiro, o trato dado a essa questão opera‑se pela via do terceiro setor, mas esse é um estudo para outro momento. Aqui se concentram análises das influências desse processo de acumulação financeirizada do capital no aprofundamento da Questão Social.

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Historicamente, o neoliberalismo procura reverter as reformas obtidas por pressão e lutas sociais dos trabalhadores; por exemplo, as conquistas consagradas na Constituição de 1988 (BRASIL, 1988), que enfatiza a redemocratização da sociedade, a universalização dos direitos básicos e a elevação dos patamares da cidadania (SERRA, 2000).

Na década de 1980, os brasileiros, em suas lutas sociais, consolidaram uma cultura política combativa e reivindicadora de direitos sociais e estruturas políticas para a criação de mecanismos de seguridade social.

O Estado neoliberal e sua racionalização criaram barreiras para esse processo de enfrentamento da Questão Social, e o que marca as iniciativas políticas são os processos de desresponsabilização do Estado no tocante a políticas públicas, que passam a ter como característica a ação focalizada, descentralizada e privatizada.

No Brasil, na década de 1990, o Estado passa por um processo de reconstrução, por uma reforma com vistas a superar a grande crise econômica dos anos 1980. Pautado pelos mecanismos de controle das regras de mercado, transfere o processo de regulação social para a sociedade e torna‑a corresponsável, numa pretensa lógica de emancipação cidadã, para que esta se organize e crie, por si, os processos para enfrentamento da Questão Social, bem como as iniciativas para desenvolvimento social e até econômico, tudo isso mediante o fomento contraditório de projetos de geração de renda e desenvolvimento local (AMORIM, 2009).

Esse Estado neoliberal participa ativamente dos processos de privatização, liberalização, desregulamentação e flexibilização dos mercados de trabalho, limitando‑se a garantir a propriedade e os contratos e desobrigando‑se de todas as suas funções de intervenção nos planos econômico e social do país, especialmente direcionados ao enfrentamento da Questão Social.

Para tanto, transfere para os setores privado e público não estatal as atividades que, na visão neoliberal, não são suas funções específicas. Hoje, o Estado compartilha, por exemplo, atividades da área da educação, centros de pesquisa, saúde, cultura, seguridade etc. Mantém exclusividade em atividades jurídicas, policiais e políticas apenas em seu núcleo estratégico.

Os capitalistas, historicamente, atuam no enfrentamento da Questão Social por meio de filantropia, caridade, benevolência, doação, assistência, compaixão, esmola, sempre com o firme objetivo de angariar, dos pobres e desvalidos, a simpatia, a afeição e, principalmente, a fidelidade aos ideais burgueses e de conformação com as configurações dessa sociedade capitalista.

As ações beneficentes caracterizam‑se, para os burgueses capitalistas, como uma estratégia para contenção das manifestações de indignação, das revoltas e das possibilidades de organização da classe trabalhadora contra as opressões do sistema.

Na realidade brasileira, as ações filantrópicas, baseadas na cultura do favor caracterizada na década de 1930, começaram por iniciativa das grandes fábricas, ao prestarem serviços de assistência e creche aos trabalhadores, formar vilas operárias e doar alimentos, tudo com a condição, às vezes explícita, de obter

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reciprocidade submissa para o processo de trabalho capitalista e postura devedora dos trabalhadores a seus patrões.

A assistência social, apesar de hoje ser política constitucionalmente regulada, ainda suscita dificuldades acerca da sua adequada conceituação. O próprio texto constitucional, ao tratar da questão, não traça contornos precisos para a área, mas apenas consigna, em seus artigos 203 e 204, que será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição, estabelecendo seus objetivos e diretrizes. Por sua vez, em complemento, a Lei Orgânica de Assistência Social (Loas), em seu artigo 1º, caracteriza a assistência social no âmbito da política de seguridade social e, no artigo 2º, descreve os objetivos da política, ainda com foco em segmentos e em ações complementares e/ou residuais (BRASIL, 1993b).

Ao mesmo tempo, essa nova concepção marcou o início de uma etapa que busca superar a visão tradicional, amparada no pensamento social brasileiro conservador, de base clientelista e assistencial, para alcançar o entendimento de que a política pública de assistência social não mais corresponde à mera distribuição de benefícios individuais ou de serviços compensatórios e descontínuos, destinados ao atendimento de segmentos (crianças e adolescentes, pessoas com deficiência, idosos, mulheres etc.) com carências socioeconômicas.

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*Lei + crédito: 31 de agosto de 2009.**Ploa 2010.

Figura 1 – Evolução percentual dos recursos da assistência social em relação ao orçamento total e à Seguridade Social da União

Ao analisarmos a participação do percentual dos recursos da assistência social em relação ao orçamento total da União, verificamos em 2008 um crescimento de 136,1% em relação ao exercício de 2002, embora este não tenha ocorrido de maneira constante no período considerado.

Em 2009, a participação é de 1,95% em relação ao orçamento total, considerando dados de 31 de agosto do ano corrente, enquanto a previsão para 2010, segundo o Projeto de Lei Orçamentária Anual (Ploa) daquele ano, é de 2,21%. Na Lei nº 11.653 (BRASIL, 2008), que aprovou o Plano Plurianual

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2008‑2011, está prevista a participação de 3,8% dos recursos da função Assistência Social em relação ao orçamento total, considerando a soma dos quatro anos de vigência desse Plano.

Muito contribuiu para essa imprecisão a trajetória histórica da assistência social, vinculada à prestação de serviços e benefícios por entidades não governamentais, inúmeras delas formadas com a intenção de fornecer ajuda e benesse aos pobres e oprimidos, modelo originário de assistência social e, em grande parte, assentado na expressão de um sentimento judaico‑cristão de dever moral e de caridade.

Cabe assinalar que até hoje, mesmo com características diferenciadas, persiste o modelo de intervenção tradicional, de apelo assistencialista, como forma específica de resposta às expressões das desigualdades sociais. “Aqui, a concentração da prestação de serviços ocorre por via da filantropia privada, dentro da concepção da solidariedade e do dever moral” (TELLES, 1996, p. 45).

Também não podemos esquecer que o modelo de proteção social instituído no Brasil é marcado pela forte influência do Estado patrimonialista. Nesse modelo são mantidos traços meritocráticos, focalistas e clientelistas. Firmou‑se, assim, o senso comum de que as práticas assistenciais são entendidas como serviços não lucrativos, analisados com base nas regras de uma sociedade de mercado, como voluntariado, voltando‑se para a atenção aos mais necessitados, ou como ações de utilidade pública, realizadas pelas instituições que atuam com os “desajustados e improdutivos” (TELLES, 1996, p. 48).

Por sua vez, as pressões para a adoção do Estado neoliberal vêm reforçando, sobremaneira, a constituição do assim chamado terceiro setor, de forma que provoque a instituição de diversos modelos legais de entidades privadas, bem como de exonerações tributárias, como estratégia para lhes garantir sustentação e legitimidade.

Contudo, no novo marco regulatório, a assistência social passa a ser reconhecida como um meio, uma estratégia de asseguramento dos direitos socioassistenciais e de redistribuição de renda, na perspectiva de reverter as situações de vulnerabilidade e risco pessoal e social.

Para tanto, compete‑lhe garantir as seguranças de rendimento, de autonomia, de acolhida, de convívio e de atendimento às situações circunstanciais e emergenciais, mediante a oferta de provisões socioassistenciais traduzidas em serviços, programas, projetos e benefícios etc.

Hoje, desde a década de 1990, essa postura de filantropia do empresariado processa‑se sob a denominação de responsabilidade social, que poderá ser melhor analisada em estudos futuros.

O projeto de sociabilidade neoliberal visa a suprimir, do debate político mais amplo na sociedade, a questão da divisão social de classes e os desdobros das desigualdades que levam à estruturação da Questão Social, eliminando possíveis mobilizações, para a criação de estratégias de desenvolvimento assentadas em bases mais voltadas para o pleno exercício das capacidades humanas e para o acesso aos direitos fundamentais.

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2 TRAnSFoRMAçõeS PoLíTICo‑eConôMICAS e SoCIAIS e A QueSTão SoCIAL

O neoliberalismo luta pela defesa da propriedade privada, da supremacia do mercado e da dominação estatal, tendo por intenção dominar a sociedade e beneficiar as grandes potências econômicas.

Os países em desenvolvimento, como o Brasil, são prejudicados, pois, com tantas armadilhas que o sistema econômico traz, as questões sociais são materializadas em múltiplas faces, que afetam toda a sociedade com desigualdades sociais, desemprego, baixos salários, dependência de capital internacional, crises econômicas, entre outras.

Assim, o capitalismo globalizado ou o chamado neoliberalismo deixa como contribuição:

[...] sério impacto na sociedade, apontando desigualdades no campo social, restringindo a prática da cidadania. A concessão de cidadania, para além, das linhas divisórias das classes desiguais, parece significar que a possibilidade prática de exercer os direitos ou as capacidades legais que constituem o status do cidadão não está ao alcance de todos os que os possuem (CHESNAIS, 1996, p. 92).

Ao considerarmos as inquietações da sociedade, cabe trazer a luz sobre como trabalhar a justiça social em uma sociedade excludente, diante do processo de intensificação econômica.

Saiba mais

Para saber mais, leia:

SEN, A. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

A justiça social permanece longe de alcançar importância diante das desigualdades sociais, e o espírito de cidadania é lembrado apenas em época eleitoral.

Esse sistema econômico vigente e suas intenções dificultam a efetivação da justiça social, entendida como um conjunto de princípios que regem a definição de direitos e deveres e sua distribuição equitativa, promovendo a igualdade social.

A partir dessa realidade capitalista, configura‑se a Questão Social, que, segundo Iamamoto e Carvalho (1983),

[...] é a expressão do processo de formação da classe operária e de sua entrada no cenário político, da necessidade de seu conhecimento pelo Estado, e, portanto, da implementação de políticas que levem em consideração seus

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interesses. O que deixa de ser apenas contradição entre pobres e ricos para construir‑se na contradição antagônica entre burguesia e proletariado (IAMAMOTO e CARVALHO, 1983, p. 77).

O Serviço Social no Brasil se insere, desde 1930, como uma especialização da divisão social e técnica do trabalho, para atuar no enfrentamento da Questão Social. A profissão, interna e externamente, sofre as influências das transformações ocorridas no sistema capitalista, de suas crises, das conformações do Estado e das lógicas dos projetos societários historicamente determinados (AMORIM, 2009).

A Questão Social, nesse contexto, é entendida como expressão constituída e constituinte dos processos de alienação, antagonismo, desigualdade, discriminação e injustiça social presentes nos modos de ser e aparecer do capitalismo na sociedade brasileira.

A área de Serviço Social, originada das contradições e da expressão dos antagonismos e desigualdades da sociedade capitalista brasileira, assume, historicamente, como uma questão política, o combate às condições de vida indignas e desumanas da maioria da população, procurando, ao longo de sua constituição profissional, afastar‑se de posições conservadoras e tradicionais, não sem conflitos e contradições, visando à construção da cidadania plena e a um novo projeto societário (BULLA, 2003).

No caso do Brasil, estudiosos como Bulla (2003), Serra (2000) e Amorim (2009), entre outros, têm afirmado que os direitos sociais conquistados pela Constituição brasileira de 1988 (BRASIL, 1988) apresentam‑se hoje mais distantes de suas efetivações práticas na vida de milhares de homens e mulheres, muitos deles trabalhadores, porque esses direitos tornam‑se obstáculos às exigências da globalização, do neoliberalismo e dos novos processos produtivos.

As mudanças que ocorrem no mundo e no Brasil afetam, direta ou indiretamente, a vida dos brasileiros em geral, mas são os desempregados, os pobres, os trabalhadores, os destituídos de saúde, de moradia, de riqueza, de poder e de cidadania os mais atingidos (AMORIM, 2009).

Nesse contexto, boa parte da sociedade sente‑se apática, desesperançada e sem capacidade de promover resistências e lutas, para além do cotidiano e da sobrevivência material.

As mudanças substantivas na sociedade, no Estado e nas relações entre sociedade, Estado, mercado e classes sociais exigem novos modos e caminhos de constituição e desenvolvimento da sociedade brasileira.

A Questão Social no Brasil de hoje, globalizado, configura‑se em dimensões econômicas, políticas, culturais e sociais, todas elas locais e globais, regionais e intercontinentais, para a formação de uma sociedade antagônica e desigual.

observação

Ocorrem mudanças profundas nesse processo de reconfiguração global, no capital e nas demandas da classe trabalhadora.

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A sociedade espera e exige do profissional que ultrapasse as ações interventivas e seja capaz de conhecer, investigar, antecipar, propor e executar alternativas para o enfrentamento da Questão Social, e que sua formação lhe permita analisar as múltiplas faces e expressões da realidade (AMORIM, 2009).

Também é esperado que o assistente social tenha a capacidade de atuar no fomento à coletividade e em defesa da maioria das populações sob opressões diversas, discriminadas, sabendo‑se que suas relações sociais e contratuais históricas entre Estado e capitalistas colocam‑no diante de barreiras ao exercício profissional crítico e com potencial para formular, implementar, executar, gerir e avaliar políticas sociais voltadas para a cidadania e para o combate à Questão Social.

O assistente social pode contribuir para que os serviços sociais, sob sua responsabilidade direta ou indireta, sejam estruturados a partir de um projeto ético‑político, expresso pela categoria e comprometido com o combate à exclusão e com a eliminação do preconceito, da alienação e das injustiças sociais.

A defesa dos direitos sociais, para o Serviço Social contemporâneo, articula‑se com a criação de políticas públicas descentralizadas, desburocratizadas, transparentes, democratizadas e universalizadas, com qualidade e controle da sociedade, para fins públicos, como dever e responsabilidade do Estado.

A profissão, nesse cenário, também assume um sentido público, voltado para o interesse das minorias sob opressões diversas e em defesa de um projeto societário, que implemente as capacidades humanas e gere desenvolvimento igualitário.

A formação e o posicionamento ético‑político do profissional de Serviço Social contemporâneo deve pautar‑se por atitudes democráticas, éticas e políticas, em defesa da cidadania, formuladas com competências teóricas e técnicas, instrumentalizadoras e constituintes de relações sociais e práticas de Estado, com ênfase nos direitos sociais e no efetivo exercício político da população, para o fortalecimento da cultura, da família, dos indivíduos e dos grupos sociais.

O Código de Ética Profissional do Assistente Social de 1993 (CFESS, 1993) é resultado dessas reflexões da categoria, ao longo das últimas décadas, num processo de ruptura com o conservadorismo e as bases tradicionais da profissão. Suas reformulações contemplam para além do instrumento normalizador da profissão e dos profissionais na sociedade. Objetivam conduzir a profissão pelos caminhos da justiça social, da equidade e da democracia, posicionando‑se contra todas as formas de exclusão, exploração, dominação e alienação.

Os princípios contemporâneos da área de Serviço Social refletem o entendimento de que o cotidiano profissional é um espaço político, que transparece os modos de pensar e agir da profissão junto a indivíduos, grupos e classes sociais, que também são políticos.

No tocante às competências profissionais, é exigido que o assistente social desenvolva saberes teóricos e técnicos para exercer múltiplas atividades: prestar assessoria; conhecer, decifrar e analisar cada situação; propor, planejar e executar intervenções; e, finalmente, avaliar os resultados das ações. Também é importante aprimorar esses saberes para contribuir com propostas capazes de preservar e efetivar direitos, transformando o mundo cotidiano (SERRA, 2000).

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O funcionamento do mercado gera uma distribuição de renda e níveis de pobreza indesejáveis para a sociedade. As políticas sociais poderiam ser utilizadas para contrabalançar esses resultados, com a criação de uma rede de proteção social para todos os cidadãos do país, prestando assistência em caso de imprevistos, como desemprego, acidentes no trabalho, doença etc.

Existem, ainda, situações previsíveis, em que os cidadãos, por algum motivo, não conseguiram prevenir‑se adequadamente, como a perda da capacidade de trabalho em razão da idade avançada, pouco investimento em capital humano etc., que os impeçam de manter um padrão de vida mínimo adequado à sua sobrevivência (SERRA, 2000).

Fazer escolhas entre políticas públicas alternativas depende de vários fatores, como potencial em recursos, definição de prioridades e geração de incentivos, entre outros. Em geral, os recursos são escassos, e esse fato define o grau de abrangência dos programas sociais, diretamente relacionado à definição de prioridades por parte do Estado.

A política social é de intervenção do Estado nas desigualdades sociais produzidas pelo modo capitalista de produção. Essas desigualdades são explicadas pelo Estado e pelas classes dominantes, desvinculando‑as da estrutura produtiva e vinculando‑as a situações conjunturais e individuais específicas: crise capitalista, falta de formação profissional compatível com as necessidades do mercado etc., o que abre um amplo leque de possibilidades de legitimação do Estado e das classes detentoras dos poderes econômico e político (SERRA, 2000).

Ao atender parcialmente as necessidades da população por meio de políticas sociais, seja como resultado do confronto entre classes, segmentos e grupos sociais, seja em forma de medidas antecipatórias, o Estado objetiva manter em condições administráveis as desigualdades sociais.

A partir dessa análise da política social, é possível afirmar o papel por ela desempenhado no movimento entre o capital e o trabalho. Determinadas conjunturas históricas colocam‑na como um direito que responde a necessidades objetivas, concretas, reais; em outras, ela é chamada a responder a necessidades subjetivas, parece, desvincular‑se do real, tornando‑se a‑histórica. Nessa condição, a política social propõe soluções que buscam clamar os homens para voltarem às suas supostas origens naturais de solidariedade e fraternidade (AMORIM, 2010).

Os critérios de acesso à política social, no Brasil, quando se trata de programas sociais governamentais que atingem a parcela da população que se encontra no limite da sobrevivência, impõem condições às pessoas atendidas, além de exigirem comprovações da situação de miserabilidade.

Considere os dados do Relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, de 2000, apresentados no texto a seguir:

Novo atlas do desenvolvimento humano no Brasil

O Brasil melhorou sua posição no índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH‑M) nos últimos nove anos, passando de 0,709, em 1991, para 0,764, em 2000. A

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mudança demonstra avanços brasileiros nas três variáveis que compõem o IDH‑M: renda, longevidade e educação. Em comparação com 1991, o índice aumentou em todos os estados e em quase todos os municípios brasileiros. No ano 2000, do total de 5.507 municípios, 23 foram classificados [como] de baixo desenvolvimento, 4.910, de médio e 574, de alto desenvolvimento humano. Na classificação internacional, o Brasil continua sendo um país de médio desenvolvimento humano.

Os dados fazem parte do Novo atlas do desenvolvimento humano do Brasil, um projeto do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), da Fundação João Pinheiro (MG) e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). O novo Atlas foi atualizado pelos dados do Censo de 2000, do IBGE. Além de seguir o padrão divulgado pelo Atlas anterior, o trabalho conta com novos dados sociais e foi divulgado no final do ano de 2002.

A educação foi responsável por 60,78% do aumento do IDH‑M no Brasil entre 1991 e 2000. Já a renda contribuiu com 25,78%, e a longevidade, com 13,44% no crescimento do índice. Em todas as Unidades da Federação, a educação foi o componente que mais influiu no aumento do IDH‑M, sendo que em 21 delas sua participação foi maior que 50% do acréscimo. O aumento do componente longevidade contribuiu positivamente para o crescimento do IDH‑M em todos os estados, variando entre 15,15% (Santa Catarina) e 39,02% (Roraima) do acréscimo total do índice. Já o componente renda, apesar de sua contribuição para o acréscimo geral do IDH‑M do Brasil, apresenta grandes variações quando são analisados os estados individualmente. A participação da renda varia de ‑37,64% (Roraima) até 35,15% (Santa Catarina).

Os estados que mais aumentaram o índice, entre 1991 e 2000, foram, respectivamente, Ceará (passou de 0,597 para 0,699), Alagoas (de 0,535 para 0,633) e Maranhão (de 0,551 para 0,647). Em contrapartida, os que menos cresceram foram: Distrito Federal (de 0,798 para 0,844), São Paulo (0,773 para 0,814) e Roraima (0,710 para 0,749). Isso reflete, parcialmente, o fato de que é mais difícil crescer a partir de um patamar mais alto do que de um mais baixo.

Os estados que mais subiram no ranking foram o Ceará (subiu da 23ª para a 19ª posição) e o Mato Grosso (da 12ª para a 9ª posição). Rondônia, Tocantins, Bahia e Goiás ganharam duas posições cada um. Os que mais caíram no ranking foram Roraima (da 8ª para a 13ª posição), Amazonas (da 14ª para a 17ª) e Acre (18ª para a 21ª). Sergipe e Pernambuco perderam duas posições cada. Os demais estados ou permaneceram na mesma colocação, ou tiveram variação de uma posição, para mais ou para menos.

Os cinco estados com maiores IDH‑M no Brasil são, respectivamente, Distrito Federal (0,844), São Paulo (0,814), Rio Grande do Sul (0,809), Santa Catarina (0,806) e Rio de Janeiro (0,802), situando‑se na faixa de alto desenvolvimento humano. Todos os demais encontram‑se na categoria de médio desenvolvimento humano. Os cinco IDH‑M mais baixos são: Alagoas (0,633), Maranhão (0,647), Piauí (0,673), Paraíba (0,678) e Sergipe (0,687). Em 2000, como em 1991, nenhum estado situou‑se na faixa de baixo desenvolvimento humano. O índice de Desenvolvimento Humano foi criado

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pela Organização das Nações Unidas (ONU) originalmente para medir o nível de desenvolvimento humano dos países a partir de indicadores de educação (alfabetização e taxa de matrícula), longevidade (esperança de vida ao nascer) e renda (PIB per capita).

Fonte: Brasil, s/d.

Além de submeter as pessoas a entrevistas, buscando definir o perfil socioeconômico – ou seja, ter a garantia de que não dispõem de nenhuma outra fonte de sobrevivência –, ainda são realizadas visitas para comprovar o afirmado quando entrevistadas.

O pressuposto adotado como ponto de partida é o de que as pessoas mentem sobre suas vidas, ou omitem aspectos desta que poderiam significar a exclusão do programa. Vale ressaltar que, em sua maioria, as pessoas atendidas moram em favelas, em condições habitacionais tão precárias que seria impossível afirmar que elas as escolheram para terem acesso, por exemplo, a uma cesta básica.

Outro ponto a considerar é que os programas sociais são homogeneizados em todo o território nacional, não cabendo àqueles por eles atingidas nenhuma possibilidade de participação nas decisões. É possível pensar, por exemplo, que o conteúdo da cesta básica é determinado pelos órgãos governamentais, definindo, assim, o que as pessoas devem comer. Entretanto, como afirmamos anteriormente, é exigido, também, que as pessoas se sujeitem a certas condições. Na maioria das vezes, isso significa participar de reuniões cujos assuntos são previamente definidos.

Quanto maior for o potencial de recursos, maior será a probabilidade de ocorrer ajustes que possam comprometer a qualidade dos serviços prestados à população. Inversamente, a escassez de recursos para o Estado investir gera uma focalização para que a oferta de serviços alcance alguns segmentos da sociedade.

3 QueSTão SoCIAL e PoLíTICAS SoCIAIS nA PeRSPeCTIvA neoLIbeRAL

Na perspectiva neoliberal, o debate sobre a necessidade de se pensar num novo desenho para as políticas sociais é reaberto, de modo que seja garantido maior alcance das ações e, consequentemente, resultados mais efetivos.

A assistência assume uma função estratégica, pois, dado seu caráter transversal, articulador das demais políticas públicas, contribui para a constituição de um sistema mais amplo de proteção social, resgatando a perspectiva da seguridade social (AMORIM, 2009).

Reconhecer a importância da assistência é fundamental, no contexto das políticas públicas, para a reorientação da política econômico‑social, a fim de construir um projeto nacional de desenvolvimento econômico promotor da inclusão.

A Política de Assistência Social no Brasil ganha destaque com a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) e passa a ser considerada política pública, compondo o tripé de seguridade social, responsabilidade do Estado e direito do cidadão, com caráter democrático e previsão de gestão descentralizada e participativa (SERRA, 2000).

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A despeito do cenário histórico brasileiro conservador, a Constituição Federal de 1988 trouxe avanços quanto à ampliação e à extensão dos direitos sociais, à universalização do acesso, à expansão da cobertura e a um certo afrouxamento do vínculo contributivo. Contemplando a concepção de seguridade social como a forma mais abrangente de proteção, recuperou e redefiniu os patamares mínimos dos valores dos benefícios sociais e, o mais importante, enfatizou o princípio da responsabilidade do Estado, na esfera pública e no atendimento aos direitos.

Saiba mais

Recomendamos leitura da Seção IV do capítulo II da Constituição Federal de 1988. De acordo com o artigo 203), �a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social�, tendo como um de seus objetivos �a promoção da integração ao mercado de trabalho�. Além disso, conforme o artigo 204”, [...] As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social”� (BRASIL, 1988).

A Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) tornou expressiva a intervenção social do Estado no campo da proteção social, com impactos relevantes no que diz respeito ao desenho das políticas e à definição dos beneficiários e do sistema de proposição do acesso aos direitos sociais (BULLA, 2003).

Esse importante instrumento jurídico constitui um marco na ampliação das situações sociais reconhecidas como objeto de garantias legais de proteção e submetidas à regulamentação estatal. Aumentou de forma significativa a responsabilidade pública por vários problemas cujo enfrentamento se dava, parcial ou integralmente, no espaço privado.

A intervenção estatal, regulamentada pelas leis complementares, que normatizaram as determinações constitucionais, passou a referir‑se a um terreno mais vasto da vida social, com objetivos de equalizar o acesso a oportunidades e de enfrentar condições de destituição de direitos, riscos sociais e pobreza.

Esse marco constitucional de 1988 passa à esfera estatal as responsabilidades da inclusão dos direitos sociais, fixando o tripé da seguridade social, composto por assistência social, saúde e previdência, com base nos princípios da universalidade e da garantia de acesso a estes ao cidadão, enquanto política publica.

Assim, há o reconhecimento de que as necessidades básicas – como alimentação, moradia, saúde, educação, transporte, lazer, entre outras – são responsabilidade do poder público, cabendo ao Estado usar estratégias para identificar e erradicar a desigualdade social, apropriando‑se de mudanças de intervenção, para que a sociedade deixe de conformar‑se com esse mundo globalizado e alienado (BULLA, 2003).

Esse Estado, previsto constitucionalmente, contrapõe‑se ao Estado neoliberal, que atende fundamentalmente o interesse do capital, mantendo a classe trabalhadora com um padrão de vida mínimo e que procura conservar intocável a sua reprodução, para continuar submissa aos interesses do capital.

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Além de consolidar o regime democrático no Brasil, a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) criou um conjunto de direitos sociais, historicamente reivindicados ao longo de um processo conflituoso de mobilizações sociais e políticas que marcaram os anos 1970 e 1980 (SERRA, 2000).

Nessa trajetória, buscou‑se ampliar o envolvimento dos atores sociais nos processos de decisão e implementação das políticas sociais, respondendo a demandas em torno da descentralização e da democratização do Estado brasileiro.

Analisando as ideias de Huber (1992), Clemente (2006) esclarece que uma forma de reduzir as contradições geradas pelo mercado para o exercício da cidadania é promover sua ampliação. Em outras palavras, os segmentos mais afetados pelas desigualdades sociais geradas pelo capitalismo tornam‑se foco de interesse das forças dominantes nos momentos de eleição, quando desejam votos, e na criação de impostos e legislações de proteção ao trabalhador, como mecanismo de controle desses segmentos.

A autora Clemente (2006), aprofundando essa análise, destaca que somente quando as pessoas de uma mesma comunidade compartilharem padrões básicos de vida, cultura e exercício da cidadania civil é que possivelmente se conseguirá diminuir os impactos da desigualdade.

Sobre os direitos civis e políticos, Clemente (2006) ressalta que a exposição a situações de desigualdade extrema faz com que a comunidade não desempenhe efetivamente, com liberdade e segurança, esse exercício. A autora reforça ser necessário à comunidade o potencial para compartilhar igualmente educação, assistência médica e demais serviços sociais.

Com o advento do capitalismo e sua expansão, imaginava‑se que, ao longo de seu desenvolvimento, seria possível diminuir as desigualdades sociais, por meio da criação de serviços diferenciados de saúde, educação e assistência social, ou seja, que priorizem aqueles segmentos que sofreriam maior desfavorecimento social. Contudo, esse movimento de inclusão cidadã, historicamente, não tem apresentado os resultados esperados.

Em relação a esse esforço para diminuir as desigualdades sociais, notamos que, no Estado do tipo neoliberal, as iniciativas para a criação de mecanismos de mercado reguladores da proteção social são expressos por aposentadoria privada e planos de saúde particulares, complementados por programas mínimos de assistência pública destinados aos pobres. Observe que a característica neoliberal é fazer com que esse custo seja compartilhado com a sociedade civil ou com serviços de representação organizada da classe trabalhadora, para não reduzir os lucros do capital nem onerar o Estado (CLEMENTE, 2006).

Em geral, o Estado, nessa experiência neoliberal, cria um sistema de benefícios distribuído de forma fragmentada para diferentes segmentos sociais, com priorização para das famílias, nas coberturas previdenciárias – por exemplo, o salário‑família, o apoio às gestantes e à maternidade etc.

Em suas análises, Clemente (2006) reporta‑se à experiência social‑democrata, que consiste num sistema universalista de provisão estatal, pelo qual todos os cidadãos fazem jus, individualmente, a um elevado nível de benefícios. São exemplos dessa experiência os modelos da Suécia, na cena contemporânea, e da Alemanha, nos regimes de governo logo depois do Pós‑Guerra.

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Trata‑se, segundo as análises de Clemente (2006), de um regime de bem‑estar social, denominado, nos Estados Unidos, de welfare state, que tem origens históricas resultantes de sistemas de mercado diferentes, de países anglo‑saxões e com modelo de desenvolvimento centrado no Estado, caso dos países da Europa continental.

O processo de formação de classe ocorreu de modos diversos em cada um dos países, promovendo também formas diferentes de criação e concessão de serviços de bem‑estar social, incluindo as estratégias de previdência. Nesse processo, é fundamental que somente grupos afetados pelas crises sociais se aliem para reivindicar seus direitos e opor‑se ao processo de acumulação. Essa aliança é que torna os padrões de criação de serviços previdenciários de bem‑estar social diferentes de país para país (CLEMENTE, 2006) No modelo liberal, somente os grupos sociais mais afetados e vulneráveis beneficiam‑se da previdência pública. As demais classes valem‑se do mercado para a obtenção de serviços sociais.

No regime social‑democrata, exemplo da Suécia, a previdência social conta com um amplo welfare state. Nesse caso, o Estado assume as responsabilidades pela oferta de serviços sociais e também contribui com uma proporção considerável de empregos (CLEMENTE, 2006).

No regime liberal, a criação de empregos também ocorre, especialmente na área de prestação de serviços e nas categorias ligadas a profissões liberais e semiliberais, caso do Serviço Social. No entanto, essas profissões são mais vinculadas à contratação de produtores que à do Estado. Sua característica de atividade volta‑se mais para o entretenimento que para as áreas social e previdenciária, diferentemente da situação verificada no regime social‑democrata.

Observamos que, no regime liberal, os empregos são criados em maior número e exigem menor qualificação, enquanto no regime social‑democrata há menos empregos, com maior exigência de qualificação e voltados para o desenvolvimento do bem‑estar social e para a diminuição das desigualdades. (CLEMENTE, 2006).

A cidadania social é um exercício realizado quando pessoas ajudam outras e assumem responsabilidades que também beneficiam a comunidade de modo geral. Serviços de saúde e educação constituem direitos individuais, mas acabam por beneficiar todos numa sociedade (CLEMENTE, 2006).

Além disso, ainda conforme Clemente (2006) em sua análise, a cidadania social prescinde de uma identificação das pessoas com as obrigações sociais comuns e do reconhecimento de que não é possível agir sozinho, de que há necessidade de compartilharem serviços sociais, previdência, saúde, educação e outras situações emergentes, que podem abalar socialmente o desenvolvimento da comunidade e colocar os cidadãos em circunstâncias de divisão de classes, com a superposição de umas às outras. Em outras palavras, a qualidade dos serviços criados e a forma como a comunidade os compartilha vão produzir agravos sociais que podem comprometer toda a comunidade.

A mobilização das pessoas e sua organização numa comunidade com vistas à obtenção dos serviços de que necessitam é fundamental para comprometer o Estado com essa responsabilidade. Dito de outra forma, alguns grupos sociais pressionam o Estado a atender suas reivindicações, demonstrando certa autonomia e participação na criação e na gestão de serviços prestados por ele. Essa pressão e essa

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forma de associação popular são o exercício da cidadania, a participação das pessoas em busca do atendimento de seus direitos individuais e também a luta pela criação dos serviços coletivos que vão assegurar o desenvolvimento da comunidade (CLEMENTE, 2006).

Entendemos que as associações comunitárias ou a organização das pessoas de uma dada sociedade em torno de reivindicações de direitos individuais e coletivos são expressões do eixo da democracia e o modo de participação efetiva na criação de serviços essenciais e na gestão do Estado. Contudo, o Estado liberal tenta manter controle sobre as expansões dessas formas de manifestação e organização popular, para que tais ações sejam mínimas e não caracterizem maior investimento na área social do que na área e na expansão capitalistas (CLEMENTE, 2006).

No Estado liberal, existe uma forte tendência a fazer as pessoas e as comunidades autofinanciarem o próprio desenvolvimento e a superação das desigualdades sociais, numa lógica de corresponsabilização e transferência de responsabilidades para a área privada. Portanto, o Estado liberal não apresenta marcas expressivas de políticas de bem‑estar social, e suas ações são mais focalizadas e direcionadas para situações emergenciais e seletivas, além de pontuais (CLEMENTE, 2006). O Estado mantém controle sobre as formas de organização social, e, nesses casos, a formação de redes e a articulação de grupos sociais constituem forças de resistência, em contraponto ao controle do Estado.

A participação da população, na forma de controle social, também figura de modo contundente na Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), e são criadas propostas para a instituição de conselhos vinculados praticamente em todo o conjunto de políticas sociais do país, representando uma nova forma de expressão de interesses e de representação de demandas e atores junto ao Estado.

Concomitantemente, proliferam outras formas de participação da sociedade na prestação de serviços e na própria gestão do social, impulsionando um movimento que havia adquirido novo vigor desde, ao menos, o início da década de 1980.

Essa nova forma institucionalizada de participação social passou a representar, em suas diversas modalidades, um elemento estruturante do Sistema Brasileiro de Proteção Social (SBPS) (CRUZ e GUARESCHI, 2010).

Analisar as formas de participação popular para a reconfiguração das políticas públicas, especialmente da assistência social, no debate de hoje, permite compreender os processos futuros para sua institucionalização e execução, bem como os mecanismos de enfrentamento da Questão Social.

Tratar da participação da sociedade no âmbito das políticas sociais, em sua formulação, gestão, implementação e controle, aponta características, potencialidades e tensões, assim como descreve o processo de redesenho do Estado que se desenrolou no período depois de 1988.

A participação da sociedade no processo decisório das políticas sociais cria oportunidades, por meio de conselhos ou outras formas organizativas, de conhecer o planejamento das políticas sociais, tomar parte nele e discutir seu papel nesses espaços participativos, bem como de definir normas orientadoras sobre como se desenvolver o controle daquelas políticas (CRUZ e GUARESCHI, 2010).

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Não há dúvidas de que, a partir da Constituição de 1988 (BRASIL, 1988), a participação social passa a ser valorizada não apenas quanto ao controle sobre as iniciativas do Estado no que se refere às políticas públicas e sociais, mas também quanto ao processo de tomada de decisão e à implementação, em caráter complementar à ação estatal.

Não se trata, de modo algum, de corresponsabilizar‑se pelas obrigações do Estado, mas de participar do poder de interferir em todos os processos para uso dos recursos públicos, redimensionando a lógica de distribuição, com foco na equidade e na justiça social.

O Estado obriga‑se a usar o aparato jurídico, político e técnico nas decisões da coletividade e a serviço dos interesses desse grupo participativo e organizado.

A participação social tem sido reafirmada no Brasil como um fundamento dos mecanismos institucionais que visam a garantir a efetiva proteção social contra riscos e vulnerabilidades, assim como a vigência dos direitos sociais.

Para Cruz e Guareschi (2010), três enunciados sintetizam os sentidos que justificam a participação no que se refere aos direitos sociais, à proteção social e à democratização das instituições correspondentes:

• a participação social promove transparência na deliberação e visibilidade das ações, democratizando o sistema decisório;

• a participação social permite maior expressão e visibilidade das demandas sociais, provocando um avanço na promoção da igualdade e da equidade nas políticas públicas;

• a sociedade, por meio de inúmeros movimentos e formas de associativismo, permeia as ações estatais na defesa e alargamento de direitos, demanda ações e é capaz de executá‑las no interesse público (CRUZ e GUARESCHI, 2010, p. 142).

Conforme assinalado anteriormente, a participação social desempenha papel relevante para expressar demandas e democratizar a gestão e a execução das políticas sociais. Contudo, não se restringe unicamente a conselhos institucionalizados, mas corresponde a todas as formas democráticas de organização e representação popular configuradas pela sociedade para esse fim.

Essa participação, na última década, ocorreu principalmente por meio dos diversos formatos de conselhos e dos diferentes mecanismos de parceria colocados em prática nas políticas sociais, o que responde a impulsos diversos que atuaram sobre sua criação e seu desenvolvimento (CRUZ e GUARESCHI, 2010).

Considerar a pluralidade é importante para a representação de atores junto a uma determinada política pública, porque propicia uma agregação de diversos, com todas as formas de complexo social

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e histórico, facilitando uma conjugação de forças e interesses nos diferentes níveis de decisão, além de possibilitar que o acesso aos direitos sociais seja legitimamente apropriado e reconhecido.

Constitui‑se, dessa forma, uma esfera pública democrática para o debate e a deliberação na tomada de decisões, por meio de conselhos ou outras figurações dos movimentos sociais, representando os vários grupos e interesses presentes no debate público setorial, em que as noções de cidadania precisam ser analisadas com maior profundidade. A respeito dos debates para tomadas de decisão e promoção de direitos humanos, Benevides (1994) afirma:

É bom lembrar também que, nas sociedades democráticas do chamado mundo desenvolvido, a ideia, a prática, a defesa e a promoção dos direitos humanos, de uma certa maneira, já estão incorporadas à vida política. Já se incorporaram no elenco de valores de um povo, de uma nação. Mas, pelo contrário, é justamente nos países que mais violam os direitos humanos, nas sociedades que são mais marcadas pela discriminação, pelo preconceito e pelas mais variadas formas de racismo e intolerância, que a ideia de direitos humanos permanece ambígua e deturpada (BENEVIDES, 1994, p. 81).

Quanto ao Brasil atual, Benevides (1994) esclarece que o país tem uma sociedade com marcas acentuadas de desigualdades sociais e com intensas diferenças econômicas entre as classes, tornando‑se referência mundial em indicadores de desigualdades socioeconômicas. Nesse caso, a autora considera fundamental a adoção dos indicadores dos direitos humanos como lógica para a redução das desigualdades no país, especialmente na criação de estratégias para distribuição de renda.

Referente às classes sociais mais impactadas pelas desigualdades, Benevides (1994) destaca que:

As classes populares são geralmente vistas como “classes perigosas”. São ameaçadoras pela feiura da miséria, são ameaçadoras pelo grande número, pelo medo atávico das “massas”. Assim, de certa maneira, parece necessário às classes dominantes criminalizar as classes populares associando‑as ao banditismo, à violência e à criminalidade; porque esta é uma maneira de circunscrever a violência, que existe em toda a sociedade, apenas aos “desclassificados”, que, portanto, mereceriam todo o rigor da polícia, da suspeita permanente, da indiferença diante de seus legítimos anseios (BENEVIDES, 1994, p. 95).

Diante disso, as classes populares, muitas vezes, são tratadas pela mídia de acordo com uma ótica que associa as condições de pobreza à violência, à desinfomação, às incapacidades e à inferiorização. Assim, criam‑se preconceitos, estigmas e posturas de medo entre as classes sociais que fazem os segmentos dominantes recearem que a abordagem de defesa dos direitos humanos para as classes populares não seja o ideal. Por exemplo, quando um adolescente que vive em condições de extrema vulnerabilidade comete uma infração, a mídia dá grande ênfase ao fato de que, se ele não for “preso” e até sujeito a uma “pena exemplar”, a sociedade correrá risco. A mídia evidencia o lado hediondo do ato que esse jovem cometeu e cria imagens sociais de que “ele não tem mais jeito”, portanto deverá submeter‑se às leis,

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como se fosse adulto, e responder pelos crimes, independentemente de sua fase de desenvolvimento e das condições de violência estrutural que possam ter influído em suas ações (BENEVIDES, 1994).

A sociedade, influenciada por esses argumentos midiáticos e temendo pela convivência desse jovem com outros que se espelhem na falta de punição para ele, passa a adotar uma postura estigmatizante e mobiliza‑se para combater as leis de proteção e de defesa baseadas nos direitos humanos. Essas contradições camuflam as fontes das desigualdades sociais, que são parte da face perversa do modo de produção e acumulação capitalista, bem como da falta de crítica e participação social da população, no exercício dos direitos de cidadania, para aumento e melhoria da oferta de educação, saúde, habitação e serviços essenciais ao desenvolvimento humano. Com isso, acentuam‑se ainda mais as diferenças entre as classes, submetidas ao controle do Estado liberal (BENEVIDES, 1994).

Reflexão semelhante faz Amorim (2010), ao esclarecer que a cidadania e os direitos a ela inerentes são parte de uma esfera do Estado composta por uma ordem jurídica e política em que se assentam as definições de quem tem direitos, como deve ser exercida a cidadania e quais são os direitos e os deveres dos cidadãos. Para tanto, é estabelecida uma série de elementos que caracteriza esses cidadãos por idade, sexo, vínculos territoriais, saúde física e mental, se são cumpridores ou não dos deveres para com essa sociedade etc.

A forma como essa cidadania é concebida e os eventos pensados, elaborados por uma esfera superior – dominante e eivada de preconceitos e interesses –, vão agir contrariamente sobre as classes mais atingidas pelas condições de desigualdade social. Tais classes nem sempre participam dessas formulações e esferas decisórias, mas são justamente o maior foco das medidas de controle e restrição por parte das ações do Estado. A Constituição define e garante quem são esses cidadãos e quais direitos e deveres têm (AMORIM, 2010).

A respeito dessa concepção de cidadania, Benevides (1994) afirma:

Os direitos do cidadão e a própria ideia de cidadania não são universais, no sentido de que eles estão fixos a uma específica e determinada ordem jurídica‑política. Daí, identificamos cidadãos brasileiros, cidadãos norte‑americanos e cidadãos argentinos, e sabemos que variam os direitos e deveres dos cidadãos de um país para outro (BENEVIDES, 1994, p. 116)

Voltando às reflexões de Amorim (2010), essa autora entende a cidadania como uma ideia política, que permite, por exemplo, a um determinado governo definir e modificar, quando e como desejar, tudo o que diz respeito a direitos e deveres do cidadão. Os valores universais são menos significativos que a força política. Bons exemplos são os processos de ditadura e a criação de programas sociais formulados considerando apenas os interesses governamentais. Em nome da ordem estabelecida, valem todas as formas de opressão sobre o povo e até o impedimento de manifestações em defesa, por exemplo, dos direitos humanos.

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Novamente, Benevides (1994) afirma que, politicamente, um governo pode:

[...] modificar, por exemplo, o Código Penal no sentido de alterar sanções; pode modificar o Código Civil no sentido de equiparar direitos entre homens e mulheres; pode modificar o Código de Família no que diz respeito aos direitos e deveres dos cônjuges, na sociedade conjugal, em relação aos filhos, em relação um ao outro (BENEVIDES, 1994, p. 116).

Evidências das prioridades que um governo pode estabelecer podem traduzir‑se, por exemplo, na convocação de cidadãos para o serviço militar e na desapropriação de áreas habitadas. Em alguns períodos históricos, há registro de processos de desinfecção do povo à sua revelia, em nome da saúde pública etc. (BENEVIDES, 1994).

Fica claro, assim, que a cidadania não diz respeito aos direitos universais, mas, sim, aos direitos específicos dos representantes de um Estado, numa dada sociedade, em uma ordem jurídica e política especificamente estabelecida (BENEVIDES, 1994).

Lembrete

Depois da Constituição de 1988, a participação social passa a ser valorizada no controle das iniciativas do Estado sobre políticas públicas e sociais, bem como na tomada de decisão e na implementação, em caráter complementar à ação estatal.

Nessa perspectiva de representação, não apenas alguns são contemplados ou selecionados, mas todo o conjunto de atores envolvidos discute e delibera sobre o que fazer, como fazer, como investir e como quer que a execução se concretize, com as devidas formas de controle de todo o processo.

Ainda que não esteja livre de contradições, tendo em vista que a sociedade capitalista norteia‑se por processos de acumulação que geram desigualdades sociais e econômicas, por exemplo, as participações também se constituem de modo que reproduzem esses interesses diversos, presentes nas relações sociais cotidianas.

No entanto, mesmo com essa possibilidade, são assegurados o debate democrático e formas mais equânimes de distribuição de riquezas produzidas por toda a coletividade, bem como mecanismos para gerar oportunidades de desenvolvimento para quem não participava dessas políticas.

Compete ao Estado, nessa forma de responsabilidade, instrumentalizar a população e disseminar conhecimentos, técnicas e recursos para que esta entenda a importância desse instrumento democrático de participação e saiba escolher de que forma se envolverá nos interesses da coletividade: como ator representando ou representado.

O Estado deve mobilizar e qualificar grupos profissionais, setores privados e especialistas para exercerem esse processo democrático junto à população, abrindo espaço para um leque bastante

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amplo e diferenciado de interesses que, em cada caso, transformará o conselho não apenas em ator no campo das políticas sociais, mas também em arena onde atuam diferentes forças e interesses (CRUZ e GUARESCHI, 2010).

Historicamente, a participação da sociedade na execução das políticas sociais consolidou‑se no campo da atuação privada, dominada pelas entidades de cunho filantrópico. Esse caráter de subordinação às forças sociais dominantes e capitalistas sofreu uma grande alteração a partir dos anos 1980, na conjuntura da luta pela democratização do país, formando um novo elenco de atores sociais voltados à promoção da sociedade como protagonista de sua própria transformação, resguardadas as proporções de um histórico neonato de participação democrática.

Vale lembrar que os movimentos sociais e as organizações não governamentais (ONGs) no Brasil passam a atuar na implementação de projetos sociais de diversos conteúdos, visando a dotar comunidades e grupos sociais de protagonismo, em um Estado autoritário e numa realidade marcada por exclusão, discriminação e pobreza.

Esse histórico foi conjugado com uma reforma de Estado para os moldes neoliberais, comprometidos com a financeirização do capital e a consequente redução na intervenção da economia, na formulação e na implementação de políticas públicas e da legitimidade do Estado, com perda dos aparatos de representação política.

Os autores Cruz e Guareschi (2010) apontam que:

[...] a consolidação do Estado social está diretamente relacionada ao reconhecimento, na esfera política, de que o Estado e suas articulações demonstraram incapacidade para regular os efeitos da Questão Social. Fracassaram as iniciativas de resolver a Questão Social através de estratégias de mercado, de moralização do povo, com ações de solidariedade e por meios revolucionários; se evidencia a necessidade de fortalecimento de medidas de proteção social (CRUZ e GUARESCHI, 2010, p. 187).

Interessa, nesse contexto, que a cidadania seja expandida tanto política quanto socialmente, promovendo a construção de um novo paradigma para organizar a proteção e os direitos sociais.

As dimensões se ampliam e as estruturas para a construção dos direitos sociais perpassam pelas áreas de Educação, Saúde e Proteção Social, implemento para a cidadania social, visando a enfrentar as desigualdades sociais e a estabelecer um novo projeto de sociedade (CRUZ e GUARESCHI, 2010).

Dessa forma, a partir de diferentes experiências político‑sociais e modalidades de atuação, parece ter‑se estabelecido, durante as décadas de 1980 e 1990, um amplo consenso quanto à relevância da participação social nos processos de formulação, decisão, controle e implementação das políticas sociais.

Esse aparente consenso camufla o debate marcado por ambiguidades, com várias tensões nas práticas de participação social, além de gerar dificuldades quanto aos meios de regulação social, ao modo como

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a sociedade civil deverá atuar e à maneira pela qual se dará a participação popular no aprimoramento da gestão de políticas públicas (CRUZ e GUARESCHI, 2010).

O problema enfrentado pela política social provavelmente seja menos o de compensar as amplas desigualdades sociais que marcam as sociedades modernas e mais o de responder às desigualdades que, em determinados contextos históricos, parecem ameaçar a reprodução dessas sociedades.

A expressão de demandas reprimidas gerou, para o país, a necessidade de enfrentar o tema da igualdade, que, apresentada no plano político, não pode ser restrita a fatores exclusivamente econômicos, mas inclui a ampliação da democracia e o enfrentamento da Questão Social.

A reconstrução da cidadania pressupõe afirmar a igualdade de todos os cidadãos no que se refere à participação política diante da própria legitimidade do Estado e dos ideais universalistas da ação pública com esfera de proteção do cidadão, seja no âmbito dos direitos civis, seja no dos direitos sociais. Conforme assinala Amorim (2009), citando o trabalho de Holloway (1982, p. 27‑8):

É o princípio da “igualdade cidadã” – formal – que caracteriza a sociedade capitalista, pois “trata as pessoas como se fossem iguais, numa sociedade onde são fundamentalmente desiguais”. A teoria liberal‑burguesa também nega a existência de “classes estruturadas de forma antagônica”, bem como a luta de classes (AMORIM, 2009, p. 107).

A Questão Social passa a ser reconhecida quando politizada por novos atores que, por meio da construção de suas identidades e da formulação de projetos e estratégias, retomam a problemática da integração e da necessidade de recriar os vínculos sociais.

É necessário o enquadramento da Questão Social por meio de políticas e instituições específicas, as chamadas políticas sociais, levando em conta que uma mesma questão será respondida de diferentes maneiras em contextos políticos, culturais e institucionais distintos, gerando diversos padrões de proteção social.

A assistência social no Brasil, como política pública, foi assegurada na Constituição Federal de 1988, em seus artigos 203 e 204 (BRASIL, 1988), e com a regulamentação por meio da Lei Orgânica de Assistência Social – Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993 (BRASIL, 1993b).

A assistência social tornou‑se uma política de responsabilidade do Estado e direito do cidadão, para o combate à pobreza e a constituição da cidadania. Sua gestão se efetiva por meio de um sistema descentralizado e participativo, cabendo aos municípios uma parcela significativa de responsabilidade na sua formulação e execução.

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No artigo 1º da Loas, a assistência social é assim definida:

A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade para garantir o atendimento às necessidades básicas (BRASIL, 1993b).

A seguridade social conquistada coloca no centro do debate, a discussão sobre o estabelecimento de mínimos sociais, numa contraposição às ideias neoliberais que defendem a redução da responsabilidade pública em relação às desigualdades sociais.

Conforme Sposati (1997),

[...] a noção de mínimos sociais não é antagônica ao suposto neoliberal da seletividade e focalismo. Mas é sem dúvida alguma ao princípio liberal que entende o enfrentamento dos riscos (sociais e econômicos) como de responsabilidade individual, e não social [...]. Propor mínimos sociais é estabelecer o patamar de cobertura de riscos e de garantias que uma sociedade quer garantir a todos os seus cidadãos (SPOSATI, 1997, p. 33).

Essa proposta de mínimos sociais não se assenta em mínimos de sobrevivência, mas fundamenta‑se em implementos indispensáveis ao pleno exercício das capacidades humanas, à inserção política e cidadã em todas as esferas do espaço público de direitos sociais e à criação de estratégias amplas de desenvolvimento da sociedade foco da política pública, ressalvados seus manifestos interesses e dinâmicas sócio‑históricas e culturais. “Esta perspectiva supõe as seguintes garantias: sobrevivência biológica, condições de poder trabalhar, qualidade de vida, desenvolvimento humano e atendimento às necessidades humanas” (SPOSATI, 1997, p. 47).

Em suas pesquisas, Sposati (1997) considera que a descentralização efetivada no Brasil na era de Fernando Henrique Cardoso (FHC), no campo das políticas sociais, foi conservadora, fundamentada na lógica neoliberal e destinada a transferir responsabilidades para estados e municípios, sem a necessária descentralização político‑administrativa, orçamentária e técnica, conforme prevê a Loas.

Os municípios auferiram um mínimo na receita pública federal, e esta favoreceu intensamente os mecanismos de privatização e das relações para o fortalecimento do capitalismo financeirizado.

Também marcou essa gestão a força no discurso em defesa das parcerias com a sociedade civil, como estratégia bem‑sucedida de transferência de responsabilidades para a sociedade.

observação

A Constituição Federal de 1988 é considerada uma Constituição cidadã, porque é a primeira da história do Brasil a assegurar direitos sociais.

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Segundo Faleiros (1999), o Estado brasileiro não estrutura o bem‑estar social, que, apesar de colocado no centro dos discursos políticos, não chega às esferas sociais mais marcadas por desigualdades, e o sujeito que lá esta, impactado pela mundialização do capital – que, ao contrário das ações do Estado, alcança facilmente as pessoas onde quer que estejam e afeta‑as com igual intensidade, com as desregulamentações do trabalho, por exemplo –, recorre ao trabalho informal para sobreviver, assim como sua família.

Parafraseando Pedro Demo (1996), Faleiros (1999) afirma que a sociedade apresenta, dentre suas necessidades, algumas que precisam de maior valorização por parte das iniciativas do poder público, como educação política, para, assim, saber realmente o papel do Estado perante as políticas publicas e entender que sua existência depende da sociedade e da prestação de serviços públicos indispensáveis e claramente necessários.

A força da participação popular, entendendo que esse processo democrático é assegurado constitucionalmente, possibilita a ampliação de dimensões da cidadania, para definir com o Estado as estruturas necessárias à defesa e à implementação dos direitos sociais e das capacidades humanas.

A legislação brasileira, em seu texto magno (BRASIL, 1988) e conforme detalhes constantes da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) (BRASIL, 2004), efetivada na Loas (BRASIL, 1993b), no artigo 5º inciso, II, exalta que a política pública se realizará “através da participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis” (BRASIL, 1988 apud SERRA, 2000, p. 86).

Esse controle social deve ser visível nas esferas em que ocorrem as ações da assistência social, como recursos públicos, programas, benefícios, entre outros, devendo assegurar estruturas informativas e de fomento à ampla participação do povo nos debates e na garantia dos direitos, por meio de fortes instrumentos de divulgação, necessária para o conhecimento dessas iniciativas pela população.

Tal reflexão implica que essa sociedade e seus protagonistas (Estado, capitalistas, grupos e indivíduos sociais) saibam o que é cidadania e em quais sentidos será exercida todos os dias, chegando a um consenso a respeito desse assunto.

Nas sociedades contemporâneas, o significado de cidadania decorre das noções de Estado‑Nação, tão intensamente debatidas quando do surgimento das Ciências Sociais, no final do século xVIII. Inspirada nos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução Francesa, cidadania significa viver com dignidade, igualdade e liberdade, exercendo direitos civis e políticos.

No momento em que a sociedade civil entender que é fundamental sua participação em conselhos, congressos, fóruns, conferências, seminários, entre outros, exercendo os direitos constitucionais de cidadania, será possível concretizar processos equânimes para a construção de esferas sociais mais democráticas, cidadãs e com chances de combate às desigualdades.

A defesa da cidadania é vista como valor estratégico e instrumental básico da profissão de Serviço Social e como parte constitutiva do projeto ético‑político profissional na contemporaneidade, que prevê

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ações intensas para promover a participação política e ativa da população, no estabelecimento dos rumos principais do país (AMORIM, 2009).

Na conjuntura em que a sociedade se encontra, o Serviço Social tem como objeto de intervenção a Questão Social, sendo necessário um processo de construção e de atuação profissional, com sólidos conhecimentos sobre a realidade na qual intervém.

4 ConTexTuALIzAndo o SeRvIço SoCIAL e A QueSTão SoCIAL

A Revolução Industrial provocou profundas transformações nas relações do mundo do trabalho, impactando inicialmente a Inglaterra, a Europa e em seguida o resto do mundo. Se por um lado gerava riquezas em escalas inimagináveis, por outro promovia intensas transformações nas relações sociais e culturais, com agravos para as concentrações urbanas, processos migratórios descontrolados e precarização da vida social.

O processo de industrialização, ao se expandir, intensificou com igual proporção os mecanismos de produção das desigualdades sociais. Estado, Igreja e capitalistas aliavam‑se em defesa dos processos de acumulação do capital, adotando medidas de proteção aos trabalhadores e suas famílias apenas quando as situações de opressão alcançavam níveis morais alarmantes e ocorriam revoltas e manifestações por parte dos trabalhadores, colocando em risco a sólida estrutura de consolidação do sistema.

Os níveis de desigualdades sociais nessa conjuntura do capitalismo industrial, eram intensos e tão profundos que passaram a caracterizar a Questão Social. Nesse processo de agravamento social, surgiu o Serviço Social, em decorrência da expansão capitalista, e como uma divisão social e técnica do trabalho.

No caso brasileiro, o país vinha de uma conjuntura econômica voltada para o sistema agrário. O processo de industrialização emergiu na década de 1930, com a política de Getúlio Vargas, e foi nesse cenário que surgiu o Serviço Social.

Tratava‑se de uma sociedade emergente urbano‑industrial, com um desenvolvimento capitalista peculiar, mas igualmente marcada por conflitos de classe, “pelo crescimento numérico e qualitativo da classe operária urbana e pelas lutas sociais que esta desencadeia contra a exploração do trabalho e pela defesa dos direitos de cidadania” (RAICHELIS, 2006, p. 12).

O contexto desse avanço capitalista no Brasil seguiu os padrões de intensificação dos problemas sociais, à semelhança do ocorrido em outras nações. Contudo, na realidade brasileira, o Estado não investiu no bem‑estar, e as propostas para o enfrentamento dessas desigualdades sociais foram apresentadas pela Igreja Católica, aliada à elite da sociedade burguesa.

As alternativas eram paliativas, eivadas da ideologia capitalista e do neotomismo católico, mostrando‑se insuficientes para resolver a demanda social. As iniciativas assistencialistas e filantrópicas desenvolvidas pela Igreja e seu laicado constituíam‑se nas bases das ações profissionais.

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O contexto brasileiro e as influências do Serviço Social europeu e do norte‑americano influenciaram a busca por uma formação mais pautada por parâmetros técnicos e científicos, evidenciando a necessidade de trabalhar os contextos social, político e econômico.

O Serviço Social avançou como profissão, com uma expansão significativa a partir da criação das grandes instituições de assistência social, que foram implementadas pelas forças dominantes dos capitalistas, da Igreja e do Estado, em resposta ao aprofundamento da Questão Social.

Contraditoriamente, esse cenário promissor para consolidar a profissão era o mesmo que configurava suas bases atreladas aos marcos religiosos da Igreja Católica, aos processos ideológicos do sistema capitalista e ao Estado marcado por iniciativas assistencialistas e repressoras, fazendo com que a atuação do assistente social servisse mais aos interesses do capital, oprimindo e controlando a classe trabalhadora.

Sobre essa fase, afirma Iamamoto (2000a, p. 61):

A implantação do Serviço Social no Brasil [...] Seu surgimento está no bloco católico, que manterá por um período relativamente longo um quase monopólio da formação dos agentes sociais especializados, tanto a partir de sua própria base social como de sua doutrina e ideologia (IAMAMOTO, 2000a).

Em suas bases formativas, a profissão não possuía um método próprio de atuação, mas fundamentava‑se nas experiências da França e da Bélgica, que foram as pioneiras do Serviço Social.

Inicialmente, os cursos de Serviço Social compunham‑se de senhoras damas da sociedade burguesa e do laicado da Igreja, dando a estes um caráter conservador e tradicionalmente empenhado nas causas da elite dominante.

Quanto ao objeto do Serviço Social, consta que tem sido historicamente um dilema chegar a essa definição. No entanto, tal objeto se concretiza e se transforma à medida que a profissão se desenvolve num dado contexto histórico social e segundo as demandas sociais que se lhe apresentam, ética e politicamente.

Assim, podemos dizer que esse objeto foi definido, em 1937, como sendo o homem (especificamente); em seguida, passou a ser a situação-problema por ele vivenciada; depois, foi redefinido como a transformação social; e, mais adiante, o objeto passou a corresponder à Questão Social ou às expressões desta (IAMAMOTO, 2000a)

Lembrete

Os princípios contemporâneos do Serviço Social refletem o entendimento de que o cotidiano profissional é um espaço político que transparece os modos de pensar e agir junto a indivíduos, grupos e classes, que também são políticos.

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A profissão consolidou‑se nas décadas de 1940 e 1950. A partir da década de 1960, quando o país enfrentava um intensa fase de restrição dos direitos civis e sociais, em que os brasileiros ficaram reféns da lógica opressiva da ditadura militar, afetando todos os aspectos da vida social – saúde, educação, expressão, entre outros –, o Serviço Social desencadeou um processo de profundas transformações na categoria.

Os embates políticos e econômicos que afetavam a América Latina, de modo geral, e o Brasil, nesse período, conduziram o Serviço Social a sintonizar‑se com uma sociedade em busca de mudança e articulada em movimentos sociais, procurando romper com o tradicionalismo de suas origens e suas inclinações para atuar em consonância com as forças dominantes.

Na fase de Reconceituação, destacaram‑se esforços da categoria para reverter as marcas dessa trajetória histórica do Serviço Social. A respeito desses avanços profissionais, merecem atenção:

As primeiras expressões da renovação do Serviço Social estão consubstanciadas nos Documentos de Araxá (1967) e Teresópolis (1970), publicados pelo CBCISS (Comitê Brasileiro da Conferência Internacional de Serviço Social), que tiveram grande repercussão em toda a América Latina. [...] cabe destacar a experiência singular e breve da Escola de Serviço Social da PUC de Minas Gerais (1972‑1975), formuladora do conhecido “método BH”, que inaugura a vertente de ruptura com o tradicionalismo profissional e será retomado pelo Serviço Social brasileiro apenas uma década depois (RAICHELIS, 2006, p. 6).

As transformações do Serviço Social prosseguiram na década de 1970, com críticas à formação profissional, articuladas às do sistema educacional e da universidade. A categoria de Serviço Social empreendeu uma busca para romper com as origens conservadoras e, ao mesmo tempo, procurou aproximar‑se dos ventos democráticos que vieram com as conquistas da população, organizada na luta em defesa dos direitos humanos, da maior participação política e social e da superação das desigualdades sociais. O Serviço Social seguiu historicamente se transformando, em conformidade com as mudanças sociais ocasionadas pelo sistema capitalista na sociedade. À medida que esta pedia respostas concretas e o país passava pelo processo de redemocratização, a categoria profissional engajava‑se nas lutas sociais e contribuía para a conquista dos marcos da legislação que afirmam os direitos sociais, como a Constituição Federal de 1988, a Lei Orgânica da Saúde (LOS), o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Lei Orgânica da Assistência Social.

A metodologia profissional, inicialmente, era baseada nas Ciências Sociais. Ao longo dos processos de transformação, inserindo‑se no universo das pesquisas e da produção de conhecimento, mais especificamente a partir da década de 1980 e como fruto dos debates na fase de Reconceituação, a categoria contribuiu de forma significativa para a elaboração de teorias sobre a realidade social e reformulou‑se pela incorporação de teorias críticas, contextualizadas num projeto ético‑político profissional e num projeto societário.

Evidentemente, houve muitas críticas ao assistente social como pesquisador, segundo as quais, suas contribuições poderiam ser muito melhores; no entanto, as produções e os encontros de pesquisa revelaram avanços que hoje norteiam profundas buscas de profissionais por saberes que possam melhorar as suas competências.

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Assim, os profissionais de Serviço Social passaram a trabalhar com a Questão Social nas suas mais variadas expressões cotidianas, em diversas áreas de atuação, como saúde, assistência, educação etc.

Segundo Faleiros (1999):

A expressão Questão Social é tomada de forma muito genérica, embora seja usada para definir uma particularidade profissional. Se for entendida como sendo as contradições do processo de acumulação capitalista, seria, por sua vez, contraditório colocá‑la como objeto particular de uma profissão determinada, já que se refere a relações impossíveis de serem tratadas profissionalmente, através de estratégias institucionais/relacionais próprias do [...] desenvolvimento das práticas do Serviço Social. Se for as manifestações dessas contradições o objeto profissional, é preciso também qualificá‑las para não colocar em pauta toda a heterogeneidade de situações que, segundo Netto (1997), caracteriza, justamente, o Serviço Social (FALEIROS, 1999, p. 37, grifo nosso).

O Serviço Social realiza suas intervenções na Questão Social. Segundo Faleiros (1999), esse é o objeto da profissão. É fundamental que, durante a formação, sejam abordados conhecimentos que possibilitem uma leitura analítica das complexidades sociais e, ao mesmo tempo, sejam estabelecidas parcerias que contribuam positivamente na instrumentalização das práticas. Além disso, é necessário desenvolver estratégias para o fortalecimento dos indivíduos sociais e coletivos, especialmente com vistas à democracia e ao exercício da cidadania. Saber reconhecer fatores de opressão, desigualdades sociais, políticas e excludentes é essencial.

Resumo

Nesta unidade, vimos que o desenvolvimento capitalista dito mundializado mantém aspectos das fases anteriores, mas inova no sentido e no conteúdo das formas de acumulação de capital, posicionando a centralidade no gigantismo do capital financeiro. A mundialização capitalista designa um novo contexto histórico, marcado por profundas e significativas transformações, bem como por um complexo das contradições do capital, que abre uma nova fase no curso histórico de desenvolvimento do sistema produtor de mercadorias, o qual abrange a indústria, o intercâmbio comercial e o sistema financeiro. Mundializado, porque, na contemporaneidade, a economia capitalista se expande em nível mundial, por meio de movimentos de internacionalização dos capitais produtivo, comercial e financeiro.

Nesse processo de acumulação financeira do capital, o capitalismo globaliza a produção, a distribuição, a troca e o consumo, coisas, pessoas, ideias, cultura, o Estado, as instituições, descaracterizando suas redes territoriais em nome das metas da mundialização do capital.

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Nesse cenário, a Questão Social adquire novos significados e características, com dimensões globais, expressando‑se, por exemplo, em desemprego, desregulamentação generalizada do trabalho e desmonte das garantias de proteção social.

Estudamos o sistema neoliberal, que modifica as formas de luta social dos trabalhadores, quando cria mecanismos de expressão de políticas públicas focalistas e fragmentadas, que atendem as demandas da população e garantem os direitos básicos de cidadania superficialmente.

Vimos ainda que, na década de 1980, os brasileiros, em suas lutas sociais, consolidaram uma cultura política combativa e reivindicadora de direitos sociais e estruturas políticas para a criação de mecanismos de seguridade social. Diante disso, o Estado neoliberal e sua racionalização criaram barreiras para esse processo de enfrentamento da Questão Social, com iniciativas políticas marcadas por processos de desresponsabilização do Estado, mediante ações focalizadas, descentralizadas e privatizadas.

Em seguida, verificamos que, depois da década de 1990, as políticas públicas, orquestradas pela tônica neoliberal, passaram a expressar‑se por meio de ações beneficentes, que caracterizavam, para os burgueses capitalistas, uma estratégia para contenção das manifestações de indignação e revolta, bem como das possibilidades de organização da classe trabalhadora contra as opressões do sistema.

Também estudamos as ações filantrópicas, baseadas na cultura do favor caracterizada na década de 1930, que começaram, no Brasil, por iniciativa das grandes fábricas, mediante a prestação de serviços de assistência e creche aos trabalhadores, a formação de vilas operárias e a doação de alimentos, tudo com a condição, às vezes explícita, de obter reciprocidade submissa ao processo de trabalho capitalista e postura devedora dos trabalhadores a seus patrões. Desde a década de 1990 até hoje, essa postura de filantropia do empresariado é assumida sob a denominação de responsabilidade social, que poderá ser melhor analisada em estudos futuros.

A Questão Social, nesse contexto, é entendida como expressão constituída e constituinte dos processos de alienação, antagonismo, desigualdade, discriminação e injustiça social presentes nos modos de ser e aparecer do capitalismo na sociedade brasileira. No Brasil de hoje, globalizado, a Questão Social configura‑se em dimensões econômicas, políticas, culturais e sociais, locais e globais, regionais e intercontinentais, para a formação de uma sociedade antagônica e desigual.

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Verificamos ainda que, numa sociedade capitalista globalizada, é esperado que o assistente social tenha a capacidade de atuar no fomento à coletividade e em defesa da maioria das populações sob opressões diversas, discriminadas, sabendo que suas relações sociais e contratuais históricas entre Estado e capitalistas colocam‑no diante de barreiras ao exercício profissional crítico e com potenciais para formular, implementar, executar, gerir e avaliar políticas sociais voltadas para a cidadania e para o combate à Questão Social.

Aprendemos que a Constituição Federal de 1988 é um importante instrumento jurídico, um marco na ampliação das situações sociais reconhecidas como objeto de garantias legais de proteção e submetidas à regulamentação estatal. Aumentou de forma significativa a responsabilidade pública por vários problemas cujo enfrentamento se dava, parcial ou integralmente, no espaço privado. A partir dessa Carta Magna, a intervenção estatal, regulamentada pelas leis complementares que normatizaram as determinações constitucionais, passou a referir‑se a um terreno mais vasto da vida social, com os objetivos de equalizar o acesso a oportunidades e de enfrentar condições de destituição de direitos, riscos sociais e pobreza.

Esse marco constitucional de 1988 passa, à esfera de estatal, as responsabilidades pela inclusão dos direitos sociais, fixando o tripé da seguridade social composto por assistência social, saúde e previdência, com base nos princípios da universalidade e da garantia de acesso ao cidadão, como política pública. Além disso, a participação popular, na forma de controle social, também figura de forma contundente nessa Constituição, com propostas para a criação de conselhos vinculados praticamente em todo o conjunto de políticas sociais no país, como uma nova forma de expressão de interesses e de representação de demandas e atores junto ao Estado.

Ao mesmo tempo, proliferam outras formas de participação social na prestação de serviços e na própria gestão social, impulsionando um movimento que havia adquirido novo vigor desde o início da década de 1980.

Historicamente, a participação da sociedade na execução das políticas sociais consolidou‑se no campo da atuação privada, dominada pelas entidades de cunho filantrópico. Esse caráter de subordinação às forças sociais dominantes e capitalistas sofreu uma grande alteração a partir dos anos 1980, na conjuntura da luta pela democratização do país, formando um novo elenco de atores sociais voltados à promoção da sociedade como protagonista de sua própria transformação, resguardadas as proporções de uma sociedade com histórico neonato de participação democrática.

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Lembramos que os movimentos sociais e as ONGs, no Brasil, passam a atuar na implementação de projetos sociais de diversos conteúdos, visando a dotar comunidades e grupos sociais de protagonismo, em um Estado autoritário e numa realidade marcada por exclusão, discriminação e pobreza.

Também vimos que a assistência social no Brasil, como política pública, foi assegurada na Constituição Federal de 1988, em seus artigos 203 e 204 e com a regulamentação por meio da Loas (Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993). Tornou‑se uma política de responsabilidade do Estado e direito do cidadão, para o combate à pobreza e a constituição da cidadania. Estudamos que sua gestão se efetiva por meio de um sistema descentralizado e participativo, cabendo aos municípios uma parcela significativa de responsabilidade na sua formulação e execução.

Aprendemos que a metodologia profissional do Serviço Social, inicialmente, era baseada nas Ciências Sociais. Ao longo dos processos de transformação, inserindo‑se no universo das pesquisas e produções de conhecimento, mais especificamente a partir da década de 1980, e como fruto dos debates na fase de Reconceituação, a categoria contribuiu de forma significativa para a elaboração de teorias sobre a realidade social e reformulou‑se a partir da incorporação de teorias críticas, que se contextualizaram num projeto ético‑político profissional e num projeto societário.

Por fim, vimos que, evidentemente, houve muitas críticas ao assistente social como pesquisador segundo as quais suas contribuições poderiam ser muito melhores; no entanto, as produções e os encontros de pesquisas revelaram avanços que hoje norteiam profundas buscas de profissionais por saberes que possam melhorar suas competências.

exercícios

Questão 01. O Serviço Social é uma profissão que tem uma função social e, portanto, é legitimada socialmente; no entanto, historicamente, depara‑se com o dilema do objeto profissional. Dessa forma, ao longo de sua existência, a área vem revendo o seu objeto de estudo, em conformidade com as transformações da sociedade. Assim, pode‑se dizer que o objeto do Serviço Social foi definido e redefinido como:

A) No início, em 1937, o objeto do Serviço Social era um homem (específico), passando depois a ser a situação‑problema; mais adiante, passa a corresponder à transformação social; posteriormente, passa a ser a Questão Social ou as expressões desta.

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B) No início, em 1937, o objeto do Serviço Social era a situação‑problema, passando para a transformação social e, posteriormente, para a Questão Social.

C) No início, em 1937, o objeto do Serviço Social era a transformação social, passando para as expressões da Questão Social.

D) No início, em 1937, o objeto do Serviço Social era a Questão Social, passando para a situação‑problema.

E) No início, em 1937, o objeto do Serviço Social era a transformação social, passando para a situação‑problema.

Resposta correta: alternativa A.

Análise das alternativas:

A) Alternativa correta.

Justificativa: segundo Iamamoto e Carvalho (1983), o objeto do Serviço Social foi sofrendo transformações, contextualizando‑se pelas transformações sociais, históricas e culturais das sociedades em que inscreve suas intervenções.

B) Alternativa incorreta.

Justificativa: segundo Iamamoto e Carvalho (1983), o marco brasileiro de definição do objeto do Serviço Social data historicamente de 1937, no entanto as análises encontradas dos autores não correspondem aos eventos históricos e sociais que interferem na configuração desse objeto.

C) Alternativa incorreta.

Justificativa: no início, em 1937, o objeto do Serviço Social era um homem (específico), que, segundo Iamamoto e Carvalho (1983), era a expressão dos momentos históricos, sociais e políticos dessa fase de surgimento profissional.

D) Alternativa incorreta.

Justificativa: nas décadas de 30 e 40, segundo Iamamoto e Carvalho (1983), o objeto do Serviço Social era a situação‑problema, fase marcadamente influenciada pelo Pós‑Guerra, numa versão mais psicologizada da profissão.

E) Alternativa incorreta.

Justificativa: segundo Iamamoto e Carvalho (1983), o contexto de ruptura com o conservadorismo e a fase de Reconceituação na América Latina influenciam a mudança de foco do Serviço Social, cujo objeto passa a ser a transformação social e, posteriormente, a Questão Social ou as expressões desta.

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Questão 02. O espaço profissional do assistente social é um produto histórico e, como tal, está condicionado por duas ordens de fatores. Uma delas refere‑se à luta pela hegemonia travada entre as classes fundamentais, e a outra corresponde a:

A) Limitações impostas pelas condições objetivas em que se realiza o trabalho profissional com o estatuto assalariado.

B) Marcas de subalternidade que perfilam a trajetória histórica da profissão na gestão das políticas sociais.

C) Requisitos técnicos e comportamentais que compõem o perfil profissional exigido pelo mercado de trabalho.

D) Demandas institucionais que determinam os objetivos do trabalho desenvolvido pelos agentes profissionais.

E) Respostas teórico‑práticas adensadas de conteúdo político que são dadas pela categoria profissional.

Resposta correta: alternativa C.

Análise das alternativas:

A) Alternativa incorreta.

Justificativa: os limites objetivos das condições de trabalho assalariado são, de fato, as formas efetivas pelas quais se realiza a profissão de assistente social, posto que, apesar de este ter competência para atuar com assessoria e como autônomo (de acordo com a Lei de Regulamentação Profissional), seus vínculos profissionais são mais contundentes nos espaços ocupacionais em que se operam as políticas públicas, em instituições públicas e privadas, sob a forma de venda de sua força de trabalho por salário.

B) Alternativa incorreta.

Justificativa: as condições de subalternidade que se configuram historicamente na profissão decorrem, na maioria das vezes, das condições de subalternidade da política social no contexto socioeconômico e político, afetando, igualmente, segmentos sociais oprimidos e que vivem em condições de desigualdade social.

C) Alternativa correta.

Justificativa: de fato, segundo Iamamoto (2000a), constituem barreiras históricas para a profissão as exigências técnicas e comportamentais, o que facilita o processo de acomodação de alguns profissionais e cria um movimento alienante e paralisado para transformações e engajamentos no Serviço Social.

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D) Afirmativa incorreta.

Justificativa: os objetivos profissionais são determinados, historicamente, pela conformação da Questão Social gerada pelo sistema capitalista e que incide também sobre os espaços ocupacionais, afetando as condições de trabalho não só do assistente social, mas de todos os trabalhadores.

E) Afirmativa incorreta.

Justificativa: um dos desafios profissionais consiste, justamente, segundo os pesquisadores Almeida, Barbosa e Cardoso (1998), em consolidar respostas profissionais engajadas e articuladas com um projeto societário. Os espaços ocupacionais são configurados pelas estratégias da lógica capitalista e do Estado neoliberal, não se constituindo a partir da ação organizada pelos sujeitos sociais.