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DIREITO ADMINISTRATIVO E DIREITO PRIVADO RUI CIRNE LIMA Professor de Direito Administrativo e Ciência da Administração na Fac. de Di- reito da Universidade do Rio Grande do Sul SUMÁRIO: Ato administrativo e ato jurídico privado. Domínio público e propriedade privada. * Estamos longe da época em que, para aplicar a manifestação no Direito Administrativo de categorias jurídicas, conhecidas no Direito Privado, se postulava abolir a distinção tradicional entre essas duas seções do direito positivo (e.g., Posada, "Tratado de Derecho Administrativo", Madri, 1897, t. I, n. o 11, pág. 72) . Mas, ao revés, a intransigência em manter rigorosamente a velha distinção romana vem gerando, na literatura do Direito Administra- tivo, a multiplicação de "novidades", que só o esquecimento complet.o dos dogmas privatísticos autorizaria fôssem consideradas tais. Parece oportuno, pois, empreender-se o estudo dos institutos e fi- guras jurídicas do Direito Administrativo, em comparação com as es- pécies paralelas do Direito Privado, criando-se, destarte, um como Direito Comparado ad intra, nesse setor importantíssimo da investi- gação jurídica. Os dois ensaios que seguem são uma contribuição a êsse desideratum. § 1.0 - ATO ADMINISTRATIVO E ATO JURÍDICO PRIVADO 1. A presunção de legitimidade, de que o ato administrativo se reveste, faz se afirme que a administração pública goza do privilégio de poder enganar-se. 1 Entretanto, se quisermos determinar o traço distintivo, pelo qual o ato administrativo se separa do ato jurídico privado, havemos de buscá-lo nessa como onisciência jurídica da ad- * Trabalho apresentado ao Congresso Jurídico comemorativo do Cinqüentenário da Faculdade de Direito da Universidade do Rio Grande do Sul. 1 Walter Jellinek. Verwaltungsrecht, Berlim. 1931. § 2. pág. 21: -Der Staat und die ihm gleichstehenden Triiger õffentlicher Gewalt haben das grosse Vorrecht, sich irren zu dürfen".

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  • DIREITO ADMINISTRATIVO E DIREITO PRIVADO

    RUI CIRNE LIMA Professor de Direito Administrativo e Cincia da Administrao na Fac. de Di-

    reito da Universidade do Rio Grande do Sul

    SUMRIO: Ato administrativo e ato jurdico privado. Domnio pblico e propriedade privada.

    * Estamos longe da poca em que, para aplicar a manifestao no Direito Administrativo de categorias jurdicas, j conhecidas no Direito Privado, se postulava abolir a distino tradicional entre essas duas sees do direito positivo (e.g., Posada, "Tratado de Derecho Administrativo", Madri, 1897, t. I, n.o 11, pg. 72) .

    Mas, ao revs, a intransigncia em manter rigorosamente a velha distino romana vem gerando, na literatura do Direito Administra-tivo, a multiplicao de "novidades", que s o esquecimento complet.o dos dogmas privatsticos autorizaria fssem consideradas tais.

    Parece oportuno, pois, empreender-se o estudo dos institutos e fi-guras jurdicas do Direito Administrativo, em comparao com as es-pcies paralelas do Direito Privado, criando-se, destarte, um como Direito Comparado ad intra, nesse setor importantssimo da investi-gao jurdica.

    Os dois ensaios que seguem so uma contribuio a sse desideratum.

    1.0 - ATO ADMINISTRATIVO E ATO JURDICO PRIVADO 1. A presuno de legitimidade, de que o ato administrativo se

    reveste, faz se afirme que a administrao pblica goza do privilgio de poder enganar-se. 1 Entretanto, se quisermos determinar o trao distintivo, pelo qual o ato administrativo se separa do ato jurdico privado, havemos de busc-lo nessa como oniscincia jurdica da ad-

    * Trabalho apresentado ao Congresso Jurdico comemorativo do Cinqentenrio da Faculdade de Direito da Universidade do Rio Grande do Sul.

    1 Walter Jellinek. Verwaltungsrecht, Berlim. 1931. 2. pg. 21: -Der Staat und die ihm gleichstehenden Triiger ffentlicher Gewalt haben das grosse Vorrecht, sich irren zu drfen".

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    ministrao que vai pressuposta na adequao perfeita da vontade declarada a todos os efeitos, de que juridicamente capaz, - ade-quao essencial natureza mesma do ato administrativo.

    Ao particular, admite-se que ignore le alguns, ao menos, dos efeitos, de que suscetvel o ato jurdico a ser praticado. 2 Ao poder pblco, no; supe-se, antes, que le os conhea, a todos, com minu-ciosa exatido, at as conseqncias derradeiras.

    Certo, no raro, j a norma administrativa tende a aliviar o nus dessa cognio lgico-jurdica, plenssima pela extenso, que se recla-ma administrao em face do ato administrativo. Oto Mayer aflo-ra o conceito, ao observar que as normas administrativas trazem como contedo, em frao maior ou menor, a substncia mesma do ato que regulam. 3 Mas isso no acontece em todos os casos. Antes acontece s vzes, que o ato completa a norma, elevandc-se, le prprio, con-dio de fonte jurdica derivada, como se verifica to freqentemente nas manifestaes da assim chamada discrio administrativa. 4

    No obstante, diz-se do ato administrativo que os efeitos dle en-contram a sua fonte no ato mesmo, isto , na vontade da administra-o, e se operam, portanto, na medida em que so queridos pelo au-tor do negcio jurdico. ~

    Tais peculiaridades, prprias do ato administrativo, so mera-mente o reflexo de peculiaridade, mais flagrante ainda, prpria do sistema jurdico, em que o administrativo se insere.

    2. Na sistemtica do Direito Administrativo, o contedo do ato administrativo, ou a norma jurdica, o determina coativamente, pre-moldando a vontade da administrao; ou esta o h de querer em to-dos os seus efeitos e conseqncias. Dimana a alternativa de uma razo simplssima, a de que no h no Direito Administrativo normas dispositivas ou supletivas.

    As mesmas normas jurdicas, das quais a administrao recebe poder discricionrio, ou seja, as pertinentes assim chamada discri-o administrativa, so essencialmente normas cogentes. James Gold-schmidt advertiu agudamente que a discrio do juiz, no processo, no resulta de normas dispositivas, mas cogentes. 6 A observao apli-ca-se discrio administrativa, que no uma faculdade, seno um dever da administrao; e porque um dever, irrenuncivel e ilimit-vel por arbtrio desta, - dever prescrito, de resto, no intersse da

    2 Chironi e Abello. Trattato di Diritto Civile Italiano,t. I. Turim, 1904, pg. 373: "S'e osservato che spesso non esiste la volont di produrre effetti determinati, che s'ignorano anzi taluni effetti che dai negozio giuridico deriveranno . .. "

    3 Teorie des Franzsischen Verwaltungsrechts, Strassburg, 1886, 3, n.o 3, p. 19. "Die Verwaltungsrechtssiitze. .. haben ein mehr oder weniger grsses Stck des Stofflichen der Hand/ung in sich eigenommen".

    4 Cf. Ferrucio Pergolesi. Saggi su le Fonti Normative, Milo, 1943, 29, p. 76. 5 O. Ranelletti, Le Guarentigie della Giustizia nella Pubblica Amministrazione,

    Milo, 1937, n.o 38, p. 52: "E questi effetti trovano la loro fonte nell'atto, cioe nella volont dell'amministrazione; e quindi hanno luogo in quanto sonno voluti dell'autore dei negozio".

    6 Teoria General dei Proceso, Barcelona, 1936, n.o 31. p. 72.

    IIBUtfltCii /ltt~Hjil ~i.:W:UUE SIMOlta - fUNl-Il,;A 11LnJi,O VARGAS

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    finalidade, a que tda a atividade administrativa se vincula, 7 e no no intersse subjetivo da administrao qWL talis".

    inexistncia de normas administrativas, de carter dispositivo ou supletivo, deve-se, portanto, no somente o princpio de que todos os efeitos do ato administrativo ho de ser queridos pela administra-o, seno tambm a postulao, a implcita, de uma como plenitude lgico-jurdica do ato administrativo, somente comparvel que se afirma, alhures, como atributo da ordem jurdica supra-positiva.

    Na verdade, quando no executa norma jurdica, de contedo pre-ciso, a administrao, ao praticar, em tais trmos, um ato administra-tivo, de alguma forma revela direito. Maior ou menor razo assistia,.. realmente, a Oto Mayer, ao dizer que, na ausncia de norma jurdica imediatamente aplicvel, age a administrao paralelamente lei po-sitiva, como poder de igual origem, tendo na diviso constitucional dos poderes a sua legitimao jurdica. 8

    E atentos sses pressupostos, no admira, pois, se pretenda atri-buir ao ato administrativo a mesma plenitude lgico-jurdica que ca-bvel ordem jurdica supra-positiva, j se pretendeu, sem embargo, atribuir lei positiva, ainda quando se devesse, no concernente a esta, reconhecer que "a oniscincia do legislador uma fico, de vez que uma impossibilidade". 9

    3. No significa, porm, a apontada analogia entre a lei e o ato administrativo que ste no se possa qualificar como negcio jurdico. A lei mesma pode ser concebida como um negcio jurdico. Papiniano chamava-lhe j "communis reipublicae sponsio"; 10 e os mesmos rega-listas do sculo XVII no repudiam a concepo pactcia da lei. O nosso Domingos Antunes Portugal, a propsito, escreveu "non praesu-mitur Principem habuisse voluntatem obligandi populum per legem, dum illam non acceptat, et sub conditione acceptationis legem tulisse intelligitur". 11

    A conseqncia, entretanto, que se deve tirar da afinidade evi-dente entre o ato administrativo e a lei, meramente a de que, no ato administrativo, alguma coisa existe, que existe tambm na lei, mas no se encontra no ato jurdico privado. sse quid especfico, se qui-

    7 Nossa Preparao Dogmtica Jurdica, Prto Alegre. 1949. p. 57; nossa In-troduo ao ~studo do Direito Administrativo Brasileiro. Prto Alegre. 1942. 2.. ns. 4 a 8. ps. 18 a 22.

    8 Teorie cit .. 3. n.o 2. p. 19: Wo das aber nicht der Fali ist, handelt sie dann-frei neben dem Gesetze ais ebenbrtige Gewalt.. Die Verfassungsmiissige Machtl'ertheilung allein ist ihr dafr die massgebende Rechtsordnung". A mesma idia informa a definio,. dada pelo A .. em seu Deutsches Verwaltungsrecht, t. r, Leipzig, 1895. 8. p. 95: "ein der Verwaltung zugehriger obrigketlicher Ausspruch, der dem Untertanen im Einzel-fali bestimmt, was fr ihn Rechtens sein soll". Cf. Le Droit Administratif Aliemand, t. r, Paris, 1903. 8. p. 120.

    9 Walter Jellinek. Gesetz, Gesetzanwendung und Zwecksmiissgkeitserwiigung, T-bingen. 1913. 8, p. 166: gDie Aliwissenheit des Get~ugebers ist tine Fiktion; denn sie ist ein~ U nmglichkeit",

    1 O Dig .. lib. r. tt. m. de legibus, fr. 1; ef. fr. 2 h. t. 11 De DontrtionibU$ Jurium ~t Bonorum Rtgiar COt'onat, Lugduni, 1726, lib. II~

    capo X, D." 90. p. 16-+.

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    sermos ir diretamente ao fundo do problema, a impessoalidade, le-vada ao mximo, na determinao da vontade que, pela lei ou pelo ato administrativo, se exterioriza, a par do enunciado jurdico nles contido.

    Pode descobrir-se, de certo, maior ou menor impessoalidade na determinao da vontade, quando da prtica de atos jurdicos priva-dos; assim, nos atos jurdicos do pai, ou da me, enquanto adminis-trador dos bens dos filhos (Cd. Civil, art. 386); nos dos tutores e curadores (Cd. Civil, art. 439) ; nos dos representantes das pessoas jurdicas (Cd. Civil, art. 29, I), etc. Mas essa impessoalidade, pela qual se reconhece meramente a comunho, entre o Direito Privado e o Direito Pblico, quanto ao conceito de administrao, se pode ser qua-lificada como tal ad intra, face aos crculos de intersses a que res-peita, mostra-se, ad extra, antes como um reflexo da personificao, mais ou menos definida, dsses mesmos crculos de intersses, peran-te a sociedade, havida como um todo, em que se inserem les como partes.

    A lei e o ato administrativo deparam-nos, ao revs, a impessoa-bilidade na determinao da vontade, levada ao mximo. O crculo de intersses a que a lei e o ato administrativo do expresso, coex-tensivo com a prpria ordem jurdica positiva vigente, ou seja, com o ordenamento jurdico da sociedade, como um todo.

    A limitao nacional do direito positivo faz dsse crculo de in-tersses o crculo mximo na sociedade politicamente organizada. J Brtolo sinalava que a apelao interposta de deciso do regente de comunidade "superiorem non recognoscens", haveria de ter como juiz "ipse populus ... qui ipsum officialem fecit".12

    4. A impessoalidade na determinao da vontade atinge, real-mente, na lei e no ato administrativo, o mximo, de que suscetvel, comensurando-se na sociedade politicamente organizada, no s a or-dem jurdica positiva, seno tambm finalidade mesma da sociedade como tal, ou seja, abstrao feita da personificao estatal, utilidade pblica, dita, s vzes, tambm, utilidade social.

    De Gerando e Macarel exprimiram a mesma idia, o primeiro, ao escrever, do Direito Administrativo, que "l'utilit publique est toujours engage dans les matieres qu'il embrasse"; 13 e o segundo, ao dizer, da administrao, que "son but unique est l'utilit sociale".14

    Ao mesmo propsito, alhures anotamos: "Que utilidade pblica? Tal como a concebemos a expresso social do bem-comum, a defi-nio dste sub specie so~ietatis. O bem-comum mais do que a sim-ples multiplicao aritmtica, pelo nmero dos indivduos na coleti-vidade, do bem de cada qual. "Bonum commune, - adverte So Toms - et bonum singulare unius personae non differunt solum secundum multum et parvum, sed secundum formalem differentiam"

    12 Commentaria, t. VI. in Secundam Digesti Novi Partem, Venetiis. 1602, p. 194. 13 Institutes du Droit AdministratiF Franais, t. I. Paris, 1842. n.o 3. p. 2. 14 Cours d'Administration et de Droit AdministratiF, Paris, 1852. t. I. p. 15.

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    ("Summa Theologica", IIa. IIae., q. XXVI, art. 6). ~rro inescus-vel seria, com efeito, atender-se, em tal caso, somente aos indivduos e s relaes dstes entre si, deixando-se em esquecimento que essas relaes supem j, de alguma forma, a existncia da sociedade. ~rro maior, porm, seria referir-se sociedade mesma a noo de bem-co-mum. A sociedade e os fins desta so meramente meios para que o ho-mem realize o prprio fim (So Toms, "De Regimine Principum", lib I, capo XIV). A unidade social , apenas, a unidade da ordem, e no a dos organismos naturais (So Toms, "Commentaria in De-cem Libros Ethicorum", lib. I, lect. I). Sujeito, por conseguinte, a que o bem comum se proponha somente pode ser o homem, - o in-divduo, na sociedade, enquanto componente dela, ou seja, enquanto parte do todo, interessado como tal na conservao dste. sua vez, e ainda, como conseqncia, a distino entre o bem individual e o bem-comum somente pode estar em que o primeiro vai referido ao indivduo sbre si, ao passo que o ltimo se lhe refere, enquanto par-te do todo, cuja conservao lhe um bem, em si mesma: "alia est ratio boni communis et boni singularis, sicut alia est ratio totius et partis" (So Toms, "Summa Theologica, IIa. IIae. q. XXVI, art. 6). Um filsofo, que fala como jurista, ensina-nos que o Bem, da Filosofia Moral, corresponde ao frui do Direito: a satisfao de uma inclinao, um gzo; enquanto o til se equipara ao uti do jargo jurdico: a utilizao, o meio pelo qual se alcana o frui (E. Baudin, "Introduction Gnrale la Philosophie", t. I, Paris, 1932, pgina 181). A sociedade, se no capaz de um gzo (o que suporia sensibi-lidade), , sem dvida capaz de um uti, quer dizer de utilizar (o que supe, apenas, um ordenamento social das atividades individuais) os mltiplos recursos a seu alcance, riquezas morais e riquezas materiais, de sorte a assegurar a cada qual, com os meios de persecuo do bem privado que lhe toca como indivduo, as condies essenciais ao bem--comum, que lhe interessa como membro da coletividade" 15.

    ~sse, o conceito de utilidade pblica, e sse, pois, o fim a que, sem acepo subjetiva, impessoalmente, o legislador e a administrao se adscrevem em sua atividade: "hoc est Reipublicae officium" 16.

    Quanto ao legislador, a impessoalidade, ou lhe imposta pelo de-ver de enunciao da regra jurdica, gerada na matriz do Direito Na-tural; ou lhe exigida diretamente por aquela vinculao finalstica, quando lhe cabe fixar a norma a ser editada "per mo dum determina-tionis", em uma como opo voluntarista. 17 Quanto administrao, a impessoalidade lhe imposta pelo dever de execuo da norma, de contedo preciso; ou imediatamente exigida pela mesma vinculao finalstica que, de resto, levando aqui mais fundo a sua influncia, ca-

    15 Nossa Introduo. cit . 1. n.o 5. ps. 12 e 13. 16 Wamkoenig. Institutiones Juris Romani Priva ti. Bonnae. 1834. 33. p. 10. 17 So Toms de Aquino. Summa Theologica. Ia. lIae .. q. XCI. art. 1 (Opera

    Omnia. t. 11. Parmae. 1853): Dicendum quod lex importat ordinem ad finem active. inquantum scilicet per eam ordinatur aliqua in finem; non autem passive. id est. quod ipsa lex ordinetur ad finem: nisi. per accidens. in gubemante cujus finis est extra ipsum. ad quem etiam necesse est ut [ex ejus ordinetur".

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    racteriza e define a mesma atividade administrativa como um tipo especfico de relacionamento jurdico. A sse respeito, escrevemos noutra oportunidade: "O carter finalstico e teleolgico da atividade administrativa no , sem dvida, o nico a sinalar especificamente essa forma de atividade. Mas no h negar que constitui a nota prin-cipal dentre quantas compem o conceito de administrao. Na ver-dade, ao passo que o direito subjetivo vincula os fatos e os bens do mundo exterior imediatamente a um sujeito, a administrao vincula--os a um fim. O sujeito do direito subjetivo, ao exerc-lo, ter um fim em mira; mas o fim influir sbre o bem ou fato; objeto do direito, mediatamente, atravs do sujeito. Diversamente, a atividade admi-nistrativa qua taUs obedece a um fim, a que o agente obrigado a adscrever-se, quaisquer que sejam as suas inclinaes pessoais; e sse fim domina e governa a atividade administrativa, a ponto de caracte-rizar-se, em vulgar, a boa administrao pela impessoalidade". 18

    5. A impessoalidade na determinao da vontade restringe-se, quanto administrao, ao ato administrativo, no se estendendo aos atos jurdicos privados, que a administrao acaso pratique. Atos de Direito Privado, a administrao os pratica no intersse do Estado como pessoa jurdica ou no das pessoas administrativas menores, equi-paradas quele como portadoras de poder pblico. A impessoalidade cede, ento, o lugar pessoalidade, quer dizer, aos intersses peculia-res de uma pessoa jurdica determinada.

    Traduz-se historicamente o mesmo discrime na concepo, velha e revelha, do Fisco, como personificao dos intersses privados do Estado ou como um aspecto particular da personalidade jurdica es-tatal, no concernente a sses intersses. 19

    6. A mesma impessoalidade explica-nos de outra parte, porque o ato administrativo h de necessriamente emanar do Estado ou de outra pessoa administrativa menor. 20

    De feito, a impessoalidade, como a definimos, na determinao da vontade declarada pelo ato administrativo, somente a podem ter o Estado e as pessoas jurdicas de Direito Pblico, a le equiparadas. Somente o Estado e as pessoas administrativas menores so capa-zes, em sua atividade administrativa, de comensurar-se como potncia, utilidade pblica, como ato; somente les podem dizer-se ad hoc institudos e organizados.

    Ao demais, a mesma impessoalidade revela-nos por que o ato ad-ministrativo tem a seu favor a presuno de legitimidade, justificada pelo princpio, a que inicialmente aludimos, segundo o qual a admi-nistrao pblica goza do privilgio de poder enganar-se. A impessoa-

    18 Nossa Preparao, cit., ps. 57 e 58. 19 Cf. Gerber, Gundzge des Deutschm Staar$!"~hrs, Leipzig, 1880, 1, nota 2,

    p. 2; 7, nota 3, p. 21. 20 Cf. Guido Zallobilli, Corso di Diritro Amministrarivo, t. I. Milo, 1936,

    p. 277: .. che la dichitJrazione sia propria di un wggetto delta pubblica amminisrra-zione"; tt coetm multi".

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    lidade na determinao da vontade purifica o ato administrativo; f-lo presumir isento dos defeitos que o carter pessoal lhe poderia impri-mir, oriundos da variabilidade dos intersses, de que a pessoa suscetvel.

    7. Como contraparte dessas concluses, devemos reconhecer, ainda, que as normas jurdicas, que regem o ato administrativo, como as que regem a legislao, 21 hierrquicamente se sobrepem s nor-mas jurdicas, dispositivas ou supletivas do Direito Privado. Aque-las, pela impessoalidade dos atos que regem, tm algo de absoluto; 22 stes, ao contrrio, pela pessoalidade dos atos que lhes esto submeti-dos, so necessriamente contingentes. Quando Papiniano escreveu: "jus publicum privatorum pactis mutari non potest", 23 no pretendeu significar, sem dvida, coisa diversa.

    Vemos, destarte, reaparecer aqui, necessitado pelo desenvolvi-mento da disquisio terica, o fato a que, como fato, j nos hava-mos referido, da inexistncia de normas dispositivas ou supletivas, na regulao jurdica do ato administrativo. 24

    8. Resumindo, j agora, quanto ficou dito, podemos conceituar o ato administrativo como um ato jurdico, com endero exclusivo utilidade pblica, "quoad causam finalem", cujo sujeito h de ser ne-cessriamente o Estado, ou outra pessoa administrativa menor, e cuja disciplina jurdica consistir em disposies cogentes especficas, ditas de Direito Administrativo, seja qual fr a sua feio formal.

    Persiste, nesse conceito, a noo de ato jurdico; varia to sO-mente o critrio de sua aplicao.

    Nenhuma palavra melhor encerraria, pois, ste ensaio do que a de Ulpiano, sbre a distino entre o Direito Privado e o Direito P-blico: "hujus studii duae sunt positiones"; 25 acrescida, porm, da glosa de Baldo: "id est, duae species praedicabiles de suis subjectis".21

    2. - DOMNIO PBLICO E PROPRIEDADE PRIVADA 1. Deve-se a construo contempornea da doutrina do dom-

    nio pblico a Jhering e a Brinz: Jhering desbastou o terreno, Brinz assentou os alicerces da construo nova.

    Jhering negou que fssem "a propriedade e os direitos que dela nascem. .. a nica forma possvel de direitos sbre as "coisas". 27

    21 Kor.mann-List. Einfhrung in die Praxis des Deutschen Verwaltungsrechts, T-bingen. 1930. ps. 90 e 91. falam de um direito prprio da legislao. Gesetzgebungsrecht.

    22 Normas absolutas, chama-se s do direito cogente. Cr. Espnola. Sistema do Direito Civil Brasileiro. t. I. Rio de Janeiro. 1938. nota 41. p. 105.

    23 Dig .. lib. lI. tit. XIV. de pactis. fr. 38. 24 V. supra, p. 10. 25 Dig .. lib. I. tit. I. de justitia et de jure. fr. 1. 2. 26 In Primam Digesti Veters Partem. Venetiis. 1616, lib. I. tt. I de justitia

    et de jure. 1. jur operam. hujus studii. n.o 6. 27 L'Esprit du Droit Romain, trad. de O. de Meulenaen. t. IV, Paris. 1888. n.o 71.

    p.348.

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    Brinz, sua vez, afirmou a distino entre o vnculo jurdico do patri-mnio pessoa e o vnculo jurdico do patrimnio ao fim, a que des-tinado: ali, a propriedade; aqui, o "Zweckvermgen", o patrimnio--fim, a pessoa jurdica. 28

    Como contra parte sua posio negativa, face ao problema, pro-ps-lhe Jhering um smile por soluo: meus cabelos pertencem-me; se os corto, passam a ser propriedade minha. 29 Enganou-se, entre-tanto, e duplamente: primeiro, quando teve como subentendido que todo vnculo jurdico devesse constituir direito em sentido subjetivo; segundo, quando sups que a s pertinncia fsica bastasse para dar sr a sse direito. 3Q

    Mrito foi de Brinz o ter afastado do problema, seno a noo de direito subjetivo, ao menos a idia de sujeito de direito, naquela pres-suposta. Substituiu-a, certo, pela noo de patrimnio-fim, ou seja, de pessoa jurdica, tambm estranha questo. Dentro, porm, na noo de pessoa jurdica, compreende-se a noo de administrao, e esta, a nosso ver, o dado essencial, do qual a soluo procurada de-pende principalmente. A propsito da sociedade, substrato de uma das formas mais freqentes de personalidade jurdica, Rodino disse ex-celentemente: "no pode haver sociedade sem administrao", isto , sem "aquela srie de atos econmicos e jurdicos, pelos quais... (a sociedade) explica a funo e consegue o fim que lhe so objeto". 31

    No contedo da noo de administrao, concebida como forma de atividade, encontramos, realmente, o ponto de partida para a so-luo do problema.

    2. Administrao e direito subjetivo so dois tipos distintos de relacionamento jurdico. Alhures escrevemos: "A palavra administra-o costuma empregar-se, em Direito Privado, por oposio a proprie-dade. Aos atos de administrao, o Cdigo de Napoleo ope os atos de propriedade (art. 1.988). Viciosa, embora, a expresso "actes de proprit" sublinha bem o contraste. Administrao se diz, assim, a atividade do pai, ou da me, relativamente aos bens dos filhos; a dos tutores, relativamente ao patrimnio dos tutelados. Administrao chama-se tambm atividade dos dirigentes de associaes, socieda-des e fundaes. Em todos sses passos, vemos, realmente, separadas a propriedade, ou titularidade, e '1 administrao. Qual o critrio dessa separao? O da finalidade do bem. Enquanto a propriedade, ou titularidade, opera a vinculao do bem ao sujeito de direito, a ad-ministrao vincula o mesmo bem ao fim, a que deve servir. O fim, a que natural ou juridicamente, por destinao econmica ou prescri-o legal, o bem deve servir, determina os limites da administrao. Inepto o sujeito de direito para realizar sse fim, separam-se a pro-

    28 Lehrbuch der Pandekten, ErIangen, 1886, t. UI. 432, p. 457: "Inrolange nicht der Zweck anstatt der. Subjekts aIs Gehrpunkt des Vermgens annerkannt wird. iat Zwechvermgen in meinen Sinne nicht vorhanden".

    29 Oh. cit., t. IV, n.o 71. nota 534, p. 48. 30 Nossa Preparao Dogmtica Jurdica, Prto Alegre, 1949, p. 50. 31 Societ Civile. n.o 413. Digesto Italiano. t. XXI. Turim, 1895-1902. p. 756.

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    priedade, ou titularidade, e a administrao, para atribuir-se, esta, a pessoa capaz". 32

    3. Sem embargo, no Direito Privado, pela natureza mesma de !'luas manifestaes, a atividade administrativa se nos apresenta dis-persa e mltipla, irredutvel a uma forma unitria. Diversamente, no Direito Pblico, a atividade administrativa, centralizada ou descen-tralizada, supe, em qualquer caso, um ncleo central unitrio, do qual ou para o qual procede, - um centro, enfim, que lhe atribui e mantm a unidade. 1l:sse centro o Estado.

    Em ambas as provncias jurdicas, o conceito de administrao, entretanto, no varia essencialmente, embora, no Direito Pblico, a influncia e as repercusses do conceito sejam incomensurvelmente mais extensas do que no Direito Privado. Na verdade, psto a ad-ministrao seja essencialmente uma relao, pela qual um fato ou um bem se vincula imediatamente a um fim, sse mesmo fim necess-riamente h de determinar, no somente o desenvolvimento da ativi-dade como tal, seno, tambm, a disposio e o aparelhamento do agen-te "quoad actionem". Se o agente fr, a exemplo do Estado, uma pes-soa jurdica, a disposio dle para a ao traduzir-se- por uma forma determinada de organizao. A atividade administrativa, real-mente, que determina a organizao administrativa do Estado. Cincia do Direito Administrativo, digamo-lo, de passagem, - e no do Direito Constitucional, pertence, destarte, bon droit, o estudo da organizao administrativa do Estado, ainda que fixada no direito positivo, por diplomas constitucionais.

    Dentro na noo de organizao, lato sensu, cabe, ainda, porm, o aparelhamento necessrio ao desenvolvimento da atividade administra-tiva: organon, sabido, significa precisamente instrumento. Nesse aparelhamento, a parte mais saliente constituda pelos bens do do-mnio pblico. Diz-se dsses bens que participam, e no mais alto grau, da atividade administrativa; e pode, com verdade, dizer-se que par-ticipam les da administrao, porque so parte instrumental, so r-gos ou pertenas materiais do agente, "inquantum ad actionem". A mesma ontologia ensina-nos que h unidade real, embora acidental, entre o operrio e a ferramenta, enquanto obra a realizar, - uni-dade, a que apropriadamente se chama unidade dinmica. 33 Unidade dinmica existe, por igual, entre o agente e os bens instrumentais, relativamente atividade administrativa a desempenhar. 34

    4. A pertinncia de um bem a uma pessoa, significando um se-nhorio sbre o bem, anlogo ao domnio, mas diverso dste, porque limitado pelo fim, que o mesmo bem est destinado a servir, - essa relao achamo-la j definida no mesmo Direito Romano, sob os tra-os do "jus sepulchri". L-se no Digesto de Justiniano, acrca da sig-

    32 Nossa Introduo ao estudo do Direito Administrativo Brasileiro. Prto Alegre. 19"2, 2, p. 20.

    33 Cardo Mercier. Ontologie. Louvain-Paris. 1923. n.o 76. p. 165. 3.. Nossa Preparao. cit . ps. 58 e 59.

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    nificao das palavras: "Verbum ilud "pertinere" latissime patete: nam est eis rebus petendis aptUln est, quae dominii nostri sint, et eis quas aliquo jure possideamus quamvis non sint nostri dominiti".35 Ora "pertinere" o verbo que as fontes elegem para caracterizar a relao nascida do "jus sepulchri", inconfundvel com o domnio. "Ei ad quem pertineat (sepulchrum)"; "si nem o erit ad quem peTtineat". diz-se no dito do Pretor. 36 A, talvez, a origem do smile, proposto por Jhering, guisa de soluo do problema do domnio pblico (meus cabelos pertencem-me), - nessa conceituao da pertinncia de uma coisa a uma pessoa, como relao ce senhorio, anloga ao domnio, mas distinta dste.

    Bens havidos como pertenas de cargos ou dignidades aparecem--nos, mais tarde, de resto, fora j da situao excepcional do "jU8 sepulchTi". Jorge de Cabedo anotou, em seu tempo: "Rex donavit cui-dam nobili oppida quaedam, declarando quod illa ei donabat com om-nibus suis pertinentiis, jUTisdictione et dominio, et cum patTonatibus Ecclesiarum ad Regem spectantibus in illisopdis". 37 Antnio Perez, sua vez, deixou-nos definida a compreenso do que, na poca, se en-tendia por pertenas em Direito Pblico: "per concessionem jurium aut donationem castro cum suis pertnentis, jurisdictionem non tmns-ferri ... unde ea concessione tantum comprehenduntur proventus qui ex castro peTcipiuntur".38 Unidos, tais direitos ou proventos, digni-dade de conde, chama-se-Ihes, noutros documentos e em melhor latim, "pertinentia comitatus". 39

    5. Nessa relao de pertinncia, nsita na noo de adminis-trao, funda-se tda a construo jurdica do domnio pblico.

    No poder haver, realmente, conceituao satisfatria do do-mnio pblico, que no faa lugar possibilidade de propriedade pri-vada sbre os bens que o compem, sem prejuzo, ou embarao de sua destinao administrativa. 40 Velho e revelho j no mesmo Di-

    35 Dig.. lib. L. tit. XVI. de verborum significatione. fr. 181. 36 Dig .. lib. XVII. tit. XII. de sepuIchro violato. fr. 3. princ.; cf. Carlo Fadda.

    Teoria della Propriet (Lezione. 1906.1907). Npoles. 1907. 7. p. 14. 37 Decisiones. Antuerpiae. 1934. Pars lI. dec. XIV. n.o 2. p. 19. 38 Praelectiones in Duodecim Libros Codicis Justiniani. ad lib. X. tit. X. n.o 5.

    Opera Varia Venetiis. 1738. t. lI, p. 177. 39 Brunner-V. Schwerin, Historia del Derecho Germanico. trad. de J. L. Alvarez

    Lopez, Barcelona. 1935, 18, p. 64. Outras frmulas " . cum omnibus Arimannibu5 et quod pertinet atf. comitatum";" cum Arimannia et cum serVI tio quod pertinet ad co mitat um" ; cf. Savigny, Storia del Diritto Romano nel Medio Evo. trad. de E. BoIlati, t. I. Turim, 1854, n.o 59. p. 117.

    40 Cf. Schaen, Deutsches Verwaltungsrecht. Holtzendorff's Enzyklopiidie der Rechtswissenschaft (herausgegeben von Josef Kohler). Leipzig-Berlim, 1914, t. IV, p. 285: Walter Jellinek, Verwaltungsrecht. Berlin, 1931. 22, p. 507; Bonnard, Prcis de Droit Administratif. Paris, 1935, p. 459: Waline, Manuel lmentaire de Droit Administratif. Paris. 1936. p. -1-69; nossos Princpios de Direito Administrativo Bra~ileiro. P~o Alegre. 1939, 7, p. 63; Tito Prates da Fonseca, Lies de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, 19-1-3. p. 276; Zanobini. Corw di Diritto Amministrcuivo. t. IV, Milo. 19-1-5. p. 32; Bitlsa. Dtrecho Admini,trativo. BuenOl Aires. 1947. t. 111, D. 678. p. -1-35, etc.

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    reito Romano, 41 sse aspecto do problema do domnio pblico agra-vado modernamente pela desenvoltura tcnica com que o Estado se move na gesto dos intersses pblicos, premido pela urgncia, filha da imperiosa continuidade, essencial execuo dos servios pblicos. Da a freqncia cada vez maior com que se verifica a incorporao de bens particulares ao domnio pblico, sem que se extinga sbre les, anterior ou concomitantemente, o domnio privado dos proprietrios, paralisado, apenas, em seu exerccio.

    Ora, somente um tipo de relao jurdica, diverso da figura do direito subjetivo (de que o domnio seguramente a expresso mais vigorosa), poder explicar a incorporao ao domnio pblico de bens vinculados, pelo lao da propriedade privada, a um sujeito de dirclto, estranho por completo atividade administrativa, de que aqules bens participam. 4~

    sse diverso tipo de relao jurdica, encontramo-lo, - fra diz-lo, mais uma vez, - na noo de administrao.

    6. O primado da destinao do bem, na construo jurdica do domnio pblico, revela-se, evidncia, pelas mesmas manifestaes exteriores dessa destinao. O uso pblico sob a forma de uso co-mum, , fora de dvida, o mais decisivo trmo de contraste entre o domnio pblico e a propriedade privada em seu exerccio normal.

    No nos cabe certamente retomar a secular discusso acrca da distino entre as "res jure genitum communes" e as "res publicae"; cabe-nos, antes, repetir, a tal prop:"ito, as expresses de Voet: "non hic occupatur disputatione prolixa, an res publicae distinguendae ve-niunt a rebus jure gentium commuinubus, an non ipsae res jure gen-tium communes vulgo dictae re ipsa sint publicae".43

    N a verdade, se entendemos que o conceito de domnio pblico se separa do de propriedade, a controvrsia escassamente poderia in-teressar-vos, versando, como versa, exatamente sbre a inapropriabi-lidade das "res comunes" e a propriedade pblica das "res publicae". A relao de pertinncia, que na noo de administrao se encerra, sobrepe propriedade e abstrai dela. "Quod dominium", - digamo-lo de passagem, - alm dos pertencentes ocasionalmente a particulares,

    41 Dig" lib. XLIII, tit. VIII. ne quid in loco publico. fr. 2. 23: - Privatae viae dupliciter accipi possunt: vel hae, quae sunt in agris, quibus imposita est servitus, ut ad agrum alterius ducant, vel hae, quae ad agros ducunt, per quae omnibus permeare liceut, in quae exitur de via consulari; et sie post illam excipit via, vel iter, vel actus od villam ducens; has ergo quae post consularem excipiunt in villas, vel in alias colonias ducentes, putem etiam ipsas publicas esse" (cf. Glck, Commentario alie Pandette, !ib. XLIII-XLIV. parte 111. trad. de V. Pouchain. Milo, 1905, p. 410); Dig. !ib. XLI, tt. I. de adquirendo rerum dominio. fr. 3 O: si in ripa fluminis, quae secundum agrum meum sit, arbor nata sit, meam esse ait (Celsus filius): quia solum ipsum meum privatum i1st, usus autem ejus publicus intelligitur": Cod .. lib. XI. tit. XLIII. de aqueductu. 1.9: ... cum essent ab initio fontes privati, postquam publice usum praebuerunt ... " (cf. Almeida e Sousa, Tratado das guas, Lisboa, 1827, 12. p. 8. e 50. p.-2V .

    ... 2 Nossa Preparao, cit.. p. 61. 43 Commentarius ad Pandectas, Hagae-Comitum. 1731. ad lib. I, tit. VIII. de

    divisione rerum. n.o 2.

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    os bens de uso pblico comum abrangem no Direito Romano os "com-munia omnium's "aer, aqua profluens, et mare"; 44 os "quae populi Romani sunt"; 45 "litora maris"; 46 "viae publicae"; 4i "flumina pu-blica"; 48 e os "communia civitatum", "veluti ... theatra, stadia et si-mila". 49 Com respeito a todos, porm, o uso comum assenta sbre o mesmo princpio: nenhum dos utentes pode excluir os demais. 50 J. B. Victor Proudhon advertiu, pois, oportunamente: " ... tout homme qui. se trouvant en position de jouir de ces choses conformment leur destination, en serait empch par un autre, prouverait une injustice raison de la.quelle il aurait le d1'oit de se pouvoir par-devant l' autorit comptente pour en obtenir rparation, puisqu' ~tn droit tabli pour tous peut tre revendiqu par tous". 51

    7. Ora, diametralmente oposto o princpio sbre o qual as-senta o exerccio da propriedade privada. A construo jurdica da propriedade privada baseia-se essencialmente sbre o direito de excluir.

    O reconhecimento cada vez mais ntido do contedo social da pro-priedade no mais permite, decerto, aplicar-lhe a conhecida palavra de Binding, que a definia como um buraco escuro ao centro de um crculo de normas. 52 Da essncia mesma da propriedade , no obs-tante, sse direito de excluir que, adversus omnes, se traduz, com re-lao a stes, por uma obrigao generalizada, consistente "na inao, isto , na absteno de qualquer ato que possa estorvar o direito". 53 E quando se diz que os direitos de crdito se originam e executam tam-bm erga omnes, afirma-se, a respeito dles, meramente uma virtude da propriedade, 54 tomada aqui em acepo mais ampla, compreenden-

    44 Cf. Dig .. lib. I. tit. VIII. de divisione rerum. fr. 2. 1. 45 Dig .. lib. L. tit. XVI. de verborum significatione. fr. 15. 46 Dig . lib. XLIII. tit. VIII. ne quid in loco publico. fr. 3. 47 Dig .. lib. XLIII. tit. XI. de via publica. fr. 2. 48 Dig .. lib. XXXIX. tir. lI. de damno infecto. fr. 24. 49 Dig .. lib. I. tit. VIII. de divisione rerum. fr. 6. I. 50 Dig .. lib. XLIII. tit. VIII. ne quid in loco publico. fr. 2. 12: "Damnum

    pati videtur. qui commodum amittit. quod ex publico consequebatur. qualequale sit". Cf. Portugal. De Donationibus Jurium et Bonorum Regiae Coronae. Lugduni. 1726. 1ib. III. capo VIII. n.o 26. p. 33; "Item observandum est: quod usus harum rerum communium ita omnibus competit. ut si quis in aliquo maris. aut fluminis publici di-verticulo fuerit usus. non poterit alius. eodem usu uti. dum primus in usu persisterit. Ex ea ratione. quw jan si mutuo se impedirent. et non conservaretur genus humanum; immo potius orirentur rixae et sequeretur contrarius effectus contra juris naturalis inten rum"; id . 1ib. III. capo IV, n.o 17. p. 12; "Nota tamen: quod licet omnibus licitum llt transire per viam public~ cum curru. si via est stricta. et duo currur simul transire nequeunt. unusque et alter invicem se impediunt, ille retrocedere debet qui fuit in culpa; ea vera cessante. quaestio forte dirimenda est".

    51 Troit du Domaine Publico t. I. Paris. 1843. n.o 16. p. 20. 52 Windscheid-Kipp. Lehrbuch des Pandektenrechts. Frankfurt am Main. 1906.

    t. I. 38. nota 3. p. 168: " ... das Bindingsche Wort von dem Loch im Zentrum eines Normenkreises".

    5 3 Teixeira de Freitas. Consolidao das Leis Civis, Rio de Janeiro. 1876. In-troduo. p. LXV.

    54 Teixeira de Freitas. ob. cit .. p. ClII.

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    do "a universidade dos objetos exteriores, corpreos e incorpreos. que constituem a fortuna ou patrimnio de cada um". 55

    Um juzo apressado levaria, de tal sorte, fcilmente concluso de que a propriedade privada e o domnio pblico so construes ju-rdicas que, antagnicas, nunca se teriam unido nem jamais poderiam vir a unir-se. A realidade, entretanto, bem diversa.

    8. O homem tem um corpo, ocupa um lugar no espao. As coi-sas corpreas acompanham-no nessa condio. Supostas, pois uma co-letividade de homens e uma coisa corprea, de uso comum, acessvel a todos, visto que "o uso por qualquer dles seria, sempre, num lo-cal e num momento dados, obstculo material ao uso dos demais". 641

    Materialmente, portanto, o utente de um bem do domnio pblico exclui, num lugar num momento dados, todos os demais, na mesma medida em que stes, juridicamente, no o podem excluir, a le, en-quanto ao uso do bem. Essa verificao fizeram-na j Ccero e Sneca.

    Ccero observou: "sed, quernadmodum, theatrum ut commune sit, recte tamem dici potest, ejus esse eum locum. quem quisque occupa-rit".57 E Sneca: "equestria omnium equitum Romanorum sunt: in illis tamen locus meus fit proprius, quem occupavi". 58

    No diferente a linguagem dos juristas clssicos, acrca das praias do mar, "quae populi Romani sunt". 59 Ulpiano escreveu: "quod si (quis ... ) in litore aedificet, licet in suo non aedificet, jure tamem gentium suum facit".60 Mas sse suum limitado no tempo; dura, apenas enquanto dura a ocupao privada: " ... aedificio dilapso, quasi jure postliminii revertitur locus in pristinam causam; et si alius in eodem loco aedificaverit, ejus fiet". 61

    Quanto s "res communes omnium", os mesmos so os rumos da jurisprudncia clssica. Ulpiano a estas equiparava-lhes j as praias do mar: " ... mare com mune omnium est, et litora, sicuti aer". 62 E essa foi, de resto, por intermdio de Marciano. 63 a lio recebida nas Institutas: " ... naturali jure communia sunt omnium haec: aer, aqua. profluens, et mare et per hoc litora".64

    Ainda que os textos o no dissessem, como dizem, fora de dvida , porm, que o uso individual da coisa, de uso pblico comum, have-ria de importar necessriamente uma excluso conatural de uso idn-tico da mesma coisa, ao mesmo tempo, no mesmo lugar. As leis da natureza no subjazem s leis jurdicas.

    55 Teixeira de Freitas. ob. cit .. p. LXIX. 56 Nossos Princpios. cit .. 20. p. 285. 57 De Finibus. lib. III. capo XX (Ed. Didot. Paris 1875. t. I1I); cf. Alfred

    Pemice. Marcus Antistius Labeo. Das Rmische Privatrecht im ersten Jahrhunderte der Kaiserzeit. t. I. Hal1e. 1873. p. 271.

    58 De Beneficiis. !iv. VII. capo XII (Ed. Didot. Paris. 1877). 59 Cf. Dig .. lib. XLIII. tt. VIII. ne quid in loco publico. fr. 3. 60 Dig .. !ib. XXXIX. tt. I. de operis novi nuntiatione. fr. 1. 18. 61 Dig.. !ib. I. tt. VIII. de divisione rerurn. fr. 6. 62 Dig.. lib. XL VIII. tt. X. de injuriis. fr. 13. 7. 63 Dig .. lib. I. tt. VIII. de divisione rerurn. fr. 2. 1. 64 Inst.. !ib. 11. tt. I. de divisione rerurn. 1.

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    9. Traduzir-se-, acaso, nesse uso, comum, - comum, juridica-mente; exclusivo, fisicamente, - uma forma anmala de propriedade, tal a propriedade coletiva, ou seja, a compropriedade, sem autonomia de quinhes individuais? 65

    Parece-nos que no. O modlo, que essa construo jurdica re-produz, ainda o da propriedade individual. O uso individual da coisa, de uso pblico comum, retrata, ainda que imperfeitamente, a fi-gura jurdica da ocupao, enquanto modo de adquirir.

    Das coisas, de uso comum, do domnio pblico. Nercio disse, ex-celentemente: "nec dissimilis conditio eorum est, atque piscium et feraJ'um; quae simul atque adprehensae sunt, sine dubio ejus, in cujus potestatem pervenerunt, d01ninii fivnt". UG Um trao apenas falta semelhana: a perpetuidade do domnio assim adquirido. Vinnio si-nalou, a sse propsito, com exatido: "non simpliciter et absolute occllpantis fiunt, sed dll1ntaxat interea dum occupat".6i

    Aos dois conceitos, de propriedade privada e o de domnio p-blico, o caracterstico, neste ltimo, do uso comum, indica-lhes, pois, uma formao correlata, em que um trao, apenas, opera como divi-sor fundamental. sse trao o tempo. Na propriedade privada, a virtualidade do uso individual entende-se perptua; no domnio p-blico, transitria.

    10. A perpetuidade da propriedade romana explica-se, de modo imediato, por causas polticas. "Era a propriedade genuna do povo qurite, - a observao de Pietro Bonfante, - um direito sbre a coisa, ilimitado no espao e no tempo, direito que. sbre o imvel, tem todo o carter, todo o esprito de uma verdadeira soberania territorial, fechada em si mesma e independente". 68

    H nessa perpetuidade, entretanto, uma convenincia manifesta com a essncia espiritual do homem: "expresso de nossa vontade s-bre a natureza fsica, o domnio aspira a ter extenso igual da nossa prpria vontade". 69 Na verdade, se o esprito imortal, perptuo deve ser, tambm, o domnio, por que le afirma o seu primado sbre as coisas.

    A perpetuidade , ao demais, a vocao metafsica do homem. O "lan" ontolgico, que se ergue da matria, vitalizvel, vida, espiri-tualizvel, e desta, ao esprito, nalguma medida e pela graa, deific-vel, 70 traduz-se, face ao tempo, por um correspondente esfro de li-bertao: do tempo intrnseco, que o da matria, chumbado con-

    65 Planiol. Trait lmentaire de Droit Civil, t. I. Paris. 1925. n.o 3.005. p. 985. Exempli gratia. Waline. Les Mutations Domaniales, Paris. 1925. p. 196: "Nous diron3 done, avee M. Planiol, que le Domaine Public est la proprit collective de la Nation".

    66 Dig .. lib. XLI. tt. I. de adquirendo rerum dominio. fr. 14. 67 "Institutionum Imperialium Commentarius, Lugduni. 1755. libr. lI. tt. I. de

    divisione rerum. n.o 3. 68 Storia dei Diritto Romano, t. I. Milo. 1923. p. 179. 69 Lacerda de Almeida. Direito das COIsaS, t. I. Rio de Janeiro. 1908. 9. p. 76. 70 M. BlondeI. L'tre et les tres (Essai d'une Ontologie concrete et intgrale) ,

    Paris. 1935. p. 116.

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    dio desta, permanente mas corruptvel, ascende-se um degrau, na escala da liberdade, para atingir o tempo discreto ou descontnuo, se-qncia de operaes vegetativas e sensitivas, que o da vida,71 e dste, mais um degrau ainda, para alcanar o eviterno, no qual o es-prito, de alguma forma, participa da divina eternidade, 72 que , afi. nal, possuvel pela contemplao eviterna, a verdadeira libertao de todo o tempo. 73 Nesse lan supremo, as coisas suspendem-se ao ho-mem, alam-se com le ao eviterno, servindo-lhe como de lastro na ascenso e como de anteparo irradiao cegante da luz divina. 74

    O domnio, o vnculo jurdico, pelo qual essas mesmas coisas se prendem ao homem, no poderia, pois, deixar de sobrepor-se ao tempo, comensurando-se, antes, eviternidade, a que o homem as arrasta em subida ciclicamente incessante pelos degraus do ser. A administrao, ao contrrio, como tipo distinto de relacionamento jurdico, vincula os bens do domnio pblico, a um fim essencialmente temporal, abstrain-do, por completo, da pessoa, a cujo destino moral se encontrem les ligados pelo lao da propriedade.

    Pela administrao pblica, prov-se aos fins da Cidade terrena, - "ad tuendam civium securitatem et ad vitam civilem tam commo-diorem quam jucundiorem efficiendam, totiusque reipublicae salutem et prosperitatem promovendam".75

    Mas, de qualquer maneira, como o cu se pode refletir na poa dgua, e a eternidade no tempo, assim tambm a propriedade privada, em tda a sua grandeza, sub specie aeterni, reflete-se na construo jurdica, sub specie temporis, do domnio pblico.

    No se trata de conceitos antagnicos; so como linhas paralelas, e, como a estas, podemos ns uni-los, se nos alteamos sbre o finito, e, do infinito, os consideramos.

    71 Bergson. L'volutiotl Cratrice, Paris. 1829. p. 31: -.. on pourrait dire de la vie, comme de la conscience, qu' chaque instant elle cre quelque chose".

    72 Santo Agostinho. De Civitate Dei, lib. 111. capo XIV (Opera Omnia" Ed. Migne. t. VII. Parisiis. 1841): ... a temporalibus ad aeterna capienda".

    73 Nossa Preparao, cit .. p. 66. 74 M. Blondel. ob. cit.. p. 13 7: "lIs ont done pour ainsi dire un SQf't eommun

    et ne peuvent se passer entieremente les uns des autres, soit pour raliser leur propre dgr d'existence en participant des formes suprieures, soit pour se servir de lest dans leur ascension et comme d'cran contre [,irradiation aL'euglante d'une divine lumiere".

    75 Warnkoenig. Institutiones Juris Romani Privati, Bonnae. 1834. 33, p. 10.