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A TRANSIÇÃO DA SOCIEDADE INDUSTRIAL PARA A SOCIEDADE DE RISCO

O modelo de sociedade contemporâneo apresenta característi-cas próprias, diversas dos modelos até então conhecidos. A partir do crescimento industrial e seus reflexos no meio ambiente, na saú-de humana, na estrutura familiar e no indivíduo, constata-se um pa-norama assustador em que a civilização ameaça a si mesma. Ulrich Beck5 a denomina sociedade de risco. Esclarece José Rubens Morato Leite6 que “o surgimento da sociedade de risco designa um estágio da modernidade no qual começam a tomar corpo as ameaças pro-duzidas até então pelo modelo econômico da sociedade industrial”.

Afirma Beck7 que, assim como no século XIX “a modernização dissolveu a esclerosada sociedade agrária estamental e, ao depurá--la, extraiu a imagem estrutural da sociedade industrial, hoje a mo-dernização dissolve os contornos da sociedade industrial e, na con-tinuidade da modernidade, surge uma outra configuração social”. Verifica-se a crescente diferenciação entre a modernidade dos dias atuais e aquela do período industrial clássico, que teve o seu ápice em meados do século XIX e, gradativamente, vem sofrendo trans-formações, decorrentes do esgotamento do modelo de produção.

Uma das principais características da modernidade atual (de-nominada modernidade tardia) é a produção social de riscos, que sistematicamente acompanha a produção de riquezas. A busca constante pelo crescimento econômico em todo o planeta apresen-ta, como consequência inevitável, o desencadeamento de riscos e potenciais de autoameaça numa medida até então desconhecida pelo ser humano.

5 2010.6 2007, p. 131.7 2010, p. 13.

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Ulrich Beck8, ao analisar as características da sociedade con-temporânea, afirma que

Modernização significa o salto tecnológico de racionalização e a transformação do trabalho e da organização, englobando para além disto muito mais: a mudança dos caracteres sociais e das biografias padrão, dos estilos e formas de vida, das estruturas de poder e controle, das formas políticas de opressão e parti-cipação, das concepções de realidade e das normas cognitivas. O arado, a locomotiva a vapor e o microchip são, na concep-ção sociocientífica da modernização, indicadores visíveis de um processo de alcance muito mais profundo, que abrange e reconfigura toda a trama social, no qual se alteram, em última instância, as fontes de certeza das quais se nutre a vida (Ko-selleck, 1977; Lepsius, 1977; Eisenstadt, 1979). Normalmente, distingue-se entre modernização e industrialização. Aqui, por razões de simplificação da linguagem, utilizaremos preponde-rantemente “modernização” como conceito generalizante.

Os impactos ambientais, um dos efeitos colaterais do cresci-mento econômico na sociedade industrial, não passam mais des-percebidos, como acontecera outrora. O desenvolvimento crescen-te das forças produtivas apresenta-se como catalisador dos impac-tos negativos das forças destrutivas, que assolam cada vez mais os recursos naturais disponíveis.

Talvez já se esteja vivenciando, há algum tempo, o processo de convergência dos conflitos da sociedade “que distribui riquezas” com os da sociedade “que distribui riscos.” 9

A análise dos riscos gerados na modernização assume relevân-cia na medida em que se referem a ameaças globais, que afetam ou podem afetar toda a humanidade de maneira indiscriminada, como o efeito estufa e a utilização da energia nuclear. A destruição da co-bertura florestal em âmbito global é fator preponderante para as mudanças climáticas verificadas hodiernamente. Dessas alterações de clima decorrem múltiplas consequências sociais e políticas.

Como se não bastasse a magnitude do seu alcance, as ameaças globais na sociedade de risco ainda se caracterizam por não faze-

8 2010, p. 23.9 BECK, 2010, p. 25.

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rem alarde. Os seus impactos sobre a saúde humana e o meio am-biente são muitas vezes sensorialmente imperceptíveis, como no caso do aumento gradativo da temperatura da atmosfera do plane-ta e o derretimento das calotas polares.

Para Ulrich Beck10, é possível apontar cinco vertentes para a análise da arquitetura social e a dinâmica política dos potenciais de autoameaça civilizatória verificados atualmente.

A primeira delas relaciona-se aos riscos, sobretudo àqueles pro-duzidos no estágio mais avançado do desenvolvimento das forças produtivas. Tais riscos, invisíveis, desencadeiam danos ambientais, não raras vezes irreversíveis. A radioatividade, as mudanças climá-ticas, as toxinas presentes na água, no ar e nos alimentos e seus efeitos sobre animais, plantas e seres humanos constituem exem-plos objetivos de efeitos colaterais decorrentes da industrialização.

A partir da disseminação dos riscos, surgem novas situações sociais de ameaça, segunda vertente examinada pelo referido au-tor. Tratando-se de riscos globais, todos os seres humanos, indis-tintamente, passam a sofrer a ameaça dos efeitos da moderniza-ção. Beck visualiza a implosão da divisão de classes, tendo em vista que nem os mais ricos e nem os menos favorecidos estão seguros diante das novas ameaças globais. Trata-se do denominado “efeito bumerangue”, tendo em vista que “os riscos da modernização cedo ou tarde acabam alcançando aqueles que os produziram ou que lu-cram com ele”.

A terceira vertente relaciona-se à expansão dos riscos, que, se-gundo o autor, de modo algum rompe com a lógica capitalista de desenvolvimento. Há setores da sociedade e da economia interes-sados em explorar o “barril de necessidades sem fundo” em que se transformaram os riscos civilizatórios. Nessa esteira, setores da sociedade industrial teriam interesse em produzir as situações de ameaça, para continuar perseguindo o lucro e as possíveis vanta-gens dela decorrentes.

Deve haver, segundo Beck11, análises sociológicas e teorias do surgimento e da disseminação do conhecimento sobre os riscos.

10 2010.11 2010, p. 28.

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De acordo com a quarta vertente, “é a consciência que determina a existência”.

A quinta vertente analisa um ingrediente político novo, verifi-cado a partir da modernização: o combate às “causas” no processo de industrialização. A partir do momento em que os riscos social-mente reconhecidos emergem claramente, impõe-se a discussão do potencial destruidor das catástrofes. Cumpre rememorar que os riscos podem apresentar efeitos colaterais não apenas ao meio am-biente, mas também efeitos sociais, econômicos e políticos.

José Joaquim Gomes Canotilho12 também realça a nítida al-teração das características dos impactos negativos sobre o meio ambiente decorrentes das atividades industriais, estabelecendo a cronologia de gerações de problemas ecológicos e ambientais. Para o constitucionalista português, os problemas ecológicos e ambien-tais de primeira geração estavam relacionados a impactos pontuais, visíveis e perceptíveis, verificados, sobretudo, no auge da Revolu-ção Industrial, época em que as consequências da industrialização eram evidentes. A ausência de atuação estatal comprometia os serviços mais elementares essenciais à manutenção da qualidade do ambiente humano, como o fornecimento de água, a limpeza das vias públicas, condições de habitação e de salubridade. Concomi-tantemente, agravavam-se outras mazelas sociais, como a violência, os casos de alcoolismo e o suicídio.

Entretanto, a intensificação da atividade industrial e a utilização de novas tecnologias vêm alterando as características dos impactos sobre o meio ambiente e a saúde humana. Para Canotilho13, trata-se dos problemas ecológicos e ambientais de segunda geração, carac-terizados por apresentarem “efeitos combinados dos vários facto-res de poluição e das suas implicações globais e duradouras, como o efeito estufa, a destruição da camada de ozônio, as mudanças cli-máticas e a destruição da biodiversidade”. Torna-se evidente que a relação entre os efeitos negativos e as suas implicações globais e duradouras “colocam em causa comportamentos ecológicos e am-

12 2007.13 2007, p. 2.

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bientalmente relevantes das gerações actuais que, a continuarem sem a adopção de medidas restritivas, acabarão por comprometer, de forma insustentável e irreversível, os interesses das gerações fu-turas [...]”.

Na sociedade de risco, a ciência, nos mesmos moldes de sua atu-ação na sociedade industrial, tenta demonstrar total controle so-bre os efeitos negativos de determinadas atividades sobre o meio ambiente. Entretanto, não remanescem dúvidas de que as ameaças tornaram-se incalculáveis, e que seus impactos nefastos são cada vez maiores. O mais preocupante é que as ameaças incalculáveis são, na sociedade de risco, “constantemente eufemizadas e triviali-zadas em riscos calculáveis”, critica Ulrich Beck14.

2.1 A quebra do monopólio da ciência e a indeterminabi-lidade dos riscos

É necessária a utilização de nova forma de interpretar os dados científicos, para que a sociedade perceba, efetivamente, os efeitos dos impactos negativos sobre o meio ambiente, a saúde humana e suas próprias vidas. A divulgação de dados científicos desvincula-dos de seus efeitos para o homem apresenta-se como medida inó-cua e que não incentiva a tomada de decisões no sentido da preser-vação do meio ambiente. Como adverte Beck15, hoje

[...] os resultados, regionalmente diferenciados, são expostos ao público apavorado em “mapas ambientais” coloridos. [...] ou bem se presume abrangentemente que todas as pessoas – inde-pendentemente de renda, educação, profissão e dos respectivos hábitos e possibilidades de alimentação, habitação e lazer – são igualmente expostas nos centros regionais de contaminação averiguados, ou então, em última instância, deixam-se inteira-mente de lado pessoas e o alcance de sua preocupação, tratan-do-se então unicamente das substâncias tóxicas, de seus efeitos e de sua distribuição regional.

Os riscos da modernização apresentam viés extremamente pe-rigoso: normalmente são imperceptíveis aos sentidos humanos. Como exemplos, tem-se o efeito estufa (e a consequente mudança

14 1997, p. 216.15 2010, p. 30-31.

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climática), as substâncias tóxicas nos alimentos e as contaminações nucleares. Além de imperceptíveis, os efeitos nocivos dos impactos da modernização são incalculáveis e imprevisíveis, o que necessa-riamente deverá direcionar o ser humano no sentido de medidas de precaução atinentes a danos futuros. Não basta mais a atuação no sentido da reparação de danos pontuais, já verificados. Imperioso reconhecer a necessidade de utilização de instrumentos para evitar a concretização de danos ao meio ambiente.

A suposta racionalidade da ciência não é mais suficiente para as definições do que seja risco. Para Beck16, “a pretensão de raciona-lidade das ciências de determinar objetivamente o teor de risco do risco refuta-se a si mesma permanentemente: ela baseia-se, por um lado, num castelo de cartas de conjecturas especulativas e move-se unicamente no quadro de asserções de probabilidade [...]”.

A pretensa racionalidade dos cientistas, que se esforçam para definir os riscos da modernização, acaba por se tornar um proble-ma, na medida em que esses riscos não podem ser efetivamente calculados. Para José Rubens Morato Leite17, “pode-se afirmar que a sociedade moderna criou um modelo de desenvolvimento tão com-plexo e avançado, que faltam meios capazes de controlar e discipli-nar esse desenvolvimento”.

Tendo em vista a quebra do monopólio da ciência e a indetermi-nabilidade dos riscos, setores específicos interessados se utilizam de uma série de dados que lhes convém para justificar sua atuação e a manutenção de suas atividades. Constata Beck18 que “cada ponto de vista interessado procura armar-se com definições de risco, para poder dessa maneira rechaçar os riscos que ameacem seu bolso”. Todavia, a qualidade do meio ambiente acaba prejudicada nessa ba-talha “em torno das definições de risco mais lucrativas” na medida em que não se consegue efetivamente apontar quais são os verda-deiros riscos existentes em cada tipo de atividade e/ou tecnologia.

Fato é que os efeitos negativos sobre o meio ambiente são efe-tivamente produzidos, independentemente dos argumentos utili-

16 2010, p. 35.17 2007, p. 132.18 2010, p. 36.

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zados pelas mais diversas correntes científicas que investigam as possíveis causas dos impactos ambientais na modernidade.

Configura característica da sociedade de risco a interdependên-cia sistêmica dos atores da modernização da economia e a conse-quente ausência de causas específicas e responsabilidades determi-náveis. Como as atividades normalmente estão interrelacionadas, torna-se muito difícil apontar, de maneira precisa, qual dos atores é o responsável pelos impactos negativos sobre o meio ambiente. Para Ulrich Beck19, “a altamente diferenciada divisão do trabalho implica uma cumplicidade geral e esta, por sua vez, uma irrespon-sabilidade generalizada”. E esta irresponsabilidade generalizada é um dos fatores que acabam por popularizar a ideia sistêmica, a par-tir da qual não é possível identificar quaisquer responsabilidades pessoais.

Cumpre constatar que os riscos da sociedade atual não se li-mitam aos impactos negativos já verificados. Há, sem sombra de dúvida, um componente futuro a ser levado em consideração. Afir-ma Beck20 que “riscos têm [...] fundamentalmente que ver com an-tecipação, com destruições que ainda não ocorreram, mas que são iminentes, e que, justamente nesse sentido, já são reais hoje”. São exatamente esses riscos futuros iminentes que precisam ser evi-tados e, para tanto, há inúmeros instrumentos, inclusive jurídicos, que precisam ser utilizados, como será analisado adiante. Afirma José Rubens Morato Leite21 que “[...] o risco, atualmente, é um dos maiores problemas enfrentados quando se objetiva uma efetiva proteção jurídica do meio ambiente”.

A grande dificuldade em se trabalhar com riscos é que eles não são evidentes, não são aparentes. Ademais, apresentam-se, de for-ma dúplice, como reais e irreais. Irreais na medida em que seus efeitos são imperceptíveis no momento da análise, e reais tendo em vista suas inevitáveis consequências sobre o meio ambiente e saúde humana, verificáveis com o decurso do tempo. Como exem-

19 2010, p. 39.20 2010, p. 39.21 2007, p. 133.

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plo, podem ser mencionados os riscos decorrentes do aquecimento global. O ser humano, em razão da sua imensa capacidade adapta-tiva, não consegue perceber no presente os riscos do aumento da temperatura do planeta relacionada à emissão de gases de efeito estufa. Todavia, os seus efeitos são evidentes, e serão comprovados no futuro, seja ele próximo ou mais distante, e certamente afetarão a vida das gerações vindouras em todo o planeta. Afirma Beck22 que

Na discussão com o futuro, temos, portanto, de lidar com uma “variável projetada”, com uma “causa projetada” da atuação (pessoal e política) presente, cuja relevância e significado cres-cem em proporção direta à sua incalculabilidade e ao seu teor de ameaça, e que concebemos (temos de conceber) para definir e organizar nossa atuação presente.

Para Leite23, “os riscos possuem, agora, grande aptidão de ex-por uma série indeterminada de sujeitos a estados de desfavora-bilidade, estendendo-se potencialmente em uma escala global, e afetando, também, os membros das futuras gerações (...)”, e decor-rem de decisões atribuíveis à limitada participação de membros da presente geração, “responsáveis pela proliferação de riscos globais, intergeracionais”.

Essas singularidades demonstram que esses riscos devem ser considerados efeitos reais das atividades industriais, que causam e poderão causar graves danos ao meio ambiente e à saúde humana. É preciso abandonar a concepção de risco adotada atualmente. O termo risco não pode comportar a acepção de algo inexistente sim-plesmente por ser imperceptível. Imprescindível substituir, o quan-to antes, o brocardo in dubio pro progresso pela máxima in dubio pro natura.

2.2 A enorme amplitude das ameaças decorrentes dos da-nos ambientais

Como se pode perceber, a luzes claras, a partir de simples cons-tatações da realidade atual, as classes sociais menos favorecidas são as mais afetadas e prejudicadas com os efeitos da degradação

22 2010, p. 40.23 2007, p. 134.

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do meio ambiente. Confirmando tal constatação, Ulrich Beck24 afir-ma que “as riquezas acumulam-se em cima, os riscos em baixo”. As classes mais abastadas possuem recursos e condições materiais para se protegerem contra eventuais prejuízos decorrentes dos riscos. Já as classes menos favorecidas economicamente sofrem as mazelas ambientais, como a contaminação, as doenças e a escassez de recursos naturais disponíveis.

Todavia, a característica de ubiquidade, onipresença, que mar-ca o meio ambiente, revela viés relevante da sociedade de risco: as consequências atingirão, cedo ou tarde, tanto os menos favorecidos quanto os mais abastados financeiramente. A escassez de água no planeta, os teores tóxicos do ar que respiramos e o aquecimento da temperatura em todos os continentes são exemplos de como os efei-tos nocivos decorrentes da sociedade de risco são metaindividuais.

Fato é que as ameaças e os efeitos negativos sobre o meio am-biente desconhecem barreiras e fronteiras políticas, universalizan-do-se. O local onde é desenvolvida a atividade impactante pouco interessa em tempos de produção industrial de alta escala, uma vez que os seus efeitos deletérios espalham-se, inevitavelmente, por todo o planeta, seja pelo ar, seja pela água, seja pelo solo. Os ris-cos da modernização tendem, portanto, a globalizarem-se. Afirma Beck25 que “o teor de acidez do ar carcome não apenas esculturas e tesouros artísticos, mas há muito corroeu também os marcos de fronteira”.

A onipresença dos efeitos perniciosos sobre o meio ambiente e sobre a saúde humana apresenta, portanto, característica marcan-te: aqueles que produzem e lucram com as atividades que geram os riscos serão também, em determinado momento, afetados por eles. Dessa forma, aqueles que consideram determinados impactos como meros “efeitos colaterais” do desenvolvimento econômico passam, também, a sofrer eles mesmos as consequências causadas por suas atividades. Afirma Ulrich Beck26 que “os antigos ‘efeitos

24 2010, p. 41.25 2010, p. 43.26 2010, p. 45.

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colaterais imprevistos’ tornam-se assim efeitos principais visíveis, que ameaçam seus próprios centros causais de produção”.

Na medida em que os efeitos negativos afetam todos os habitan-tes do planeta, a ameaça paira sobre pobres e ricos, cristãos e mu-çulmanos, do Oiapoque ao Chuí, do Ártico à Antártica, de maneira indistinguível.

E tudo o que ameaça a vida e o planeta é passível de ameaçar, por via de consequência, tudo o que nele se encontra, como os próprios interesses de propriedade e de comercialização dos mais variados bens, além das garantias sociais até então conquistadas. Verifica-se nítida e crescente contradição, na medida em que os interesses de lucro e propriedade que alavancam o processo de industrialização também intensificam suas consequências ameaçadoras, que afetam negativamente os lucros e a propriedade (para não falar da vida e da dignidade da pessoa humana).27

Ulrich Beck28 faz questão de enfatizar a amplitude dos efeitos negativos produzidos pela sociedade de risco, realçando a indefi-nição de classes específicas nesse caso. Segundo o autor, “sofrer o impacto e não sofrer o impacto não se polarizam como ter proprie-dade e não ter”. Na verdade, no caso dos riscos ao meio ambien-te, pode-se afirmar que “à ‘classe’ dos afetados opõe-se, na melhor das hipóteses, a ‘classe’ dos ainda-não-afetados”. Mais cedo ou mais tarde todos sofrerão os efeitos perniciosos da degradação do meio ambiente.

Desata a compreensão de que é preciso analisar e reformular, com urgência, os conceitos de desenvolvimento sustentável, pro-gresso, bem-estar, crescimento econômico e racionalidade cien-tífica, tendo em vista estarem se tornando insuficientes para fun-damentar as medidas essenciais de proteção da quantidade e da qualidade dos recursos naturais disponíveis. E na medida em que se repensa e se redefine tais conceitos, urge que sejam utilizados todos os instrumentos adequados disponíveis de proteção pelo Po-der Público, sob pena de inviabilização da manutenção e restaura-

27 BECK, 2010.28 2010, p. 47.

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ção do equilíbrio ambiental. Para o filósofo alemão Hans Jonas29, “no momento, tudo que podemos dizer é que, na zona onde pene-tramos com nossa técnica, e onde de agora em diante devemos nos movimentar, a senha é a prudência, e não o exagero”.

A globalização das ameaças ambientais, que desconhece a di-visão de classes tradicional, não esconde, por outro lado, as enor-mes desigualdades sociais verificadas a partir dos efeitos diretos das atividades desenvolvidas na sociedade de risco. A população mais carente é a que, sem dúvida, sofre as mais graves consequên-cias dos impactos negativos sobre o meio ambiente. Desse modo, constata-se o surgimento de novas desigualdades internacionais, regionais e locais, decorrentes dos riscos produzidos pelas ativida-des industriais.

Os impactos ambientais, verificados recentemente, não podem ser estudados a partir de análise superficial das questões sociais. Para alguns, não se pode falar em proteção ambiental quando, pa-ralelamente, muitas regiões do planeta são assoladas por mazelas sociais, como a fome e a pobreza. Lembra Ulrich Beck30 que “na con-corrência entre a morte pela fome, visivelmente iminente, com a morte por intoxicação, iminente, mas invisível, impõe-se a premên-cia do combate à miséria material”. Importa constatar, contudo, que as questões sociais estão intrinsecamente vinculadas às questões ambientais, e que não raras vezes são agravadas pelas mesmas. Em inúmeras ocasiões, os empreendimentos que geram risco elevado são transferidos para os países periféricos, cuja população irá so-frer seus impactos negativos diretos. Pode-se exemplificar tal situ-ação com exemplos, infelizmente, notoriamente conhecidos, como Bhopal, na Índia, e Cubatão, no Brasil.

O acidente químico ocorrido na Índia em 1984 é considerado a pior catástrofe química da história. Quarenta toneladas de isocia-neto de metila e outros gases letais escaparam da usina de pestici-das da Union Carbide, em Bhopal. Muitas das vítimas, em sua gran-de maioria população carente, ainda pleiteiam indenização pelos enormes danos sofridos em decorrência do acidente.

29 2006, p. 295.30 2010, p. 50.

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Já em Cubatão, duas explosões e o incêndio causados por va-zamento de gás causaram a morte de cento e cinquenta pessoas, mais especificamente em Vila Socó, Brasil, no ano de 1984. A polui-ção decorrente do acidente petroquímico e das atividades indus-triais era tamanha que houve registro de crianças que nasceram anencéfalas.31

Mas se os impactos negativos diretos afetam, num primeiro mo-mento, as populações mais carentes de países periféricos, afetarão, via de consequência, os países desenvolvidos, desencadeando o já mencionado efeito bumerangue. Afirma Beck32 que “o efeito bume-rangue também acaba por afetar os países ricos, que justamente se haviam livrado dos riscos através da transferência, mas que aca-bam reimportando-nos junto com os alimentos baratos”.

2.3 Ameaças imperceptíveis Importa enfatizar uma relevante e preocupante característica

dos riscos criados na sociedade contemporânea: apresentam-se, na maioria das vezes, como ameaças imperceptíveis. Como o ser humano é dotado de enorme capacidade de adaptação, ele não é hábil o suficiente para perceber os gradativos impactos negativos causados por sua atividade sobre o meio ambiente.

Ulrich Beck33, ao comparar as sociedades de risco com as socie-dades de classe, afirma, em relação a essas últimas, que

Sociedades de classe são sociedades nas quais, para além das trincheiras de classe, a disputa gira em torno da conspícua sa-tisfação das necessidades materiais. Contrapõem-se fome e far-tura, poder e impotência. A miséria não exige qualquer medida de autoafirmação. Ela existe. Sua imediatez e obviedade corres-pondem à evidência material da riqueza e do poder. As certezas das sociedades de classe são, nesse sentido, as certezas da cul-tura da visibilidade: a fome esquelética contrasta com a robusta saciedade, os palácios, com as choças, o fausto, com as migalhas.

Nas sociedades de risco, por outro lado, os impactos negativos são subliminares. A temperatura do planeta eleva-se gradativamen-

31 THOMÉ, 2013a.32 2010, p. 53.33 BECK, 2010, p. 54.

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te, degelando lentamente as superfícies dos pólos. As barreiras de coral, pouco a pouco, vão perdendo vida e impactando a cadeia ali-mentar ao seu redor. Os alimentos, mais tóxicos, integram o cardá-pio de seres humanos e animais, causando doenças que se apresen-tam perceptíveis somente após alguns anos. O ritmo dos impactos ambientais, lento para a percepção humana, mas veloz levando-se em consideração o cronograma de existência do planeta, interfe-rem na qualidade e nas condições mínimas indispensáveis à vida na Terra.

Para Michel Prieur34, os impactos imperceptíveis e progressivos configuram, gradativamente, recuos nos níveis de qualidade am-biental, ameaçando cada vez mais a vida no planeta.

A carência material e a falibilidade da ciência acabam por ofuscar a percepção dos riscos. Todavia, aguardar que os riscos se transformem em perigos perceptíveis e agudos para que sejam to-madas providências efetivas pode significar mudanças ambientais irreversíveis, para pior. Tal contradição está presente nas principais discussões sobre proteção ambiental na sociedade de risco, sendo, inclusive, denominada por Anthony Giddens35, ao abordar as ques-tões relacionadas às mudanças climáticas, de paradoxo de Giddens.

Compete salientar, ainda, o inegável interesse de alguns grupos em continuar a produzir ameaças, minimizando-as em suas argu-mentações, exatamente a patir da dificuldade natural dos seres hu-manos em notá-las. Tais grupos, beneficiados com a manutenção do ritmo acelerado de crescimento econômico e a utilização desmedi-da dos recursos naturais, geralmente tentam desqualificar os ar-gumentos daqueles que apontam os efeitos deletérios progressivos das atividades antrópicas sobre o meio ambiente.

A racionalidade atribuída à ciência é utilizada para minimizar os impactos negativos sobre o meio ambiente. Como ensina Beck36, “a confiança na ciência e na pesquisa é professada. Sua racionali-dade teria sido capaz até hoje de encontrar soluções para todos os

34 2011.35 2010.36 2010, p. 55.

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problemas. A crítica à ciência e as inquietações em relação ao fu-turo, em contraposição, são estigmatizadas como irracionalismo”.

2.4 A infinita gama de fontes de informaçãoMuitos grupos, interessados na manutenção de suas atividades,

utilizam-se de argumentos e dados científicos para desqualificar ameaças ao meio ambiente e à saúde humana, geralmente basea-dos na falta de respostas científicas sobre o impacto de determi-nadas atividades, confirmada pela própria ciência. A racionalidade científica, característica marcante das sociedades contemporâneas, acaba sendo utilizada pelos grupos interessados para a manuten-ção de suas atividades.

Na sociedade marcada pela infinidade de fontes de informação, tornou-se possível a produção (forjada) da definição de riscos, de acordo com interesses e lobbies específicos. Dados científicos são selecionados levando-se em consideração a necessidade de argu-mentação técnica a ser utilizada para justificar situações determi-nadas. Exatamente por isso, autores como Ulrich Beck37 afirmam caracterizar-se a sociedade de risco, também, como a sociedade da ciência, da mídia e da informação.

Para o sociólogo alemão38,Sociedades de risco não são sociedades de classes – mas isto ainda é pouco. Elas contêm em si uma dinâmica evolutiva de base democrática que ultrapassa fronteiras, através da qual a humanidade é forçada a se congregar na situação unitária das autoameaças civilizacionais. A sociedade de risco dispõe, nessa medida, de novas fontes de conflito e de consenso. Em lugar da superação da carência, entra a superação do risco.

Ademais, mostra-se importante acentuar que existe grande di-ficuldade de proteção dos interesses metaindividuais, como o meio ambiente ecologicamente equilibrado, por parte das organizações políticas. Verifica-se a incompetência do Poder Público em adotar medidas pontuais e efetivas de combate às ameaças geradas pela sociedade de risco. Interesses de grupos e o corporativismo de cer-tos setores ainda se sobrepõem aos interesses difusos e coletivos.

37 2010.38 BECK, 2010, p. 57.

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Tal dificuldade está relacionada, em parte, com a indetermina-bilidade dos sujeitos ameaçados na sociedade de risco, e de quais seriam exatamente as ameaças que pairam sobre eles. Explica Ulri-ch Beck39 que “ao sujeito político da sociedade de classe – o proleta-riado – corresponde, na sociedade de risco, a mera suscetibilidade de todos em razão de imensos perigos mais ou menos palpáveis”.

Dessa forma, torna-se tarefa simples aos grupos de interesses refutar e reprimir as evidências de ameaças causadas pela socie-dade de risco, uma vez que as impalpáveis suscetibilidades globais não são ainda organizadas e representadas politicamente.

Ulrich Beck40, em sua obra “Sociedade de risco”, trabalha a ideia de pauperização civilizacional. Se no século XIX lutava-se contra a carência material, como a fome, as condições subumanas de habi-tação e o caos social, hoje as consequências do processo de indus-trialização ameaçam, sobretudo, o equilíbrio ecológico, devendo-se utilizar os instrumentos necessários para evitar a destruição das bases naturais da vida.

Interessa constatar que a defesa dos direitos sociais foi possível, dentre outros fatores, pela enorme visibilidade das mazelas sociais, tornando-se de reconhecimento obrigatório por aqueles que as ne-gavam. Já os impactos das sociedades de risco configuram-se como ameaças iminentes, reveladas gradualmente.

2.5 A necessidade premente de virada na racionalidade científica

Parece claro que “ameaças iminentes”, cedo ou tarde, irão se concretizar. E, dessa forma, uma nova visão sobre as atividades hu-manas, suas consequências e a assunção de responsabilidades deve ser construída pelas gerações presentes.

Pode-se inclusive afirmar, em diversos campos de análise, que a latência das ameaças do risco chegou ao fim41. Inúmeras amea-ças, antes consideradas iminentes e ainda imperceptíveis, já se

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