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VIVIAN LEGNAME BARBOUR
Escola de Formao 2008
STF E DESOBEDINCIA CIVIL: UM OLHAR SOBRE A ATUAO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NA LUTA PELA
TERRA
Monografia apresentada Sociedade Brasileira de Direito Pblico, como exigncia para a concluso do curso da Escola de Formao do ano de 2008. Orientadora: Flvia Scabin
So Paulo 2008
2
ndice
Introduo ................................................................................ 3
Metodologia ............................................................................... 4
Embasamento terico e jurdico de desobedincia civil ........... 11
Anlise da ADI 2.213-MC/DF ................................................... 22
1. Contextualizao da demanda .......................................................... 22 1.1 Jurisprudncia anterior ADI 2.213-MC/DF ........................... 31
2. Anlise dos votos e suas respectivas construes argumentativas ......... 35 2.1 Imunidades do art. 185, CF/88 ............................................ 35 2.2 Imunidade em razo de esbulho possessrio ......................... 40 2.3 Corte de recursos a atores de ocupaes rurais ..................... 54 2.4 Direito de reteno/resciso do contrato pelo Poder Pblico .... 60
Concluso ................................................................................ 62
Bibliografia .............................................................................. 65
Stios eletrnicos ..................................................................... 67
Anexos .................................................................................... 68
3
Introduo
Parto da argumentao que fundamenta a petio inicial da presente
ADI, impetrada pelo Partido dos Trabalhadores PT e pela Confederao
Nacional dos Trabalhadores na Agricultura- Contag, quando estes defendem
que as ocupaes de terras nas suas variadas formas, no se constituem em
esbulho, ao contrrio, tm se revelado em instrumento legtimo de luta e
meio eficaz, para que o prprio governo possa agilizar o processo de
reforma agrria (grifos meus).
O objetivo desse estudo ser, ento, averiguar de que maneira o
Supremo Tribunal Federal concorda ou no com esse argumento que, para os
requerentes, justifica a legitimidade das ocupaes de terra por movimentos
sociais frente a uma suposta inrcia do Estado. Sero levados em conta dados
referentes consecuo da reforma agrria no Brasil, assim como o contexto
social e poltico poca da demanda, alm de embasamento terico do
conceito de desobedincia civil, que de certa forma pode complementar a
fundamentao dada na petio inicial. A partir deste material, sero
analisados os argumentos dos ministros do Supremo a fim de extrair um
possvel posicionamento frente ao tema, ressalvando que de modo algum as
concluses aqui tiradas sero absolutas, por se tratar de um estudo de caso e
por analisar um julgamento ocorrido no ano de 2002.
4
Metodologia
A presente proposta de pesquisa surgiu do interesse de analisar a
atuao de movimentos sociais, cada vez mais presentes na cena poltica
brasileira com suas demandas especficas, representando uma alternativa ao
movimento sindicalista que, aps participao poltica intensa at a dcada de
1970 e meados da dcada de 80, passou a sofrer um contnuo esfriamento,
por conta das novas formas de relao de trabalho que foram se instaurando
na economia globalizada em que estamos inseridos hoje 1. Acreditando que
atuar politicamente e exigir concretizao de direitos por meio de movimento
social algo extremamente legtimo em nosso Estado Democrtico de Direito,
com seus princpios basilares, interessou-me estudar de que maneira o
Supremo Tribunal Federal avaliava esta atuao, tendo como premissa que seu
posicionamento de extrema importncia no cenrio jurdico nacional.
Como me referi aos princpios basilares do Estado Democrtico de
Direito, cabe aqui ressaltar que ao longo de todo o trabalho busquei
concaten-los com a teoria da desobedincia civil, tema de longa data,
primeiramente explorado em livro pelo autor norte-americano Henry David
Thoreau 2. Com um aprofundado estudo deste tema, a idia do trabalho seria
analisar o posicionamento do STF frente atuao dos movimentos sociais
tendo em vista que esta poderia ser contemplada pela construo terica da
desobedincia civil.
Importa dizer que o interesse em estudar o tema da Desobedincia Civil
surgiu a partir das aulas de Introduo ao Estudo do Direito, ministradas no
primeiro ano da Graduao em Direito, e de aulas de Sociologia e Sociologia
1. A passagem do modelo fordista de produo para o modelo toyotista, marcado pela flexibilizao das relaes de trabalho e forte inovao tecnolgica, faz com que as empresas realizem um corte cada vez maior dos postos convencionais de trabalho, gerando um desemprego estrutural. Este contexto culminou nas crises sindicais, onde a luta pela multiplicao dos direitos dos trabalhadores incide em aumento de custos para as empresas, que facilmente demitem seus empregados visto o fenmeno do desemprego estrutural, que possibilita piores condies de trabalho. 2. THOREAU, Henry David, Civil Disobedience, 1849. Neste livro, o autor debate sua causa no campo da conscincia individual e do compromisso moral da conscincia em relao lei. Nessa primeira construo terica da desobedincia civil, a conscincia apoltica, no estando primordialmente interessada no mundo onde o erro cometido ou nas conseqncias que este ter no decorrer futuro.
5
Jurdica. Ao tratar do tema da desobedincia civil refiro-me ao direito de
desobedecer a normas com o intuito de exigir determinado comportamento do
Estado; o que primeira vista configuraria uma ilicitude, mas que
posteriormente se tornaria justificvel visto os fins a que se prope, quais
sejam, mostrar a insatisfao do povo, ou de um coletivo poltico em
especfico, frente atuao estatal, que pode se dar tanto por meio de
medidas legislativas quanto de medidas administrativas. Neste sentido, haveria
ainda um instrumento de participao poltica no explicitamente previsto na
Constituio Federal, mas que decorreria de seus princpios e regime adotados.
Para melhor esclarecer o leitor a respeito de como seria possvel
construir uma relao entre desobedincia civil e atuao destes movimentos,
achei necessrio redigir um captulo para tratar especificamente desta
construo terica. Deste modo, esta parte do trabalho se atm a subsdios
para que seu leitor tambm pudesse analisar esta relao, a fim de concordar
ou no com a minha hiptese, qual seja, de que a ao poltica dos
movimentos sociais se enquadra no conceito de desobedincia civil, sendo,
portanto, legtima.
Partindo desta premissa, meu objetivo ser avaliar de que maneira o
Supremo Tribunal Federal avalia essa atuao, se de fato ele tambm faz essa
relao supracitada, ou se este considera a ao dos movimentos sociais
legtima baseado em outra fundamentao, ou se, ao contrrio, ela de todo
ilcita e deslegitimada. Cabe dizer que a maioria dos processos que chegam ao
STF no tocante reforma agrria diz respeito a aes impetradas pelos donos
de terra, quando esta passara por uma ocupao, contra decreto presidencial
de desapropriao, por meio de mandados de segurana. Por conta disso, o
Tribunal raramente entra na questo do mrito da atuao dos movimentos
sociais, atendo-se questo procedimental da vistoria que precede a
expropriao. Inclusive isso se apresentou como um primeiro obstculo para o
presente trabalho, pois se fazia muito difcil extrair uma possvel posio do
Supremo com material deveras insuficiente.
Acredito que o tema deste trabalho se mostra bastante atual, quando
temos no Brasil uma crescente linha de juristas e polticos que entende que o
6
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra MST deva ser criminalizado,
por conta de seu mtodo de atuao, que se d por meio de ocupaes de
imveis rurais e prdios pblicos, como instrumento de presso ao Governo
para a realizao da reforma agrria.
Essa tentativa de criminalizar o Movimento se iniciou em 20 de setembro
de 2007, quando o ento Subcomandante Geral da Brigada Militar do Rio
Grande do Sul encaminhou relatrio 3 ao comandante geral da BM, onde emitia
parecer sugerindo que fossem tomadas todas as medidas possveis para que as
trs colunas do MST que rumavam ao Municpio de Coqueiros do Sul fossem
impedidas de se encontrar. Este relatrio fora remetido ao Ministrio Pblico
Estadual do RS e ao Ministrio Pblico Federal, e em funo deste que o MPE
ingressou com uma Ao Civil Pblica impedindo estas colunas do MST de
entrarem nos quatro municpios da comarca de Carazinho no RS.
A criminalizao da atuao do Movimento se mostra evidente quando,
em notcia publicada no site do Ministrio Pblico Estadual do RS 4, l-se que:
De acordo com a ao civil pblica do Ministrio Pblico, os
elementos de convico colhidos e apresentados ao Poder Judicirio
demonstram, com certeza e segurana, a utilizao perniciosa e
anti-social dos acampamentos Jandir e Serraria, verdadeiras
bases operacionais destinadas prtica de crimes e ilcitos civis
causadores de enormes prejuzos no apenas aos proprietrios
da Fazenda Coqueiros, mas a toda sociedade. (grifos meus)
Ainda, na Ao Civil Pblica ajuizada 5, aps demasiada e extensa
anlise sobre a movimentao do MST na Fazenda Coqueiros, supracitada,
tomando como base o relatrio da Brigada Militar, numa inicial de 144 pginas
ao todo, diz o MPE:
3. Relatrio n 1124-100-PM2-2007, Brigada Militar do Rio Grande do Sul 4. www.mp.rs.gov.br/imprensa/noticias/id14468.htm, acessado em 22 de outubro de 2008. 5. Petio inicial da Ao Civil Pblica ingressada pelo Ministrio Pblico Estadual do Rio Grande do Sul, in www.mp.rs.gov.br/areas/imprensa/anexos_noticias/inicialacampamentos.pdf, acessado em 22 de outubro de 2008.
7
Os constantes e reiterados ataques do MST Fazenda Coqueiros
afetam toda a coletividade e colocam em cheque os fundamentos do
Estado Democrtico de Direito, exigindo um esforo coordenado
de todos os Poderes e instituies estatais para que, com o
emprego de todas as possibilidades jurdicas amparadas pela
legislao vigente, impeam o enfraquecimento da organizao social
adotada pela sociedade brasileira a partir da Constituio Federal.
(grifos meus)
Percebe-se, portanto, o quo delicada a situao. Faz-se, ento,
imprescindvel conhecer qual o posicionamento do Guardio Constitucional
frente a esta questo, j que este representa a ltima instncia judicial do Pas
e serve de referncia para todo o Poder Judicirio.
A idia inicial para pesquisar a jurisprudncia do STF sobre o assunto era
a de usar como palavra-chave o termo MST, visto que o Movimento representa
o maior ator poltico nacional na luta pela reforma agrria, sendo, ainda, um
dos maiores movimentos sociais da Amrica Latina. Por ser figura emblemtica
no cenrio nacional, acreditei que seria fcil encontrar no STF decises que
discutissem o mrito de sua atuao.
Assim, elaborei uma possvel estrutura de monografia que pudesse dar
conta de analisar o posicionamento do Supremo com relao atuao do
MST, tendo como hiptese que esta poderia se enquadrar no conceito de
desobedincia civil. Segue essa estrutura:
Parte A Teoria
1. Embasamento terico de desobedincia civil / direito de
cidadania, a partir dos autores lidos
2. Embasamento jurdico de desobedincia civil, a partir da teoria
de Maria Garcia CF, artigo 5, 2
3. Histrico do MST e sua atuao. Por que escolher esse
Movimento como emblemtico
Parte B Anlise de Acrdos
8
1. A atuao do MST se enquadra no conceito de desobedincia
civil estudado?
2. Em que medida o STF considera legtima a atuao deste
Movimento na luta pela concretizao da Reforma Agrria?
Destarte, utilizando a ferramenta Pesquisa de Jurisprudncia no stio
do STF, procurei acrdos a partir da expresso MST. Da resultou 14
Mandados de Segurana, todos eles impetrados por donos de terra contra o
Presidente da Repblica. Passei ento a ler todos eles.
Foi frustrante perceber que, em nenhum deles, o Guardio
Constitucional entrava na questo do mrito da atuao desse movimento
social, atendo-se a questes processuais de desapropriao de terra. Pude
perceber ento que a presente monografia estaria muito comprometida se
seguisse por esse caminho metodolgico.
Pensei ento que se a pesquisa fosse mais abrangente haveria mais
chances de encontrar algo pertinente ao tema. Utilizei ento o termo
movimento adj 6 social, que resultou em dois acrdos, um deles era um
mandado de segurana que j havia aparecido em pesquisas anteriores e outro
era a ADI-MC 2213. Esta, especificamente, me chamou muita ateno logo que
li sua ementa. Trata-se de uma Ao Direta de Inconstitucionalidade impetrada
pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e pela Confederao Nacional dos
Trabalhadores na Agricultura (CONTAG).
A dificuldade encontrada no comeo da pesquisa, em encontrar acrdos
que tratassem do mrito das ocupaes de terra, sanou-se com essa ADI
encontrada, visto que, ao analisar a constitucionalidade da Medida Provisria
2.027-38 de 2000, criada no Governo Fernando Henrique Cardoso, sendo
reeditada ainda algumas vezes neste mesmo perodo, resultando na MP 2.183-
56/01, sem no entanto alterar os dispositivos dela atacados, o Supremo fazia
de fato uma anlise do mtodo de atuao dos movimentos sociais no contexto
da reforma agrria.
6. Busca palavras aproximadas, na mesma ordem colocada na expresso de busca, explicao da ferramenta in www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/pesquisarjurisprudencia.asp
9
Pretende-se fazer ento uma anlise qualitativa desta Ao Direta de
Inconstitucionalidade, visto que o presente trabalho transformou-se em um
estudo de caso. Assim, procurarei debruar-me sobre os argumentos dos
ministros, dialogando com a fundamentao trazida na petio inicial pelos
impetrantes, que levanta quatro inconstitucionalidades no dispositivo atacado,
quais sejam:
I. criao de novo tipo de propriedade insuscetvel de
desapropriao, alm daquelas previstas no Artigo 185
da Constituio Federal;
II. negao de vigncia ao artigo 184 da Carta em hiptese
no recepcionada pelo artigo 185 desta;
III. frustrao do devido processo legal na medida em que a
pena automaticamente aplicvel queles que
realizarem ocupaes de terra ou de certa forma
colaborarem com o feito; e
IV. violao do ato jurdico perfeito, a partir de inovao
unilateral da relao contratual.
importante ressaltar, ainda, que a leitura dessa ADI me levar
leitura de precedentes nela citados, fazendo necessrio, tambm, o estudo do
contexto em que a Medida Provisria fora editada, a fim de melhor
compreender a argumentao tanto dos impetrantes quanto do Presidente da
Repblica. Do mesmo modo, no possvel afirmar que a partir desta anlise
terei um posicionamento seguro do STF com relao ao tema, visto que se
trata de um caso apenas, e que fora julgado em 2002. De toda sorte,
procurarei evidenciar um indicativo de como a Corte Constitucional d
tratamento ao tema.
Este trabalho, portanto, no se restringir somente anlise da ADI-MC
2.213 em si, por acreditar que ela surgiu dentro de um contexto especfico,
marcado por uma correlao de foras entre os atores polticos que integram a
questo da reforma agrria. Destarte, primeiro farei uma digresso sobre o
tema da desobedincia civil, passando a analisar o contexto que antecedeu a
10
Ao, para ento analisar os argumentos presentes na petio inicial e nos
votos dos ministros, relacionando-os, a fim de extrair a posio do Supremo
Tribunal Federal frente atuao dos movimentos sociais que lutam pela
reforma agrria, ressalvadas as limitaes supracitadas.
11
Embasamento terico e jurdico de desobedincia civil
Desobedincia civil, assunto to polmico e por muitos visto como
subversivo e contra a ordem e a legalidade, materializa-se quando, para um
grupo significativo de cidados, os canais normais e/ou institucionais para
transformao j no funcionam, de modo que suas demandas no sero
devidamente ouvidas e levadas em conta pelo governo. Ento, o ato de
desobedecer seria o de no se submeter, transgredir, infringir essa
institucionalidade, a fim de no se sujeitar vontade da autoridade, no
cedendo s suas decises. A desobedincia civil, ainda, pode ser utilizada tanto
para promover mudanas, quando o aparato estatal insiste em incorrer por
caminhos diversos dos princpios que compem este Estado, ou pode ser
utilizada para preservar ou restaurar um status quo que atende s demandas
de interesse daqueles que se utilizam do direito de desobedecer.
Aps vinte e um anos de Ditadura Militar, o Brasil vive hoje num Estado
Democrtico de Direito, que pressupe, de um lado, um Estado baseado na
legalidade e, de outro, na Democracia. Concatenando estes dois pilares, tem-
se que Todo poder emana do povo, nos dizeres do pargrafo nico do artigo
primeiro da Constituio Federal de 1988, de tal sorte que este soberano
para eleger seus representantes e exigir deles, a qualquer tempo, e das mais
variadas formas previstas pela Carta, uma atuao coerente com os direitos e
princpios constitucionais e com o interesse do povo. A ascenso dos novos
movimentos sociais, estes que reivindicavam pautas especficas como o
movimento feminista e o movimento por reforma agrria trouxe uma nova
perspectiva de concretizao de direitos como antes no se tinha visto. O
resultado deste processo uma Carta Federal que contm um rol extenso de
direitos individuais e coletivos, fundamentais e polticos. Ainda, a introduo de
direitos difusos particularmente importante quando considerada a presso
que j comeava a existir em favor de direitos dos ndios, das crianas, entre
outros, assim como o movimento feminista supracitado.
12
Como j mencionado, h momentos em que estas formas de
contestao previstas na Constituio, aqueles mecanismos institucionais,
sero de todo ineficientes para de fato atingir o Estado e exigir dele uma
postura diversa da que se encontra. Assim, a desobedincia civil tem um
carter claramente contestador das estruturas vigentes, por isso a prima facie
seria algo inadmissvel e reprovvel, porque fora da legalidade e da
institucionalidade. Justamente, este ato est englobado pelo chamado Direito
de Resistncia.
Este Direito foi introduzido como princpio em algumas constituies
modernas, a fim de positiv-lo como tentativa de que essas constituies no
fossem apenas letra morta, sem influncia na transformao da sociedade.
Importa dizer, no entanto, que assim como todos os outros direitos, o direito
de resistncia tambm est sujeito a limites e restries, assim como est a
desobedincia civil, recorrente deste. Faz-se necessrio analisar de onde vem a
obrigatoriedade de obedincia a uma autoridade superior para ento
compreendermos como surge o direito de desobedec-la.
A idia de Estado enquanto pacto social surge com os contratualistas,
que viam neste pacto um acordo bilateral de vontades, encontrando-se ambas
as partes sujeitas a direitos e obrigaes. Esta relao bilateral aparece com o
intuito de preservar ao mximo a liberdade originria daquele povo que
voluntariamente se submeteu autoridade do Estado. A existncia dos direitos
naturais do indivduo em seu estado de natureza que vai proteg-lo no Estado
e na sociedade contra os abusos do poder. Assim, para Locke, importante
terico contratualista e guiado pelo pensamento liberal, estes direitos naturais,
longe de constiturem o objeto de renncia total pelo contrato original, varridos
pela soberania do estado de sociedade, subsistem para fundar a liberdade. Nos
seus dizeres, em seu Ensaio sobre o Governo Civil:
Sempre que os legisladores tentam tirar e destruir a propriedade
do povo, ou reduzi-lo escravido sob poder arbitrrio, entra em estado
13
de guerra com ele, que fica assim absolvido de qualquer obedincia a
mais (...)
(LOCKE, 1690 Ensaio sobre o Governo Civil)
A originalidade de Locke, em relao aos contratualistas Rousseau e
Hobbes, para o autor Machado Pauprio, est na afirmao de que os direitos
individuais so fortificados e garantidos uma vez que se forma a sociedade e
desaparece a condio anterior de anarquia.
Ainda, podemos citar a construo terica de Hobbes
Uma cidade, portanto, assim como a definimos, uma pessoa
cuja vontade, pelo pacto de muitos homens, h de ser recebida como
sendo a vontade de todos eles; de modo que ela possa utilizar todo o
poder e as faculdades de cada pessoa particular, para a preservao de
paz e defesa comum.
(HOBBES, 1992: p. 103 e ss Do Cidado)
Como a cidade, denominao utilizada por Hobbes, existe de modo a
preservar a paz e defesa comum, ou seja, como ela existe de modo a proteger
um interesse comum, caso seus governantes extrapolem suas funes de
tutores daquela liberdade originria dos governados, tentando oprimi-los, eles
podem resistir a esta pretenso e escolher um novo governo. Surge ento,
desta construo, a faculdade dos cidados de assim proceder, garantindo-lhes
a disposio de um instrumento extralegal para afirmarem seus pleitos, visto
que representantes da vontade da maioria. Cabe aqui ressaltar, no entanto,
que, para alguns intrpretes do autor, a dissoluo do pacto com o Leviat e
volta ao estado de natureza pode no necessariamente se constituir em direito
de resistncia.
Assim, com os contratualistas que o direito de resistncia atinge sua
maturao terica. Se a vontade da maioria acorda em submeter-se a uma
autoridade superior com o intuito de preservar ao mximo aquela liberdade
originria, do mesmo modo, esses cidados tm o direito de recusar-se a
14
obedecer ao governo quando este passa a atuar em desacordo com essa
vontade pblica.
Assim, o direito de desobedecer vem de uma lgica onde se assume que
o ordenamento jurdico no pode ser estanque, mas deve ser dinamizado a
partir das demandas sociais. Este ordenamento no capaz de, sozinho,
acompanhar todas as mudanas sociais, a fim de adequar-se. Este , na
realidade, o papel da sociedade enquanto coletivo de cidados. Muito
pertinente se faz as colocaes de Arendt:
A lei realmente pode estabilizar e legalizar uma mudana
j ocorrida, mas a mudana em si sempre resultado de ao
extra-legal. (grifos meus)
(ARENDT, 2004: p. 73 Crises da Repblica)
Imersa neste entendimento, a Constituio se apresentaria, portanto,
enquanto processo, dado seu carter de mobilidade e sua necessidade de
acompanhar o desenvolvimento da opinio pblica. Cabe ressaltar que a
expresso opinio pblica aqui, segundo o terico Estvez Arajo 1, tem um
carter historicista, numa viso comunitarista, onde se procura valorizar as
expresses do povo, manifestadas na histria. Neste sentido, desobedecer lei
constitui-se em exerccio da cidadania. Novamente, nos dizeres de Hannah
Arendt,
Cidadania, o direito a ter direitos.
(ARENDT, 1979 Entre o Passado e o Futuro)
Para a autora, liberdade, poltica e ao aparecem como idias
interdependentes, e a cidadania seria justamente a dimenso poltica do ser
humano, onde esses trs aspectos so indissociveis de uma prtica cidad
saudvel. Assim, a cidadania se concretiza quando a liberdade torna-se mais e
1. ARAJO, Jos Antonio Estvez, La Constitucin como Proceso y La Desobediencia Civil. Madrid: Ed. Trotta,1994.
15
mais participao popular, onde o povo deve participar na formao das
grandes decises polticas e na concretizao dos direitos.
Foram estudados alguns autores referentes ao tema da desobedincia
civil, como Hannah Arendt, importante referncia no tema, e autores ligados
realidade brasileira. Apesar de inseridos em contextos diversos, cada qual
relacionando o tema da desobedincia civil a diferentes aspectos, como
fundamentao constitucional, no caso da autora Maria Garcia, ou como base
para anlise dos movimentos grevistas dos metalrgicos do ABC na dcada de
1970, no caso de Nelson Nery Costa, em todos eles, ao longo da construo
terica do conceito, possvel extrair elementos comuns que conceituam o
direito desobedincia, enquanto exerccio da cidadania.
Primeiramente, tem-se o principal requisito para a consecuo da
desobedincia civil, sem o qual os demais requisitos sequer seriam passveis
de ser analisados. A utilizao desse direito exige que seja feito por um
coletivo de cidados. Este ponto muito importante, pois o que diferencia os
objetores de conscincia dos contestadores civis. Ambos os termos so
utilizados pela autora Hannah Arendt, e diferenciam a ao individual da ao
coletiva.
Para esclarecer o que seria um objetor de conscincia, utilizado o
exemplo de Henry David Thoureau. Este passou uma noite em uma cadeia
norte-americana por se recusar a pagar impostos para seu governo, que
permitia coisas como a escravido. Quando ele debatia a questo, no entanto,
atentava para a conscincia individual e para o compromisso moral da
conscincia, no passando pelo campo da moral do cidado em relao lei.
Assim diz o autor, em seu On the Duty of Civil Disobedience (1849):
No dever do homem, naturalmente, devotar-se erradicao
de um erro, mesmo o maior deles; ele ainda pode ter outros interesses
oportunos em que se empenhar; mas pelo menos seu dever no se
comprometer com o erro, e no lhe dar apoio na prtica no caso de no
se importar com estas coisas.
16
Assim, a conscincia aqui apoltica, pois no interessada no mundo
onde este erro cometido a partir de uma viso de conseqncias que este
pode causar. Isso no quer dizer, no entanto, que essa objeo de conscincia
no pode se tornar politicamente significativa. Isso ocorrer quando certo
nmero de conscincias coincidir entre si, de modo a fazer parte da opinio
pblica. Muito pertinente, ento, a colocao de Arendt:
Estes ltimos [contestadores civis] so na verdade minorias
organizadas, delimitadas mais pela opinio comum do que por interesses
comuns, e pela deciso de tomar posio contra a poltica do governo
mesmo tendo razes para supor que ela apoiada pela maioria; sua
ao combinada brota de um compromisso que empresta crdito e
convico sua opinio, no importando como a tenham originalmente
atingido. Argumentos levantados em prol da conscincia individual ou de
atos individuais (...) so inadequados quando aplicados desobedincia
civil (...)
(ARENDT, 2004: p. 56 Crises da Repblica)
Interessante observar que ela trata, ainda, da questo da
minoria/maioria. Este um ponto peculiar da construo da desobedincia
civil, que decorrente do direito de resistncia. Este, como j foi dito, est
intimamente ligado construo do contrato social, que prev um acordo da
maioria do povo, de se submeter a um Estado, a fim de preservar ao mximo a
liberdade originria de cada cidado. A utilizao do direito de resistir
dependia, portanto, de que fosse expresso da vontade da maioria. Este direito
no assegurava aos grupos minoritrios a posio de legtimos aplicadores
deste mecanismo. Neste particular difere a desobedincia civil.
O direito de desobedecer tornou-se um direito de cidadania medida
que no mais se exigia a presena da vontade da maioria para que pudesse
ser posto em prtica. E essa temtica est bastante ligada questo do
surgimento dos novos movimentos sociais, j mencionados, por suas
reivindicaes especficas e que normalmente representam minorias
17
exatamente por essa especificidade. Esses movimentos primeiramente se
caracterizam por uma resistncia a uma opresso por parte da sociedade,
como foi e ainda com relao s mulheres, por exemplo, ou ainda os
movimentos negros e da diversidade sexual. Ainda, alm dessa resistncia
opresso, esses movimentos lutam tambm pelo reconhecimento de sua
identidade.
Cabe salientar que ainda que a democracia seja regida pela vontade da
maioria, isso no quer dizer que vivemos em uma ditadura da maioria, assim
como muitas vezes o era os Estados Unidos da Amrica poca de Thoureau.
Este pas seguia o argumento da doutrina liberal de que a sociedade poltica,
para se manter coesa, deveria estabelecer que a maioria tivesse o direito de
agir e resolver por todos, gerando uma submisso das minorias 2. Podemos
argumentar que, na realidade, esta necessidade de se manter a sociedade
coesa poderia refletir um medo de encarar as diferenas dentro desta
coletividade, que exigiam uma atuao mais plural por parte do Estado. Este
assunto, porm, apesar de muito interessante, no cabe ser explorado na
proposta do presente trabalho.
Outra caracterstica importante do ato de desobedecer que este deve
ser pblico. Do contrrio, pode ser visto como conspirao. E este ponto
muito importante porque mostra que os contestadores civis no tm medo ou
qualquer outro motivo para esconder o ato que praticam, primeira vista
ilegal. Isso porque o objetivo da desobedincia civil inexoravelmente atentar
para alguma injustia perpetrada pelo Estado, ou ainda por alguma omisso
sua, que se mostram manifestamente contrrias aos princpios aos quais este
aparato estatal est submetido e deve satisfaes. A publicidade do ato
procura demonstrar a sinceridade democrtica de seus propsitos, como diz
Nelson Nery Costa.
O papel desta publicidade importantssimo tambm porque busca
2. COSTA, Nelson Nery, Teoria e Realidade da Desobedincia Civil. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1990, p. 27.
18
informar a sociedade sobre questes controvertidas, que costumam ser
minimizadas pela mdia. Assim, a ao direta desperta a maioria da opinio
pblica de sua letargia para a realidade dos fatos, ao provocar um momento de
tenso. E por essa questo tambm que se pode dizer que a desobedincia
civil est intrinsecamente ligada ilicitude e no institucionalidade, visto que
os meios normais de contestao tornam-se caminhos esgotados de qualquer
eficcia que de algum modo possa constranger o Estado a reformular sua
postura.
Outro aspecto importante na construo da desobedincia civil a no
violncia. Ora, contestadores civis desobedecem porque no concordam com a
atitude violenta do Estado, seja fisicamente, seja na violncia de direitos. No
podem, deste modo, agir igualmente maneira de atuao que criticam.
Ainda, o ato de desobedecer no violento evidencia mais ainda a injustia a
que esto submetidos os contestadores civis, medida que escancara que,
para conter a ao ilegal mas no violenta, o Estado com seu aparato policial
de represso, e no os manifestantes, que causa as mortes e as leses
corporais em maior nmero. So muitos os acontecimentos ao longo da
histria que comprovam essa afirmao. Basta observar, no caso do Brasil, as
passeatas pacficas rechaadas pela polcia, ou ainda atos pacficos que tm o
mesmo fim. A ttulo de exemplo, podemos citar o Movimento Passe Livre, que
sofreu duras represses policiais em Florianpolis no ano de 2005 por fazer um
ato pacfico em que estudantes prostravam-se em vias pblicas.
Justifica-se ento, a, um comportamento violento por parte dos
contestadores civis, como resposta s aes repressivas da polcia. O uso da
fora no pode, no entanto, ameaar terceiros no envolvidos, porque gera a
deslegitimao do movimento. Nelson Nery Costa entende, tambm, que a
violncia pode apenas se dirigir contra as propriedades, quando isto for
imprescindvel para o xito do objetivo.
19
A desobedincia civil no , de modo algum, baseada em atos arbitrrios
e aleatrios de um determinado nmero de cidados mas, antes de tudo,
conseqncia primordial do regime que hoje estamos inseridos, qual seja, o
Estado Democrtico de Direito. A jurista Maria Garcia procura, em seu livro
entitulado Desobedincia Civil, Direito Fundamental, dar um embasamento
jurdico no ordenamento brasileiro que legitime este exerccio de cidadania.
Nem o direito de resistncia, de modo mais abrangente, nem a
desobedincia civil, especificamente, so previstos na Constituio da
Repblica Federativa do Brasil. muito rara, alis, a incluso de ambos em
Cartas positivadas. Podem ser elencados apenas dois exemplos histricos,
quais sejam, a Lei Fundamental da ento Repblica Federal da Alemanha 3, de
1949, e a Constituio portuguesa 4 de 1982. Na realidade, essa omisso com
relao possibilidade de desobedincia e resistncia pode ser justificada pelo
fato de que nenhum Direito positivo ir autorizar uma revoluo, pressupondo
que a recusa obedincia tem um trplice aspecto, de oposio s leis
injustas; de resistncia opresso; e, por ltimo, de revoluo, quando o povo
a julga necessria. Ainda mais contraditrio pareceria prever o direito de
resistncia quando se pressupe que, como vivemos em um Estado
Democrtico, todo poder se funda na vontade unnime do povo, enquanto
resultado de sucessivas delegaes. Mas este pensamento incoerente pois,
procurando defender os fundamentos que sustentam esse Estado, acaba
fazendo estes como refns. Como diz Machado Pauprio:
O fato, porm, que pouco a pouco, hodiernamente, os
governantes passaram a proscrever a legitimidade da resistncia e a
3. Princpios Constitucionais Direito de Resistncia Art. 20 (...) (3) O poder legislativo est vinculado ordem constitucional; os poderes executivo e judicirio obedecem lei e ao direito. (4) No havendo outra alternativa, todos os alemes tm o direito de resistir contra quem tenta subverter essa ordem. 4. Direito de Resistncia Art. 21 Todos tm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela fora qualquer agresso, quando no seja possvel recorrer autoridade pblica
20
cercar a autoridade que detm, de segurana e proteo contra toda e
qualquer tentativa de desobedincia, seja qual seja sua fonte ou seu
objeto
(PAUPRIO: p. 254 O Direito de Revoluo)
Mostra-se evidente, assim, que, ainda que vivamos em um Estado que
tem como premissa a supremacia da vontade popular, necessrio dar
instrumentos que possam de fato garantir essa efetiva supremacia. No caso da
nossa Carta de 1988, como foi dito, no h referncia expressa
desobedincia civil, mas, segundo Maria Garcia, esta pode se encaixar no 2
do artigo 5 da CF, assim redigido:
Art 5 (...)
2 Os direitos e garantias expressos nesta Constituio no excluem
outros decorrentes do regime e dos princpios por ela adotados, ou dos
tratados internacionais em que a Repblica Federativa do Brasil seja parte.
(grifos meus)
Esse preceito mostra claramente o carter sistemtico da nossa
Constituio, ou seja, os preceitos constitucionais devem ser interpretados no
somente segundo o que explicitamente postulam, mas tambm de acordo com
o que implicitamente encerram. Assim, esse dispositivo aponta para um
carter material e para uma perspectiva aberta dos direitos
fundamentais, e dos princpios e do regime aos quais estamos submetidos.
Ainda, essa norma justifica-se haja visto que a enumerao de alguns
direitos na Constituio no pode ser vista no sentido de excluir ou
enfraquecer outros direitos que tem o povo, destacando-se que dele que se
invoca o poder estatal.
Assim, a no explicitao da desobedincia civil na nossa Carta Magna
no exclui sua existncia. E esta tese se fortalece ainda mais quando
consideramos que, se o poder emana do povo e se dele que se constri o
poder estatal, nada mais correto afirmar que, como decorrncia deste regime
21
onde reina a soberania popular, cabe ao povo opor-se s decises do Estado e
desobedec-las quando estas no mais atendem seus anseios. Neste sentido, a
desobedincia civil seria decorrente do Estado Democrtico de Direito, onde
temos o direito e a obrigao, enquanto cidados, de atuar ativa e
politicamente.
E por que tratar de desobedincia civil no presente trabalho? Entendo
ser de extrema pertinncia porque a histria do Brasil mostra que a reforma
agrria nunca foi eficiente, que o Estado sempre foi refm de uma correlao
de foras, no atuando energicamente contra o latifndio, sintoma da m
distribuio de terra que vem desde a poca colonial, perpetrado em nossa
histria at os dias de hoje. Enquanto isso, a misria e o abismo da
desigualdade atingem nveis cada vez mais gritantes e os trabalhadores rurais,
que dependem da terra para sobreviver e garantir um mnimo de subsistncia
e dignidade, ficam completamente desamparados. Por isso eles se unem para
agir frente a omisso do Estado. por conta deste contexto que, antes de
analisar a ADI alvo deste estudo, procurarei fazer uma breve contextualizao
da demanda, por acreditar que de suma pertinncia analisar o contexto em
que ocorrem as aes dos grupos organizados de trabalhadores rurais, porque
justamente essa situao social que ir justificar, ou no, a sua ao poltica
e a reivindicao da desobedincia civil.
22
Anlise da ADI 2.213-MC / DF
1. Contextualizao da demanda
A Ao Direta de Inconstitucionalidade n 2.213, com pedido de medida
cautelar, foi impetrada em 24 de maio de 2000, pelo Partido dos Trabalhadores
- PT e pela Confederao Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
CONTAG. A ao atacou a Medida Provisria 2.183-56/2001, criada pelo ento
presidente Fernando Henrique Cardoso e que alterou o Estatuto da Terra (Lei
4.504/64).
Os requerentes atacaram, especificamente, o artigo 2 da MP, que deu a
seguinte redao ao novo artigo 95-A da Lei 4.504/64:
Art. 95-A. Fica institudo o Programa de Arrendamento Rural,
destinado ao atendimento complementar de acesso terra por parte dos
trabalhadores rurais qualificados para participar do Programa Nacional
de Reforma Agrria, na forma estabelecida em regulamento.
Pargrafo nico. Os imveis que integrarem o Programa de
Arrendamento Rural no sero objeto de desapropriao para fins de
reforma agrria enquanto se mantiverem arrendados, desde que
atendam aos requisitos estabelecidos em regulamento.
Ainda, questionou-se a constitucionalidade do artigo 2, 6, 8 e 9
do Estatuto da Terra, com redao dada pelo artigo 4 da mesma medida
provisria:
Art. 2 (...)
6 O imvel rural de domnio pblico ou particular objeto de
esbulho possessrio ou invaso motivada por conflito agrrio ou
fundirio de carter coletivo no ser vistoriado, avaliado ou
desapropriado nos dois anos seguintes sua desocupao, ou no dobro
desse prazo, em caso de reincidncia; e dever ser apurada a
23
responsabilidade civil e administrativa de quem concorra com qualquer
ato omissivo ou comissivo que propicie o descumprimento dessas
vedaes.
.....................................................................................................
8 A entidade, a organizao, a pessoa jurdica, o movimento
ou a sociedade de fato que, de qualquer forma, direta ou indiretamente,
auxiliar, colaborar, incentivar, incitar, induzir ou participar de invaso de
imveis rurais ou de bens pblicos, ou em conflito agrrio ou fundirio
de carter coletivo, no receber, a qualquer ttulo, recursos pblicos.
9 Se, na hiptese do 8, a transferncia ou o repasse dos
recursos pblicos j tiverem sido autorizados, assistir ao Poder Pblico
o direito de reteno, bem assim o de resciso do contrato, convnio ou
instrumento similar.
A posio poltica tomada pelo Governo FHC, refletida na redao desta
Medida, resultou de um longo processo em que este, enquanto ator poltico no
contexto da Reforma Agrria brasileira, ora negou que o pas ainda tivesse o
agudo problema da concentrao de terras, ora assumiu uma postura de dura
represso aos movimentos sociais que lutam pelo direito terra, mostrando
claramente o quo grave a situao da m distribuio agrria no Brasil.
Essas afirmaes podem ser constatadas a partir de declarao do ento
Presidente da Repblica, em matria da Revista Isto de 17 de abril de 1996,
quando questionado da sua preocupao com a marcha nacional que estava
sendo realizada poca pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra -
MST, numa durao de dois meses, a fim de conseguir uma audincia com a
Presidncia para tratar da questo da Reforma Agrria, onde l-se:
A direo nacional do MST tambm quer audincia com o
presidente FHC. Toda a movimentao obteve repercusso internacional,
aos ser mostrada pela rede CNN. Questionado por um correspondente
da emissora no Pas, FHC disse que seu governo est preocupado, mas
no pelo tamanho da marcha de quarta-feira. O Brasil um pas
24
urbano e temos mais de 75% da populao nas cidades. Esses
problemas so localizados., reagiu. (grifos meus).
De fato, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica,
no censo demogrfico de 1950 a 2000, a populao rural sofreu uma constante
queda, ao passo que as zonas urbanas passaram por crescimento populacional
em todos os anos englobados pela pesquisa, conforme mostra o grfico abaixo 1:
O grfico mostra que, de 1950 a 2000, a populao urbana sofreu
crescimento, enquanto que, no mesmo perodo, a partir das dcadas de 1970 e
1980 as zonas rurais passaram por crescimento negativo. Ainda, em outro
estudo realizado pelo mesmo Instituto 2, observou-se que a populao rural
passou de aproximadamente 70%, em 1940, para menos de 20%, em 2000,
do total da populao brasileira. Mesmo que tenha havido essa queda na
demografia rural, a reforma agrria se faz igualmente necessria quando se
1. www.ibge.gov.br/ibgeteen/datas/reforma_agraria/reformaagraria.html 2. Censo demogrfico de 1940/2000, in www.ibge.gov.br/series_estatisticas/exibedados.php
25
tem ndices to elevados de concentrao de terras, como o caso do Brasil.
Ou seja, no possvel negligenciar a questo agrria por conta deste
aumento da populao urbana. Ainda, dizer que a pauta reivindicada pelo
Movimento refletia um problema localizado mostra uma posio, pode-se dizer,
otimista, ou ainda ingnua, do ento Presidente da Repblica.
De acordo com pesquisa realizada pelo autor Bruno Konder Comparato,
em seu trabalho de mestrado , possvel perceber a existncia de quatro
fases distintas de tratamento de Fernando Henrique Cardoso para com o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MST a partir da anlise de
seus pronunciamentos que abordam a questo da reforma agrria, nos
intervalos de tempo a serem especificados.
Cabe dizer aqui que utilizar o relacionamento do Governo com o MST
como parmetro para analisar a postura daquele com os movimento sociais na
luta pela terra se justifica pelo fato de este Movimento ser um dos maiores
movimentos sociais da Amrica Latina e o maior ator poltico do pas na luta
pela reforma agrria. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra surgiu
da reunio de vrios movimentos populares, sendo fundado, oficialmente, em
janeiro de 1984, na cidade de Cascavel, no Estado do Paran, e fora copiado
por outros movimentos 4 , comprovando seu sucesso. Atualmente, o MST est
presente em 23 dos 26 estados da Federao.
Na proposta de Bruno Konder Comparato, a primeira fase vai do incio
do governo, em 1995, at o massacre de Eldorado de Carajs 5, em abril de
3. COMPARATO, Bruno Konder, A Ao Politica do MST. So Paulo: Expresso Popular, 2000. 4. Segundo o autor Bruno Konder Comparato, o MST foi copiado por diversos outros movimentos, tais como o MAST (Movimento dos Agricultores Sem Terra), ligado social-democracia sindical, o MLST (Movimento de Libertao dos Sem Terra), ligado a segmentos da esquerda, o MUST (Movimento Unido dos Sem Terra), ligado Fora Sindical, e o MTST (Movimento dos Sem Teto), que reproduz as tticas do MST em reas urbanas. 5. O Massacre de Eldorado dos Carajs consistiu na morte de dezenove sem-terra no Municpio de Eldorado dos Carajs, no sul do Par, decorrente da ao da Polcia Militar, em 17 de abril de 1996. O confronto ocorreu quando 1500 sem-terra que estavam acampados na regio decidiram fazer uma marcha em protesto demora da desapropriao de terras. A Polcia Militar foi encarregada de tir-los do local porque estariam obstruindo a Rodovia PA-150, que liga Belm, capital, ao sul do estado. A ordem para a ao policial partiu do entao Secretrio de
26
1996, quando o Presidente poca se mostrava favorvel reforma agrria,
evitando, contudo, se referir a movimentos sociais fortes na luta pela terra,
como o MST. Na segunda fase, que vai do massacre do Eldorado dos Carajs
marcha do MST a Braslia, de fevereiro a abril de 1997, FHC reafirma seu
compromisso com a reforma agrria e procura apaziguar este movimento
mostrando resultados decorrentes da atuao do seu governo. J na terceira
fase, que vai da marcha at maio de 2000, Fernando Henrique Cardoso se
dirige mais explicitamente ao MST, que passa a ser tratado como um
adversrio. Especificamente nesta fase, o porta-voz da Presidncia poca,
Georges Lamazire, fez um comunicado, em 19/04/2000, qual seja (...) o
MST um movimento que est se desviando da legalidade democrtica,
indicando uma possvel poltica de criminalizao deste Movimento Social. Por
fim, na quarta e ltima fase, que se iniciou em maio de 2000, com
manifestaes e ocupaes de prdios pblicos em quase todos os Estados,
promovidas pelo MST, o governo passou a adotar um tom mais duro para se
referir ao Movimento, deixando claro que este, no seu ponto de vista, tem
exagerado nos seus modos de ao poltica.
Ao longo dessas fases apresentadas por Bruno Konder Comparato,
possvel verificar um processo de endurecimento no tratamento dado ao MST
pelo Governo Fernando Henrique. Este passara daquela idia de que a questo
da reforma agrria no passava de problemas localizados (basta observar a
matria da Revista Isto de 17/04/1996 supracitada) para uma postura
defensiva frente os conflitos agrrios, concentrando-se na figura dos
movimentos sociais, em especial o MST.
A primeira medida provisria editada pelo Presidente FHC, no tocante
regulamentao da consecuo da Reforma Agrria, foi a MP 1.577, de 11 de
junho de 1997, que alterou dispositivos da Lei 8.629/93 (esta dispunha sobre a
regulamentao das normas constitucionais relativas reforma agrria,
previstos no Captulo III, Ttulo VII, da Constituio Federal) e acrescentava
Segurana do Par, que declarou, depois do ocorrido, que autorizara usar a fora necessria, inclusive atirar.
27
outros na Lei 8.437/92 (esta dispunha sobre a concesso de medidas
cautelares contra atos do Poder Pblico e ainda outras providncias). Esta MP
foi reeditada inmeras vezes, dando origem Medida 2.183-56/2001, que
representa sua redao definitiva e alvo da ADI 2.213.
Na Exposio de Motivos Interministerial n 002/2000, que levantava
justificativas para a alterao da Medida Provisria 1.997-37/00, uma das
medidas que integrou o processo de alterao que culminou com a MP ora
atacada na ADI 2.213, assim se justificou a indispensabilidade, fundada em
razes emergenciais, da imediata edio da medida provisria, ora impugnada:
No sentido de coibir os excessos praticados pelos
movimentos dos trabalhadores rurais sem terra seja com relao
invaso de imveis rurais como de bens pblicos acrescentou-se
ao artigo 2 da referida Lei 8.629, de 1993, os 6 a 9 e o artigo 2-
A, que, ao mesmo, tempo, probe a realizao de vistoria de imveis
rurais que venham a ser invadidos, venda a transferncia de recursos
para entidade, organizao social ou movimento e sociedade de fato que
direta ou indiretamente concorram para a prtica dos referidos atos
delituosos. (grifos meus)
Percebe-se, portanto, a inteno do governo em deslegitimar a atuao
dos movimentos sociais, que atuam por meio de ocupaes de grandes imveis
rurais, como meio de presso consecuo da reforma agrria. Nesse sentido,
FHC foi de encontro a uma poltica de atuao que desde a dcada de 1980 era
utilizada por movimentos como o MST. A tese do livro A Formao do MST no
Brasil, inclusive, do autor Bernardo Manano Fernandes, a de que a luta pela
terra s tem sucesso quando acontece por meio da ocupao de terras, qual
o governo responde com uma poltica de assentamento de reas de conflito.
As presses realizadas pelos movimentos sociais podem se justificar
quando evidenciada a inrcia do ordenamento brasileiro que trata da questo
agrria. Um grfico construdo pelo Instituto Nacional de Colonizao e
Reforma Agrria - INCRA, em seu Relatrio de Atividades dos 30 anos entre
28
1970 e 2000 6, mostra como a quantidade de reas desapropriadas caiu
vertiginosamente de 1970 at o ano de 1999. Vejamos:
Cabe questionarmos o por que desta queda, haja visto que o Brasil de
modo algum est livre de latifndios, ao contrrio, mantm o status quo no
tocante distribuio de terra. Na realidade, essa situao dialoga com a
ineficincia de outros campos de atuao do Estado que tambm atuam aqum
do necessrio para uma verdadeira redistribuio de terras. Analisemos a
eficcia do Estatuto da Terra, lei publicada em 1964 e que dispunha das
seguintes premissas:
I. o uso da terra est condicionado sua funo social;
II. promoo da justa e adequada distribuio de terra;
III. obrigatoriedade da explorao racional da terra; e
IV. possibilidade de recuperao econmica e social das regies. 7
Ainda com este dispositivo normativo, a concentrao agrria no pas
6. Relatrio de Atividades INCRA 30 Anos, in www.incra.gov.br/arquivos/0173400476.pdf 7. SANTOS, Margareth Alves, A Aplicao dos Requisitos da Funo Social da Propriedade no mbito da Reforma Agrria pelo Supremo Tribunal Federal. Monografia apresentada Escola de Formao 2006, SBDP, p. 6.
29
teve uma ligeira piora no ndice Gini 8 nos seus primeiros quinze anos de
vigncia, e melhora muito singela a partir do ano de 1975, representando um
resultado insatisfatrio. Em estudo realizado pelo Governo Fernando Henrique,
numa publicao com o ttulo Reforma Agrria Compromisso de todos,
colocado o seguinte grfico 9 referente concentrao de terras no Pas, com
base no ndice supracitado:
Este grfico foi feito a partir de informaes colhidas tanto do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatstica IBGE quanto do INCRA. Como possvel
observar, a concentrao de terra no Brasil gritante, no ficando em nenhum
momento abaixo do nvel 0,7 no ndice Gini. Sabe-se, a ttulo de comparao,
que em grande parte da frica a concentrao de terras limitada com relao
a outros continentes do mundo, como a Amrica Latina 10, apesar de existirem
algumas excees importantes, como o caso da frica do Sul, onde o
apartheid e a economia colonial resultaram em uma distribuio de terra
8. O ndice Gini uma medida de desigualdade desenvolvida pelo estatstico italiano Corrado Gini. Ele consiste em um nmero entre 0 e 1, onde 0 corresponde completa igualdade e 1 corresponde completa desigualdade. 9. www.planalto.gov.br/publi_04/COLECAO/REFAGR3.HTM 10. COTULA, Lorenzo; QUAN, Julian; TOULMIN, Camilla, Polticas e Prticas para Assegurar e Melhorar o Acesso Terra. Conferncia Internacional sobre Reforma Agrria e Desenvolvimento Rural, 7 a 10 de maro de 2006.
30
extremamente injusta segundo as linhas raciais. Este e outros estudos
mostram que as medidas para distribuir a terra no nosso Pas foram muito
insuficientes at ento. Assim, preceitos constitucionais, como o da
erradicao da pobreza e reduo das desigualdades sociais e regionais,
presente no inciso do III do artigo 3, que trata dos objetivos fundamentais da
Carta da Repblica, tm sua realizao aqum do necessrio.
Dada a ineficincia da consecuo da reforma agrria brasileira, de se
indagar at que ponto os excludos da terra devem ficar refns das polticas
fundirias do governo, se este no se apresenta eficiente para distribuir a terra
no Brasil. muito claro que este um problema enraizado na nossa histria,
sendo utilizado como bandeira por muitos grupos polticos e intelectuais.
Ainda, ao longo de toda a histria, a consecuo da distribuio da terra ficou
refm de uma correlao de foras entre as alas mais conservadoras da
sociedade e as alas que tinham propostas de reformas de base para o Brasil, a
fim de amenizar sua desigualdade gritante. Cabe aqui lembrar episdio
importante que foi Joo Goulart, vice de Jnio Quadros, ter assumido a
Presidncia em 1961, j que neste perodo evidenciou-se claramente esta
correlao de foras.
poca, os militares entenderam que Jango seria prejudicial
segurana nacional, por supostas ligaes com os comunistas. Essa
desconfiana levou a um acordo onde o Presidente seria apenas chefe de
Estado, funo decorativa, dentro de um sistema parlamentarista onde o
primeiro-ministro seria o verdadeiro chefe de governo. Ainda assim, em 13 de
maro de 1964, o ento chefe de Estado assinou decretos que, alm de
nacionalizar as refinarias de petrleo, desapropriavam, para fins de reforma
agrria, propriedades com mais de 100 hectares, numa faixa de 10
quilmetros ao longo de rodovias e ferrovias federais 11. Este acontecimento
que culminou com o Golpe de 1964, instaurador da Ditadura Militar.
11. ARRUDA, Jos Jobson de A; PILETTI, Nelson, Toda a Histria. So Paulo: Ed. tica, 6 ed., 1996, p. 321.
31
1.1 Jurisprudncia do STF anterior ADI 2.213-MC/DF
Alm do contexto da consecuo da reforma agrria e do tratamento do
Governo para com os movimentos sociais na luta pela distribuio de terra,
faz-se necessrio fazer uma contextualizao jurisprudencial do Supremo
Tribunal Federal, anterior publicao da Medida Provisria 2.183-56/01, que
impede a desapropriao de imvel que tenha sofrido suposto esbulho
possessrio resultante do conflito agrrio, at dois anos depois do ocorrido.
Ainda que na ausncia da medida provisria, o Governo Federal lanou,
em 6 de junho de 1997, o Decreto n 2.250, cujo artigo 4 tem a seguinte
redao:
Art. 4 O imvel rural que venha a ser objeto de esbulho no
ser vistoriado, para os fins do art. 2 da Lei n 8.629, de 25 de
fevereiro de 1993, enquanto no cessada a ocupao, observados os
termos e as condies estabelecidos em portaria do Presidente do
Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria - INCRA.
Percebe-se, ento, que o governo j estava aderindo a uma linha de no
desapropriao em casos de esbulho possessrio em imveis rurais, ainda que
estes fossem improdutivos. Foi com base nesse dispositivo normativo que, no
Mandado de Segurana 22.965 12, o procurador-geral da Repblica emitiu
parecer favorvel aos impetrantes, ao defender que o referido decreto se
aplicava no caso, no podendo o imvel ser desapropriado, porque desde 3 de
agosto de 1996 (o acrdo data de 10 de fevereiro de 2000) a rea era
ocupada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra. Neste caso
especfico, o MS foi deferido em parte porque alegavam os impetrantes no
terem sido notificados da vistoria que seria realizada pelo INCRA, ferindo o
12. MS 22.965-9/SP por unanimidade, deferido em parte. Relator: Ministro Nri da Silveira Impetrante: Slvio Ianni e cnjuge Impetrado: Presidente da Repblica
32
2, do artigo 2 da Lei 8.629/93 13. Outrossim, em despacho da medida liminar
em causa, o Ministro Nri da Silveira, dispondo sobre o pedido de liminar dos
impetrantes de modo a permitir que estes pudessem reassumir o direito de
livremente usar e gozar da propriedade justa e legtima que detinham, decidiu
que:
No cabe, aqui, no mbito de mandado de segurana preventivo
contra ato de Chefe do Poder Executivo, conceder liminar ou qualquer
proviso em ordem ao imediato retorno dos proprietrios posse plena
de um imvel invadido por terceiros, estranhos presente relao
processual.
(MS 22.965-9/SP Rel. Ministro Nri da Silveira)
Ainda, possvel perceber que a jurisprudncia anterior MP
considerou, em muitos casos, que a ocupao da terra configurava fora maior 14, justificando a improdutividade do imvel, como se v na ementa do
Mandado de Segurana 22.328:
EMENTA: DECRETO QUE DECLAROU DE INTERESSE SOCIAL,
PARA FISN DE REFORMA AGRRIA, O IMVEL RURAL DENOMINADO
FAZENDA INGA, NO MUNICPIO DE ALVORADA DO SUL, PARAN.
Procedncia da alegao de que a ocupao do imvel pelos
chamados sem-terra em 1991, ano em que os impetrantes se haviam
investido na sua posse, constituindo fato suficiente para justificar o
descumprimento do dever de t-lo tornado produtivo e tendo-se
revelado insuscetvel de ser removido por sua prpria iniciativa,
configura hiptese de caso fortuito e fora maior previsto no art. 6,
7, da Lei n 8.629/93, a impedira classificao do imvel como no
13. Lei 8.629/93 Art. 2 A propriedade rural que no cumprir a funo social prevista no art. 9 passvel de desapropriao, nos termos desta lei, respeitados os dispositivos constitucionais. 2o Para os fins deste artigo, fica a Unio, atravs do rgo federal competente, autorizada a ingressar no imvel de propriedade particular para levantamento de dados e informaes, mediante prvia comunicao escrita ao proprietrio, preposto ou seu representante. 14. MS 22.328/PR, MS 23.323/PR, MS 23.241/PR, MS 23.563/GO, MS 22.666/PR, MS 22.946/SP
33
produtivo, inviabilizando, por conseqncia, a desapropriao.
Mandado de segurana deferido.
(MS 22.328/PR, Rel. Min. Ilmar Galvo)
A mesma linha jurisprudencial passvel de ser observada na ementa do
MS 22.666/PR, ocasio em que o Tribunal anulou declarao expropriatria
que incidira sobre imvel rural cujas atividades foram injustamente
paralisadas, por efeito de esbulho possessrio praticado, coletivamente, por
movimento de trabalhadores rurais, nos dizeres do Ministro Celso de Mello, na
ADI 2.213-MC/DF (fl. 368):
REFORMA AGRRIA. IMOVEL RURAL. DECRETO QUE O
DECLAROU DE INTERESSE SOCIA, PARA ESSE FIM. ALEGADA AFRONTA
AO ART 185, II, DA CONSTITUIO.
Imvel que cumpriu sua funo social at ser invadido por
agricultores sem-terra, em meados de 1996, quando teve suas
atividades paralisadas.
Situao configuradora da justificativa da fora maior, prevista no
7 do art. 6 da Lei n 8.629/93, que tem por efeito tornar o imvel
insuscetvel de desapropriao por interesse social, para fim de reforma
agrria.
Mandado de segurana deferido
(MS 22.666/PR, Rel. Min. Ilmar Galvo)
Ambos precedentes foram citados no voto do Ministro Celso de Mello,
relator da ADI em questo, e foram utilizados para fundamentar sua deciso
de julgar constitucionais os dispositivos atacados no processo, sendo voto
vencedor no caso. Cabe destacar, no entanto, que existem outros precedentes
que vo no sentido contrrio dos acima apresentados 15. O Ministro Seplveda
Pertence, voto vencido no julgamento em anlise, levanta mandados de
segurana em que o STF no reconheceu efeito imunizatrio propriedade
15. MS 23.054/PB
34
improdutiva por conta de turbao passada. Entres estes, h acrdo
interessante em que colocado que no se justifica a improdutividade de um
imvel quando a ocupao tenha ocorrido quase dois anos antes do decreto de
expropriao. Assim se manifesta o Ministro Ilmar Galvo:
Ora, a visita que desclassificou o imvel, de produtivo para
improdutivo, foi realizada, como se viu, a 16 de novembro de 1998, ou
seja, quase dois anos aps a ltima reintegrao do impetrante
na posse plena do imvel. Conseqentemente, descabida, por
completo, a alegao de que o grau de eficincia na explorao
se devera ao dos sem-terra (grifos meus)
(MS 23.563-2/GO, Rel. Min. Ilmar Galvo)
Este entendimento vai exatamente de encontro Medida Provisria
2.183-56/01 que, entre outras coisas, define que no poder ser alvo de
expropriao o imvel que tenha sido alvo de ocupao, dando-lhe uma
imunidade de dois anos aps o ocorrido, a fim de (...)permitir, ao longo,
daquele lapso temporal, que se torne possvel a reorganizao do sistema de
produo fundiria, alm de viabilizar a prpria recuperao fsica ou material
(...), nas palavras o Ministro Celso de Mello na ADI 2.213 (fl. 392). Passemos,
ento, a analisar a argumentao dos ministros frente a esta demanda, a fim
de destacar suas posies com relao legitimidade, ou no, da atuao dos
movimentos sociais na luta pela terra.
35
2.Anlise dos votos e suas respectivas construes
argumentativas
A Ao Direta de Inconstitucionalidade com pedido de medida liminar,
proposta pela Contag e pelo PT, aponta quatro inconstitucionalidades no
tocante s mudanas provocadas pela Medida Provisria 2.183-56/01. Antes
de explicitar cada uma delas, os impetrantes indicam quais os dispositivos
constitucionais maculados 16.
2.1 Imunidades do art. 185, CF/88
Primeiramente, aponta que seu artigo 2 cria um novo tipo de
propriedade insuscetvel de desapropriao 17, alm daqueles previsto no artigo
185 da Constituio Federal, assim redigido:
Art. 185. So insuscetveis de desapropriao para fins de
reforma agrria:
I a pequena e mdia propriedade rural, assim definida em lei,
desde que seu proprietrio no possua outra;
II a propriedade produtiva.
Pargrafo nico. A lei garantir tratamento especial
propriedade produtiva e fixar normas para o cumprimento dos
requisitos relativos a sua funo social
Segundo os impetrantes, este dispositivo exaure as hipteses de imveis
insuscetveis de desapropriao, visto que ligado ao escopo da poltica de
16. Segundo os impetrantes, os preceitos constitucionais maculados pela Medida Provisria so: art. 5, caput e incisos VIII, IX, XVII, XVIII, XIX, XXIII, XXXV, XXXVI, LIII, LIV, LV, LVII, art. 6, art. 184, caput e art. 185. 17. Art. 95-A Fica institudo o Programa de Arrendamento Rural, destinado ao atendimento complementar de acesso terra por parte dos trabalhadores rurais qualificados para participar do Programa Nacional de Reforma Agrria, na forma estabelecida em regulamento. Pargrafo nico. Os imveis que integrarem o Programa de Arrendamento Rural no sero objeto de desapropriao para fins de reforma agrria enquanto se mantiverem arrendados, desde que atendam aos requisitos estabelecidos em regulamento.
36
reforma agrria, consubstanciada no caput do artigo 184 da CF/88 18.
Interessante observar que no h constatao expressa na Carta de que o rol
de imveis elencados nos incisos do artigo 185 taxativo, o que no permitiria
a criao de novo tipo de imvel que no poderia ser alvo de desapropriao
para fins de reforma agrria. Impe-se, portanto, fazer uma interpretao
sistemtica da Constituio Federal, principalmente levando em conta seus
princpios, essencialmente aqueles que norteiam o Captulo III do Ttulo VII 19
desta, para se concluir qual o objetivo do dispositivo em questo.
O ministro Celso de Mello, relator da ADI 2.213, no que diz respeito a
esta questo, diz que:
(...) o rol inscrito no artigo 185 do texto constitucional,
concebido para proteger, em situaes especficas, o proprietrio rural,
admite, por isso mesmo, a possibilidade de sua ampliao, sempre que
a propriedade rural revelar-se fiel funo social que lhe inerente.
(ADI-MC 2.213 Rel. Min. Celso de Mello)
O ministro fundamenta, ento, que o rol do artigo 185 no taxativo
por conta de um suposto objetivo de proteo aos proprietrios rurais,
implcito nesse dispositivo. Necessrio se faz indagar, no entanto, com base
em que ele concluiu que seria este o objetivo da norma em questo. Fazendo
uma anlise dos artigos da Constituio que tratam da questo fundiria e da
distribuio da terra, possvel observar que esta zela, acima de tudo, pelo
cumprimento da funo social da propriedade, que engloba os seguintes
aspectos:
I. aproveitamento racional e adequado;
18. Constituio Federal de 1988 Art. 184. Compete Unio desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrria, o imvel rural que no esteja cumprindo sua funo social, mediante prvia e justa indenizao em ttulos da dvida agrria, com clusula de preservao do valor real, resgatveis no prazo de at vinte anos, a partir do segundo ano de sua emisso, e cuja utilizao ser definida em lei. 19. Ttulo VII Da ordem econmica e financeira Captulo III Da poltica agrcola e fundiria e da reforma agrria
37
II. utilizao adequada dos recursos naturais disponveis e
preservao do meio ambiente;
III. observncia das disposies que regulam as relaes de trabalho;
IV. explorao que favorea o bem-estar dos proprietrios e dos
trabalhadores. 20
Estas exigncias servem de parmetro para que as terras que no as
executassem pudessem ser desapropriadas e em seguida distribudas entre os
trabalhadores rurais sem terra, a fim de garantir uma agricultura de
subsistncia, essencial para concretizao do princpio da dignidade da pessoa
humana e compatvel com a proposta constitucional de reduo das
desigualdades sociais e de busca do pleno emprego, prevista nos artigos 3, III
e 170, VIII respectivamente. Quando o ministro defende o contrrio, ou seja,
de que as normas constitucionais referentes questo fundiria tm como
objetivo proteger o proprietrio, ele subverte toda a lgica de busca por
distribuio de terra, acabando por mitigar o conceito de funo social da
propriedade.
Exigir que toda propriedade deva cumprir sua funo social , na
realidade, restringir o direito fundamental da propriedade, previsto no
artigo 5, inciso XXII da CF/88. Isso quer dizer que a Carta optou por no
apenas proteger a propriedade daqueles que j a tinham, como tambm,
dentro de uma viso de interesse coletivo, onde inegavelmente a concentrao
agrria leva grande parcela da populao brasileira misria, garantir que a
terra fosse racional e satisfatoriamente utilizada (como em seguida prev o
inciso XXIII do artigo 5 da CF, ao dispor sobre a obrigatoriedade de a
propriedade atender a funo social), no permitindo fenmenos como o da
especulao imobiliria, ou, mais simples ainda, o abandono da terra, sem que
seu proprietrio no sofresse qualquer resposta do Estado.
20. CF/88, artigo 186.
38
No seu voto, ainda, o relator utiliza as informaes prestadas pelo ento
Presidente da Repblica para tentar justificar a no taxatividade do artigo 185
da Carta, quais sejam:
Explicitada a impossibilidade de presumir-se a ausncia de
desempenho da funo social por parte de um imvel rural, restaria
incontestvel a insuficincia da alegao de que seriam suscetveis de
desapropriao todos os imveis rurais no includos no rol do art. 185
da Carta Magna. Nada obstante, analisemos com maior detalhe o que
estabelece o dispositivo constitucional para evidenciar o absurdo em que
se funda a impugnao da Requerente. Em verdade, o art. 185 da
Constituio Federal no exaure as hipteses de realizao da
funo social de um imvel rural, mas antes apenas indica casos
especiais em que o constituinte, para alm da clusula geral de
cumprimento da funo social, afastou peremptria, prvia e
absolutamente a hiptese de desapropriao. Para concluir (...)
basta considerar o que consagrou esse Supremo Tribunal Federal em
outro clarssimo precedente, igualmente da lavra do Ministro Celso de
Mello:
A pequena e mdia propriedade rurais, ainda que
improdutivas, no esto sujeitas ao poder expropriatrio da Unio
Federal, em tema de reforma agrria, em faze da clusula de
inexpropriabilidade que deriva do artigo 185, I, da CF. A
incidncia dessa norma constitucional no depende, para efeito de
sua aplicabilidade, da cumulativa satisfao dos pressupostos nela
referidos (dimenso territorial do imvel ou grau adequado de
produtividade fundiria). Basta que qualquer desses requisitos se
verifique para que a imunidade objetiva prevista no artigo 185
atue plenamente, em ordem a pr-excluir a possibilidade jurdica
de a Unio Federal Valer-se do instrumento extraordinrio da
desapropriao-sano (grifos meus)
(MS 21.919-PE, Rel. Min. Celso de Mello)
39
Faz-se necessrio rebater, no entanto, o primeiro argumento do
Presidente da Repblica. No pedido dos requerentes no se quer que se
presuma a ausncia da funo social em todos os imveis no previstos no
artigo 185 da Constituio Federal. O que se questiona a imunidade dada aos
imveis participantes do Programa de Arrendamento Rural, baseada na
presuno de que todos que deste programa participam cumprem,
conseqentemente, a funo que lhes inerente. Esta postura impede a
desapropriao de imveis que, ainda que participantes do programa, sejam
improdutivos.
No s o Ministro Celso de Mello, relator do caso, defende que o
dispositivo atacado no cria nova hiptese de propriedade insuscetvel de
desapropriao, como tambm diz que, na realidade,
(...) os imveis rurais assim arrendados acham-se claramente
comprometidos com a destinao social que lhes inerente, viabilizando
a plena realizao dos requisitos a que alude o artigo 186 da
Constituio.
(ADI 2.213-MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello)
O ministro toma essa posio por dizer que a norma em causa visava a
dar concreo aos requisitos enumerados no artigo 186, referentes funo
social da propriedade. de se indagar se papel dele dizer que a poltica
criada pelo Governo eficiente e, ainda, se Celso de Mello tinha subsdios para
fazer essa afirmao. Em nenhum momento, porm, ele explicita de que modo
este Programa de Arrendamento Rural capaz de realizar essa concreo do
cumprimento da funo social inerente propriedade. Como este argumento
basilar em sua fundamentao, a fim de decidir pela constitucionalidade do
dispositivo atacado, fazia-se necessrio mostrar em que medida essa funo
era contemplada. Dizer simplesmente que a medida presidencial visa ao
cumprimento dos requisitos do artigo 186 da Carta um argumento
demasiado poroso, sem qualquer fundamentao que possa sustent-lo de
fato.
40
No entanto, o ministro relator acompanhado por todos os outros
ministros, com exceo do Ministro Presidente Marco Aurlio, que decidiu pela
inconstitucionalidade do pargrafo nico do art. 95-A. Cabe aqui mostrar, a
ttulo de comparao, o argumento utilizado pelo Ministro Seplveda Pertence,
a respeito do por que no se pode desapropriar imvel que esteja includo
neste Programa:
ele [pargrafo nico do art. 95-A] se limita a explicitar uma
excluso lgica: se o Programa Nacional de Assentamento um
mecanismo da reforma agrria, no teria sentido algum que, no dia
seguinte ao da destinao de um imvel, por mais improdutivo que
fosse, a esse programa de reforma agrria, ele pudesse ser
desapropriado para a reforma agrria.
(ADI 2.213-MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello)
2.2 Imunidade em razo de esbulho possessrio
Depois de analisado o artigo 95-A, nico, os ministros passaram
anlise da segunda inconstitucionalidade apontada, que de fato a que mais
interessa no presente trabalho, pois diz respeito especificamente ao suposto
esbulho possessrio resultante das ocupaes de terra promovidas por
movimentos sociais, mas que tem relao intrnseca com a discusso que se
faz ao longo das outras inconstitucionalidades apontadas. Segue a transcrio
do dispositivo atacado:
Art 2 (...)
6 O imvel rural de domnio pblico ou particular objeto de
esbulho possessrio ou invaso motivada por conflito agrrio ou
fundirio de carter coletivo no ser vistoriado, avaliado ou
desapropriado nos dois anos seguintes sua desocupao, ou no dobro
desse prazo, em caso de reincidncia; e dever ser apurada a
responsabilidade civil e administrativa de quem concorra com qualquer
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ato omissivo ou comissivo que propicie o descumprimento dessas
vedaes.
Alegaram os requerentes que, em no havendo vistoria dos imveis, por
conseguinte, no se ultima a desapropriao, negando vigncia ao artigo 184
da Constituio Federal em hiptese no recepcionada pelo artigo 185 da Carta
Magna. Ainda, sustentam que criou-se bice que no encontra amparo no
ordenamento interveno estatal para fazer valer a funo social da
propriedade rural. Defendem, por ltimo, que as ocupaes de terra nas suas
variadas formas, no se constituem em esbulho, tendo se revelado em
instrumento legtimo de luta e meio eficaz, para que o prprio governo possa
agilizar o processo de reforma agrria.
Especificamente este ltimo argumento que mais me interessa, pois de
certa forma est ligado questo da desobedincia civil, onde, frente a inrcia
do Poder Pblico e o constante desrespeito a direitos fundamentais, faz-se
necessrio atuar, coletivamente, atravs de meios que a prima facie parecem
ilcitos, mas que se justificam quando analisados frente a um contexto peculiar
de incapacidade do Estado de lidar com as demandas sociais.
De fato, em tese defendida em seu mestrado, o autor Bruno Konder
Comparato cria um organograma 21 capaz de explicar de que maneira as
ocupaes de terra se tornaram meio eficaz para que o governo agilizasse o
processo da reforma agrria. Assim aparenta o organograma das negociaes
entre o MST e o Governo FHC:
21. COMPARATO, Bruno Konder, A Ao Poltica do MST. So Paulo: Expresso Popular, 2000, p. 94.
42
A anlise deste organograma permite perceber que a luta pela reforma
agrria d origem a duas formas de presso sobre o governo, sempre a partir
da ocupao da terra ociosa. A primeira delas aquela exercida pelos sem-
terra acampados, e s se desfaz quando se conquista o assentamento. Surge,
ento, o segundo tipo de presso, que diz respeito ao acesso dos crditos de
reforma agrria pelos assentados, a fim de viabilizar a produo at que o
assentamento adquira autonomia suficiente para ser emancipado.
A mesma eficcia e legitimidade das ocupaes de terra fora dada pelo
Superior Tribunal de Justia STJ. No Habeas Corpus 5.574-SP, o colegiado
decidiu pelo reconhecimento de que as ocupaes movidas por grupo
43
organizado que reivindica a efetiva implementao da reforma agrria,
assegurada constitucionalmente, no configura crime contra o Patrimnio, mas
direito coletivo, expresso da cidadania, conforme nos mostra a ementa:
EMENTA: HC CONSTITUCIONAL HABEAS CORPUS LIMINAR
FIANA REFORMA AGRRIA MOVIMENTO SEM TERRA Habeas
corpus ao constitucionalizada para preservar direito de locomoo
contra atual, ou iminente ilegalidade, ou abuso de poder (Const., art. 5,
LXVIII). Admissvel a concesso de liminar. (...) Caso de concesso de
medida liminar. Movimento popular visando a implantar a reforma
agrria no caracteriza crime contra o Patrimnio. Configura
direito coletivo, expresso da cidadania, visando a implantar
programa constante da Constituio da Repblica. A presso
popular prpria do Estado de Direito Democrtico. (grifos meus)
(6 Turma do STJ, 8 de abril de 1997 HC n 5.574/SP 97.0010236-0,
Rel. Exmo. Sr. Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro. 18/08/97.)
Ainda, a habilidade que as ocupaes tm de pressionar o governo pode
ser observada a partir de tabela que faz uma relao entre o nmero de
ocupaes promovidas pelo MST e os assentamentos realizados 22:
Perodo N de
ocupaes
N de
assentamentos
N de famlias
ocupantes
N de famlias
assentadas
1990-1994 421 478 74.247 65.565
1995-1999 1.855 2.750 256.467 299.323
22. FERNANDES, Bernardo Manano, A Formao do MST no Brasil. Petrpolis: Ed. Vozes, 1999.
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Deste modo, frente a estas diferentes fontes, inegvel o poder que a
mobilizao realizada por este Movimento tem para alcanar os fins a que se
prope. Com isso, de se questionar se o governo teria a mesma pr-
atividade se no houvesse um movimento que o pressionasse pela consecuo
da reforma agrria.
Ainda assim, Celso de Mello, relator do caso, posiciona-se pela
constitucionalidade do dispositivo, alegando que
(...) as normas em questo buscam neutralizar os excessos a
que tm dado causa grupos organizados de trabalhadores rurais,
que transformaram o esbulho possessrio, praticado contra bens
pblicos ou contra a propriedade privada, em instrumento de ao
poltica e de presso social nem sempre legtima sobre o Poder
Pblico, com grave ofensa a postulados e valores essenciais
resguardados pela ordem constitucional vigente em nosso pas. (grifos
meus)
(ADI 2.213-MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello)
A fim de fazer uma anlise crtica da fundamentao do ministro,
entendo ser pertinente desconstruir essa argumentao, de modo a detectar
possveis lacunas ou incoerncias dentro da sua prpria construo
argumentativa.
Primeiramente, ao dizer que o suposto esbulho realizado por grupos
organizados de trabalhadores rurais, o ministro apenas evidencia que de fato
a questo da terra uma causa comum a determinado setor da sociedade,
dizendo respeito, mais diretamente, aos trabalhadores rurais sem terra. Isto
est diretamente ligado construo terica de desobedincia civil de Hannah
Arendt, quando esta mostra que a causa comum surge quando a conscincia
individual de cada sujeito coincide com um certo nmero de conscincias, de
modo a tornar-se parte da opinio pblica. Tem-se, portanto, que:
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(...) tal forma de objeo de conscincia pode se tornar
politicamente significativa quando acontece de coincidir com um certo
nmero de conscincias, e os objetores de conscincia resolvem ir
praa do mercado e se fazerem ouvir em pblico. (...) O que foi decidido
in foro conscientiae tornou-se agora parte da opinio pblica, e apesar
de que este grupo especial de contestadores civis possa ainda alegar a
validao inicial suas conscincias eles na verdade j no contam
mais somente com eles mesmos.
(ARENDT, 2004: p. 63 Crises da Repblica)
possvel dizer que este trecho evidencia como pode se dar a
construo de um movimento social que luta por uma pauta especfica, como
a questo da distribuio de terra, e de certo modo legitima sua atuao pois
mostra que as suas reivindicaes no so despropositadas, mas externalizam
uma demanda da sociedade que o governo no tem sido capaz de dar conta de
atender.
Ainda, no mesmo argumento supracitado do Ministro Relator, possvel
observar que ele, ainda que defenda a ilicitude das ocupaes de terra, as
enxerga como instrumento de ao poltica e presso social e d margem
possibilidade desta forma de atuao ser legtima, ao dizer que nem sempre o
. Ora, se no sempre que as ocupaes so ilegtimas, logo elas devem o
ser em algum momento ou em algumas situaes.
Por ltimo, Celso de Mello diz que essas ocupaes constituem em grave
ofensa a postulados e valores essenciais resguardados constitucionalmente,
mas ele no indica que postulados e valores seriam esses, alm de esquecer-
se de que, ainda que haja um conflito entre estes e a atuao dos
movimentos, faz-se necessrio realizar um sopesamento a fim de observar se
a busca por determinados direitos, tambm constitucionalmente garantidos,
no justifica uma restrio a certos princpios constitucionais.
Apesar de possveis lacunas em seu discurso, o Ministro se posiciona
claramente contra a prtica de ocupao de terra, levantando precedentes do
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STF a fim de embasar sua deciso, dizendo que Esta Suprema Corte no
hesitou em censurar essa ilcita manifestao de vontade poltica. Os acrdos
aos quais ele se referiu dizem respeito ao esbulho como causa impeditiva de
desapropriao e justificadora de improdutividade. Assim sustenta o Ministro:
Esse entendimento que identifica, no ato de esbulho
possessrio, causa impeditiva de declarao expropriatria do imvel
rural, para fins de reforma agrria (MS 23.323/PR, Rel. Min. Nri da
Silveira, v. g.) acentua que a ocupao ilcita de propriedade
imobiliria, notadamente nos casos em que esta se faz de modo
coletivo, alm de impedir, injustamente, que o proprietrio nela
desenvolva regular atividade de explorao econmica, representa
motivo legtimo que justifica, ante o carter extraordinrio de tal
situao, a impossibilidade de o imvel invadido atender os graus
mnimos de produtividade exigidos pelo ordenamento positivo, para,
desse modo, realizar a funo social que lhe inerente.
(ADI 2.213-MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello)
Alm do mandado de segurana supracitado, so utilizados, tambm
como precedentes, o MS 22.666/PR e o MS 22.328/PR, cujas ementas foram
expostas na primeira parte deste trabalho.
parte da anlise da legitimidade da ao dos movimentos sociais, o
Ministro ainda discute a impossibilidade de um imvel ocupado submeter-se a
vistoria a fim de analisar seu grau de produtividade. Assim tambm se
posiciona o ento Presidente da Repblica Fernando Henrique, ao defender que
o imvel invadido no se encontra em condies de submeter-se a vistoria
para configurar o no atingimento dos ndices mnimos de produtividade. De
fato, essa questo discutvel e, ao meu ver, depende de um estudo emprico
que possa comprovar se realmente as ocupaes de terra levam
improdutividade do imvel alvo da ao. O que no se pode fazer presumir
que, inexoravelmente, toda terra ocupada acaba tornando-se improdutiva,
como o faz o Ministro Carlos Velloso quando afirma que:
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(...) uma propriedade rural, objeto de invaso coletiva, tende a
perder sua produtividade, observada esta segundo critrios legais. Pelo
menos, existe uma presuno de que a propriedade invadida
coletivamente perde a sua produtividade. (grifos meus)
(ADI 2.213-MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello)
de questionar de onde vem essa suposta presuno utilizada pelo
Ministro. Essa afirmao, na verdade, sem qualquer fonte que possa
comprov-la, facilita o trabalho do ministro quando ele no tem de comprovar
argumento de tamanho peso para o caso e, porm, de bases muito movedias.
Ao contrrio, muitos so os casos em que os movimentos ocuparam latifndios
tornando-os produtivos, quando estes encontravam-se em situao de
improdutividade. Esta possibilidade inclusive assumida pelos ministros Ilmar
Galvo, Marco Aurlio e Seplveda Pertence, conforme dilogo entre eles no
Plenrio:
O SENHOR MINISTRO MARCO AURLIO (PRESIDENTE)
Ministro [referindo-se a Ilmar Galvo], a aferio disso [possibilidade de
destruio do sistema de produo da propriedade ocupada] s
possvel com a vistoria que o preceito probe, porque, seno,
acabaramos assumindo a posio de legisladores positivos.
O SENHOR MINISTRO ILMAR GALVO Parece-me que s
probe quando uma invaso prolongada.
O SENHOR MINISTRO SEPLVEDA PERTENCE A invaso
prolongada pode at ser produtiva.
O SENHOR MINISTRO MARCO AURLIO (PRESIDENTE)
Claro, pegar-se um imvel improdutivo e torn-lo produtivo.
(ADI 2.213-MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello)
Interessante observar, primeiramente, a preocupao do Ministro Marco
Aurlio de o Supremo tomar posio de legislador positivo, caso dissesse que a
vistoria no seria permitida, por dois anos, em propriedade ocupada desde que
a ocupao fosse prolongada, inteno do Ministro Ilmar Galvo. Da surge
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dois problemas, quais sejam, o primeiro deles a falta de meno, no
dispositivo atacado, ao tipo de ocupao que ensejaria imunidade de dois anos
s propriedades; e segundo deles, a falta de parmetros legais para aferir o
que seria uma ocupao prolongada.
Outro ponto interessante neste dilogo diz respeito possibilidade
efetiva de as ocupaes da terra tornarem-na produtiva. E da surge o principal
problema com relao norma atacada. Qual foi a base utilizada pelo Governo
para definir os dois anos como lapso temporal de imunidade s propriedades
ocupadas? Ainda, como esta imunidade pode ser definida se no h
comprovao emprica de que as ocupaes levam improdutividade da terra,
mas apenas uma suposta presuno, como evidencia o Ministro Carlos Velloso?
A situao ainda se agrava quando considerados que, em caso de reincidncia,
o tempo de imunidade passa