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o miniStério Público e A vinculAção doS pArticulAreS AoS direitoS fundAmentAiS SociAiS

Nelson Rosenvald1

Sumário: 1. Introdução; 2. O Direito Civil na feição liberal; 3. A humanização do Direito Civil ; 4 a eficácia dos Direitos Fundamentais nas relações privadas; 5 o mínimo existencial; 6 o mínimo existencial e os direitos sociais; 7 a privatização dos espaços públicos; 8. A vinculação dos particulares aos direitos sociais ; 9. O Ministério Público e o acesso à Justiça; 10. A atuação do Ministério Público em prol dos Direitos Sociais; 11. O Ministério Público e o poder privado; 12. Conclusão; 13. Referências bibliográficas.

1. INTRODUÇÃO

Ao contrário do que ocorre nas nações desenvolvidas, em países periféricos como o Brasil o Judiciário naturalmente se aproxima dos direitos sociais, inse-rindo em segundo plano as liberdades individuais. Para alguns, a concretização do princípio da igualdade pela via judicial soaria como um demagógico ativismo e uma ameaça a Democracia. Para outros, a judicialização da política representa uma defesa dos direitos fundamentais pelo Sistema Judicial, soando o discurso liberal como conservador ou mesmo oportunista .2

Os direitos fundamentais civis e políticos obtiveram consensual reconheci-mento de sua normatividade e justiciabilidade, sendo recorrente a sua proteção pelo Sistema Judicial. Contudo, a resistência à eficácia social dos direitos fun-damentais ainda impede que significativa parcela da doutrina aceite a sua ap-tidão para gerar direitos subjetivos frente ao Estado ou mesmo perante outros particulares.

A síntese do Estado Democrático de Direito reside em dois valores: a de-mocracia e o constitucionalismo. Aquela simboliza o governo da maioria e a soberania popular concretizada na representação eleitoral; a seu turno, o cons-

1 Doutor e Mestre em direito civil pela PUC/SP. Procurador de Justiça do Ministério Público/MG. Professor de direito civil do curso Praetorium SAT/BH/RJ.

2 Rodolfo Arango bem sustenta que “A questão de se devem as justiças constitucionais reconhecer direitos fundamentais sociais, nomeadamente direitos à alimentação, abrigo, saúde, educação ou segurança social é especialmente importante para uma análise da relação entre justiça constitucional e democracia. Os direitos fundamentais são a pedra fundamental de delimitação entre as decisões constitucionais e a política, uma vez que seu reconhecimento judicial afeta tanto a política econômica, como a competência legislativa” (In: Direitos fundamentais sociais, justiça constitucional e democracia, p. 89).

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titucionalismo é o Estado de Direito, forjado na prevalência dos direitos funda-mentais como limitação ao poder. Eventualmente surgem atritos, quando os po-deres Executivo e Legislativo formulam políticas públicas que ofendem direitos fundamentais. Esta tensão acarretará a intervenção do Sistema de Justiça.

Nosso estudo não só se propõe a prestigiar o decisivo papel do Ministério Público na objetiva concretização de direitos fundamentais sociais em defesa do mínimo existencial perante os poderes públicos, como igualmente, estender o raio de ação tutelar do parquet, a ponto de sustentar a legitimidade de sua intervenção em situações extremas de afetação de particulares pelos poderes privados.

2. O DIREITO CIVIL NA FEIÇÃO LIBERAL

“O oposto do amor não é ódio, mas a indiferença”. Através das palavras de Érico Veríssimo é possível captar o humor das influências recíprocas entre a constituição e o direito privado.

Com o advento do Estado Liberal a convivência foi marcada pela total indi-ferença3. A começar pela edificação quase que simultânea de um constitucio-nalismo liberal e do Código Civil Francês de 1804, alastrou-se pela Europa e, posteriormente pelo Brasil, a epidemia da clivagem entre Estado e sociedade. A dicotomia público e privado4 se insere em um contexto em que a Constituição era a ordem jurídica fundamental do Estado, enquanto o Código Civil tradu-zia a ordem jurídica fundamental da sociedade. Indivíduos formalmente iguais perante a lei buscavam a satisfação de seus interesses sem a interferência do poder público. O Estado era o inimigo a ser combatido, pois a classe social emer-gente desejava um espaço de autonomia para desenvolver suas atividades eco-nômicas, infensas a controles externos.

Este antagonismo afirmou uma primeira geração de direitos fundamentais em que o Estado se enquadrava como único sujeito passivo. Os chamados di-reitos de defesa, com primazia ao indivíduo. Os poderes constituídos seriam contidos e teriam a missão de respeitar o âmbito de autodeterminação dos par-

3 A summa divisio que fraciona o direito em dois ramos – público e privado – tem por marco histórico o Corpus Iuris Civilis. Contudo, Habermas situa tal bifurcação na Grécia. Nas cidades-gregas a esfera da polis, comum aos cidadãos livres, era rigorosamente separada do oikos, particular a cada indivíduo. Esse modelo ideológico de esfera pública helênica se manteve contínuo e na idade média foi difundido através do direito romano. Com o surgimento do Estado moderno, há a nítida separação da esfera pública burguesa da privada. E a medida em que a esfera pública se amplia, adquirindo aparentemente cada vez mais importância, sua função passa a ser cada vez menor (HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural na esfera pública. Rio de Janeiro Tempo Brasileiro, 1984).

4 BOBBIO, Norberto, cunhou a expressão no artigo “A grande dicotomia: público/privado”. In: Estado, Governo e Sociedade. 12. Ed. São Paulo:Paz e Terra, 2005. Para Bobbio, o primado da política (público) ou da economia (privado), justificaria a separação entre as duas tendências.

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ticulares e proteger a propriedade. Trata-se de um ideal absenteísta, de preser-vação de direitos naturais e liberdades no seio da sociedade civil, converten-do-se súditos em cidadãos. A classe burguesa demandava a sua emancipação, respaldando-se na tradição jusnaturalista da prioridade do indivíduo sobre a comunidade.

A permanência estável do referido ambiente propiciou o desenvolvimento do comércio e a multiplicação de riquezas como nunca havia se experimentado na história da humanidade.5 Para o que nos interessa, o Estado liberal moldou o direito civil patrimonial, centrado em três protagonistas: proprietário / con-tratante / pai (marido). Este último, conduzindo a família como uma unidade produtiva e reprodutiva, de forma a que o patrimônio amealhado em vida seria transferido aos filhos oriundos do matrimônio.

Eis aí a “era dos códigos”, na qual a segurança jurídica figurava como valor precípuo. Afinal, importava assegurar o status quo. Nas nações que seguiam a tradição romano-germânica, o Código Civil se afirmou como a própria consti-tuição da sociedade. A codificação do século XIX e o nosso tardio Código Bevi-láqua6, exaltavam o monismo das fontes. A saber, o direito civil era sinônimo de código civil. O Estado monopolizava a produção das normas de direito privado, o formalismo jurídico prestigiava a rigidez da hermenêutica, desenvolvendo-se assim um sistema em que a legislação era impermeável às necessidades e ur-gências sociais. Os magistrados, propositalmente neutros, laboravam a base do silogismo da subsunção, tal como autômatos, reproduzindo na concretude de suas decisões o receituário legislativo. Na linha da exegese, sequer se exigiria conhecimento especializado, bastaria aos juizes à alfabetização.

Na miopia do direito como ciência pura, olvida-se do homem como ser hu-mano real, capta-se apenas o indivíduo abstraído em suas relações econômicas. O direito civil era um território franqueado para poucos, eis que emancipação e cidadania refletiam privilégios, a medida em que o ordenamento privado não recepcionava os diferentes.

5 Tércio Ferraz insere o Estado-Leviatã de Hobbes como corpo artificial que encarna o social e será capaz de conformar o que é público e o que é privado. O privado se identifica com a idéia de riqueza, de propriedade. A proteção da sociedade econômica contra os excessos do Estado se dá pelos direitos individuais, que são os direitos do burguês. Distingue-se o direito público do privado como a oposição entre os interesses do Estado (administração, imposição de tributos e penas) e os interesses dos indivíduos (suas relações civis e comerciais cuja base é a propriedade da riqueza)”. In, FERRAZ JR, Tércio Sampaio, Introdução ao estudo do direito. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

6 Na prática brasileira a clivagem público/privado não aconteceu na prática em razão do patrimonialismo que assaltava os poderes constituídos. José Julio Senna bem pondera que “inegavelmente, faltou aos portugueses a compreensão da natureza do processo de desenvolvimento. Quiseram viver sem trabalhar. A eles escapou a noção de que o desenvolvimento econômico é praticamente sinônimo de obtenção de ganhos permanentes de produtividade. Também não perceberam que o referido processo requer um quadro institucional adequado, capaz de incitar investimentos” (SENNA, José Júlio, Os parceiros do rei, 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995.

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Nas primeiras décadas do século XX, o Estado liberal demonstrou sinais de fadiga. A “mão invisível” do mercado não foi capaz de solucionar as premências sociais, pois inexistiam instituições que o regulassem. A percepção de que o or-denamento jurídico deveria agir para atenuar desigualdades e libertar indivídu-os de necessidades, propiciou o surgimento do intervencionista Estado social, o welfare state. Os direitos sociais de segunda geração já não mais correspondiam a uma posição de abstenção por parte do Estado, mas à efetivação de prestações positivas pela via de concessão de direitos promocionais e condições materiais para o desfrute de liberdades.

O Estado Social introduziu uma ampla gama de normas de ordem pública cujo objetivo era frear a autonomia da vontade em relações jurídicas marcadas pela assimetria. Os códigos perdem o papel monopolista, passando a concorrer com legislação emergencial. Nada obstante o acréscimo da intervenção esta-tal na vida privada, as bases do direito civil se mantinham sólidas. Afinal, as normas constitucionais mantinham o seu conteúdo meramente programático, como cartas de intenção. Apesar dos direitos fundamentais contarem com uma dimensão subjetiva, a ponto de ensejarem pretensões negativas (de defesa) ou positivas (de prestação), ainda não alcançam a posição de princípios básicos da ordem constitucional.

3. A HUMANIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL

“Ontem os Códigos, hoje as Constituições”, concluí Paulo Bonavides. O pós 2. guerra mundial é o marco histórico renovatório da ciência do direito. As incom-paráveis atrocidades praticadas pelos Estados totalitários contra a civilização, paradoxalmente receberam o amparo formal da lei. As chagas do nazifascismo representaram o lado extremo do ocaso do liberalismo.

O neologismo neoconstitucionalismo expressa uma aproximação entre a Constituição e a Democracia pela via da reconstrução dos direitos fundamen-tais. Se antes se mostravam acanhados, convertem-se em princípios capazes de expressar uma ordem de valores objetivada pelas Constituições maximalistas.

Os direitos fundamentais assumem então uma dimensão objetiva. Superam o status de garantias de situações individuais, passando a ostentar a enverga-dura de bens jurídicos essenciais, de máxima efetividade, com força expansiva e eficácia irradiante a todo o ordenamento jurídico.

A medida em que a Constituição dos Estados Democráticos de Direito lança os seus tentáculos para os demais ramos do ordenamento, não mais se conten-ta com a simples condição de ordem jurídica fundamental do Estado, tornando--se igualmente a ordem jurídica fundamental da sociedade. Conseqüentemente, rompe-se a dicotomia público/privado, inexistindo ilhas inóspitas à Constitui-

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ção. Estado e sociedade não mais se opõem. Pelo contrário, unem-se em direção a uma ética de tutela material do princípio da dignidade da pessoa humana.

O Estado Democrático de Direito é por essência um agente de transforma-ção social, tendo por função precípua a concretização dos direitos fundamen-tais previstos em sede constitucional. A seu turno, ao inserir a pessoa como valor maior, fim e fundamento do ordenamento jurídico, a dignidade humana se anuncia como o seu elemento estruturante, verdadeiro manancial de direitos fundamentais, podendo ser esmiuçada na incondicional proteção da integrida-de psicofísica da pessoa, bem como em sua liberdade, igualdade e solidariedade perante os demais membros da comunidade. A dignidade da pessoa humana é uma cláusula geral de respeito à condição humana.

O efeito de tais impactos no direito civil é devastador. A tão propalada despa-trimonialização ou repersonalização do direito civil é uma conseqüência certa da alteração de paradigmas. Afinal, o direito privado das coisas e bens se trans-forma no direito das pessoas. O civilista, antes recluso, despe-se da vaidade e da arrogância e calça as “sandálias da humildade”, pois percebe que o sujeito do direito não se limita ao titular dos bens, cabendo à sociedade civil recepcionar aqueles que almejam “vir a ter e vir a ser”.

O valor da segurança jurídica mantém posição de fundamentalidade na or-dem jurídica. Contudo, se antes o princípio implicava em conservação do imo-bilismo, preservação de direitos adquiridos e prestígio ao ato jurídico perfeito, doravante merecerá releitura adequada à realidade de uma nação extremamen-te desigual. Haverá segurança jurídica quando Estado e sociedade se compro-meterem a cumprir o projeto constitucional de uma sociedade mais justa e vol-tada ao projeto solidário de erradicação da miséria.

No plano prático, a repersonalização insere o direito civil na legalidade constitucional. Em um ordenamento jurídico unitário e complexo, impossível associar o direito civil ao código civil. O direito é um sistema aberto de valores e a natureza normativa da Constituição Federal se exterioriza por um conjunto de princípios e regras destinados a realizá-los. Em sociedades complexas, o direito se revela por uma pluralidade de fontes e o método da subsunção (aceito em um viés positivista) é substituído por uma renovada teoria da interpretação jurídi-ca, fundamentada em procedimentos argumentativos, conforme as escolhas de fundo do ordenamento, com aptidão para extrair dos princípios a sua eficácia transformadora.

O pós-positivismo não despreza o direito posto. Todavia, a passagem da lei ao direito é um processo contínuo pautado em atividade hermenêutica. Em sentido figurado, podemos perceber o ordenamento como um iceberg. A parte visível aos olhos representa a letra da lei, porém a maior parte se encontra sub-mersa. É lá que a vida acontece e as necessidades sociais pautam o processo de

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interpretação do direito por outras fontes, como os costumes, a doutrina e a jurisprudência.

O Código Civil de 2002 não possui pretensões totalitárias. Jean Cruet ob-servou que o direito não domina a sociedade, apenas a exprime. Miguel Reale renuncia a possibilidade de crioconservação do direito privado em laboratórios estatais, pois o fenômeno jurídico é construído pela experiência de uma socie-dade e se refere à historicidade de um processo cultural. Pode-se dizer que o Có-digo Reale desfruta da centralidade do direito privado, concorrendo com outros centros de irrupção de regulamentação civil e sempre prestigiando o diálogo de fontes com a Lei Maior, afinal, os valores que ela concretizou em direitos funda-mentais representam a viga mestra do direito privado. A supremacia e unidade da Constituição Federal exigem que as normas de direito privado sejam subme-tidas a um permanente processo de filtragem. Obriga-se o civilista a adotar uma postura antropocêntrica e emancipatória.

4. A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS

A eficácia interprivada dos direitos fundamentais, também conhecida como eficácia externa ou horizontal dos direitos fundamentais, deriva de intensos de-bates ocorridos na Corte Constitucional da Alemanha há mais de 50 anos. No Brasil, a questão aflorou nos últimos 10 anos, primeiramente pela democratiza-ção tardia e, por que não dizer, pelo lento e contínuo afastamento do “mal-estar constitucional” que persiste na mente de considerável parcela de operadores de direito.

Em sua dimensão objetiva os direitos fundamentais assumem eficácia irra-diante e condicionam a atuação dos poderes constituídos, direcionando o admi-nistrador para a realização dos programas constitucionais – invalidando os atos que deles se afastem -, gerando efeitos diretamente sobre as normas de direito privado, evidenciando ainda a necessidade do julgador fundamentar as suas decisões nos valores neles consubstanciados, mesmo contra legem. Trata-se da eficácia vertical e direta dos direitos fundamentais nas relações entre particula-res e todos os poderes estatais, sedimentada na norma-princípio de otimização do art. 5., par. 1. da Constituição Federal: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. É abolida a concepção formal pela qual os direitos fundamentais só seriam vivificados por intermediação le-gislativa. Revestem-se eles de eficácia plena perante os órgãos estatais, cabendo a estes dotar as normas de direitos fundamentais de máxima efetividade.

Quando dois ou mais particulares praticam um ato dispositivo de titulari-dade ou de trânsito creditício, centram-se as atenções nos modelos jurídicos da propriedade e dos contratos, alicerces do direito civil tipicamente liberal. Nada

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obstante, a liberdade de contratar e o acesso à propriedade - reflexos da autono-mia privada na órbita civil -, configuram-se direitos fundamentais de desenvol-vimento da personalidade, eis que, a dignidade da pessoa humana se evidencia, dentre outras vias, pela percepção do indivíduo como pessoa racional e livre, com capacidade de autodeterminação.

Ocorre que a liberdade econômica tutelada pelo Estado Democrático de Direito, não raras vezes será fator de opressão, pois as relações patrimoniais em boa medida culminam por restringir a liberdade para o futuro, gerando a instrumentalização da pessoa pela via negocial. É evidente que em nações glo-balizadas, a perspectiva dos direitos fundamentais seja redimensionada, pois no Estado Democrático de Direito que se assuma como tal, o maior predador do ser humano não é o Estado, e sim o mercado e outras forças sociais: grandes grupos econômicos e o poder privado. Enfim, os direitos fundamentais também vinculam as pessoas naturais e jurídicas.

O Estado, agora amigo, não apenas se incumbe da função de respeito aos di-reitos fundamentais – seja pela via da defesa, como pelo dever de prestação -, mas sobre os seus ombros recaí a tarefa de socorrer a sociedade civil contra si própria. Cuida-se do dever de proteção, vazado na necessidade do poder público acautelar e promover os direitos fundamentais nas relações particulares, primordialmente impedindo que situações existenciais sejam fragilizadas na órbita privada e, sub-sidiariamente, estabelecendo eficazes mecanismos de punição e reparação con-tra violações concretizadas. O princípio da dignidade da pessoa humana estará presente em todos os momentos da atividade econômica, para reprimir as inicia-tivas que desconsiderem o valor da pessoa, bem como para conformar o exercício das liberdades ao plano da legitimidade do ordenamento jurídico.

Foge ao objetivo do texto a distinção entre a eficácia imediata ou mediata dos direitos fundamentais às relações entre particulares. A tendência doutriná-ria é a de evitar unilateralismos, admitindo-se soluções ecléticas pelas quais o próprio legislador já tenha previsto normas infraconstitucionais de solução de tensões – ou mesmo cláusulas gerais -, e outras hipóteses em que a omissão do legislador demandará a aplicação direta do direito fundamental pelo julgador, conforme interpretação construtiva do art. 5, parágrafo 1., da Constituição Fe-deral. O mesmo se infere nos casos em que a lei existente é ofensiva a direitos fundamentais. De fato, em um Estado Democrático de Direito não há espaço para uma visão bipartida do ser humano: seja em suas relações com o Estado, como com a sociedade, a sua titularidade de direitos fundamentais será presti-giada pelo ordenamento.7

7 Com esteio na posição de J. Rivero, JJ. Gomes Canotilho, Direito constitucional, p. 1251, ensina que descabe uma dupla ética no seio da sociedade. “Essa dupla ética existe quando por exemplo, se considera como violação de integridade física e moral, a exigência de testes de gravidez de mulheres que procuram emprego na função pública, e, ao mesmo tempo, se toleram e aceitam esses mesmos testes quando o pedido de emprego é feito a entidades privadas em nome da autonomia contratual e empresarial”.

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Outrossim, há uma impropriedade na adoção da locução eficácia horizontal como contraposição à eficácia vertical no império das relações privadas. Nas relações sociais a excessiva assimetria entre os envolvidos – normalmente em vínculos entre empresas de grande porte e particulares -, culmina por reprodu-zir na esfera social a mesma situação que remete ao aspecto verticalizado das relações entre os particulares e o poder estatal. Porém, nas relações efetuadas entre particulares em situação de relativa igualdade material – sem qualquer um deles expresse uma posição de poder social -, será possível cogitar de um plano horizontal de direitos fundamentais, em que certamente o impacto da Constituição sobre a autonomia privada será bem menos extenso que nas hipó-teses pregressas.8 Daí a preferência pela adoção da expressão eficácia privada dos direitos fundamentais.

A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares tende a conciliar harmonicamente o princípio da autonomia privada com outros direi-tos fundamentais. Destarte, há um componente que diferencia as relações entre particulares das relações destes com o Estado: enquanto aqui há apenas um titular de direitos fundamentais, lá os dois pólos da relação jurídica titularizam direitos fundamentais. Isto implica em aceitar conflitos que reclamarão solu-ções diferenciadas conforme um juízo de ponderação.

A Constituição Federal é uma carta dialética que consagra bens jurídicos contrapostos. A priori não existem valores abstratamente superiores a outros. Fatalmente a colisão de princípios será inevitável na concretude da vida. A in-tensidade da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais requer um balanceamento de bens jurídicos por magistrados e tribunais, considerando-se as peculiaridades do caso. O fato é que todos as relações privadas são referen-ciáveis a direitos fundamentais e o sopesamento de tais tensões demandará os critérios hermenêuticos do princípio da proporcionalidade. Importante critério para a equalização de tensões entre direitos fundamentais privados se refere à desigualdade fática entre o detentor de poder social e o indivíduo fragilizado, inibido em sua esfera de autonomia. O ordenamento jurídico tenderá a velar pela parte que se submeteu ao poderio privado.

5. O MÍNIMO EXISTENCIAL

Em uma perspectiva emancipatória do sistema jurídico, entende-se que o patrimônio não é um fim em si mesmo, pois uma parcela de sua composição é imune à ação dos privados (credores gerais ou especiais), eis que afetada a

8 Carlos Alberto da Mota Pinto defende a incidência de direitos fundamentais nas relações em que não exista hipossuficiência de uma das partes apenas quando se verificar violação de direitos da personalidade de um dos contratantes, como, exemplificadamente, a recusa de contratar com base em discriminação religiosa. (MOTA PINTO, Carlos Alberto da. Teoria geral do direito civil, p. 75).

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salvaguarda do mínimo existencial da pessoa humana. Certos bens pessoais são funcionalizados ao plano da dignidade humana.

O patrimônio não pode mais se resumir a um complexo de relações econô-micas de um indivíduo cuja finalidade é preservar a segurança de relações cre-ditícias. A ordem constitucional demanda que uma fração do patrimônio atue como um meio de promoção de uma vida digna. Luis Díez-Picazo considera que “no es difícil establecer que la necesaria protección de la persona y la salvaguarda de su dignidad y de su libertad, exigen el reconocimiento de un determinado ám-bito de poder económico. La Idea del patrimonio aparece así como una derivación necesaria de la idea misma de persona”.9

Assim, a dignidade da pessoa humana assume um papel de defesa da in-tegridade humana em dois planos: a) tutelando as situações jurídicas da per-sonalidade de modo a preservar estes bens jurídicos intrínsecos e essenciais; b) situando a missão de parte do patrimônio, justamente na preservação das condições materiais mínimas de humanidade, o chamado patrimônio mínimo.

Em obra pioneira, Luiz Edson Fachin esclarece que “a proteção de um patri-mônio mínimo vai ao encontro dessas tendências (de despatrimonialização das relações civis) posto que põe em primeiro plano a pessoa e suas necessidades fundamentais”.10

Justifica-se esse posicionamento, vez que o ser humano é o fim da ordem jurídica e não meio de afirmação de interesses patrimoniais alheios. Para tanto, urge atravessar as fronteiras dos direitos da personalidade, para garantirmos que a pessoa não será reificada por relações econômicas, principalmente em tempos de darwinismo socioeconômico em que os valores monetários do mer-cado se sobrepõem aos valores morais da ética.

Em acréscimo à terminologia tão bem empregada por Fachin, cremos que a moldura do patrimônio mínimo deve ser acrescida pelo predicado “existencial”. Não se trata de uma tautologia, muito pelo contrário. O objetivo é afirmar que a ordem civil de um Estado Democrático de Direito é agente de transformação social, pois a segurança jurídica não compactua com a liberdade travestida em inércia e preservação de status quo. A segurança no contexto brasileiro clama pela redução das desigualdades sociais e afirmação de cidadania.

Assim, o mínimo existencial é algo quantitativa e qualitativamente superior ao mínimo vital. Este se identifica com a postura estatal ativa de manutenção do mínimo fisiológico e orgânico do ser humano. É o necessário para a preserva-ção da vida. Trata-se do “bolsa família”.

9 Luis Díez-Picazo, c.f. Fundamentos del derecho civil patrimonial, cit., p. 46.10 Luiz Edson Fachin, Cf. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, cit., p. 41.

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Porém, o ser humano possui demandas que não são compartilhadas pelas outras formas de vida na natureza. Nossa existência não se resume a processos mecânicos, haja vista que a racionalidade e a liberdade nos impelem à felicida-de. O homem aspira ir além da mera sobrevivência e criar sentido para o mun-do. O ser humano necessita de uma vida digna. Na lúcida advertência de Ingo Sarlet, “a garantia efetiva de uma existência digna abrange mais do que a garan-tia da mera sobrevivência física, portanto, além do limite da pobreza absoluta. Sustenta-se, nesta perspectiva, que se uma vida sem alternativas não corresponde às exigências da dignidade humana, a vida humana não pode ser reduzida à mera existência”.11

Ana Paula de Barcellos é veemente: “ninguém terá dúvida de que uma pessoa que mora sob uma marquise ou uma ponte é um desamparado que necessita de abrigo. Ninguém questionará que esta é uma situação indigna e, a fortiori, que a dignidade desse indivíduo está sendo violada”. 12

Destarte, o mínimo existencial atende ao mínimo sociocultural de uma vida saudável com possibilidade de realização de escolhas que atendam ao pleno de-senvolvimento da personalidade. O ingresso à saúde básica, o ensino fundamen-tal, assistência social, moradia, cultura e lazer, são meios tendentes à promoção da igualdade material. Estes bens jurídicos formam o elemento nevrálgico dos direitos fundamentais sociais, sendo interditada qualquer forma de intervenção restritiva por parte do Estado ou de particulares. Na música e letra dos Titãs, “agente não quer só comida, agente quer comida, diversão e arte...”.

6. O MÍNIMO EXISTENCIAL E OS DIREITOS SOCIAIS

Em seu perfil oitocentista e liberal, o direito civil possuía alicerces sólidos na proteção patrimonial. A propriedade e os contratos formavam os pilares de um regime dedicado à apropriação e conservação de bens. Os direitos funda-mentais se concretizavam com o livre estabelecimento de relações particulares, refletindo a clivagem entre o público e o privado, diante de um Estado ausente, espectador inerte do jogo do mercado, que só se manifestava em última instân-cia, para preservar as regras do jogo.

Paulatinas transformações ocorreram em tal cenário nos últimos cem anos, sendo que um dos últimos capítulos coincide com a implantação de uma tábua de valores constitucionais, apta a exigir uma releitura do estatuto patrimonial das relações privadas, funcionalizado à promoção da dignidade, solidarismo e igualdade substancial. A urgência se revela na determinação da preponderân-cia da pessoa em relação ao patrimônio. Sendo a Constituição o centro unifica-

11 Ingo Sarlet, Cf. Mínimo existencial e direito privado, cit., p. 53.12 Ana Paula de Barcellos, A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais, p. 193.

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dor do ordenamento, a normatividade de seus princípios permite a aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas, mitigando-se a dicotomia pú-blico/privado, pois não mais existem espaços imunes ao alcance de parâmetros normativos substancialmente mais justos.

Justamente pela tradição liberal do ordenamento no respeito à esfera de autonomia individual, são os direitos fundamentais individuais que gozam de maior prestígio nas constituições, a ponto de inexistir controvérsia no tocante a judiciabilidade das liberdades públicas.

Mas isto não é o bastante. O neoconstitucionalismo também captura os di-reitos sociais como fundamentais, eis que concernem as realizações dos obje-tivos fundamentais da República. Todavia, quanto a estes não há unanimidade, respeitante a sua judiciabilidade, em razão de sólida resistência à afirmação his-tórica dos direitos fundamentais sociais como direitos subjetivos.13

Em homenagem a tripartição de poderes, os procedimentalistas, capitanea-dos por Habermas14 assumirão os direitos sociais na esfera clássica de discricio-nariedade do Executivo e Legislativo – munidos de representação eleitoral - e os classificarão como infensos ao Judiciário, desprestigiando o chamado “ativismo judicial”.

Contudo, em uma postura substancialista, há de se defender a supremacia da Constituição, elevando-se o Judiciário ao patamar dos demais poderes, su-prindo as suas omissões e alimentando o acesso à justiça sempre quando es-timulado a agir através dos procedimentos enfatizados na Lei Maior, mediante decisões fundamentadas e submetidas às garantias constitucionais. Caso con-trário, em um quadro social permeado por carências de toda ordem, os espa-ços públicos que não forem ocupados pelo Judiciário, reverterão em favor da criminalidade, de movimentos sociais de cunho messiânico, ou de políticos que se perpetuem pela demagogia. Em qualquer das situações o indivíduo não se emancipa, posto refém de sua própria necessidade.

Todos os direitos sociais são fundamentais, tenham sido eles expressa ou implicitamente positivados, ,estejam eles situados no Título II da CF ou disper-sos pelo restante do texto constitucional. Portanto, encontram-se submetidos à disciplina do art. 5. par. 1., da CF, dotados da máxima eficácia em um processo

13 Cláudio Ari Mello explica que “A derradeira conquista na luta pela efetividade dos direitos sociais foi a da justiciabilidade, e por justiciabilidade quero significar a exigibilidade judicial da prestação que satisfaz o bem tutelado pelo direito social, tese que remonta a idéia de que a cada direito corresponde uma ação que o assegura” (In: Os direitos fundamentais sociais e o conceito de direito subjetivo, p. 124)

14 Para Jürgen Habermas, a legitimidade se assume pela legalidade, “por isso, introduzi um princípio do discurso, que é indiferente em relação à moral e ao direito. Esse princípio deve assumir – pela via da institucionalização jurídica - a figura de um princípio da democracia, o qual passa a conferir força legitimadora ao processo de normatização” (In: Direito e Democracia, v. 1, p. 158).

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de otimização pautado pelo conjunto de princípios fundamentais e à luz das circunstâncias do caso concreto.

Nas palavras de Ingo Sarlet15 há um direito fundamental às condições ma-teriais que assegurem uma vida com dignidade, conciliando-se a garantia da liberdade com um mínimo de segurança social. O mínimo existencial independe de expressa previsão constitucional para que se afirme sua qualidade de direi-to-garantia fundamental autônomo, eis que a vida condigna é núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais, blindada contra qualquer intervenção estatal ou da sociedade.16

As prestações abrangidas no âmbito do mínimo existencial guardam prece-dência sobre quaisquer outras políticas públicas. A negação do núcleo duro dos direitos fundamentais demandará a sindicabilidade pelo controle jurisdicional, salvaguardando-se a força normativa da Constituição.

Neste passo, em algumas oportunidades o Supremo Tribunal Federal17 con-cretizou o mínimo existencial de cunho prestacional, em sede de saúde e edu-cação. A judicialização da política implica em uma reavaliação dos limites do poder Judiciário. Se antes neutro e asséptico, perpetuador do status quo, hoje se revela dinâmico e ativo participante da criação do direito, ingressando em seto-res que a dogmática salvaguardava ao Executivo e Legislativo, com o fito de efe-tivar direitos constantemente frustrados pela deficiência dos demais poderes.18

Por outro lado, é válida a advertência de Luís Roberto Barroso19 no senti-do de esclarecer que o Judiciário “não deve querer ser mais do que pode ser,

15 SARLET, Ingo., op. cit, p. 72.16 Ana Paula de Barcellos frisa que “ao mínimo existencial se reconhece a modalidade de eficácia jurídica

positiva ou simétrica – isto é, as prestações que compõem o mínimo existencial poderão ser exigidas judicialmente de forma direta – ao passo que ao restante dos efeitos pretendidos pelo princípio da dignidade da pessoa humana serão reconhecidas apenas as modalidades de eficácia negativa, interpretativa e vedativa do retrocesso, como preservação do pluralismo e do debate democrático”. (BARCELLOS, Ana Paula de, A eficácia jurídica dos princípios constitucionais, cit., p. 305).

17 Na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 45, o STF se pronunciou acertadamente nas palavras do Ministro Celso de Mello: “a meta central das Constituições modernas, e da carta de 1988 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial), estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. O mínimo existencial como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível”.

18 Mauro Cappelletti aponta para um quadro de “orgia legislativa” na qual “o único elemento que permite suportar os abalos traumatizantes infligidos ao corpo social pela moderna cirurgia legislativa é, justamente a reserva de princípios acumulados progressivamente e o contínuo progresso da tradição jurisprudencial” (In, Juizes legisladores?, p. 19).

19 BARROSO, Luis Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva, p. 2. O autor enfatiza que “No âmbito das ações individuais, a atuação jurisdicional deve se ater a efetivar a dispensação dos medicamentos constantes das listas elaboradas pelos entes federativos... circunscreve a atuação do Judiciário a efetivar a realização das opções já formuladas pelos entes federativos”.

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presumindo demais de si mesmo e, a pretexto de promover direitos fundamen-tais de uns, causar grave lesão a direitos da mesma natureza de outros tantos”. A intervenção do Judiciário só ocorrerá se vulnerado o mínimo existencial de qualquer pessoa. Caso contrário, em respeito ao princípio democrático, deve-rá prestigiar as ponderações efetuadas pelo legislador. Certamente o excesso de judicialização das decisões políticas pode levar à não realização prática da Constituição. Decisões emocionais que condenam ao custeio de tratamentos irrazoáveis – seja porque inacessíveis ou destituídos de essencialidade – bem como de medicamentos experimentais ou de eficácia duvidosa. Tais excessos desorganizam a atividade administrativa e impedem a alocação racional de es-cassos recursos públicos.

7. A PRIVATIZAÇÃO DOS ESPAÇOS PÚBLICOS

O pêndulo oscila. Acreditava-se que o poder público desempenharia o papel que lhe fora confiado pelo ordenamento jurídico, distribuindo o mínimo exis-tencial aos setores marginalizados da sociedade. Se no Estado Liberal o bem estar da população desfavorecida era objeto de caridade por instituições par-ticulares, o Estado Social converteu a caridade em um direito, prestigiando a igualdade material e o acesso ao mínimo existencial, expiando a culpa dos mais favorecidos pela via da tributação.

Todavia, a promessa estatal de um cobertor social não foi cumprida a con-tento. É evidente a crescente sensação de fragilidade e impotência daquele que ostentava a função de ordenador social. O poder público se mostrou ineficiente para realizar no plano real a transfiguração sonhada pela Constituição Federal. Carência de recursos, máquina ineficiente, ausência de gestão, malversação de verbas. O Estado se ausenta em posições determinantes de defesa da vida dig-na e culmina por restituir à livre iniciativa os setores da economia que havia abraçado.

Para além da privatização, a pós-modernidade revela o fenômeno da glo-balização, como grande desafio à noção de soberania. Cada vez mais o Estado se incapacita de impor suas regras e normas isoladamente, pois atualmente a tarefa de distribuir o direito também incumbe às forças econômicas, pela via da lex mercatoria20. Constata-se o fortalecimento de grandes grupos empresa-riais dentro de uma “nova desordem mundial”. De fato, paira uma desconfor-

20 Véra de Fradera questiona a concepção estatal de direito, ponderando que “a grande liberdade de que goza a lex mercatoria, independente de todo e qualquer ordenamento nacional, gere um certo mal-estar e insegurança naqueles que só acreditam em um direito provindo do estado, olhando com desconfiança as manifestações da prática na criação de regras de conduta. Assim, para esses juristas, o costume e a lex mercatoria devem ser descartados, olvidando que hoje, no mundo todo, há um expressivo retorno ao costume e à lex mercatoria, inclusive entre nós” ( FRADERA, Véra Maria Jacob. O direito dos contratos no século XXI. São Paulo: Saraiva, 2005)

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tável sensação de que agora ninguém parece estar no controle. Antes todas as ações e iniciativas de ordenação eram locais, hoje não há mais uma localidade com arrogância bastante para falar em nome da humanidade como um todo. Forças anônimas operam na vasta terra de ninguém. Como percebe Zygmunt Bauman,21a separação entre economia e política e a proteção da primeira con-tra a intervenção regulatória da segunda, resulta na perda de poder da política como um agente efetivo. As soberanias tornaram-se nominais.

A fuga do Estado acarreta uma espécie de feudalização do direito privado. O indivíduo, quando livre do jugo da necessidade, deseja a educação privada, a saúde privada, a aposentadoria privada, e, alguns mais privilegiados, a segu-rança privada. Outrossim, a fuga do Estado inclui a desconfiança do poder judi-ciário, pelo fortalecimento de arbitragem e vias alternativas de composição de litígios, utilização de cláusulas contratuais hauridas de outros sistemas, bem como a adoção dos gentlemen’s agreement, acordo que não passa de um discur-so mascarado de boas intenções, para que os contratantes recusem a legislação estatal e se submetam aos seus próprios regramentos.

O lado mais sombrio desta crise, anuncia Daniel Sarmento22, é o que se rela-ciona ao retrocesso nos níveis de proteção às populações carentes proporciona-dos pelos direitos sociais. As prestações estatais voltadas ao atendimento das carências dos excluídos são privatizadas, escapando da condição de deveres es-tatais. Cuida-se de um verdadeiro desmonte do estado social, que assume tons catastróficos em uma nação subdesenvolvida como o Brasil.

A lógica empresarial do lucro assume o trato das demandas sociais de forma distinta a do poder público. A dignidade pode ser flexibilizada ou mesmo supri-mida em nome de pragmatismos e visões utilitárias do ser humano. O mercado não atenta para parâmetros de exclusão social e a economia é progressivamente isentada de controle político.

A evidente inaptidão da Constituição para responder às afrontas que lhe são dirigidas pela pós-modernidade não pode, de maneira alguma, servir de justi-ficativa para renunciarmos a sua condição de vetor axiológico do ordenamento jurídico e diretriz normativa de todas as relações jurídicas da vida em socieda-de. Muito pelo contrário, é hora de reafirmarmos a centralidade da Constituição e sua eficácia sobre as relações entre particulares, particularmente, naquilo que respeita aos direitos fundamentais sociais, cuja missão é deferir a todo o ser humano a salvaguarda do mínimo existencial.

21 O autor entende que “o significado mais profundo transmitido pela idéia de globalização é o do caráter indeterminado, indisciplinado e de autopropulsão dos assuntos mundiais; a ausência de um centro, de um painel de controle, de uma comissão diretora, de um gabinete administrativo”. (BAUMAN, Zygmunt, Globalização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999).

22 O autor lembra que “se nunca fomos um Estado Liberal, também jamais conseguimos ser um verdadeiro Estado Social”. A trajetória da dicotomia público/privado, p. 250.

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8. A VINCULAÇÃO DOS PARTICULARES AOS DIREITOS SOCIAIS

Em princípio, diante de uma violação perpetrada pelo Estado, os direitos sociais fundamentais não ensejariam aos particulares direitos subjetivos indi-viduais e pretensões invocáveis diretamente ao poder judiciário. Estes direitos estariam submetidos à reserva do possível em um contexto democrático de po-líticas públicas com respeito ao princípio da separação dos poderes. A matéria seria submetida ao crivo da ponderação efetuada pelo poder legislativo em pa-râmetros dados pelas possibilidades estatais.

Nada obstante, em matéria de mínimo existencial a doutrina admite uma restrição à liberdade de conformação do legislador, Reconhece-se o direito sub-jetivo ao acesso a prestações materiais que viabilizem ao ser humano um pas-saporte ao núcleo essencial de uma vida digna.23

Não se trata apenas de exigir a abstenção estatal em situações potencial-mente lesivas a direitos sociais dos particulares, como também ser facultado ao indivíduo o direito a prestações jurídicas e materiais do Estado aptas a redução de desigualdades.24

O Supremo Tribunal Federal ilustra a doutrina com interessantes preceden-tes nos setores da educação e saúde, assegurando a efetividade dos direitos so-ciais fundamentais prestacionais para a tutela de patamares mínimos de civili-dade, excluindo a exceção da cláusula da reserva do possível.25

A realidade é que o Estado do welfare state não logrou êxito em propiciar igualdade substantiva e, em larga medida, atribuiu a particulares um compar-tilhamento de responsabilidades em sede de direitos sociais. Os artigos 194 e 205 da Constituição Federal são taxativos no tocante à seguridade social e edu-cação, respectivamente.26

23 José Carlos Vieira de Andrade. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, p. 207.24 “Os direitos de defesa, conforme a própria denominação os designa, oferecem proteção ao indivíduo

contra uma ação, apreciada como imprópria, do Estado. Já os direitos a prestação partem do suposto de que o Estado deve agir para libertar os indivíduos das necessidades. São direitos que se realizam por intermédio do Estado” ( Gilmar Mendes, Inocêncio Coelho, Paulo Gonet. Curso de direito constitucional. P. 248).

25 O STF reconheceu a fundamentalidade do direito á educação infantil, por representar o grau mínimo do direito à educação. Na oportunidade, o Ministro Celso de Mello aferiu que “a cláusula da ‘reserva do possível’ não pode ser invocada pelo Estado com a finalidade de exonerar-se, dolosamente, do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade” (RE 410.715, Rel. Min. Celso de Mello, j. 22.11.2005).

26 Art. 194 CF: “A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”; Art. 205 CF: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da Família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

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Importa afirmar que a iniciativa privada também é sujeito passivo de di-reitos sociais, sendo redutor qualquer raciocínio que queira segregar a sua incidência às relações entre particulares e Estado. Caso assim se entendesse, instalar-se-ia um salvo conduto para, ilustrativamente, empresas de saúde e de ensino promoverem a instrumentalização de pessoas em relações econômicas, apenas pelo fato do Estado ter saído de cena. A autonomia negocial não é um fim em si mesmo, sendo funcionalizada aos vetores valorativos constitucionais A despatrimonialização do direito privado repercute na tutela de direitos indi-viduais e sociais, do art. 6. da Constituição Federal.

Os agentes privados não estão imunizados quanto ao adimplemento dos di-reitos sociais. A responsabilidade originária do Estado de ofertar saúde, educa-ção e moradia é compatível com um dever de colaboração dos agentes privados para a edificação de uma coletividade solidária. Maria Celina Bodin assevera que ao direito de liberdade do indivíduo será sopesado o dever de solidariedade social, não mais reputado como um sentimento genérico de fraternidade que o indivíduo praticará na sua autonomia, mas como um verdadeiro princípio, que se torna passível de exigibilidade. Destarte, a solidariedade “é a expressão mais profunda da sociabilidade que caracteriza a pessoa humana. No contexto atual, a lei maior determina – ou melhor, exige – que nos ajudemos, mutuamente, a conservar nossa humanidade, porque a construção de uma sociedade livre, jus-ta e solidária cabe a todos e a cada um de nós”.27

O direito de solidariedade se desvincula, então, de uma mera referência a valores éticos transcendentes, adquirindo fundamentação e a legitimidade po-lítica nas relações sociais concretas, nas quais se articula uma convivência entre o individual e o coletivo, à procura do bem comum. Eros Grau vê no art. 3º, I, da Constituição Federal um princípio constitucional impositivo (Canotilho) ou diretriz (Dworkin), que fundamenta à reivindicação pela sociedade do direito à realização de políticas públicas, no qual solidária é “a sociedade que não inimiza os homens entre si, que se realiza no retorno, tanto quanto historicamente viá-vel à geselschaft – a energia que vem da densidade populacional fraternizando e não afastando os homens uns dos outros”. 28

Na lição de Paulo Bonavides, com o advento dos direitos fundamentais da terceira geração “um novo pólo jurídico de alforria do homem se acrescenta historicamente aos da liberdade e da igualdade. Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, têm por primeiro destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta”.29

27 MORAES, Maria Celina Bodin de. O princípio da solidariedade. In: PEIXINHO, Manoel Messias;GUERRA, Isabela Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly (Coord.). Os princípios da constituição de 1988, p. 178.

28 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988, p. 252.29 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 523.

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De fato, o constitucionalismo voltou-se inicialmente à afirmação dos direi-tos individuais, posteriormente aos direitos sociais e, em um terceiro momento à concretização do direito à fraternidade. Eles não são nem individuais nem so-ciais, atuam em ouro paradigma, o da humanidade, expandindo o conceito de dignidade da pessoa humana.

Em obra de fôlego sobre a temática em comento, José Fernando de Castro Farias insere a solidariedade como fato social, pois com o surgimento de um pluralismo jurídico não se pode conceber o homem sozinho, mas em um “mun-do comum onde a formação da identidade não admite o esmagamento do outro. A criação de uma identidade faz-se no reconhecimento da pluralidade e hetero-geneidade, na convivência com o outro”.30

O princípio da solidariedade é o sustentáculo da constitucionalidade de nor-mas que estabelecem restrições à autonomia privada a ponto de erigirem pres-tações positivas por partes de agentes econômicos.

A questão que se abre é quanto aos limites de incidência dos direitos sociais na esfera privada. Afinal, os direitos fundamentais vinculam os particulares e os direitos sociais expressam uma ordem de fundamentalidade. No que concerne aos direitos fundamentais individuais, sustenta-se a pronta aplicação da Cons-tituição sobre decisões de entidades privadas que desfrutem de considerável poder social. Contudo, a incidência dos direitos sociais no setor privado rece-berá temperamentos no tocante a uma eventual eficácia imediata, apartada de suporte legislativo (lei ordinária ou cláusula geral).

No tocante à dimensão defensiva dos direitos sociais, nada há de peculiar no exame da matéria que resulte em hermenêutica diferenciada àquela aplicável à defesa de direitos individuais fundamentais. Em outras palavras, aplica-se o juízo de ponderação entre o ato de autonomia privada que se quer conformar e o direito fundamental social que se assume violado no caso concreto.31

Fazendo coro a Ingo Sarlet32, é correto afirmar que tanto mais se fará ne-cessária a tutela de um direito fundamental (individual ou social), quanto mais no lado oposto da relação jurídica se estiver em face de um agente privado po-deroso. Por exemplo, tratando-se de plano de saúde, não importa que os for-necedores dos serviços de cobertura médico-hospitalar sejam sociedades co-merciais, cooperativas ou associações. Fundamental é perceber que a dignidade da pessoa humana se sobrepõe a direitos patrimoniais e excepciona os limites temporais máximos de internação estabelecidos contratualmente, no caso em

30 FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do direito de solidariedade, p. 282.31 É a hipótese da Súmula n. 302 do STJ: “É abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no

tempo a internação hospitalar do segurado”.32 SARLET, Ingo. Mínimo existencial e direito privado, op. cit, p. 85.

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que é a manutenção da internação é crucial para o tratamento e a sobrevivência do paciente. É evidente a imposição de dever de abstenção, com o fulcro de im-pedir lesões a bens essenciais.

A outro giro, relativamente aos direitos sociais prestacionais à saúde, educa-ção e moradia33, instala-se a polêmica. Seria possível um particular exigir uma pretensão positiva decorrente de um direito social em face de outro particular, sem prévia interposição legislativa?

A matéria é pouco referida na literatura jurídica. No Brasil, foi bem versada por Daniel Sarmento, Ingo Sarlet e Ricardo Lobo Torres.34 Em comum, os dou-trinadores recorrem a uma ponderação de interesses que penderá em favor da aplicação direta do direito social, quando em jogo o mínimo existencial, pressu-posto do próprio Estado Democrático de Direito.

Em um primeiro olhar, tal conclusão poderia rapidamente ser afastada por argumentos esgrimidos por Wilson Steinmetz.35 Os particulares não estão obri-gados, ante o direito fundamental à educação, a criar escolas, universidades ou outras instituições de ensino para outros particulares. Os particulares não estão obrigados, ante o direito fundamental à saúde, a criar hospitais e postos ou am-bulatórios de saúde nem a pagar tratamentos médicos para outros particulares.

Se o âmbito prestacional social se limitasse às situações extremadas assi-naladas no tópico pregresso, certamente à sua eficácia direta seria recusada. Afinal, o Estado é o sujeito passivo imediato dos direitos sociais e a imposição de um ônus econômico excessivo ao mercado – pela via da imposição de obriga-ções positivas sem mediação legislativa - ofenderia o princípio da livre iniciativa e culminaria por prejudicar justamente a parcela desabastada da população, sobremaneira pelo acréscimo do nível de desemprego.

Para evitar a demagogia que converte solidariedade em tirania, culminando por inviabilizar a atividade econômica, Daniel Sarmento36 pugna pela tempe-rança e assume como primeiro critério para o reconhecimento de uma vincu-lação do particular a uma obrigação positiva na órbita social que exista alguma conexão entre a relação jurídica mantida pelas partes e a natureza do direito fundamental em discussão.

Indubitavelmente, o comedimento e a moderação são ingredientes indis-pensáveis para o controle dos critérios de resolução de conflitos. Portanto, além

33 Excluem-se do debate os direitos fundamentais sociais dos trabalhadores rurais e urbanos (art. 7, CF). Aqui é evidente que os particulares figuram como sujeitos destinatários imediatos.

34 Daniel Sarmento: Direitos fundamentais e relações privadas; Ingo Sarlet: Mínimo existencial e direito privado; Ricardo Lobo Torres: A cidadania multidimensional na era dos direitos.

35 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais, p. 282.36 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas, p. 344.

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da configuração prévia de uma relação material entre aquele que postula o di-reito social e o particular - em tese situado no pólo passivo da obrigação -, há de se acrescer, agora como segundo critério, que o objeto da demanda se imbrique com o mínimo existencial, entendido como um bem essencial para o alcance de parâmetros elementares de uma vida digna.

Teresa Negreiros propõe uma reflexão acerca da classificação dos bens com reflexos no direito contratual a partir da repercussão da destinação concedida ao bem jurídico no próprio conteúdo do direito. Ou seja, o regime jurídico de uma determinada relação jurídica e a sua tutela serão modelados pelo compo-nente funcional dos bens. 37

Ao abordar categorias relativas à classificação dos bens em uma perspectiva civil constitucional de tutela do mínimo existencial com fundamento no princí-pio da dignidade da pessoa humana, a autora sugere que no contexto normativa da concreta relação devamos aferir a dimensão existencial do bem, que poderia se dar em três categorias: bens essenciais, úteis e supérfluos. Assim, “os contra-tos que versem sobre a aquisição ou utilização de bens que, considerando a sua destinação, são tidos como essenciais estão sujeitos a um regime tutelar, justifi-cado pela necessidade de proteção da parte vulnerável – assim entendida a parte contratante que necessita do bem em questão; e vice-versa, no extremo oposto, os contratos que tenham por objeto bens supérfluos regem-se predominantemente pelos princípios do direito contratual clássico, vigorando aqui a regra da mínima intervenção heterônoma”. 38

Como bem essencial na seara dos direitos sociais fundamentais, ao míni-mo existencial se atribuí eficácia jurídica positiva. Ingo Sarlet39 bem lembra que “se uma eficácia prestacional já é possível até mesmo fora do âmbito do que tem sido considerado o mínimo existencial (poder-se-á aqui citar o exemplo atual da disponibilização, ainda que cogente, por imposta pelo poder público, de vagas – portanto de um acesso a prestações no campo do direito á educação também por instituições particulares de ensino superior), o que não dizer quando estiverem em causa prestações indispensáveis à satisfação das condições mínimas para uma vida com dignidade”.

Além do ensino básico o direito social originário a saúde básica também é vinculativo aos particulares em termos de adimplemento de prestações mate-

37 Teresa Negreiros aduz que “este trabalho, ao se propor acrescentar mais um subsídio no sentido de tornar as relações jurídicas privadas mais humanas, mais equilibradas e menos sujeitas ao egoísmo, que o enfoque centrado exclusivamente na autonomia privada muitas vezes propicia, sugere uma reflexão acerca da classificação dos bens com reflexos no direito contratual”.(NEGREIROS, Teresa Teoria do Contrato, cit., p. 423).

38 NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato, cit., p. 463.39 SARLET, Ingo. Mínimo existencial e direito privado, cit, p. 88.

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riais. São variadas as decisões que obrigam planos de saúde a custear procedi-mentos não inseridos expressamente na cobertura contratual ou a arcar com despesas de tratamento mesmo antes do transcurso do período de carência. Neste particular há recente decisão do Superior Tribunal de Justiça que, mesmo sem fazer referência à eficácia interprivada social dos direitos fundamentais, observou o mínimo existencial como limite dos limites: “A matéria consiste em saber se a cláusula que estabelece a carência em plano de saúde é ou não abusiva. O Min. Relator observou que, em si, a cláusula que fixa a carência não é abusiva porquanto não se afigura desarrazoada a exigência de um período mínimo de con-tribuição e permanência no plano de saúde para que o contratante possa fruir de determinados benefícios. As condições são voluntariamente aceitas, os planos são inúmeros e oferecem variados serviços e níveis de assistência médica, tudo com-patível com a contraprestação financeira acordada e de conhecimento da pessoa que neles ingressa por livre escolha. Todavia a jurisprudência deste Superior Tri-bunal tem temperado a regra quando surjam casos de urgência de tratamento de doença grave, em que o valor da vida humana sobrepuja-se ao relevo comercial, além do que, em tais situações, a suposição é que, quando foi aceita a submissão à carência, a parte não imaginava que poderia padecer de um mal súbito. No caso, a autora foi acometida de doença surpreendente e grave e, aliás, já quase ao final do período de carência, vinha contribuindo há quase três anos, para uma carência de trinta e seis meses. Nessas condições particulares, torna-se inaplicável a cláu-sula, não propriamente por ser em si abusiva, mas pela sua aplicação de forma abusiva, em contraposição ao fim maior do contrato de assistência médica, que é o de amparar a vida e a saúde, tornando-o verdadeiramente inócuo na espécie”.40

Uma evidente aplicação imediata da Constituição nas relações privadas, em sede de direitos fundamentais sociais, ocorreu no famoso caso da favela Pul-mann. Trata-se de ação reivindicatória ajuizada pelo proprietário de imóvel que havia sido paulatinamente favelizado por várias famílias de baixa renda. O Superior Tribunal de Justiça41 confirmou a decisão do TJSP que julgou improce-dente a demanda e transferiu a propriedade aos moradores, com fundamento no exercício da função social de posse sobre o bem abandonado, consideran-do ainda que o titular não havia adimplido a função social da propriedade. O acórdão assume a imediata eficácia vinculativa do direito social de moradia em prol de pessoas necessitadas, ferindo a temática do mínimo existencial em sua concretude, face às necessidades materiais daquela coletividade de pessoas. A adequada ponderação de bens atuou na dimensão prestacional a medida em que o poder judiciário determinou a transferência da titularidade do imóvel, ressalvando o direito à indenização em prol do proprietário, contra “quem de direto” (provavelmente o Município).

40 Resp. 466.667/SP, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, julgado em 27/11/2007.41 REsp n. 75.659 –SP, Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior.

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A referida decisão se deu antes da vigência do atual Código Civil, que tratou dessa tensão entre posse e propriedade pela via da ponderação legislativa do art. 1.228, par. 4. Isto evidencia que o judiciário tem vivificado direitos sociais na seara dos particulares mesmo em face da omissão dos poderes estatais in-cumbidos primariamente de materializar os aludidos direitos.

9. O MINISTÉRIO PÚBLICO E O ACESSO À JUSTIÇA

O Ministério Público Brasileiro encontrou a sua função social na Constitui-ção de 1988. A instituição se robusteceu, eis que dotada de independência fun-cional em relação aos outros poderes, autogestão administrativa, exclusividade para a propositura de ação penal e legitimidade incrementada no âmbito do inquérito civil e ação civil pública. A atuação extrapenal, sobremaneira na qua-lidade de defensor de interesses coletivos e difusos, fez com que o Ministério Público abdicasse da condição de braço acusatório do Estado para assumir o papel de defensor dos interesses da sociedade civil, subordinando-se apenas ao ordenamento jurídico e a sua consciência.42

O perfil constitucional do parquet, amadurecido pela experiência dos últi-mos vinte anos, permitiu-lhe por completo a desvinculação do aparelho coer-citivo estatal, com independência perante executivo e legislativo, perenizando a função de agente político e instrumento de cidadania, com a missão de con-cretizar o Estado Democrático de Direito pela via da efetivação de direitos fun-damentais individuais e sociais.43 Neste sentido, pode-se afirmar com Eduardo Ritt44, que havendo equivalência de valor entre direitos fundamentais e as sua garantias, o Ministério Público se individualiza como “uma verdadeira garantia institucional fundamental, eis que serve como instrumento de efetivação de direi-tos fundamentais, em especial, os direitos sociais e, neste sentido, possui a mesma ‘dignidade jurídico-constitucional’ que os direitos fundamentais”.

A vocação ministerial para a defesa de interesses sociais – em detrimento à vetusta proteção do interesse público secundário – alterou o próprio foco da instituição, hoje protagonizando atividades promocionais, deslocando para a periferia as atribuições interventivas. É na trilha democrática do acesso à jus-

42 A transposição do conceito da locução interesse público, de proteção dos interesses da administração para a defesa dos interesses sociais como garantia da própria coletividade, também é aferida na dicção do Inciso IX do art. 129 da CF, ao vedar ao MP a representação judicial e consultoria de entidades públicas, afastando a instituição de atividades estranhas a sua nobre missão.

43 Não se pode olvidar que antes da Carta de 1988 o MP sofreu grandes transformações institucionais pela via infraconstitucional, que recebem a seguinte cronologia: a) Art. 14, Lei 6.938/81 – destina ao MP a primeira ação coletiva em razão de danos ambientais; b) Lei Complementar n. 40/81 – delibera como função institucional do MP a promoção da ação civil pública; c) Lei n. 7.347/85 – consolidando a legitimidade do MP para o ajuizamento de ações tutelar de interesses metaindividuais.

44 RITT, Eduardo. O Ministério Público como instrumento de Democracia e Garantia Constitucional, p. 180.

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tiça, mais precisamente ao acesso ao Sistema de Justiça que se descortina a na-tureza de agente político do Ministério Público. Com efeito, cogitar de acesso à justiça é mitigar o âmbito de atuação ministerial, eis que a função de estabiliza-ção de relações sociais não se efetiva somente perante o Poder Judiciário, mas pela via extrajudicial e autônoma do inquérito civil e termo de ajustamento, resultando em soluções persuasivas e transacionais, alheias ao modelo tradi-cional: partes/juiz.

A divisão tripartida de poderes idealizada por Montesquieu em vistas a um Estado Liberal sofreu o natural câmbio das contingências históricas, sobrema-neira geográficas do contexto nacional. Alguns fatores concorrem para a busca pelo cidadão do Sistema de Justiça para a tutela de direitos sociais, dentre os quais: a) o ocaso da capacidade legiferante do poder legislativo. Em uma socie-dade plural, complexa e massificada, sofrendo intensas e urgentes demandas de grupos desfavorecidos, ocorre uma hipertrofia do Poder Executivo, que assu-me para si a decisão e a responsabilidade de implementar mecanismos hábeis à consolidação da promessa de bem-estar social refletida na Constituição; b) Apesar de gerir o orçamento e substituir o Poder Legislativo pela distorção na edição de Medidas Provisórias, o Poder Executivo é incapaz de se empenhar concretamente pela edificação de uma sociedade solidária posto dominado por grupos de pressão que desvirtuam a idéia de um Estado Democrático de Di-reito, privatizando a esfera pública, naquilo que na peculiaridade da trajetória brasileira usualmente se define como clientelismo ou patrimonialismo45; c) re-presado o acesso popular à cidadania - seja pela ineficácia do legislativo como pela usurpação do executivo pelo mercado -, resta à coletividade exercer a sua soberania pelo Sistema de Justiça, especialmente pelo Ministério Público, como órgão incumbido da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos di-reitos sociais e individuais indisponíveis, através dos instrumentos legislativos postos a sua disposição. Para Lenio Streck46, tratam-se dos instrumentos “para buscar/resgatar os direitos de segunda e terceira geração...porque no contrato social – do qual a Constituição é a explicitação – há uma confissão de que as pro-messas da realização da função social do Estado não foram (ainda) cumpridas”.

45 Para Raymundo Faoro, “A comunidade política conduz, comanda, supervisiona os negócios, como negócios privados seus, na origem, como negócios públicos depois, em linhas que se demarcam gradualmente. O súdito, a sociedade, se compreendem no âmbito de um aparelhamento a explorar, a manipular, a tosquiar nos casos extremos. Dessa realidade se projeta, em florescimento natural, a forma de poder institucionalizada num tipo de domínio: o patrimonialismo”. (In, Os donos do poder, p. 819).

46 O Estado liberal pertenceu ao Legislativo, como poder ordenador das liberdades públicas e civis. O Estado Social foi dominado pelo Executivo, como promovedor de políticas públicas de correção de desigualdades. Lenio Streck investe as atenções do potencial transformador do Estado Democrático no judiciário, a medida em que as “inércias do Executivo e falta de atuação do Legislativo passam a poder ser suprimidas pelo Judiciário, como o instrumento para o resgate de direitos não realizados” (In, Hermenêutica Jurídica em Crise, p. 38).

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Destarte, o Ministério Público preenche um espaço público de inclusão so-cial, sobremaneira nos conflitos de caráter difuso e coletivo, no qual poderá di-rigir pretensões contra a administração naquelas situações em que ela omite políticas públicas em prol de direitos sociais ou então, quando as políticas pú-blicas descumpram a Constituição. Mesmo que não “ungida pelo voto popular”, a instituição ministerial desempenhará uma atividade suplementar de repre-sentação política com vistas ao princípio da igualdade material, permitindo o acesso não apenas formal, mas substancial ao Sistema de Justiça, como ponte para a efetivação dos demais direitos, ensejando a qualquer do povo instrumen-tos processuais de defesa de cidadania.47

Assumindo o escólio de Mauro Cappelletti acerca das ondas de acesso à jus-tiça, percebe-se que o Ministério Público participa em todos as premissas de superação de obstáculos materiais e processuais para o ingresso no Sistema Judicial. Seja na facilitação de assistência jurídica gratuita às pessoas carentes, como na representação de interesses transindividuais e na criação de mecanis-mos facilitadores de acesso efetivo à justiça pela via de instâncias alternativas de decisão. A Constituição fez de cada promotor de justiça um agente político. Obviamente, sendo a tarefa legislativa de cunho político, a atividade de efetiva-ção de direitos fundamentais também o será. O Ministério Público se imbrica com o Estado Democrático de Direito chamando para si a função de depositário de pretensões civilizatórias e promessas de modernidade não atendidas por ou-tras instâncias de poder. 48

10. A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO EM PROL DOS DIREITOS SOCIAIS

A legitimidade do parquet para a tutela de interesses sociais e individuais indisponíveis é referendada no art. 127, caput, da Constituição Federal. Em ní-vel infraconstitucional é confirmada pelos arts. 5 e 21 da Lei n. 7.347/85 (ACP)

47 Pedro Rui da Fontoura Porto sustenta a insuficiência da democracia representativa, sustentando uma colaboração entre a representação eleitoral e a funcional: “no paradigma do Estado Democrático de Direito, a democracia representativa não basta, sendo imprescindíveis formas alternativas de exercício do poder pelo povo. Deste modo, instituições de representação e poder funcional como o Ministério Público, o Poder Judiciário e organizações sociais reforçariam a representação política, em mecanismos de complementaridade, compensado o déficit democrático decorrente da intervenção legislativa do Executivo verificável nas últimas décadas. Ademais, novos institutos processuais garantidores dos direitos fundamentais facilitariam a criação do Direito a partir de sua abertura às demandas sociais, conectando o Sistema de Justiça aos sistemas sociais”. (In: Direitos fundamentais sociais, p. 187).

48 Em contraposição ao substancialismo ora sustentado, as correntes procedimentalistas hostilizam a politização da justiça e o “ativismo judicial”, eis que não visualizam legitimação política no controle pelo poder judiciário da discricionariedade administrativa e legislativa . Dworkin e Habermas sustentam o acesso qualitativo à justiça na qual o judiciário não ultrapasse o limite de sua atividade, a ponto de se converter em legislador supletivo.

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e arts. 81, 82 e 90 da Lei n. 8.078/90 (CDC). Na tutela judicial de interesses metaindividuais é o Ministério Público legitimado autônomo para a condução do processo. Cuida-se de legitimação de natureza ordinária na qual o parquet atua em nome próprio, preenchendo capacidade postulatória ao defende ro seu interesse.49

O Ministério Público é legitimado para a defesa de interesses difusos, cole-tivos e individuais homogêneos, através de ação civil pública. Malgrado o art. 129, III da Constituição Federal apenas enfatize a promoção de ação civil públi-ca em tutela de interesses difusos e coletivos, sem referir a atuação em prol de interesses individuais homogêneos, podemos localizar na locução “interesses sociais”, do caput do art. 127, a sustentação da Carta Constitucional à proteção dos direitos decorrentes de origem comum. O fundamento interventivo do Pro-motor de Justiça nas ações coletivas é a defesa direta dos interesses sociais, sem se cogitar da natureza destes direitos.50

Em reforço, não há de se olvidar da norma de encerramento do art. 129, IX, autorizando o Ministério Público a exercer outras funções, quando compatíveis com a sua finalidade (quais sejam, a defesa da ordem jurídica, regime demo-crático e interesses sociais e individuais indisponíveis). Assim, quando o CDC preconiza nos art. 81 e 83 a tutela molecular de tais direitos, mira o direito fundamental de acesso à Justiça (Art. 5. XXXV, CF), evitando demandas atomiza-das que acarretariam decisões contraditórias em lides dotadas de fundamentos idênticos.51

49 É corrente o entendimento doutrinário inserindo o MP como substituto processual ao propor a ACP. Contudo, seguindo os passos de Antonio Cláudio da Costa Machado, Paulo Cezar Pinheiro Carneiro e Luiz Roldão de Freitas Gomes, temos o MP como o próprio Estado em ação zelando pelo interesse coletivo: “é condutor autônomo do processo, tendo atribuição para propô-lo sempre que haja risco ou dano efetivo à coletividade” ( FREITAS GOMES, Luiz Roldão de. A legitimação do Ministério Público para a defesa de direitos individuais homogêneos na falência, p. 432).

50 Luiz Cláudio Carvalho de Almeida pontua que “a consagração de um direito sem a criação de mecanismos correlatos que permitam a sua tutela equivale à negação do próprio direito”, cuida-se de “uma visão jurisprudencial que ainda rejeita a máxima utilização dos mecanismos legais existentes sem ter a sensibilidade de que em algumas situações, tal restrição importa a impossibilidade de acesso à justiça”. (In, A legitimidade do Ministério Público para a defesa dos interesses individuais homogêneos do consumidor, p. 279).

51 Não se olvide ainda de densa jurisprudência limitativa a legitimidade ministerial no campo das ações individuais homogêneas apenas em sede de lides consumeiristas, em respeito ao texto do CDC. Não podemos endossar tal exegese restritiva, pois como bem pondera Pedro Rui da Fontoura Porto, “tal orientação, com a devida vênia, desconsidera que o CDC e a Lei 7.347/85, formam, em conjunto, um microssistema de direito processual coletivo, que transcende a temática substancial do direito do consumidor. Em realidade, o novo sistema, que conecta reciprocamente CDC e LACP, endereça-se a todas as ações coletivas e, pretendendo a tutela de interesses sociais, deve te ruma interpretação ampliativa, com o que se atende ao princípio da otimização do texto constitucional. Assim, é interpretação desarrazoada ao sistema jurídico brasileiro, aquela que restringe a tutela de direitos individuais homogêneos pelo Ministério Público, exclusivamente, às causas que versarem sobre matéria consumeirista” (In, Direitos fundamentais sociais, p. 241)

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O inquérito civil e a ação civil pública são instrumentos de acesso ao Sistema de Justiça, em que o Ministério Público se legitima para a defesa da sociedade diante do descumprimento jurídico por parte do Estado da oferta do mínimo existencial. O Judiciário velará pela Constituição Federal ensejando a concreção do núcleo de direitos fundamentais. Bem lembra Emerson Garcia52 que “res-salvada a total inexistência de recursos, o que depende de prova por parte do Poder Público, sendo insuficiente a mera alegação, será plenamente possível a emissão de provimento jurisdicional com o fim de determinar o contingencia-mento ou a realocação de dotações orçamentárias para o atendimento dos di-reitos prestacionais que congregam os valores inerentes à dignidade da pessoa humana”.

Exemplificando, no que tange ao direito prestacional ao fornecimento de remédios, eventual discricionariedade da administração – na linha da reserva do possível – cederá no instante em que os medicamentos se tornam essenciais, ingressando na esfera do mínimo existencial, revestindo-se do critério da indis-pensabilidade para uma vida digna. Neste momento a sindicabilidade judicial é plena e o Ministério Público se encontra legitimado a atuar em sede de ações civis públicas que cuidem de interesses individuais homogêneos, em razão da inegável relevância social da pretensão a uma vida condigna.

Porém, como enfatiza Luis Roberto Barroso53, “havendo leis e atos admi-nistrativos implementando a Constituição e sendo regularmente aplicados, eventual interferência judicial deve ter a marca da autocontenção”. Daí que, no particular, a missão altaneira do Ministério Público consistirá em agir em nível macro, apontando o desvio das listas elaboradas pelos poderes públicos, a fim de, exemplificadamente, incluir determinado medicamento de comprovada efi-cácia, privilegiando substâncias de baixo custo disponíveis no Brasil. A decisão em sede de ação coletiva produzirá efeitos erga omnes, propiciando atendimen-to isonômico de demandas sociais e contribuindo para a melhor organização e eficiência do serviço público de saúde.

Na mesma linha, mas no que concerne à educação há um interessante pre-cedente no Superior Tribunal de Justiça. O Ministério Público demandou contra o Município de Santo André, impondo a criação de vagas para crianças em pré--escola. O Ministro Teori Zavascki54 admitiu a razoabilidade da identificação da “presença, no conteúdo normativo, de um mínimo essencial que escapa a qual-

52 GARCIA, Emerson. O doutrinador se refere à educação fundamental como “uma parcela integrante do mínimo existencial, não só por suas características intrínsecas como em razão de sua importância para a concreção de outros direitos necessários a uma existência digna” (In: O direito à educação e suas perspectivas de efetividade, p. 194).

53 BARROSO, Luis Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva, p. 8.54 STJ, RE n. 575.280-SP, Rel. Min. Luiz Fux, 02.09.04.

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quer poder de discrição administrativa ou política. Há um núcleo mínimo es-sencial de densidade apto a assegurar, desde logo, o cumprimento do dever de atendimento em creche, senão a todas, ao menos às crianças completamente ca-rentes, desprovidas de qualquer outra espécie de proteção financeira ou social”.

Portanto, sopesados os limites materiais e funcionais da justiciabilidade dos direitos sociais, o Ministério Público deve ir além das angústias individu-ais. Incumbe-lhe pensar no interesse comunitário em sentido macro e no seu elevado papel de contribuição ativa para o incremento de políticas públicas que garantam um conteúdo mínimo essencial à dignidade da pessoa humana. Bem fará a Instituição Ministerial, quando imprimir precedência na área de atuação coletiva, viabilizando acesso universal e igualitário ao ensino fundamental, a saúde básica, assistência social e moradia. Sem negarmos a importância da de-fesa dos direitos individuais – que atualmente correspondem a maior parte das medidas administrativas e demandas promovidas pelo Ministério Público – , a Instituição deve se preparar para perseguir interesses maiores, sobremaneira as prestações essenciais não contempladas em políticas públicas, beneficiando a população carente que desconhece o “direito a ter direitos”.

A legitimidade da atuação ministerial na função política de defesa dos direi-tos sociais relacionados ao mínimo existencial - seja pela judicialização do con-flito como na via administrativa - dependerá da adequação do interesse que se tutela com a própria vocação institucional atribuída pela Constituição Federal a cada Promotor de Justiça, como agente político, garantia institucional e órgão transformador da sociedade rumo às metas solidaristas do Estado Democrático de Direito, ou, na apropriada linguagem de Carlos Roberto Jatahy55, “Órgão de direta extração constitucional”.

Ilustrativamente, na esfera da saúde, o parquet envidará esforços na promo-ção de políticas públicas negligenciadas pelo Estado. A priorização das ações coletivas é recomendável para que seja garantida a universalidade da decisão, evitando-se a priorização de demandantes individuais. O Promotor de Justiça de Minas Gerais, Luciano Moreira de Oliveira56 bem argumenta acerca da neces-sidade de “mudança na atuação institucional, priorizando-se a ação resolutiva em detrimento da demandista e as providências coletivas ao invés das indivi-

55 JATAHY, Carlos Roberto. O Ministério Público e o estado democrático de direito, p. 72. O Procurador de Justiça do Estado do Rio de Janeiro acentua a necessidade de se assegurar “juridicamente ao cidadão e a comunidade, condições mínimas de existência... O Ministério Público figura, em face das responsabilidades que lhe foram cometidas, no centro desta busca pela transformação social”. (p. 155).

56 O autor defende a qualificação das decisões do Judiciário em matéria de saúde, para tanto, comenta interessante ação civil pública na qual foram pleiteados medicamentos para usuários do SUS portadores de demência de Alzheimer, presentes e futuros, de todo o Estado de Minas Gerais (Ap. Cível n. 336794-5/002, Rel. Des. Teresa Cristina da Cunha Peixoto). In: Atuação do Ministério Público em defesa da saúde, cit, p. 465-473.

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duais...evitando-se a atomização de conflitos e a exclusão daquelas pessoas que não provocaram a atuação ministerial”.57

Isto significa, a nosso viso, a percepção aguda pelo Ministério Público de que por trás de um aparente conflito que veicule interesses individuais, pos-sa restar camuflada uma questão de dimensão social. Assim, o Judiciário se transmudará de órgão de solução de conflitos intersubjetivos em receptáculo de acesso dos excluídos à cidadania. Quiçá, cumprirá a Instituição Ministerial a promessa de metamorfose social esculpida na Lei Maior. O processo assumirá uma perspectiva política sempre que a democracia representativa não prestar contas a interesses existenciais.

Outrossim, forja-se um Ministério Público menos demandista e mais resolu-tivo, com expressiva atuação na área extrajudicial de interesses metaindividu-ais. Ao invés de pura e simplesmente levantar demandas ao Poder Judiciário, de cariz tradicionalmente conservador na solução de tais matérias, o Promotor de Justiça utilizará suas atribuições para participar ativamente do processo demo-crático. Pelos canais do inquérito civil, procedimento administrativo e termo de ajustamento, graves problemas sociais recebem enfrentamento e solução célere e efetiva, tanto na seara preventiva como na repressiva. O Ministério Público supera o viés processual e formalista, laborando não mais como parceiro recor-rente do Poder Judiciário, mas irmanado com a sociedade, na efetivação de uma ordem social mais justa.58

11. O MINISTÉRIO PÚBLICO E O PODER PRIVADO

Sendo o Ministério Público uma garantia institucional de direitos fundamen-tais individuais e sociais, verdadeiro instrumento a serviço da cidadania, tem-se que a independência diante dos poderes tradicionais, não objetiva apenas um papel de intermediação da sociedade perante o Estado, mas também a media-ção de conflitos entre a sociedade e poder econômico. Afinal, como escreve Gregório Assagra59, a melhor explicação sobre a postura institucional do Minis-

57 A jurisprudência do STF sobre direito à saúde é restrita a prestações individuais. Mas, na jurisprudência de tribunais estaduais podemos vislumbrar precedente de tutela coletiva à saúde, como em decisão do TJRS que condenou o Município de Porto Alegre a adquirir leitos hospitalares na rede privada de hospitais sempre que crianças e adolescentes necessitarem de internação imediata e não houver leitos disponíveis pelo SUS (Ap.Cível n. 70000438135, de 22.03.00)

58 “A privação arbitrária da vida não é limitada, portanto, ao ato ilícito do homicídio: ela se estende igualmente à privação do direito à vida com dignidade. Essa perspectiva conceitua o direito à vida como pertencendo, ao mesmo tempo, ao domínio dos direitos civis e políticos e aos direitos sociais, econômicos e culturais, iluminando assim a inter-relação e a indivisibilidade dos direitos humanos”( Corte Interamericana de direitos humanos – “The street children case”, voto dos Juízes Antônio Augusto Cansaço Trindade e Alirio Abreu Bureli).

59 ASSAGRA, Gregório. Direito Processual Coletivo Brasileiro – Um novo ramo do direito processual, p. 510.

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tério Público é a que o desloca da sociedade política, como órgão repressivo do Estado, para a sociedade civil, como legítimo e autêntico defensor da sociedade.

O pêndulo que divisa o público e o privado, contextualiza aquilo que Bob-bio enfrenta como a divisão entre a política (público) e a economia (privado). O Direito teria a função de contrabalançar a contradição entre capitalismo e democracia, sanando as incongruências daquele, de forma a preservar o pró-prio sistema democrático. Para que o Direito tenha êxito em tal missão, deverá conciliar os ideais de liberdade, igualdade e solidariedade, podando os excessos do poder privado.

Nada obstante, por tudo que apreciamos no item n. 6 deste trabalho, preva-lece uma franca expansão da privatização dos espaços públicos, fragilizando a soberania de nações extremamente desiguais como o Brasil. O mercado supre a atividade governamental e a desregulamentação acarreta insegurança jurídica. O Estado Liberal ressurge em potência em uma sociedade contemplada de forma tardia e incipiente pelas conquistas do Estado Social. A globalização econômica avança em velocidade assustadora em uma nação de baixa constitucionalidade.

Se, por razões já demonstradas, os Poderes Executivo e Legislativo não tran-sitam com desenvoltura pelo espaço público, o território da política deve ser reconquistado pelo Ministério Público, afinal a Democracia não mais se faz ex-clusivamente no momento das eleições, mas igualmente por uma cidadania ati-va tutelada por instituições cuja função seja a promoção do acesso igualitário á ordem jurídica. Atualmente, 90% das demandas coletivas são patrocinadas pelo Ministério Público, dado que serve como forte indício da debilidade das orga-nizações sociais dotadas de legitimidade concorrente, prenúncio da fragilidade do sistema democrático.

O indivíduo é atomizado pelas forças do mercado e na sociedade de risco o Estado é incapaz de concretizar a ordem Constitucional, pois não se habilita a conjugar a Ordem Econômica pela ótica da convivência harmônica entre a livre iniciativa e a tutela de interesses transindividuais (função social da proprieda-de, consumidores, meio-ambiente), a teor do exposto no art. 170 da Constitui-ção Federal. O Estado é protetor para poucos cidadãos e predador para a massa composta por súditos. O esvaziamento do Estado transferiu poder regulamen-tar para outras instâncias, sobremaneira o mercado. Os grandes conglomerados afastam o Estado de suas relações empresariais, cultivando as suas próprias regras (lex mercatoria), submetendo-as eventualmente à arbitragem em caso de desavenças. Por paradoxal que seja, procuram o Estado para a edição de regras que os imunizem da sociedade civil. A opção da administração pela pre-eminência do poder econômico em suas políticas públicas, remete a sociedade a um único caminho: o Sistema de Justiça, como derradeira ratio na contenção das forças hegemônicas do mercado.

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A opção dos excluídos pelo Poder Judiciário é normalmente o recurso tardio em face de uma agressão já consumada. O demandante pleiteia indenização, quando já se converteu em vítima, afinal, não pode contar com qualquer organi-zação que lhe representasse no momento prévio à lesão.

Deste modo, o Ministério Público culmina por direcionar o seu labor não só apenas em face do Estado omisso, como também contra o poder privado, com o fito de frear os seus abusos. Os mecanismos procedimentais democraticamente concedidos ao Ministério Público lhe habilitam a abstratamente atuar na defesa de direitos elementares ferozmente recusados pelos atores que reprivatizaram as relações sociais. Exauridas as possibilidades outorgadas pela via adminis-trativa e, como alternativa derradeira, a Instituição Ministerial agirá perante o Poder Judiciário. Em qualquer dos casos, a postura garantista desta organização primará por concretizar os valores almejados por uma Constituição dirigente, quando deles tenha se dissociado a opção política infraconstitucional adotada pelos demais poderes. Mauro Cappelletti60 bem enfatiza o fenômeno do cresci-mento do Sistema de Justiça como forma de contrabalançar não apenas o cresci-mento dos demais poderes, como para servir de anteparo contra outros centros de poder não-governativos ou quase governativos. Entenda-se daí que o poder privado e o Sistema Judiciário são as novas fontes de reprodução do direito de-correntes da crise regulatória do Estado.

O art. 129, inciso II, da Constituição Federal insere dentre as funções ins-titucionais do Ministério Público, a de “zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Cons-tituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia” (grifo nosso).

Os serviços de relevância pública são aqueles efetivados por particulares, mas que concernem a direitos econômicos, sociais e culturais.61 O vaticínio da Lei Maior sobre a falência do Estado Social e o incremento da sociedade de risco é refletido na ênfase à intervenção ministerial nos serviços sociais privatiza-dos. As áreas da saúde, educação, segurança e previdência são paulatinamente arrebatadas pela iniciativa privada. Estas atividades são reduzidas ao conceito utilitário de mercadorias, contratualmente ofertadas ao público.

Reiteramos que o dever primário de oferecer serviços sociais é do Estado. Porém, de forma mediata, o devedor é sempre a comunidade, com base no prin-cípio da solidariedade (art. 3, I, CF). O Ministério Público propugnará pela efi-

60 CAPPELLETTI, Mauro. In, Juizes legisladores?, p. 19.61 Neste sentido a Súmula n. 07 do Conselho Superior do Ministério Público de São Paulo, ao explicitar as

hipóteses de legitimação processual do MP na defesa de direitos individuais homogêneos, alinha os que “tenham expressão para a coletividade, como: a) os que digam respeito à saúde ou à segurança das pessoas, ou ao acesso de crianças e adolescentes à educação; b) aqueles em que haja extraordinária dispersão dos lesados; c) quando convenha a coletividade o zelo pelo funcionamento de um sistema econômico, social ou jurídico”(grifos nossos).

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cácia imediata da Constituição Federal nas relações privadas, pois a sua missão dentro do que se convém chamar “neoconstitucionalismo” é a de promover os direitos fundamentais e induzir a transformação da sociedade. Para tanto, urge o resgate de valores sistematicamente colonizados pelo mercado em função do individualismo liberal.

No momento em que o parquet promove inquéritos civis, procedimentos, termos de ajustamento ou ações coletivas discutindo cláusulas contratuais em planos de saúde, tais como percentuais abusivos de reajuste de idosos, prazos excessivos de carência, exclusão de tratamentos essenciais à preservação da vida de segurados, dentre outros, tem como objetivo tutelar princípios Consti-tucionais e não simplesmente usurpar dos demais poderes a fixação de políticas públicas.

Não se quer aqui assumir uma posição pragmática, pela qual o Sistema Judicial (leia-se: magistrados e promotores) decidiria de forma incoerente os casos concretos, aplicando um direito novo em favor de uma perspectiva de bem-estar coletivo. Cairíamos em uma perspectiva utilitária se sempre subor-dinássemos os interesses individuais aos coletivos, em razão de preferências e discricionarismos.

Pelo contrário, sem abandonarmos uma postura substancialista, filiamo--nos a tese de Ronald Dworkin62 da Integridade do Direito, considerando a co-erência de princípio como elemento nevrálgico para a aceitação por parte de uma comunidade de que todos somos governados por regras que decorrem de princípios e não por decisões políticas.

Como bem pontua Marcelo Galuppo63- alicerçado em Habermas - princípios estabelecem direitos individuais e ligam-se a uma exigência universalizável, ao passo que diretrizes políticas fixam metas coletivas, relacionadas sempre com um bem-estar de uma parcela da sociedade, mas nunca com sua totalidade, haja

62 DWORKIN, Ronald: “O direito como integridade, portanto, começa no presente e só se volta para o passado na medida em que seu enfoque contemporâneo assim o determine. Não pretende recuperar, mesmo para o direito atual, os ideais ou objetivos práticos dos políticos que primeiro o criaram. Pretende sim, justificar o que eles fizeram...em uma história geral digna de ser contada aqui, uma história que traz consigo uma afirmação complexa: a de que a prática atual pode ser organizada e justificada por princípios suficientemente atraentes para oferecer um futuro honrado. O direito como integridade deplora o mecanismo do antigo ponto de vista de que “lei é lei”, bem como o cinismo do novo “relativismo”. Considera esses dois pontos de vista como enraizados na mesma falsa dicotomia entre encontrar e inventar a lei. Quando um juiz declara que um determinado princípio está imbuído no direito, sua opinião não reflete uma afirmação ingênua sobre os motivos dos estadistas do passado, uma afirmação que um bom cínico poderia refutar facilmente, mas sim, uma proposta interpretativa: o princípio se ajusta a alguma parte complexa da prática jurídica e a justifica; oferece uma maneira atraente de ver, na estrutura dessa prática, a coerência de princípio que a integridade requer”. ( In: O império do direito, p. 274).

63 GALUPPO, Marcelo. Igualdade e diferença, p. 186.

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vista a existência de diversas compreensões concorrentes de vida boa em uma sociedade pluralista.

Porém, ao oferecer um fundamento absoluto dos direitos civis e políticos em contraposição a um fundamento apenas relativo aos direitos sociais, Habermas idealiza o direito à autonomia e a participação política, mas não se preocupa em como assegurar as condições materiais necessárias para que a autonomia seja exercida por todos os indivíduos. A democracia de Habermas é procedimental e não pressupõe a garantia de direitos fundamentais sociais.64

Delimitamos o critério do mínimo existencial para sustentar a legitimidade do Ministério Público para a defesa de particulares perante poderes privados nas hipóteses em que o legislador infraconstitucional tenha se quedado inerte ou legislado de forma insuficiente em matéria de direitos sociais. Ao prestigiar-mos condições materiais mínimas para uma vida condigna, colacionamos argu-mentos de princípios, posições normativas válidas e bem-fundadas, que devem se sobrepor aos argumentos pautados em diretrizes políticas.

Com efeito, os direitos sociais alinhavados no art. 6. da Constituição Federal são categorias de direitos fundamentais. Por mais que o conceito de “bem-es-tar” seja fluido e temperado pelas circunstâncias, é consenso que o ser humano, em qualquer circunstância, demanda educação fundamental, saúde básica, mo-radia e assistência social. Jamais defenderíamos o poder de um Tribunal para ordenar a felicidade humana, uma espécie de maximalismo judicial. Contudo, em matéria de mínimo existencial, não estão em jogo necessidades relativas, mas absolutas.

Para atenuar as necessidades econômicas e carências sociais a doutrina co-munga da teoria do grau mínimo de efetividade dos direitos à prestação mate-rial, como única restrição imposta à liberdade conformação do legislador, cujo desprezo configura caso de censurável omissão legislativa.65 A nosso viso, quan-to maior o grau de essencialidade de uma prestação, mais excepcional será a razão para que ela não seja atendida. O máximo que se pode admitir é a fixação de prazo razoável para a satisfação das referidas necessidades.

Há uma coerência de princípios e uma negativa de discricionariedade quan-do o mínimo existencial se torna justiciável perante o poder público ou o po-der privado. Ora, acautelar situações de urgência não é agir arbitrariamente, mas pautar-se em princípios objetivos do Estado Democrático. Afinal a própria Constituição vislumbra direito a prestação material que gera imediato direito subjetivo a seus titulares quando acolhe o mínimo social, estabelecendo o sa-lário mínimo como piso de benefícios (art. 201, par. 5, CF). A Constituição não abandona os necessitados a sua própria sorte.

64 ARANGO, Rodolfo. Direitos fundamentais sociais, p. 97.65 MENDES, Gilmar. Curso de direito constitucional, p. 253.

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Não se pode olvidar, como bem adverte Cláudio Ari Mello66, da adaptação da justiciabilidade à diversidade e peculiaridade de cada direito social, pois “é possível desenvolver as condições formais e materiais dos direitos sociais sem transformar o seu suporte fático hipotético em uma estrutura normativa imper-meável às restrições econômicas e às objeções políticas que lhe são razoavelmente opostas”.

Ao atuar em defesa do primado da lei, sobremaneira no plano constitucio-nal, necessariamente o Ministério Público assume a condição de órgão de con-trole das atividades sociais e da adequação dos governantes – contingentes por essência – com as funções permanentes do Estado Democrático de Direito.

12. CONCLUSÃO

As teorias usualmente adotadas pela doutrina ao tratar de direitos funda-mentais sociais foram preconizadas em ambientes de reduzidas desigualdades. Discursos liberais não se ajustam às realidades do “bloco emergente”, que, se por um lado, consolidou os direitos de matriz liberal (direitos civis e políticos), ainda excluí milhões de pessoas dos (virtuais) direitos sociais, em cenários de privação de condições adequadas de sobrevivência.

O Direito deve ser entendido não apenas como uma ordem de valores ga-rantidores de um âmbito de liberdade em face do Estado, mas também como um sistema de normas indispensáveis para o acesso e a preservação da dig-nidade da pessoa humana. Se o ordenamento democrático tutela a autonomia do indivíduo como condição sine qua non de opções de escolha na realização existencial e patrimonial, somente se cogitará de alternativas de vida em nações capitalistas, quando o Estado, o mercado e a sociedade consensualmente deli-berarem por uma atitude de proteção à vida digna – que perpasse o campo da mera subsistência -, como instrumento de desenvolvimento máximo das poten-cialidades do ser humano e, conseqüentemente, de desfrute de uma existência com autêntica liberdade.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal julgou uma Reclamação prove-niente do Estado da Paraíba67. O Tribunal de Justiça daquela unidade da federa-ção havia expedido ordem de seqüestro de bens do Estado para a quitação de precatório resultante de ação de cobrança por uma senhora que se encontrava em condições críticas de saúde. A autora da demanda em tese não poderia ser beneficiada, eis que a EC n. 30/00 não insere a moléstia grave dentre as hi-póteses de cabimento do seqüestro, pois não se deu a preterição ao direito de preferência.

66 MELLO, Cláudio Ari. Os direitos fundamentais sociais e o conceito de direito subjetivo, p. 129.67 Ag. Regimental Reclamação 3.034-2/PB – Rel. Min. Sepúlveda Pertence.

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Todavia, em seu voto-vista, o Ministro Eros Grau julga improcedente a recla-mação e tece alguns comentários de rara sensibilidade, que bem se imbricam com a visão substancialista de realização de direitos fundamentais:

“Permito-me, ademais, insistir em que ao intepretarmos/aplicarmos o di-reito – porque aí não há dois momentos distintos, mas uma só operação – ao praticarmos esta única operação, isto é, ao interpretarmos/aplicar-mos o direito não nos exercitamos no mundo das abstrações, porém traba-lhamos com a materialidade mais substancial da realidade. Decidimos não sobre teses, teorias ou doutrinas, mas situações do mundo da vida. Não estamos aqui para prestar contas a Montesquieu ou a Kelsen, porém para vivificarmos o ordenamento, todo ele. Por isso o tomamos na sua totali-dade. Não somos meros leitores de seus textos – para o que nos bastaria a alfabetização – mas magistrados que produzem normas, tecendo e recom-pondo o próprio ordenamento”.

13. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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