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15 ELEMENTOS DA METAFÍSICA Delineado um programa no capítulo anterior, tratamos neste de o cumprir. Temos de explicitar a metafísica latente da mente humana, e o primeiro passo consiste em estabelecer os seus elementos, que são seis: potência central, forma central, acto central, potência conjugada, forma conjugada e acto conjugado. A tarefa de os distinguir e relacionar será, à luz dos capítulos anteriores, relativamente breve. Mas a prevalência de contraposições fez que parecesse desaconselhável – se não mesmo impossível – enfrentar o problema do método genético, até sermos capazes de empregar os nossos conceitos metafísicos básicos; por isso, este capítulo é extenso e um pouco complexo devido à necessidade de clarificar a noção de desenvolvimento e de delinear a estrutura heurística do método genético, quer em geral, quer aplicada ao organismo, ao psiquismo, à inteligência e à combinação dos três no ser humano. 1. Potência, forma e acto Concebeu-se a metafísica como a estrutura heurística integral do ser proporcionado. Ela remete para uma data futura indefinidamente remota, que abrangerá todo o domínio do ser proporcionado. Interroga o que, aqui e agora, se pode conhecer dessa explicação futura. Responde que, embora jamais se atinja uma explicação plena, pelo menos pode-se conhecer desde já a estrutura desse conhecimento explicativo. O ser proporcionado é tudo o que há para ser conhecido pela experiência, pela apreensão inteligente e pela afirmação razoável. Embora haja três componentes neste conhecimento, só um delas é uma incógnita. O conteúdo da apreensão inteligente do ser proporcionado permanece necessariamente incógnita, até se atingir a explicação plena. Mas o conteúdo da afirmação razoável já é conhecido, pois é um ‘Sim’ virtualmente incondicionado. E o conteúdo da experiência que sobrevive no conhecimento plenamente explicativo também já é conhecido, pois consiste na 1

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15ELEMENTOS DA METAFÍSICA

Delineado um programa no capítulo anterior, tratamos neste de o cumprir. Temos de explicitar a metafísica latente da mente humana, e o primeiro passo consiste em estabelecer os seus elementos, que são seis: potência central, forma central, acto central, potência conjugada, forma conjugada e acto conjugado. A tarefa de os distinguir e relacionar será, à luz dos capítulos anteriores, relativamente breve. Mas a prevalência de contraposições fez que parecesse desaconselhável – se não mesmo impossível – enfrentar o problema do método genético, até sermos capazes de empregar os nossos conceitos metafísicos básicos; por isso, este capítulo é extenso e um pouco complexo devido à necessidade de clarificar a noção de desenvolvimento e de delinear a estrutura heurística do método genético, quer em geral, quer aplicada ao organismo, ao psiquismo, à inteligência e à combinação dos três no ser humano.

1. Potência, forma e acto

Concebeu-se a metafísica como a estrutura heurística integral do ser proporcionado. Ela remete para uma data futura indefinidamente remota, que abrangerá todo o domínio do ser proporcionado. Interroga o que, aqui e agora, se pode conhecer dessa explicação futura. Responde que, embora jamais se atinja uma explicação plena, pelo menos pode-se conhecer desde já a estrutura desse conhecimento explicativo.

O ser proporcionado é tudo o que há para ser conhecido pela experiência, pela apreensão inteligente e pela afirmação razoável. Embora haja três componentes neste conhecimento, só um delas é uma incógnita. O conteúdo da apreensão inteligente do ser proporcionado permanece necessariamente incógnita, até se atingir a explicação plena. Mas o conteúdo da afirmação razoável já é conhecido, pois é um ‘Sim’ virtualmente incondicionado. E o conteúdo da experiência que sobrevive no conhecimento plenamente explicativo também já é conhecido, pois consiste na experiência intelectualmente configurada do resíduo empírico; e já sabemos que a experiência se encontra no seu padrão intelectual, quando é dominada pelo desejo desprendido e desinteressado de conhecer; e também já determinámos que o resíduo empírico mora na individualidade, na continuidade, nas conjunções e sucessões coincidentes e na divergência não-sistemática relativamente às normas inteligíveis, que se conhecerão pela experiência e apenas pela experiência.

Introduzamos, por conseguinte, os termos ‘potência’, ‘forma’ e ‘acto’.‘Potência’ denota a componente do ser proporcionado a ser conhecida, no

conhecimento plenamente explicativo, por uma experiência intelectualmente configurada do resíduo empírico.

‘Forma’ denota a componente do ser proporcionado a ser conhecida, não pela compreensão dos nomes das coisas nem pela compreensão das relações delas connosco, mas pela compreensão plena das suas relações entre umas e outras.

‘Acto’ denota a componente do ser proporcionado a ser conhecida pela articulação do ‘Sim’ virtualmente incondicionado do juízo razoável.

Segue-se que a potência, a forma e o acto constituem uma unidade, pois o que se experiencia é o que se compreende, e o que se compreende é o que se afirma. Os três níveis da actividade cognitiva geram um conhecimento unitário, porque a experiência não é, por si só, conhecimento humano; a experiência e a compreensão não são suficientes para conhecer; o conhecimento propriamente dito só surge quando se alcança

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o incondicionado, e a afirmação ou a negação ocorrem. De igual modo, os conteúdos dos três níveis da actividade cognitiva constituem uma unidade; não se conhece um primeiro ser proporcionado pela experiência, um segundo pela comprensão e um terceiro pelo juízo; pelo contrário, os três conteúdos fundem-se num único conhecido. Logo, na medida em que são conhecidos pela experiência, pela compreensão e pelo juízo, a potência, a forma e o acto não são três seres proporcionados, mas três componentes num único ser proporcionado.

Depreende-se, ainda, que a potência, a forma e o acto não só constituem uma unidade, mas partilham também uma definição ou especificação comum. É que a experiência não define, nem especifica; limita-se a apresentar. Além disso, o juízo não define nem especifica; limita-se a afirmar ou negar o que já foi definido ou especificado. Todo o definir e especificar ocorre ao nível da compreensão e, portanto, a unidade constituída pela potência, pela forma e pelo acto possui apenas uma única definição ou especificação, que se obtém no conhecimento da forma.

Finalmente, a exposição precedente da potência, da forma e do acto abrangerá toda e qualquer explicação científica. Uma explicação científica é uma teoria verificada em casos particulares; enquanto verificada, refere-se ao acto; enquanto teoria, refere-se à forma; enquanto em casos particulares, refere-se à potência. E ainda, enquanto teoria de tipo clássico, refere-se às formas enquanto formas; enquanto teoria de tipo estatístico, refere-se às formas enquanto estabelecem frequências ideais, das quais os actos não divergem sistematicamente; enquanto teoria de tipo genético, refere-se às condições de emergência da forma a partir da potência.

Em secções subsequentes, distinguiremos diferentes tipos de potência, de forma e de acto; mas chamamos, desde já, a atenção para o facto de, conquanto empreguemos as denominações introduzidas por Aristóteles e lhes atribuamos um sentido que este reconheceria como seu, o uso corrente por parte de Aristóteles do conhecimento meramente descritivo e a nossa insistência na explicação correspondem a diferentes pontos de partida, a diferentes tendências e diferentes implicações. Por conseguinte, é boa doutrina aristotélica afirmar que a potência está para a forma como o olho para a visão, e que a forma está para o acto como a visão para o ver. Mas é uma doutrina acentuadamente mais aristotélica afirmar que a potência está para a forma como a privação de calor está para o calor, e que a forma está para o acto como o calor para o aquecer. Embora o exemplo psicológico satisfaça as nossas definições, o exemplo físico não pode com elas harmonizar-se.

O exemplo psicológico satisfaz as nossas definições. A forma é o que há para ser conhecido pela intelecção; mas a “visão” é conhecida na medida em que compreendemos os olhos como orgãos da visão, ou em que compreendemos as experiências do ver como fundadas na posse da visão. Além disso, o acto é conhecido pelo “Sim” do juízo; e sabemos que uma pessoa vê, não pelo mero exame dos olhos ou pela compreensão dos olhos inspeccionados como orgãos da visão, mas pela afirmação de que a visão compreendida está a ser utilizada. Por último, a potência é o que há para ser conhecido pela experiência intelectualmente configurada do resíduo empírico, e uma tal experiência ocorre quando inspeccionamos os olhos a fim de os compreender.

Mas a ilustração física não pode ser subsumida nas nossas definições. A forma é o que há para ser conhecido pela intelecção, mas Aristóteles considerava formas o que ele chamava de “sensíveis próprios”, isto é, cores, sons, calor e frio, húmido e seco, duro e mole, pesado e leve, etc. São, quando muito, formas extremamente ambíguas: no objecto, são sensíveis em potência; na sensação, são sensíveis em acto; enquanto nomeadas, são associadas a qualquer qualidade suficientemente análoga através de uma intelecção que apreende o modo de usar o nome; enquanto objectos de investigação,

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entram numa estrutura heurística que procura o que será conhecido quando forem compreendidas; por último, enquanto explicadas, relacionam-se com leis que definem implicitamente termos conjugados. Qual das cinco é a forma aristotélica “calor”? Além disso, o acto é o que há-de ser conhecido pelo “Sim” do juízo; mas o “aquecer” não se conhecerá desta maneira simples. Conhecer o “aquecer” é saber que há dois espécimes de calor e que um deles é causalmente derivado do outro. Por último, a potência é conhecida pela experiência intelectualmente configurada do resíduo empírico. Mas a potência para a forma “calor” é a privação dessa forma; esta privação não é apenas conhecida pela experiência da forma contrária, “frio”, mas pela compreensão desta como contrário do calor e excluindo o calor1.

É bastante fácil ver como a ambiguidade das noções físicas de Aristóteles levou a que fosse humanamente inevitável um conflito com a ciência renascentista. Se a forma do calor é o que há para ser conhecido pela compreensão do calor, então os aristotélicos estavam destinados a aprovar o esforço compreensivo dos cientistas. Na realidade, aconteceu uma comédia de enganos. Os aristotélicos não captaram bem a doutrina da intelecção de representações imaginativas de Aristóteles e não tinham noção da estrutura heurística, que se dirige para a intelecção. Por outro lado, os cientistas não concebiam a explicação como um conhecer, na medida em que alguém compreende; o seu pensamento encontrava-se dominado pela noção de objectividade como extroversão; neste sentido, negavam que os sensíveis próprios estivessem realmente “aí fora”; e concebiam a explicação como redução das qualidades aparentes às dimensões reais da matéria em movimento. Bastar-nos-iam quatro séculos para aprendermos a ver através deste conjunto de disparates.

2. Formas centrais e conjugadas

O segundo passo na elaboração da estrutura heurística integral do ser proporcionado consistirá em distinguir dois casos gerais de potência, forma e acto. É que, embora as formas do ser proporcionado só hão-de ser plenamente conhecidas quando se alcançar a explicação plena, a existência actual de técnicas heurísticas pode, ainda assim, mostrar de imediato que existem diferentes tipos de formas. Ademais, se há diferentes tipos de formas, haverá diferentes tipos de potência e de acto, pois a potência, a forma e o acto constituem um único conhecido e partilham uma definição comum; e a potência e o acto

1 O aspecto histórico da análise presente foi apresentada, com algum pormenor, nos meus artigos acerca de “The Concept of Verbum in the Writings of St. Thomas Aquinas”, Theological Studies, VII (1946), 349-92; VIII (1947), 35-79, 404-44; X (1949), 3-40, 359-93. Para um excelente resumo destes artigos, veja-se L. B. Geiger, O.P., Bulletin thomiste, VIII2 (1952), 477-79, §740. Acerca das íntimas relações, tanto em Aristóteles como em Tomás de Aquino, entre intelecção e eidos, forma, veja-se Theol. Stud. VII (1946), 360 e ss. Acerca da equivalência assaz comum em Tomás de Aquino de actus, actio, operatio, no sentido da energeia de Aristóteles enquanto distinta da poiêsis, veja-se Theol. Stud. VIII (1947), 408-41 passim.

Em suma, devo dizer que a presente divisão do ser em potência, forma e acto equivale às afirmações de Tomás de Aquino de que (1) ens dividitur per potentiam et actum, (2) há dois tipos de actus, a saber, forma e operatio, e (3) há dois tipos correspondentes de potentia, dos quais um é potentia para forma e o outro, idêntico à forma, é potentia para operatio (veja-se Quaest. disp. De Potentia q. I, a.I, e In Metaphys., lect. 5, §§1828-29.).

Por fim, o significado sistemático desta tríade não é apenas evidente na composição tripartida da substância material, mas também no papel desempenhado pela potência, pelo hábito e pelo acto no âmbito da Prima Secundae (Sum. theol. , I-II, q. 6, Introd., e q. 49, Introd.).

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que partilham a definição de um único tipo de forma diferirão da potência e do acto que partilham a definição distinta de outro tipo.

Ora, na raiz do método clássico estão dois princípios heurísticos. O primeiro é que as coisas semelhantes são compreendidas de modo semelhante, que uma diferença na compreensão pressupõe uma diferença significativa de dados. O segundo é que as semelhanças relevantes para a explicação não residem nas relações das coisas com os nossos sentidos, mas nas suas relações entre si. Em seguida, quando se aplicam estes princípios heurísticos, surgem classificações por semelhança sensível, depois correlações e, por último, a verificação de correlações e de sistemas de correlações. Mas as correlações verificadas implicam necessariamente a verificação de termos implicitamente definidos pelas correlações; e não envolvem mais do que tais termos implicitamente definidos enquanto relacionados, pois o que é rigorosamente verificado não é esta ou aquela proposição particular, mas a proposição geral e abstracta, para a qual convergem séries de séries de proposições particulares. Por conseguinte, existe uma estrutura heurística fundamental que conduz à determinação dos conjugados, isto é, de termos implicitamente definidos pelas suas relações explicatórias e empiricamente verificadas. Tais termos enquanto relacionados são conhecidos pela compreensão, e portanto são formas. Denominemo-las formas conjugadas. Uma vez que tais formas são verificadas no resíduo empírico da experiência, constituem unidades com as potências conjugadas e os actos conjugados. Por isso, a potência conjugada é potência para uma forma conjugada e o acto conjugado é acto de uma forma conjugada, onde a potência para a forma e o acto da forma significam que a potência, a forma e o acto em questão constituem uma única unidade.

Além disso, a estrutura heurística que conduz ao conhecimento das formas conjugadas torna necessária outra estrutura que induz ao conhecimento das formas centrais. Obtêm-se os conjugados explicativos ao considerar dados semelhantes a outros dados, mas os dados que são semelhantes também são concretos e individuais; e, enquanto concretos e individuais, são compreendidos na medida em que neles se apreende uma unidade, uma identidade e um todo, concretos e inteligíveis. Nem se pode dispensar ou transcender esta apreensão. É que a ciência avança através da interacção de descrições cada vez mais precisas e de explicações cada vez mais satisfatórias dos mesmos objectos. A menos que os objectos sejam os mesmos, não existe relação entre a descrição e a explicação e, portanto, nenhuma razão para que a explicação modifique a descrição ou para que a descrição conduza a uma explicação melhor. O único objecto que permanece o mesmo é a unidade, a identidade, o todo, concretos e inteligíveis; pois os conjugados explicativos mudam, e os termos descritivos e experienciais sofrem modificações e novos arranjos. Portanto, enquanto a ciência se desenvolver, é indispensável a noção de unidade inteligível. Contudo, tanto no seu termo como no seu desenvolvimento, as conclusões científicas precisam de ser apoiadas pelas provas; as provas para tais conclusões residem na mudança, e sem unidades concretas e inteligíveis nada há para mudar, pois a mudança não é a substituição de um dado por outro, nem a substituição de um conceito por outro; consiste na mesma unidade concreta e inteligível que proporciona a unificação aos dados sucessivamente diferentes; e, portanto, sem a unidade não há mudança, e sem mudança falta uma boa parte da prova, senão mesmo toda, para as conclusões científicas. Por último, a ciência é aplicável a problemas concretos; mas nem o conhecimento descritivo nem o conhecimento explicativo se podem aplicar a problemas concretos sem o uso do demonstrativo ‘este’, e tal demonstrativo só pode ser usado na medida em que existe uma ligação entre conceitos e dados enquanto individuais; somente a noção da unidade concreta e inteligível dos dados fornece essa ligação e, portanto, essa noção é necessária à ciência enquanto aplicada.

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Ora as unidades concretas e inteligíveis são conhecidas pela compreensão; são, por conseguinte, formas. Mas são assaz diferentes das formas conjugadas e, portanto, deve reconhecer-se um outro tipo de forma, que designaremos por “forma central”; e, tal como a forma conjugada implica uma potência conjugada e um acto conjugado, também a forma central implica uma potência central e um acto central.

A diferença entre a nossa forma central e a forma substancial de Aristóteles é simplesmente nominal. É que a forma substancial aristotélica é o que é conhecido, ao apreender-se uma unidade inteligível, um unum per se. No entanto, uma vez que o sentido da palavra substância foi profundamente influenciado por Locke, e que a confusão cartesiana entre “corpo” e coisa conduziu a uma identificação entre a substância e a extensão e, de seguida, à réplica de que a substância subjaz à extensão, julguei aconselhável, pelo menos temporariamente, libertar-me deste emaranhado verbal.

A diferença entre a nossa forma conjugada e a forma acidental de Aristóteles é em parte nominal, em parte real. O termo “acidental” é enganador, pois sugere o meramente incidental. Além disso, as formas acidentais da teoria física de Aristóteles eram, talvez, qualidades sensíveis enquanto sentidas, mas nós não admitimos quaisquer formas que sejam conhecidas separadamente da compreensão. Por último, o termo “conjugado” realça o que consideramos ser a característica essencial das relações inteligíveis mútuas, que definem implicitamente as formas conjugadas.

A distinção entre as formas centrais e conjugadas leva à distinção entre actos centrais e conjugados. O acto central é a existência, pois o que existe é a unidade inteligível. O acto conjugado é a ocorrência, pois o que ocorre define-se explicativamente, ao apelar para a forma conjugada.

De modo semelhante, surge uma divisão do resíduo empírico entre potência central e potência conjugada. Uma vez que a forma central é a unidade inteligível dos dados enquanto individuais, a potência central pode ser identificada com a individualidade do resíduo empírico. Por outro lado, as formas conjugadas são verificadas em contínuos, conjunções e sucessões espacio-temporais, e, portanto, estes aspectos do resíduo empírico devem atribuir-se à potência conjugada.

A fim de ilustrar o sentido dos termos potência, forma e acto, centrais e conjugados, supunhamos que a velocidade-massa é uma noção que sobrevive na ciência plenamente explicativa. Então a velocidade-massa será um acto conjugado; a massa, definida pelas suas relações inteligíveis com outras massas, será uma forma conjugada; o contínuo espaço-tempo da trajectória será uma potência conjugada; o que tem a massa será individual devido à sua potência central, uma unidade devido à sua forma central e um existente em virtude do seu acto central.

3. Géneros e espécies explicativos

Os géneros e as espécies são explicativos, se resultarem de classificações baseadas no conhecimento explicativo e não de classificações baseadas em semelhanças e dissemelhanças sensíveis. O carácter geral de tal conhecimento explicativo já foi indicado no capítulo acerca das “Coisas”, mas talvez não seja despropositado reformulá-lo em termos de potência, forma e acto, centrais e conjugados, antes de levantar uma dupla questão, a saber: se essa é a estrutura dos géneros e espécies explicativos, e se tal estrutura sobreviverá, ou não, no conhecimento plenamente explicativo do ser proporcionado.

Em primeiro lugar, se existe alguma ciência explicativa, então existe um conjunto de formas conjugadas, chamemos-lhe Ci, definido implicitamente pelas suas relações

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empiricamente estabelecidas e explicativas. As diferentes combinações de formas do conjunto Ci servem para definir explicativamente as unidades ou coisas Ti que diferem especificamente umas das outras, mas que pertencem ao mesmo género explicativo. Além disso, as diferentes combinações das correlações verificadas geram um domínio de esquemas de recorrência Si e, na medida em que esses esquemas são realizados, tornam sistemática a ocorrência de actos conjugados Ai.

Em segundo lugar, ou todos os actos conjugados do tipo Ai ocorrem sistematicamente, ou alguns ocorrem sistematicamente em virtude dos esquemas Si, enquanto outros ocorrem aleatoriamente. Se existem tais ocorrências aleatórias, então existem, ao nível dos actos conjugados, espécimes do resíduo meramente empírico. É que uma multiplicidade de ocorrências aleatórias fornece um domínio muito mais vasto de conjunções e sucessões meramente coincidentes, e tais conjunções e sucessões pertencem ao resíduo empírico.

Em terceiro lugar, há uma outra possibilidade. Além de ocorrerem sistematicamente em virtude dos esquemas Si e também aleatoriamente, os actos conjugados de tipo Ai

podem igualmente ocorrer de forma regular, mas de um modo do qual se não pode dar conta através de um dos esquemas Si. Nesse caso, temos a prova necessária e suficiente para afirmar a existência de outro conjunto de conjugados Cj, que define outro género de coisas Tj e gera outro domínio de esquemas Sj que torna sistemático outro tipo de actos conjugados Aj.

Em quarto lugar, a possibilidade anterior é recorrente. Assim como uma multiplicidade aleatória de actos conjugados Aij é um espécime do resíduo empírico e, deste modo, fornece a potência conjugada para a sistematização superior através das formas conjugadas Cj, de igual modo uma multiplicidade de actos conjugados Ajk pode ser um espécime do resíduo empírico que fornece a potência conjugada para a sistematização ainda mais elevada através das formas conjugadas Ck. Por conseguinte, pode haver uma série de géneros Ti, Tj e Tk, ... e, dentro de cada género, pode haver diferentes espécies, pois as coisas são definidas pelas suas formas conjugadas e as formas conjugadas diferem na medida em que sistematizam diversamente as suas diferentes multiplicidades subjacentes de actos conjugados de ordem inferior.

Em quinto lugar, nas coisas de um género superior sobrevivem potências, formas e actos conjugados inferiores, mas não coisas inferiores. Os conjugados inferiores sobrevivem, pois, sem eles, nada haveria para o sistema superior de conjugados sistematizar. Por outro lado, as coisas inferiores não sobrevivem no seio de coisas superiores. É que uma coisa é a unidade concreta e inteligível dos dados concretos e individuais; os mesmos dados diversamente perspectivados podem fornecer a prova para diferentes formas conjugadas, mas os mesmos dados sob a totalidade dos seus aspectos não podem ser os dados para coisas diferentes. Se qualquer dado, sob todos os seus aspectos, pertence a uma coisa, então não pertence a nenhuma outra coisa; logo, se existe uma coisa superior, existem dados para afirmá-la; e esses mesmos dados não são dados para nenhuma outra coisa. Deve notar-se, no entanto, que não falamos de “corpos”, mas de coisas. No interior do “corpo” de um animal, pode haver muitas coisas diferentes; mas estas coisas diferentes não são o animal, nem partes dele; podem ser “corpos” estranhos; podem viver em simbiose com o animal; mas não pertencem ao animal do mesmo modo que os seus olhos e outros orgãos.

Em sexto lugar, haverá ciências empíricas distintas e autónomas correspondentes aos sucessivos géneros. É que cada género tem o seu próprio domínio de esquemas de recorrência Si, Sj, Sk, ... A investigação destas regularidades levará à descoberta de correlações empiricamente verificadas e, assim, de conjuntos implicitamente definidos de conjugados Ci, Cj, Ck ... Todos os termos do conjunto Ci serão definidos pelas suas

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relações internas; todos os termos do conjunto Cj serão definidos pelas suas relações internas; e uma vez que os dois conjuntos não têm termos em comum, não haverá relação lógica de um conjunto para o outro. Uma vez que não há relação lógica de um conjunto para o outro, as diversas ciências empíricas serão distintas e autónomas.

Em sétimo lugar, as sucessivas e distintas ciências autónomas estarão relacionadas enquanto perspectivas superiores sucessivas. É que as multiplicidades coincidentes de actos conjugados inferiores – digamos Aij – podem ser imaginadas simbolicamente. Além disso, como as multiplicidades coincidentes são a potência conjugada para formas conjugadas superiores, assim as imagens simbólicas fornecem os materiais para a intelecção das leis que relacionam as formas superiores. Mas existe uma perspectiva superior quando as imagens de operações de nível inferior geram a intelecção das leis que governam as operações de nível superior. Por conseguinte, a estrutura dos géneros sucessivos corre paralelamente à estrutura das perspectivas superiores sucessivas.

Em oitavo lugar, este paralelo pode afirmar-se como uma posição ou como uma contraposição. Se se afirmar que o real é ser e é para ser conhecido pela apreensão inteligente e pela afirmação razoável, então o real consistirá em unidades existentes diferenciadas por formas conjugadas de vários géneros e espécies. Nesse caso, as imagens simbólicas terão apenas um valor heurístico, pois servirão para facilitar a passagem de uma ciência à outra e para determinar até que ponto os dados são, ou não, explicados quer por uma, quer por outra. Por outro lado, se se afirmar que o real é uma subdivisão do “agora já aí fora”, então as imagens não serão símbolos heurísticos, mas representações das coisas como realmente são; os sistemas inteligíveis sucessivos serão arranjos meramente subjectivos, pois o inteligível não pode ser imaginado; e, assim, a realidade de cada um dos géneros superiores é esvaziada para o inferior, até que atinge a imagem do mais baixo; e uma vez que o género mais baixo é imaginado como sendo demasiado pequeno para ser visto, fica-se com imagens inverificáveis do género inferior, o que é uma consideração extracientífica e pseudo-metafísica da realidade.

Apresentada a nossa concepção de géneros e espécies explicativos, duas questões emergem. É correcta a concepção? É verificável, não apenas nas coisas como são conhecidas agora, mas também nas coisas como seriam conhecidas se fossem completamente explicadas?

Talvez se possa asserir que a concepção é só provável. A noção da sucessão de perspectivas superiores seria, aparentemente, a única maneira de poder unificar ciências logicamente não-relacionadas. A noção de que as multiplicidades inferiores coincidentes de ocorrências são sistematizadas por formas superiores afigurar-se-ia a única maneira de ordens superiores de realidade poderem ser imanentes a ordens inferiores, sem violar as leis clássicas inferiores. As duas noções são complementares, pois a imagem corresponde à multiplicidade coincidente, e a intelecção sobre a imagem apreende as formas que sistematizam a multiplicidade de outro modo coincidente. Por último, as duas noções satisfazem as exigências mais gerais das leis clássicas abstractas, dos esquemas concretos de recorrência, dos resíduos estatísticos, da probabilidade emergente de formas e esquemas superiores e da estrutura metafísica das potências, formas e actos, centrais e conjugados.

Além disso, a concepção não assenta no presente estado das ciências empíricas, mas nas propriedades fundamentais da intelecção. A intelecção versa sobre as representações imaginativas. As intelecções acumulam-se em pontos de vista. As imagens que representam pontos de vista levam a intelecções que se acumulam em pontos de vista superiores. Esta transição pode repetir-se. Separadas da intelecção, as imagens são multiplicidades coincidentes, mas as imagens à luz da intelecção deixam de ser coincidentes, pois os seus elementos passam a estar inteligivelmente relacionados. A

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potência corresponde ao resíduo empírico imaginado. A forma corresponde à intelecção. Além disso, a intelecção directa expressa-se em leis clássicas abstractas; esta abstractividade é uma indeterminação que abre espaço para as intelecções inversas que apreendem leis estatísticas; a compatibilidade das leis clássicas e das leis estatísticas abre espaço para as multiplicidades coincidentes que fornecem a potência para formas superiores. Não só todos estes elementos se entrelaçam para produzir uma explicação única e coerente dos géneros e espécies explicativos, como a explicação resultante carece de competidores pois, tanto quanto sei, mais ninguém tentou elaborar a teoria pura dos géneros e das espécies em que os géneros e as espécies não se concebem descritivamente, mas de modo explicativo.

Ora, uma concepção só é provável, se enfrentar uma questão sem rodeios e se não se encontrarem disponíveis visões alternativas. Além disso, esta probabilidade é, no caso presente, de uma ordem superior. Não diz respeito a uma síntese imaginativa de eventos externos, tal como os sistemas ptolomaico ou copernicano, mas ao fundamento interno que é gerador de sínteses imaginativas sucessivas e de unificações sistemáticas. Tais sínteses e unificações podem erguer-se e esboroar-se numa perpétua sucessão, sem que alterem um elemento que seja das propriedades fundamentais da intelecção, pois essas propriedades fundamentais são o princípio de que brotaria a perpétua sucessão. Daí que, quanto maior for a familiaridade com a inteligência humana e suas propriedades, tanto mais claro se torna que o nosso desdobramento da noção de ponto de vista superior numa teoria dos géneros e espécies explicativas explorou os factores básicos e permanentes que subsistirão em modificações e melhoramentos subsequentes.

Por último, semelhante probabilidade única é suficiente para um teorema metafísico, quando a metafísica se concebe de acordo com a definição do capítulo precedente. Pois, se uma metafísica visa integrar as ciências empíricas e o senso comum de modo a gerar uma visão unitária do universo do ser proporcionado, então tem de lidar com factos. Não pode aceitar os critérios de um dedutivismo que se contenta com afirmar as leis necessárias de qualquer mundo possível. Será matizada; pode não ter dúvidas acerca das potências, formas e actos, centrais e conjugados; mas pode contentar-se com a probabilidade única, quando se trata de diferenciar os géneros e as espécies que são explicativos das formas.

Resta-nos a questão de facto. Haverá, neste universo, coisas que diferem específica e genericamente, quando estas diferenças não são concebidas descritivamente, mas de modo explicativo? A contraposição dita uma resposta negativa, pois, nesse caso, a realidade reduz-se a entidades imaginadas e inverificáveis que não diferem inteligivelmente, mas apenas nas suas determinações imagináveis. Por outro lado, se apelamos às convicções imemoriais do senso comum ou à divisão actual dos departamentos científicos, todos os dados favorecem a afirmação de diferentes géneros explicativos. Por último, podemos invocar o testemunho de um futuro e hipotético revisor da presente afirmação. É que, se ele for rever aquela ou qualquer outra afirmação, terá de apelar para a experiência, para a compreensão e para o juízo, pelo que ele será uma unidade concreta e inteligível de consciência empírica, inteligente e racional. Além disso, tem de se pronunciar, não enquanto consciente no seio do padrão biológico, estético, artístico, dramático ou prático da experiência, mas enquanto consciente no interior do padrão intelectual. Será, ainda, capaz de experienciar nesses outros padrões ou em qualquer mistura ou alternância deles, pois, caso contrário, não seria humano. Segue-se que, se for humano, o revisor hipotético será mais do que uma unidade concreta e inteligível de consciência empírica, inteligente e racional. Que outra coisa será? Temos de invocar, pelo menos, um outro género de formas conjugadas para explicar a potencialidade concreta de outros padrões da experiência, para explicar as

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influências pré-conscientes e subconscientes sobre a consciência, para explicar o facto de o revisor hipotético comer, respirar e caminhar com outras coisas não humanas. Por outro lado, se o nosso revisor hipotético não for um homem, teremos então sérias dificuldades em conceber um modo de negar a existência de diferentes géneros explicativos.

4. Potência e limitação

Cada género superior é limitado pelo género imediatamente inferior. Por um lado, não deve interferir com a autonomia da ordem inferior, pois, se o fizesse, destruiria o seu próprio fundamento. Por outro lado, o género superior é uma sistematização superior de multiplicidades que seriam coincidentes no nível inferior, e uma sistematização superior é limitada pelas multiplicidades que sistematiza.

Uma vez que cada género superior é limitado pelo género imediatamente inferior, segue-se que o género mais baixo fornece um princípio de limitação a todo o domínio do ser proporcionado.

Além disso, este princípio universal de limitação reside na potência do género mais baixo. É que o acto corresponde ao juízo, a forma à intelecção e a potência à experiência do resíduo empírico. Mas o “Sim” do juízo restringe-se à formulação por ele afirmada, e esta formulação resulta de uma intelecção que se restringe ao padrão dos dados a ser compreendidos. Por conseguinte, tal como o juízo é limitado pela intelecção e a intelecção pelos dados, também o acto é limitado pela forma e a forma pela potência.

Será conveniente introduzir a denominação “potência primeira” para denotar a potência do nível inferior, que fornece o princípio de limitação a todo o domínio do ser proporcionado.

Algumas das características da potência primeira são-nos já familiares. Pois a potência é o que há para ser conhecido pela experiência intelectualmente configurada do resíduo empírico. O resíduo empírico consiste na individualidade, no contínuo, em lugares e tempos particulares e na divergência não-sistemática em face de antecipações teoreticamente fundadas. Uma vez que hão-de ser verificados no género inferior do ser proporcionado, todos estes traços do resíduo empírico se devem atribuir à potência primeira.

No entanto, podemos perguntar se, à luz da ciência contemporânea, a potência primeira tem alguma coisa a ver com a energia. Pode argumentar-se de modo geral que a energia, já que pode ser latente ou potencial, não é acto. Uma vez que é relevante para a mecânica, para a termodinâmica, para o electromagnetismo, para a química e para a biologia, não é forma. Por último, dado que funciona como um princípio universal de limitação, deve fundar-se na potência primeira.

Uma investigação da noção de energia encontra-se fora do âmbito da presente investigação, mas talvez não seja inoportuno levantar algumas questões importantes. Em primeiro lugar, não se obtém a noção de energia pela diferenciação, mas pela integração. Não surpreende que a diferenciação, que é um procedimento abstractivo, gere noções com uma ampla generalidade. A energia é uma noção de extrema generalidade e, contudo, obtém-se através da integração. Não se poderia dizer que a quantidade de energia é uma potência primeira concreta e, conforme o caso, mecânica, térmica ou electricamente informada?

Verifica-se, ainda, o curioso facto de a ciência da mecânica se poder desenvolver logicamente em termos de leis clássicas e sem qualquer menção da energia2 e de, no

2 (Lindsay e Margenau, Foundations of Physics, pág. 120),

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entanto, uma vez introduzida a noção de energia, se poder desenvolver o método das coordenadas generalizadas de Lagrange e as equações canónicas de Hamilton, que constituem as técnicas mais poderosas em mecânica. Deverá dizer-se que existe uma mecânica baseada nas leis do movimento e nas formas conjugadas que as leis definem, e que há outra mecânica equivalente, mas mais poderosa, baseada nas limitações estabelecidas pela potência primeira?

Além disso, embora receba a sua formulação básica em mecânica, a noção de quantidade de energia não se restringe à mecânica. A termodinâmica concebe o calor como uma forma de energia que é por ela limitada através de uma lei de conservação e uma lei que estabelece a direcção das suas alterações3. Max Plank desenvolveu as equações electromagnéticas de Maxwell, começando pela noção de energia4. A função hamiltoniana, que representa a energia total, forneceu pistas básicas à mecânica quântica5. Existe a libertação e a absorção de energia nas alterações químicas e o papel da clorofila na captação da energia da radiação. Referir-se-ão estes factos à potência primeira como princípio universal de limitação?

Além disso, existe uma inércia da energia, e uma equação que relaciona a massa e a energia. Deverá relacionar-se o coeficiente inerte da massa com a potência primeira que ele informa e conceber-se a própria massa como uma forma conjugada, implicitamente definida pelas leis que relacionam as massas umas com as outras?

Por último, foi sugerida uma correlação entre o universo em expansão e a emergência de energia adicional. Se tal chegar a ser aceite, deverá ser explicado, já que a potência primeira funda tanto o contínuo do espaço-tempo e a quantidade de energia, de modo que um aumento num implique um aumento no outro?

Afigurar-se-ia desejável uma única resposta coerente a todas estas questões, de modo a que a potência primeira se concebesse como fundamento da limitação quantitativa e que as considerações heurísticas gerais relacionassem a limitação quantitativa com as propriedades que a ciência verifica na quantidade que ela apelida de energia.

5. Potência e finalidade

Concebeu-se heuristicamente o ser como o fito do desejo livre e desinteressado de conhecer e, mais precisamente, como o que há para ser conhecido pela apreensão inteligente e pela afirmação razoável. Viu-se que esta noção heurística subjaz a todo o nosso conhecimento, penetra todos os conteúdos conceptuais, vai além destes, fornece um cerne para todo o sentido. Temos, agora, de formular uma noção recíproca de igual importância. De facto, não é só a nossa noção de ser que é heurística, que se dirige para um objectivo que só pode ser definido nos termos do processo de o conhecer, mas também a própria realidade do ser proporcionado exibe uma análoga incompletude e uma idêntica orientação dinâmica em direcção a uma completude que só se torna determinada no processo de adimplemento.

Tal como a experiência intelectualmente configurada se dirige para as intelecções e para os juízos, também a potência se dirige para as formas e para os actos. Tal como a actividade cognitiva ascende a pontos de vista superiores através das acumulações de intelecções, também o processo objectivo implica a informação e a actualização da potência primeira apenas para que se revele um resíduo de multiplicidades coincidentes e, assim, se ascenda através de níveis sucessivos de sistematização superior. Tal como a actividade cognitiva desconhece, à partida, o que o ser é e, portanto, tem de defini-lo

3 (Ibid., págs. 214-18.)4 (Ibid. págs. 315 e ss.)5 (Ibid. págs. 405, 145)

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heuristicamente como o que há para ser conhecido pela apreensão inteligente e pela afirmação razoável, também o processo objectivo não é a realização de um plano, mas a acumulação de uma série condicionada de coisas e de esquemas de recorrência, de acordo com sucessivas tabelas de probabilidades. Tal como a actividade cognitiva é o ‘tornar-se conhecido’ do ser, também o processo objectivo é o devenir do ser proporcionado. De facto, já que a actividade cognitiva é apenas uma parte deste universo, também o seu dirigir-se para o ser é apenas o caso particular em que o ímpeto universal em direcção ao ser se torna consciente, inteligente e razoável.

Tal é o significado que associaríamos ao termo ‘finalidade’. Por conseguinte, ‘finalidade’ não significa um expediente de uma inteligência preguiçosa que tenta emendar as deficiências da sua visão da causalidade eficiente. Muito menos indicamos por ‘finalidade’ uma força exercida pelo futuro sobre o presente. Com ‘finalidade’, referimo-nos a um teorema de uma generalidade igual à da noção de ser. Este teorema afirma um paralelismo entre o dinamismo da mente e o dinamismo do ser proporcionado. Afirma que o universo objectivo não está em repouso, não é estático, fixo no presente, mas em processo, em tensão, fluido. Uma vez que encara a realidade presente sob o seu aspecto dinâmico, afirma que este dinamismo é aberto. Assim como o que há para ser conhecido só se torna determinado através do conhecer, também o que há-de ser só fica determinado através do seu devir. E tal como o conhecer presente não é apenas conhecer presente, mas também um momento em processo para um conhecer mais pleno, de igual modo a realidade presente não é apenas realidade presente, mas também um momento em processo para uma realidade mais plena.

O fundamento objectivo deste dinamismo aberto é a potência. A potência é, pois, o que há para ser conhecido pela experiência intelectualmente configurada do resíduo empírico. A experiência intelectualmente configurada é dinâmica; é experiência conforme a uma estrutura heurística derivada do desejo livre e desinteressado de conhecer; é experiência dominada por esse desejo. E, tal como a própria experiência, a orientação dinâmica dessa experiência tem o seu correspondente no ser proporcionado. De facto, uma vez que a actividade cognitiva é tão-só uma parte deste universo, o seu esforço para conhecer o ser é a parte inteligente e razoável de um impulso universal em direcção ao ser.

Tenho apontado um paralelo entre o conhecer incompleto que se dirige para um conhecer mais pleno e o universo incompleto que se dirige para um ser mais pleno, e proponho-me agora empregar o termo ‘finalidade’ para denotar o membro objectivo deste paralelo. Talvez surjam queixas contra este uso. Os imaginativos defenderão que a finalidade se refere a uma força exercida pelo futuro sobre o presente. Os dedutivistas abstractos argumentarão, com Escoto, que a finalidade denotará uma propriedade necessária de todo o mundo possível. Os dedutivistas concretos argumentarão, com Espinosa, que a finalidade não passa de um erro: assim como as premissas provam conclusões, também os pássaros, porque têm asas, são capazes de voar; assim como as premissas não existem para provar conclusões, também os pássaros não têm asas para serem capazes de voar. Os kantianos defenderão que a finalidade não é uma lei da natureza, mas uma máxima do pensamento, que não revela um elemento constitutivo das coisas, mas apenas regula e ordena o conhecimento que delas temos. De uma maneira mais simplista, os positivistas sustentarão que, uma vez que é conhecida pela compreensão, a finalidade não pertence ao “real já agora aí fora”. Por último, os defensores ainda existentes do monismo científico chamarão a atenção para o facto de não haver espaço, no seu universo, para noções que tudo penetram, tais como ‘ser’ e ‘finalidade’, pois a filosofia nada tem a acrescentar à ciência, e a ciência lida apenas com conceitos precisos e próprios de disciplinas particulares.

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Em resumo, há tantas visões da finalidade quantas as filosofias, e nem vale a pena repetir, aqui, as nossas razões para a posição que adoptámos. A preocupação presente limitar-se-á à elaboração das implicações das conclusões anteriores. Porque o real é ser e o ser é tudo o que há para ser conhecido pela apreensão inteligente e pela afirmação razoável, a finalidade não seria real se fosse meramente conhecida como elemento constitutivo do “já agora aí fora”. Além disso, porque concebemos a metafísica como a estrutura heurística integral do ser proporcionado, temos de restringir, de maneira semelhante, a nossa consideração da finalidade. Por último, uma vez que os princípios analíticos diferem das proposições analíticas pela adição de juízos de facto, o nosso conhecimento do ser proporcionado e, por consequência, o nosso conhecimento da finalidade, é conhecimento do que de facto existe. Por conseguinte, a nossa questão da finalidade é tão-só uma questão de compreender correctamente um facto.

A finalidade é, então, basicamente o aspecto dinâmico do real. Afirmar a finalidade é discordar da negação eleática da mudança. É negar que este universo seja inerte, estático, acabado, completo. É afirmar o movimento, a fluidez, a tensão, a aproximatividade, a incompletude. É uma afirmação que pode vir a ter implicações no futuro, mas tais implicações são uma questão ulterior, pois a finalidade é uma afirmação de facto e o facto não pertence ao futuro, mas ao presente e ao passado. Por último, o facto em questão não pode ser completamente negado, pois o nosso conhecer é um evento no universo e não é inerte, estático, acabado, completo; pelo contrário, enquanto a nossa experiência for intelectualmente configurada, o nosso conhecer está em processo; consiste em propor questões à inteligênca, resolvê-las com intelecções, levantar outras questões para despertar ulteriores intelecções, virar-se para a reflexão e para o juízo críticos apenas para voltar, de novo, a uma investigação que necessitará do controlo de mais uma reflexão crítica.

Em segundo lugar, a finalidade não significa apenas dinamismo, mas dinamismo direccionado. Não nega nem menospreza factos como a entropia, o cataclismo, a morte que sucede a cada nascimento, a extinção que ameaça toda a sobrevivência. Não dá qualquer opinião acerca do destino último do universo, mas insiste em que o quadro negativo não é tudo, porque conhece o ser proporcionado como constituído por géneros e espécies explicativos de potências, formas e actos, centrais e conjugados. Sabe que a potência se encontra numa direcção dinâmica para a forma, que a forma se encontra numa direcção dinâmica para o acto, que as multiplicidades coincidentes do acto se encontram numa conexão com a potência para formas superiores. Outra questão é o que essa direcção dinâmica poderá vir a revelar. Mas, num certo sentido, pelo menos, a direcção dinâmica tem de ser afirmada. Pois a potência, a forma e o acto constituem uma unidade; a potência é pressuposta e complementada pela forma; a forma é pressuposta e complementada pelo acto, e estas relações de pressuposição e complementação implicam um dirigir-se da potência para a forma e da forma para o acto.

Em terceiro lugar, o dinamismo direccionado da finalidade não é dedutivista, pois o dedutivismo é um erro. As previsões rigorosas são possíveis, mas a sua possibilidade assenta na sobrevivência de esquemas de recorrência; essa sobrevivência não é necessária, mas apenas provável; e embora a probabilidade exclua a divergência sistemática relativamente a frequências ideais, não exclui a divergência não-sistemática.

Em quarto lugar, o dinamismo direccionado da finalidade não é determinado, no sentido mais óbvio desse termo. Não se dirige para um determinado indivíduo, espécie ou género do ser proporcionado. Pelo contrário, o sentido essencial da finalidade é que ela vai para além de tais determinações. A potência dirige-se para a forma, mas, para lá desta, dirige-se também para o acto; e, para lá do acto, dirige-se para multiplicidades coincidentes de actos e, através destas, para formas superiores e multiplicidades

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coincidentes superiores de actos. A finalidade vai para além da miríade de individualidades de género inferior até ao reduzido número de individualidades dos géneros superiores, e vai para além desse reduzido número de individualidades, em ciclos perpétuos de mudança. A finalidade vai para além dos géneros e espécies inferiores até aos géneros e espécies superiores e, se pára em algum género, essa paragem não revela a finalidade, mas as limitações que esta se esforça por transcender. Mesmo que alguém faça questão de afirmar que a finalidade não pode ir mais além do homem, é assaz claro que o desejo irrestrito de conhecer do homem fornece uma prova concreta de que o máximo de possibilidade que se afirma não é o máximo de aspiração.

Em quinto lugar, o dinamismo direccionado da finalidade é uma realização efectivamente provável de possibilidades. A potência é uma possibilidade objectiva de forma; a forma é uma possibilidade objectiva de acto; os actos são uma possibilidade objectiva de formas superiores e de actos superiores. A realização destas possibilidades é efectivamente provável, pois, se se supuserem números suficientes e intervalos de tempo assaz longos, a realização de qualquer possibilidade pode ser assegurada.

Em sexto lugar, este dinamismo direccionado é realista. Resulta das leis clássicas que se baseiam nas formas, das leis estatísticas que se baseiam nos actos, do processo emergente que se funda na potência. Não é uma construção que se acrescenta a um universo incompetente para que ele funcione, mas um desdobramento das suas implicações imanentes, e que tem de funcionar. Temos tendência a julgar o universo de acordo com padrões antropomórficos. Procuramos a eficiência nas nossas máquinas, a economia no nosso uso de materiais e de poder, a segurança nos nossos planos abrangentes, a ausência da doença e da morte, da violência e da dor, do abuso e da repressão, reflectindo os desejos e as aspirações dos nossos corações. Mas as utopias humanas são esquemas de papel. Postulamos materiais mais perfeitos no universo do que aqueles com que construímos. Supomos que a construção pode ser uma actividade extrínseca, separada do próprio universo. Esquecemos que nós próprios, todas as nossas grandes realizações, as nossas esperanças e os nossos sonhos ainda maiores não passam de produtos derivados do universo na sua expansão peculiar, de acordo com a sua inteligibilidade própria.

Em sétimo lugar, a finalidade é universal. É tanto a alegria do êxito quanto a tristeza do falhanço. Deve discernir-se tanto na estabilidade e no progresso quanto nas falsas partidas e nas rupturas. É tanto o significado da aberração, da corrupção e do declínio quanto o da sanidade, da honestidade e do desenvolvimento. A finalidade é uma inteligibilidade imanente que opera através da probabilidade efectiva da possibilidade. A probabilidade efectiva não tem pretensões de fornecer um universo asséptico de crómio e plástico. As suas tentativas ultrapassarão em muito o número dos seus êxitos, mas as tentativas não são menos uma parte do programa do que os êxitos. Além disso, nos assuntos humanos, a finalidade não se propõe governar o mundo à maneira de um jardim-de-infância; propõe-se, sim, esclarecer os homens, ao permitir que as acções destes tenham as consequências destas, de modo a que, através deste amontoar cumulativo de provas, os homens possam aprender; e se uma tribo ou cultura, uma nação ou civilização não aprende, a finalidade não se curvará à adulação e à súplica; deixa que as coisas tomem o seu rumo para que, eventualmente, as tribos e as nações, as culturas e as civilizações possam alcançar o grau de consciência inteligente e racional necessário para levar por diante a tarefa da finalidade, que consiste em transcender as limitações.

Em oitavo lugar, a finalidade é matizada. Não é uma única fórmula simplista. É tão concreta, tão diferenciada, tão variada quanto os múltiplos seres deste mundo. Cada um tem as suas limitações, a sua incompletude, o seu aspecto dinâmico, a sua tensão, o seu impulso em direcção a um futuro mais pleno. Assim como a noção de ser subjaz a todos

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os outros conteúdos, os permeia e vai além deles, também a finalidade subjaz, atravessa e se dirige para além de cada ser que de facto existe.

Em nono lugar, a finalidade é flexível. Existe o processo de rotina do universo e, ao longo dele, verificam-se as mesmas leis clássicas e estatísticas. Mas o processo de rotina não é uma regra sem excepções. Há também mudanças de estado; ao longo de tais mudanças, verificam-se as mesmas leis clássicas, mas as leis estatísticas sofrem uma modificação. Nem carecem de significado as mudanças de estado, pois permitem, a longo prazo, a ocorrência de tendências emergentes que começam num determinado conjunto de leis clássicas e acabam na verificabilidade de outro. Além disso, a tendência emergente é, ela própria, flexível. Tal como a mesma lição pode ser dada de maneiras diferentes; tal como a mesma descoberta pode ser feita de modos diferentes, também o processo emergente, desde a potência até às formas superiores, pode seguir diferentes vias. O exemplo clássico consiste nas experiências de H. Driesch com embriões de ouriço-do-mar: descobriu ele que as distorções violentas do curso inicial da divisão celular eram compensadas por desvios posteriores e opostos no desenvolvimento normal. Por último, ao que parece, existe a flexibilidade principal, que surge quando novas combinações coincidentes fornecem os materiais para novas espécies e novos géneros de sistematização superior.

Elaborámos uma noção de finalidade que atribui ao universo do ser proporcionado um dinamismo direccionado que se encontra em paralelo com a estrutura heurística da investigação e da reflexão. É uma visão que se enquadra na nossa concepção de metafísica. Se recorremos aos três níveis do nosso conhecer para distinguir a potência, a forma e o acto; se recorremos à individualidade e à semelhança para distinguir as formas centrais e conjugadas; se recorremos às perspectivas superiores para estabelecer os géneros e espécies explicativos; se encontrámos na potência um princípio de limitação, então temos também de reconhecer na própria estrutura heurística uma pista para a natureza do universo proporcionado às nossas capacidades de conhecer. Na raiz de toda a estrutura heurística encontra-se o desejo livre e desinteressado e, de modo semelhante, afirmámos a existência um dinamismo direccionado na raiz do processo universal. O puro desejo dirige-se para um objectivo que só se torna conhecido através do seu desdobramento na compreensão e no juízo e, portanto, o dinamismo do processo universal não é direccionado para uma meta genérica, específica ou individualmente determinada, mas para tudo o que se torne determinado pelo próprio processo, na realização efectivamente provável das suas possibilidades. Por último, do mesmo modo que a nossa noção de metafísica não só inclui a premissa maior que afirma um isomorfismo entre o conhecer e o conhecido, e a premissa menor principal que afirma a estrutura do conhecer, mas também premissas menores subsidiárias fornecidas pela ciência empírica e pelo senso comum, assim também a nossa afirmação da finalidade não assenta apenas num paralelo a priori, mas nesse paralelo enquanto apoiado por amplas sequências de factos. Pois o nosso conhecer poderia ser tal como é, ainda que o universo fosse inerte, estático, acabado, completo, ou então dinâmico mas não direccionado, ou dinâmico e direccionado pela necessidade dedutivista, ou dinâmico e direccionado natural ou artificialmente para uma meta determinada. Mas o facto é que este universo não é estático, mas dinâmico, não é desprovido de direcção mas dirigido, não é dedutivista nem inflexível, mas a realização efectivamente provável das suas próprias possibilidades.

Resta-nos uma última questão. Que é que fornece o fundamento objectivo da finalidade: a potência, a forma ou o acto? A resposta é incerta, se a finalidade for a direcção imanente no dinamismo do real. Pois o real é dinâmico, na medida em que é incompleto, na medida em que é menos do que pode ser. O acto constitui a sua

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realização; a forma determina o que essa realização é; somente na potência se pode discernir o princípio que reporta uma realização determinada a um melhoramento indeterminado.

Segue-se que a potência é uma tensão de opostos. Como vimos, é o fundamento da limitação universal; como acabámos de acrescentar, é o fundamento da finalidade que transporta o ser proporcionado sempre mais além das limitações actuais. No entanto, isto não significa que a potência seja uma noção contraditória, pois a contradição só surge quando predicados que se excluem mutuamente são atribuídos ao mesmo objecto, sob o mesmo aspecto. Na potência existem, pelo menos, dois aspectos da sua contribuição própria para a constituição do ser proporcionado e, por outro lado, a sua relação com outras contribuições da forma e do acto. A contribuição própria da potência é a limitação. Mas a relação da potência com as outras contribuições é geral e indeterminada, todavia dinâmica e direccionada para tais contribuições. É a indeterminação desse dinamismo direccionado que faz da potência o princípio da tendência para transcender limitações.

Em último lugar, se explicámos o que queremos dizer com ‘finalidade’, talvez não seja despropositado acrescentar o que não queremos dizer. No Capítulo 19 levantar-se-á a questão da causalidade eficiente e final. Mas, de momento, não nos preocupamos com tais causas extrínsecas, mas com os elementos constitutivos imanentes ao ser proporcionado. Por conseguinte, se algum leitor desejar o paralelo aristotélico da nossa finalidade, não o encontrará na archê hothen hê kinesis de Aristóteles, nem no seu telos, mas na sua physis.6 Pois a finalidade não é principium motus in alio inquantum aliud; não é id cuius gratia; é principium motus in eo in quo est.

6. A noção de desenvolvimento

Uma vez que a noção de desenvolvimento se encontra particularmente sujeita à influência desfiguradora das contraposições, a nossa consideração da intelecção como actividade não tentou discutir a natureza do método genético. Esta omissão será agora remediada, e talvez a maneira mais simples de o fazer seja começar por enunciar e exemplificar os princípios do desenvolvimento.

Em primeiro lugar, existe o já familiar princípio de emergência. As multiplicidades aliás coincidentes de actos conjugados inferiores apelam à integração superior efectuada pelas formas conjugadas superiores. Assim, na nossa consideração dos géneros explicativos, os elementos e os compostos químicos são integrações superiores de multiplicidades aliás coincidentes de eventos subatómicos; os organismos são integrações superiores de multiplicidades aliás coincidentes de processos químicos; a consciência sensitiva é uma integração superior de multiplicidades aliás coincidentes de alterações nos tecidos neuronais; e as intelecções cumulativas são integrações superiores de multiplicidades aliás coincidentes de imagens ou de dados.

Em segundo lugar, existe o princípio de correspondência. As multiplicidades subjacentes que são significativamente diferentes exigem integrações superiores diferentes. Assim, os elementos químicos diferem uns dos outros pelos seus números atómicos e pelas suas massas atómicas, e estas diferenças fundam-se na multiplicidade subjacente. Diferentes agregados de agregados de processos químicos implicam organismos diferentes. Os eventos neuronais que ocorrem no olho e no ouvido evocam diferentes experiências de consciência. Dados diferentes conduzem a diferentes teorias. É certo que nem toda a diferença na multiplicidade subjacente exige uma integração diferente; o mesmo tipo de átomo pode ter componentes subatómicas em diferentes

6? Aristóteles, Física, II, 1, 192b 21-22.

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níveis de energia; o mesmo tipo de organismo admite diferenças no tamanho, na forma e no peso; as semelhanças de cáracter e de temperamento são, provavelmente, compatíveis quanto baste com diferenças neuronais; e a mesma teoria pode alcançar-se, partindo de dados diferentes. Do mesmo modo, o princípio de correspondência goza de uma certa medida de flexibilidade; dentro de certos limites, a mesma integração superior sistematizará diferentes multiplicidades; o ponto a salientar no princípio é que estes limites existem, e que transgredi-los significa eliminar a integração superior.

Em terceiro lugar, existe o princípio de finalidade. A multiplicidade subjacente é um dinamismo direccionado para cima, mas de modo indeterminado, no sentido de uma realização cada vez mais plena do ser. Qualquer realização efectiva irá pertencer a um determinado género e a uma determinada espécie, mas esta determinação é limitação; e toda a limitação é, para a finalidade, uma barreira a transcender.

De imediato se segue uma distinção entre integrações superiores estáticas e integrações superiores dinâmicas. Toda a integração superior sistematiza uma multiplicidade aliás coincidente, mas a sistematização pode efectuar-se de duas maneiras distintas. É estática, quando domina por completo a multiplicidade inferior e, assim, faz surgir uma notável impermeabilidade em face da mudança. Assim, os gases inertes encerram multiplicidades coincidentes de eventos subatómicos em rotinas particularmente permanentes. Por outro lado, a integração superior é dinâmica, quando se não contenta com sistematizar a multiplicidade subjacente, mas continua a aumentá-la e a modificá-la, até que, de harmonia com o princípio de correspondência, a interação existente for eliminada e, de acordo com o princípio de emergência, surgir uma nova integração.

Em quarto lugar, existe o próprio princípio de desenvolvimento. É a sequência concatenada de integrações superiores dinâmicas. Uma multiplicidade coincidente inicial é sistematizada e modificada por uma integração superior, de modo a evocar uma segunda; a segunda conduz a uma terceira; a terceira à quarta; e assim sucessivamente, até que as possibilidades de desenvolvimento ao longo de uma dada linha se esgotem e se alcançar a relativa estabilidade da maturidade.

Em quinto lugar, o curso do desenvolvimento é assinalado por uma diferenciação explanatória crescente. A integração inicial na multiplicidade inicial pertence a um determinado género e espécie; contudo, a atenção prestada em exclusivo aos dados no estádio inicial geraria escasso conhecimento, e ainda menor compreensão, do género e da espécie relevantes. O que há para ser conhecido pela compreensão é o que ainda está por vir, o que pode estar presente virtual ou potencialmente, mas que ainda não está presente formal ou efectivamente. Deste modo, se se atender apenas aos dados em cada estádio sucessivo de um desenvolvimento, descobre-se que a integração inicial só pode ser compreendida de modo genérico, que as subsequentes integrações são inteligibilidades cada vez mais específicas, que a diferenciação inteligível específica do último estádio alcançado é gerada no processo desde o estádio inicial. Assim, as células simples iniciais dos diferentes organismos são susceptíveis de diferenças materiais (por exemplo, no número de cromossomas), mas o seu funcionamento não apresenta diferenças que sejam comparáveis às ulteriores diferenças no funcionamento. Além disso, pessoas com temperamento e carácter bastante diferentes partiram, enquanto crianças, de casos de consciência sensitiva não apenas muito semelhantes, mas também notoriamente indiferenciados; havia sensações, mas a perceptividade não estava ainda desenvolvida; nada havia para recordar e os poderes da imaginação eram latentes; os afectos eram exemplos globais de tipo elementar; e as competências limitavam-se ao choro. Por último, o desenvolvimento intelectual tem as suas raízes no desejo livre e desinteressado de conhecer; mas o simples desejo não é conhecimento de qualquer coisa;

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conduz a estruturas altamente diferenciadas que são do âmbito da lógica, da matemática, da ciência natural, do senso comum, da filosofia e da ciência humana; mas estas diferenciações inteligíveis ainda estão por vir e só se dão no e através do processo de desenvolvimento.

Em sexto lugar, o curso do desenvolvimento é capaz de uma flexibilidade menor, na medida em que pode visar o mesmo objectivo último, seguindo rotas diferentes. Por outras palavras, embora a multiplicidade inicial com as suas diferenças materiais só possa evocar a integração inicial, ainda assim é suficiente para determinar qual será o objectivo último. Em virtude desta determinação, o curso do desenvovimento pode render-se às circunstâncias e, assim, seguir qualquer das sequências concatenadas alternativas, pertencentes a um dado conjunto. Assim, um ouriço-do-mar normal pode resultar de um embrião sujeito a pressões deformadoras; a saúde mental pode dever-se à espontaneidade não assistida ou ao acompanhamento psiquiátrico; a mesma ciência pode ensinar-se com êxito de acordo com diferentes métodos, e a mesma descoberta pode fazer-se de diversas maneiras.

Em sétimo lugar, o curso do desenvolvimento é susceptível de uma flexibilidade maior, que consiste numa alteração ou modificação do objectivo último. Em biologia, trata-se do bem conhecido facto da adaptação; na psicologia do inconsciente, pode ser exemplificada pela sublimação; na actividade cognitiva aparece, com alguma frequência, no modo como os investigadores começam por um problema e se vêem obrigados, pela lógica das questões, a dedicar-se à solução de outro.

A flexibilidade maior parece entrar em conflito com a flexibilidade menor, pois a primeira implica uma alteração no objectivo, enquanto a segunda assenta na fixidez do objectivo. Contudo, esta diferença é meramente descritiva. Na flexibilidade menor, encontra-se em funcionamento a determinação do desenvolvimento que se funda na multiplicidade inicial. Esta determinação revela a potência como o fundamento da limitação. Mas a potência também é o fundamento da finalidade e, deste ponto de vista, dirige-se para realizações cada vez mais plenas. Além disso, uma integração superior só parcialmente é caracterizada pela sistematização de uma multiplicidade subjacente; é, de um modo mais adequado, a emergência de uma solução para o problema complexo de sistematizar uma multiplicidade coincidente num determinado meio ou contexto; e esta solução consiste num conjunto de formas conjugadas que se relacionam não apenas umas com as outras no seio da integração, mas também, fora da integração, com outros casos do mesmo tipo.

À luz das considerações precedentes, pode-se definir o desenvolvimento como uma sequência flexível e concatenada de integrações superiores dinâmicas e cada vez mais diferenciadas, que resolvem a tensão de multiplicidades subjacentes sucessivamente transformadas através das aplicações sucessivas dos princípios de correspondência e emergência. Contudo, a fim de que isto não resulte num emaranhado verbal, juntemos à exemplificação das partes da definição algumas exemplificações do todo.

Tal como existem elementos químicos estáveis que bloqueiam o caminho para o desenvolvimento, também há elementos instáveis que facilmente formam compostos. Por seu turno, os compostos podem ser mais ou menos instáveis, e grandes agregados de compostos fornecem uma multiplicidade coincidente de processos, que se torna sistemática na célula. No entanto, a célula não estabelece uma integração estática, mas dinâmica. Está sempre a assimilar novos materiais e a excretar os que já serviram o seu propósito. Também se não contenta apenas com manter o equilíbrio deste processo, mas dirige-se para a duplicação do seu padrão dinâmico, e então divide-se. Uma tal divisão pode ser um caso de reprodução ou de crescimento. No primeiro caso, dá-se a multiplicação da vida de várias maneiras. No segundo, dá-se o desenvolvimento. A

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integração superior encontra-se a caminho, pois o crescimento não é apenas um aumento no tamanho, mas também aumento na diferenciação; a multiplicidade inicial é progressivamente sujeita a disposições e a padrões cada vez mais intrincados; o princípio de correspondência afasta repetidamente as integrações anteriores e, em cada um desses momentos, o princípio da emergência apela a uma integração definitivamente mais diferenciada. A diferenciação inteligível plena é eventualmente alcançada, e o desenvolvimento dá lugar à maturidade. Na medida em que o objectivo da sequência genética é fixado pela multiplicidade inicial, só carvalhos nascerão das bolotas. Mas, num grande número de casos e ao longo de amplos períodos de tempo, existe uma probabilidade efectiva de multiplicidades iniciais diferentes e, portanto, de objectivos diversos para as sequências genéticas. Contudo, o cumprimento de tais objectivos é condicionado pela existência prévia de um ambiente adequado e, ao invés, os ambientes mudam cumulativamente com cada adição de um novo tipo de organismo. Daqui surge um problema do ambiente que é resolvido por uma sequência filogenética de diferentes organismos, de tal forma que cada membro anterior pode sobreviver num ambiente menos desenvolvido e pode contribuir para um ambiente mais desenvolvido. Por seu turno, esta solução supõe a possibilidade da flexibilidade maior, pois cada membro anterior tem de emergir num determinado tipo de ambiente e, para sobreviver, tem de ser capaz de se adaptar sucessivamente às mudanças cumulativas produzidas por surgimentos posteriores de novos membros. Por último, atinge-se uma transcendência parcial do ambiente no animal que se desenvolve ao abrigo de um ovo ou útero, que goza de cuidados por parte dos pais, que se pode mover de um lado para o outro, que se encontra equipado para ludibriar ou vencer os inimigos.

Tal como existe o desenvolvimento orgânico, também existe o desenvolvimento psíquico. Assim como, no seu crescimento, o organismo tem de reunir e dispor as suas múltiplas células, também o animal, no seu desenvolvimento, tem de incluir a génese e a distribuição padronizada de tecidos neuronais. Assim como a diferenciação dos órgãos materiais funda uma sequência de integrações de funções orgânicas inteligíveis, também a diferenciação e estrutura neuronais fornecem uma base material para uma sequência de formas de consciência sensitiva cada vez mais complexas. Assim como não é na planta, mas no animal, que se realizam todas as potencialidades da diversidade orgânica, também não é no animal, mas no homem, que se atingem todas as potencialidades de uma consciência sensitiva ricamente diversificada e altamente integrada.

Parece existir, na célula isolada, a irritabilidade que, de um modo genérico e muito rudimentar, prefigura a ulterior sensitividade do tacto. Mas é uma potencialidade que a planta negligencia e o animal explora. Além disso, essa exploração move-se em duas direccções distintas. A multiplicação de terminações nervosas particularizadas funda uma possibilidade de impressões sensíveis cada vez mais diferenciadas e de componentes de movimentos sensitivamente guiados. A hierarquia ascendente dos centros nervosos funda a possibilidade de integrações de impressões cada vez mais notáveis e de coordenações de resposta cada vez mais diversificadas. Sem os cones e os bastonetes, não existe visão. Sem o cérebro, não existe centro no qual convirjam as influências externas, e não existe base de que emanem as respostas integradas. Os dois tipos de desenvolvimento são complementares, e se os animais ultrapassam o homem na acuidade dos sentidos ou na agilidade dos movimentos, o homem ultrapassa-os em poderes de integração.

No entanto, o desenvolvimento neuronal fornece apenas a multiplicidade subjacente para o desenvolvimento psíquico. Este último é condicionado pelo primeiro, mas não consiste nem em tecidos neuronais, nem em configurações neuronais, nem em eventos neuronais, mas numa sequência de conjuntos crescentemente diferenciados e integrados

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de capacidades para a perceptividade, a resposta agressiva e afectiva, a memória, os projectos imaginativos e o desempenho hábil e economicamente executado. Apesar de as capacidades terem uma base em determinado correlato neuronal da associação, ainda assim, a distinção entre ambas é posta em relevo pela diferença entre a integração única normal de capacidades e a anormalidade da personalidade múltipla, na qual um único indivíduo exibe, em momentos diferentes, integrações assaz distintas de diferentes características perceptivas, associativas, emotivas, volitivas e operativas. Assim como a célula isolada é de tal modo integrada que se dirige para a duplicação do seu padrão dinâmico e consequente divisão, também a integração superior da consciência sensitiva pode, de uma maneira que não é de todo diferente, interagir com a sua base neuronal de modo a gerar integrações diferentes e incompatíveis.

É talvez por a consciência animal se encontrar dominada pelo propósito biológico, que o seu desenvolvimento é mais conspícuo na comparação entre animais diferentes do que no contraste entre o comportamento dos membros jovens e adultos de uma mesma espécie, nos efeitos do treino e nos casos de aprendizagem experimentalmente provocados e registados. Em todo o caso, é no homem que se observa a maior diversidade de perceptividade, de poder imaginativo, de gradação dos afectos e de competências adquiridas. A consciência genérica da criança torna-se diferenciada no processo do viver sensitivo em casa, na escola, no trabalho, e as leis tradicionais do desenvolvimento são o poder do exemplo e a máxima de que a prática conduz à perfeição.

No entanto, a ciência relativamente recente da psicologia do inconsciente lançou bastante luz sobre o assunto, e não será despropositado indicar que a nossa definição de desenvolvimento proporciona um esquema único que une princípios que, de outro modo, não estariam relacionados. Assim, a noção de finalidade reune a realização freudiana dos desejos, e a sua bastante ambígua sublimação, aos símbolos arquetípicos de Jung. A base neuronal inconsciente não intenta nem quer, no sentido próprio dos termos, pois tanto o intentar como o querer são actividades conscientes. Mas a base neuronal inconsciente é um dinamismo direccionado para cima que demanda uma realização mais plena, primeiro, ao nível sensitivo imediato e, em segundo lugar, aos níveis superiores do artístico, do dramático, do filosófico, do cultural e do religioso. Daí que uma intelecção sobre símbolos dos sonhos, e sobre as imagens e afectos associados, revele ao psicólogo uma apreensão das antecipações e virtualidades de actividades superiores, imanentes à multiplicidade inconsciente subjacente.

Um fenómeno semelhante, mas a um nível diferente, é-nos oferecido pelo super-ego freudiano: na consciência, é um composto de símbolos preceptivos e afectos submissivos; pela sua finalidade antecipa, pela sua subordinação reflecte, pelas suas tendências obssessivas e expansivas caricatura os juízos da consciência racional acerca da conduta de um ser racional.

Além disso, o censor não é um agente nem uma actividade, mas simplesmente uma lei ou regra das interrelações entre níveis sucessivos de integração; a censura construtiva é a admissão na consciência de elementos que entram na integração superior; a censura repressiva é a exclusão, da consciência, de elementos que a integração superior não pode assimilar; o psicanalista que tenta uma educação retrospectiva do seu paciente empenha-se em aumentar as potencialidades de integração; e a resistência que o seu paciente oferece é um subproduto da integração superior, que confere a sua peculiar configuração ao que consegue assimilar e contornando o que não consegue.

Por último, há três princípios gerais relevantes para a possibilidade da embriologia dos fenómenos sexuais sensitivos segundo Freud, com os seus estádios sucessivos e os consequentes perigos de suspensão do desenvolvimento, de perversão e regressão. O

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primeiro princípio é que uma integração em desenvolvimento se move do genérico para o específico. O segundo é que a integração não pode preceder o desabrochar da sua multiplicidade subjacente; assim como a acumulação de intelecções sucede às apresentações sucessivas dos dados relevantes, também a integração psíquica tem de suceder aos estádios de desenvolvimento da base orgânica e neuronal. O terceiro princípio é que os graus de liberdade da integração sensitiva decrescem, por assim dizer, à medida que nos movemos dos centros nervosos superiores em direcção às terminações nervosas particularizadas; daí que alguém possa imaginar como lhe apetecer, mas não possa simultaneamente ser normal e ver como lhe apetecer. Segue-se que o lado psíquico do desenvolvimento sexual irá do genérico para o específico, que se dividirá em estádios impostos pelo desenvolvimento somático, que as integrações sensitivas sucessivas têm de satisfazer exigências neuronais cada vez mais determinadas e que, para satisfazer estas exigências, têm de imitar, não o artista, o matemático ou o filósofo que segue a lógica das posições anteriores, mas o cientista ou a pessoa de senso comum que atende, principalmente, a domínios cada vez mais amplos de dados bastante determinados.

O principal exemplo da noção de desenvolvimento é, sem dúvida, a inteligência humana. Uma multiplicidade aliás coincidente de dados ou imagens é integrada por intelecções; o esforço para formular sistematicamente o que é apreendido pela intelecção ou, em vez disso, o esforço por agir em conformidade suscita mais questões, dirige a atenção para outros dados, leva à emergência de mais intelecções, iniciando-se outro trajecto do ciclo do desenvolvimento. Se dermos rédea solta ao desejo livre e desinteressado de conhecer, irão sempre surgir novas questões. As intelecções acumulam-se em pontos de vista, e os pontos de vista inferiores geram pontos de vista superiores. Se as imagens forem a única base do movimento, desenvolve-se a lógica; se a base for composta de imagens serialmente relacionadas com factos, o desenvolvimento é matemático; se os dados, na sua relação com o viver humano, determinarem o círculo, desenvolve-se o senso comum; se nos preocuparmos com os dados na sua relação uns com os outros, desenvolve-se a ciência empírica. Por último, se considerarmos o próprio círculo de desenvolvimento e a estrutura do que pode ser conhecido do ser proporcionado, o desenvolvimento é filosófico. Em cada um destes campos, assim como no crescimento orgânico e no desabrochar psíquico, o desenvolvimento é uma sequência flexível e concatenada de integrações superiores dinâmicas e cada vez mais diferenciadas, que resolvem a tensão de multiplicidades subjacentes sucessivamente transformadas, mediante aplicações sucessivas dos princípios de correspondência e emergência.

7. Método genético

No nosso estudo da intelecção como actividade, pudemos indicar as estruturas heurísticas e os procedimentos dos métodos clássico e estatístico. Mas embora empregássemos o método genético ao esboçar o desenvolvimento da matemática, da ciência natural e do senso comum, vimo-nos, todavia, forçados a não explicar precisamente o que estávamos a fazer. Para remediar este defeito, para revelar a importância heurística da noção de desenvolvimento e para preparar a nossa exposição da estrutura heurística integral do que denominámos ‘metafísica’, devemos dirigir agora a atenção para o método genético. Em primeiro lugar, exporemos a nossa consideração do assunto; em segundo lugar, iremos clarificar esta consideração, contrastando-a com outras posições.

Assim como o método clássico antecipa a especificação de uma correlação não especificada, a determinação de uma função indeterminada, também o método genético

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encontra a sua noção heurística no desenvolvimento. Na planta, existe o desenvolvimento simples do organismo; no animal, existe o desenvolvimento duplo do organismo e do psiquismo; no homem, existe o desenvolvimento triplo do organismo, do psiquismo e da inteligência. Tornemos mais precisa esta afirmação geral, reformulando-a nos nossos termos metafísicos.

7.1 Noções Gerais

Primeiro, deve afirmar-se de toda a planta, animal ou homem, uma unidade individual e existente. Em virtude da potência central, é individual; em virtude da forma central, é uma unidade, uma identidade, um todo; em virtude do acto central, é existente.

Em segundo lugar, além da potência, da forma e do acto centrais, há potências, formas e actos conjugados. Ademais, a potência, a forma e o acto centrais são constantes ao longo do desenvolvimento; é a mesma unidade individual e existente que se desenvolve orgânica, psíquica e intelectualmente; e, por isso, o desenvolvimento tem de se formular em termos de potência, forma e acto conjugados.

Em terceiro lugar, actos conjugados são ocorrências, eventos, em funcionamento. Tais são os actos orgânicos da intussuscepção, da assimilação, da excreção; os actos psíquicos de percepção, de volição, de resposta; os actos intelectuais de intelecção e de formulação, de entendimento reflexivo e juízo. Além disso, tais actos são recorrentes e a sua recorrência exibe uma regularidade que estabelece a relevância dos esquemas de recorrência. Mas a regularidade em questão não possui a periodicidade fixa e rígida de um sistema planetário e, de facto, para que o funcionamento do organismo, do psiquismo ou da inteligência possa ser compreensível, não devemos pensar num único esquema de recorrência, mas num círculo flexível de sequências de esquemas. Pois o mesmo organismo, os mesmos hábitos e as mesmas disposições psíquicas, o mesmo desenvolvimento intelectual, redundam em operações bastante diferentes, sob condições distintas e de acordo com circunstâncias diferentes.

Em quarto lugar, as formas conjugadas são definidas implicitamente por correlações explicativas empiricamente estabelecidas. Ora, tal como a forma conjugada ‘massa’ foi alcançada por Newton, ao ter reduzido o esquema de recorrência planetário de Kepler às suas leis abstractas de movimento e de gravitação, também as formas conjugadas do organismo, do psiquismo e da inteligência serão descobertas, partindo dos esquemas de recorrência orgânica, psíquica e intelectual, em direcção às correlações subjacentes. Em ambos os casos discerne-se, primeiro, uma regularidade de eventos e, depois, avança-se para a relação abstracta que

(1) se verifica nos eventos; (2) define implicitamente a especificação explicativa dos eventos, e (3) fixa, através da relação recíproca destes, as formas conjugadas.

De modo inverso, uma vez conhecidas as correlações, é possível elaborar listas de possíveis esquemas de recorrência; partindo das leis de Newton, pode chegar-se à explicação laplaciana da periodicidade planetária; partindo de uma compreensão do organismo, pode chegar-se a conclusões acerca do seu comportamento em determinadas circunstâncias; a partir de uma consideração sintetizada da intelecção, podem estabelecer-se os procedimentos do matemático, do cientista natural e do homem do senso comum.

Em quinto lugar, o paralelismo anterior é altamente abstracto. Assenta na conexão entre a formulação e o juízo, entre a lei e o evento, entre a forma conjugada e o acto

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conjugado. Mas, bem mais conspícuas que o paralelismo são as diferenças entre, por um lado, a física e, por outro, a biologia, a psicologia e a teoria intelectual. Os eventos físicos regulares têm tendência para se dar de acordo com um único e determinado esquema de recorrência. Mas os eventos orgânicos, psíquicos e intelectuais são recorrentes, não na forma de esquemas únicos, mas na forma de círculos de domínios de esquemas. Isto não é tudo. Existe o facto do desenvolvimento. Ao longo do tempo, as formas conjugadas avançam da indeterminação genérica para uma perfeição específica. Concomitantemente, o círculo flexível de esquemas de recorrência altera-se e expande-se. As operações que, de início, eram impossíveis ou extremamente inadequadas ou ineficientes tornam-se possíveis, espontâneas, económicas, rápidas e efectivas. As massas e as cargas eléctricas, os átomos e as moléculas são estaticamente sistemáticos; o seu desempenho não é em função da sua idade; não há uma lei da gravitação diferente para cada século que se sucede. Por outro lado, o desenvolvimento orgânico, psíquico e intelectual implicam uma sucessão de estádios; e, nessa sucessão, o que antes era impossível torna-se possível, e o que antes era inadequado e difícil torna-se uma rotina disponível. A criança não consegue andar nem falar, e todos nós, em tempos, fomos crianças. Assim, enquanto o físico ou o químico procura determinar conjuntos únicos de formas conjugadas e os consequentes esquemas de recorrência, o biólogo, o psicólogo ou o teórico intelectual procuram determinar sequências genéticas de formas conjugadas e as consequentes sequências de círculos flexíveis de esquemas de recorrência.

Em sexto lugar, segue-se daqui a diferença notória entre o método clássico e o genético. O método clássico preocupa-se em reduzir eventos regulares a leis. O método genético preocupa-se com sequências em que as correlações e as regularidades mudam. Por conseguinte, o objectivo principal do método genético é dominar a própria sequência; é compreender o desenvolvimento e, assim, ir das correlações e regularidades de um estádio até às do seguinte. Se um exemplo matemático é útil e pouco deslocado, poderia dizer-se que o método genético se preocupa com uma sequência de operadores que, a partir de uma função inicial, geram sucessivamente outras funções.

Em sétimo lugar, assim como o pressuposto heurístico do método clássico é a função indeterminada a ser determinada, o pressuposto heurístico do método genético reside na noção de desenvolvimento. Além disso, tal como o método clássico determina as suas funções através dos procedimentos particulares de medição e ajuste de curvas e dos procedimentos gerais de invocação de equações diferenciais e de princípios de invariância e equivalência, também o método genético determina o curso de um desenvolvimento através da acção em tesoura dos procedimentos particulares e gerais.

Os procedimentos gerais estão implícitos na noção de desenvolvimento. Como já se referiu, um desenvolvimento parte da indeterminação genérica em direcção à perfeição específica. Devido à indeterminação genérica inicial, todos os funcionamentos orgânicos aumentam em semelhança à medida que retrocedemos aos seus estádios iniciais. De modo inverso, devido à perfeição específica crescente, o desenvolvimento psíquico é uma questão de estabelecimento do carácter, da fixação do temperamento, da aquisição e do aperfeiçoamento de competências. Tanto a bolota como o carvalho estão vivos; tanto a criança como o adulto percepcionam e respondem; mas há grandes diferenças entre o viver e o percepcionar iniciais e os posteriores, e as diferenças consistem em transições da potencialidade genérica para a determinação específica.

Além desta direcção geral do desenvolvimento, existe também o seu modo geral de operação. A sequência de formas conjugadas é uma sequência de integrações superiores de multiplicidades inferiores de eventos, alás coincidentes. Esta sequência é inteligível, na medida em que cada integração superior sucessiva modifica a multiplicidade inferior por ela sistematizada, de modo a evocar a integração superior que vem a seguir na

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sequência. Assim, se a multiplicidade inferior de eventos pode ser identificada com a potência conjugada, o modo de operação do desenvolvimento é uma interacção circular de potência, forma e acto. Na multiplicidade coincidente emergem formas conjugadas correspondentes; de acordo com as formas conjugadas, ocorrem operações reincidentes de acordo com o círculo flexível de domínios de esquemas que as formas tornam possíveis e efectivos; das operações resulta, não apenas a sistematização superior da multiplicidade inferior, mas também a sua transformação em materiais para a integração superior que se segue na sequência.

Além da direcção geral do desenvolvimento e do modo geral de operação deste, existe a terceira consideração geral, que é a do campo em que ocorre. Este campo pode descrever-se, em termos metafísicos, como a finalidade – o dinamismo direccionado para cima – do ser proporcionado. Mas, em termos das implicações do método científico, o campo pode descrever-se, mais precisamente, como uma probabilidade emergente generalizada. É a probabilidade emergente que fornece as multiplicidades coincidentes de eventos iniciais, nas quais emergem as formas conjugadas superiores. É a probabilidade emergente que proporciona as séries compostas e condicionadas de coisas e de esquemas de recorrência, de modo a que o organismo, o psiquismo ou a inteligência em desenvolvimento tenham um ambiente em que possam funcionar com êxito. É por relação a este campo de probabilidade emergente que a sequência genética goza de uma dupla flexibilidade: uma flexibilidade menor que alcança o mesmo objectivo seguindo caminhos diferentes, e uma flexibilidade maior que altera o objectivo em virtude da adaptação às mudanças ambientais. Não só as formas conjugadas emergem em multiplicidades coincidentes de eventos inferiores; não só os círculos flexíveis de esquemas de recorrência resultam das formas conjugadas, como também as operações, de acordo com os esquemas,

(1) estão ligadas a ocorrências fora do organismo, do psiquismo, da inteligência; (2) efectuam a sistematização superior da multiplicidade química, neuronal ou

psíquica inferior; e, (3) como tal, transformam a multiplicidade inferior a ponto de evocar a emergência

das formas conjugadas seguintes, que irão gerar novos esquemas que permitirão ao sujeito em desenvolvimento funcionar, no seu ambiente, em direcção a um desenvolvimento cada vez maior.

Para lá das determinações precedentes do desenvolvimento em geral, existem as características especiais do desenvolvimento simples do organismo, do desenvolvimento dúplice no animal e do desenvolvimento triplo no homem. O físico não consegue chegar às leis da natureza, se considerar apenas as equações diferenciais e os princípios de invariância e equivalência; também tem de recorrer às técnicas mais concretas da medição e do ajuste de curvas. De modo semelhante, o biólogo, o psicólogo e o teórico da inteligência têm de operar, não apenas à luz de uma noção geral de desenvolvimento, mas também de acordo com directivas mais especializadas.

A nossa primeira observação tem, a este respeito, de ser negativa. O sucesso extraordinário das ciências físicas levou, naturalmente, os investigadores do organismo, do psiquismo e da inteligência a uma adopção servil, e não inteligente, de procedimentos bem sucedidos. Em física e em química, a medição é uma técnica básica que desloca a investigação das relações das coisas com os nossos sentidos para as relações destas entre si. Mas quando se ascende às integrações superiores do organismo, do psiquismo e da inteligência, descobre-se que a medição perde importância e eficácia. Perde importância, pois a integração superior é, dentro de certos limites, independente das quantidades

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exactas da multiplicidade inferior que sistematiza. Além disso, quanto mais elevada é a integração, tanto maior é a independência em face das quantidades inferiores: o significado dos nossos sonhos não está em função do nosso peso, e os nossos dotes para a matemática não variam com a nossa altura. Além desta perda de importância, há também uma perda de eficácia. O método clássico pode seleccionar de entre as funções que resolvem as equações diferenciais, recorrendo a medições e curvas empiricamente estabelecidas. A equação diferencial está para o método clássico, tal como a noção geral de desenvolvimento está para o método genético. Mas, embora a equação diferencial seja matemática, a noção geral de desenvolvimento não o é. Segue-se que, embora a medição seja uma técnica eficaz para encontrar condições-limite que restringem as equações diferenciais, não possui qualquer eficácia assinalável, quando se trata de particularizar a noção geral de desenvolvimento.

7.2 Desenvolvimento Orgânico

Como se deve, então, investigar um caso concreto de desenvolvimento? Temos de seguir os passos dos cientistas bem sucedidos, dos físicos e dos químicos, mas temos de imitá-los de modo inteligente e não servil. Eles empregam intelecções de um tipo particular, a saber, as intelecções do matemático e do ajustador de curvas, quando captam uma possível lei, num agregado de medições. O estudioso do desenvolvimento também deve empregar a intelecção, mas não deve restringir-se aos tipos particulares que são relevantes para a física e a química. Pelo contrário, tem de elaborar as suas próprias estruturas de intelecções acumuladas e, decerto, estruturas diferentes para o estudo do organismo, do psiquismo e da inteligência.

O estudo de um organismo começa com a coisa-para-nós, com o organismo enquanto presente aos nossos sentidos. Um primeiro passo é a diferenciação descritiva das diferentes partes e, uma vez que a maioria das partes estão no interior, este preliminar descritivo necessita de dissecação ou anatomia. Um segundo passo consiste na acumulação de intelecções que relacionam as partes descritas com eventos, ocorrências e operações orgânicas. Mediante estas intelecções, as partes tornam-se conhecidas como órgãos, e o conhecimento posterior, constituído pelas intelecções, é uma captação de inteligibilidades que:

(1) são imanentes às diversas partes; (2) remetem cada parte ao que esta pode fazer e, sob determinadas condições, ao que

irá fazer; (3) relacionam a capacidade-para-o-desempenho de cada parte com as capacidades-

para-o-desempenho das outras partes.

E assim, a fisiologia sucede à anatomia. Um terceiro passo é efectuar a transição da coisa-para-nós para a coisa-em-si, das intelecções que apreendem as partes descritas como órgãos para as intelecções que apreendem as formas conjugadas que sistematizam multiplicidades aliás coincidentes de processos químicos e físicos. Com esta transição, a fisiologia liga-se à bioquímica e à biofísica. Para este fim, tornou-se necessário inventar imagens simbólicas adequadas dos processos químicos e físicos relevantes; nestas imagens, teve de se apreender, através da intelecção, as leis do sistema superior explicativas das regularidades que se encontram mais além do domínio da explicação química e física; a partir destas leis, construiu-se o círculo flexível de esquemas de recorrência, em que o organismo funciona; por último, este círculo flexível de esquemas

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deve coincidir com o conjunto relacionado de capacidades-para-o-desempenho, que foi previamente apreendido nos órgãos apresentados aos sentidos.

Os três passos precedentes – anatomia, fisiologia e transposição destas para a coisa-em-si – revelam um aspecto do organismo enquanto sistema superior numa multiplicidade subjacente de células, processos químicos e mudanças físicas. Denominemos esse aspecto como ‘sistema superior enquanto integrador’. O sistema superior é, em si, o conjunto das formas conjugadas. Enquanto integrador, este conjunto está relacionado

(1) com os órgãos examinados, enquanto conjunto de funções apreendidas, pelo fisiólogo, nos dados sensíveis;

(2) com a multiplicidade física, química e citológica, enquanto conjugados definidos implicitamente pelas correlações que explicam as regularidades adicionais na multiplicidade aliás coincidente; e

(3) com as actividades imanentes e transitivas do organismo no seu ambiente, enquanto fundamento do círculo flexível de domínios de esquemas de recorrência.

Contudo, o organismo cresce e desenvolve-se. Em qualquer estádio de desenvolvimento, o seu sistema superior não é apenas um integrador, mas também um operador, isto é, integra de tal modo a multiplicidade subjacente que provoca, em virtude dos princípios de correspondência e emergência, a sua própria substituição por um integrador mais específico e efectivo.

A diferença entre o sistema superior enquanto integrador e enquanto operador pode exemplificar-se de um modo assaz simples. Existe uma interligação bem conhecida das partes orgânicas, que permite ao biólogo reconstruir um organismo através do exame, por exemplo, dos respectivos ossos. Ora, esta interligação simultânea das partes assenta no sistema superior enquanto integrador: as formas conjugadas relacionam-se umas com as outras, mas também emergem das partes orgânicas; segue-se que as partes se relacionam umas com as outras e que, através dessas relações, o todo pode ser reconstruído a partir da parte. Mas, além da interligação simultânea, existe a interligação sucessiva. Assim como o dinossauro pode ser reconstruído a partir do fóssil, também um determinado estádio no desenvolvimento do todo se pode tornar a base sobre a qual se podem reconstruir estádios anteriores ou posteriores; e nesta reconstrução, ao longo do tempo, a premissa maior da inferência é fornecida pelo sistema superior enquanto operador.

Todavia, que é o operador? Não estou a referir, é claro, uma entidade matemática, muito embora exista um pormenor extremamente importante nesta analogia matemática. Pois um operador matemático transforma uma função noutra; o sistema superior enquanto integrador corresponde a um conjunto de formas conjugadas, de leis de tipo clássico, de domínios alternativos de esquemas de recorrência; e o sistema superior enquanto operador efectua a transição de um conjunto de formas, leis e esquemas para outro. Por conseguinte, embora o desenvolvimento possa ser extremamente regular, tal regularidade não se deve confundir com a regularidade que se conforma à lei clássica; é a regularidade superior da tendência emergente que sucessivamente se ajusta a diferentes conjuntos de leis clássicas.

Ainda assim, que é o operador? É, em geral, o dinamismo direccionado e ascendente do ser proporcionado, que denominámos finalidade. É condicionado pela instabilidade na multiplicidade subjacente, pela incompletude na integração superior, pela imperfeição na correspondência entre ambas. É constituído na medida em que o sistema superior não apenas sofre, como provoca a instabilidade subjacente; na medida em que a

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incompletude do sistema superior consiste num carácter genérico, rudimentar e indiferenciado que se pode tornar diferenciado, efectivo, específico; na medida em que a imperfeição da correspondência está, por assim dizer, sob o controlo de e se move em direcção a um limite, em que os princípios de correspondência e emergência dão azo à substituição da integração anterior por um sucessor mais desenvolvido; na medida em que tais operadores formam uma série flexível, ao longo da qual o organismo avança do funcionamento genérico da célula inicial para o círculo flexível de domínios de esquemas da maturidade.

Como se estuda este operador? Toda a aprendizagem é uma questão de dados e de intelecção, de hipótese e de verificação. A dificuldade no estudo do operador reside na complexidade dos seus dados. Já delineámos o procedimento

(1) do exame e da descrição das partes dissecadas num organismo, (2) da apreensão, nas partes, de funções ou capacidades-para-o-desempenho, (3) do interrelacionamento destas funções umas com as outras, para determinar o

círculo flexível de domínios de esquemas de recorrência, e (4) da substituição das colónias de células (órgãos) examinadas pelas suas

multiplicidades físicas e químicas subjacentes.

Ora, este procedimento pode duplicar-se para cada um dos estádios sucessivos no desenvolvimento do mesmo organismo, e a justaposição do duplo conjunto de resultados exemplifica o sentido do estudo comparativo. Comparam-se sucessivos estádios de orgãos, sucessivas capacidades de orgãos sucessivos, sucessivas integrações de capacidades, sucessivas multiplicidades físicas e químicas. Prossegue-se, contrastando sucessões normais e anormais, notando semelhanças e diferenças de sucessões nas espécies e subespécies diferentes, elaborando uma explicação das várias economias, nas quais algumas partes se desenvolvem antes de outras, algumas são permanentes e outras transitórias, umas avançam num certo ritmo e outras noutro. A totalidade dessa informação constitui os dados relativos ao operador. O segundo passo é compreender os dados. Ora, a compreensão busca-se metodicamente através de uma estrutura heurística, e a estrutura heurística relevante é ‘Especifica o operador’. Em geral, o desenvolvimento é o sistema superior em movimento. O operador é o sistema superior conhecido pela apreensão do conjunto interrelacionado de capacidades-para-o-desempenho; mas é este conjunto interrelacionado, enquanto fonte das diferenças, que aparece no estádio seguinte, e não enquanto integrador de um dado estádio. Como é que a fonte das diferenças concretas aparece no estudo comparativo? Esta questão exige a especificação do operador. É a questão que, no método genético, corresponde à questão de tipo clássico: ‘Como se determina a função indeterminada?’

Pode clarificar-se o assunto através de um exemplo. Parece existir um princípio geral de desenvolvimento rotulado de ‘lei do efeito’. Esta afirma que o desenvolvimento ocorre segundo linhas de funcionamento bem sucedido. Assim, uma árvore na floresta não lança os ramos e as folhas para os lados, mas para o seu topo. Ora, tal princípio fornece uma especificação do operador. O operador é o sistema superior em movimento. O sistema superior é o fundamento do círculo flexível de esquemas de recorrência em que o organismo funciona. A lei do efeito afirma que o fundamento do funcionamento avança para um novo fundamento do funcionamento, onde o funcionamento decorre com êxito. Claro está, embora seja extremamente geral, esta especificação do operador fornece alguma determinação da direcção do desenvolvimento. A sua aplicação a casos concretos pode, não apenas confirmar, mas também dar origem a novas questões. As novas questões conduzirão a novas intelecções e, depois, a mais questões. Deste modo, a

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compreensão que se tem do operador começa por ser, no desenvolvimento do conhecimento científico do desenvolvimento, um caso de sistema superior em movimento.

7.3 Desenvolvimento psíquico e intelectual

No essencial, aplica-se a mesma estrutura heurística ao estudo do psiquismo e da inteligência. Mas, aqui, estamos perante desenvolvimentos duplos e triplos. No animal, há o desenvolvimento psíquico que sobrevém ao desenvolvimento orgânico. No homem, há o desenvolvimento intelectual que sobrevém ao psíquico e o psíquico que sobrevém ao orgânico. Além disso, existe uma importante diferença na acessibilidade dos dados. No organismo, tanto a multiplicidade subjacente como o sistema superior são inconscientes. No desenvolvimento intelectual, tanto a multiplicidade subjacente de apresentações sensíveis e o sistema superior de intelecções e formulações são conscientes. No desenvolvimento psíquico, a multiplicidade neuronal subjacente é inconsciente e o sistema superior superveniente é consciente. Por último, quanto maior é o nível de integração, tanto maior é a liberdade em face da limitação material, tanto mais dominante é o aspecto dinâmico e expansivo do operador, tanto mais significativas são as leis do próprio desenvolvimento, não apenas no nível superior, mas também nos níveis subordinados. Assim, a diferenciação orgânica atinge o seu máximo nos animais, e a diferenciação psíquica atinge o seu máximo no homem.

A multiplicidade subjacente imediata do desenvolvimento psíquico consiste em eventos e processos do sistema nervoso. Este sistema implica um núcleo central com ramificações aferentes e eferentes. É simultaneamente uma parte do organismo e a sede da multiplicidade de eventos que são integrados superiormente nas percepções conscientes e respostas coordenadas. O desenvolvimento psíquico é essa integração superior em movimento, e o movimento dá-se em duas direcções distintas, mas complementares. Pode chamar-se ‘movimento lateral’ a uma crescente diferenciação dos eventos psíquicos, em correspondência com os nervos aferentes e eferentes particulares. Pode chamar-se ‘movimento vertical’ a uma crescente proficiência na percepção integrada e na resposta apropriada e coordenada. O limite do movimento lateral é estabelecido pela multiplicidade e pela diversidade das terminações nervosas. O limite do movimento vertical é estabelecido

(1) pelo conjunto operacionalmente significativo da combinação de diferentes terminações nervosas, e

(2) pela existência de centros neuronais superiores, nos quais tais combinações podem ser integradas e coordenadas.

O estudo do comportamento animal, do estímulo e da resposta, revelaria, em qualquer estádio de desenvolvimento, um círculo flexível de domínios de esquemas de recorrência. Estariam implícitas, num tal círculo de esquemas, correlações de tipo clássico. Nessas correlações estariam implícitas as formas conjugadas que

(1) explicam a perceptividade habitual de determinados tipos e modos habituais de resposta agressiva e afectiva, e

(2) pareceriam ser emergentes nas configurações ou disposições neuronais subjacentes, tal como as intelecções são emergentes nas imagens e as funções nos órgãos.

Enquanto tal estudo revelaria o sistema superior enquanto integrador num dado estádio de desenvolvimento, o estudo comparativo dos estádios sucessivos, das sucessões normais e anormais, das semelhanças e diferenças das sucessões em diferentes

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espécies, subespécies e géneros, e da economia geral da progressiva diferenciação específica, forneceria os materiais a serem compreendidos pela apreensão da natureza do sistema superior enquanto operador.

O leitor já está bastante familiarizado com o desenvolvimento intelectual. A multiplicidade inferior aliás coincidente é fornecida pelas apresentações sensíveis e pelas representações imaginativas. De acordo com o princípio de correspondência, as intelecções emergem para unificar e correlacionar elementos no fluxo sensível; para fundamentar a formulação de tais unificações e correlações em conceitos, pensamentos, suposições, considerações, definições, postulados, hipóteses e teorias; e para, através dessas construções conceptuais ou das suas expansões dedutivas ou da sua implementação concreta, dar origem, mais cedo ou mais tarde, a outras questões. É evidente que, assim como a construção conceptual é o sistema superior formulado enquanto integrador, também a emergência da nova questão efectua a sua transição para o operador. Pois novas questões levam a novas intelecções, levantando, desta forma, questões subsequentes. Assim, as intelecções acumulam-se em pontos de vista, e os pontos de vista inferiores conduzem a pontos de vista superiores. Tal é o círculo do desenvolvimento da compreensão, que ocorre nas diferentes disciplinas da lógica, da matemática, da ciência, do senso comum e da filosofia, de acordo com as diferenças na rota do círculo.

Duas peculiaridades do desenvolvimento intelectual merecem atenção. Por um lado, existe a sua excepcional liberdade frente à limitação. O sistema superior do organismo ou do psiquismo desenvolve-se numa multiplicidade material subjacente de eventos físicos, químicos e citológicos, que estão sujeitos às suas próprias leis. O sistema superior da inteligência não se desenvolve numa multiplicidade material, mas na representação psíquica das multiplicidades materiais. Por conseguinte, o sistema superior de desenvolvimento intelectual é, antes de mais, a integração superior, não do homem em que o desenvolvimento ocorre, mas do universo que este examina. Por outro lado, juntamente com esta liberdade frente à limitação material, o desenvolvimento intelectual possui um excepcional princípio de controlo. O organismo ou o psiquismo justifica, pelo seu êxito pragmático, o sistema superior em que se torna. Embora o critério pragmático também seja empregue pela inteligência, ainda assim a sua disponibilidade encontra-se comummente confinada ao imediato e às questões superficiais. O critério próprio da inteligência reside na capacidade desta para a reflexão crítica, para a apreensão do incondicionado, para a determinação das normas das investigações que se dirigem para o incondicionado e que são, por conseguinte, prováveis.

7.4 Desenvolvimento Humano

Resta-nos falar do desenvolvimento total no homem. Desenvolvimento orgânico, psíquico e intelectual não são três processos independentes. Encontram-se interligados, efectuando o intelectual uma integração superior do psíquico, e efectuando o psíquico uma integração superior do orgânico. Cada nível tem as suas próprias leis, o seu círculo flexível de esquemas de recorrência, o seu conjunto interligado de formas conjugadas. Cada conjunto de formas encontra-se numa correspondência emergente com multiplicidades aliás coincidentes nos níveis inferiores. Deste modo, uma só acção humana pode implicar uma série de componentes – físicas, químicas, orgânicas, neuronais, psíquicas e intelectuais – e as várias componentes ocorrem de acordo com as leis e os esquemas realizados dos respectivos níveis. No entanto, embora as leis físicas e químicas sejam estáticas, as correlações superiores pertencem a sistemas em movimento,

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e daqui promana, obviamente, o problema de formular a estrutura heurística da investigação deste desenvolvimento triplamente composto. Aquilo que o existencialista descobre e de que fala, o que o asceta tenta levar a cabo em si mesmo, o que o psiquiatra se esforça por alimentar noutrém, o que o psicólogo procura compreender por completo – é o que o metafísico delineia com categorias heurísticas.

Em primeiro lugar, o homem é, em qualquer estádio do seu desenvolvimento, uma unidade individual existente, diferenciada pelos seus conjugados físicos, químicos, orgânicos, psíquicos e intelectuais. As formas conjugadas orgânicas, psíquicas e intelectuais fundam círculos flexíveis de domínios de esquemas de recorrência correspondentes, que se revelam no comportamento espontâneo e efectivo do homem, nos seus movimentos corporais, nas suas relações com pessoas e coisas, no conteúdo do seu discurso e da sua escrita. Além disso, se desviarmos a nossa atenção do comportamento exterior para a experiência interior, verificamos que esta assume padrões diferentes consoante desempenhamos diferentes tipos de actividade; a absorção em questões intelectuais tende a eliminar as emoções e as volições sensitivas e, de modo inverso, a absorção mística tende a eliminar o fluxo de apresentações sensitivas e de representações imaginativas; ademais, a experiência estética e o padrão da actividade prática têm tendência para mutuamente se excluirem; por último, embora o padrão dramático de uma pessoa que lida com outras pessoas mobilize todos os seus recursos, todavia subdivide-se, tal como as camadas sucessivas de uma cebola, numa série de zonas, desde o ego ou moi intime até ao limite exterior da persona – pelo que somos reservados com pessoas estranhas, corteses para com os conhecidos, descontraídos com os nossos amigos, desabafamos ocasionalmente com as pessoas que nos são mais íntimas, reservamos para nós alguns assuntos e até nos recusamos a enfrentar outros.

Em segundo lugar, o homem desenvolve-se. O que quer que ele seja neste momento, nem sempre assim foi e, falando de modo geral, não é necessário que assim permaneça. Os círculos flexíveis de domínios de esquemas de recorrência alteram-se e expandem-se, uma vez que os conjugados neuronais, psíquicos e intelectuais pertencem a sistemas em movimento. O funcionamento da integração superior implica mudanças na multiplicidade subjacente, e a multiplicidade em mudança apela à modificação da integração superior. Aí verifica-se a lei do efeito, pois o desenvolvimento dá-se segundo a linha do êxito. Mas também aí se verifica uma lei antecipada do efeito, ao nível psíquico e intelectual. Deste modo, se levantarmos novas questões, permanecemos com as intelecções que já possuímos e, assim, a inteligência não se desenvolve; de modo inverso, se quisermos desenvolver-nos, podemos frequentar as lições e ler os livros que suscitam as novas questões e nos ajudam a aprender. Além disso, desenvolvemo-nos funcionando e, até nos termos desenvolvido, o nosso funcionamento terá a ausência de naturalidade, economia e eficácia que frustra potencialidades ainda indiferenciadas. Se não formos encorajados a abandonar a vergonha, a timidez ou a pretensa indiferença, a entusiasmar-nos, a arriscar e a fazer, a ser humildes e a provar a alegria, não nos iremos desenvolver, mas apenas alimentar os fundamentos objectivos do nosso sentimento de inferioridade. Ou melhor: não nos iremos desenvolver numa certa direcção comum; iremos procurar e encontrar cada vez menos campos em comum para procurar a excelência; e teremos tendência para sobrecompensar as deficiências noutros lados.

Em terceiro lugar, existe uma lei de integração. A iniciativa para o desenvolvimento pode ser orgânica, psíquica, intelectual ou externa, mas o desenvolvimento permanecerá fragmentário até ser satisfeito o princípio de correspondência entre níveis diferentes. Assim, a iniciativa pode ser orgânica, pois o organismo é um dinamismo direccionado ascendente que procura uma maior plenitude, evocando a sua integração superior ao suscitar imagens e sentimentos psíquicos. Por isso, o homem é impelido a acordar e a

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dormir, a comer e beber, a procurar a sombra no Verão e a lareira no Inverno, a amar e gerar filhos e a cuidar deles; e estas actividades psíquicas, sensitivas e corporais, por sua vez, suscitam o aparecimento da família e da tecnologia, da economia e da organização política, da moralidade e do direito. Ademais, a iniciativa pode ser psíquica, pois a sensitividade humana não só reflecte e integra a sua base biológica, mas é também em si mesma uma entidade, um valor, um viver e um desenvolver-se. A intersubjectividade, o companheirismo, o jogo e a expressão artística, as horas de lazer passadas com quem estamos à vontade, os propósitos em comum, o trabalho, a realização, o fracasso, o desastre, a partilha de sentimentos na alegria e no lamento – tudo isto são coisas humanas e, nelas, o homem funciona, primariamente, de acordo com o desenvolvimento da sua perceptividade, das suas respostas emocionais, dos seus sentimentos. Em terceiro lugar, a iniciativa pode ser intelectual; a sua origem é um problema; procuramos compreender, julgar, decidir, escolher. Por último, a iniciativa pode emergir de uma mudança nas nossas circunstâncias materiais, na perceptividade ou nos sentimentos de outrém, nas descobertas feitas por outras mentes e nas decisões tomadas por outras vontades.

Contudo, uma coisa é o início de um desenvolvimento, outra o seu acabamento integrado. Se alguém se adapta à mudança externa apenas por deferência para com a necessidade material ou a pressão social, o comportamento da persona exteriorizada é modificado de modo que, na melhor das hipóteses, é tolerada pelo sujeito interior. Ademais, se alguém toma uma excelente resolução acerca do seu modo ou estilo de comportamento, a resolução permanecerá estéril, se a perceptividade e os sentimentos adequados não estiverem prontos a surgir, ou se não se souber como suscitá-los. De modo inverso, um desenvolvimento pode começar nos sentimentos e na perceptividade de uma pessoa, permanecerá, porém, frustrado, se a pessoa não conseguir compreender-se a si própria, planear a estratégia e executar as tácticas que garantem o companheirismo e o emprego condizentes. Por fim, a base neuronal não-consciente pode emitir os sinais que expressam uma afectividade carente ou outras exigências de uma vida mais plena, mas os sinais precisam de um intérprete, e o intérprete de um discípulo inteligente e voluntarioso.

A lei de integração é, pois, a afirmação do que se pretende dizer com ‘desenvolvimento humano’. Dado que o homem é uma unidade, o seu desenvolvimento apropriado só se inicia quando um novo esquema de recorrência se estabelece no seu comportamento exteriorizado, no seu pensar e querer, na sua perceptividade e no seu sentimento, na base orgânica e neuronal da sua acção. De modo geral, esse início de desenvolvimento convida a ajustes e avanços complementares e, se estes não forem efectuados, ou o desenvolvimento iniciado retrocede e atrofia em prol da unidade dinâmica do sujeito, ou essa unidade é sacrificada e deformada, para fazer do homem um mero depósito de esquemas de recorrência e modos de comportamento não-relacionados e não-integrados.

Em quarto lugar, existe uma lei de limitação e transcendência, que é uma lei de tensão. Por um lado, o desenvolvimento é do sujeito e no sujeito; por outro, é a partir do sujeito tal como é e em direcção ao sujeito tal como há-de ser. Concebeu-se a finalidade como um dinamismo direccionado ascendente do ser proporcionado, mas não deterministicamente direccionado. A sua realização pode ser regular, mas a sua regularidade não se dá de acordo com leis, com uma espontaneidade estabelecida, com um hábito adquirido ou com esquemas de recorrência existentes; pelo contrário, ela é uma mudança nas leis, na espontaneidade, no hábito, no esquema; é o processo de introdução e estabelecimento de uma nova lei, espontaneidade, hábito ou esquema. O seu ponto de partida é necessariamente o sujeito tal como é dado ser; mas a sua direcção

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é contrária a que ele permaneça como é; e, embora o seu termo o enrede na tentação renovada da repetição e recorrência inertes, o sujeito só pode atingir esse termo, libertando-se da inércia do estádio anterior.

Ora, a tensão inerente à finalidade de todo o ser proporcionado torna-se, no homem, uma tensão consciente. A perceptividade presente há-de alargar-se, não sendo o alargamento perceptível pela perceptividade presente. Os desejos e os medos presentes têm de ser transformados, e a transformação não é desejável pelo desejo presente, mas é temida pelo medo presente. Além disso, como já se referiu, o organismo alcança a sua maior diferenciação na integração psíquica do animal, e o psiquismo atinge a sua maior diferenciação na integração intelectual do homem. Uma vez que é bem mais abrangente e imbricado no homem do que nos outros animais, o desenvolvimento psíquico encontra-se envolvido numa tensão mais prolongada e sujeito a crises mais agudas e diversificadas.

A questão possui um aspecto ulterior mais profundo. O desenvolvimento intelectual assenta na predominância de um desejo livre e desinteressado de conhecer. Revela ao homem um universo de ser, no qual ele é apenas um elemento, e uma ordem universal, na qual os seus desejos e medos, o seu gozo e a sua angústia, são tão-só componentes infinitesimais da história da humanidade. Convida o homem a ser inteligente e razoável, não apenas no seu conhecer, mas também no seu viver, a guiar as suas acções referindo-as, não ao seu habitat como um animal, mas, como um ser inteligente, ao contexto inteligível de uma ordem universal que é ou que há-de ser. No entanto, é difícil para o homem, mesmo no seu conhecer, ser apenas dominado pelo puro desejo, e é-lhe ainda mais difícil permitir que esse desprendimento e desinteresse dominem todo o seu modo de vida. Pois enquanto percepciona, sente, frui e sofre, o eu funciona como um animal num meio ambiente, como um centro preso a si mesmo e interessado em si, nos limites do seu próprio mundo estreito de estímulos e respostas. Mas esse mesmo eu, enquanto inquire e reflecte – enquanto concebe inteligentemente e ajuiza razoavelmente – é levado pela sua própria espontaneidade superior a um modo de operação assaz distinto, que possui os atributos opostos de desprendimento e desinteresse. É confrontado com um universo de ser no qual se encontra inserido – não o centro de referência, mas um objecto coordenado com outros objectos e, juntamente com estes, subordinado a um destino a ser descoberto ou inventado, aprovado ou desprezado, aceite ou repudiado.

Tal é, pois, o clímax da tensão da consciência humana. Do lado do objecto, é a oposição entre o mundo dos sentidos do homem-animal e o universo do ser conhecido pela apreensão inteligente e pela afirmação razoável. Do lado do sujeito, é a oposição entre um centro no mundo dos sentidos, agindo centrado em si mesmo, e um acesso a um universo de ser inteligivelmente ordenado, a que só se pode pertencer e em que só se pode funcionar através do desprendimento e do desinteresse. A oposição não só é completa como inelutável. Tal como o homem não se pode descartar da sua animalidade, também não pode excluir o Eros da sua mente. Inquirir e compreender, reflectir e julgar, deliberar e escolher são exigências da natureza humana como o são o acordar e o dormir, o comer e o beber, o falar e o amar. Nem sequer elaborando um tipo particular de metafísica ou contra-metafísica se pode subtrair ao universo do ser e à sua ordem inteligível. Pois o universo do ser é tudo aquilo que é inteligentemente apreendido e razoavelmente afirmado; inclui, em virtude da sua definição, uma ordem inteligível; e para nos assumirmos como filósofos de uma escola particular, temos sempre de ter a pretensão de compreender e de sermos razoáveis.

É esta tensão acrescida que, no desenvolvimento humano, fornece o conteúdo da lei composta e antitética da limitação e da transcendência. Todo o desenvolvimento é desenvolvimento na medida em que vai mais além do sujeito inicial, mas este ‘ir mais

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além’ é, no homem, imanentemente antecipado pelo desprendimento e desinteresse do puro desejo. Ademais, todo o desenvolvimento é desenvolvimento na medida em que possui um ponto de partida, um material concreto a ser transformado; mas, no homem, este material concreto existe em permanência no psiquismo sensitivo autocentrado, que se satisfaz em orientar-se no interior do seu ambiente visível e palpável e em lidar com este de um modo bem sucedido. Nem sequer o puro desejo e o psiquismo sensitivo são duas coisas, uma o ‘Eu’, outra o ‘Isso’. São o desdobramento, em níveis diferentes, de uma só unidade, identidade ou todo, individuais. Ambos são ‘Eu’ e nenhum é apenas ‘Isso’. Se a minha inteligência me pertence, também me pertence a minha sexualidade. Se a minha razoabilidade me pertence, também me pertencem os meus sonhos. Se considero que a minha inteligência e razoabilidade são mais representativas de mim do que a minha espontaneidade orgânica e psíquica, é somente em virtude da integração superior que, de facto, a minha inteligência e razoabilidade conseguem impor à sua multiplicidade subjacente – ou, de modo proléptico, em virtude do desenvolvimento, no qual a integração superior alcançará um êxito mais pleno. Mas independentemente de quão pleno seja o êxito, a situação básica permanece inalterada, pois a perfeição da integração superior não elimina o integrado nem modidifica a oposição essencial entre a autocentração e o desprendimento. O mesmo ‘Eu’ retém, em níveis diferentes e relacionados entre si, as características opostas.

Em quinto lugar, existe uma lei de autenticidade. À primeira vista, trata-se de um caso óbvio de simplicidade e honestidade, de perspicácia e sinceridade. Mas, ao aprofundarmos um pouco, desponta um paradoxo. Na medida em que o desenvolvimento ocorre de forma não-consciente, a autenticidade não é relevante, pois a simplicidade e a honestidade, a perspicácia e a sinceridade são qualidades de actos conscientes. Por outro lado, pode argumentar-se que, quanto mais conscientemente um desenvolvimento ocorrer, tanto menor é a probabilidade de este ser marcado pela autenticidade, pois quando falamos de uma alma simples e honesta, não estamos a pensar numa pessoa dada a um auto-escrutínio profundo e prolongado. Que poderá ser, então, a autenticidade? Não pertence ao desenvolvimento não-consciente e parece entrar em conflito com qualquer consciência assinalável de desenvolvimento. Será propriedade de algum desenvolvimento transitório que não é inconsciente nem plenamente consciente? E se o é, como poderá existir uma lei geral de autenticidade? Eis o paradoxo.

Para resolvê-lo, digamos que a exigência de autenticidade é condicional e análoga. É condicional, pois surge na medida em que o desenvolvimento ocorre através da consciência. É análoga, pois a exigência possui conteúdos diferentes em casos distintos. A autenticidade em que pensamos quando nos referimos a uma alma simples e honesta é o fruto ditoso de uma vida em que não houve lugar para a ilusão e para o fingimento. Mas existe uma outra autenticidade que se conquistará através do auto-escrutínio que expulsa a ilusão e o fingimento; e como esta empresa é difícil e o seu termo duvidoso, não pensamos no seu resultado bem sucedido quando procuramos um exemplo óbvio de autenticidade.

À luz destas distinções, a lei da autenticidade pode pôr-se nos seguintes termos. Todo o desenvolvimento implica um ponto de partida no sujeito tal como ele é, um termo no sujeito como ele há-de ser e um processo que vai do ponto de partida até ao termo. No entanto, na medida em que um desenvolvimento é consciente, existe uma apreensão do ponto de partida, do termo e do processo. Mas tais apreensões podem ser correctas ou erradas. Se são correctas, as componentes conscientes e inconscientes do desenvolvimento operam a partir da mesma base, seguindo o mesmo trajecto e em direcção ao mesmo objectivo. Se são erradas, as componentes conscientes e

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inconscientes operam, em maior ou menor grau, com propósitos contrários. Este conflito é inimigo do desenvolvimento, e surge assim a lei condicional da autenticidade, a saber: se um desenvolvimento é consciente, então o seu êxito exige apreensões correctas do seu ponto de partida, do seu processo e do seu objectivo.

E ainda, além de poderem ser correctas ou erradas, as apreensões que tornam um desenvolvimento consciente podem ser mínimas ou mais ou menos extensas. São mínimas, quando implicam pouco mais do que a sucessão de actos fragmentários e isolados, necessários para levar a cabo – com atenção, inteligência e razoabilidade – os sucessivos passos do desenvolvimento. São mais ou menos extensas, quando nos embrenhamos no pano de fundo, no contexto, nas premissas e nas interrelações da série mínima de actos conscientes e subsumimos essa compreensão de nós próprios em leis empíricas e teorias filosóficas acerca do desenvolvimento. Ora, se o resto for igual, a probabilidade de erro na série mínima tomada isoladamente é menor do que na série mínima ajustada ao seu pano de fundo concreto e à sua explicação teorética; e, por essa razão, esperamos que a autenticidade seja mais comum na alma simples e honesta, desconhecedora da introspecção e da psicologia do inconsciente. Mas pode muito bem acontecer que outras coisas não sejam iguais – que haja erros que se alojaram no pano de fundo habitual donde manam os nossas intelecções directas e reflexivas – que, se confiámos no nosso autoconhecimento virtual e implícito para obter uma orientação concreta através de um desenvolvimento consciente, a série mínima seja certamente errada, e nunca provavelmente correcta. Por conseguinte, a lei da autenticidade não só é condicional, mas também análoga; torna-se relevante, na medida em que o desenvolvimento é consciente; e o que ela exige será espontâneo em certos casos, e obtido noutros só através de um auto-escrutínio mais ou menos extenso.

A necessidade da autenticidade é, pois, a necessidade de evitar o conflito entre as componentes inconscientes e concientes de um desenvolvimento. Mas apreendemos melhor a questão, quando nos interrogamos: por que razão o conflito tem de surgir? Embora não tenhamos de procurar muito longe para encontrar uma razão, esta tem a sua profundidade. Como vimos, todo o desenvolvimento implica uma tensão entre limitação e transcendência. Por um lado, temos o sujeito tal como é, funcionando de um modo mais ou menos bem sucedido, no interior de um círculo flexível de domínios de esquemas de recorrência. Por outro, temos o sujeito como um sistema superior em movimento. A mesma realidade é, ao mesmo tempo, um integrador e um operador; mas o operador é implacável na transformação que faz do integrador. O integrador reside em níveis sucessivos de formas conjugadas interrelacionadas, que nos são familiares sob a designação de ‘hábitos adquiridos’. Mas os hábitos são inertes. A perceptividade actual, a afectividade e a agressividade actuais, os modos actuais de compreender e julgar, de deliberar e escolher, de falar e fazer tendem para que aqueles permaneçam inalterados. No entanto, contra este sólido e salutar conservadorismo operam os mesmos princípios que deram origem aos hábitos adquiridos e que insistem agora em tentar transformá-los. A finalidade que consiste no dinamismo indeterminadamente direccionado ascendente de todo o ser proporcionado é inconscientemente operativa. O desejo livre e desinteressado, que levanta sempre novas questões, é conscientemente operativo. Entre os tópicos para o questionamento encontram-se as nossas próprias iniciativas inconscientes, a sua subsunção na ordem geral que a inteligência descobre no universo do ser, a sua integração no tecido da nossa vida habitual. Emerge assim na consciência uma apreensão concreta de um eu ideal obviamente praticável e próximo; mas, juntamente com ele, desponta também a tensão entre limitação e transcendência; e não se trata de uma tensão vaga entre a limitação em geral e a transcendência em geral, mas

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de uma invasão não desejada da consciência por apreensões opostas de como somos em concreto e de como havemos de ser em concreto.

A autenticidade é a admissão, na consciência, dessa tensão e, por isso, é a condição necessária para a cooperação harmoniosa entre as componentes conscientes e inconscientes do desenvolvimento. Não levanta questões à parte, não reprime dúvidas, não minimiza os problemas, não foge em direcção à actividade, à tagarelice, ao entretenimento passivo, ao sono ou às drogas. Enfrenta as questões, inspecciona-as, estuda os seus vários aspectos, deslinda as suas várias implicações, contempla as suas consequências concretas na nossa vida e na vida dos outros. Se respeita as tendências inertes enquanto forças conservadoras necessárias, não conclui daí que se deva manter uma rotina defeituosa, só porque alguém se acustomou a ela. Embora tema o arrepiante mergulho da transformação em algo que não se é, não se esquiva à questão, nem finge bravura ou age por fanfarronice. É capaz de ter segurança e confiança, não só no que foi testado e considerado bem sucedido, mas também no que ainda há por testar. Agasta-se com a perpétua renovação das novas questões a enfrentar, anseia pelo repouso, vacila e fracassa, mas conhece a sua fraqueza e os seus fracassos e não tenta racionalizá-los.

Esta autenticidade é ideal. Vai muito além do dom inato do desprendimento e desinteresse que possuimos no puro desejo de conhecer. Pois pressupõe as acumulações de intelecções directas, introspectivas e reflexivas, que são necessárias para discriminar entre questões. Algumas são sérias, outras importantes, umas secundárias e menores, outras meramente disparatadas. Sem a devida perspectiva e o recto discernimento, o exercício da autenticidade, tal como acima se descreveu, apenas produz uma pessoa séria com a característica notável de se concentrar nas questões erradas. Nem a perspectiva nem o discernimento se podem alcançar, sem que se levantem as questões significativas. Há, pois, um círculo vicioso a romper, pois não podemos tornar-nos sábios e lúcidos sem nos concentrarmos nas questões certas, e não podemos seleccionar estas questões a não ser que já sejamos sábios e lúcidos.

Contudo, os círculos viciosos são entidades lógicas, e o desenvolvimento é uma série de saltos emergentes da lógica de uma posição para a lógica da seguinte. O sistema superior enquanto em movimento, enquanto operador, não se deduz apenas de preceitos e máximas, nem tão-só de impulsos interiores, nem apenas de circunstâncias externas. É uma resposta criativa, que cumpre com os requisitos destes três aspectos, numa síntese inteligível concreta. O homem vive, é sensitivo, inteligente, razoável. Nem sequer é uma mónade isolada. O seu desenvolvimento é um movimento que parte da relativa dependência da infância para a relativa autonomia da maturidade. E, à medida que se desenvolve, o conteúdo do requisito análogo da autenticidade-para-ele passa da simples exigência do puro desejo de desprendimento para um desdobramento cada vez mais inteligente, sábio e autoconfiante desse desejo.

Por último, existe a sanção da autenticidade. Não ser autêntico não permite escapar à tensão entre limitação e transcendência, mas apenas deslocar essa tensão. Tal deslocação é a raiz do fenómeno dialéctico da escotose no indivíduo, da distorção do senso comum, das diferenças filosóficas de base e do seu prolongamento nas ciências naturais e humanas, na moral e na religião, na teoria da educação e na história. Mas isto leva-nos do método genético para o método dialéctico e, por isso, termina aqui a presente discussão.

Tudo foi tratado, claro está, de modo muito geral. E deliberadamente o foi. Uma estrutura heurística é apenas o enquadramento em que a investigação tem de introduzir leis específicas e factos particulares. A questão com que nos debatemos não é a de se tratámos adequadamente do desenvolvimento humano. A questão com que nos debatemos é a de se estabelecemos a fertilidade da estrutura heurística, ou mesmo se

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explicámos o seu modo preciso de aplicação. O nosso tema é o método genético e a única questão é saber se encontrámos a ideia-chave desse método. A nossa exposição apoia-se na estrutura do conhecimento humano. Os seus elementos de base são fornecidos pela teoria dos géneros e espécies explicativos, pela consequente análise do desenvolvimento em geral e pelas características especiais do desevolvimento triplamente composto do homem. Descobriu que assim como o método clássico assenta no pressuposto de que coisas semelhantes se devem compreender de modo semelhante, assim também o método genético assenta no pressuposto de que se deve alcançar a compreensão de indivíduos significativamente dissemelhantes mediante a subsunção das suas respectivas histórias em princípios genéticos comuns. Ademais, nota que, tal como o método clássico se preocupa com leis, o método genético se preocupa com tendências emergentes, com sucessões de operadores que modificam sucessivamente as leis a que o sujeito se encontra submetido. Mais ainda, uma vez que o método genético se preocupa com tendências emergentes, o seu objecto só pode ser formulado através da introdução de categorias, nas quais a noção de emergência e as suas implicações são expostas adequadamente e com suficiente generalidade. Por último, é por esta razão que a exposição do método genético tinha de aguardar a discussão da metafísica; e, no interior deste contexto metafísico, foi possível, segundo creio, oferecer uma visão integrada única, que encontra o seu ponto de partida no método clássico e, no entanto, abarca a biologia, a psicologia do comportamento e do inconsciente, a reflexão existencialista acerca do homem e os elementos fundamentais da teoria do indivíduo e da história social, da moral e do ascetismo, da educação e da religião.

7.5 Contraposições

A complexidade do problema que temos vindo a tratar impossibilitou-nos de entrelaçar na nossa exposição a consideração de concepções contrárias e das nossas razões para as rejeitar. Contudo, de tais contrastes resulta um aumento de clareza, pelo que, se não quisermos ser mal interpretados, melhor é que tentemos dar uma indicação negativa da nossa posição.

O leitor interessado encontrará em O Problema do Conhecimento7 de Ernst Cassirer um estudo bem documentado, numa perspectiva neo-kantiana, das teorias e dos métodos biológicos, desde o tempo de Lineu aos nossos dias. Pressupondo esta exposição de outras concepções, ser-nos-á possível apresentar, de forma mais concisa, os contrastes essenciais entre a nossa posição e o mecanicismo, o vitalismo, o organicismo e o kantismo. Por último, indicaremos os pontos em que pensamos ser necessário desenvolver as posições de Aristóteles.

Primeiro, as nossas posições acerca da realidade e da objectividade separam-nos dos mecanicistas. Na nossa posição, não só há espaço, mas também relevância para todas as intelecções que a física e a química podem fornecer ao biólogo, pois o organismo é um sistema superior de multiplicidades químicas e físicas subjacentes, e o sistema superior de modo algum viola a autonomia das leis físicas e químicas. Além disso, na nossa posição é bem acolhida a descoberta de conexões como o reflexo condicionado e o tropismo, pois todas essas conexões são apenas partes no círculo flexível de domínios de esquemas de recorrência. Mas não podemos deixar de rejeitar a crença mecanicista de que a realidade consiste em elementos imagináveis enquanto imaginados, pois essas 7 Ernst Cassirer, The Problem of Knowledge: Philosophy, Science, and History since Hegel, trad. William H. Woglom e Charles W. Hendel, de Das Erkenntnisproblem in der Philosophie und Wissenschaft der neueren Zeit, Vierter Band, Von Hegels Tod bis zur Gegenwart, 1832-1932 (New Haven, Yale University Press, 1950, pp.118-216; em alemão, 127-222.

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imagens, enquanto imagens, são inverificáveis; e não podemos partilhar da esperança mecanicista de que, um dia, as leis da física e da química explicarão todos os fenómenos biológicos, pois a única prova a favor dessa esperança é a crença mecanicista de que a realidade consiste em elementos imagináveis enquanto imaginados.

Em segundo lugar, a nossa rejeição do mecanicismo não é uma afirmação do vitalismo, pois não acreditamos que o vitalismo – pelo menos, na sua concepção comum – seja assaz radical na sua rejeição do mecanicismo. Pois o vitalista parece aceitar a visão mecanicista de que a realidade consiste em elementos imagináveis enquanto imaginados, mas acrescenta que também há enteléquias inimagináveis e vitais. Por contraste, rejeitamos, sem mais, a crença de que a realidade última se conhece através de um conjunto de imagens inverificáveis e, se afirmamos formas, afirmamo-las não só de organismos, mas também de electrões, protões, átomos e compostos químicos. Nem se deve apelidar tal afirmação de mania do mistério. De facto, um mistério é o que não se compreende, mas a forma é o que é conhecido na medida em que correctamente compreendemos. O verdadeiro mistério é que, embora os cientistas sejam universalmente considerados homens inteligentes, se pense todavia que é escandaloso sugerir que eles conheçam algo através da compreensão ou que conheçam melhor e de modo mais adequado, quando compreendem melhor e de modo mais adequado.

Em terceiro lugar, embora afirmemos formas tanto nos átomos como nos organismos, e ainda que o façamos pela mesma razão em ambos os casos, não afirmamos, contudo, que a biologia lida com o mesmo tipo de formas conjugadas, como a química ou a física. Se compararmos os elementos químicos, descobrimos que alguns – por exemplo os gases inertes – são altamente estáveis, enquanto outros, muito facil e quase interminavelmente, formam compostos. Todavia, tanto os elementos químicos estáveis como os instáveis são sistemas estáticos; o carbono de um dado peso e número atómico jamais dará lugar a uma série em desenvolvimento de espécimes de carbono desse peso e número, independentemente de quão alargado seja o domínio de compostos em que entra. A característica que distingue o organismo é que, neste, a instabilidade é confrontada e contrabalançada por um sistema em movimento, sendo a mesma unidade individual diferenciada por uma sequência explicativa de formas conjugadas, e estas sequências são membros da sequência mais abrangente de estratégias cada vez mais arrojadas e dotadas de recursos, pelas quais os organismos resolvem o problema de viver num meio ambiente.

Em quarto lugar, graças à nossa afirmação de formas centrais, concordamos com os defensores do holismo ou organicismo. Mas não afirmamos apenas a unidade inteligível a ser apreendida nos dados enquanto individuais, mas também as funções e relações inteligíveis a serem apreendidas nos dados enquanto pertencem a tipos. Além disso, estas relações e funções inteligíveis não só são emergentes nas multiplicidades subjacentes e determinam o círculo flexível de domínios de esquemas de recorrência, mas constituem um sistema superior em movimento que assim integra a multiplicidade subjacente, de modo a fazer emergir uma outra integração diferente.

Em quinto lugar, empregamos o termo ‘emergência’, mas fazemo-lo num sentido assaz determinado, para denotar um facto de todo inquestionável. O protótipo da emergência é a intelecção que surge relativamente a uma imagem apropriada; sem a intelecção, a imagem é uma multiplicidade coincidente; os elementos da imagem tornam-se, pela intelecção, inteligivelmente unidos e relacionados; além disso, as acumulações de intelecções unificam e relacionam domínios de imagens cada vez maiores e mais diversificados, e o que permanece meramente coincidente de um ponto de vista inferior torna-se sistemático pela acumulação de intelecções num ponto de vista superior. Se assim se torna determinado o sentido da emergência, também o facto se

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torna inquestionável. Há processos de rotina, e ao longo deles podem verificar-se as mesmas leis clássicas e estatísticas. Há mudanças de estado, e durante estas as leis estatísticas são modificadas, mas as leis clássicas permanecem as mesmas. Mas há também processos emergentes, e as leis clássicas que podem ser verificadas no início destes não são as leis clássicas que se podem verificar no seu final. Há correlações que se podem verificar no organismo adulto. Há correlações que se podem verificar no óvulo fertilizado. Mas os dois conjuntos de correlações não são idênticos. Em determinados materiais, ocorreu uma alteração no que pode ser apreendido pela intelecção, formulado como lei e afirmado como verificado. Um conjunto de formas conjugadas deu lugar a outro. O trânsito de um conjunto para outro é regular. Mas este trânsito regular não se dá de acordo com a lei clássica, pois não existem leis clássicas acerca de mudanças nas leis clássicas; nem tão-pouco se dá de acordo com a lei estatística, pois não se trata de uma escolha indiferente entre um conjunto de processos alternativos; e, por isso, é-se forçado a reconhecer o facto de um terceiro tipo de processo a ser investigado por um terceiro método, o genético.

Em sexto lugar, Kant afirmou uma máxima de intencionalidade formal como relevante para a investigação biológica. Tal intencionalidade não fazia parte da realidade investigada, mas era uma componente necessária do ordenamento inteligível dos dados, efectuado pela mente. Ora, nós afirmamos a finalidade num sentido que já foi definido. É uma afirmação de dinamismo, de um direccionamento em geral para uma inteligibilidade e sistematização mais plenas, e da consecução de uma plenitude cada vez maior mas nunca completa, através de uma probabilidade efectiva. Um exemplo claro do significado exacto de tal finalidade é a estratégia flexível do sistema superior dinâmico e, mais uma vez, da sucessão cumulativa de estratégias cada vez mais arrojadas e ricas. Por conseguinte, a nossa afirmação da finalidade significa apenas aquilo que se pode apreender inteligentemente nos dados e afirmar razoavelmente com base nos dados. Mas o real é o ser, e o ser é o que há para ser apreendido inteligentemente e afirmado razoavelmente. Nesta exposição, a finalidade é tão real como tudo o mais. Na medida em que a intencionalidade formal de Kant implica um certo antropocentrismo e, por isso, uma determinação maior do que a nossa noção de finalidade, estamos prontos a conceder-lhe o seu estatuto subjectivo, mas então negaríamos a sua relevância para a investigação biológica. Por fim, as concepções de Kant neste campo são apenas uma consequência da sua posição geral e, como já foi sugerido, esta não tem melhor fundamento do que uma rejeição incompleta de visões ingénuas da objectividade, juntamente com uma incapacidade de reconhecer o virtualmente incondicionado como constitutivo do juízo e, por isso, de alcançar o universo do ser.

Em sétimo lugar, embora estejamos, no essencial, de acordo com Aristóteles, divergimos dele em muitos aspectos, e não será despropositado clarificar o assunto de modo muito sucinto. Aristóteles reconheceu formas centrais e conjugadas: assim como a visão está para o olho, também a alma está para o animal inteiro. A sua ‘forma’ é também um fim: a visão é a inteligibilidade apreendida não só no olho e no nervo óptico desenvolvidos, mas também, de modo proléptico, no olho em desenvolvimento do feto. Ele distinguiu a coisa-para-nós da coisa-em-si: as formas não só são apreendidas nas apresentações sensíveis, mas existem ainda numa matéria-prima que é pura potência e, por isso, carece de qualquer descrição categorial. Por outro lado, Aristóteles não captou a noção de pontos de vista superiores sucessivos, nem a empregou para explicar os géneros e espécies explicativos. Não apreendeu a noção de probabilidade enquanto explicativa, nem concebeu uma probabilidade emergente, nem pensou em formas superiores como explicativas das regularidades nas multiplicidades subjacentes aliás coincidentes. Não concebeu a finalidade como orientada para lá de toda a consecução

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genérica e especificamente determinada, e a sua análise do movimento enquanto acto incompleto é apenas uma aproximação distante à noção de desenvolvimento enquanto sistema superior em movimento desde uma perfeição indiferenciada para uma perfeição plenamente diferenciada. Por último, na sua posição nem sequer existe a potencialidade próxima para conceber o desenvolvimento humano como um movimento triplamente composto de sistemas superiores sucessivos.

8. SUMÁRIO

Concebeu-se a metafísica como a estrutura heurística integral do ser proporcionado. O ser proporcionado é o que há para ser conhecido pela experiência, pela apreensão inteligente e pela afirmação razoável. A estrutura heurística integral é o esboço antecipado do que se haveria de conhecer, ao afirmar uma explicação completa da experiência.

O significado da metafísica não reside no futuro, mas no presente. É indiferente para a metafísica se irá, ou não, existir uma data futura em que se alcançará a explicação completa. Mas é uma questão de importância suprema para a metafísica rejeitar-se, aqui e agora, todo o obscurantismo e, assim, aceitar o empenho na explicação completa, em todas as suas implicações. Ademais, o valor de um esboço antecipado de uma explicação completa hipotética não deve ser medido pelo grau em que se antecipa a explicação futura. Pois a questão metafísica não é a ordem presente do conhecimento futuro, mas a ordem imanente à dinâmica de todo o conhecimento, seja ele passado, presente ou futuro. Mesmo quando a ciência tiver explicado todos os fenómenos e o senso comum tiver sido expurgado de toda a distorção, permanece a questão da unificação das ciências e dos múltiplos espécimes de senso comum. Dado que esta questão jamais será resolvida pela ciência ou pelo senso comum, a sua resposta pode, desde já, estabelecer-se nas suas linhas estruturais gerais; e o importante na resposta não é o valor de uma previsão, mas o valor de uma ordem e perspectiva correctas no conhecimento e na investigação presentes.

Tal como o seu significado, também a prova da metafísica reside no presente. Mas o carácter peculiar da metafísica torna extremamente difícil uma exposição da prova. Qualquer doutrina se pode apresentar num conjunto ou em conjuntos de definições, postulados e deduções. Mas a prova não reside na expressão vocal ou escrita exteriorizadas, nem no assentimento interior, antes na apreensão reflexiva prévia que obriga a razoabilidade a assentir. Uma vez aceites as definições e os postulados, a dedução torna manisfesto o incondicionado que há para ser reflexivamente apreendido. Mas as definições e os postulados da metafísica são uma multiplicidade de alternativas em disputa; a prova que permite distingui-las é tão vasta como o universo sobre o qual se pronunciam; e uma apreensão dessa prova não reside ao alcance imediato de qualquer mente indolente, mas surge somente no termo de uma longa e difícil acumulação de intelecções directas e reflexivas.

Por esta razão, uma exposição das provas da metafísica far-se-á em termos dinâmicos. Se uma imagem espacial e uma metáfora militar forem de alguma utilidade, o progresso da prova metafísica é, ao mesmo tempo, uma ruptura das linhas inimigas, um cerco e uma reclusão. A ruptura leva-se a cabo na afirmação do eu individual como empírico, inteligente e racionalmente consciente. O cerco realiza-se mediante a noção proteica do ser como tudo o que inteligentemente se apreende e razoavelmente se afirma. A reclusão faz-se através da oposição dialéctica de noções dúplices do real, do conhecimento e da objectividade, pelo que qualquer tentativa de fuga é bloqueada pela noção de que tão-só se estaria a substituir uma contraposição por uma posição

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conhecida, tão-só se desertaria do ser que pode ser inteligentemente apreendido e razoavelmente afirmado, tão-só se deformaria a consciência, que não é apenas empírica mas também inteligente, não apenas inteligente mas também razoável.

Uma vez lançado este fundamento, e enquanto for mantido, pode prosseguir-se de imediato com a edificação da estrutura heurística integral do ser proporcionado. Num primeiro momento, a crítica dialéctica transforma as posições científicas e de senso comum, de modo a fornecerem a premissa menor secundária do argumento. Num segundo momento, a teoria cognitiva traz à luz os quatro métodos da inquirição possível, a condição do seu uso e a possibilidade da sua integração, de modo a gerar a premissa menor principal. Num terceiro momento, a compreensão metafísica religa a premissa menor principal à secundária, da mesma maneira que um físico associa uma equação diferencial às condições-limite empiricamente veerificadas, a fim de obter a estrutura heurística integral relevante para este universo. Num quarto momento, invoca-se o isomorfismo do conhecer e do conhecido: o padrão das relações imanentes à estrutura dos actos cognitivos também se há-de encontrar nos conteúdos dos actos antecipados, e ainda se obterá decerto quando os conteúdos heurísticos dos actos antecipados derem lugar aos conteúdos efectivos dos actos ocorrentes.

Para resumir o segundo momento, começa-se por constatar que a compreensão leva à formulação de sistemas, e que, por suposição, os sistemas se mantêm constantes ao longo do tempo ou que mudam no tempo. Ademais, além da compreensão directa que estabelece sistemas, existe a compreensão inversa que assenta na assunção oposta de uma inteligibilidade deficiente. Por conseguinte, a antecipação de um sistema constante a descobrir funda o método clássico; a antecipação de uma sequência de sistemas inteligivelmente relacionada funda o método genético; a antecipação de que os dados se não ajustarão ao sistema funda o método estatístico; e a antecipação de que as relações entre estádios sucessivos de um sistema em mudança não serão directamente inteligíveis funda o método dialéctico. Mas os dados conformar-se-ão, ou não, ao sistema, e os sistemas sucessivos relacionar-se-ão, ou não, de um modo directamente inteligível. Por conseguinte, tomados em conjunto, os quatro métodos são relevantes para qualquer campo de dados; não ditam o que os dados hão-de ser; são capazes de lidar com os dados, independentemente do que estes revelem ser.

No entanto, o uso dos métodos tem uma condição básica. Pois apontam para sistemas e estruturas gerais que, apesar da sua generalidade, devem ser descobertos, verificados e aplicados em dados, todos eles individuais. Para ligar inteligivelmente os dados individuais às estruturas gerais requer-se outro tipo ulterior e distinto de compreensão, que apreende unidades, identidades, totalidades concretas. Daqui se depreende que as estruturas gerais concernem às propriedades das coisas, e aí as propriedades e as coisas são o que há para ser conhecido, mediante a compreensão dos mesmos por procedimentos diferentes, mas complementares.

Além da sua unidade por referência concreta, os métodos possuem ainda unificações estruturais. Assim, num universo em que o método clássico e o estatístico são relevantes, pode mostrar-se que a inteligibilidade imanente da ordem dos eventos é uma probabilidade emergente. Ademais, num universo em que as mesmas coisas têm propriedades investigadas em ciências distintas e autónomas, a noção de pontos de vista superiores sucessivos é a única capaz de relacionar inteligivelmente as propriedades genericamente distintas da mesma coisa, sem violar a autonomia das ciências. Segue-se, pois, uma probabilidade emergente generalizada para as coisas e para os eventos, e a estrutura heurística do conhecimento é correspondida pela finalidade do ser.

Regressando agora ao quarto momento do argumento metafísico, introduziram-se as noções de potência, de forma e acto centrais e conjugados. O ser proporcionado é o que

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há-de ser conhecido pela experiência, pela apreensão inteligente e pela afirmação razoável. A estrutura heurística integral do ser proporcionado é a estrutura do que há para ser conhecido, quando o ser proporcionado for inteiramente explicado. Mas, nesse conhecimento explicativo, haverá a afirmação, a compreensão e a experiência do resíduo empírico. Admitamos que ‘acto’ denota o que é conhecido na medida em que afirmamos; que a ‘forma’ denota o que é conhecido na medida em que compreendemos, e que ‘potência’ denota o que é conhecido na medida em que experienciamos o resíduo empírico. Da distinção, das relações e da unidade dos conteúdos experienciados, inteligidos e afirmados seguem-se a distinção, as relações e a unidade de potência, forma e acto. Dos diferentes modos de compreender coisas concretas e leis abstractas segue-se a distinção entre formas centrais e conjugadas e, como corolário, as distinções entre potência central e conjugada e entre actos centrais e conjugados. Da unificação estrutural dos métodos pela probabilidade emergente generalizada segue-se a elucidação estrutural dos géneros e espécies explicativos e da ordem imanente do universo do ser proporcionado. Tais são os elementos da metafísica.

Resta a tarefa, a iniciar no próximo capítulo, de investigar, com maior profundidade, a natureza destes elementos e das suas relações. Mas não será inoportuno situar, mais uma vez, a nossa posição na história da filosofia. Existe um necessário isomorfismo entre o nosso conhecimento e o seu conhecido proporcionado. Mas tal paralelismo é descurado pelo ordo idearum est ordo rerum dedutivista de Espinosa. O lugar correcto do paralelismo encontrar-se-á na estrutura dinâmica do nosso conhecimento. A inquirição e a compreensão pressupõem e complementam a experiência; a reflexão e o juízo pressupõem e complementam a compreensão. Mas o que vale para as actividades vale também para os seus conteúdos. O que se conhece na medida em que se compreende pressupõe e complementa o que é conhecido pela experiência; e o que é conhecido na medida em que se afirma pressupõe e complementa o que se conhece pela compreensão. Por último, os conteúdos dos actos cognitivos ou se referem ao conhecido ou são idênticos ao conhecido e, assim, a estrutura dinâmica do conhecimento é também a estrutura do ser proporcionado. Isto foi captado por Aristóteles e, de um modo mais pleno, por Tomás de Aquino; embora a presente elucidação do tema divirja em certos pormenores da sua posição, a diferença reside no facto de que a ciência moderna tornou possível distinguir, com muita clareza, entre descrição preliminar e explicação científica.

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