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15.10.2008 “Na Baixa dos Sapateiros encontrei um dia”... Publiquei o artigo "A baiana do acarajé: imagens do real e do ideal" em 1999, época em que morava em Paris. O fato de trabalhar com Língua e Civilização Brasileiras (ministrava aulas na Université de Nanterre Paris X), me deixava mais próxima do meu país, da sua música e da sua cultura. Sendo baiana e observando o grande número de composições sobre a minha terra e, sobretudo, sobre a “baiana”, decidi escrever esse artigo com o objetivo de mostrar a mulher simples, trabalhadora urbana - a baiana do acarajé - buscando desmistificar a imagem sensual e de “objeto de desejo” atribuída a essas vendedoras de iguarias das esquinas da cidade. Como ele é um pouco longo, será dividido em três partes. Se não for pedir muito, gostaria que o mesmo fosse comentado e discutido, pois a Revista em que foi publicado não é acessível ao grande público ficando, na maioria das vezes, restrita ao ambiente universitário. Exposto no Blog, esse artigo se torna acessível a um grande número de pessoas e isso só pode ser positivo. Espero que gostem, mas se nao gostarem, podem e devem criticar. Leni Ps. Meu computador deu uma pane (acho que vou comprar outro) e fizeram a caridade de me arranjar um notebook ruinzinho e lento, devagar, quase parando! Mas, o importante é que agora posso publicar meus posts.] A referência da publicação é: DAVID, Maria Lenilda Carneiro. (Leni David) A Baiana do acarajé : imagens do real e do ideal, Revista da Biblioteca Mário de Andrade, v. 57, São Paulo, jan./dez., 1999, p. 147- 155. Baiana de Amaralina - Salvador - Bahia

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15.10.2008

“Na Baixa dos Sapateiros encontrei um dia”...

Publiquei o artigo "A baiana do acarajé: imagens do real e do ideal" em 1999, época em que morava em Paris. O fato de trabalhar com Língua e Civilização Brasileiras (ministrava aulas na Université de Nanterre – Paris X), me deixava mais próxima do meu país, da sua música e da sua cultura. Sendo baiana e observando o grande número de composições sobre a minha terra e, sobretudo, sobre a “baiana”, decidi escrever esse artigo com o objetivo de mostrar a mulher simples, trabalhadora urbana - a baiana do acarajé - buscando desmistificar a imagem sensual e de “objeto de desejo” atribuída a essas vendedoras de iguarias das esquinas da cidade. Como ele é um pouco longo, será dividido em três partes.

Se não for pedir muito, gostaria que o mesmo fosse comentado e discutido, pois a Revista em que foi publicado não é acessível ao grande público ficando, na maioria das vezes, restrita ao ambiente universitário. Exposto no Blog, esse artigo se torna acessível a um grande número de pessoas e isso só pode ser positivo. Espero que gostem, mas se nao gostarem, podem e devem criticar. Leni Ps. Meu computador deu uma pane (acho que vou comprar outro) e fizeram a caridade de me arranjar um notebook ruinzinho e lento, devagar, quase parando! Mas, o importante é que agora posso publicar meus posts.]

A referência da publicação é:

DAVID, Maria Lenilda Carneiro. (Leni David) A Baiana do acarajé : imagens do real e do ideal, Revista da Biblioteca Mário de Andrade, v. 57, São Paulo, jan./dez., 1999, p. 147-155.

Baiana de Amaralina - Salvador - Bahia

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PRIMEIRA PARTE A Baiana do acarajé : imagens do real e do ideal

Leni David “As crioulas da Bahia Todas têm um certo quê…

Temperam a vida da gente Como a moqueca de

dendê”[1]

Poetas, músicos e compositores brasileiros e originários de outros rincões dedicaram versos e

canções à Bahia e aos seus personagens típicos, entre eles, “baianas”, capoeiristas e ialorixás.

Além de “mãe do Brasil”, expressão mais corrente, a Bahia é identificada como a Boa Terra,

Terra de Todos os Santos, Roma Negra e a Terra da Felicidade entre as designações mais

freqüentes. A essas denominações são associadas imagens visuais inconfundíveis, como o

casario colonial barroco do Pelourinho, a figura esbelta do tradicional elevador Lacerda e a

imponência da “colina sagrada”, abrigando a majestosa Igreja do Bonfim. A imagem da

“baiana”, no entanto, é aquela que está vinculada diretamente à imagem da Bahia como um

todo e de Salvador em particular. Pode-se afirmar que a “baiana” é o símbolo baiano por

excelência, imortalizada em telas, esculturas, fotografias, versos e canções.[2]

Este fenômeno merece, ao meu ver, ser discutido e analisado pois as imagens da cidade, e da

“baiana”, uma trabalhadora urbana tradicional, alvo de homenagens e de versos arrebatados,

oscilam entre a descrição idealizada e o pitoresco, encobrindo, na maioria das vezes, aspectos

evidentes da realidade. A “baiana”, no entanto, será a personagem principal deste trabalho, por

estar vinculada naturalmente ao espaço geográfico do estado e à paisagem da cidade e por

representar traços fortes da vida baiana, como a mestiçagem, a religiosidade e as tradições

culturais, além de representar, também, a sensualidade atribuída à Bahia (e a ela própria), a

terra do prazer e “de todos os pecados”, sensualidade evocada com freqüência através da

dança, dos cheiros, e mesmo da comida que são caracterizadas como “quentes” e

apimentadas. A “baiana” personagem cúmplice da cidade, mestra na arte do feitiço, e dos

quitutes picantes, que elabora e executa “sem parar de mexer”…

Meu objetivo é, por conseguinte, confrontar a “baiana ideal” alvo de galanterias e homenagens

diversas, à “baiana real”, a trabalhadora urbana, no espaço geográfico da cidade do Salvador

da Bahia de Todos os Santos, onde imagina-se que o deleite do prazer tropical sobrepõe-se à

uma realidade marcada pelo trabalho e pela rotina.

A argumentação será exposta ao longo do texto, por acreditar que a compreensão será mais

proveitosa, facilitando também a tarefa de situar a personagem focalizada no tempo e no

espaço.

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O percurso identitário da baiana

A vendedora ambulante foi parte integrante da paisagem brasileira e, principalmente, de

cidades como Rio de Janeiro, Salvador e Recife, no passado, embora essa tradição persista

nos dias atuais, por ser uma atividade capaz de garantir a subsistência para uma parcela

significativa da população de baixa renda, excluída do processo produtivo convencional. Esta

vendedora ambulante, no entanto, segundo Pierre Verger,[3] desenvolveu no Brasil atividades

que já lhe eram familiares na África e ele explica também que, a partir de meados do século

XVIII os africanos importados para a Bahia e Recife eram originários do golfo do Benin ou da

Costa dos Escravos, enquanto que as outras regiões do Brasil continuavam a receber escravos

do Congo e de Angola. Segundo esse autor, esse pormenor tem importância fundamental visto

que a procedência dos escravos desembarcados na Bahia contribuiu para a originalidade da

vida local e para justificar porque a Bahia tem características diferentes de outras cidades

brasileiras. Verger alerta ainda para o fato de que é imprescindível conhecer o espaço ocupado

pelas mulheres da sociedade iorubá, na África, onde a organização da família nessa etnia é

polígama, o que colabora para que a mulher desfrute de maior liberdade, em oposição às

ligações monógamas.

Estas mulheres são vistas apenas como progenitoras, capazes de preservar a linhagem

familiar, não se integrando totalmente à família do marido, fato que lhes confere, também, uma

certa independência. Nas sociedades nagô-ioruba, por exemplo, estas mulheres podem

circular livremente e participar dos mercados das cidades vizinhas sendo, inclusive, boas

comerciantes o que lhes permite amealhar somas consideráveis, até superiores àquelas

ganhas por seus cônjuges. Verger acrescenta que no Brasil, existe uma situação análoga entre

as mulheres de descendência africana, embora já não haja espaço para a grande família que

gira em torno do pai polígamo. São as mulheres que mandam em casa e criam os filhos,

geralmente de pais diferentes. E Verger conclui que, “elas vendem nos mercados e nas ruas,

alimentos cozidos idênticos aos da África, tais como os acarajés”[4]… explicando que essas

mulheres, descendentes dos nagôs preservaram o mesmo espírito de iniciativa do seu país de

origem e as mesmas tendências dominadoras, tanto na família como nas suas relações com os

outros. Essas observações permitem, em contrapartida, identificar características próprias das

“baianas de acarajé” a trabalhadora das ruas da Bahia, que veremos no decorrer desse

trabalho.

A venda ambulante de produtos diversos, no entanto, não é uma atividade recente; no

passado, era uma atividade característica das escravas e libertas que, segundo Vilhena,[5]era

financiada pelos patrões, o que lhes garantia a liberdade de preços e a não interferência de

terceiros em seus negócios. A atividade dessas vendedoras remonta, segundo vários

pesquisadores à época colonial, quando as escravas de ganho se deslocavam pelas ruas das

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cidades com o objetivo de vender mercadorias diversas.

Kátia de Queirós Mattoso[6] explica que no século XIX a maioria das mulheres brancas não

exerciam atividades fora dos limites de suas casas; porém, quando eram obrigadas a reforçar o

orçamento familiar, realizavam trabalhos de bordados, costuras e doces para serem vendidos

nas ruas pelas ganhadeiras. Estas senhoras, oriundas das classes médias, não se expunham a

vender o fruto desse trabalho na rua, delegando essas tarefas às suas cativas,[7] que

exercendo essa atividade, conseguiam, por vezes, comprar a própria liberdade, utilizando a

quota de lucro que lhes cabia como recompensa do trabalho que executavam. Tânia

Gandon,[8] num trabalho sobre a comunidade de Itapuã, recolheu preciosas informações,

através da memória coletiva do bairro, sobre as antigas vendedoras de peixes, conhecidas

também como ganhadeiras, mostrando a trajetória dessas mulheres, que foram, certamente, as

predecessoras das baianas dos dias atuais.

(Continua)

Escrava Ganhadeira

Notas

[1] - Quadrinha popular de domínio público.

[2] - Numa pesquisa que realizei entre 1994 e 1997, repertoriei cerca de novecentas canções com temas ligados à Bahia, entre

as quais, cerca de trezentas dedicadas à “baiana”.

[3] - VERGER, Pierre Fatumbi. Artigos, São Paulo, Corrupio, Coleção Baianada, Vol. I, 1992.

[4] - VERGER, Pierre Fatumbi. A contribuição especial das mulheres ao candomblé do Brasil, in Artigos, op. cit. p. 98-101.

[5] - VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no século XVIII. Salvador, Itapuã, 1969, p. 237; citado por Tânia Gandon, Un parcours

de femme dans la ville. L‟Itinéraire de la ganhadeira dans la culture bahianaise, in Les femmes dans la ville – Un dialogue

franco-brésilien, (Centre d’Etudes sur le Brésil), Presses de l’Université de Paris – Sorbonne, 1997, p. 65.

[6] - QUEIROS MATTOSO, Kátia. Bahia, século XIX – Uma província no Império, 2a ed., Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, p.

536.

[7] - QUEIRÓS MATTOSO, Kátia. História da vida privada no Brasil (coleção dirigida por Fernando A. Novais, vol. organizado

por Luís Felipe de Alencastro), São Paulo, Companhia das Letras, 1997, p. 163.

[8] - GANDON Tânia. Un parcours de femme à travers la mémoire de la ville – L‟itinéraire de la „ganhadeiras‟ dans la culture

bahianaise, in Les femmes dans la ville, un dialogue franco-brésilien, Centre d’Etudes sur le Brésil, Presses Universitaires de

Paris - Sorbonne, 1997.

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16.10.2008

A baiana do acarajé: imagens do real e do ideal

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SEGUNDA PARTE

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As três baianas: personagens do passado, da rua e da canção

No sentido dicionarizado, a palavra baiana é identificada como “feminino substantivado do adjetivo baiano”, e como designação da “negra mestiça da Bahia, em especial a vendedora de quitandas, cuja indumentária consta de saia rodada, bata de renda, turbante, pano da costa, colares e balangandãs”. Um olhar sobre as fontes iconográficas que retratam as escravas do passado, confirma que a indumentária usada pelas vendedoras atuais quase não sofreu transformações e muitos testemunhos sobre a elegância dessas mulheres chegaram até nós através de viajantes e visitantes que percorreram as terras brasileiras.[1] Pierre Verger[2] esclarece que esse traje típico das mestiças baianas certamente seria originário das etnias nagô-ioruba,[3] cuja presença na Bahia do passado era considerável. Ele observa ainda que as pessoas dessa etnia africana vivem sobretudo em meio urbano, levando uma existência permeada de relações quotidianas, não só com vizinhos, mas também em encontros de caráter social nos mercados das cidades, atitudes que contrastam dos habitantes mais próximos do Daomé, onde a vida tinha, geralmente, um caráter rural; logo, a origem urbana da maioria dos escravos trazidos para a Bahia, poderia explicar o esmero no vestir das negras baianas que, ao que tudo indica, era mais evidente nessa cidade do que nas demais cidades brasileiras.[4]

Apesar de considerado como luxuoso e bonito, este traje, no entanto, era peculiar às negras e mulatas, sendo utilizados ocasionalmente pelas brancas tidas como “sem sorte”, ou seja, pelas brancas pobres. Na realidade, ser uma “mulher de saia” – em oposição à “mulher de vestido”[5] - representava determinar simbolicamente a origem social dessas mulheres pertencentes às camadas pobres da população. Esta marca de distinção entre as camadas sociais não impediu, no entanto, à princesa real brasileira, Dona Isabel, de vestir-se de “preta baiana” num baile à fantasia realizado em 07 de fevereiro de 1865, em Londres, fato que foi comunicado por carta ao seu pai, o imperador Pedro II e que provocou surpresa e comentários da corte brasileira da época.[6]

Nina Rodrigues, descrevendo os usos e costumes das escravas baianas também faz alusão às roupas observando, por exemplo, que as trabalhadoras negras usavam saias largas e coloridas, batas de algodão e pano da Costa; as negras ricas, porém, acrescentavam ricos adornos à sua indumentária: as saias, nesse caso, eram de seda, a camisa de alvo linho e o pano da costa de rico tecido. Além disso, enfeitavam-se com braceletes de ouro que cobriam os braços até à metade e na cintura traziam uma penca de berloques com a imprescindível figa. Esses berloques são os famosos balangandãs, palavra que se tornou popular nos aos 30 graças à canção O que é que a Baiana tem?,[7] de Dorival Caymmi.

Segundo o historiador baiano Cid Teixeira a denominação “baiana” designando a vendedora ambulante é recente e ele explica que a sua geração, oriunda dos anos 20, não conhecia outra forma senão “crioula,” para designar a vendedora de pratos típicos daquela época. E ele acrescenta: “Ora, baiana ela já era, antes de qualquer coisa! Nós importamos a designação “baiana”, que era utilizada sobretudo no Rio de Janeiro.”[8] Em 1939, quando Dorival Caymmi, grava a canção A preta do acarajé,[9] que conquista um grande sucesso em todo o país, a vendedora que oferece os seus petiscos mercando em nagô, também não é identificada por Caymmi como a “baiana” e ele esclarece em o Cancioneiro da Bahia,[10] que aqueles versos faziam parte das lembranças da sua infância, quando escutava na rua em que morava, o canto triste da negra vendedora de acarajés: “ô acarajé ecô, olalaí ó”[11]… tendo inclusive, conservado na canção que compôs as mesmas palavras e a mesma música do pregão.

Thales de Azevedo[12] em trabalho publicado em 1953, também discorre sobre o assunto o que reitera a declaração de Cid Teixeira. Eis aqui as informações do antropólogo baiano: “Aos filhos de africanos nascidos no Brasil, chamava-se de crioulos, termo ainda hoje aplicado na sua forma feminina às pretas e mulatas que se vestem como “baianas”, com torso à cabeça, saia muito ampla, camisa alva bordada e muito decotada e um chale de cores nos ombros… As crioulas típicas baianas são figuras típicas das ruas das cidades, onde podem ser vistas ao transitarem para os centros de culto fetichistas ou sentadas junto a tabuleiros em que expõem à venda, especialmente durante as festas populares, os manjares da famosa cozinha local, em grande parte de origem africana”.

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Existe porém, outra forma de designar as mulheres naturais da Bahia, extensiva às vendedoras das ruas da cidade, muito utilizada nos textos das canções; trata-se do substantivo iaiá, uma deformação da palavra senhora – sinhá – que no sentido dicionarizado “é um tratamento dado às meninas e às moças, de largo uso no tempo da escravidão e hoje quase abolido”.[13] Ora, sinhá, ou iaiá, era portanto a “senhorita” e não a escrava. O uso, entretanto, banalizou o termo, sendo o mesmo utilizado para expressar a naturalidade das filhas da Bahia, como forma de tratamento carinhoso e mesmo como diminutivo, quando utilizado como apelido, de uso freqüente ainda nos dias atuais, principalmente nas cidades do interior do estado. Certo é que o número de canções cujos versos fazem referência às “Iaiás da Bahia”[14] é extenso, sendo a

forma utilizada também no masculino – ioiô. Em canções como O coco de Iaiá,[15] fica claro o

propósito afetuoso: “Quero provar minha iaiá/ doce de coco açucarado”… Já em canções como

Iaiá formosa,[16] Iaiá baianinha,[17] Iaiá, ioiô e a cuíca[18], Iaiá da Bahia[19] e Iaiá do Cais

dourado[20], fica evidente a designação da mulher natural da Bahia, embora haja alusões à

vendedora visto que o traje da baiana é evocado, da mesma maneira que algumas das especialidades culinárias locais preparadas por ela. Essas evocações parecem, no entanto, querer reforçar a imagem da “iaiá”, a filha da Bahia que usa saia rodada, bata rendada e sandália dourada, talvez conhecedora da cozinha típica, uma vez que a sua imagem é sempre associada a ela, mas sobretudo, exímia conhecedora dos segredos dos feitiços e requebros capazes de conquistar corações, como confirmam os versos da canção : “baiana é aquela que entra no samba de qualquer maneira, que mexe e remexe dá nó nas cadeiras e deixa a moçada com água na boca”…

Pode-se deduzir, no que concerne a indumentária e às denominações dadas à baiana que existe uma estreita afinidade entre os nomes – crioula e baiana – e a profissão dessas mulheres, ou seja, a de vendedoras ambulantes urbanas de comidas típicas, que se tornaram figuras obrigatórias das ruas da cidade, conquistado o status de símbolo da Bahia e até do Brasil.[21] Desse modo, a “crioula” e a “preta do acarajé”, do passado personificam a “baiana do acarajé” dos dias atuais, com algumas variantes do traje que as identifica e do comportamento, no que diz respeito às obrigações e preceitos de cunho religioso, pois nem todas as mulheres que exercem essas atividades, no presente, estão vinculadas ao candomblé, fato que era comum no passado.[22] Quanto à iaiá, ela seria a “baiana ideal”, a imagem exótica do cartão postal, e da letra da canção popular, estereotipada e superficial, mas que tem boa aceitação junto ao público consumidor; a iaiá, na realidade, não tem traços afins com a baiana tradicional, a comerciante, trabalhadora de longas jornadas, capaz de enfrentar os desafios das intempéries e as dificuldades comuns àqueles que trabalham na rua.

(Continua)

[1] - São muitos os comentários sobre a elegância das negras baianas, deixados por viajantes estrangeiros, entre eles,

BARBINAIS Le Gentil de la. Voyage autour du monde, Paris, 1728, Tomo III, p. 203; AVE-LALLEMENT Robert. Viagem pelo norte do Brasil, Rio 1961, Tomo I, p. 21: WETHERELL James. Notes from Bahia, Liverpool, 1860, p. 72. Citados por Pierre Verger, in Artigos, Ed. Corrupio, Coleção Baianada, São Paulo, 1992. [2] - VERGER Pierre Fatumbi. A origem africana da elegância das mulheres negras da Bahia, in Artigos, op. cit, p. 106-107. [3] - Existe uma polêmica em torno da origem do traje da baiana; alguns autores atribuem a sua origem ao Daomé, divergindo deste pesquisador. [4] - Por volta de 1830, Debret assinalava que « com as perturbações políticas ocorridas na Bahia em 1822, verificou-se uma grande imigração de trânsfugas… elas distinguiam-se pela sua „toilette‟. As negras da Bahia reconhecem-se facilmente pelos seus turbantes e ela largura dos seus lenços de seda; quanto ao demais do vestuário, ele é composto por uma blusa de musselina bordada, sobre a qual elas colocam uma baeta bordada cujas riscas caracterizam o fabrico da Bahia. O valor da blusa e a quantidade das jóias em ouro são os principais objetos da sua coqueteria” .DEBRET Jean-Baptiste. Voyage pittoresque au Brésil, Paris, 1834, Vol. II, p. 223. [5] - VIANNA, Hildegardes. A Bahia já foi assim, 2a ed. São Paulo, GDR / Brasília, Instituto Nacional do Livro, 1979, p. 146, citado por Tânia Gandon, op. cit. p. 66. [6] - AULER Guilherme. « A Redentora e o Recife », Arquivos 21, 47 e 84, Secretaria de Educação e Cultura, Recife, 1925-1965, citado por Luís da Câmara Cascudo, Dicionário do folclore brasileiro, Rio de Janeiro, Ediouro, 1972, p. 126. [7] - O que é que a baiana tem ? Canção de Dorival Caymmi, gravada pelo autor em parceria com Carmen Miranda, disco Odeon 11.710a, em 1939. [8] - Cid Teixeira concedeu-me uma entrevista, que foi devidamente registrada em fita cassete, no dia 7 de agosto de 1996 em seu escritório no bairro da Pituba em Salvador, entre 9h e 13.30h. [9] - A preta do acarajé – Música e letra de Dorival Caymmi, disco Odeon n° 11710b, gravada em 1939 e cantada pelo autor e por Carmen Miranda. “Dez horas da noite / Na rua deserta / A preta mercando / Parece um lamento… (Iê abará) Na sua gamela / Tem molho cheiroso, Pimenta-da-costa / Tem acarajé – Todo mundo gosta de acarajé / O trabalho que dá pra fazer é que é / Todo mundo gosta de acarajé – Todo mundo gosta de abará / Ninguém quer saber o trabalho que dá / Todo mundo

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gosta de abará / Todo mundo gosta de acarajé… Dez horas da noite / Na rua deserta / Quanto mais distante / Mais triste o lamento (Iê abará)” [10] - CAYMMI Dorival. Cancioneiro da Bahia, prefácio de Jorge Amado, 5a ed., Rio de Janeiro, Record, 1978, p. 160. [11] - O pregão das vendedoras ambulantes das ruas da Bahia era cantado em iorubá; “ô acará jê ecô”, que significa “vem comer acará”; à palavra acará acabou sendo incorporado o verbo “jê” – comer - resultando hoje em acarajé. Esclarecimento de Cid Teixeira em entrevista concedida à autora em 07/08/96. [12] - AZEVEDO, Thales. As elites de cor numa cidade brasileira : um estudo de ascensão social & classes sociais e grupos de prestígio, apresentação e prefácio de Maria de Azevedo Brandão, 2a ed., Salvador, EDUFBA – EGBA, 1996, p. 37; título original da 1

a edição, Les élites de couleur dans une ville brésilienne, Paris, UNESCO, 1953.

[13] BUARQUE DE HOLANDA, Aurélio. Dicionáriio da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1979, p. 254. Verbete: iaiá - (ià-iá)[De sinhá.] - S. f. Bras. Fam. 1. Tratamento dado às meninas e às moças, de largo uso no tempo da escravidão e hoje quase abolido; nhanhá, nhanhã, nanã. [14] - Repertoriei cerca de oitenta canções onde são encontradas as palavras iaiá e ioiô. [15] - O coco de Iaiá, composição de Américo Jacomino, cantada por Pilé, disco n° 10.015a, Odeon, 1927. [16] - “Que iaiá formosa / teu ioiô eu hei de ser… Com sandália cor de ouro / Saia cheia de babado / Oh baiana és um tesouro, quando dança o requebrado”… Iaiá formosa, samba de A de Souza Rego, cantada par Silvio Pinto, disco Colúmbia, N° 22.260, 1934. [17] - “Iaiá baianinha, pimenta de cheiro,/ Cheirando a leite de coco, arruda e manjericão / Machuca, machuca meu coração / Sacode mulata a saia engomada”… Iaiá baianinha – Humberto Porto, cantada pelo Trio de Ouro ; disco Odeon n° 11.611a, 1938. [18] - “-Pimenta de cheiro, com vatapá!/ -Pra quem iaiá?/ -Pra você ioiô”… Iaiá, Ioiô e a cuíca –Fausto Vasconcelos e F. Martins, cantada em dupla por J. B. de Carvalho e Nena. Robledo, disco Odeon n° 11.882a, gravado em 1940. [19] - “Iaiá da Bahia chegou/ Batuque não pode parar/ Levanta a poeira do chão/ Bate surdo o pandeiro e o ganzá“…Iaiá da Bahia. Ary Barroso, cantada por Deo, disco Sinter n° 00000080a, 1951. [20] - « No cais dourado da velha Bahia/ Onde estava o capoeira/ a Iaiá também se via / Juntos na feira ou na romaria, no banho de cachoeira e também na pescaria/ dançavam juntos em todo fandango e festinha »…Iaiá do Cais Dourado, samba-enredo de Martinho da Vila e Rodolfo de Souza, apresentado pela Escola de Samba Vila Isabel no carnaval de 1969, gravado pelo selo Arabela BMG, disco n° 60034335, 1972. [21] - O samba exaltação que ocupa um lugar de destaque na música popular dos anos 30-40, canta o Brasil e sua natureza, sua riqueza, suas mulheres e tradições, focalizando na Bahia através da imagem de Carmen Miranda e com a ajuda dos baianos, uma série de valores ideológicos que são sistematicamente exploradas para a propaganda do Brasil no exterior, sendo inclusive, incentivados pelo DIP, enquanto o Brasil escuta ao pé do rádio, as proezas do Brasil mulato e da baiana de saia rendada. A este respeito, consultar: Música - O nacional e o popular na cultura brasileira, Enio Squeff e José Miguel Wisnik, São Paulo, Brasiliense, 1982; Afonso Romano de Santana, Música popular e moderna poesia brasileira, Petrópolis, Vozes, 1986. - Sobre as práticas e preceitos religiosos das “baianas de acarajé”, ver LODY, Raul. Santo também come, 2a ed. Rio de Janeiro, Editora Pallas, 1998. (Prefácio de Gilberto Freyre para a 1a edição (1978) e de Maria Stella de Azevedo (Mãe Stella, do Axé Opô Afonjá), para a 2a ed.

Texto publicado originalmente na Revista da Biblioteca Mário de Andrade, v. 57, São Paulo, jan./dez., 1999, p. 147-155. (DAVID, Maria Lenilda Carneiro. (Leni David) A Baiana

do acarajé : imagens do real e do ideal)

TERCEIRA PARTE

A “baiana” no cenário da cidade

Em Bahia, imagens da Terra e do povo,[1] coletânea de crônicas publicadas originalmente na

revista O Cruzeiro, Odorico Tavares, no capítulo dedicado à cozinha baiana, lamenta a

escassez de bons restaurantes na cidade no início dos anos 50, elogia a cozinha das casas

tradicionais e aconselha ao visitante que, não podendo usufruir de uma refeição em uma

residência local de cozinha afamada, a procurar os restaurantes no Mercado Modelo,

advertindo ainda: se o viajante “não é muito exigente e está entusiasmado pelo pitoresco, em

muito pé de escada, nas Laranjeiras e no Pelourinho, encontrará quem faça uma moqueca

bem feita”. Elogia as “baianas” Odília, “que vende a melhor cocada preta da Bahia” e Vitorina,

instalada em frente ao bar “Anjo Azul”, no Cabeça, cujo acarajé “é o que há de melhor”. Pela

descrição de Odorico Tavares presume-se que o número de baianas era expressivo e que as

mesmas podiam ser encontradas facilmente em vários pontos da cidade: “Também em frente

ao Elevador Lacerda , nas feiras populares, há quituteiras que fazem ótimos acarajés… No

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terreiro de Jesus, à tarde ou à noite, também se encontram „baianas‟ sentadas à beira dos

passeios, com suas vestimentas próprias, sua higiene impecável, preparado seus quitutes para

boêmios, para transeuntes, altas horas da noite.”[2]

Se a economia baiana havia atingido no início da década de 50 o máximo da letargia na qual

mergulhara há quase 100 anos, a criação da Petrobrás representou o marco de uma nova era.

A “vocação turística” da cidade passou a ser explorada pela administração estadual e

municipal, a implantação do Centro Industrial de Aratu alimentou os sonhos de modernidade de

grande parte da população que via na chegada do progresso, a saída para as suas dificuldades

e do ponto de vista cultural, o Reitor da Universidade Federal da Bahia, Edgard Santos, vai

representar o grande passo para a realização de projetos extraordinários na área cultural. O

surto de transformação da economia estadual então deflagrado, como não poderia deixar de

ser, e que se estendeu até as décadas de 60 e 70 com a implantação do Centro Industrial de

Aratu, alcançou a cidade do Salvador e sua Região Metropolitana, marcando-as

profundamente.

Nessa época, opulência e pobreza, subdesenvolvimento e modernidade, exibiam-se

insolentemente. Definitivamente, Salvador mudava de aspecto a partir da aventura industrial e

da implantação dos projetos de modernização. Grandes cadeias de lojas passaram a dominar

o setor comercial, que também deslocou-se do Centro Histórico para a região da Pituba e para

as novas avenidas. Os shoppings centers recém instalados conquistaram a população que

podia fazer compras sem se expor às dificuldades comuns do antigo centro da cidade. Tudo

mudou, a cidade transformou-se e o setor turístico também recebeu um impacto muito grande

à partir de então. Segundo Scheinowitiz,[3] a cidade antiga com estruturas arcaicas, a primeira

cidade fundada na Terra de Santa Cruz, a Salvador das ruas estreitas e sinuosas, a cidade da

poesia e do langor, a sonhadora e a mística, entra de vez no ritmo célere da modernização e

um exército de operários fura os morros, cava túneis e constrói viadutos.

Em oposição à esse surto de modernização a sociedade brasileira, segundo Prandi[4]

participará ativamente de um projeto de recuperação das origens que remete diretamente à

Bahia. Valoriza-se a cultura negra, sobretudo a cultura afro-baiana e essa mudança de rumos

seria determinada pelas classes médias, ou seja, pela intelectualidade brasileira de maior

legitimidade dos anos 60. Além disso, da modernidade da Bossa Nova à Tropicália, os baianos

lideram os movimentos renovatórios da música popular brasileira. A Bahia ganha espaço na

mídia, fala-se do Cinema Novo e da literatura de Jorge Amado; as ialorixás são homenageadas

por artistas em evidência no cenário artístico nacional. E as “baianas”? Que espaço elas

ocupam no cenário “novo” da cidade?

Até 1975, as notícias que evocam a “baiana de acarajé” fazem referência, principalmente, à

sua participação no cortejo da lavagem do Bonfim, aspergindo com água perfumada as

cabeças dos políticos em voga. Em 1975, no entanto, publica-se matéria com o seguinte título:

Baiana do acarajé será cadastrada pela prefeitura.[5] O texto inclui declarações de Waldeloir

Rego, diretor do Departamento do Folclore, Festas Populares e Esportes da Prefeitura

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Municipal do Salvador, entidade fundada em 1973, justificando a medida como necessária para

a preservação dos valores culturais, além de garantir um produto de qualidade, pois algumas

baianas inescrupulosas estavam adulterando a massa do acarajé, acrescentando à mesma,

farinha de mandioca e de milho, o que alterava o sabor e a consistência dessa iguaria.

Em julho de 1977[6], aparecem números oficiais da prefeitura de Salvador, mais precisamente

do Departamento do Folclore, Festas Populares e Esportes da Prefeitura Municipal do

Salvador, informando que cerca de quinhentas “baianas” estavam cadastradas nesse

organismo[7] e que as inscrições isentavam as interessadas do pagamento de taxas, “exigindo-

se apenas que a cadastrada vista-se de acordo com a tradição e que mantenha rigoroso asseio

pessoal, como também dos seus objetos de trabalho.” O mesmo jornal, em reportagem do mês

de setembro do mesmo ano, publica nova matéria sobre o tema cujo título, Prefeitura não

exigirá das “baianas” o traje típico,[8] deixa claro que houve reação das “baianas” com relação

às medidas impostas pelo órgão público. A declaração é da senhora Sônia Garrido, diretora da

Divisão de Folclore, fato que demonstra que a entidade responsável pela medida não era mais

a mesma e que a sua direção havia mudado. Informa-se também que há cerca de seiscentas

baianas cadastradas e que metade delas vendem iguarias em cumprimento à obrigação do

candomblé apresentado-se devidamente trajadas com a indumentária tradicional, em

obediência aos preceitos da crença.

A partir de 1978 a Federação do Culto Afro-Brasileiro assume a responsabilidade do

cadastramento e fiscalização das “baianas.” Porém, no início do mesmo ano, a reportagem

tendo como título Baianas condenam discriminação religiosa na vendagem de comidas

típicas,[9] denuncia a pretensão da entidade de afastar as vendedoras que não fossem filiadas

ao candomblé e vinculadas a um terreiro. Houve protestos da maioria das vendedoras de

comidas típicas que, indignadas, justificavam: “quem trabalha com tabuleiro é porque precisa

de uma ocupação para garantir o seu sustento e da sua família, independente da seita ou

religião a que pertença.” Mesmo as baianas vinculadas ao candomblé se mostraram

descontentes com a entidade por considerá-la injusta, discriminando as “baianas” não adeptas

do candomblé, num desrespeito à liberdade religiosa garantida por lei. Os objetivos da entidade

não foram adiante e até novembro de 1998 ela foi a responsável pelo cadastramento,

fiscalização e concessão de “pontos” para as “baianas de acarajé” de Salvador.

Em 1982 é criado o “Dia da Baiana,”[10] promoção da Bahiatursa, órgão oficial de turismo do

estado, tendo sido escolhido o dia 25 de novembro para os festejos e homenagens. As

comemorações do dia da baiana repetem-se a cada ano, com missa festiva na Igreja de Nossa

Senhora do Rosário dos Pretos, no Pelourinho, café da manhã, apresentações de sambas de

roda, cânticos, sorteios e distribuição de prêmios entre as participantes. Segundo as

reportagens dos jornais locais,[11] esta festa conta com a participação de baianas idosas e

jovens, algumas com mais de cinqüenta aos de profissão, todas elas vestidas à rigor, exibindo

suas mais belas indumentárias. Além disso são muitos os testemunhos destas mulheres que

não poupam comentários sobre as dificuldades, os prazeres, e as duras jornadas de trabalho

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que começam, em geral, nas primeiras horas do dia, quando a maior parte da população ativa

ainda dorme.

O título da matéria que anuncia a criação do “dia da baiana”, não necessita de explicações

para que se possa entender as razões que motivaram a Bahiatursa a criar essa data festiva

homenageado as trabalhadoras urbanas mais famosas da Bahia. No texto, a explicação é

clara: “Com o objetivo de valorizar e estimular a figura da baiana típica, que através do seu

trabalho difunde a culinária, a cultura e os costumes dos baianos, a Bahiatursa instituiu o dia 25

de novembro como o „Dia da Baiana do Acarajé‟, quando será desenvolvida uma intensa

programação nos principais centros emissores do fluxo turístico para o estado da Bahia.” A

programação em questão visava atrair turistas de outras cidades brasileiras, principalmente Rio

de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Brasília e Recife. Foi criado o “o vôo da

Baiana” que deu início à programação. Sete baianas típicas embarcavam em companhias

aéreas com destinação prevista para as capitais mencionadas acima, distribuindo entre os

passageiros fitas do Senhor do Bonfim e programas anunciando os eventos festivos do verão

baiano. Durante o vôo os passageiros escutavam canções cujos temas versavam sobre a

própria baiana e nas cidades de destino elas eram recebidas por uma personagem típica local.

À noite era oferecido um coquetel à imprensa, às autoridades, aos diretores de agências de

turismo e viagens, onde saboreava-se acarajés e batida de limão, havendo distribuição de

brindes e folhetos promocionais. Esta programação foi repetida durante alguns anos, na

mesma época, garantindo o sucesso das festas turísticas idealizadas pela Bahiatursa. No

aeroporto de Salvador, por exemplo, nas saídas dos desembarques nacionais e internacionais,

“baianas” vestidas a carater distribuíam fitinhas do Bonfim aos passageiros, enquanto

conjuntos de samba batucavam alegremente, despertado a curiosidade dos viajantes que

desembarcavam na cidade, mesmo em plena madrugada.

Muitas coisas mudaram nestes últimos anos. Convidar “baianas” para servir iguarias nas festas

refinadas e oficiais, tornou-se comun. Os jornais do Sul publicam reportagens sobre as

“baianas.”[12] Até uma delicatessen[13] de Salvador, especializada em produtos finos, adotou

o acarajé como chamariz para a clientela, vendendo em média cerca de seiscentos por

tarde, acarajés que são confeccionados pelo setor de produção da delicatessen e não pela

“baiana” que serve o petisco, como acontece habitualmente. Os acarajés são expostos em

tabuleiros elétricos, permanecem quentes pois, são conservados em banho-maria e cada

compartimento apresenta uma iguaria diferente “sem aquela miscelânea que se pode observar

nos tabuleiros tradicionais”, segundo o gerente. A “baiana”, é jovem, meiga e bonita tendo sido

escolhida pela gerência do estabelecimento comercial para exercer a função. Uma experiência

que deu certo, segundo os idealizadores.

Enquanto isso, algumas “baianas de acarajé”, como Cira[14] e Dinha,[15] estabelecidas

respectivamente no Rio Vermelho e em Itapuã, chegam a comercializar mil acarajés por dia,

durante a semana e mil e quinhentos acarajés diários nos fins de semana. Cira por exemplo

tem uma rede de distribuição em vários pontos da cidade. As garçonetes fardadas servem os

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petiscos mediante fichas vendidas num caixa especial. Dinha, em contrapartida, tem um celular

para atender os pedidos dos “clientes vips” e transporta o seu material de trabalho num carro

de sua propriedade e é convidada com freqüência para participar de eventos no sul do país.

Cursos de higiene alimentar (o primeiro realizado em 11 de abril 1992),[16] são oferecidos a

cada ano. Surgiram associações, entre elas a ABA – Associação das Baianas de Acarajé,

fundada em 1992,[17] contando com mil e duzentas associadas em 1998, entre as quatro mil

vendedoras de comidas típicas trabalhando na região metropolitana do Salvador.

Já é possível comprar acarajés a quilo e sob encomenda e muitas baianas, que modernizaram,

inclusive, o tabuleiro, aceitam até vales de transportes como pagamento e oferecem um

refrigerante gratuito na compra de um acarajé.[18] Em contrapartida, pode-se ler reportagens

com título provocador – “’Baianas empresárias’ esquecem tradição.”[19]

Finalmente, a briga entre Dinha e Regina pela disputa da clientela no Largo de Santana no Rio

Vermelho ocupou a primeira página da imprensa local[20] sendo notícia até no Jornal Nacional

da Globo. Em razão dessa disputa a prefeitura, através da Secretaria de Serviços Públicos –

SESP, chamou para si a responsabilidade pelas baianas. Em 25 de novembro de 1998, foi

assinado pelo prefeito de Salvador, decreto regulamentando, pela primeira vez na história do

município, o uso e a ocupação do solo.[21] As “baianas” terão um prazo de um ano para adotar

as novas normas. Foi criada uma taxa destinada ao licenciamento para a exploração do

comércio de iguarias, devendo a mesma ser renovada anualmente, haverá padronização do

equipamento e obrigatoriedade do uso do traje típico.

OBSERVAÇÕES FINAIS

Apesar do romantismo que envolve a “baiana,” não só pelo carisma dessa personagem que

conquistou a simpatia de baianos e brasileiros e que soube preservar através dos tempos

traços marcantes da cultura afro-baiana no mundo moderno, e com a “globalizaçao” invadindo

os mais recônditos rincões do planeta, a sua imagem poderia ser interpretada como irreal,

digna dos romances antigos. Essa baiana nostálgica lembra a Salvador do passado, que

escondia mistérios nas ruelas estreitas.

A cidade e a baiana mudaram de fisionomia e de hábitos, modernizaram-se. As ladeiras do

Pelourinho também já não escondem mistérios e segredos, estão iluminadas e policiadas. A

canção antiga que canta a Bahia e a baiana do passado também tem um tom nostálgico. A

“baiana” idealizada, a mulher-desejo percebida através dos cheiros, do paladar, da sedução da

dança rica de meneios e requebros já não encanta tanto.

Mas baianas como Odilia e Vitorina da época de Odorico Tavares existem ainda. A “baiana”

personificada por Verger, capaz de enfrentar desafios e de transpor obstáculos pode ser

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encarnada pela maioria das “baianas”, sejam elas modestas, ou empresarias promissoras,

sobretudo a mulher trabalhadora que enfrenta a rua carregando tabuleiro, fogareiro e a matéria

prima para a confecção dos pratos, ferramentas do seu trabalho quotidiano, necessárias às

solicitações mais elementares da família.

É verdade que as baianas jovens e belas também existem mas, geralmente, estas trabalham

em restaurantes típicos, em agências turísticas, vestidas como bonecas. Este protótipo de

“baiana” é também utilizado pelas agências de publicidade para vender seus produtos.

A “baiana de acarajé” das ruas da cidade do Salvador tornou-se personagem pública, real e

imaginária, uma mulher trabalhadora e uma escultura simbólica feita de versos rimados e de

lembranças saudosas, sobre um fundo permanente de precariedade social e econômica.

[1] - TAVARES Odorico, Bahia, Imagens da terra e do povo, Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1951, p. 131- 140.

[2] TAVARES Odorico, Bahia, imagens da terra e do povo, op. cit. p. 137. [3] - SCHEINOWITIZ, A.S., O macroplanejamento da aglomeração de Salvador, Salvador, Secretaria da Cultura e Turismo,

EGBA, 1998. [4] - PRANDI, Reginaldo. As religiões negras do Brasil, in Dossiê povo negro – 300 anos, Revista da USP , Coordenadoria de

Comunicação social, Universidade de São Paulo, N° 1 (mar./mai. 1989, p. 74. [5] - Jornal A Tarde, 16/07/1975 “Baiana do acarajé será cadastrada pela prefeitura. » [6] - Jornal A Tarde, 8/07/1977, « O que é que a « baiana » tem ?, texto de Marcos Luedy.. [7] - Lista dos principais « pontos », com o número de « baianas » em suas zonas específicas : Avenida Sete de Setembro, 15 ;

Amaralina : 14 ; Nazaré : 18 ; Baixa dos sapateiros : 17 ; Barroquinha : 27 ; Brotas : 16 ; Comércio :81 ; Estação

Rodoviária :12 ; Itapuã : 84 ; Praça da Sé : 17 ; Terreiro de Jesus : 11 ; Vila Olímpica : 10 [8] - Jornal A Tarde, 05/09/77. [9] - Jornal A Tarde, 31/07/1998. [10] - Dia da « baiana do acarajé » para estimular o turismo », Jornal A Tarde, 21/11/1982. [11] - “Baiana” tem paz de espírito e esperança, Jornal A Tarde, 26/11/83; Cidade homenageia baianas do acarajé com muito

samba, Correio da Bahia, 24/11/85 ; Dia de festa para as “baianas”, A Tarde, 25/11/89; Percussão afro dá ritmo à missa no dia

da baiana, Correio da Bahia, 26/11/1992; Profissão de fé – Baianas de acarajé fazem festa no Pelourinho, Correio da Bahia,

2/11/97; Hoje é dia da « baiana do acarajé » festejar, Jornal A Tarde, 25/11/97; Missa para homenagear as baianas revela

sincretismo, A Tarde, 26/11/98; [12] - Raimunda quer vender acarajé na praça - Acervo do Norte. Diário da Noite, São Paulo, 29/08/70; Baiana: em cada banca

um mistério, Raul Lody, Jornal Última Hora, Rio de Janeiro, 10/05/80; Algumas das « baianas » mais conhecidas de Salvador,

O Globo, 30/05/91. [13] Delicatessen invadida por baiana de acarajé, Jornal A Tarde, 04/02/96. [14] - Cira dá mais o que falar na briga entre as baianas., A Tarde, 17/11/98. [15] - Imperatriz do acarajé – Grife do dendê, Correio da Bahia, 29/03/96.

[16] - « Baianas concluem curso sobre noções de higiene » Jornal A Tarde, 11/04/92. Das 2.067

baianas cadastradas pela Federação do Culto Afro Brasileiro, 538 baianas inscreveram-se no

curso oferecido pela Secretaria de Saúde da Prefeitura do Salvador.

[17] - Entidade quer organizar « baianas” Jornal A Tarde, 16/10/98. [18] - Baiana de acarajé inova para vencer concorrência, Jornal A Tarde, 13/11/96. [19] - Reportagem publicada no Jornal A Tarde em 27/09/97, denunciando o marketing e as novas técnicas de comércio como

responsáveis pela descaracterização da « baiana do tabuleiro » tradicional.

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[20] - « Guerra do acarajé » na disputa de ponto no Largo de Santana, A Tarde, 16/10/98 ; Baiana vai à justiça para ficar no

Largo de Santana, A Tarde, 21/10/98 ; Regina mantém –tabuleiro próximo ao de Dinha no Largo de Santana, A Tarde,

22/10/98 ; Novela das baianas pode render novos capítulos, A Tarde, 24/10/98; Guerra das baianas esquenta, Correio da

Bahia, 24/10/98. [21] - Decreto acaba com a guerra do acarajé em Salvador, A Tarde, 25/11/98.

Artigo publicado originalmente em:

DAVID Maria Lenilda Carneiro (Leni David). A Baiana do acarajé : imagens do real e do

ideal, Revista da Biblioteca Mário de Andrade, v. 57, São Paulo, jan./dez., 1999, p. 147-

155.