105
5/20/2018 155368730LivroOUniverso-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/155368730-livro-o-universo 1/105  1 http://www.ifi.unicamp.br/~ghtc/Universo/ O UNIVERSO TEORIAS SOBRE SUA ORIGEM E EVOLUÇÃO INTRODUÇÃO A origem do universo é um tema que sempre interessou a toda a humanidade. Em todos os povos, em todas as épocas, surgiram muitas e muitas tentativas de compreender de onde veio tudo o que conhecemos. No passado, a religião e a mitologia eram as únicas fontes de conhecimento. Elas propunham uma certa visão de como um ou vários deuses produziram este mundo. Há mais de dois mil anos, surgiu o pensamento filosófico. Ele propôs novas idéias, modificando ou mesmo abandonando a tradição religiosa. Por fim, com o desenvolvimento da ciência, apareceu um outro modo de estudar a evolução do universo. Atualmente, a ciência predomina. É dessa ciência que muitos esperam obter a resposta às suas indagações sobre a origem do universo. Muitas vezes, lemos notícias em jornais e revistas apresentando pesquisas recentes sobre a formação do universo. Na tentativa de chamar a atenção para uma nova descoberta, os jornalistas às vezes exageram sua importância e publicam manchetes do tipo: "Acaba de ser provado que o universo começou de uma explosão". Mas foi provado, mesmo? As notícias, quase sempre, dão a impressão de que acabaram todos os mistérios, que não há mais dúvidas sobre o início e evolução do cosmo. Mas a verdade não é exatamente essa. Há dezenas de anos, os jornais repetem as mesmas manchetes, com notícias diferentes. Quem se der ao trabalho de consultar tudo o que  já se publicou sobre o assunto, verá que os meios de comunicação revelam sempre um enorme otimismo. O resultado de cada nova pesquisa é apresentado como se tivesse sido conseguida a solução final. Mas se a notícia de trinta anos atrás fosse correta, não poderiam ter surgido todas as notícias dos anos seguintes - até hoje - repetindo sempre que um certo cientista ou grupo de pesquisadores "acaba de provar" que o universo começou assim e assim. A ciência tem evoluído, isso é inegável. Durante o século XX, nossos conhecimentos aumentaram de um modo inconcebível. Entretanto, nem todos os problemas foram resolvidos. A ciência ainda não esclareceu a maior parte das dúvidas. As teorias sobre a origem do universo ainda devem sofrer muitas mudanças, no futuro. Por isso, ninguém deve esperar encontrar aqui a resposta final. A última palavra ainda não foi dita. A ciência não é o único modo de se estudar e tentar captar a realidade. O pensamento filosófico e religioso possuem também grande importância. As antigas indagações ressurgem sempre: será possível que esse universo tenha surgido sem uma intervenção divina? até que ponto a ciência e a religião se contradizem ou se completam? Ao longo da história da humanidade, desenrolou-se - e ainda se desenrola - um enorme esforço para descobrir de onde veio tudo aquilo que existe. É a história desse esforço que será descrita neste livro. Apenas sabendo todas as fases pelas quais já passou o pensamento humano, podemos tentar avaliar corretamente o estágio atual de nossos conhecimentos. Para isso, não podemos nos limitar apenas às investigações mais recentes, nem apenas à ciência. Devemos recuar a um passado distante, e acompanhar essa grandiosa aventura intelectual da humanidade: a tentativa de entender a origem do universo, a sua própria origem e o seu próprio significado. Em nossa viagem, encontraremos alguns dos maiores pensadores de toda a história. Muitas teorias são difíceis ou obscuras. É preciso um certo esforço para

155368730 Livro O Universo

Embed Size (px)

Citation preview

  • 5/20/2018 155368730 Livro O Universo

    1/105

    1

    http://www.ifi.unicamp.br/~ghtc/Universo/

    O UNIVERSOTEORIAS SOBRE SUA ORIGEM E EVOLUO

    INTRODUO

    A origem do universo um tema que sempre interessou a toda a humanidade.Em todos os povos, em todas as pocas, surgiram muitas e muitas tentativas decompreender de onde veio tudo o que conhecemos. No passado, a religio e amitologia eram as nicas fontes de conhecimento. Elas propunham uma certa viso decomo um ou vrios deuses produziram este mundo.

    H mais de dois mil anos, surgiu o pensamento filosfico. Ele props novasidias, modificando ou mesmo abandonando a tradio religiosa. Por fim, com odesenvolvimento da cincia, apareceu um outro modo de estudar a evoluo douniverso.

    Atualmente, a cincia predomina. dessa cincia que muitos esperam obter a

    resposta s suas indagaes sobre a origem do universo. Muitas vezes, lemosnotcias em jornais e revistas apresentando pesquisas recentes sobre a formao douniverso. Na tentativa de chamar a ateno para uma nova descoberta, os jornalistass vezes exageram sua importncia e publicam manchetes do tipo: "Acaba de serprovado que o universo comeou de uma exploso". Mas foi provado, mesmo?

    As notcias, quase sempre, do a impresso de que acabaram todos osmistrios, que no h mais dvidas sobre o incio e evoluo do cosmo. Mas averdade no exatamente essa. H dezenas de anos, os jornais repetem as mesmasmanchetes, com notcias diferentes. Quem se der ao trabalho de consultar tudo o quej se publicou sobre o assunto, ver que os meios de comunicao revelam sempreum enorme otimismo. O resultado de cada nova pesquisa apresentado como setivesse sido conseguida a soluo final. Mas se a notcia de trinta anos atrs fosse

    correta, no poderiam ter surgido todas as notcias dos anos seguintes - at hoje -repetindo sempre que um certo cientista ou grupo de pesquisadores "acaba de provar"que o universo comeou assim e assim.

    A cincia tem evoludo, isso inegvel. Durante o sculo XX, nossosconhecimentos aumentaram de um modo inconcebvel. Entretanto, nem todos osproblemas foram resolvidos. A cincia ainda no esclareceu a maior parte dasdvidas. As teorias sobre a origem do universo ainda devem sofrer muitas mudanas,no futuro. Por isso, ningum deve esperar encontrar aqui a resposta final. A ltimapalavra ainda no foi dita.

    A cincia no o nico modo de se estudar e tentar captar a realidade. Opensamento filosfico e religioso possuem tambm grande importncia. As antigasindagaes ressurgem sempre: ser possvel que esse universo tenha surgido semuma interveno divina? at que ponto a cincia e a religio se contradizem ou secompletam?

    Ao longo da histria da humanidade, desenrolou-se - e ainda se desenrola - umenorme esforo para descobrir de onde veio tudo aquilo que existe. a histria desseesforo que ser descrita neste livro. Apenas sabendo todas as fases pelas quais jpassou o pensamento humano, podemos tentar avaliar corretamente o estgio atualde nossos conhecimentos. Para isso, no podemos nos limitar apenas sinvestigaes mais recentes, nem apenas cincia. Devemos recuar a um passadodistante, e acompanhar essa grandiosa aventura intelectual da humanidade: atentativa de entender a origem do universo, a sua prpria origem e o seu prpriosignificado.

    Em nossa viagem, encontraremos alguns dos maiores pensadores de toda ahistria. Muitas teorias so difceis ou obscuras. preciso um certo esforo para

  • 5/20/2018 155368730 Livro O Universo

    2/105

    2

    entend-las. Mas vale pena esse esforo de elevar-se e poder dialogar com algunsdos maiores gnios da humanidade.

    Nossa viagem pela histria do pensamento humano nos mostrou muitastentativas realizadas para se compreender a origem de nosso universo. Essa buscaexistiu em todas as civilizaes, em todos os tempos. Mas a forma de buscar essaexplicao variou muito. O mito, a filosofia, a religio e a cincia procuraram dar umaresposta s questes fundamentais: O universo existiu sempre, ou teve umincio? Se ele teve um incio, o que havia antes? Por que o universo como ?Ele vai ter um fim?

    Nosso conhecimento moderno sobre o universo est muito distantedaquilo que era explicado pelos mitos e pela religio. Nenhum mito ou religiodescreveu o surgimento do sistema solar, do Sol, das galxias ou da prpria matria.Esperaramos da cincia uma resposta s nossas dvidas, mas ela tambm no temas respostas finais.

    Por que no desistimos, simplesmente, de conhecer o incio de tudo? Queimportncia pode ter alguma coisa que talvez tenha ocorrido h 20 bilhes deanos?

    A presena universal de uma preocupao com a origem do universomostra que esse um elemento importante do pensamento humano. Possuiralguma concepo sobre o universo parece ser importante para que possamosnos situar no mundo, compreender nosso papel nele. Em certo sentido, somos ummicrocosmo. O astrnomo James Jeans explicava o interesse dos cientistas porcoisas to distantes de nossa vida diria, da seguinte maneira:

    Ele quer explorar o universo, tanto no espao quanto no tempo, porque eleprprio faz parte do universo, e o universo faz parte do homem.

    Essa busca de uma compreenso do universo e do prprio homem ainda noterminou. De uma forma ou de outra, todos participamos dessa mesma procura.Uma procura que tem acompanhado e que ainda dever continuar a acompanhartodos os passos da humanidade.

    CAPTULO 1 - A ORIGEM DO UNIVERSO NA MITOLOGIA E NA RELIGIO

    1.1 UM MITO INDGENA DO BRASILDe onde veio este mundo? Como ele surgiu? De onde vieram os homens?

    Qual o significado de tudo isso que existe? Em todos os tempos e em todas ascivilizaes, essas foram perguntas que sempre inquietaram a humanidade e quereceberam diferentes tipos de respostas.

    Uma lenda indgena nheengatu, da Amaznia, assim conta a origem domundo:

    No princpio, contam, havia s gua, cu.Tudo era vazio, tudo noite grande

    Um dia, contam, Tupana desceu de cima no meio de vento grande,quando j queria encostar na gua saiu do fundo uma terra pequena, pisounela.Nesse momento Sol apareceu no tronco do cu, Tupana olhou para ele.Quando Sol chegou no meio do cu seu calor rachou a pele de Tupana, a pelede Tupana comeou logo a escorregar pelas pernas dele abaixo. Quando Solia desaparecer para o outro lado do cu a pele de Tupana caiu do corpo dele,estendeu-se por cima da gua para j ficar terra grande.No outro Sol [no dia seguinte] j havia terra, ainda no havia gente.Quando Sol chegou no meio do cu Tupana pegou em uma mo cheia deterra, amassou-a bem, depois fez uma figura de gente, soprou-lhe no nariz,

    deixou no cho. Essa figura de gente comeou a engatinhar, no comia, nochorava, rolava toa pelo cho. Ela foi crescendo, ficou grande como Tupana,ainda no sabia falar.

  • 5/20/2018 155368730 Livro O Universo

    3/105

    3

    Tupana, ao v-lo j grande, soprou fumaa dentro da boca dele, entocomeou j querendo falar. No outro dia Tupana soprou tambm na boca dele,ento, contam, ele falou. Ele falou assim:

    - Como tudo bonito para mim ! Aqui est gua com que hei de esfriarminha sede. Ali est fogo do cu com que hei de aquecer meu corpo quandoele estiver frio. Eu hei de brincar com gua, hei de correr por cima da terra;como o fogo do cu est no alto, hei de falar com ele aqui de baixo.

    Tupana, contam, estava junto dele, ele no viu Tupana.

    Essa lenda indgena mostra um tipo de explicao para a origem do mundo edo prprio homem. As explicaes mais antigas, como essa, eram mitos: histriasque descreviam como um ou vrios personagens sobrenaturais (deuses ou outrosseres) fizeram o mundo primitivo, criaram os animais, as plantas, os homens eestabeleceram os costumes, as leis, a estrutura da sociedade. A lenda nheengatuindicada acima um mito de origem do mundo, pois tenta descrever esse incio comoo resultado da ao de Tupana, um ser sobrenatural.

    Esses mitos esto sempre associados a uma viso religiosa: os seres

    sobrenaturais descritos nos mitos devem ser respeitados e e obedecidos; dependendoda religio, devem ser feitos cultos dedicados a esses deuses que produziram ouniverso e o homem.

    O mito nheengatu citado acima muito mais longo do que o trecho que foiapresentado. Ele explica como surgiram as plantas, os animais, e tudo o que temimportncia para a vida na natureza. Diz tambm como surgiu o erro, fala sobre adesobedincia do primeiro homem e descreve como teria ocorrido a destruio domundo por uma espcie de inundao ou dilvio.

    1.2 A ORIGEM BBLICA DO UNIVERSO

    Essa descrio tem grande semelhana com a origem do universo descrita no

    Genesis o incio da Bblia judaica. Nos dois casos, existe um incio de trevas,existem certas guas primitivas, existe uma divindade invisvel que vai formandotodas as coisas, e que ir formar o homem a partir do barro, soprando sobre ele paralhe dar a vida. Embora o Genesis seja bem conhecido, vamos relembrar o seu incio:

    No princpio, Deus criou o cu e a terra.E a terra era informe e vazia, e havia trevas sobre a face do abismo; e oesprito de Deus se movia sobre as guas.E disse Deus: que seja feita a luz. E a luz se fez.E Deus viu que a luz era boa. E separou a luz das trevas.Chamou a luz de Dia, e as trevas de Noite. E fez-se a tarde e a manh do diaum.E disse tambm Deus: seja feito o firmamento em meio s guas, e divida asguas das guas.E Deus fez o firmamento, dividindo as guas que estavam sob o firmamento eas que estavam sobre o firmamento. E isso se fez assim.E Deus deu ao firmamento o nome de Cu. E fez-se a tarde e a manh dosegundo dia.Deus disse: reunam-se as guas que esto sob o cu, em um lugar, e queaparea o seco. E isso se fez assim.E Deus chamou o seco de Terra, e denominou a reunio das guas de Mar. EDeus viu que era bom.

    Depois, nos dias seguintes, Deus produz as plantas, os astros, os

    animais, das guas e da terra e, por fim, o homem:E disse: Faamos o homem a nossa imagem e semelhana; e que ele presidaos peixes dos mares, os que voam no cu, as feras de toda a terra, e todos os

  • 5/20/2018 155368730 Livro O Universo

    4/105

    4

    rpteis que se movem na terra.E Deus criou o homem sua imagem; pela imagem de Deus o criou; criou-omacho e fmea.E Deus os abenoou, e disse: Crescei e multiplicai-vos, e enchei a terra, esujeitai e dominai os peixes dos mares, e os pssaros dos cus, e sobre todosos animais que se movem sobre a terra.No stimo dia Deus terminou a obra que havia feito; e repousou no stimo dia,de todas as obras que produziu.

    Nesse mito bblico da criao, existe apenas uma divindade, que produz todasas coisas. Nada surge por si prprio: parecem no existir foras ativas da matria. necessria a deciso e o poder de um deus para que tudo possa surgir.

    1.3 O MITO BABILNICO DA CRIAO

    Em outras culturas, podem existir diversos deuses que participam da produodo universo, e o incio pode envolver lutas e violncia. O mais antigo mito conhecido

    sobre a origem de tudo o Enuma elis, um mito babilnico que parece ter sidoelaborado cerca de 4.000 anos atrs. Ele comea falando sobre uma unidadeprimitiva, uma mistura de guas, anterior a todos os deuses:

    Quando no alto o cu [Anshar] ainda no tinha sido nomeadoe em baixo a terra [Kishar] ainda no tinha nome,nada existia seno uma mistura das guas de Apsu, o oceanoprimordial, o gerador,e da tumultuosa Mummu-Tiamat, a gua doce, a me de todos.Ento as trevas eram profundas,um tufo movia-se sem repouso.Ento nenhum deus havia sido criado.

    Nenhum nome havia sido nomeado,nenhum destino havia sido fixado.

    Nesse mito babilnico, vo surgindo gradativamente diversos deuses. Naverdade, h uma enorme variedade de deuses e de mitos, na tradio babilnica, poiscada regio e cidade tinha seu prprio deus protetor e seus prprios mitos. O maisimportante, para o tema aqui discutido, Marduk, filho de Ea, o deus das guas doces(rios, lagos).

    Marduk associado s tempestades e aos raios, e suas armas so o arco e aflecha. Ele tambm descrito como um grande mago, capaz de fazer com que ascoisas apaream e desapaream. Por isso, ele escolhido pelos outros deuses comoseu lder, para livr-los do poder de Tiamat. Marduk luta contra Tiamat, a deusa dasguas e das trevas, que representada s vezes por um drago. Ele a mata e cortaem dois pedaos. O pedao de cima se torna o cu, e o de baixo se torna a terra. Anuse torna o deus celeste, e Enlil se torna a deusa da terra.

    aps a destruio de Tiamat que surgem os astros luminosos. Algumasvezes a criao das estrelas descrita como sendo realizada por Marduk, outrasvezes como realizada pelos deuses das vrias regies em que o universo ficoudividido:

    No tempo em que Anu, Enlil e a, os grandes deuses,criaram o cu e a terra,

    eles quiseram tornar visveis os signos,fixaram as estaes e estabeleceram a posio dos astros,deram nomes s estrelas e lhes atriburam as trajetrias,

  • 5/20/2018 155368730 Livro O Universo

    5/105

    5

    desenharam, sua prpria imagem, as estrelas em constelaes,mediram a durao do dia e da noitecriaram o ms e o anotraaram a rota da Lua e do Sol.Assim, eles tomaram suas decises sobre o cu e a terra....Eles confiaram aos grandes deusesa produo do dia e a renovao do ms, para as observaes astrolgicas dos homens.Viu-se ento o Sol se levantare os astros brilharem para sempre em pleno cu.

    O mito descreve tambm as outras fases de criao do universo, at aproduo dos homens. Segundo uma verso, Marduk aconselhado por seu pai Ea acriar os homens com a finalidade de adorarem os deuses. Marduk, ento, mata umdrago (Kingu) e faz os homens a partir de seu sangue. Em outra verso, a deusaAruru que faz os homens a partir da argila.

    interessante notar as semelhanas e diferenas entre os diversos mitos decriao. H aspectos que se repetem em culturas muito diferentes, como a produodos homens a partir do barro ou argila; e outros que parecem originais.

    Na Babilnia, a astrologia era de enorme importncia. Acreditava-se que osastros dirigiam a vida das pessoas e todos os acontecimentos da Terra. Por isso, osplanetas e estrelas so considerados como elementos centrais, no mito de criao.Eles so to importantes, que as constelaes recebem formas que representam aimagem dos prprios deuses. Pelo contrrio, no mito da Bblia, o centro de tudo ohomem. No se menciona a astrologia, e o homem criado como uma imagem divina.Nos dois casos, esse um aspecto estranho do mito: em que sentido os deusespossuem uma forma?

    Outro aspecto muito interessante que, nesses mitos, os deuses vo

    estruturando o universo, produzindo suas partes, e tambm lhes do nomes eestabelecem as leis que devem ser obedecidas por todos os fenmenos. No incio, dizo Enuma elis, nada tinha nome. O Genesis no afirma isso diretamente, mas indicaque Deus d o nome ao dia e noite, ao cu e terra, etc. Dar um nome significa,nas mitologias, tornar real, concreto, definido, controlvel. Aquilo que no tem nome o que desconhecido, impalpvel, obscuro, indefinido e assustador.

    O mito babilnico diz que no incio nada tinha nome e que nenhum destinohavia sido traado: ou seja, no existiam regras ou leis que permitissem dizer o quedeveria ocorrer no futuro. No entanto, quando os deuses criam os planetas, elesdeterminam suas trajetrias, isso , estabelecem como eles devem se mover. Soassim criadas aquilo que podemos chamar de leis da natureza. Da mesma forma, noGenesis, Deus estabelece que as plantas, os animais e os homens devem semultiplicar e produzir outros iguais a eles prprios, segundo sua espcie. Asdivindades, assim, vo dando ordens, isto , vo ordenando o universo. Oestabelecimento de uma organizao, de uma ordem, um aspecto essencial de todomito de origem do universo os chamados mitos cosmognicos.

    Normalmente, os mitos cosmognicos pressupem que j existe alguma coisa,desde o incio. Ao invs de criar tudo a partir do nada, uma divindade modifica essacoisa original, dividindo-a e produzindo outras. comum o aparecimento de umaespcie de gua primordial, ou escurido (trevas, noite) como ponto de partida, comonos mitos indicados acima. Ao invs de um criador, a divindade , ento, um tipo dearteso que vai estruturar o universo.

    1.4 AS SEMELHANAS ENTRE OS MITOS DE DIFERENTES POVOS

  • 5/20/2018 155368730 Livro O Universo

    6/105

    6

    impossvel descrever a mitologia de todos os povos. No entanto, estudos jrealizados mostram que muitos temas e idias bsicas se repetem. Em alguns casos,a tradio de um povo pode ter sido passada a um outro povo. Afinal, os babilnicos,os egpcios, os gregos e outros povos da Antigidade viviam prximos e possuamrelaes comerciais e culturais muito fortes. O mais estranho, no entanto, quemesmo os povos das Amricas, da frica ou da Austrlia, que no parecem ter tidoligao com as culturas da Europa e da sia antiga, tambm desenvolveram mitos quepossuem muitas semelhanas com aqueles. Como explicar isso?

    Em alguns casos, pode-se pensar em uma tradio comum, muito antiga.Assim, a mitologia grega e a indiana, por exemplo, possuem vrias semelhanas queso atribudas a uma cultura indo-europia primitiva, de onde teriam sado tanto osgregos quanto os indianos. Os estudos lingsticos, no sculo passado, mostraramque os idiomas de muitos povos europeus e asiticos possuem semelhanas tograndes que deve-se supor que saram todos de um s idioma comum; da mesmaforma, isso deve ter acontecido com muitos outros elementos culturais e religiosos.Mas no se pode aplicar a mesma idia ao mundo todo. Os idiomas africanos ou dosndios americanos, por exemplo, no possuem semelhana com os idiomas indo-

    europeus. quase impossvel se pensar em explicar por uma origem histrica comumas semelhanas entre mitos dos ndios brasileiros, dos judeus e de povos da Austrlia.O psiclogo Carl Jung props uma explicao para essas semelhanas. Ele

    sups que o inconsciente de cada pessoa tem dois tipos de componentes: por umlado, lembranas pessoais de sua prpria vida e, por outro lado, imagens impessoais,uma espcie de memria da raa humana, herdada por cada pessoa ao nascer.

    Esses dois tipos de inconscientes o inconsciente pessoal e o inconscientecoletivo poderiam se manifestar na produo de sonhos. Alguns sonhos possuemcarter pessoal e podem ser compreendidos pela lembrana de acontecimentosrecentes ocorridos com a prpria pessoa. Mas outros sonhos apresentam imagensimpessoais e estranhas, que a prpria pessoa no consegue associar com nada quelhe conhecido. Esses sonhos viriam do inconsciente coletivo, uma espcie de

    depsito de imagens e smbolos, comuns a todos os seres humanos. Esses smbolos,que Jung chama de arqutipos, seriam tambm a fonte de onde seriam tirados todosos mitos. Isso explicaria as semelhanas entre mitos de civilizaes totalmentedistintas e sem ligao histrica conhecida.

    interessante comparar a concepo de Jung prpria idia dos criadores demitos como o poeta grego Hesodo, do qual ainda falaremos mais adiante. Na suaobra Teogonia, em que descreve a origem dos deuses e do universo, Hesodo serefere deusa Mnemsine. Ela uma personificao da memria ou da lembrana,mas no representa a memria individual ou pessoal, e sim o conhecimento universal.Ela a me das nove Musas, que so as que inspiram todos os poetas. As musaspodem dizer mentiras, mas sabem dizer a verdade. Elas conhecem no s o passadomas tambm o futuro. E a elas que Hesodo invoca:

    Saudao, filhas de Zeus! Dai-me vosso canto que arrebata! Celebrai a raasagrada dos imortais que vivem sempre, e que nasceram da Terra e do Cuestrelado, e da tenebrosa Noite e do Mar amargo.Dizei como nasceram os deuses e a Terra, e os Rios, e o imenso Mar que rugefurioso, e os astros resplandecentes, e, acima, o grande Cu, e os deuses,fonte dos bens que deles nasceram; e como, tendo partilhado as honras eriquezas desde a origem, eles tomaram o Olimpo de muitos picos.Dizei-me essas coisas, Musas das moradas do Olimpo, e quais foram, noincio, as primeiras dentre elas.

    Em sua descrio, portanto, Hesodo no atribui nem a si prprio nem tradio o conhecimento dos mitos que apresenta. Eles estariam sendo transmitidospelas Musas, filhas da Memria eterna, que sabe o passado e o futuro. Assim, o

  • 5/20/2018 155368730 Livro O Universo

    7/105

    7

    conhecimento dos mitos estaria em uma fonte impessoal, de onde fluem essessmbolos captados pelo poeta. H grande semelhana entre essa descrio deHesodo e a concepo de Jung.

    Aceitemos ou no a idia de um inconsciente coletivo ou de uma memriaimpessoal, o fato que os mitos no so produes arbitrrias da imaginaohumana, pois nesse caso no encontraramos tantas semelhanas entre povos todiferentes.

    1.5 A IMPORTNCIA DOS MITOS SUA UTILIDADE

    As concepes sobre a origem do universo no eram consideradas apenascomo a satisfao de uma curiosidade intelectual. Elas possuam tambm umautilidade prtica, na vida das pessoas.

    Na Polinsia, por exemplo, utilizava-se o mito cosmognico para curardoenas, para dar fertilidade s mulheres estreis e para outras finalidades.

    Segundo um mito cosmognico polinsio, s existiam inicialmente as guas eas Trevas. O deus supremo, Io, separou as guas pelo poder de seu pensamento e

    criou o Cu e a Terra. Ele disse: Que as guas se separem, que os Cus se formem,que a Terra exista! Essas palavras de Io, com as quais ele criou o mundo, sodotadas de um grande poder sagrado e podem ser repetidas pelos homens emsituaes especiais, quando necessrio criar alguma coisa. Os polinsiosacreditavam que, repetindo essas palavras, era possvel dar fertilidade a uma mulherestril, ou dar foras a uma pessoa doente e velha. Pois se as palavras do deus Ioforam capazes de dar luz e foras ao universo todo, elas tambm podem iluminar,alegrar e dar foras a uma pessoa.

    O mito serve, assim, para recriar um estado original perfeito, a partir de umasituao de degradao ou decadncia. O mito de origem do universo serve comomodelo para a criao, renovao ou revitalizao de qualquer coisa.

    O uso do mito cosmognico muito amplo e variado. Em certos povos,

    recitado quando nasce cada criana, pois o nascimento a recriao da vida. Emoutros, cantado durante todo o perodo de gravidez de uma rainha, pois estocorrendo a criao de um novo soberano, que representa um reincio do mundosocial. Muitas vezes, o mito da origem do universo recitado quando um rei sobe aotrono. Sua recitao tambm acompanha a construo de templos e de casasespeciais, sagradas, que representam simbolicamente toda a estrutura do universo.

    A repetio do mito, em meio a um ritual adequado, renova a natureza, d-lhenovas foras, pois a leva perfeio do incio. Essa idia sempre acompanhada pelaconcepo de que o incio mais perfeito do que aquilo que veio depois. Quanto maisuma coisa se afasta da origem, mais decadente ela fica. Para lev-la a se revigorar, necessrio retornar ao princpio, origem. Isso feito pelo ritual e pela recitao ereproduo do mito.

    1.6 A RENOVAO DO UNIVERSO NAS FESTAS DE ANO NOVO

    A crena de que possvel revigorar o mundo atravs da repetio do mito deorigem do universo est por trs de inmeras festas anuais, muito antigas.

    Um ano um perodo de tempo no qual todos os grandes fenmenosastronmicos, climticos e biolgicos se repetem. Para quem vive nas cidades, esseciclo pouco observvel; mas, para quem vive no campo ou tem maior contato com anatureza, esse ciclo muito visvel e de grande importncia. Cada ano, com suaseqncia de estaes, representa um ciclo do universo, com um incio e um fim.

    O incio do ciclo anual pode ser colocado em diferentes pocas do ano,

    dependendo daquilo que mais importante para um determinado povo. O nosso atualAno novo, no dia 1 de janeiro, uma conveno sem grande importncia. Mas naBabilnia, por exemplo, o incio de cada novo ano era de enorme importncia religiosa.

  • 5/20/2018 155368730 Livro O Universo

    8/105

    8

    A celebrao do Ano Novo ocorria na primavera, quando toda a natureza parecianascer novamente. A festa durava uma semana, e era precedida pela limpeza,purificao e restaurao dos templos, pois tudo devia estar novo, como no princpiode tudo. A festa inclua uma repetio ritual de todo o mito de origem do universo, poisera como se tudo estivesse comeando de novo.

    Durante o Ano Novo babilnico, o prprio rei precisava ter o seu poderrenovado. Para isso, o sacerdote supremo arrancava do rei todos os seus smbolosreais e o esmurrava no queixo, fazendo-o ajoelhar-se diante da esttua do deusMarduk. O rei precisava ento orar e garantir que no havia cometido nenhum erro eque havia governado corretamente. Ento o sacerdote lhe dizia que Marduk aceitava eera favorvel ao rei; devolvia-lhe os smbolos reais e lhe dava um novo murro noqueixo. Se isso fazia os olhos do rei se encherem de lgrimas, era um bom sinal:significava que o deus Marduk era amigvel. Caso contrrio, indicava que ele estavabravo.

    Cada povo, como foi dito, escolhia com cuidado a data correspondente ao fimde um ano e incio do outro. Essa data tem, em geral, um significado astronmico bemdefinido. Em grande nmero de casos, coincide com os momentos denominados

    solstcios de vero e de inverno. Os solstcios so os momentos nos quais o Sol,visto da Terra, est mais ao Norte ou mais ao Sul. Pelo calendrio atual,correspondem aos dias 22 ou 23 de junho e 22 ou 23 de dezembro. Para quem viveno hemisfrio Sul, o solstcio de inverno (22 ou 23 de junho) quando ocorre o diamais curto e a noite mais longa do ano. Pelo contrrio, no solstcio de vero (22 ou 23de dezembro) ocorre o dia mais longo e a noite mais curta do ano.

    No inverno, a luz do Sol atinge a Terra de forma mais fraca, obliquamente. Nodia do solstcio, sua fora atinge o mnimo, o tempo frio, a noite longa. Nesse dia,muitos povos realizam rituais, destinados a inverter a marcha do Sol e a trazer de voltasua luz e seu calor, para que a Terra adquira novamente fora e vida. Terminou umciclo: que comece um outro. Mas esse comeo de um novo ciclo depende dacooperao dos homens. preciso recriar o mundo, atravs de rituais que

    reproduzam, de forma simblica, o incio do universo.Os antigos rituais realizados nos dias de solstcio eram variados, maspossuam vrios elementos quase universais. Eram festas realizadas nas aldeias,tendo mantido antigas tradies, de forma quase independente das mudanas sociaise religiosas que ocorriam nas cidades. Por isso, foram chamadas de festas pags: apalavra pago vem do latim pagus, que significa aldeia.

    De um modo geral, essas festas eram realizadas em torno do fogo seja ofogo pblico, formado por grandes fogueiras, ou o fogo domstico (lareiras, porexemplo, nos pases frios). O fogo desses dias especial: aceso solenemente, esupe-se que ele tem poderes mgicos.

    Na noite de solstcio, as fogueiras eram acesas no alto das montanhas ou emoutros locais especiais como encruzilhadas. Muitas vezes, eram acesas atravs deprocessos pouco comuns: pelo atrito de dois bastes, ou atravs de fagulhas de umapederneira que nunca tivesse sido usada. Freqentemente, o homem que havia secasado mais recentemente era quem devia acender o fogo.

    Os camponeses acendiam tochas na fogueira e corriam com elas peloscampos, com o objetivo de espantar pragas, doenas e maus espritos, bem comoaumentar a fertilidade do solo. Batiam com as tochas nas rvores e no cho, gritandoe dizendo frases mgicas. Os jovens saltavam trs vezes sobre as fogueiras e,quando o fogo estava mais fraco, passavam sobre ele as crianas e os animaisdomsticos como as vacas e os cavalos para dar-lhes sade. Os jovens quesaltavam mais alto sobre o fogo eram os que se casariam primeiro, durante o ano. E aaltura do salto dos jovens indicava a altura qual cresceriam os cereais e o feno, nos

    campos, no ano seguinte. Nessa noite, algumas pessoas passavam descalas sobreas brasas da fogueira, ou colocavam brasas na boca, sem se queimar.

  • 5/20/2018 155368730 Livro O Universo

    9/105

    9

    As cinzas e as madeiras remanescentes da fogueira eram consideradas degrande valor mgico. Essas cinzas eram espalhadas pelo campo, para aumentar afertilidade do solo e proteger as plantaes. Os ties eram guardados dentro de cadacasa, para proteger de incndios, de raios e de bruxaria. Durante tempestades,acendia-se dentro de casa esses ties, para que protegessem a todos. Nasplantaes, eles protegiam tambm contra encantamentos de feiticeiras, e contra ogranizo.

    O fogo aceso durante a festa do solstcio era um fogo novo, mais forte,vigoroso, do que os outros. Por isso, em muitos lugares da China at a frica eracostume apagar todos os fogos mantidos nas casas, antes da festa, levando depois onovo fogo, da fogueira para casa, onde devia se manter aceso durante todo o ano.

    As noites de solstcio so mgicas e nelas possvel adivinhar-se ou modificar-se o futuro. Sendo o incio de um novo ciclo, essas noites so consideradas umaespcie de miniatura do ciclo inteiro. Por isso, nessa noite, as moas fazemadivinhaes para saberem com quem vo se casar ou como vai ser seu futuro; olavrador faz adivinhaes para saber como vo ser as chuvas e as colheitas do anotodo. Quebrando-se um ovo e derramando a clara em uma taa ou copo, a forma

    adquirida pela clara podia indicar aquilo que se queria saber por exemplo, quemseria o marido de uma jovem.A gua tambm adquiria propriedades especiais, no solstcio, a partir da meia-

    noite. Costumava-se recolher gua de poos ou fontes, nesse horrio, e guard-lapara necessidades especiais. Aps a meia-noite ou pouco antes do nascer do diaseguinte, tambm era costume que as pessoas se banhassem nos rios ou no mar, oupelo menos rolassem, nuas, sobre a relva orvalhada. Isso era considerado benficopara a sade da pessoa, simbolizando um novo nascimento.

    Nascimento e morte so inseparveis: os camponeses sempre acreditaramque as sementes plantadas na terra precisam morrer, apodrecer e depois adquirem daterra uma nova vida, e germinam. Quando esto no solo, so guardadas pelo espritodos familiares mortos. Na festa de solstcios, esses mortos esto presentes: em muitos

    lugares, eram colocados assentos especiais para que seus espritos se assentassem eassistissem festa.Atravs dessas festas, as pessoas vivenciavam a mudana do ano: o fim de

    um perodo o incio do outro, com todas as suas expectativas, com todo o seupotencial mgico. Comear um novo ano no era apenas recomear a contagem dosdias e meses.

    Isso tudo pode parecer estranho e extico, para ns. Mas aqui, no Brasil, essesantigos costumes ainda existem, principalmente no interior, nas festas de So Joo.A noite de So Joo corresponde exatamente ao solstcio de inverno, no hemisfrioSul. Os estudiosos do folclore brasileiro, como Cmara Cascudo, estudaramdetalhadamente essa festa e mostraram que os costumes e supersties da festa deSo Joo so milenares. Embora o povo do interior do Brasil no saiba qual a origemdessa festa, ela um ritual de repetio do nascimento do mundo.

    1.7 A NATUREZA DOS MITOS

    Os mitos no so vistos como lendas, como simples estrias, pelos que osrespeitam. So considerados como histrias verdadeiras, ocorridas em um tempoprimordial, envolvendo seres sobrenaturais que produzem uma nova realidade. Essesmitos servem para explicar o mundo, mas no de um modo racional. O mitoproporciona imagens, ele traz emoes. Ele sentido e vivido por quem o ouve, porquem o v representado e por quem o revive por meio dos rituais.

    Vemos um mundo nossa volta: casas, pessoas, cidades, rios, rvores, o Sol,

    etc. O que tudo isso? O objetivo do conhecimento mtico compreender o universo,situar-se nesse contexto, saber de onde saram as coisas e os homens, como se

  • 5/20/2018 155368730 Livro O Universo

    10/105

    10

    estruturou a sociedade. Trata-se de entender o passado para entender a si prprio,como parte do universo, atravs do mito.

    Ao compreender as coisas, a pessoa aprende os segredos que lhe permitematuar de forma mgica sobre o mundo. Conhecendo a origem da vida, possvel curaros doentes. Conhecendo a origem do fogo, possvel caminhar sobre ele ou seguraruma brasa na mo sem se queimar. Mas no s isso: possvel agir corretamente,sabendo seu papel no mundo; possvel participar do drama csmico, de acrdo comaquilo que foi estabelecido pelos deuses na origem de tudo.

    O ritual repete aquilo que os deuses fizeram no tempo primordial. Essarepetio mais do que uma comemorao ou uma imitao. Ao repetir um ritual, apessoa se identifica com o deus, e o tempo primordial recriado. O ritual poderosoporque ele a repetio exata e vlida daquilo que foi feito pelos deuses e que refaz erecria o momento primordial. Na nossa tradio, h um exemplo bem conhecido: amissa da Igreja Catlica, na qual, durante a celebrao, o sacerdote se torna Cristo, ovinho se torna o sangue e o po se torna o corpo de Cristo.

    Participar do ritual e reviver o mito significa sair do tempo e do mundo profano,decadente, para retornar e reviver no mundo do tempo primordial. uma experincia

    essencialmente religiosa.Com o passar do tempo, em muitas civilizaes, houve um enfraquecimento domito e da religio, surgindo em seu lugar o pensamento filosfico. Mas nem sempre afilosofia se desprendeu totalmente da religio e do mito. Muitas vezes, o pensamentofilosfico uma reflexo e desenvolvimento de mitos mais antigos. isso que serestudado nos prximos captulos

    CAPTULO 2 - O MITO FILOSFICO NA GRCIA E NA NDIA

    2.1 A ANTIGA VISO DE MUNDO DOS GREGOS

    Os mitos e a religio so fenmenos universais: surgiram em todos os lugares,

    em todos os povos. A filosofia, pelo contrrio, algo mais restrito. Em alguns poucoslugares do mundo, como a Grcia e a ndia, apareceu gradualmente um pensamentofilosfico que procurou dar uma explicao para o mundo sem utilizar mitos. Mas issono aconteceu de repente, nem houve um abandono total das concepes mitolgicase religiosas. Muitas vezes, elas foram aproveitadas pelos filsofos. Por isso, precisopartir dos prprios mitos, para entender o surgimento da filosofia.

    A mitologia grega foi de grande importncia e influenciou muito toda a culturaocidental. Os textos mais antigos que conservam informaes sobre a mitologia gregaso as obras atribudas a Homero (Ilada e Odissia), compostas aproximadamentenos sculos IX ou VIII antes da era crist; e as obras de Hesodo, do final do sculoVIII antes de Cristo.

    A antiga viso de mundo dos gregos era de que a Terra (a deusa Gaia ouGia) era uma superfcie redonda, plana (a menos de suas irregularidades, como asmontanhas), semelhante a um prato ou disco. O Cu (o deus Ouranos ou Urano) seriaa metade de uma esfera oca, colocada sobre a Terra. Entre a Terra e o Cu existiriamduas regies: a primeira, mais baixa, que vai da superfcie do solo at as nuvens, seriaa regio do Ar e das brumas. A segunda seria o ar superior e brilhante, azul, que visto durante o dia, e que era chamado de ter. Embaixo da Terra, existiria uma regiosem luz, o Trtaro. Em volta do Trtaro, existiriam trs camadas da Noite (Nyx). ANoite considerada como uma deusa assustadora, a quem todos os deusesrespeitam. Em algumas descries posteriores, a Noite tem grande importncia, sendoconsiderada como anterior maioria dos deuses.

    A Terra conteria todas as regies secas que eram conhecidas (Europa, sia e

    frica). Todas elas seriam cercadas por uma espcie de rio circular, o Oceano, que iriaat a borda onde o Cu e a Terra se encontram. O Oceano descrito como a fonte eorigem de todos os rios e mares. Homero chega a descrev-lo com a origem de todas

  • 5/20/2018 155368730 Livro O Universo

    11/105

    11

    as coisas e dos prprios deuses, o que se assemelha ao mito babilnico j descrito nocaptulo anterior.

    Essa viso da estrutura do mundo muito diferente de nossa idia atual. Masela no absurda. Ns, atualmente, aprendemos que a Terra redonda, e vemosdesenhos e fotografias mostrando a sua forma. Mas se ningum nos tivesse dito queela uma bola, como poderamos saber isso?

    Quando uma pessoa olha para o cu, ou olha sua volta, ela v exatamenteaquilo que os antigos gregos descreviam. Quando se sobe no alto das montanhas, v-se o cu como se fosse uma cobertura redonda; e v-se a Terra estendendo-se portodos os lados, parecendo um grande disco ou prato (a menos das irregularidades deseu relevo). Os limites do mundo conhecido eram os mares, existentes por todos oslados das terras. Era perfeitamente aceitvel que o Oceano cercasse toda a Terra.Devemos respeitar essas concepes, e no ridiculariz-las. Elas mostram umatentativa de compreender o universo e de sistematizar aquilo que era observado.

    2.2 A TEOGONIA DE HESODO

    Existem descries cosmognicas que so intermedirias entre os mitospropriamente ditos e as concepes filosficas sobre a origem do universo. Tal ocaso da Teogonia de Hesodo. O ttulo desse poema quer dizer: a origem dosdeuses. Embora se possa imaginar que ele est apenas apresentando um mito sobreos deuses, h muito nessa descrio que claramente simblico e que deve serinterpretado como uma alegoria de idias de tipo filosfico.

    Realmente, antes de tudo existiu Khos [Caos],depois Gaia [Terra] de amplo seio,sede sempre firme de todas as coisas,e o Tartaros enevoado nas profundezas da Terra espaosa,e depois Eros [Desejo], o mais belo dos deuses imortais,que rompe todas as foras,

    e que doma a inteligncia e a sabedoria no peitode todos os deuses e de todos os homens.

    O incio de tudo, segundo Hesodo, o Caos. Mas o que representa essapalavra? Na linguagem atual, caos significa confuso, desordem. Mas esse no osignificado primitivo desse termo. Khos Caos, vem do termo grego khnein, abrir-se, entreabrir-se. Significa uma abertura, uma fenda, um abismo. Associa-se ao Caosa presena de escurido e de ventos ou tempestades. Pode ser entendido como umespao vazio, ou algo indefinido, anterior a todas as coisas. Alguns autores ointerpretam como uma primeira diviso ou separao mas diviso de que? Naverdade, muito j se escreveu sobre o Caos de Hesodo, mas sem se chegar a umaconcluso definitiva, aceita por todos.

    Mais tarde, a palavra Caos foi interpretada no sentido de uma matriaprimitiva, em que todos os elementos estavam misturados entre si.

    Segundo Hesodo, os primeiros filhos do Caos so: a Terra; aquilo que estabaixo dela, o Tartaros; e o desejo, Eros. Tartaros considerado como o local maisprofundo na Terra, abaixo do prprio Hades, o inferno dos gregos. A Terra se apoiasobre o Tartaros: no tempo de Hesodo, no se imagina a Terra flutuando no espao.O Tartaros, por sua vez, talvez se apoie no Caos. Em autores posteriores, o mundoconhecido imaginado como se fosse uma bolha no meio do Caos, que o cerca portodos os lados.Eros, por sua vez, representa a atrao ou desejo, capaz de superar a razo equalquer outra fora. representado como um deus masculino. Ele nasceu

    diretamente do Caos, como a Terra. pela fora do desejo que os deuses se uniroentre si, para procriar outros deuses.

  • 5/20/2018 155368730 Livro O Universo

    12/105

    12

    Do Khos surgiram Erebos [Trevas] e a negra Nyx [Noite].E de Nyx nasceram Aither [ter] e Hmra [Dia],concebidos quando ela se uniu a Erebos em amor.

    Erebos (masculino) e Nyx (feminina) so deuses da escurido (trevas e noite);no entanto, da Noite e das Trevas nasce a luz: Aither, o ter (masculino), representa ocu brilhante e azul do dia; e nasce junto com Hmra, a luz do dia (feminino). Nasucesso do tempo, os dias nascem das noites. Poder-se-ia dizer tambm que asnoites nascem dos dias, mas a linguagem popular se refere apenas ao nascer do diae nunca ao nascer da noite. Simbolicamente, a noite vista como algo negativo, e odia como algo positivo; e aquilo que positivo nasce do que negativo.

    E inicialmente Gaia [a Terra] gerou Ouranos [o Cu] estrelado,igual a ela prpria em tamanho,para que ele a cobrisse todae para que fosse umamoradia segura para os deuses felizes.

    Neste ponto, aparentemente Hesodo est utilizando uma conceposemelhante dos babilnios, de que a Terra e o Cu estavam inicialmente misturados,

    formando uma s unidade, sendo depois separados. Oranos o Cu noturno,estrelado. concebido como um deus masculino, fecundador. Inicialmente, ele sai daprpria Terra; portanto, estavam inicialmente unidos, formando uma s unidade, quese rompe. Depois dessa separao, o Cu se une Terra, para produzir novos seres.Ele representa a fecundidade masculina. A chuva , s vezes, descrita como se fosseo smen de Ouranos, que fecunda a Terra, para a produo das plantas. A Terra, porsua vez, concebida como uma deusa e como elemento primordial, a fonte de todavida. Dela surgem os vegetais e os animais. Mitologicamente, a Terra a meuniversal.

    Primeiramente, surgem da Terra os acidentes geogrficos, que so partes delaprpria; por isso, ela no precisa ser fecundada para ter esses filhos.

    Posteriormente, a Terra se une ao Cu, e tem diversos filhos e filhas. Esses

    filhos de Gaia e Oranos so os chamados Tits e Titnidas.O primeiro desses filhos Okeans. Em contraste com o mar Mediterrneo,que uma comunicao e espao intermedirio, o Oceano representado como o rioque circunda todo o mundo conhecido. Era imaginado como uma serpente queenvolvia todas as terras. Ele era considerado o pai de todos os rios. O Oceanorepresenta tambm o ponto onde o Cu e a Terra se encontram, na viso de mundoda poca. Por isso, natural que fosse descrito como o primeiro filho do Cu e daTerra.

    2.3 KRNOS O DOMNIO DO TEMPO NO UNIVERSO

    A Teogonia de Hesodo descreve que o Cu no permitia que os filhos daTerra sassem de dentro dela. Revoltada contra o Cu, a Terra pediu a seu filhocaula, Krnos, que terminasse com essa situao de sofrimento. Ela lhe d uma foicee o esconde. Quando, ao cair da noite, o Cu estrelado surge e se deita sobre a Terra,Krnos sai de seu esconderijo e, com a foice, corta os rgos genitais de seu pai e oslana para longe. A partir de ento, termina o domnio do Cu e comea o de Krnos.

    Krnos representa o tempo (da vem a palavra cronmetro: medidor detempo). Krnos uma fora que produz todas as coisas e que, ao mesmo tempo,destri e devora tudo o que gerou. Por isso, no mito, um pai que devora os prpriosfilhos.

    Na mitologia romana, que se baseou na mitologia grega, Krnos recebe onome de Saturno. Ele representado como um velho, com uma foice. Esse

    instrumento que representa ao mesmo tempo o instrumento utilizado para mutilar oCu e o poder destruidor do tempo. A imagem desse velho com a foice, at os temposatuais, tambm utilizada para representar o tempo ou o ano velho.

  • 5/20/2018 155368730 Livro O Universo

    13/105

    13

    Aps ser destronado por seu filho, Oranos disse a Krnos que ele prprioseria derrubado por um de seus filhos. Krnos, unindo-se a sua irm Ria, teve seisfilhos, mas logo que eles nasciam ele os devorava, para que nenhum pudessedestron-lo. Os seis filhos foram Hstia, Hera, Demter (femininas) e Hades, Posdone Zeus (masculinos). Todos eram engolidos, mas Ria ocultou o ltimo filho, Zeus,entregando a Krnos apenas uma pedra envolta em panos, que ele engoliu pensandoser seu filho.

    Depois que cresce, Zeus decide se vingar de Cronos. Atravs de um artifcio,faz com que Krnos vomite todos os filhos que havia devorado. Com a ajuda de seusirmos e de outros deuses, Zeus luta contra Krnos, que tem a ajuda dos seus irmos,os Tits. Depois de venc-los, Zeus os prende abaixo da Terra, no Trtaro. A partir deento, Zeus passa a ser o soberano dos deuses gregos. Zeus considerado, namitologia, como aquele que ordena o universo e que estabelece as suas leis gerais.

    Apesar de ter sido destronado, Krnos no foi esquecido. Durante seu reinado,segundo o mito, ele teria criado os primeiros homens. Essa primeira fase dahumanidade teria sido a idade do ouro, na qual teria existido paz, igualdade, fartura,liberdade.

    Em homenagem a Krnos-Saturno, realizavam-se em Roma, no final dedezembro (poca do solstcio de inverno), as Saturnais. Essas festas, que duravamde um at cinco dias, eram uma volta simblica idade do ouro. Durante todo o ano, opedestal da esttua de Saturno ficava recoberto com uma faixa de l. No dia do incioda festa, essa faixa era retirada. Todo trabalho era interrompido, e se fazia um grandebanquete. A partir de ento, durante os dias da festa, todas as regras e leis eramabolidas. Elegia-se um rei das saturnais, os escravos eram temporariamentelibertados, e reinava um clima de alegria, liberdade e orgia. Os escravos eram servidospelos seus senhores e podiam insult-los impunemente. Ao final da festa, o rei dassaturnais era morto em homenagem a Saturno, e a sociedade voltava normalidade.

    O Carnaval com seu Rei Momo surgiu de modo anlogo.

    2.4 AS QUATRO ERAS DE HUMANIDADE

    A idia de uma idade de ouro e de uma decadncia da humanidade estpresente em muitas culturas. Ela uma das formas da idia bsica de que o incio douniverso o tempo mais perfeito e, quanto mais nos afastamos dele, mais imperfeitofica o mundo. Da a necessidade constante de voltar ao princpio de tudo, pelos rituais.

    Na mitologia grega existe a tradio de quatro idades ou eras dahumanidade: a idade do ouro a primeira e mais perfeita de todas seguida pela daprata, do bronze e, por fim, do ferro (que seria a atual, a pior de todas). s vezes seinseria entre a idade do bronze e a do ferro uma idade dos heris.

    Como j foi dito, na mitologia grega, a idade do ouro teria comeado com acriao dos primeiros homens pelos deuses, no reinado de Krnos. Essa primeira raade homens no precisava trabalhar, no havia velhice ou morte; havia apenas umaespcie de sono profundo, ao final da vida. Havia total justia, nessa idade. Aps suamorte, os homens da idade de ouro se transformaram em intermedirios entre osdeuses celestes e os demais homens.

    A segunda idade, da prata, inferior primeira. Mas ainda no existemdoenas, nem necessrio trabalhar. Os homens criados pelos deuses aindarespeitam a justia, mas no respeitam os deuses, e so por isso destrudos por Zeus.

    Os homens da idade de bronze so criados por Zeus a partir da madeira. Elesso dominados pela violncia, pelo desejo de lutar, e morrem pelas prprias guerrasque travam.

    Por fim, na idade do ferro, surgem as doenas, a velhice, a morte, a ignorncia.

    preciso trabalhar, a terra j no proporciona alimentos sozinha, sendo preciso ar-lae seme-la. A idade do ferro passaria, sendo Hesodo, por duas fases. Numa delas, hleis naturais e morais, os filhos so semelhantes aos seus pais, e os homens nascem

  • 5/20/2018 155368730 Livro O Universo

    14/105

    14

    jovens. Na outra fase, os homens nascem velhos, no h mais semelhana entre paise filhos, no existem mais leis, somente a violncia e a fora.

    Como vivemos na idade do ferro, a busca de uma sociedade melhor vistacomo o retorno origem, idade do ouro. Da a necessidade das Saturnais, todos osanos.

    No se sabe muito sobre os rituais religiosos gregos antigos; mas certamenteeles tambm estavam associados aos mitos.

    2.5 O MITO DE CRIAO NA NDIA: CDIGO DE MANU

    A Teogonia de Hesodo , como vimos, uma mitologia altamente sofisticada eintelectualizada. Ela ter, depois, uma grande influncia sobre os filsofos gregos. Deforma semelhante, surgiram tambem na ndia (aparentemente, sem influncia grega)mitos sobre a origem do universo que j apresentavam muitos elementos filosficos.Um deles apresentado em um texto anterior era crist, chamado Cdigo deManu. Esse texto apresenta a seguinte descrio:

    Este mundo era trevas, imperceptvel, sem distines, impossvel de descobrir,

    incognoscvel, como se estivesse totalmente mergulhado no sono.Ento este grande senhor auto-existente indiscernvel, manifestou-se, removendo aobscuridade; indiviso, ele tornou discernvel este mundo com as cinco grandessubstncias e outros elementos.Ele, que s pode ser apreendido pelo rgo supra-sensvel, sutil, indiviso, eterno, que a essncia de tudo, o incompreensvel, ele brilhou por si prprio.

    Aqui, no incio da descrio do Cdigo de Manu, vemos que desde o incioexiste um deus supremo e abstrato, e algo que denominado de trevas. Esse deus,usualmente denominado Brahman (uma palavra neutra, isto , nem masculina nemfeminina) est alm dos sentidos e do prprio pensamento. Inicialmente, ele umaunidade, mas vai se dividir e fragmentar, como os primeiros deuses gregos:

    Desejando produzir diferentes criaturas de seu prprio corpo, por sua vontadecriou inicialmente as guas e nelas depositou sua semente.Esta tornou-se um ovo dourado, brilhante como o astro de mil raios, no qual eleprprio nasceu como Brahm, antecessor dos mundos....Esse senhor, tendo habitado esse ovo por um ano, dividiu-o em duas partes pelo seumero conhecimento.Com essas duas conchas ele formou o cu e a terra, e no meio o firmamento, as oitoregies, e a eterna morada das guas.

    Brahm, o deus criador, uma forma ativa e masculina de Brahman, o deussupremo.

    Tambm entre os gregos houve mitos que descreviam a Terra e o Cu comooriundos da ruptura de um ovo. Em um deles, o Tempo (Chronos) gera Phanes, umdeus da luz, o qual produz a Noite; e a Noite produz o ovo de onde saem a Terra e oCu. Em outra verso, o Tempo produz o Caos e o ter; esses se unem e produzemum ovo, do qual brotam a Terra, o Cu e Phanes. No mito indiano, o deus primordialproduz o ovo e ele prprio nasce do ovo, sob uma outra forma.

    O mito apresentado pelo Cdigo de Manu prossegue, indicando que Brahm, ocriador, produz logo em seguida a mente, o ego e as substncias fundamentais. Apsa criao da matria e do esprito, ele se pe a formar as diferentes criaturas e aestabelecer as leis naturais. Como nos mitos babilnico e judaico, ele d nomes scoisas.

    De acordo com as palavras dos Vedas, ele (Brahm) assinalou desde o incio

    os nomes e as atividades prprias a cada criatura, e as leis prprias a cada uma. As palavras so, na tradio indiana, a essncia das prprias coisas. Por isso,o Cdigo de Manu afirma que os hinos sagrados (os Vedas) deram o nome de cada

  • 5/20/2018 155368730 Livro O Universo

    15/105

    15

    coisa; e esses hinos, por sua vez, foram tirados do Fogo, do Vento e do Sol, ou seja,das foras da natureza.

    2.6 OS CICLOS DO UNIVERSO NO PENSAMENTO INDIANO

    No Cdigo de Manu aparece um aspecto original e interessante: o universono criado apenas uma vez. Ele cclico, sendo repetidamente criado e destrudo. Onarrador do mito diz que Brahman passa por etapas de repouso (ou sono) e outrasetapas em que est desperto.

    Quando este deus desperta, ento o mundo se coloca em movimento. Quandoadormece pacificamente, ento tudo se dissolve.Em seu tranquilo sono, os seres corpreos feitos para a ao deixam de agir, e oesprito deles cai nas trevas.Quando todos juntos se dissolvem nesta grande Alma, ento ela, a alma de todos osseres, dorme feliz, em paz.

    O Cdigo de Manu especifica, em seguida, a durao dessas fases deexistncia e destruio do universo. Para isso, faz primeiro a introduo de diversas

    unidades de tempo. Cada ano humano considerado como apenas um dia, para osdeuses. A vida desses seres sobrenaturais regida por ciclos muito mais longos.Como cada dia dos deuses um ano humano e corresponde a cerca de 365

    dias, cada ano dos deuses corresponde a 365 anos humanos. As fases do universoseriam regidas por eras de enorme durao. O Cdigo de Manu fala em quatroidades, com as seguintes duraes:

    - idade Krita: 400+4.000+400 anos dos deuses- idade Trita: 300+3.000+300 anos dos deuses- idade Dvapara: 200+2.000+200 anos dos deuses- idade Kali: 100+1.000+100 anos dos deusesA idade Krita teria uma durao total de 4.800 anos dos deuses, ou 4.800 x

    365 anos humanos (1.752.000 anos). Somando-se as duraes de todas as idades,

    obtm-se o valor de 12.000 anos dos deuses:Este conjunto das quatro idades, cujo total doze mil (anos dos deuses), chamado idade dos devas.Saibam que um total de mil idades dos devas constitui um dia de Brahman, e que anoite tem a mesma durao.Os que sabem que o dia sagrado de Brahman termina com mil idades dos devas, eque a noite tem a mesma durao, conhecem realmente o dia e a noite.

    Ou seja, uma idade dos devas corresponde a 12.000 anos dos deuses, ou4.380.000 anos humanos. O dia de Brahman teria uma durao mil vezes maior, ouseja, 4 bilhes e 380 milhes de anos terrestres.

    O dia de Brahman o perodo durante o qual o deus absoluto est desperto,ativo, ou seja, o perodo durante o qual existem as coisas do universo. A noite deBrahman o perodo de inatividade, de trevas.

    Nenhuma outra tradio da Antigidade conseguiu imaginar duraes detempo to longas quanto as do Cdigo de Manu. A tradio judaica, por exemplo,admitiu que o universo havia sido criado por Deus h apenas alguns milhares de anos.Somente no sculo XX a cincia ocidental comeou a avaliar a durao do universoem bilhes de anos.

    O Cdigo de Manu prossegue descrevendo de forma bastante abstrata efilosfica a produo dos cinco elementos bsicos do universo: ter, fogo, ar, gua eterra. Eles so precedidos, no entanto, pelo pensamento. A descrio desses cincoelementos bsicos e o modo como eles surgem um a partir do outro constituem umaspecto bastante avanado do pensamento indiano antigo.

    Ao fim desse dia e dessa noite, quem dormia (Brahman)desperta;despertando, ele cria o pensamento (manas), que existe e no existe. Movida pelo desejo de criar, a mente se modifica gerando o ter; ele dotado

  • 5/20/2018 155368730 Livro O Universo

    16/105

    16

    da qualidade da vibrao.Do ter, modificado por sua vez, nasce o vento puro e poderoso, que carregatodos os aromas; ele dotado de tangibilidade.Do vento, transformado, procede a luz brilhante, que ilumina e dissipa astrevas; ela tem a qualidade da cor.Da luz, modificada, nasce a gua, que tem a qualidade do sabor; da guanasce a terra, que tem por qualidade o odor. Eis o princpio da criao.A idade dos devas, antes descrita, com seus doze mil anos, multiplicada por

    setenta e um, forma o perodo de um Manu.Inumerveis so os perodos dos Manus, e a criao e a dissoluo do mundo.O Ser supremo os repete sempre, por brincadeira.O universo, como um todo, repete-se portanto indefinidamente. Mas, em cada

    uma de suas fases de existncia, em cada dia de Brahman, ocorrem muitos ciclosmenores. Em cada um desses ciclos, a humanidade criada e passa por umadecadncia em quatro fases, que se assemelham s quatro idades da mitologia grega:

    Na Krita-yuga, a justia e a verdade so completas, com seus quatro ps; enenhum proveito obtido pelos homens injustamente.

    Nas outras (idades), pelos proveitos ilcitos, a justia perde sucessivamente seus ps;e pelo roubo, pela mentira e pela falsidade, o mrito diminui a cada vez em um quarto.Na idade Krita, os homens, sem doenas, sempre obtm o que desejam e

    vivem 400 anos; mas na idade Trita e nas seguintes [Dvapara, Kali], sua existnciadiminui em um quarto.A durao da vida dos mortais, declarada no Veda, os poderes e as recompensaspelas aes rituais, dependem da idade em que este mundo se encontra.Existem leis corretas para a idade Krita, outras na Trita ena Dvapara, e outras ainda

    na idade Kali, conforme se deterioram essas idades.Na Krita-yuga, o essencial a ao correta; na Trita, o conhecimento; na Dvapara, osacrifcio; na Kali, somente a bondade tem valor.

    Assim como na mitologia grega, tambm o Cdigo de Manu ir indicar que

    vivemos atualmente na quarta era da humanidade a mais decadente, a Kali-yuga ouidade negra.A idia de uma decadncia da humanidade, como j foi indicado, bastante

    comum, quase universal. No entanto, a idia de enormes ciclos do universo umaconcepo original indiana. De onde ela saiu?

    O Cdigo de Manu no d nenhuma indicao, mas o prprio nome utilizadopara as eras (Yuga) permite descobrir a origem dessas idias. A palavra yuga umtermo tcnico utilizado pela antiga astronomia indiana. Ela significa conjuno deastros. Cada planeta, visto da Terra, se move pelo cu estrelado com uma velocidadediferente. Quando dois planetas so vistos em posies prximas, no cu, chama- seisso de conjuno. Podem tambm ocorrer conjunes de trs ou mais planetas aomesmo tempo. claro que elas so muito raras e demoram muito para acontecer.

    A partir desses estudos, os astrnomos indianos conceberam que todos osplanetas foram criados juntos, no mesmo lugar; e quando se reunirem novamente,todos ao mesmo tempo, o universo voltar ao seu princpio. Portanto, a durao douniverso seria o tempo necessrio para que ocorresse uma grande conjuno (mah-yuga). A partir dos dados existentes sobre os movimentos dos planetas, foram feitosclculos que indicaram enormes duraes, semelhantes s indicadas no Cdigo deManu. Essa parece ter sido a justificativa da durao do dia de Brahman.

    2.7 A INTERPRETAO CRTICA DOS MITOS

    Como se pode ver, esses mitos esto em um nvel de elaborao racional

    muito avanado. Continuam a ser mitos, pois descrevem aes de seres sobrenaturaisque produzem o universo. Mas no podem ser considerados meros mitos. Por isso,estamos lhes dando o nome de mitos filosficos.

  • 5/20/2018 155368730 Livro O Universo

    17/105

    17

    Em princpio, o pensamento mtico poderia ter se sofisticado sempre,indefinidamente, sem deixar de ser o que era: um pensamento religioso. No entanto,em torno do quinto sculo antes da era crist, ocorreu tanto na Grcia quanto na ndiauma crtica religio tradicional e uma tendncia ao surgimento de um pensamentototalmente independente da religio: a f ilosofia.

    Na Grcia, um importante representante da corrente intelectual que criticou osmitos foi Xenfanes de Clofon (576 a 480 a.C.). Ele aponta que os deuses damitologia grega tinham muitos defeitos morais: eram injustos, vingativos, adlteros,ciumentos, etc.; alm disso, eram semelhantes aos homens, j que tinham corpo, voz,roupas e nada disso era compatvel com a idia de um deus. Xenfanes ridicularizaesse tipo de concepo:

    Os mortais consideram que os deuses tiveram nascimento, e que possuemroupas e vozes e corpos como os seus.Os Etopes [africanos] dizem que seus deuses possuem narizes achatados e que sonegros; e os Trcios que os seus possuem olhos azuis e cabelo vermelho.Se os bois, cavalos e lees tivessem mos e pudessem pintar e produzir as obras queos homens realizam, os cavalos pintariam figuras de deuses semelhantes a cavalos,

    os bois semelhantes a bois, e lhes atribuiriam os corpos que eles prprios tm.Ou seja: Xenfanes considera a mitologia como uma criao da imaginaohumana, que projeta sobre os deuses aquilo que conhece sobre os prprios homens.Pelo contrrio, ele considera que existe uma concepo verdadeira muito maiselevada: H um deus acima de todos os deuses e homens; nem sua forma nem seupensamento se assemelham aos dos mortais.

    A crtica mitologia mais popular no leva, necessariamente, negao dareligio. Mas certamente levou ao seu enfraquecimento, entre as pessoas mais cultas.

    Como veremos mais adiante, alguns filsofos gregos, como Demcrito eEpicuro, negaram a prpria existncia de deuses sobrenaturais. Desenvolveram umateoria atomista, na qual tudo o que existe formado por tomos. Nessa sua viso, noexistem espritos imateriais e poderiam existir certos deuses, mas formados de

    tomos e portanto materiais, que depois se dissolveriam como qualquer outra coisa.Os mitos, por isso, no tinham valor e precisavam ser substitudos por umconhecimento racional do mundo algo como nossa idia de cincia.

    medida que se enfraqueceu a crena nos mitos, surgiram entre os filsofosgregos vrias interpretaes para eles. Alguns pensadores, como Crisipo,interpretaram os mitos como alegorias, como representaes simblicas de outracoisa: fenmenos fsicos ou celestes, ou mesmo ensinamentos ticos, representadossob a forma de mitos. Outros, como Evmero, supuseram que os mitos eram histriasde antigos reis e heris, que a tradio havia divinizado, transformando fatos antigos,reais, em histrias exageradas e fabulosas, de seres sobrenaturais.

    Essa queda da crena dos mitos levou a dois desenvolvimentos importantes,na filosofia grega. Por um lado, ao desenvolvimento de interpretaes simblicas dosmitos e tentativa de extrair deles ensinamentos filosficos gerais. Por outro lado, aodesenvolvimento de concepes filosficas que substitussem os mitos e quepermitissem compreender o universo e sua origem, sem a interveno de deuses.

    CAPTULO 3 - O PENSAMENTO FILOSFICO E A ORIGEM DO UNIVERSO

    3.1 O PROBLEMA DO CONHECIMENTO DO INCIO DE TUDO

    A filosofia surge quando a tradio religiosa e mitolgica colocada em dvida.Um dos mais belos textos da antiga tradio indiana, o Nasadasiyasukta do Rig-veda(composto cerca de 10 sculos antes da era crist) uma especulao crtica sobre o

    incio do universo. Inicialmente, de forma bastante obscura, ele fala sobre o quepoderia ter existido antes de todas as outras coisas:

  • 5/20/2018 155368730 Livro O Universo

    18/105

    18

    O que estava recoberto? onde? em que receptculo?Existia um abismo de guas profundas?Ento no havia morte, nem havia imortalidade;nem havia distino entre dia e noite.Aquele Um respirava sem vento, por si prprio.Nada diferente dele; o qu, alm dele?Havia trevas ocultas em trevas,tudo isso era um ondular indistinto.Aquilo existia envolto no vazio;pelo poder de seu ardor, aquilo cresceu e se manifestou. Nele surgiu primeiramente o desejo,a semente primordial da mente.A unio do ser ao no-ser foi descoberta pelos sbiosque refletiram sobre o que contemplaram em seus coraes.O raio se estendeu atravs deles.O que estava embaixo, e o que estava acima?Havia inseminadores, havia poderes,

    autonomia embaixo e energia alm.Depois, no final do hino, o seu autor apresenta a questo bsica: como sepode conhecer o que havia no incio de tudo? Ele coloca em dvida que os prpriosdeuses, ou mesmo o deus supremo, possam saber isso:

    Quem realmente sabe, quem poderia dizerde onde brotou, de onde provm esta criao?Os deuses so posteriores sua produo.Quem sabe ento de onde ela surgiu?De onde brotou esta criao,se ela foi feita ou no o foi,ele que a observa do mais alto dos cus,

    ele realmente o sabe, ou talvez nem ele o saiba.

    Tentar interpretar todo esse hino exigiria um enorme nmero de pginas. Elebusca compreender o incio absoluto de tudo. Aquilo de onde tudo vem, no era nadado que conhecemos, e s pode, por isso, ser descrito atravs de smbolos ou deparadoxos: era uma unidade, que respirava sem que existisse o vento (ou ar); nohavia o ser, nem o no-ser; no havia morte, nem imortalidade. No existiam osopostos que podemos conhecer pelo nosso pensamento. Como, ento, conhecer esseprincpio? Os deuses no presenciaram esse incio, pois surgiram depois dele; porisso, nem eles podem nos ensinar isso. No nos adianta procurar textos sagrados,revelaes religiosas.

    No entanto, h algo de positivo nesse hino: A unio do ser ao no-ser foidescoberta pelos sbios que refletiram sobre o que contemplaram em seus coraes.Ou seja: existe um processo de conhecimento que pode chegar quilo que est,aparentemente, fora do alcance dos prprios deuses. Os sbios descobriram essaunio do ser ao no-ser voltando-se para dentro de si prprios, isto , pelameditao.

    Tanto na Grcia quanto na ndia, surgem concepes filosficas diferentes datradio mitolgica; mas os caminhos seguidos so muito diferentes. A filosofia gregase baseia principalmente na razo, no pensamento, em raciocnios lgicos, cujomodelo fundamental a matemtica. No pensamento indiano, h um processo deconhecimento no racional, direto, uma viso da verdade, pela meditao.

    3.2 OS PR-SOCRTICOS E A BUSCA DO PRINCPIO UNIVERSAL, NAGRCIA

  • 5/20/2018 155368730 Livro O Universo

    19/105

    19

    Entre os sculos IX e VI antes da era crist, o mundo grego passou por umaprofunda transformao. Ocorreu uma ampla mudana poltica, social, religiosa ecultural, envolvendo mltiplos fatores que no so ainda totalmente compreendidos.Por um lado, o contato comercial e cultural muito intenso com outros povos, nesseperodo, trouxe ao mundo grego uma variedade de idias que passaram a serconfrontadas com o pensamento tradicional. Isso envolveu a entrada de novasconcepes religiosas, polticas, filosficas, cientficas (por exemplo, na matemtica eastronomia). O surgimento de uma classe econmica poderosa, atravs do comrcio,enfraqueceu a antiga aristocracia. Surgiram novos valores, e uma sociedade maisaberta, pessoas mais confiantes em seu prprio poder individual, com umenfraquecimento de toda a tradio cultural e do respeito pelos mitos, pela religio,pela autoridade antiga.

    Em meio a todo esse amplo processo cultural, que envolveu uma crticaracional dos mitos (j apontada no captulo 2), houve tambm o aparecimento de algonovo: o despertar da filosofia como algo novo, independente, que procuravafundamentar-se apenas no pensamento, na razo.

    Costuma-se dividir a filosofia grega em dois perodos: antes e depois de

    Scrates. Os filsofos anteriores a Scrates (os chamados pr-socrticos)escreveram muitas obras que, no entanto, no foram conservadas. Tudo o que sesabe sobre eles indireto, baseado em pequenos trechos de seus escritos que foramcitados por outros autores posteriores (os fragmentos dos pr-socrticos) e emdescries feitas por autores posteriores a Scrates (os testemunhos, oudoxografia). Diante do pequeno nmero de informaes sobre esses pensadores,qualquer tentativa de descrever seu pensamento ser apenas uma tentativa, umareconstruo, que pode ser at razovel, mas nunca ser definitiva ou segura. Fala-se e escreve-se muito sobre Pitgoras, Herclito, Tales e outros dos pr-socrticos;mas pouco se sabe, realmente, sobre o que eles ensinaram.

    Apesar disso, no podemos deixar de fazer um breve estudo sobre opensamento cosmolgico dos pr-socrticos.

    Tales, Anaximandro e Anaxmenes so trs dos primeiros filsofos pr-socrticos. Todos eles so da mesma cidade (Mileto) e do mesmo perodo (sculo VIantes da era crist). Eles possuem um ponto em comum: ensinavam que todas ascoisas se originam em uma nica matria primordial, que seria o princpio (em grego,arqu ). A idia bsica pode ser esclarecida por meio de uma comparao.Suponhamos que s existisse argila no mundo, e que a partir dessa argila fossemcontinuamente modelados diferentes tipos de objetos, que depois fossemdesmanchados, para depois fazer outros objetos com a mesma argila. Essa argilaseria o arqu o princpio de tudo e tambm o fim de tudo. Dois sculos depois,essa idia foi assim descrita por Aristteles:

    A maioria dos primeiros filsofos pensava que os princpios de todas as coisaseram certos princpios materiais. Eles declararam que o elemento e primeiro princpiodas coisas que existem era uma substncia que continuava sempre a existir masmudava suas qualidades, sendo a fonte original de todas as coisas que existem, apartir da qual uma coisa surge e na qual ela finalmente se decompe. Por esta razo,eles consideravam que no existe um surgimento ou desaparecimento absoluto,tomando como base que essa natureza sempre preservada. Pois deveria existiralguma substncia natural ou uma, ou mais de uma a partir da qual as outrascoisas surgem, mas que se conserva.

    Aqui se encontram os germes das idias que utilizamos at hoje, de elementosda matria e de conservao da matria. Essas idias no surgiram da observao edo experimento, e sim a partir do pensamento e de analogias.

    Os diferentes filsofos pr-socrticos no concordaram entre si a respeito do

    nmero e do tipo de elemento ou princpio de todas as coisas materiais. Talesafirmava que esse princpio era a gua. De onde ele tirou essa idia? No sabemos.Segundo Aristteles, que a principal fonte de que dispomos para falar sobre Tales,

  • 5/20/2018 155368730 Livro O Universo

    20/105

    20

    ele se baseou em duas coisas: primeiro, que todos os seres vivos precisam deumidade para viver; segundo, que a origem dos seres vivos a umidade, pois osanimais nascem do smen, que um lquido, e as sementes no germinam semumidade. Assim, a gua seria aquilo de onde se origina a vida e que necessria paramanter todos os seres vivos.

    3.3 O PENSAMENTO DE ANAXIMANDRO: A ORIGEM A PARTIR DOAPEIRON

    Anaximandro foi outro filsofo pr-socrtico, pouco posterior a Tales e quepode ter sido seu discpulo. H mais informaes sobre ele do que sobre Tales, mas tambm difcil compreender seu pensamento. De acordo com o que se diz sobre ele,Anaximandro ensinava que o princpio e elemento de tudo era o indefinido (peiron,em grego), que no era a gua, nem o ar, ou qualquer coisa de conhecido e palpvel.Todas as coisas viriam do peiron e retornariam a ele, ao serem destrudas.

    Mas o que significa esse peiron? H muita discusso sobre isso. A palavrapode ser traduzida como infinito ou como indefinido ou como ilimitado. um termo

    abstrato, talvez inventado pelo prprio Anaximandro. possvel que ele quisesseindicar, com essa palavra, um tipo de matria que no corresponde a nada dedefinido, mas que pode assumir a aparncia de todos os tipos de substncias queconhecemos. Talvez essa idia fosse um passo adiante, um novo grau de abstrao, apartir da idia de Tales. Ao invs de admitir que uma substncia conhecida (a gua)pudesse se transformar em todas as outras, Anaximandro parece ter imaginado umasubstncia desconhecida, talvez at impossvel de ser observada, que pudesse servirde origem para todas as outras. A partir desse perion, que no quente nem frio,surgiriam o calor e o frio; a partir do peiron, que no duro nem mole, surgiriam assubstncias duras e moles.

    A justificativa pode ter sido a seguinte: para cada tipo de coisa que existe,pode-se pensar em outra coisa diametralmente oposta, com as propriedades

    contrrias. Por exemplo: o fogo totalmente oposto gua e difcil imaginar comoum deles pudesse sair do outro. Assim, a matria primordial se que ela existe e se que ela de um nico tipo no deve ser nem gua, nem fogo, nem qualquer coisadefinida que possua caractersticas prprias, mas algo indefinido, de onde podem sairtodos os opostos.

    Essa substncia primordial, o peiron, seria indestrutvel, ou imortal: ela nodeixa de existir quando a partir dele se formam as diferentes substncias e coisas douniverso, mas continuaria a existir dentro delas, tendo apenas adquirido uma novaaparncia. Essa idia elimina, portanto, a possibilidade de um incio absoluto de tudo:o peiron no tem incio, ele sempre existiu. Pelo contrrio, o universo provm dopeiron, e pode no ser eterno. Talvez Anaximandro tivesse concebido a possibilidadede diversos mundos, formando-se a partir da destruio do anterior; mas no se sabecom certeza se ele de fato defendeu essa idia.

    O peiron seria infinito, preenchendo todo o espao. No existiria nenhumlugar vazio ou com outro tipo de substncia. O peiron existiria dentro de tudo o queconhecemos.

    Os filsofos ps-socrticos que descreveram o pensamento de Anaximandrolhe atribuem a idia de que os opostos provm da separao a partir do peiron. Issono quer dizer que o peiron fosse uma mistura de opostos: ele uma substncianica. Talvez uma boa comparao fosse a seguinte: suponhamos que exista umagrande extenso de areia, totalmente plana, sem altos nem baixos. Pode-se fazer umburaco nessa areia, mas, para isso, a areia tirada do buraco precisa ser colocada emalgum lugar e vai produzir um monte, de volume equivalente ao do buraco. O buraco e

    o monte podem ser considerados como opostos, que no existiam antes, mas quepassam a existir ao mesmo tempo, a partir de algo que no tinha nem buracos nemmontes.

  • 5/20/2018 155368730 Livro O Universo

    21/105

    21

    a partir do peiron que se forma o mundo. Anaximandro parece ter sido oprimeiro pensador grego a propor uma teoria racional pela qual o mundo se forma apartir de uma matria que existe por si mesma, e na qual no existe a interveno dedeuses ou outros seres sobrenaturais.

    Anaximandro apresenta uma certa viso do universo que ainda bastanteprimitiva. A Terra, para ele, ainda no esfrica: um cilindro, com dimetro trsvezes maior do que a altura. O mundo habitado estaria em uma das superfcies planasdo cilindro. Essa viso no muito diferente da de um disco, que j foi indicada, e queexistia j na poca de Homero. No entanto, surge um elemento interessante, emAnaximandro. Ele no vai propor que existe algo debaixo da Terra que a sustenta,como os pensadores anteriores. Ele vai dizer que a Terra est no centro de tudo, eque por isso fica em equilbrio, no podendo se mover nem para um lado, nem para ooutro. O cu deixa, portanto, de ser imaginado como uma simples cpula acima dasuperfcie da Terra, e passa a ser pensado como algo que a cerca por todos os lados:uma esfera. Esse um grande avano, para a poca.

    Em cada momento, o conhecimento sobre o universo vai se modificando, e damesma forma mudam as explicaes dadas sobre a sua origem. Algumas mudanas

    de viso sobre o universo so radicais e profundas. Anaximandro, ao contrrio deoutros pensadores anteriores, coloca claramente a viso de algo infinito e ilimitado,enquanto que a viso mais imediata do mundo a de que ele finito, e que terminalogo ali, no cu. Mas o que existe depois do cu? E depois? E depois? ... Pensarsobre o que est alm de tudo o que se conhece um passo de enorme importncia,tpico da Filosofia.

    Anaximandro imaginou que, a partir do peiron eterno, separaram-se asorigens do quente e do frio. A parte fria (que talvez fosse um tipo de bruma ouumidade) se concentrou no centro de tudo, formando a Terra, envolvida por ar; e, emtorno do ar, teria se formado uma espcie de casca, cercada por uma esfera de fogo.Depois, ela se rompe, quebrando-se em certos crculos, que formam o Sol, a Lua e asestrelas. Segundo Anaximandro, inicialmente, toda a Terra era uma massa mida;

    mas o calor do Sol secou uma parte, que se tornou a terra slida; a umidade quesobrou se tornou o mar; e os vapores que saram da Terra pelo calor do Solproduziram ventos, que colocaram os astros em movimento.

    Aqui, pode-se ver que Anaximandro tenta justificar vrios aspectos do universoque conhecemos a partir de explicaes que se baseiam em fenmenos conhecidos: ocalor do Sol pode realmente secar uma regio alagada, pode produzir vapores, etc. claro que no acreditamos, hoje em dia, que os ventos possam movimentar os astroscelestes; mas, para a poca, essa no era uma idia absurda, e preciso avaliar cadaconcepo dentro de seu prprio tempo.

    Isso tudo o que se pode dizer sobre o pensamento cosmognico deAnaximandro, a partir das poucas informaes que restaram de sua poca. Por umlado, seu pensamento pode ser considerado como muito primitivo, comparado comaquilo que qualquer criana atual sabe sobre o universo. Por outro lado, sob o pontode vista de sua poca, trata-se de uma tentativa extremamente ousada e admirvel deexplicar racionalmente aquilo que se conhecia sobre o mundo, deixando de lado todaa tradio mitolgica.

    3.4 ANAXMENES E A IMPORTNCIA DO AR

    Aps Anaximandro, outro filsofo importante foi Anaxmenes, da mesma cidadede Mileto. Para ele, o princpio material de todas as coisas era o ar. Ao se tornar maisrarefeito, ele se tornaria fogo; ao se tornar mais denso, produziria nuvens, depoisgua, terra e rochas. O frio e o calor no seriam poderes independentes, mas

    associados ao estado do ar: o ar, ao se condensar, produziria o frio; e, ao se rarefazer,produziria calor. Todos os materiais e todas as coisas viriam, portanto, do ar. Esse ar,para Anaximandro, um elemento que est sempre se movendo, ou seja, um

  • 5/20/2018 155368730 Livro O Universo

    22/105

    22

    princpio dinmico. O ar no teria sido produzido por nenhum deus, mas todos osdeuses teriam vindo do ar, isto , ele seria a origem at mesmo dos deuses.

    De onde Anaxmenes tirou essa idia? Novamente, no se sabe. Pode ser quea grande importncia que ele d ao ar venha da observao daquilo que chamamosmudanas de estado: o fogo parece ser apenas um ar muito quente; e, como o vapord'gua transparente, as nuvens e a gua parecem se formar a partir do prprio ar.

    Por outro lado, ele parece tambm ter chamado a ateno para a importnciado ar nos seres vivos: o animal que impedido de respirar morre. O ar seria, assim,essencial para a vida. Ele parece ter identificado a alma com um tipo de ar interno.Essa uma idia que aparece, a nvel mitolgico, em muitas civilizaes. Porexemplo: Tupana d a vida ao primeiro homem, feito do barro, soprando sobre ele,exatamente como na Bblia. O alento ou respirao, em grego, se chama pneuma(da vem pneumonia, uma doena do pulmo, que o rgo da respirao). Nopensamento indiano antigo, a fora vital chamada prna, que tambm o nomedado respirao.

    Para Anaxmenes, a Terra um disco achatado, muito fino, que flutua cercadopelo ar. Ela no cai apenas por ser muito fina e grande, por isso fica pairando, como

    uma folha no ar. Tambm os astros celestes Sol, Lua, etc. seriam discos finos, defogo, que tambm flutuariam no ar. Por isso, seus movimentos seriam produzidostambm pelo ar.

    Anaxmenes no parece ter produzido uma teoria sobre a origem do universo.Mas representa tambm a tradio que tentava encontrar um princpio material detodas as coisas, e explicar os fenmenos do universo sem utilizar concepesreligiosas.

    impossvel apresentar aqui todas as concepes importantes que surgiramentre os gregos. necessrio, no entanto, mencionar ainda Empdocles, da cidade deAcragas, e os atomistas.

    3.5 OS QUATRO ELEMENTOS DE EMPDOCLES

    Empdocles viveu no sculo V antes da era crist. Ele considerado oprimeiro filsofo grego a apresentar a concepo dos quatro elementos materiais(terra, gua, ar e fogo). Esses quatro elementos so descritos como sendo as razesde todas as coisas. So associados a quatro divindades: Zeus (fogo), Hera (ar),Aidoneus ou Hades (terra) e Nestis (gua).

    O universo, para Empdocles, cclico: h momentos em que as razesbrotam a partir de uma unidade, e constituem todas as coisas; e h outros momentosem que elas se renem, e formam uma unidade novamente, desaparecendo todas ascoisas. Essa alternncia ocorreria devido ao domnio do dio ou do Amor. No existeum incio absoluto do universo, mas apenas diferentes estados que se alternam.

    Segundo Empdocles, os elementos ou razes de todas as coisas se unemem diferentes propores, e formam os animais, as plantas e todas as outras coisas.Ele d um interessante exemplo: os artesos, misturando diversos pigmentos emdiferentes propores, so capazes de criar todas as cores e assim representarrvores, pessoas, pssaros, peixes e at deuses. Da mesma forma, a mistura dasquatro razes poderia produzir todas as coisas conhecidas.

    Os elementos, em si, no so destrudos nem criados; apenas se unem eseparam. Em um certo sentido, portanto, no existe nem nascimento nem morte:aquilo que realmente existe, existe sempre, mudando apenas suas combinaes e suaaparncia. Em cada ciclo do universo, haveria uma fase de destruio de todas ascoisas. Empdocles descreve um tipo de turbilho ou redemoinho, no qual todas ascoisas iriam se misturando e se unindo entre si, pela fora do Amor, at que se

    eliminassem todas as separaes. A partir da unio, por sua vez, surgiria a separao,quando o poder da Luta ou do dio fosse a mais forte. Inicialmente se separaria o ar,

  • 5/20/2018 155368730 Livro O Universo

    23/105

    23

    a partir da mistura que estaria girando. Em seguida, surgiria o fogo, que se afastariado centro, depois a terra, que ficaria no centro.

    O Sol no seria formado de fogo, mas seria um tipo de objeto brilhante, capazde refletir a luz do fogo celeste. A Lua, por sua vez, descrita por Empdocles comosendo apenas iluminada pelo Sol. No processo de produo do mundo, a gua seria,por fim, extrada da terra seja por efeito da rotao do turbilho, seja peloaquecimento produzido pelo Sol, que faz a Terra suar.

    A idia de ciclos do universo no muito comum no pensamento grego. Elaaparece em outros autores, como Herclito; mas no se sabe exatamente de onde elapossa ter se originado.

    No pensamento de Empdocles surge uma variedade de elementos, ao invsde um nico princpio material. Essa idia vai ser aproveitada pelos filsofosatomistas.

    3.6 A FILOSOFIA MATERIALISTA DOS ATOMISTAS

    O atomismo grego se inicia com Leucipo (da cidade chamada Mileto) e

    Demcrito (de Abdera), ambos do sculo V antes da era crist. Novamente, pouco sesabe diretamente sobre suas concepes. Mas pode-se dizer que foram os primeirosgregos a admitir a existncia de um espao vazio, ou vcuo, no qual se moviampartculas eternas, imutveis os tomos. At essa poca, todos os outros filsofoshavia concebido um universo totalmente preenchido pela matria.

    Em um certo sentido, os atomistas mantm a idia de um princpio material detodas as coisas, que sempre existiu e nunca destrudo, pois os tomos soconsiderados eternos. Mas, ao contrrios dos outros pr-socrticos, eles admitem umagrande variedade de tipos diferentes de tomos e, portanto, de princpios da matria.Todas as coisas se formam, segundo eles, quando os tomos se unem; e sodestrudas quando seus tomos se separam. Mas esses tomos continuam a existir evo se reunir, depois, a outros tomos, para formar novos objetos.

    De qu seriam feitos os tomos? Os tomos no so produzidos a partir denada. Eles existem sempre. So constitudos simplesmente a partir de algo quepreenche o espao. Em um certo sentido, no passam de formas geomtricascheias. Alm deles, s existe o espao vazio. Esses espaos cheios poderiam terdiferentes formas e tamanhos, mas todos eles seriam to pequenos que no poderiamser percebidos pela viso. Existiria no universo uma infinidade de tomos, capazes deformar todo tipo de coisas.

    Demcrito e Leucipo parecem no ter discutido em detalhe quais seriam asformas dos tomos. No caso do fogo, eles afirmam que os tomos seriam esfricos,pois esta a forma mais mvel e penetrante. Eles tambm afirmavam que a alma constituda por tomos (pois no existe nada alm dos tomos e do vazio) e que suaspartculas eram semelhantes s do fogo.

    3.6.1 A produo dos mundos pelos tomos

    Os infinitos tomos, movendo-se no espao infinito, existiriam sempre, e pelasua reunio e separao poderiam criar e dissolver mundos impossveis de se contar.Os tomos estariam sempre se movendo, exceto quando se prendessem uns aosoutros.

    A produo de um novo mundo comearia quando muitas partculas, de todasas formas, se reunissem, vindas de todos os lados, em um grande espao vazio. Elasse uniriam e produziriam um grande redemoinho, no qual, colidindo umas com asoutras, e girando, comeariam a se separar, de tal forma que as semelhantes se

    unissem. medida que eles vo se separando, os menores vo para a parte externa,enquanto os maiores se juntam e, prendendo-se uns aos outros, formam uma figuraesfrica.

  • 5/20/2018 155368730 Livro O Universo

    24/105

    24

    Na concepo dos antigos atomistas, os tomos no se atraem nem repelem:no existem foras entre eles. Eles se prendem unicamente porque no so lisos, epodem se enganchar uns nos outros. A unio dos tomos semelhantes tambm noseria produzida por nenhuma fora atrativa. Seria o resultado de um processomecnico, como as ondas da praia que agrupam pedrinhas de tamanhos semelhantesem um mesmo local, ou como uma peneira separa gros de tamanhos semelhantes.

    Essa estrutura esfrica que se forma separa-se do restante por um tipo decasca ou membrana, que contm dentro de si todos os tipos de partculas. medidaque continua a girar no meio do redemoinho, essa casca vai prendendo ou capturandovrios tipos de tomos que entram em contato com ela. Assim teria se formado aTerra, e, depois, ela teria aumentado, prendendo partculas que estavam fora. Algunsdos corpos teriam formado uma estrutura inicialmente mida e semelhante ao lodo,mas medida que giravam foram secando, terminando por se incendiar e formar oscorpos celestes.

    Em alguns mundos no haveria nem Sol nem Lua, em outros haveria diversossis e luas. Em alguns lugares existiriam muitos mundos, em outros lugares existiriampoucos. Alguns estariam se formando e crescendo, outros estariam sendo destrudos.

    A destruio ocorreria por colises entre os mundos, ou por outros fatores. Algunsmundos poderiam ter vida, outros seriam desprovidos de umidade, plantas e animais.A produo dos mundos ocorreria, portanto, por mero acaso, ou seja, sem

    planejamento, sem interveno de deuses, podendo ser produzidos mundossemelhantes ao nosso ou diferentes dele. Esta talvez tenha sido a viso filosfica maisradicalmente materialista da Antigidade grega.

    3.6.2 O atomismo de Epicuro e Lucrcio

    No perodo posterior a Scrates, o atomista mais importante foi Epicuro, dacidade de Samos, que viveu aproximadamente entre 341 e 270 antes de Cristo.Alguns de seus escritos foram conservados. O mais importante, para nosso tema,

    uma longa carta que ele escreveu para Herdoto (esse Herdoto no o famosohistoriador, que viveu no sculo V antes da era crist.). Nessa carta ele resume todasas suas idias a respeito da natureza. Esse o mais antigo texto atomista originalcompleto que foi conservado.

    Outra obra importante foi o livro Sobre a natureza das coisas, do romanoTitus Lucretius Carus (ou Lucrcio), que viveu aproximadamente entre 98 e 55 antesde Cristo. Essa obra, que foi conservada, um livro bastante longo, escrito em versos,onde o autor apresenta a teoria atomista grega, baseando-se principalmente nasidias de Epicuro. Vamos utilizar trechos de Epicuro e de Lucrcio para apresentaresse desenvolvimento posterior do atomismo grego.

    Epicuro procura apresentar argumentos muito claros a favor do atomismo.Em primeiro lugar, nada nasce do nada; pois [se isso fosse possvel] qualquer

    coisa nasceria de qualquer coisa, sem nenhuma necessidade de sementes geradoras.E se aquilo que termina se acabasse no nada, tudo j teria sido destrudo, pois noexistiria aquilo em que tudo se dissolve.

    O argumento abstrato, mais muito interessante. Ele comea lembrando aexistncia de regularidades na natureza. Como Lucrcio comenta: no vemos homensbrotando do mar, nem peixes surgindo da terra, nem pssaros eclodindo no ar. Noentanto, vemos que cada coisa nasce a partir de uma determinada origem, e no deoutra. Cada rvore d sempre o mesmo tipo de fruto. Mas se fosse possvel algumacoisa surgir a partir do nada, poderia aparecer, de repente, a qualquer momento, umarosa nossa frente. Isso no acontece. Cada coisa tem uma causa prpria, e essacausa alguma coisa que existe. Cada coisa que existe vem, portanto, de outra coisa

    que tambm existe.Por outro lado, nada pode se aniquilar, desaparecer no nada, deixar de existirsem deixar nada em seu lugar. Se isso fosse possvel, o nmero de coisas do universo

  • 5/20/2018 155368730 Livro O Universo

    25/105

    25

    iria diminuindo, diminuindo, at acabar e, se pensarmos em um tempo infinito, nopassado, tudo j teria desaparecido, pois j houve um tempo suficiente para que tudosumisse. Portanto, assim como nada pode surgir do nada, o contrrio tambm nopode acontecer: uma coisa no pode desaparecer, sem deixar nada no seu lugar.

    Em seguida, Epicuro prope os princpios de que existem corpos materiais eexiste o vazio. A existncia da matria, diz ele, assegurada pelas nossas sensaes.Quanto ao vazio ou vcuo, ns no podemos v-lo ou senti-lo, mas Epicuro d umarazo para aceitar que ele existe: se s existisse matria, preenchendo todo o espao,como as coisas poderiam se mover? Se tudo estivesse cheio, no haveria um modode algo comear a se mover, pois no haveria um lugar para onde ele pudesse ir, quej no estivesse cheio.

    Lucrcio adiciona vrios outros argumentos para mostrar a existncia deespaos vazios no meio da matria: a umidade capaz de atravessar as rochas,gotejando nos tetos das cavernas; o alimento se distribui pelo corpo dos seres vivos,por todas as partes, fazendo crescer os ossos e todas as partes; esses e outrosexemplos mostram que a matria pode atravessar a matria e isso s podeacontecer se h espaos vazios no meio daquilo que nos parece slido.

    Epicuro continua seu argumento, afirmando que devem existir corpos materiaisque sejam indivisveis (ou seja: tomos) e imutveis, pois deve haver algo quepermanece sempre igual, quando uma coisa destruda ou produzida. Se noexistissem coisas indivisveis e imutveis na matria, a matria poderia ir sendodestruda e desaparecer. Epicuro v, portanto, uma constncia por trs de todas asmudanas. E o que constante, que no pode sofrer mudanas, que no pode serquebrado, exatamente o tomo.

    3.6.3 O universo segundo Epicuro e Lucrcio

    Epicuro imagina um espao infinito, ilimitado, no qual existem infinitos tomosde cada tipo. O espao e os tomos so eternos; e tambm o movimento dos tomos

    eterno. Os tomos podem ficar presos uns aos outros temporariamente, mascomumente apenas se chocam uns contra os outros, e se distanciam novamente, semperder seu movimento.

    A concepo de um espao infinito no intuitiva; nova e estranha. Todo opensamento mitolgico grego sempre imaginou que o cu fosse redondo e tivesse umlimite. Mas os atomistas vo colocar em questo essa idia.

    Lucrcio apresenta uma discusso detalhada sobre isso. Ele diz que nadapode existir fora do universo que o limite, pois o universo a totalidade do que existe.Assim, no pode haver nada fora dele nem mesmo espao vazio. E no pode existirum fim do espao. Pois, se houvesse, o que ocorreria quando um homem chegassenesse fim e tentasse atirar uma lana para fora? Se esse o fim do universo o fimde tudo no pode haver nada fora, que impea a lana d