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TÍTuLo 1 NoÇÕES iNTroDuTÓriAS

TÍTULO 1

NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

1. INTRODUÇÃO

Quando o Estado, por intermédio do Poder Legislativo, elabora as leis penais, cominando sanções àqueles que vierem a praticar a conduta delituosa, surge para ele o direito de punir os infratores num plano abstrato e, para o particular, o dever de se abster de praticar a infração penal.

No entanto, a partir do momento em que alguém pratica a conduta delituosa prevista no tipo penal, este direito de punir desce do plano abstrato e se transforma no jus puniendi in con-creto. O Estado, que até então tinha um poder abstrato, genérico e impessoal, passa a ter uma pretensão concreta de punir o suposto autor do fato delituoso.

Surge, então, a pretensão punitiva, a ser compreendida como o poder do Estado de exigir de quem comete um delito a submissão à sanção penal. Através da pretensão punitiva, o Estado procura tornar efetivo o ius puniendi, exigindo do autor do delito, que está obrigado a sujeitar-se à sanção penal, o cumprimento dessa obrigação, que consiste em sofrer as consequências do crime e se concretiza no dever de abster-se ele de qualquer resistência contra os órgãos estatais a que cumpre executar a pena.

Todavia, esta pretensão punitiva não pode ser voluntariamente resolvida sem um processo, não podendo nem o Estado impor a sanção penal, nem o infrator sujeitar-se à pena. Em outras palavras, essa pretensão já nasce insatisfeita. Afinal, o Direito Penal não é um direito de coação direta. Apesar de o Estado ser o titular do direito de punir, não se admite a imposição imediata da sanção sem que haja um processo regular, assegurando-se, assim, a aplicação da lei penal ao caso concreto, consoante as formalidades prescritas em lei, e sempre por meio dos órgãos jurisdicionais (nulla poena sine judicio).

Aliás, até mesmo nas hipóteses de infrações de menor potencial ofensivo, em que se admite a transação penal, com a imediata aplicação de penas restritivas de direitos ou multas, não se trata de imposição direta de pena. Utiliza-se, na verdade, de forma distinta da tradicional para a resolução da causa, sendo admitida a solução consensual em infrações de menor gravidade, mediante supervisão jurisdicional, privilegiando-se, assim, a vontade das partes e, principal-mente, do autor do fato que pretende evitar os dissabores do processo e o risco da condenação.

É daí que sobressai a importância do processo penal, pois funciona como instrumento do qual se vale o Estado para a imposição de sanção penal ao possível autor do fato delituoso. Mas o Estado não pode punir de qualquer maneira. Com efeito, considerando-se que, da aplicação do direito penal pode resultar a privação da liberdade de locomoção do agente, entre outras penas, não se pode descurar do necessário e indispensável respeito a direitos e liberdades individuais que tão caro custaram para serem reconhecidos e que, em verdade, condicionam a legitimidade da atuação do próprio aparato estatal em um Estado Democrático de Direito.

Na medida em que a liberdade de locomoção do cidadão funciona como um dos dogmas do Estado de Direito, é intuitivo que a própria Constituição Federal estabeleça regras de obser-vância obrigatória em um processo penal. É a boa aplicação (ou não) desses direitos e garantias que permite, assim, avaliar a real observância dos elementos materiais do Estado de Direito e distinguir a civilização da barbárie.

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De fato, como adverte Norberto Bobbio, a proteção do cidadão no âmbito dos processos estatais é justamente o que diferencia um regime democrático daquele de índole totalitária. Na dicção do autor, “a diferença fundamental entre as duas formas antitéticas de regime político, entre a democracia e a ditadura, está no fato de que somente num regime democrático as relações de mera força que subsistem, e não podem deixar de subsistir onde não existe Estado ou existe um Estado despótico fundado sobre o direito do mais forte, são transformadas em relações de direito, ou seja, em relações reguladas por normas gerais, certas e constantes, e, o que mais conta, preestabelecidas, de tal forma que não podem valer nunca retroativamente. A consequência principal dessa transformação é que nas relações entre cidadãos e Estado, ou entre cidadãos entre si, o direito de guerra fundado sobre a autotutela e sobre a máxima ‘Tem razão quem vence’ é substituído pelo direito de paz fundado sobre a heterotutela e sobre a máxima ‘Vence quem tem razão’; e o direito público externo, que se rege pela supremacia da força, é substituído pelo direito público interno, inspirado no princípio da ‘supremacia da lei’ (rule of law)”.1

É esse, pois, o grande dilema do processo penal: de um lado, o necessário e indispensável respeito aos direitos fundamentais; do outro, o atingimento de um sistema criminal mais operante e eficiente.2 Há de se buscar, portanto, um ponto de equilíbrio entre a exigência de se assegurar ao investigado e ao acusado a aplicação das garantias fundamentais do devido processo legal e a necessidade de maior efetividade do sistema persecutório para a segurança da coletividade. É dentro desse dilema existencial do processo penal – efetividade da coerção penal versus observância dos direitos fundamentais – que se buscará, ao longo da presente obra, um ponto de equilíbrio no estudo do processo penal, pois somente assim serão evitados os extremos do hipergarantismo e de movimentos como o do Direito Penal do Inimigo ou do Direito Penal da Lei e da Ordem.

2. SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS

2.1. Sistema inquisitorialAdotado pelo Direito canônico a partir do século XIII, o sistema inquisitorial posterior-

mente se propagou por toda a Europa, sendo empregado inclusive pelos tribunais civis até o século XVIII. Tem como característica principal o fato de as funções de acusar, defender e julgar encontrarem-se concentradas em uma única pessoa, que assume assim as vestes de um juiz acusador, chamado de juiz inquisidor.

Essa concentração de poderes nas mãos do juiz compromete, invariavelmente, sua impar-cialidade. De fato, há uma nítida incompatibilidade entre as funções de acusar e julgar. Afinal, o juiz que atua como acusador fica ligado psicologicamente ao resultado da demanda, perdendo a objetividade e a imparcialidade no julgamento.

Em virtude dessa concentração de poderes nas mãos do juiz, não há falar em contraditório, o qual nem sequer seria concebível em virtude da falta de contraposição entre acusação e de-

1 BOBBIO, Norberto. As ideologias e o poder em crise. Tradução de João Ferreira; revisão técnica Gilson César Cardoso. 4ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999, p. 96-97.

2 Na linha do ensinamento de Antônio Scarance Fernandes, o vocábulo eficiência aqui empregado “é usado de forma ampla, sendo afastada, contudo, a ideia de eficiência medida pelo número de condenações. Será eficiente o procedimento que, em tempo razoável, permita atingir um resultado justo, seja possibilitando aos órgãos da persecução penal agir para fazer atuar o direito punitivo, seja assegurando ao acusado as garantias do processo legal”. (Sigilo no processo penal: eficiência e garantismo. Coordenação Antônio Scarance Fernandes, José Raul Gavião de Almeida, Maurício Zanoide de Moraes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 10).

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fesa. Ademais, geralmente o acusado permanecia encarcerado preventivamente, sendo mantido incomunicável.

No processo inquisitório, o juiz inquisidor é dotado de ampla iniciativa probatória, tendo liberdade para determinar de ofício a colheita de provas, seja no curso das investigações, seja no curso do processo penal, independentemente de sua proposição pela acusação ou pelo acusado. A gestão das provas estava concentrada, assim, nas mãos do juiz, que, a partir da prova do fato e tomando como parâmetro a lei, podia chegar à conclusão que desejasse.

Trabalha o sistema inquisitório, assim, com a premissa de que a atividade probatória tem por objetivo uma completa e ampla reconstrução dos fatos, com vistas ao descobrimento da verdade. Considera-se possível a descoberta de uma verdade absoluta, por isso admite uma ampla atividade probatória, quer em relação ao objeto do processo, quer em relação aos meios e métodos para a descoberta da verdade. Dotado de amplos poderes instrutórios, o magistrado pode proceder a uma completa investigação do fato delituoso.

No sistema inquisitorial, o acusado é mero objeto do processo, não sendo considerado sujeito de direitos. Na busca da verdade material, admitia-se que o acusado fosse torturado para que uma confissão fosse obtida. O processo inquisitivo era, em regra, escrito e sigiloso, mas essas formas não lhe eram essenciais. Pode se conceber o processo inquisitivo com as formas orais e públicas.

Como se percebe, há uma nítida conexão entre o processo penal e a natureza do Estado que o institui. A característica fundamental do processo inquisitório é a concentração de poderes nas mãos do juiz, aí chamado de inquisidor, à semelhança da reunião de poderes de administrar, legislar e julgar nas mãos de uma única pessoa, de acordo com o regime político do absolutismo.

Em síntese, podemos afirmar que o sistema inquisitorial é um sistema rigoroso, secreto, que adota ilimitadamente a tortura como meio de atingir o esclarecimento dos fatos e de concretizar a finalidade do processo penal. Nele, não há falar em contraditório, pois as funções de acusar, defender e julgar estão reunidas nas mãos do juiz inquisidor, sendo o acusado considerado mero objeto do processo, e não sujeito de direitos. O magistrado, chamado de inquisidor, era a figura do acusador e do juiz ao mesmo tempo, possuindo amplos poderes de investigação e de produção de provas, seja no curso da fase investigatória, seja durante a instrução processual.

Por essas características, fica evidente que o processo inquisitório é incompatível com os direitos e garantias individuais, violando os mais elementares princípios processuais penais. Sem a presença de um julgador equidistante das partes, não há falar em imparcialidade, do que resulta evidente violação à Constituição Federal e à própria Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH, art. 8º, nº 1).

2.2. Sistema acusatórioDe maneira distinta, o sistema acusatório caracteriza-se pela presença de partes distintas,

contrapondo-se acusação e defesa em igualdade de condições, e a ambas se sobrepondo um juiz, de maneira equidistante e imparcial. Aqui, há uma separação das funções de acusar, defender e julgar.3 O processo caracteriza-se, assim, como legítimo actum trium personarum.

Historicamente, o processo acusatório tem como suas características a oralidade e a publici-dade, nele se aplicando o princípio da presunção de inocência. Logo, a regra era que o acusado

3 Nesse sentido: PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005. p. 114.

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permanecesse solto durante o processo. Não obstante, em várias fases do Direito Romano, o sistema acusatório foi escrito e sigiloso.

Quanto à iniciativa probatória, o juiz não era dotado do poder de determinar de ofício a produção de provas, já que estas deveriam ser fornecidas pelas partes, prevalecendo o exame direto das testemunhas e do acusado. Portanto, sob o ponto de vista probatório, aspira-se uma posição de passividade do juiz quanto à reconstrução dos fatos. Com o objetivo de preservar sua imparcialidade, o magistrado deve deixar a atividade probatória para as partes. Ainda que se admita que o juiz tenha poderes instrutórios, essa iniciativa deve ser possível apenas no curso do processo, em caráter excepcional, como atividade subsidiária da atuação das partes.

No sistema acusatório, a gestão das provas é função das partes, cabendo ao juiz um papel de garante das regras do jogo, salvaguardando direitos e liberdades fundamentais. Diversamente do sistema inquisitorial, o sistema acusatório caracteriza-se por gerar um processo de partes, em que autor e réu constroem através do confronto a solução justa do caso penal. A separação das funções processuais de acusar, defender e julgar entre sujeitos processuais distintos, o reconhe-cimento dos direitos fundamentais ao acusado, que passa a ser sujeito de direitos e a construção dialética da solução do caso pelas partes, em igualdade de condições, são, assim, as principais características desse modelo.

Segundo Ferrajoli, são características do sistema acusatório a separação rígida entre o juiz e acusação, a paridade entre acusação e defesa, e a publicidade e a oralidade do julgamento. Lado outro, são tipicamente próprios do sistema inquisitório a iniciativa do juiz em campo probatório, a disparidade de poderes entre acusação e defesa e o caráter escrito e secreto da instrução.4

O sistema acusatório vigorou durante quase toda a Antiguidade grega e romana, bem como na Idade Média, nos domínios do direito germano. A partir do século XIII entra em declínio, passando a ter prevalência o sistema inquisitivo. Atualmente, o processo penal inglês é aquele que mais se aproxima de um sistema acusatório puro.

Pelo sistema acusatório, acolhido de forma explícita pela Constituição Federal de 1988 (CF, art. 129, inciso I), que tornou privativa do Ministério Público a propositura da ação penal pública, a relação processual somente tem início mediante a provocação de pessoa encarregada de deduzir a pretensão punitiva (ne procedat judex ex officio), e, conquanto não retire do juiz o poder de gerenciar o processo mediante o exercício do poder de impulso processual, impede que o magistrado tome iniciativas que não se alinham com a equidistância que ele deve tomar quanto ao interesse das partes. Deve o magistrado, portanto, abster-se de promover atos de ofício na fase investigatória, atribuição esta que deve ficar a cargo das autoridades policiais e do Ministério Público.

Como se percebe, o que efetivamente diferencia o sistema inquisitorial do acusatório é a posição dos sujeitos processuais e a gestão da prova. O modelo acusatório reflete a posição de igualdade dos sujeitos, cabendo exclusivamente às partes a produção do material probatório e sempre observando os princípios do contraditório, da ampla defesa, da publicidade e do dever de motivação das decisões judiciais. Portanto, além da separação das funções de acusar, de-fender e julgar, o traço peculiar mais importante do sistema acusatório é que o juiz não é, por excelência, o gestor da prova.

Em síntese, pode-se trabalhar com o seguinte quadro comparativo entre os dois sistemas:

4 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 518.

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Sistema Inquisitorial Sistema Acusatório

Não há separação das funções de acusar, defender e julgar, que estão concentradas em uma única pessoa, que assume as vestes de um juiz inquisidor;

Separação das funções de acusar, defender e julgar. Por consequência, caracteriza-se pela presença de partes dis-tintas (actum trium personarum), contrapondo-se acusação e defesa em igualdade de condições, sobrepondo-se a am-bas um juiz, de maneira equidistante e imparcial;

Como se admite o princípio da verdade real, o acusado não é sujeito de direitos, sendo tratado como mero objeto do processo, daí por que se admite inclusive a tortura como meio de se obter a verdade absoluta;

O princípio da verdade real é substituído pelo princípio da busca da verdade, devendo a prova ser produzida com fiel observância ao contraditório e à ampla defesa;

Gestão da prova: o juiz inquisidor é dotado de ampla iniciativa acusatória e probatória, tendo liberdade para determinar de ofício a colheita de elementos informa-tivos e de provas, seja no curso das investigações, seja no curso da instrução processual;

Gestão da prova: recai precipuamente sobre as partes. Na fase investigatória, o juiz só deve intervir quando provoca-do, e desde que haja necessidade de intervenção judicial. Durante a instrução processual, prevalece o entendimento de que o juiz tem certa iniciativa probatória, podendo de-terminar a produção de provas de ofício, desde que o faça de maneira subsidiária;

A concentração de poderes nas mãos do juiz e a inicia-tiva acusatória dela decorrente é incompatível com a garantia da imparcialidade (CADH, art. 8º, § 1º) e com o princípio do devido processo legal.

A separação das funções e a iniciativa probatória residu-al restrita à fase judicial preserva a equidistância que o magistrado deve tomar quanto ao interesse das partes, sendo compatível com a garantia da imparcialidade e com o princípio do devido processo legal.

2.3. Sistema misto ou francêsApós se disseminar por toda a Europa a partir do século XIII, o sistema inquisitorial passa

a sofrer alterações com a modificação napoleônica, que instituiu o denominado sistema misto. Trata-se de um modelo novo, funcionando como uma fusão dos dois modelos anteriores, que surge com o Code d’Instruction Criminelle francês, de 1808. Por isso, também é denominado de sistema francês.

É chamado de sistema misto porquanto o processo se desdobra em duas fases distintas: a primeira fase é tipicamente inquisitorial, com instrução escrita e secreta, sem acusação e, por isso, sem contraditório. Nesta, objetiva-se apurar a materialidade e a autoria do fato delituoso. Na segunda fase, de caráter acusatório, o órgão acusador apresenta a acusação, o réu se defende e o juiz julga, vigorando, em regra, a publicidade e a oralidade.

Quando o Código de Processo Penal entrou em vigor, prevalecia o entendimento de que o sistema nele previsto era misto. A fase inicial da persecução penal, caracterizada pelo inquérito policial, era inquisitorial. Porém, uma vez iniciado o processo, tínhamos uma fase acusatória. Porém, com o advento da Constituição Federal, que prevê de maneira expressa a separação das funções de acusar, defender e julgar, estando assegurado o contraditório e a ampla defesa, além do princípio da presunção de não culpabilidade, estamos diante de um sistema acusatório.

É bem verdade que não se trata de um sistema acusatório puro. De fato, há de se ter em mente que o Código de Processo Penal tem nítida inspiração no modelo fascista italiano. Torna-se imperioso, portanto, que a legislação infraconstitucional seja relida diante da nova ordem consti-tucional. Dito de outro modo, não se pode admitir que se procure delimitar o sistema brasileiro a partir do Código de Processo Penal. Pelo contrário. São as leis que devem ser interpretadas à luz dos direitos, garantias e princípios introduzidos pela Carta Constitucional de 1988.

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3. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO PROCESSO PENALO vocábulo princípio é dotado de uma imensa variedade de significações. Sem nos olvidar

da distinção feita pela doutrina entre princípios, normas, regras e postulados,5 trabalharemos com a noção de princípios como mandamentos nucleares de um sistema.

A Constituição Federal de 1988 elencou vários princípios processuais penais, porém, no contexto de funcionamento integrado e complementar das garantias processuais penais, não se pode perder de vista que os Tratados Internacionais de Direitos Humanos firmados pelo Brasil também incluíram diversas garantias ao modelo processual penal brasileiro. Nessa ordem, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), prevê diversos direitos relacionados à tutela da liberdade pessoal (Decreto 678/92, art. 7º), além de inúmeras garantias judiciais (Decreto 678/92, art. 8º).

Embora seja polêmica a discussão em torno do status normativo dos Tratados Internacio-nais de Direitos Humanos, a partir do julgamento do RE 466.343, tem prevalecido no Supremo Tribunal Federal a tese do status de supralegalidade da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Não por outro motivo, a despeito do teor do art. 5º, LXVII, da Constituição Federal, que prevê, em tese, a possibilidade de prisão civil do devedor de alimentos e do depositário infiel, a Suprema Corte entendeu que a circunstância de o Brasil haver subscrito o Pacto de São José da Costa Rica, que restringe a prisão civil por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia (art. 7º, 7), conduz à inexistência de balizas visando à eficácia do art. 5º, LXVII, da Carta Magna. Logo, com a introdução do aludido Pacto no ordenamento jurídico nacional, restaram derrogadas as normas estritamente legais definidoras da custódia do depositário infiel.6

Seguindo esse raciocínio, o Supremo Tribunal Federal averbou expressamente a revogação da Súmula 619 do STF.7 Além disso, a fim de por um fim à controvérsia em torno da prisão civil do depositário infiel, o plenário do Supremo Tribunal Federal aprovou no dia 16 de dezembro de 2009 a edição da súmula vinculante nº 25, com o seguinte teor: “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito”. No mesmo caminho, o STJ editou a súmula nº 419, que dispõe: “descabe a prisão civil do depositário judicial infiel”. Logo, subentende-se que deixaram de ter validade a súmula nº 304 do STJ (“É ilegal a decretação da prisão civil daquele que não assume expressamente o encargo de depositário judicial”) e a súmula nº 305 do STJ (“É descabida a prisão civil do depositário quando, decretada a falência da empresa, sobrevém a arrecadação do bem pelo síndico”).8

Hoje, portanto, já não há mais espaço para a decretação da prisão civil do depositário infiel, seja nos casos de alienação fiduciária, seja em contratos de depósito ou nos casos de depósito judicial, na medida em que a Convenção Americana de Direitos Humanos, cujo status norma-tivo supralegal a coloca abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna, produziu a invalidade das normas infraconstitucionais que dispunham sobre tal espécie de prisão civil.

5 Para ampla análise dessa distinção, sugerimos a leitura da obra de Robert Alexy: Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Vírgilio Afonso da Silva. São Paulo: Editora Malheiros, 2008.

6 STF, Pleno, HC 87.585/TO, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 118 25/06/2009.7 Na dicção do Supremo, “ante o ordenamento jurídico pátrio, a prisão civil somente subsiste no caso de descum-

primento inescusável de obrigação alimentícia, e não no de depositário considerada a cédula rural pignoratícia”. (STF, Pleno, HC 92.566/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 104 04/06/2009).

8 Apesar de o STJ ainda não ter cancelado formalmente as súmulas acima referidas, depois do julgamento do RE 466.343/SP, a própria Corte Especial do STJ já vem trilhando o mesmo caminho, como se denota do teor do Informativo nº 418 do STJ (REsp 914.253/SP, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 02/12/2009).

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3.1. Da Presunção de inocência (ou da não culpabilidade)

3.1.1. Noções introdutóriasEm 1764, Cesare Beccaria, em sua célebre obra Dos delitos e das penas, já advertia que

“um homem não pode ser chamado réu antes da sentença do juiz, e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública após ter decidido que ele violou os pactos por meio dos quais ela lhe foi outorgada”.9

Esse direito de não ser declarado culpado enquanto ainda há dúvida sobre se o cidadão é culpado ou inocente foi acolhido no art. 9º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). A Declaração Universal de Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia da Organiza-ção das Nações Unidas (ONU), em 10 de dezembro de 1948, em seu art. 11.1, dispõe: “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não se prova sua culpabilidade, de acordo com a lei e em processo público no qual se assegurem todas as garantias necessárias para sua defesa”. Dispositivos semelhantes são encontrados na Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (art. 6.2), no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (art. 14.2) e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Dec. 678/92 – art. 8º, § 2º): “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”.

Na lição de Marco Antônio Marques da Silva, há três significados diversos para o princípio da presunção de inocência nos referidos tratados e legislações internacionais, a saber: 1) tem por finalidade estabelecer garantias para o acusado diante do poder do Estado de punir (significado atribuído pelas escolas doutrinárias italianas); 2) visa proteger o acusado durante o processo penal, pois, se é presumido inocente, não deve sofrer medidas restritivas de direito no decorrer deste (é o significado que tem o princípio no art. IX da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789); 3) trata-se de regra dirigida diretamente ao juízo de fato da sentença penal, o qual deve analisar se a acusação provou os fatos imputados ao acusado, sendo que, em caso negativo, a absolvição é de rigor (significado da presunção de inocência na Declaração Universal de Direitos dos Homens e do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos).10

No ordenamento pátrio, até a entrada em vigor da Constituição de 1988, esse princípio somente existia de forma implícita, como decorrência da cláusula do devido processo legal.11 Com a Constituição Federal de 1988, o princípio da presunção de não culpabilidade passou a constar expressamente do inciso LVII do art. 5º: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Consiste, assim, no direito de não ser declarado culpado senão mediante sentença transitada em julgado, ao término do devido processo legal, em que o acusado tenha se utilizado de todos os meios de prova pertinentes para sua defesa (ampla defesa) e para a destruição da credibilidade das provas apresentadas pela acusação (contraditório).

Comparando-se a forma como referido princípio foi previsto nos Tratados Internacionais e na Constituição Federal, percebe-se que, naqueles, costuma-se referir à presunção de inocência, ao passo que a Constituição Federal em momento algum utiliza a expressão inocente, dizendo,

9 BECCARIA, Cesare Bonesana, Marchesi de. Dos delitos e das penas. Tradução: Lucia Guidicini, Alessandro Berti Contessa. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 69.

10 Acesso à justiça penal e Estado Democrático de Direito. São Paulo: Ed. Juarez de Oliveira, 2001. p. 30-31.11 Nesse sentido: STF, 1ª Turma, HC 67.707/RS, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 14/08/1992.

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na verdade, que ninguém será considerado culpado. Por conta dessa diversidade terminológica, o preceito inserido na Carta magna passou a ser denominado de presunção de não culpabilidade.

Na jurisprudência brasileira, ora se faz referência ao princípio da presunção de inocência,12 ora ao princípio da presunção de não culpabilidade.13 Segundo Badaró, não há diferença entre presunção de inocência e presunção de não culpabilidade, sendo inútil e contraproducente a tentativa de apartar ambas as ideias – se é que isto é possível –, devendo ser reconhecida a equivalência de tais fórmulas.14

A par dessa distinção terminológica, percebe-se que o texto constitucional é mais amplo, na medida em que estende referida presunção até o trânsito em julgado de sentença penal con-denatória, ao passo que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Dec. 678/92, art. 8º, nº 2) o faz tão somente até a comprovação legal da culpa. Com efeito, em virtude do texto expresso do Pacto de São José da Costa Rica, poder-se-ia pensar que a presunção de inocência deixaria de ser aplicada antes do trânsito em julgado, desde que já estivesse comprovada a culpa, o que poderia ocorrer, por exemplo, com a prolação de acórdão condenatório no julgamento de um recurso, na medida em que a mesma Convenção Americana também assegura o direito ao duplo grau de jurisdição (art. 8º, § 2º, “h”).

A Constituição Federal, todavia, é claríssima ao estabelecer que somente o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória poderá afastar o estado inicial de inocência de que todos gozam. Seu caráter mais amplo deve prevalecer, portanto, sobre o teor da Convenção Americana de Direitos Humanos. De fato, a própria Convenção Americana prevê que os direitos nela estabelecidos não poderão ser interpretados no sentido de restringir ou limitar a aplicação de normas mais amplas que existam no direito interno dos países signatários (art. 29, b). Em consequência, deverá sempre prevalecer a disposição mais favorável.

Do princípio da presunção de inocência (ou presunção de não culpabilidade) derivam duas regras fundamentais: a regra probatória (também conhecida como regra de juízo) e a regra de tratamento, objeto de estudo nos próximos tópicos.15

3.1.2. Da regra probatória (in dubio pro reo)Por força da regra probatória, a parte acusadora tem o ônus de demonstrar a culpabilidade

do acusado além de qualquer dúvida razoável, e não este de provar sua inocência. Em outras palavras, recai exclusivamente sobre a acusação o ônus da prova, incumbindo-lhe demonstrar que o acusado praticou o fato delituoso que lhe foi imputado na peça acusatória.16

12 Vide súmula nº 09 do STJ. E também: STF, 1ª Turma, HC-ED 91.150/SP, Rel. Min. Menezes Direito, DJe 018 01º/02/2008.

13 A título de exemplo: STF, 1ª Turma, AI-AgR 604.041/RS, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 092 – 31/08/2007; STF, 2ª Turma, HC 84.029/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 06/09/2007 p. 42.

14 BADARÓ, Gustavo Henrique. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 283.

15 Por força do disposto no art. 8º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (n. 2), Luiz Flávio Gomes acres-centa uma terceira regra, qual seja, a regra de garantia, segundo a qual a única forma de se afastar a presunção de inocência do acusado seria comprovando-se legalmente sua culpabilidade (Legislação criminal especial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 442). A nosso ver, e com a devida vênia, tal regra já está inserida na regra probatória.

16 Para mais detalhes acerca da divisão do ônus da prova no processo penal, remetemos o leitor ao capítulo de provas.

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Como consectários da regra probatória, Antônio Magalhães Gomes Filho destaca: a) a incumbência do acusador de demonstrar a culpabilidade do acusado (pertence-lhe com exclu-sividade o ônus dessa prova); b) a necessidade de comprovar a existência dos fatos imputados, não de demonstrar a inconsistência das desculpas do acusado; c) tal comprovação deve ser feita legalmente (conforme o devido processo legal); d) impossibilidade de se obrigar o acusado a colaborar na apuração dos fatos (daí o seu direito ao silêncio).17

Essa regra probatória deve ser utilizada sempre que houver dúvida sobre fato relevante para a decisão do processo. Na dicção de Badaró, cuida-se de uma disciplina do acertamento penal, uma exigência segundo a qual, para a imposição de uma sentença condenatória, é necessário provar, eliminando qualquer dúvida razoável, o contrário do que é garantido pela presunção de inocência, impondo a necessidade de certeza.18

Nesta acepção, presunção de inocência confunde-se com o in dubio pro reo. Não havendo certeza, mas dúvida sobre os fatos em discussão em juízo, inegavelmente é preferível a absolvição de um culpado à condenação de um inocente, pois, em um juízo de ponderação, o primeiro erro acaba sendo menos grave que o segundo.

O in dubio pro reo não é, portanto, uma simples regra de apreciação das provas. Na verdade, deve ser utilizado no momento da valoração das provas: na dúvida, a decisão tem de favorecer o imputado, pois não tem ele a obrigação de provar que não praticou o delito. Antes, cabe à parte acusadora (Ministério Público ou querelante) afastar a presunção de não culpabilidade que recai sobre o imputado, provando além de uma dúvida razoável que o acusado praticou a conduta delituosa cuja prática lhe é atribuída.

Como já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal, não se justifica, sem base probatória idônea, a formulação possível de qualquer juízo condenatório, que deve sempre assentar-se – para que se qualifique como ato revestido de validade ético-jurídica – em elementos de certeza, os quais, ao dissiparem ambiguidades, ao esclarecerem situações equívocas e ao desfazerem dados eivados de obscuridade, revelam-se capazes de informar, com objetividade, o órgão judiciário competente, afastando, desse modo, dúvidas razoáveis, sérias e fundadas que poderiam conduzir qualquer magistrado ou Tribunal a pronunciar o non liquet.19

O in dubio pro reo só incide até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Por-tanto, na revisão criminal, que pressupõe o trânsito em julgado de sentença penal condenatória ou absolutória imprópria, não há falar em in dubio pro reo, mas sim em in dubio contra reum. O ônus da prova quanto às hipóteses que autorizam a revisão criminal (CPP, art. 621) recai única e exclusivamente sobre o postulante, razão pela qual, no caso de dúvida, deverá o Tribunal julgar improcedente o pedido revisional.

3.1.3. Da regra de tratamentoA privação cautelar da liberdade, sempre qualificada pela nota da excepcionalidade, somente

se justifica em hipóteses estritas, ou seja, a regra é responder o processo penal em liberdade, a

17 “O princípio da presunção de inocência na Constituição de 1988 e na Convenção Americana sobre Direitos Hu-manos (Pacto de São José da Costa Rica)”, em Revista do Advogado, da AASP, nº 42, abril/94, p. 31.

18 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 285.

19 STF, 1ª Turma, HC 73.338/RJ, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 19/12/1996.

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exceção é estar preso no curso do processo.20 São manifestações claras desta regra de tratamento a vedação de prisões processuais automáticas ou obrigatórias e a impossibilidade de execução provisória ou antecipada da sanção penal.

Portanto, por força da regra de tratamento oriunda do princípio constitucional da não cul-pabilidade, o Poder Público está impedido de agir e de se comportar em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao acusado, como se estes já houvessem sido condenados, defini-tivamente, enquanto não houver sentença condenatória com trânsito em julgado.21

O princípio da presunção de inocência não proíbe, todavia, a prisão cautelar ditada por razões excepcionais e tendente a garantir a efetividade do processo. Como bem assevera J. J. Gomes Canotilho, se o princípio for visto de uma forma radical, nenhuma medida cautelar poderá ser aplicada ao acusado, o que, sem dúvida, acabará por inviabilizar o processo penal.22 Em outras palavras, o inciso LVII do art. 5º da Carta Magna não impede a decretação de medidas cautelares de natureza pessoal antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória, cujo permis-sivo decorre inclusive da própria Constituição (art. 5º, LXI), sendo possível se conciliar os dois dispositivos constitucionais desde que a medida cautelar não perca seu caráter excepcional, sua qualidade instrumental, e se mostre necessária à luz do caso concreto.

Há quem entenda que esse dever de tratamento atua em duas dimensões: a) interna ao processo: funciona como dever imposto, inicialmente, ao magistrado, no sentido de que o ônus da prova recai integralmente sobre a parte acusadora, devendo a dúvida favorecer o acusado. Ademais, as prisões cautelares devem ser utilizadas apenas em situações excepcionais, desde que comprovada a necessidade da medida extrema para resguardar a eficácia do processo; b) externa ao processo: o princípio da presunção de inocência e as garantias constitucionais da imagem, dignidade e privacidade demandam uma proteção contra a publicidade abusiva e a estigmatização do acusado, funcionando como limites democráticos à abusiva exploração mi-diática em torno do fato criminoso e do próprio processo judicial.23

Portanto, por força do dever de tratamento, qualquer que seja a modalidade de prisão cau-telar, não se pode admitir que a medida seja usada como meio de inconstitucional antecipação executória da própria sanção penal, pois tal instrumento de tutela cautelar penal somente se le-gitima se se comprovar, com apoio em base empírica idônea, a real necessidade da adoção, pelo Estado, dessa extraordinária medida de constrição do status libertatis do indiciado ou do réu.24

Não por outro motivo, em recente julgado concluiu o Supremo Tribunal Federal que, a despeito de os recursos extraordinários não serem dotados de efeito suspensivo, pelo menos em regra (CPP, art. 637, c/c arts. 995 e 1029, § 5º, ambos do novo CPC), enquanto não houver o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, não é possível a execução da pena privativa de liberdade, ressalvada a hipótese de prisão cautelar do réu, cuja decretação está condicionada à presença dos pressupostos do art. 312 do CPP.25

20 “Diz-me como tratas o arguido, dir-te-ei o processo penal que tens e o Estado que o instituiu” (FIGUEIREDO DIAS, Jorge. Direito processual penal. 1º vol. Coimbra: Coimbra Editora, 1984. p. 428.)

21 STF – HC 89.501/GO – 2ª Turma – Rel. Min. Celso de Mello – DJ 16/03/2007 p. 43.22 Constituição da República portuguesa anotada. 3ª ed. Coimbra: Ed. Coimbra, 1993. p. 203.23 LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. II. Rio de Janeiro: Editora Lumen

Juris, 2009. p. 47/48.24 Nessa linha: STF – HC 90.753/RJ – 2ª Turma – Rel. Min. Celso de Mello – DJ 23/11/2007 p. 116.25 HC 84.078, Rel. Min. Eros Grau. Informativo nº 534 do STF – Brasília, 2 a 6 de fevereiro de 2009. Ainda no sentido

de que a prisão sem fundamento cautelar, antes de transitada em julgado a condenação, consubstancia execu-ção antecipada da pena, violando o disposto no art. 5º, inciso LVII, da Constituição do Brasil: STF, 2ª Turma, HC

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Quanto ao assunto, é bom lembrar que, durante anos, sempre prevaleceu o entendimento pretoriano de que não havia óbice à execução da sentença quando pendente apenas recursos sem efeito suspensivo. Nessa linha, aliás, dispõe o art. 637 do CPP que “o recurso extraordinário não terá efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância, para a execução da sentença”. Assim, ainda que o acusado tivesse interposto recurso extraordinário ou especial, estaria sujeito à prisão, mesmo que inexistentes os pressupostos da prisão preventiva.

Modificando tal entendimento, concluiu a Suprema Corte que os preceitos veiculados pela Lei 7.210/84 (Lei de Execução Penal, artigos 105, 147 e 164), além de adequados à ordem constitucional vigente (art. 5º, LVII), sobrepõem-se, temporal e materialmente, ao disposto no art. 637 do CPP. Afirmou-se também que a prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente poderia ser decretada a título cautelar. Enfatizou-se que a ampla defesa englobaria to-das as fases processuais, razão por que a execução da sentença após o julgamento da apelação implicaria, também, restrição do direito de defesa, com desequilíbrio entre a pretensão estatal de aplicar a pena e o direito, do acusado, de elidir essa pretensão.

As mudanças produzidas no CPP pela Lei nº 12.403/11 confirmam a nova orientação do Supremo Tribunal Federal. Consoante a nova redação conferida ao art. 283 do CPP, ninguém pode ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.

Todavia, em situações excepcionais, quando restar evidenciado o intuito meramente pro-telatório dos recursos, apenas para impedir o exaurimento da prestação jurisdicional e o conse-quente início do cumprimento da pena, os Tribunais Superiores têm admitido o imediato início da execução mesmo antes do trânsito em julgado, haja vista o exercício irregular e abusivo do direito de defesa e do duplo grau de jurisdição e a consequente violação ao princípio da coope-ração, previsto no art. 6º do novo CPC (“Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”), ao qual também se sujeitam as partes. Nessa linha, como já se pronunciou o Supremo, “a reiteração de embargos de declaração, sem que se registre qualquer dos seus pressupostos, evidencia o intuito meramente protelatório. A interposição de embargos de declaração com finalidade meramente protelatória autoriza o imediato cumprimento da decisão emanada pelo Supremo Tribunal Federal, indepen-dentemente da publicação do acórdão”.26

88.174/SP, Rel. Min. Eros Grau, j. 12/12/1996, DJe 092 30/08/2007. E também: STF, 2ª Turma, HC 89.754/BA, Rel. Min. Celso de Mello, j. 13/02/2007, DJe 04 26/04/2007; STF, 2ª Turma, HC 91.232/PE, Rel. Min. Eros Grau, j. 06/11/2007, DJe 157 06/12/2007; STJ – HC 122.191/RJ – 5ª Turma – Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima – Dje 18/05/2009.

26 STF, 1ª Turma, RMS 23.841 AgR-ED-ED/DF, Rel. Min. Eros Grau, j. 18/12/2006, DJ 16/02/2007. No sentido de que a utilização indevida das espécies recursais, consubstanciada na interposição de inúmeros recursos contrários à jurisprudência como mero expediente protelatório, desvirtua o próprio postulado constitucional da ampla defesa: STF, 2ª Turma, AI 759.450 ED/RJ, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 01/12/2009, DJe 237 17/12/2009. Na mesma linha: STF, Pleno, AO 1.046 ED/RR, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 28/11/2007, DJe 31 21/02/2008. Para o STJ, quando verificada a oposição de recursos manifestamente protelatórios apenas para se evitar o exaurimento da prestação jurisdicional, tem sido admitida a baixa imediata dos autos, para o início da execução penal: STJ, 5ª Turma, EDcl nos EDcl no AgRg no Ag 1.142.020/PB, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 07/10/2010, DJe 03/11/2010. E ainda: STJ, 5ª Turma, EDcl nos EDcl no AgRg no Ag 862.591/MG, Rel. Min. Felix Fischer, j. 15/09/2009, DJe 05/10/2009. O abuso do direito de recorrer no processo penal, com o escopo de obstar o trânsito em julgado da condenação e, por consequência, de se alcançar a prescrição da pretensão punitiva, autoriza inclusive a determinação monocrática de baixa imediata dos autos por Ministro de Tribunal Superior, independentemente de publicação da decisão. Nessa linha: STF, Pleno, RE 839.163 QO/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 05/11/2014.

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3.1.3.1. Concessão antecipada dos benefícios da execução penal ao preso cautelarSendo necessária a manutenção ou a decretação da prisão do acusado antes do trânsito em

julgado da sentença condenatória, em virtude da presença de uma das hipóteses que autorizam a prisão preventiva, nada impede a concessão antecipada dos benefícios da execução penal definitiva ao preso cautelar. De fato, supondo que já tenha se operado o trânsito em julgado da sentença condenatória para o Ministério Público, mas ainda pendente recurso da defesa, é certo que, por força do princípio da non reformatio in pejus, a pena imposta ao acusado não poderá ser agravada (CPP, art. 617, in fine). Logo, estando o cidadão submetido à prisão cautelar, justificada pela presença dos requisitos dos arts. 312 e 313 do CPP, afigura-se possível a inci-dência de institutos como a progressão de regime e outros incidentes da execução. Em outras palavras, a vedação à execução provisória da pena decorrente do princípio da presunção de não culpabilidade não impede a antecipação cautelar dos benefícios da execução penal definitiva ao preso processual.27

De se ver que a própria Lei de Execução Penal estende seus benefícios aos presos provisórios (Lei nº 7.210/84, art. 2º, parágrafo único), sendo que a detração prevista no art. 42 do Código Penal permite que o tempo de prisão provisória seja descontado do tempo de cumprimento de pena. Nessa linha, de acordo com a Súmula 716 do STF, admite-se a progressão de regime de cumprimento da pena ou a aplicação imediata de regime menos severo nela determinada, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. A súmula 717 do STF, por sua vez, preceitua que não impede a progressão de regime de execução da pena, fixada em sentença não transitada em julgado, o fato de o réu se encontrar em prisão especial.28

3.2. Princípio do contraditórioDe acordo com o art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal, aos litigantes, em processo

judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

Na clássica lição de Joaquim Canuto Mendes de Almeida, sempre se compreendeu o prin-cípio do contraditório como a ciência bilateral dos atos ou termos do processo e a possibilidade de contrariá-los.29 De acordo com esse conceito, o núcleo fundamental do contraditório estaria ligado à discussão dialética dos fatos da causa, devendo se assegurar a ambas as partes, e não somente à defesa, a oportunidade de fiscalização recíproca dos atos praticados no curso do processo. Eis o motivo pelo qual se vale a doutrina da expressão “audiência bilateral”, consubs-tanciada pela expressão em latim audiatur et altera pars (seja ouvida também a parte adversa). Seriam dois, portanto, os elementos do contraditório: a) direito à informação; b) direito de participação. O contraditório seria, assim, a necessária informação às partes e a possível reação a atos desfavoráveis.

27 Como observa Bottini, são situações distintas: “na execução provisória, não existem os requisitos para a prisão cautelar, e a privação de liberdade surge como uma antecipação da pena, inadmissível diante dos preceitos constitucionais apontados. Na antecipação dos benefícios, o cidadão está submetido à prisão cautelar, justificada pela existência dos requisitos do art. 312 do CPP, e, como há privação de liberdade seria possível a incidência de institutos como a progressão de regime e outros incidentes da execução. (As reformas no processo penal: as novas Leis de 2008 e os projetos de reforma. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 468). Com entendimento semelhante: FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. Op. cit. p. 318.

28 Acerca da antecipação de benefícios prisionais ao preso cautelar, vide Resolução nº 19/2006 do Conselho Nacional de Justiça.

29 Princípios fundamentais do processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1973. p. 82.

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Como se vê, o direito à informação funciona como consectário lógico do contraditório. Não se pode cogitar da existência de um processo penal eficaz e justo sem que a parte adversa seja cientificada da existência da demanda ou dos argumentos da parte contrária. Daí a importância dos meios de comunicação dos atos processuais: citação, intimação e notificação. Não por outro motivo, de acordo com a súmula 707 do Supremo Tribunal Federal, “constitui nulidade a falta de intimação do denunciado para oferecer contrarrazões ao recurso interposto da rejeição da denúncia, não a suprindo a nomeação de defensor dativo”.

Também deriva do contraditório o direito à participação, aí compreendido como a possibi-lidade de a parte oferecer reação, manifestação ou contrariedade à pretensão da parte contrária.

Pela concepção original do princípio do contraditório, entendia-se que, quanto à reação, bastava que a mesma fosse possibilitada, ou seja, tratava-se de reação possível. No entanto, a mudança de concepção sobre o princípio da isonomia, com a superação da mera igualdade for-mal e a busca de uma igualdade substancial, produziu a necessidade de se igualar os desiguais, repercutindo também no âmbito do princípio do contraditório. O contraditório, assim, deixou de ser visto como uma mera possibilidade de participação de desiguais para se transformar em uma realidade. Enfim, há de se assegurar uma real e igualitária participação dos sujeitos processuais ao longo de todo o processo, assegurando a efetividade e plenitude do contraditório. É o que se denomina contraditório efetivo e equilibrado.

Na dicção de Badaró, houve, assim, uma dupla mudança, subjetiva e objetiva. Segundo o autor, “quanto ao seu objeto, deixou de ser o contraditório uma mera possibilidade de par-ticipação de desiguais, passando a se estimular a participação dos sujeitos em igualdade de condições. Subjetivamente, porque a missão de igualar os desiguais é atribuída ao juiz e, assim, o contraditório não só permite a atuação das partes, como impõe a participação do julgador”.30

Notadamente no âmbito processual penal, não basta assegurar ao acusado apenas o direito à informação e à reação em um plano formal, tal qual acontece no processo civil. Estando em discussão a liberdade de locomoção, ainda que o acusado não tenha interesse em oferecer reação à pretensão acusatória, o próprio ordenamento jurídico impõe a obrigatoriedade de assistência técnica de um defensor. Nesse contexto, dispõe o art. 261 do CPP que nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor. E não se deve contentar com uma atuação meramente formal desse defensor. Basta perceber que, dentre as atribuições do juiz-presidente do júri, o CPP elenca a possibilidade de nomeação de defensor ao acusado, quando considerá-lo indefeso (CPP, art. 497, V).31

Portanto, pode-se dizer que se, em um primeiro momento, o contraditório limitava-se ao direito à informação e à possibilidade de reação, a partir dos ensinamentos do italiano Elio Fazzalari, o contraditório passou a ser analisado também no sentido de se assegurar o respeito à paridade de tratamento (par conditio ou paridade de armas). De fato, de nada adianta se as-segurar à parte a possibilidade formal de se pronunciar sobre os atos da parte contrária, se não lhe são outorgados os meios para que tenha condições reais e efetivas de contrariá-los. Há de se assegurar, pois, o equilíbrio entre a acusação e defesa, que devem estar munidas de forças similares. O contraditório pressupõe, assim, a paridade de armas: somente pode ser eficaz se os contendentes possuem a mesma força, ou, ao menos, os mesmos poderes.

30 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Direito processual penal. Rio de Janeiro: Editora Elsevier, 2008. Tomo 1. p. 1-36.

31 Com esse entendimento: TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 45.

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É nesse sentido que deve ser entendido o parágrafo único do art. 261, acrescentado pela Lei nº 10.792/03, que passou a dispor: “A defesa técnica, quando realizada por defensor público ou dativo, será sempre exercida através de manifestação fundamentada”.

Prevalece na doutrina e na jurisprudência o entendimento de que a observância do contra-ditório só é obrigatória, no processo penal, na fase processual, e não na fase investigatória. Isso porque o dispositivo do art. 5º, LV, da Carta Magna, faz menção à observância do contraditório em processo judicial ou administrativo. Logo, considerando-se que o inquérito policial é tido como um procedimento administrativo destinado à colheita de elementos de informação quanto à existência do crime e quanto à autoria ou participação, não há falar em observância do con-traditório na fase preliminar de investigações.32

Por força do princípio ora em análise, a palavra prova só pode ser usada para se referir aos elementos de convicção produzidos, em regra, no curso do processo judicial, e, por conseguinte, com a necessária participação dialética das partes, sob o manto do contraditório e da ampla defesa. Essa estrutura dialética da produção da prova, que se caracteriza pela possibilidade de indagar e de verificar os contrários, funciona como eficiente mecanismo para a busca da verdade. De fato, as opiniões contrapostas das partes adversas ampliam os limites da cognição do magistrado sobre os fatos relevantes para a decisão da demanda e diminuem a possibilidade de erros.

A prova há de ser produzida não só com a participação do acusador e do acusado, como também mediante a direta e constante supervisão do órgão julgador. De fato, com a inserção do princípio da identidade física do juiz no processo penal, o juiz que presidir a instrução deverá proferir a sentença (CPP, art. 399, § 2º, com redação dada pela Lei nº 11.719/08). Funcionando a observância do contraditório como verdadeira condição de existência da prova, só podem ser considerados como prova, portanto, os dados de conhecimento introduzidos no processo na presença do juiz e com a participação dialética das partes.

Nesse sentido, foi bastante incisiva a Lei nº 11.690/08, dando nova redação ao art. 155, caput, do CPP: “O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e anteci-padas”. Impõe-se, pois, a observância do contraditório ao longo de toda a persecutio criminis in iudicio, como verdadeira pedra fundamental do processo penal, contribuindo para o acertamento do fato delituoso. Afinal, quanto maior a participação dialética das partes, maior é a probabili-dade de aproximação dos fatos e do direito aplicável, contribuindo de maneira mais eficaz para a formação do convencimento do magistrado.33

3.2.1. Contraditório para a prova e contraditório sobre a provaO contraditório para a prova (ou contraditório real) demanda que as partes atuem na própria

formação do elemento de prova, sendo indispensável que sua produção se dê na presença do órgão julgador e das partes. É o que acontece com a prova testemunhal colhida em juízo, onde

32 A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento no sentido de que o inquérito policial é peça meramente informativa, não suscetível de contraditório, e sua eventual irregularidade não é motivo para decretação da nulidade da ação penal. Nessa linha: STF, 2ª Turma, HC 99.936/CE, Rel. Min. Ellen Gracie, DJe 232 10/12/2009. Em sentido semelhante: STF, 2ª Turma, HC 83.233/RJ, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ 19.03.2004.

33 Nessa linha: OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de processo penal. 11ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 34. Com entendimento semelhante: BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 116.

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não há qualquer razão cautelar a justificar a não intervenção das partes quando de sua produção, sendo obrigatória, pois, a observância do contraditório para a realização da prova.

O contraditório sobre a prova, também conhecido como contraditório diferido ou poster-gado, traduz-se no reconhecimento da atuação do contraditório após a formação da prova. Em outras palavras, a observância do contraditório é feita posteriormente, dando-se oportunidade ao acusado e a seu defensor de, no curso do processo, contestar a providência cautelar, ou de combater a prova pericial feita no curso do inquérito.

É o que acontece, por exemplo, com uma interceptação telefônica judicialmente autorizada no curso das investigações. Nessa hipótese, não faz sentido algum querer intimar previamente o investigado para acompanhar os atos investigatórios. Enquanto a interceptação estiver em curso, não há falar, portanto, em contraditório real. Porém, uma vez finda a diligência, e juntado aos autos o laudo de degravação e o resumo das operações realizadas (Lei nº 9.296/96, art. 6º), deles se dará vista à Defesa, a fim de que tenha ciência das informações obtidas através do referido procedimento investigatório, preservando-se, assim, o contraditório e a ampla defesa. Nesse caso, não há falar em violação à garantia da bilateralidade da audiência, porquanto o exercício do contraditório será apenas diferido para momento ulterior à decisão judicial.34

3.3. Princípio da ampla defesaDe acordo com o art. 5º, LV, da Magna Carta, “aos litigantes, em processo judicial ou

administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

Sob a ótica que privilegia o interesse do acusado, a ampla defesa pode ser vista como um direito; todavia, sob o enfoque publicístico, no qual prepondera o interesse geral de um processo justo, é vista como garantia.

O direito de defesa está ligado diretamente ao princípio do contraditório. A defesa garante o contraditório e por ele se manifesta. Afinal, o exercício da ampla defesa só é possível em vir-tude de um dos elementos que compõem o contraditório – o direito à informação. Além disso, a ampla defesa se exprime por intermédio de seu segundo elemento: a reação.

Apesar da influência recíproca entre o direito de defesa e o contraditório, os dois não se confundem. Com efeito, por força do princípio do devido processo legal, o processo penal exige partes em posições antagônicas, uma delas obrigatoriamente em posição de defesa (ampla defesa), havendo a necessidade de que cada uma tenha o direito de se contrapor aos atos e termos da parte contrária (contraditório). Como se vê, a defesa e o contraditório são manifestações simultâneas, intimamente ligadas pelo processo, sem que daí se possa concluir que uma derive da outra.35

Como há distinção, “é possível violar-se o contraditório, sem que se lesione o direito de defesa. Não se pode esquecer que o princípio do contraditório não diz respeito apenas à defesa ou aos direitos do réu. O princípio deve aplicar-se em relação a ambas as partes, além de também ser observado pelo próprio juiz. Deixar de comunicar um determinado ato processual ao acusa-dor, ou impedir-lhe a reação à determinada prova ou alegação da defesa, embora não represente

34 TUCCI. Op. cit. p. 162/163.35 Com esse entendimento: FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 6ª ed. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 2010, p. 253.

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violação do direito de defesa, certamente violará o princípio do contraditório. O contraditório manifesta-se em relação a ambas as partes, já a defesa diz respeito apenas ao réu”.36

Quando a Constituição Federal assegura aos litigantes, em processo judicial ou administra-tivo, e aos acusados em geral a ampla defesa, entende-se que a proteção deve abranger o direito à defesa técnica (processual ou específica) e à autodefesa (material ou genérica), havendo entre elas relação de complementariedade. Há entendimento doutrinário no sentido de que também é possível subdividir a ampla defesa sob dois aspectos: a) positivo: realiza-se na efetiva utilização dos instrumentos, dos meios e modos de produção, certificação, esclarecimento ou confrontação de elementos de prova que digam com a materialidade da infração criminal e com a autoria; b) negativo: consiste na não produção de elementos probatórios de elevado risco ou potencialidade danosa à defesa do réu.37

Por força da ampla defesa, admite-se que o acusado seja formalmente tratado de maneira desigual em relação à acusação, delineando o viés material do princípio da igualdade. Por con-sequência, ao acusado são outorgados diversos privilégios em detrimento da acusação, como a existência de recursos privativos da defesa, a proibição da reformatio in pejus, a regra do in dubio pro reo, a previsão de revisão criminal exclusivamente pro reo, etc., privilégios estes que são reunidos no princípio do favor rei.

Como prevalece a subdivisão da ampla defesa em defesa técnica e autodefesa, vejamos em que consiste cada uma delas.

3.3.1. Defesa técnica (processual ou específica)Defesa técnica é aquela exercida por profissional da advocacia, dotado de capacidade pos-

tulatória, seja ele advogado constituído, nomeado, ou defensor público. Para ser ampla, como impõe a Constituição Federal, apresenta-se no processo como defesa necessária, indeclinável, plena e efetiva, não sendo possível que alguém seja processado sem que possua defensor.

3.3.1.1. Defesa técnica necessária e irrenunciávelA defesa técnica é indisponível e irrenunciável. Logo, mesmo que o acusado, desprovido

de capacidade postulatória, queira ser processado sem defesa técnica, e ainda que seja revel, deve o juiz providenciar a nomeação de defensor. Exatamente em virtude disso, dispõe o art. 261 do CPP que “nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor”.

Não se admite, assim, processo penal sem que a defesa técnica seja exercida por profis-sional da advocacia. Caso o processo tenha curso sem a nomeação de defensor, seja porque o acusado não constituiu advogado, seja porque o juiz não lhe nomeou advogado dativo ou de-fensor público, o processo estará eivado de nulidade absoluta, por afronta à garantia da ampla defesa (CPP, art. 564, III, “c”). Nessa linha, segundo a súmula nº 708 do Supremo, “é nulo o julgamento da apelação se, após a manifestação nos autos da renúncia do único defensor, o réu não foi previamente intimado para constituir outro”.38

36 BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação e sentença. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 37.

37 AZEVEDO, David Teixeira de. O interrogatório do réu e o direito ao silêncio. RT, São Paulo, v. 682, p. 285-298, ago. 1992. p. 290.

38 No sentido da nulidade absoluta de sessão de julgamento de apelação criminal realizada sem a presença de defensor constituído, porquanto, após a apresentação das razões de apelação, o advogado constituído teria re-